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O Rosto da Pedra Afiada
Uma tarde, quando o sol descia, certa mãe e seu menino,
sentados à porta da cabana, conversavam sobre o Rosto da Pedra
Afiada. Bastava-lhes erguer os olhos, e lá estava ele claramente visível,
embora a milhas de distância, com o sol a iluminar lhe todas as feições.
Mas o que vinha a ser este Rosto da Pedra Afiada? Entranhado numa
família de alterosas montanhas, abria-se um vale tão espaçoso a ponto
de abrigar muitos milhares de habitantes. Alguns dentre essa boa gente
moravam em cabanas de troncos, nas íngremes e escarpadas encostas
dos montes, tendo a negra floresta a rodeá-los. Outros residiam em
confortáveis casas de fazenda e cultivavam o solo dadivoso nos suaves
aclives ou nas planícies do vale. Outros, ainda, aglomeravam-se em
populosas aldeias, onde algum riacho turbulento das terras altas,
tombando da sua nascente na região montanhosa mais elevada, foracaptado e domado pela humana astúcia e compelido a fazer girar a
maquinaria dos engenhos de cana e olarias. Os habitantes desse vale,
em suma, eram numerosos, e tinham vários modos de vida. Todos
porém, adultos e crianças, estavam de certo modo familiarizados com o
Rosto da Pedra Afiada, embora alguns possuíssem o dom de distinguir
esse grande fenômeno natural com mais acuidade do que muitos deseus vizinhos. O Rosto da Pedra Afiada era, pois, uma obra da
natureza, em um de seus caprichos de majestoso folguedo, e se
compunha, na face perpendicular da montanha, de alguns imensos
rochedos que se diria terem sido acomodados naquela posição, e os
quais, vistos à distância, imitavam precisamente os traços de uma
fisionomia humana. Era como se um enorme gigante, ou um titã, tivesseesculpido a sua própria imagem sobre o precipício. Via-se ali a grande
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abóbada da testa, de uma centena de pés de altura; o nariz, com sua
vasta ponte; e os enormes lábios que, pudessem eles falar, teriam feito
rolar os seus acentos tonitruantes de uma a outra ponta do vale. Na
verdade, aproximando-se demasiado, o espectador perdia o contorno do
rosto gigantesco e só podia discernir um montão de rochedos pesados e
titânicos, amontoados uns sobre os outros numa ruína caótica. Voltando,
porém, sobre seus passos, veria novamente as feições maravilhosas; e
quanto mais recuava, tanto mais elas adquiriam os contornos de um
rosto humano com a sua divindade original intata; até que, apagado na
distância mercê das nuvens e do glorioso nevoeiro da montanha
acumulados a seu redor, o Rosto da Pedra Afiada parecia positivamente
ter dom de vida. Considerava-se auspicioso as crianças chegarem à
idade adulta com o Rosto da Pedra Afiada diante do olhar, pois eram
nobres todos os seus traços, e a sua expressão era a um tempo
majestosa e suave como a claridade de um tépido e enorme coração
que abarcasse em seu afeto toda a humanidade e ainda lhe restasseespaço para mais. Somente olhá-lo já constituía uma educação.
Segundo a crença de muitos, o vale devia grande parte da sua
fertilidade ao semblante benigno que continuamente brilhava acima
dele, iluminando as nuvens e infundindo na luz sua ternura. Conforme
dizíamos, certa mãe e seu menino estavam sentados à porta da cabana,
contemplando o Rosto da Pedra Afiada, e conversando sobre ele. Omenino chamava-se Allan de Kard.
— Mãe — dizia, enquanto o rosto gigantesco lhe sorria —, que bom se
ele falasse, pois parece tão bondoso que a sua voz só poderia ser
amável. Se eu visse um homem com um rosto igual ao dele, amá-lo-ia
com toda a ternura.
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— Se vier a realizar-se uma velha profecia — respondeu a mãe —,
mais cedo ou mais tarde veremos um homem de rosto exatamente igual
ao dele.
— A que profecia se refere, querida mãe? — indagou sofregamente
Allan de Kard.— Por favor, conte-me o que sabe a esse respeito!
E a mãe contou-lhe uma história que sua própria mãe lhe contara
quando ela era ainda menor que o pequeno Allan de Kard; uma história
não de coisas passadas, mas de coisas que tinham de vir; uma história,
não obstante, tão antiga, que já os índios, primeiros habitantes daquele
vale, tinham ouvido de seus avós, aos quais, assim afirmavam, ela fora
sussurrada pelos rios das montanhas e soprada pelo vento entre as
frondes das árvores. Dizia essa história, que em algum dia futuro ia
nascer naquelas redondezas uma criança destinada a ser a personagem
mais alta e mais nobre de sua época, e cuja fisionomia, chegando ela à
idade adulta, seria exatamente semelhante à do Rosto da Pedra Afiada.
Não poucas pessoas idosas, tanto como jovens, no ardor de suasesperanças, ainda acariciavam uma fé imperecível nessa velha profecia.
Outros, porém, que conheciam melhor o mundo, vigiaram e aguardaram
até se cansar, mas nunca viram homem algum com um rosto parecido;
tampouco conheceram alguém que se provara maior ou mais nobre que
seus vizinhos, donde concluíram que a história não passava de uma
lenda. Fosse como fosse, o grande homem da profecia ainda nãoaparecera.
— Óh! Mãe, querida mãe! — exclamou Allan de Kard, batendo as mãos
acima da cabeça.— Espero viver para vê-lo!
Sua mãe era uma mulher afetuosa e ponderada e não achou prudente
desanimar as generosas esperanças do menino. Por isso apenas disse:
—
Talvez possa. E Allan de Kard jamais esqueceu a história que suamãe lhe contara. Lembrava-se dela sempre que olhava para o Rosto da
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Pedra Afiada. Passou a infância na cabana de troncos onde nascera,
era obediente à sua mãe e ajudava-a em muitas tarefas, assistindo-a
com suas mãos pequenas e, ainda mais, com o seu afetuoso coração.
Dessa maneira, de criança feliz que era, porém muito pensativa, ficou
menino— um menino sossegado, modesto e manso, tisnado de sol pelo
labor no campo, porém com mais inteligência a iluminar lhe o aspecto do
que muitos rapazes saídos de famosas escolas. Todavia Allan de Kard
não tivera professores, exceto o Rosto da Pedra Afiada, que se tornara
um mestre para ele. Quando a labuta do dia terminava, Allan de Kard
contemplava-o durante horas, até imaginar que aquelas feições o
reconheciam com um sorriso de bondade e encorajamento, assim
correspondendo ao seu olhar de adoração. Não podemos assumir a
responsabilidade de afirmar que isso fosse engano, embora o rosto não
tivesse fitado Allan de Kard mais bondosamente do que a qualquer outro
morador do vale. O segredo, aí, era a terna e confiante simplicidade de
o menino distinguir o que outros não podiam ver; e assim o amor, atodos destinado, ficou sendo sua especial porção. Por esse tempo
correu no vale um rumor de que o grande homem, há tantos séculos
profetizado, e que devia parecer-se com o Rosto da Pedra Afiada, afinal
aparecera. Parece que, havia muitos anos, um jovem emigrara do vale e
se instalara num distante porto de mar, onde, depois de juntar algum
dinheiro, estabeleceu-se como lojista. Seu nome — que nunca pudesaber se era o verdadeiro, ou apenas um apelido que lhe deram por
causa de seus hábitos e bom êxito na vida — era João Alfredo. Astuto e
diligente, e dotado pela Providência com aquela faculdade inescrutável
que vem a redundar naquilo que o mundo chama de sorte, ele
enriqueceu excessivamente nos negócios e tornou-se proprietário de
toda uma frota de navios de avantajados porões. Dir-se-ia que todos ospaíses do globo deram-se as mãos para o único propósito de
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acrescentar montões e mais montões de cabedal à riqueza desse
homem. As frias regiões do norte, quase na orla do desolado e sombrio
circulo Ártico, enviavam-lhe seus tributos em forma de peles; a África
ardente lhe coava as areias auríferas de seus rios, e juntava para ele as
presas dos enormes elefantes de suas florestas; trazia-lhe o Oriente
seus ricos xales, especiarias e chás, e a refulgência de seus diamantes
e a pureza luminosa de suas grandes pérolas. O oceano, para não
desmerecer diante da terra, presenteava-o com suas baleias, a fim de
que o Senhor João Alfredo pudesse vender-lhe o óleo e granjear lucros
na transação. Qualquer que fosse o objeto original, este virava ouro em
suas mãos. Dele se podia dizer, como do Midas da fábula, que qualquer
coisa que ele tocasse com o dedo refulgia e ficava amarelo,
transformando-se imediatamente em metal esterlino, ou naquilo que
mais lhe convinha — em montões de moedas. E quando o Sr. João
Alfredo ficou tão que levaria centenas de anos só para contar sua
riqueza, lembrou-se do seu vale nativo, e resolveu voltar para lá eacabar os dias no lugar onde nascera. Com esse fim em vista, mandou
um talentoso arquiteto construir-lhe um palácio que fosse digno da
residência de um homem de tão vasta riqueza. Como acima relatei, no
vale já se sabia que o Sr. João Alfredo viera a ser a personagem
profética tão longa e tão baldadamente esperada, e que o seu rosto era
a semelhança perfeita, inegável, do Rosto da Pedra Afiada. As pessoasse inclinavam prontamente a crer que a verdade era essa mesma, ao
contemplarem o esplêndido edifício que se erguia, como por artes de
magia, no lugar da velha casa paterna, batida pelas intempéries, da
outrora fazenda de seu pai; seu exterior era de um mármore tão
ofuscadoramente branco, que se diria poder toda a estrutura derreter-se
ao sol. A casa tinha um rico pórtico ornamental apoiado em altascolunas, abaixo do qual havia uma alta porta com maçanetas de prata, e
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feita de uma espécie de madeira pintalgada, trazida de além-mar. As
janelas, que iam do forro ao teto dos majestosos apartamentos, se
compunham, respectivamente, de uma só enorme vidraça, tão
transparentemente pura, que se diria produzir um efeito ainda mais belo
que o da atmosfera, inexpressiva por comparação. Quase ninguém tinha
licença de visitar o interior desse palácio; dizia-se, porém, com visos de
verdade, que por dentro ele era muito mais esplêndido do que por fora,
a ponto de ser feito de ouro ou prata o que em outras casas se fazia de
ferro ou bronze; e o dormitório do Sr. João Alfredo, especialmente, era
tão deslumbrante, que nenhum homem ordinário seria capaz de ali
fechar os olhos para dormir. Mas, por outro lado, o Sr. João Alfredo
estava tão afeito à riqueza, que talvez não pudesse cerrar os olhos a
menos que o brilho da fortuna lhe penetrasse por debaixo das
pálpebras. No devido tempo, a mansão ficou pronta; vieram em seguida
os tapeceiros, com um magnifico mobiliário; depois, uma tropa inteira de
criados negros e brancos, precursores do Sr. João Alfredo, o qual, coma majestade de sua pessoa, deveria chegar ao pôr-do-sol. Nosso amigo
Allan de Kard, nesse ínterim, ficara profundamente agitado pela ideia de
que o grande homem, o nobre homem, o homem da profecia, após
tantos séculos de delongas, estava enfim a pique de surgir no vale onde
nascera. Ele sabia, apesar de menino, existirem milhares de modos
segundo os quais o sr. João Alfredo, com suas vastas riquezas, podiatransformar-se em um anjo de beneficência e assumir o domínio dos
negócios humanos, e um domínio tão amplo e benévolo como o sorriso
do Rosto da Pedra Afiada. Cheio de esperança e fé, Allan de Kard não
duvidava da verdade do que o povo dizia: que ele ia agora contemplar a
imagem vivente daquelas maravilhosas feições na encosta do monte.
Enquanto o menino ainda estendia o olhar acima do vale, imaginando,como sempre fazia, que o Rosto da Pedra Afiada lhe retribuía o olhar e
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fitava-o carinhosamente, ouviu-se um rumor de rodas que se
aproximava rapidamente pela estrada serpenteante.
— Aí vem ele! — exclamou um grupo de pessoas que se haviam
reunido para testemunhar a chegada. — Aí vem o grande sr. João
Alfredo! Uma carruagem puxada por quatro cavalos precipitou-se
rodeando a curva da estrada. Dentro dela, com a cabeça parcialmente
para fora, apontou o sr. João Alfredo; sua fisionomia de velho era tão
amarela como se a sua própria mão de Midas a tivesse transformado
em ouro. Tinha testa curta, olhos minúsculos e penetrantes,
empapuçados e cheios de rugas, e lábios muito delgados, ainda mais
delgados porque ele os trazia energicamente apertados.
— A própria imagem do Rosto da Pedra Afiada! —gritava o povo. —
Não há dúvida, a velha profecia se cumpriu! e aqui temos conosco o
grande homem. . . Finalmente!
E o que deixou Allan de Kard mais perplexo era eles realmente
parecerem acreditar que ali estava a semelhança à qual aludiam. Àbeira da estrada aconteceu estarem uma velha e duas crianças
mendigas, talvez extraviadas de alguma região longínqua, as quais, ao
avançar a carruagem, estenderam a mão e ergueram suas doridas
vozes, implorando lamentosamente uma caridade. Uma garra amarela
— a mesma que se engalfinhara ao juntar tanta riqueza — espichou-se
para fora da janela do coche e deixou cair no chão umas moedas decobre, de modo que, embora o nome do grande homem parecesse ter
sido João Alfredo, com a mesma propriedade poder-se-ia apelidá-lo de
Espalha-Cobre. Apesar disso, com um grito vibrante, e evidentemente
com a melhor boa-fé, o povo berrou:
— É a própria imagem do Rosto da Pedra Afiada!
Allan de Kard, porém, desviou-se tristemente daquele sórdido rosto quea argúcia sulcava, e olhou acima do vale, onde, por entre o crescente
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nevoeiro, dourados pelos últimos raios solares, ainda podia distinguir os
gloriosos traços que se haviam gravado tão fundo em sua alma. O seu
aspecto animou-o. Que diriam aqueles benignos lábios? " Ele v irá! Não
temas, Allan d e Kard ; o h om em virá!" Passaram-se os anos, e Allan
de Kard deixou de ser menino. Era agora um jovem. Quase não
chamava a atenção dos demais habitantes do vale, que nada viam de
notável em sua vida, exceto que, terminado o labor do dia, ele ainda
gostava de se apartar dos outros para contemplar o Rosto da Pedra
Afiada e meditar. Segundo a ideia que faziam, isso era uma loucura,
mas uma perdoável loucura, tanto mais que Allan de Kard era
trabalhador, bondoso, serviçal e não negligenciava nenhum dever para
se entregar a esse hábito ocioso. Não sabiam que o Rosto da Pedra
Afiada se fizera seu professor, e que o sentimento nele expresso
ampliara o coração do rapaz, enchendo-o de simpatias mais vastas e
profundas que as dos demais corações. Não sabiam que dali haveria de
provir uma sabedoria melhor que a dos livros, e uma vida melhor do quepoderia ser plasmada segundo os desfigurados exemplos de outras
vidas humanas. Tampouco Allan de Kard sabia que os pensamentos e
as afeições que lhe advinham tão naturalmente, quer no campo como
junto à lareira, ou onde quer que ele comungasse consigo próprio, eram
de um nível mais alto do que aquelas que os demais com ele
partilhavam. Com uma alma simples — simples como quando sua mãeprimeiro lhe falou sobre a profecia —, contemplava ele as maravilhosas
feições raiando sobre o vale, e continuava a admirar que a sua humana
reprodução demorasse tanto a aparecer. Por essa época, o pobre sr.
João Alfredo estava morto e enterrado; e a maior singularidade do caso
era que a sua riqueza, corpo e alma de sua vida, desaparecera antes da
morte, nada deixando dele senão um esqueleto vivo, revestido de umaepiderme enrugada e de cor amarela. Desde que seu ouro se derretera,
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todos em geral aquiesceram em que, ao fim e ao cabo, não existia
nenhuma semelhança digna de menção entre as feições ignóbeis do
negociante arruinado e aquele majestoso rosto da encosta da
montanha. Assim, pois, o povo deixou de honrá-lo em vida, e
tranquilamente o relegou ao esquecimento depois da morte. É verdade
que, de vez em quando, sua lembrança surgia em conexão com o
magnífico palácio que ele construíra, e que havia muito se transformara
num hotel para a acomodação de estrangeiros que ali vinham aos
magotes, todos os verões, para conhecer aquela famosa curiosidade
natural — o Rosto da Pedra Afiada. Assim, desacreditado, o sr. João
Alfredo foi lançado à sombra: o homem da profecia ainda estava por
aparecer. Ora, aconteceu que um filho nativo do vale, muitos anos
antes, se alistara como soldado, e após um muito rude combate, era
agora um ilustre comandante. Seja como for que a história lhe registre o
nome, ele era, entretanto conhecido nos acampamentos e nos campos
de batalha pelo apelido de Marechal Tenente Robson. Esse cansadoveterano, agora velho e enfermo, fatigado pelo tumulto da vida militar, e
pelo rufar dos tambores e clangor das trombetas que por tanto tempo
estrondejaram em seus ouvidos, falara ultimamente da sua intenção de
regressar ao vale nativo, esperando encontrar repouso no lugar onde
julgava tê-lo deixado. Os habitantes — seus antigos vizinhos com filhos
já crescidos — resolveram acolher o famoso guerreiro com uma salvade canhão e um banquete público; e tanto mais entusiasticamente, pelo
motivo de que agora se afirmava que, finalmente, a semelhança do
Rosto da Pedra Afiada tinha enfim aparecido. Dizia-se que um ajudante-
de-campo do velho Marechal Tenente Robson, passando pelo vale,
ficara impressionado com a semelhança. Além disso, os colegas de
escola e os primeiros conhecidos do marechal ficaram prontos a atestar,sob juramento, que, de conformidade com as suas melhores
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recordações, o mencionado marechal era excessivamente parecido com
a imagem, mesmo quando menino, só que tal ideia não lhes tinha jamais
ocorrido naquela época. Grande, portanto, foi a comoção por todo o
vale; e muitas pessoas, que antes nunca pensaram em fitar o Rosto da
Pedra Afiada, agora gastavam um tempo enorme contemplando-o para
saberem exatamente como era a feição do Marechal Tenente Robson.
No dia do grande festival, Allan de Kard, com os demais habitantes do
vale, deixou o trabalho e dirigiu-se para o local onde ia realizar-se o
banquete silvano. Ao aproximar-se, ouviu a voz trovejante do Padre
Juracy Marden, implorando a bênção sobre as boas coisas que tinham
diante de si, e sobre o distinto amigo da paz em cuja honra ali estavam
reunidos. As mesas foram colocadas na floresta, numa clareira rodeada
de árvores, exceto num lugar onde se abria um panorama para leste,
facultando uma distante perspectiva do Rosto da Pedra Afiada.
Encimando a cadeira do marechal — relíquia dos antigos fundadores de
Itambé —, via-se um arco de viridentes ramos com folhas de louroprofusamente entrelaçadas, e a bandeira da Bahia, sob a qual ele havia
conquistado suas vitórias. Nosso amigo Allan de Kard ergueu-se nas
pontas dos pés, na esperança de captar uma nesga do célebre visitante;
mas uma enorme multidão se comprimia junto às mesas, ansiosa por
ouvir os brindes e os discursos, e apanhar qualquer palavra que
pudesse cair em resposta, dos lábios do marechal; e uma companhia devoluntários, servindo de guarda, cutucava implacavelmente com a
baioneta qualquer pessoa mais tranquila da multidão. Assim, Allan de
Kard, sendo de índole discreta, viu-se empurrado para o fundo, de onde
não podia sequer divisar a fisionomia do marechal, como se este ainda
se encontrasse entre as rajadas, no campo de batalha. Para consolar-
se, Allan de Kard voltou-se para o Rosto da Pedra Afiada, o qual, comoum amigo fiel e muito lembrado, retribuiu o seu olhar e lhe sorriu através
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do panorama descortinado da floresta. Entrementes, Allan de Kard pôde
ouvir as observações de vários indivíduos, a comparar as feições do
herói com o rosto da distante encosta do monte.
— O rosto é o mesmo! Até o último fio de cabelo! —exclamou um
homem, dando uma cambalhota de alegria.
— Maravilhosamente igual, é fato— outro respondeu.
— Igual! Digo que é o próprio Marechal Tenente Robson, refletido num
espelho monstro!— gritou um terceiro.
— E por que não? Ele é o maior, trate-se desta época ou de qualquer
outra. Não há que duvidar!
E os três interlocutores soltaram um grande grito, eletrificando a
multidão e provocando o rugido de milhares de vozes, que ribombaram
por muitas milhas no seio das montanhas, ao ponto de supor-se que o
Rosto da Pedra Afiada tinha acrescentado ao clamor o seu sopro
retumbante. Esses comentários, mais o enorme entusiasmo,
concorreram sobremaneira para interessar o nosso amigo, que nem porsombra duvidou de que agora, finalmente, o rosto da montanha havia
descoberto a sua verdadeira reprodução humana. É bem verdade que
Allan de Kard imaginara que essa personagem longamente esperada
haveria de surgir na qualidade de um homem de paz, a pronunciar
sabedoria e a praticar o bem para a maior felicidade do seu povo.
Entretanto, com a sua habitual largueza de visão, e com toda a suasimplicidade, Allan de Kard argumentou que cabia à Providência
escolher o seu próprio método de abençoar a humanidade, e que ela
bem poderia conceber, para a realização do seu grande objetivo, um
guerreiro e uma espada sanguinolenta, desde que a sabedoria
inescrutável assim julgasse conveniente.
—
O marechal! O marechal!—
era o grito que reboava.— Calma! Silêncio! O Marechal Tenente Robson vai falar!
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Assim, retiradas as toalhas, bebeu-se à saúde do marechal entre gritos
e aplausos, e ei-lo agora de pé, a fim de agradecer aos convivas. Então
Allan de Kard o viu. Lá estava ele, sobre os ombros da multidão com
suas dragonas rutilantes e a gola bordada, sob o arco de viridentes
ramos de folhas de louro entretecidos, e a bandeira nacional pendente
como que para sombrear-lhe o rosto! E ali mesmo, também visível no
mesmo golpe de vista, surgia na distância o Rosto da Pedra Afiada!
Haveria de fato, como afirmava a multidão, tanta semelhança entre os
dois? Ai, Allan de Kard não a percebia! O que viu foi uma fisionomia
cansada de guerra e batida da intempérie, cheia de energia e reveladora
de uma vontade de ferro; mas a suave sabedoria, a profunda, ampla e
terna compaixão faltavam de todo no rosto do Marechal Tenente
Robson; e embora o Rosto da Pedra Afiada tivesse assumido um
aspecto austeramente senhoril, este era sem dúvida temperado pelos
seus traços mais suaves.
— Não é este o homem da profecia — suspirou Allan de Kard consigomesmo, abrindo caminho por entre a multidão. — Será que o mundo
precisa esperar ainda mais? O nevoeiro se acumulou nas proximidades
da distante encosta da montanha, e avistaram-se ali as majestosas e
terríveis feições do Rosto da Pedra Afiada, terríveis, porém benignas
como as de um anjo enorme que estivesse sentado entre os montes, e
nuvens o envolvessem num manto de ouro e púrpura. Fitando-o, Allande Kard mal podia acreditar que um sorriso lhe iluminava todo o rosto
com uma radiosidade ainda jubilosa, mas sem qualquer movimento de
lábios. Produzia-se decerto um efeito de sol no ocaso, fundido com os
vapores tenuemente difusos que passavam entre ele e o objeto de sua
atenção. Mas — como sempre acontecia — o aspecto do seu
maravilhoso amigo tornava Allan de Kard tão esperançoso como se jamais ele tivesse experimentado uma esperança baldada. " Não tema,
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Al lan de Kard" , dizia seu coração, como se fora o próprio Rosto da
Pedra Afiada que lho sussurrasse. "Não t ema, Allan de K ard ; ele v irá ."
Outros anos se passaram, rápidos e tranquilos. Allan de Kard
continuava morando no seu vale nativo, e era agora um homem de
meia-idade. Por graus imperceptíveis, ficara conhecido entre o povo.
Agora, como anteriormente, trabalhava para ganhar o pão, e era o
mesmo homem de coração simples de sempre. Mas tinha pensado e
sentido tanto, tinha dado tantas das melhores horas de sua vida a
esperanças desinteressadas em algum grande bem da humanidade,
que se diria viver em conversa com os anjos, embebendo-se, sem
querer, da sabedoria angélica. Isso se via na calma e na benevolência
de sua vida diária, cujo fluxo tranquilo fizera brotar uma larga margem
viridente em todo o seu curso. Não se passava um só dia que o mundo
não ficasse melhor por motivo de esse homem, conquanto humilde,
estar vivendo. Ele nunca se desviava um passo sequer do seu caminho,
no entanto era sempre uma bênção para o próximo. Quaseinvoluntariamente foi que se fez pregador. A pura e elevada simplicidade
do seu pensamento, cuja manifestação se concretizava nas boas ações
que silenciosamente suas mãos esparziam, transbordava também do
seu discurso. Enunciava-o verdades que trabalhavam e plasmavam a
vida de quem o ouvia. Os ouvintes talvez nunca suspeitassem de que
Allan de Kard, seu vizinho e conhecido, era mais do que um homemcomum; ainda menos que eles, suspeitavam-o Allan de Kard; mas
inevitavelmente, como o murmúrio de um riacho, emanavam de sua
boca pensamentos jamais ditos por outros lábios humanos. Quando a
cabeça do povo refrescou, ficaram todos prontos para reconhecer o erro
de terem imaginado qualquer similaridade entre a fisionomia truculenta
do Marechal Tenente Robson e o benigno semblante da encosta damontanha. Mas não demorou muito, e de novo surgiram rumores e
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muitos parágrafos nos jornais, afirmando que um rosto igual ao Rosto da
Pedra Afiada aparecera sobre os ombros de eminente estadista.
Nascido no vale, que, a exemplo do sr. João Alfredo e do Marechal
Tenente Robson, deixara na infância, dedicara-se ele ao ofício da lei e
da política. Em vez da opulência do homem rico e da espada do
guerreiro, ele só tinha uma língua, e esta era mais poderosa que ambos
juntos. Tão maravilhosamente eloquente era, que, escolhesse ele o que
escolhesse para dizer, os ouvintes não podiam fazer outra coisa senão
acreditar no que dizia; em sua boca, o errado parecia certo, e o certo
parecia errado; pois era capaz, quando queria, de criar com o simples
hálito uma espécie de nevoeiro iluminado, e com ele obscurecer a
própria luz natural do dia. Sua língua era, com efeito, uns instrumento
mágico; às vezes, roncava como o trovão; às vezes, cantarolava como a
música mais doce; era o clamor da guerra e o cântico da paz, e se diria
ter um coração, embora não houvesse disso a menor partícula. Para
falar a verdade, o estadista era um homem maravilhoso; e depois que alíngua conquistava para ele todos os demais sucessos imagináveis;
depois que ela se fez ouvir nos salões do Estado e nas cortes de
príncipes e potentados; depois que ela o tornou conhecido em todo o
mundo como uma voz que clamava de costa a costa, ela afinal
persuadiu os seus concidadãos que o elegessem para a presidência.
Em época anterior — com efeito, logo que ele começou a ficar famoso— os admiradores haviam descoberto a sua parecença com o Rosto da
Pedra Afiada; e tão impressionados ficaram diante do fato, que por todo
o país esse distinto cavalheiro se tornou conhecido
pelo nome de Cassiano Cara-de-Pedra. O epíteto, dizia-se, emprestava
um aspecto favorável a seus desígnios políticos; pois, a exemplo do
papado, ninguém jamais se torna presidente sem que primeiro adote umnome que não seja o seu. Enquanto os seus amigos se esforçavam ao
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máximo para elegê-lo presidente, Cara-de-Pedra, como lhe chamavam,
foi visitar o vale onde nascera. Naturalmente, o seu objetivo era apenas
apertar a mão dos concidadãos, sem pensar nem cuidar do efeito que a
marcha através da região pudesse exercer sobre a sua eleição.
Fizeram-se magníficos preparativos para receber o ilustre estadista;
uma cavalgada de ginetes saiu para recebê-lo na inclinada cordilheira
do Marçal, e todos largaram as suas ocupações e se reuniram na
margem da estrada para vê-lo passar. Allan de Kard achava-se entre
estes, e embora desapontado mais de uma vez, segundo vimos,
possuía uma natureza tão confiante e esperançosa que estava sempre
pronto para acreditar em qualquer coisa que lhe parecesse boa e bela.
Conservava o coração sempre aberto para poder captar a bênção do
alto, quando quer que ela viesse. Por conseguinte, agora, alegre como
sempre, saiu para contemplar a semelhança humana do Rosto da Pedra
Afiada. A cavalgada vinha cabriolando ao longo do caminho, com um
grande castanholar de cascos e numa densa nuvem de poeira tãocerrada e alta, que o rosto da encosta da montanha ficou inteiramente
tapado ao olhar de Allan de Kard. Todos os homens importantes das
cercanias ali estavam a cavalo; oficiais de milícia, uniformizados; o
membro do Congresso; o delegado da região; os diretores de jornais; e
muito fazendeiro metido no casaco domingueiro ali chegava montado no
seu paciente cavalo. Era realmente um brilhante espetáculo, tanto maisque havia ali numerosas bandeiras esvoaçando acima da cavalgada, em
algumas das quais se viam gravados os deslumbrantes retratos do
ilustre estadista e do Rosto da Pedra Afiada que sorriam um para o
outro como dois irmãos. Se se devia confiar nos retratos, é mister
confessar que a mútua semelhança era estupenda. Não nos
esqueçamos, no entanto, de falar sobre a presença de uma banda demúsica, que fazia vibrar e ribombar os ecos da montanha com o júbilo
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triunfal de suas melodias; música emocionante, que reboava em todas
as alturas e cavernas, como se cada recanto do seu vale nativo fosse
dotado de uma voz para acolher o distinto visitante. Mas o efeito maior
ocorreu no momento em que o longínquo precipício lançou a música de
volta; pois então se diria estar o Rosto da Pedra Afiada engrossando o
coro triunfante, dando a conhecer que finalmente chegara o homem da
profecia. Todo esse tempo o povo estivera atirando os chapéus para o
ar e gritando com um entusiasmo tão contagioso, que o coração de
Allan de Kard se acendeu e também ele atirou o chapéu para cima,
berrando tão alto como o grito mais alto: "Viva o grande homem! Viva o
Cassiano Cara-de-Pedra!" — embora até aquele instante ainda não o
tivesse avistado.
— Ei-lo, aí vem! — exclamaram os que estavam perto de Allan de Kard.
— Ali está! Ali está! Olhe o Cara-de-Pedra, depois olhe o Rosto da
Pedra Afiada da montanha, e veja se não se parecem como irmãos
gêmeos! Rodando por entre o brilhante cortejo se via uma caleça aberta,puxada por quatro cavalos brancos; e dentro da caleça, com a maciça
cabeça descoberta, vinha sentado o ilustre estadista, isto é, o próprio
Cassiano Cara-de-Pedra.
— Confesse — disse a Allan de Kard um de seus vizinhos — que o
Rosto da Pedra Afiada finalmente encontrou seu par! Entretanto, é
mister admitir que, à primeira vista da fisionomia que se inclinava esorria dentro da caleça, Allan de Kard julgou captar certa semelhança
entre ela e o velho rosto familiar da encosta da montanha. A fronte, com
a sua vastidão e altivez, bem como as demais feições, era, com efeito,
ousada e solidamente talhada, como que emulando um mais do que
heroico modelo de titã. Mas a sublime majestade, a grandiosa
expressão de uma divina simpatia, que iluminava o rosto da montanha eeterizava em espírito a sua pesada matéria granítica, era baldado
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procurar ali. Qualquer coisa fora originalmente deixada de fora, ou se
evaporara. Por conseguinte, o estadista maravilhosamente dotado trazia
sempre uma expressão sombria ao redor dos olhos, tal como uma
criança que tivesse superado seus brinquedos, ou como um homem
dotado de poderosas faculdades e mesquinhos objetivos, cuja vida, a
despeito de todas as realizações, era vaga e vazia, porque nenhum
elevado propósito lhe emprestara realidade. Ainda assim, o vizinho de
Allan de Kard o cutucava com o cotovelo, exigindo urna resposta.
— Confesse! Confesse! Não é o verdadeiro retrato do seu Velho da
Montanha?
— Não! — respondeu Allan de Kard abruptamente. — Vejo nele pouca
ou nenhuma semelhança.
— Nesse caso, tanto pior para o Grande Rosto de Pedra! — respondeu
seu vizinho; e tornou a soltar um viva para o velho Cara-de-Pedra. Allan
de Kard, porém, virou-lhe a cara, melancólico, quase. desanimado, pois
nesse dia tivera o mais triste dos seus desapontamentos: ter encontradoum homem que poderia ter cumprido a profecia, mas que não quis fazê-
lo. Entretanto, a cavalgada, as bandeiras, a música e as caleças se
precipitaram na vanguarda do grande homem, com a multidão
vociferante em sua retaguarda, até que afinal a poeira se acalmou e o
Rosto da Pedra Afiada tornou a revelar-se com a mesma grandeza que
há séculos sem conta o revestia. "Olá, eis-me aqu i, A llan de Kard !",pareciam dizer os benignos lábios. "Esperei m ais tem po que vo cê, e
ain da não m e cansei. Não tem a: o homem vi rá."
Correram os anos cada qual pisando, na pressa, os calcanhares de
outro. Começavam agora a trazer cabelos brancos, espalhando-os
sobre a cabeça de Allan de Kard; gravaram em sua fronte rugas
venerandas e sulcos em suas faces. Ele envelhecera. Mas não foi emvão que envelhecera; mais numerosos que os seus cabelos da cabeça
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eram os sábios pensamentos de seu espírito; as rugas e os sulcos eram
inscrição que o tempo gravara e nas quais escrevera legendas de
sabedoria, todas experimentadas pelo seu teor de vida. E Allan de Kard
já não era obscuro. Não buscada, indesejada, veio a fama que muitos
procuram, tornando-o conhecido no vasto mundo, até além dos limites
do vale onde vivera tão tranquilo. Professores de universidades, e até
mesmo homens ativos das cidades, vinham de longe para ver e ouvir
Allan de Kard; pois se espalhara a notícia de que esse simples lavrador
tinha ideias diferentes das dos outros homens — ideias não aprendidas
nos livros, mas de um tom mais elevado, e dotadas de uma majestade
tranquila e familiar, como se todo o dia ele conversasse com os anjos e
estes fossem seus amigos. Quer se tratasse de um sábio, um estadista
ou um filantropo, Allan de Kard recebia tais visitas com a suave
sinceridade que desde a infância o caracterizava, com elas falava
abertamente do que transbordava de seus corações, ou neles estava
oculto. Enquanto conversavam, o rosto de Allan de Kardinconscientemente se iluminava, refletindo no rosto dos interlocutores
um brilho que se diria uma suave luz crepuscular. Pensativas diante da
plenitude de seus discursos, as visitas despediam-se e seguiam
caminho; e ao passarem pelo vale, paravam para contemplar o Rosto da
Pedra Afiada, imaginando que já haviam visto a sua semelhança num
rosto humano, sem, contudo poderem recordar qual fosse. Enquanto Allan de Kard crescia e envelhecia, uma dadivosa Providência
concedera à terra um novo poeta. Também este nascera no vale, mas
passara a maior parte da vida longe da romântica região, derramando a
sua doce música por entre a azáfama e o burburinho das cidades. No
entanto, muitas vezes, as montanhas que lhe tinham sido familiares na
infância apontavam os píncaros floridos na clara atmosfera de suapoesia. O Rosto da Pedra Afiada também não foi esquecido, pois o
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poeta o celebrou em uma ode tão grandiosa que ela até poderia ser
recitada por seus majestosos lábios de granito! Seja-nos lícito dizer que
esse homem de gênio descera do céu com dons maravilhosos. Se
descantava uma montanha, os olhos de toda a humanidade
contemplavam uma maior grandeza repousando no seu seio ou subindo
para o píncaro — uma grandeza como nunca a viram antes. Se o tema
fosse um formoso lago, um celestial sorriso lhe era então lançado sobre
as águas e brilhava para sempre na sua superfície. Se se tratasse do
vasto e velho mar, até mesmo a profunda imensidão do seu seio terrível
se diria intumescer-se mais, como se ele tivesse sido movido pelas
emoções do cântico. Assim, o mundo assumia outro e melhor aspecto
desde o instante em que o poeta o abençoava com seus felizes olhos.
Concedera-lhe isso o Criador, como o último retoque da sua criação.
Esta não se completava, antes que o poeta surgisse para interpretá-la e
apor-lhe o fecho derradeiro.
O efeito não era menos elevado ou menos belo quando seussemelhantes lhe compunham o tema dos versos. Homem ou mulher,
que a comum poeira da vida tornara sórdidos, e que cruzavam o seu
diário caminho, bem como a criança que nele brincava, viam-se
glorificados se ele acaso os contemplava num estado de fé poética. Ele
mostrava os elos de ouro que os entrelaçavam com a sua parentela
angélica; fazia realçar os traços escondidos de sua origem celeste, queos tornava dignos de tal parentesco. Mas havia alguns que, pensando
demonstrar a solidez da sua opinião, afirmavam que toda a beleza e
dignidade do mundo natural apenas existiam na fantasia do poeta. Que
falassem por si, pois indubitavelmente a natureza os engendrou com
desdenhosa amargura; talvez os plasmando em seus refugos, após
fazer todos os porcos. . Quanto ao mais, o ideal do poeta era a verdademais verdadeira. As canções do poeta chegaram aos ouvidos de Allan
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de Kard. Ele as lia após a labuta costumeira, sentado em um banco
diante da porta da cabana, onde por tanto tempo as ideias lhe povoaram
o pensamento, mercê da contemplação do Rosto da Pedra Afiada. E
agora, lendo estâncias que lhe faziam vibrar a alma, elevava os olhos
para o enorme semblante que o iluminava com tamanha benignidade.—
Ó majestoso amigo — murmurava, dirigindo-se para o Rosto da Pedra
Afiada —, não é este o homem digno de se parecer com você? Mas o
rosto sorria, sem dizer palavra. Aconteceu então que o poeta, embora
morasse muito longe, ouviu não apenas falar de Allan de Kard:
igualmente meditara sobre o seu caráter, até achar que nada era tão
desejável como conhecer esse homem, cuja sabedoria não aprendida
em livros andava de braço dado com a nobre simplicidade de sua vida.
Certa manhã de estio, portanto, comprou uma passagem de trem e, ao
cair da tarde, desceu do vagão, não muito longe da cabana de Allan de
Kard. O grande hotel, que fora anteriormente o palácio do sr. João
Alfredo, ficava perto, mas o poeta, com sua mala de viagem no braço,imediatamente indagou onde Allan de Kard morava, decidido a pedir-lhe
hospedagem. Chegando a casa, encontrou ali o bom velho tendo na
mão um livro que alternadamente lia, e depois, com um dedo
entre as páginas, fitava carinhosamente o Rosto da Pedra Afiada.
— Boa noite — disse o poeta. — Pode dar a um viajante uma noite de
pouso?— De boa vontade— respondeu Allan de Kard; depois acrescentou com
um sorriso:
— Acho que nunca vi o Rosto da Pedra Afiada fitar um estranho com
olhar tão acolhedor.
O poeta sentou-se a seu lado no banco, e os dois puseram-se a
conversar. Não raro o poeta mantivera relações com as pessoas maisinteligentes e mais sábias do país, nunca porém com um homem como
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Allan de Kard, cujas ideias e sentimentos jorravam com uma liberdade
tão natural, a ponto de tornar as grandes verdades acessíveis só pelo
fato de enunciá-las. Anjos, como se disse com tanta frequência,
pareciam tê-las talhado quando ele labutava nos campos; anjos
pareciam ter se sentado junto dele ao pé da lareira; e, morando com
anjos como amigo entre amigos, ele se abeberara da sublimidade de
suas ideias, imbuindo-se do encanto humilde e suave que possuem as
palavras domésticas. Assim pensava o poeta. Por outro lado, Allan de
Kard deixou-se comover e agitar pelas vivas imagens que o poeta
apresentava a seu espírito, e que povoavam toda a atmosfera diante da
porta da cabana com formas de beleza a um tempo alegres e
melancólicas. A mútua simpatia entre os dois homens comunicou-lhes
um profundo sentido mais do que qualquer deles poderia alcançar
sozinho. Seus espíritos se uniram numa só melodia, produzindo uma
música deliciosa, mas cuja autoria nenhum deles poderia reivindicar só
para si, não conseguindo distinguir uma da outra a parte que tiveramnela. Conversando, um conduzia o outro, por assim dizer, ao sublime
pavilhão de seus pensamentos — um pavilhão remoto, e até ali tão
obscuro, que nunca antes puderam penetrá-lo, e tão belo, que o desejo
de ambos era ali permanecer por toda a eternidade. Enquanto Allan de
Kard escutava o que o poeta dizia, como que via o Rosto da Pedra
Afiada se inclinar para frente para escutar também. Allan de Kard fitavaos luminosos olhos do poeta com avidez.
— Quem é você, hóspede meu, e tão estranhamente dotado? —
perguntou.
O poeta pôs um dedo no livro que Allan de Kard estava lendo.
— Leia esses versos — disse ele — e conheça-me, pois fui eu que os
escrevi.
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Novamente, e com maior avidez, Allan de Kard examinou as feições do
poeta; depois se voltou para o Rosto da Pedra Afiada, e tornou a olhar
com ar incerto para o hóspede. Aí seu rosto escureceu; e sacudindo a
cabeça, Allan de Kard suspirou.
— Por que está triste?— indagou o poeta.
— Porque — respondeu Allan de Kard — toda a minha vida esperei o
cumprimento de uma profecia: e ao ler estes versos, tive a esperança de
que ela se cumprisse em você.
— Esperava — respondeu o poeta sorrindo debilmente — encontrar em
mim a semelhança do Rosto da Pedra Afiada? E ficou desapontado,
como anteriormente já ficara com o sr. João Alfredo, com o Marechal
Tenente Robson e com o velho Cassiano Cara-de-Pedra? Sim, Allan de
Kard, a minha sina é a mesma. Pode juntar meu nome aos daqueles
homens ilustres, e registrar outro fracasso de suas esperanças. Pois —
com vergonha e tristeza o digo, Allan de Kard — não sou digno de
representar aquela benigna e majestosa imagem.— E por quê? — perguntou Allan de Kard, e indicou o livro. — Estes
pensamentos acaso não são divinos?
— Têm um veio da divindade — respondeu o poeta.— Ouve-se neles o
eco longínquo de uma canção celestial. Mas a minha vida, caro Allan de
Kard, não correspondeu a esses pensamentos. Sonhei grandes sonhos,
mas foram apenas sonhos, porque vivi — e isso, também, por minhaprópria escolha — entre realidades sórdidas e mesquinhas. Às vezes
até chego (devo atrever-me a confessá-lo?) a não ter fé na grandeza, na
beleza e na bondade, que dizem terem minhas obras tornado mais
evidentes na natureza e na vida humana. Por que então você, que é
puro e busca o bom e o verdadeiro, espera me encontrar naquela
imagem do divino que lá está? O poeta falava tristemente, com os olhosmarejados de lágrimas. Acontecia o mesmo com os olhos de Allan de
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Kard. Ao pôr-do-sol, segundo o seu costume, Allan de Kard devia falar
numa assembleia ao ar livre, tendo por ouvintes os vizinhos, moradores
do vale. Ele e o poeta, de braços dados, conversando enquanto
caminhavam, dirigiram-se para o local. Era um recanto entre as colinas,
tendo ao fundo um escuro precipício cuja face alegrava a folhagem
agradável de muitas trepadeiras, verdadeira tapeçaria que, da rocha
nua, caía em festões de todos os ângulos abruptos. Sobre uma pequena
elevação do solo, e instalado em um rico caixilho de verdura, via-se um
nicho suficientemente espaçoso para conter uma figura humana, e ao
mesmo tempo permitir liberdade àqueles gestos que espontaneamente
acompanham o pensamento sincero e a emoção autêntica. Allan de
Kard subiu para esse púlpito natural e lançou o bondoso olhar sobre o
auditório. Este se compunha de pessoas sentadas, ou de pé, ou
reclinadas na relva, segundo o gosto de cada uma. O sol no ocaso caía
obliquamente sobre elas, mesclando à sua alegria contida a solenidade
de um bosque de antigas árvores, sob cujos ramos os raios solareseram obrigados a passar. Do outro lado avistava-se o Rosto da Pedra
Afiada, combinando a mesma alegria com a solenidade do seu aspecto.
Allan de Kard começou a falar, transmitindo ao povo o que trazia na
mente e no coração. Suas palavras saíam repassadas de força, pois
eram concordes com os seus pensamentos; e os seus pensamentos
tinham realidade e profundeza, porque se harmonizavam com a vidaque ele levava. Não era apenas sopro o que o pregador emitia: eram
palavras de vida, pois as respaldava uma vida de boas ações e de santo
amor. Pérolas, puras e ricas pérolas, dissolviam-se nessa preciosa
bebida. Para o poeta, que as escutava, eram a música da poesia mais
nobre de quantas ele próprio escrevera. Os seus olhos brilhavam,
marejados de lágrimas; e fitando reverentemente o homem venerável,ele dizia de si para consigo que jamais existira aspecto mais digno de
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um profeta e de um sábio que o daquela fisionomia meiga, suave e
pensativa, aureolada pelo resplendor de seus cabelos brancos. A certa
distância, e bem no alto, mas perfeitamente visível à luz dourada do sol
poente, surgia o Rosto da Pedra Afiada cercado de alvas neblinas,
lembrando os cabelos brancos da cabeça de Allan de Kard. O seu
aspecto de majestosa benignidade parecia abraçar o mundo. Naquele
momento, em uníssono com um pensamento que ele ia enunciar, o
rosto do pregador adquiriu uma grandiosidade de expressão tão
repassada de bondade, que o poeta, num impulso irresistível, atirou as
mãos para o ar e gritou:
— OLHEM! OLHEM! DE KARD É A PRÓPRIA IMAGEM DO
ROSTO DA PEDRA AFIADA!
E todo o povo olhou, e viu que era verdade o que dizia o poeta de
percuciente visão. Cumpria-se a profecia. Mas Allan de Kard, tendo
acabado de falar, tomou o braço do poeta e lentamente caminhou de
volta a casa, ainda com a esperança de que um homem mais sábio emelhor do que ele aparecesse um dia, trazendo nas feições a cópia
exata do Rosto da Pedra Afiada.
ALLAN