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5/23/2018 JUDT,Tony.Ps-guerra-UmaHistriaDaEuropaDesde1945-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/judt-tony-pos-guerra-uma-historia-da-europa-desde-1945
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JUDT, Tony. Pós-guerra - Uma História Da Europa Desde 1945

Oct 10, 2015

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  • Capa2/642

  • Folha de Rosto3/642

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  • Crditos 2007, Tony JudtTodos os direitos desta edio reservados Editora Objetiva Ltda. Rua Cosme Velho, 103Rio de Janeiro RJ Cep: 22241-090Tel.: (21) 2199-7824 Fax: (21) 2199-7825www.objetiva.com.br

    Ttulo originalPostwar: A History of Europe since 1945

    Capa de casa sobre design original de Dean Nicastro

    Imagens de capaHomem caminha pela cidade destruda de Freiburg im Breisgau,1945 Werner Bischof/Magnum PhotosCrianas brincando junto ao muro de Berlim,1963 Thomas Hoepker/Magnum Photos

    Preparao de textoJulia Michaels

    RevisoMarta Miranda OSheaUmberto Figueiredo PintoOnzio PaivaDiogo Henriques

    Converso para e-bookAbreus System Ltda.

    CIP-BRASIL. CATALOGAO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJJ85p

    Judt, TonyPs-guerra [recurso eletrnico] : uma histria da Europa desde 1945 /

    Tony Judt ; traduo Jos Roberto OShea ; reviso Marta Miranda OShea . - Rio deJaneiro : Objetiva, 2011.

    recurso digitalTraduo de: Postwar: a History of Europe since 1945Formato: ePub

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  • Requisitos do sistema:Modo de acesso: Leitores, InternetInclui bibliografia

    1109p. ISBN 978-85-390-0256-6 (recurso eletrnico)1. Europa - Histria, 1945-. 2. Livros digitais. I. Ttulo.11-2948 CDD: 940.55

    CDU: 94(4)1945/...

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  • DedicatriaPara Jennifer

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  • EpgrafeNo ser a distncia do passado mais marcante, mais lendria,

    quanto mais imediata for em relao ao presente?THOMAS MANN, A Montanha Mgica

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  • Prefcio e Agradecimentos

    A Europa o menor continente. Sequer chega a ser um continente apenasum anexo subcontinental da sia. Toda a Europa (excluindo a Rssia e a Tur-quia) compreende no mais do que 5,5 milhes de quilmetros quadrados:menos do que dois teros da superfcie do Brasil, pouco mais do que a metadeda rea da China ou dos Estados Unidos. apequenada pela Rssia, que cobre17 milhes de quilmetros quadrados. Mas, quanto intensidade das difer-enas e dos contrastes internos, a Europa singular. Na contagem mais re-cente, abrangia 46 pases, a maioria dos quais consistindo em Estados enaes com idiomas prprios; vrios desses pases incorporam outras naese lnguas desprovidas de Estados; todos tm histrias, polticas, culturas ememrias distintas e sobrepostas; e cada um deles foi estudado a fundo.Mesmo para o breve perodo de sessenta anos de histria europia desde o fimda Segunda Guerra Mundial na verdade, sobretudo em relao a esse per-odo , as fontes secundrias de pesquisa, e para mencionar apenas as de ln-gua inglesa, so inesgotveis.

    Ningum, portanto, pode pretender escrever a histria completa ou definit-iva da Europa contempornea. Minha inadequao para a tarefa agravadapela proximidade: nascido pouco tempo depois do fim da guerra, sou contem-porneo maioria dos eventos descritos neste livro e posso me lembrar dosmomentos em que ouvi ou assisti aos relatos (ou at tomei parte) de muitodessa histria, enquanto ela acontecia. Isso facilita ou dificulta o meu entendi-mento da narrativa atinente Europa no ps-guerra? No sei. O que sei que,por vezes, tal condio impede o distanciamento desapaixonado dohistoriador.

    O presente livro no aspira ao distanciamento de um deus do Olimpo. Sem,espero eu, abrir mo da objetividade e da justia, Ps-guerra oferece uma in-terpretao francamente pessoal do recente passado europeu. Definido poruma expresso que, imerecidamente, adquiriu conotaes pejorativas, o livro cheio de opinies. Alguns julgamentos talvez sejam controversos; outros,equivocados. Todos so falveis. Para o bem ou para o mal, so meus assimcomo quaisquer equvocos inevitveis numa obra de tal extenso e escopo.

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  • Porm, se equvocos foram sustados, e se ao menos algumas das avaliaes econcluses deste livro se mostrarem durveis, devo isso, em grande medida,aos diversos estudiosos e amigos nos quais confiei durante a pesquisa eredao deste trabalho.

    Em primeiro lugar, um livro deste tipo toma por base outros livros.1 Osclssicos da historiografia moderna nos quais busquei inspirao e modelo in-cluem A Era dos Extremos, de Eric Hobsbawm; A Europa no Sculo XX, deGeorge Lichtheim; Histria Inglesa 1914-1945, de A. J. P. Taylor; e O Fim deuma Iluso, do falecido Franois Furet. Ainda que dspares entre si, esses liv-ros e seus respectivos autores compartilham uma solidez que fruto de vastoconhecimento e de uma autoconfiana intelectual raramente encontrada emseus sucessores alm de uma clareza de estilo que deve servir de padropara todo historiador.

    Entre os estudiosos cujos escritos sobre a histria recente da Europa maisme ensinaram, devo mencionar e agradecer, de modo especial, a HaroldJames, Mark Mazower e Andrew Moravcsik. A marca do trabalho deles servisvel nas pginas seguintes. A exemplo de todos os que estudam a Europamoderna, devo muito a Alan S. Milward, por seus estudos eruditos e icono-clastas da economia do ps-guerra.

    Se posso afirmar que tenho familiaridade com a histria da Europa Centrale Oriental assunto tantas vezes menosprezado em compndios de histriaeuropia escritos por especialistas na metade ocidental do continente , devoisso ao trabalho de um talentoso grupo de jovens acadmicos, a saber: BradAbrams, Catherine Merridale, Marci Shore e Timothy Snyder, bem como ameus amigos Jacques Rupnik e Istvn Dek. Com Timothy Garton Ashaprendi no apenas questes relacionadas Europa Central (tpico do qual,durante tantos anos, ele se apropriou), mas tambm, de modo especial, sduas Alemanhas durante a era da Ostpolitik. Ao longo de anos de conversascom Jan Gross e graas aos seus escritos pioneiros , assimilei no apenasum pouco de histria polonesa, mas tambm aprendi a entender as con-seqncias sociais da guerra, assunto sobre o qual Jan tem escrito com dis-cernimento e senso de humanidade incomparveis.

    Os trechos deste livro que discorrem sobre a Itlia muito devem ao trabalhode Paul Ginsborg, assim como os captulos que tratam da Espanha refletem oque aprendi ao ler e ouvir o notvel Victor Perez-Diaz. A ambos, e a AnnetteWieviorka cuja anlise magistral da ambivalncia da Frana, no perodops-guerra, diante do Holocausto, no livro Dportation et Gnocide, marcou

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  • profundamente a minha avaliao daquela histria conturbada , expressogratido especial. Minhas observaes finais sobre A Europa como Estilo deVida foram influenciadas pelos escritos de uma brilhante advogada, espe-cialista em Direito Internacional, Anne-Marie Slaughter, cujo trabalho sobreEstados desagregados defende, com contundncia, a forma de governo in-ternacional praticada pela Unio Europia, no porque seja basicamente mel-hor ou porque constitua o modelo ideal, mas porque no mundo em quevivemos nada mais funcionar.

    Em toda a Europa, amigos, colegas e ouvintes ensinaram-me muito maissobre o passado recente e o momento atual do continente do que eu poderiadepreender de livros e arquivos. Sou grato, em particular, a KrzysztofCzyzewski, Peter Kellner, Ivan Krastev, Denis Lacorne, Krzysztof Michalski,Mircea Mihaes, Berti Musliu, Susan Neiman e David Travis, por sua hospital-idade e assistncia. Agradeo a Istvn Rv por ter insistido que eu visitasse aCasa do Terror, em Budapeste, por mais desagradvel que fosse a experincia.Em Nova York, meus amigos e colegas Richard Mitten, Katherine Fleming eJerrold Seigel foram sempre generosos, oferecendo-me tempo e idias. DinoButurovic, gentilmente, examinou meu relato da complexidade lingsticaiugoslava.

    Sou grato a sucessivos diretores da Faculdade de Artes e Cincias daUniversidade de Nova York Philip Furmansky, Jess Benhabib e Richard Fo-ley , por terem apoiado minha pesquisa, e ao Instituto Remarque, fundadopor mim com o objetivo de incentivar o estudo e o debate sobre a Europa. Euno poderia ter fomentado o Instituto Remarque que promoveu muitas dasoficinas e aulas nas quais tanto aprendi sem o apoio generoso e o patrocniode Yves-Andr Istel; e jamais poderia ter escrito este livro, ao mesmo tempoem que dirigia o Remarque, sem a colaborao ultra-eficiente e dcil do dire-tor administrativo, Jair Kessler.

    A exemplo de tantos autores, sou imensamente agradecido pela amizade eorientao de meus agentes, Andrew Wylie e Sarah Chalfant; foram incans-veis no apoio a um projeto que levou mais tempo e se tornou maisabrangente do que eles poderiam supor. Agradeo tambm aos meus ed-itores Ravi Mirchandani e Caroline Knight, em Londres, e Scott Moyers eJane Fleming, em Nova York , pelo trabalho que desenvolveram, com o in-tuito de levar a termo o projeto deste livro. Graas hospitalidade de LeonWieseltier, algumas das avaliaes e opinies que surgem nos Captulos 12 e14 foram anteriormente publicadas em forma de ensaio, nas notveis pginas

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  • sobre arte por ele cultivadas na seo final da New Republic. Mas a minhamaior dvida profissional com o imbatvel editor da New York Review ofBooks, Robert Silvers, que ao longo dos anos tem me incentivado a percorreruma esfera poltica e histrica cada vez mais ampla, com todos os riscos e be-nefcios que tal aventura acarreta.

    Este livro muito se valeu da contribuio de alunos da Universidade deNova York. Alguns deles de modo particular, a doutora Paulina Bren, odoutor Daniel Cohen (que atualmente integram os quadros da UniversidadeRice) e a doutora Nicole Rudolph ajudaram-me a compreender o perodoem questo atravs de suas prprias pesquisas histricas, pesquisas que elesvero mencionadas nas pginas deste livro. Outros Jessica Cooperman eAvi Patt realizaram um trabalho inestimvel como assistentes de pesquisa.Michelle Pinto, ao lado de Simon Jackson, tornou-se, de bom grado, diligentepesquisadora de imagens; foi responsvel pela localizao de muitas das ilus-traes mais interessantes, notadamente o Lenin embrulhado que decora ofim da Terceira Parte. Demonstrando competncia, Alex Molot localizou e re-uniu relatrios e dados estatsticos, publicados e inditos, com os quais umlivro desta natureza no pode deixar de contar. certo que eu no poderia terrealizado este trabalho sem o aporte desses alunos.

    Minha famlia conviveu com a Europa do ps-guerra durante muito tempo no caso dos meus filhos, durante toda a infncia. No apenas foram toler-antes com as ausncias, as viagens e as obsesses provocadas pelo meu in-teresse pelo assunto, mas fizeram contribuies concretas para o contedo dolivro. A Daniel, o livro deve o ttulo; a Nicholas, o lembrete de que nem todasas boas histrias tm final feliz. minha esposa Jennifer o livro tambm devemuito inclusive duas leituras cuidadosas e construtivas. Mas o autor devemuito, muito mais. O Ps-guerra dedicado a ela.

    1 Nos captulos que seguem, as notas, em sua maioria, so convencionais: isto , tecem comentrios aotexto, em vez de identificar fontes. A fim de no estender um livro j bastante extenso, e que se dirigeao pblico em geral, no aqui oferecida a completa documentao relativa s referncias. Em breve,as fontes de Ps-guerra, alm de uma bibliografia completa, estaro disponveis para consulta noportal do Instituto Remarque [http://www.nyu.edu/pages/remarque/].

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  • Introduo

    Cada poca uma esfinge que se precipita no abismo,to logo o enigma decifrado.

    Heinrich Heine

    As circunstncias (que para alguns cavalheiros nada significam!),na realidade, conferem a cada princpio poltico a sua cor peculiar

    e o seu efeito especial.Edmund Burke

    Eventos, meu caro rapaz, eventos.Harold Macmillan

    A histria mundial no o solo em que germina a felicidade.Perodos de felicidade so, na histria mundial, pginas em branco.

    Georg Wilhelm Friedrich Hegel

    Decidi escrever este livro enquanto fazia uma baldeao no terminal fer-rovirio de Westbahnhof, a estao central de Viena. Era dezembro de 1989,momento propcio. Eu acabava de voltar de Praga, onde dramaturgos e his-toriadores do Frum Cvico de Vclav Havel desalojavam um Estado policialcomunista e atiravam quarenta anos de socialismo real na lata de lixo daHistria. Poucas semanas antes, inesperadamente, o Muro de Berlim tinhasido derrubado. Na Hungria e na Polnia, todos se surpreendiam com os de-safios das polticas ps-comunistas: o antigo regime todo-poderoso at pou-cos meses antes retrocedia a uma posio irrelevante. O Partido Comunistada Litunia acabava de se declarar favorvel independncia imediata em re-lao Unio Sovitica. E no txi, a caminho da estao ferroviria austraca,o rdio anunciava os primeiros relatos de um levante contra a ditadura

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  • nepotista de Nicolau Ceauescu, na Romnia. Um terremoto poltico rachavaa topografia da Europa, congelada desde o fim da Segunda Guerra Mundial.

    Uma era chegara ao fim e nascia uma nova Europa. Isso era bvio. Mas,com o fim da velha ordem, muitos conceitos antigos seriam questionados. Oque antes parecera permanente e, de certo modo, inevitvel assumiria umcarter passageiro. O confronto da Guerra Fria; a diviso entre Oriente eOcidente; a disputa entre comunismo e capitalismo; as histrias distintase estanques da prspera Europa Ocidental e dos satlites do bloco sovitico, aleste: nada disso poderia continuar a ser entendido como resultante de ne-cessidades ideolgicas ou da lgica frrea da poltica. Tratava-se de con-seqncias acidentais da Histria e a Histria empurrava tudo isso para olado.

    O futuro da Europa teria uma configurao bem diferente e o passadotambm. Em retrospecto, o perodo de 1945 a 1989 passaria a ser visto nocomo o limiar de uma nova era, mas como um interstcio: seria comoparnteses abertos no perodo ps-guerra, compreendendo questes malresolvidas de um conflito terminado em 1945 mas cujo eplogo perdurara pormais meio sculo. A despeito da forma que a Europa assumisse nos anos vind-ouros, o relato conhecido e bem contado sobre o que ocorrera no passadohavia se alterado para sempre. Pareceu-me evidente, naquele dezembro ge-lado na Europa Central, que a histria da Europa no ps-guerra precisava serreescrita.

    O momento era propcio, e o local tambm. Viena, em 1989, configuravaum palimpsesto dos passados sobrepostos e complexos da Europa. Nosprimeiros anos do sculo XX, Viena era a Europa: o centro frtil, nervoso eautocomplacente de uma cultura e civilizao s vsperas do apocalipse. Entreas duas guerras, reduzida da condio de gloriosa metrpole imperial decapital empobrecida de um diminuto rebotalho de Estado, Viena decara demodo constante, acabando por se tornar um posto avanado do imprionazista, ao qual a maioria dos vienenses jurou fervorosa lealdade.

    Depois que a Alemanha foi derrotada, a ustria viu-se do lado ocidental efoi agraciada com o status de primeira vtima de Hitler. Esse golpe de sorte,duplamente imerecido, permitiu a Viena exorcizar o passado. Esquecida, con-venientemente, a aliana nazista, a capital da ustria cidade ocidentalcercada pela Europa oriental sovitica adquiriu nova identidade, pas-sando a ser vista como guardi e modelo do mundo livre. Na percepo dosantigos sditos, agora encurralados na Tchecoslovquia, Polnia, Hungria,

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  • Romnia e Iugoslvia, Viena representava a Europa Central: uma comunid-ade imaginria caracterizada pela civilidade cosmopolita que os europeus tin-ham, de certo modo, perdido ao longo do sculo. Nos anos em que o comun-ismo agonizou, a cidade tornou-se uma espcie de posto de escuta da liber-dade, um local revigorado de encontros e despedidas para cidados do LesteEuropeu que fugiam para o Ocidente e para ocidentais que construam pontespara o Oriente.

    Viena, em 1989, era portanto um bom local onde pensar a Europa. A us-tria incorporava todos os atributos um tanto quanto presunosos do OesteEuropeu no ps-guerra: prosperidade capitalista ancorada em rico Estadoprevidencirio; paz social obtida ao custo de empregos e benesses distribudosgenerosamente aos principais grupos sociais e partidos polticos; seguranaexterna garantida pela proteo implcita do guarda-chuva nuclear ocidental ao mesmo tempo que a nao austraca se mantinha orgulhosamente neut-ra. Nesse nterim, do outro lado dos rios Leitha e Danbio, poucos quilmet-ros a leste, localizava-se a outra Europa, a Europa da pobreza desoladora eda polcia secreta. A distncia que as separava ficava bem sintetizada no con-traste entre as duas estaes ferrovirias de Viena: a progressista e movi-mentada Westbahnhof, onde executivos e turistas embarcavam em modernostrens expressos, com destino a Munique, Zurique ou Paris, e a sombria Sd-bahnhof, ponto de encontro dilapidado, sujo e perigoso, onde estrangeiros ne-cessitados desembarcavam de trens imundos provenientes de Budapeste ouBelgrado.

    Assim como as duas principais estaes ferrovirias da cidade, inadvertida-mente, apontavam a diviso geogrfica da Europa uma das estaes voltadacom otimismo e esperana para o Ocidente, a outra, displicentemente, ad-mitindo a vocao oriental de Viena , as prprias ruas da capital austracatestemunhavam o abismo de silncio que separava o presente tranqilo daEuropa do seu passado to incmodo. Os prdios imponentes e seguros aolongo da grande Ringstrasse eram lembrana da antiga vocao imperial deViena (embora a prpria Ring parecesse excessivamente grandiosa para servirde simples artria cotidiana a servio de indivduos a caminho do trabalho,numa capital europia de porte mdio), e a cidade tinha motivos para se or-gulhar de seus edifcios pblicos e espaos cvicos. A bem dizer, Vienamostrava-se propensa a invocar glrias antigas. No entanto, em relao aopassado recente, a cidade era sem dvida reticente.

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  • E, em relao aos judeus, que tinham ocupado tantos dos prdios centraisda metrpole e que contriburam, de modo decisivo, para a arte, a msica, oteatro, a literatura, o jornalismo e as idias que constituam Viena em seuapogeu, a cidade mostrava-se mais reticente que nunca. A prpria violnciacom que os judeus de Viena foram expulsos de seus lares, despachados pararegies situadas a leste da cidade e apagados da memria da capital ajudava aexplicar a tranqilidade culposa observada no presente. A Viena no ps-guerra semelhana da Europa Ocidental no ps-guerra era um edifcioimponente assentado sobre um passado indizvel. Grande parte desse passadoinfausto ocorrera em regies que ficaram sob o controle sovitico, motivo peloqual o perodo foi to facilmente esquecido (no Ocidente) ou abafado (noLeste Europeu). Com a recuperao da Europa Oriental, o passado no seriamenos indizvel, mas passaria a ser, inevitavelmente, debatido. Depois de1989, nada mais nem o futuro, nem o presente e, muito menos, o passado seria o mesmo.

    Embora a minha deciso de lidar com a histria da Europa no ps-guerraremontasse a dezembro de 1989, o livro s foi escrito muitos anos depois. Ascircunstncias interferiram. Em retrospecto, foi uma sorte: muitas questesque hoje se tornaram um pouco mais claras estavam ento obscuras. Arquivosforam abertos. A confuso inescapvel que se observa em processos de trans-formao revolucionria resolveu-se por si mesma, e ao menos algumas dasconseqncias de longo prazo da reviravolta de 1989 so agora inteligveis.Mas os tremores que sucederam aos abalos ssmicos de 1989 demoraram a di-minuir. Quando voltei a Viena, depois da data em questo, a cidade tentavaencontrar meios de abrigar milhares de refugiados oriundos de pases vizin-hos, como a Crocia e a Bsnia.

    Trs anos mais tarde, a ustria abandonou a autonomia cuidadosamentecultivada no perodo ps-guerra e ingressou na Unio Europia, cujo surgi-mento como potncia em questes europias foi conseqncia direta das re-volues ocorridas no Leste Europeu. Visitando Viena em outubro de 1999,encontrei a Westbahnhof coberta de cartazes do Partido da Liberdade, de JrgHaider, que, apesar da admirao declarada pelos homens honrados dos ex-rcitos nazistas que cumpriram seu dever na frente oriental, obteve, naqueleano, 27% dos votos, conseguindo apelar para a preocupao e perplexidadedos compatriotas austracos diante das mudanas ocorridas em seu mundo aolongo da dcada anterior. Aps quase meio sculo de imobilidade, Viena aexemplo do resto da Europa voltara a entrar para a histria.

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  • Este livro narra a histria da Europa desde a Segunda Guerra Mundial e, porconseguinte, inicia em 1945: Stunde nul, conforme diziam os alemes aHora Zero. Porm, a exemplo de tudo mais no sculo XX, tal histria j estesboada na guerra de trinta anos que teve incio em 1914, quando o contin-ente europeu embarcou rumo catstrofe. A Primeira Guerra Mundial, paratodos os que dela participaram, foi um massacre traumtico a metade doshomens da Srvia, com idade entre 18 e 55 anos, sucumbiu na luta , mas oconflito nada resolveu. A Alemanha (ao contrrio do que se pensava poca)no foi esmagada na guerra, nem nos acordos firmados no ps-guerra: se otivesse sido, seria difcil explicar a escalada que permitiu quele pas odomnio quase total da Europa apenas 25 anos depois. Na realidade, porque aAlemanha no pagou as dvidas que resultaram da Primeira Guerra Mundial,o custo da vitria para os Aliados foi mais alto do que o custo da derrota paraa Alemanha, que assim ressurgiu, relativamente, mais forte do que em 1913. Oproblema alemo, surgido na Europa na gerao anterior com a ascenso daPrssia, continuava sem soluo.

    Os pequenos pases que em 1918 emergiram do colapso dos velhos imprioseram pobres, instveis, inseguros e rancorosos em relao aos vizinhos. Noperodo entre as duas grandes guerras, a Europa esteve repleta de naes re-visionistas: Rssia, Alemanha, ustria, Hungria e Bulgria foram todasderrotadas na Grande Guerra e aguardavam a oportunidade de ajuste territ-orial. Depois de 1918, no foi restaurada a estabilidade internacional, no foiresgatado o equilbrio entre as potncias: houve apenas um interldio decor-rente de exausto. A violncia da guerra no se abateu. Em vez disso,transformou-se em questes domsticas em polmicas nacionalistas, pre-conceito racial, luta de classes e guerra civil. A Europa nos anos 20 e, especial-mente, nos anos 30 entrou numa zona de crepsculo, entre a ps-vida de umaguerra e a perturbadora expectativa de outra.

    Durante o perodo entre as duas guerras mundiais, conflitos internos e ant-agonismos entre Estados foram exacerbados e, em certa medida, provoca-dos pelo concomitante colapso da economia europia. Com efeito, a vidaeconmica na Europa recebeu naqueles anos um golpe triplo. A PrimeiraGuerra Mundial distorceu ndices de emprego, destruiu o comrcio e devastouregies inteiras alm de levar naes bancarrota. Muitos pases sobre-tudo na Europa Central jamais se recuperaram dos efeitos dela. Os queconseguiram faz-lo foram novamente derrubados pela Depresso dos anos30, quando deflao, falncias e iniciativas desesperadas para instituir tarifas

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  • protecionistas contra a concorrncia internacional resultaram no apenas emnveis de desemprego jamais vistos e na destruio da capacidade industrial,mas tambm no fracasso do comrcio internacional (entre 1929 e 1936 ocomrcio franco-germnico caiu 83%), tudo acompanhado de rivalidade e res-sentimentos ferrenhos entre as naes. Ento, veio a Segunda Guerra Mundi-al, cujo impacto, sem precedentes, nas populaes civis e nas economiasdomsticas dos pases envolvidos discutido na Primeira Parte deste livro.

    O impacto cumulativo desses golpes haveria de destruir uma civilizao. Aescala do desastre que a Europa se impusera era plenamente visvel aos con-temporneos, mesmo enquanto tudo acontecia. Alguns, tanto na extrema es-querda quanto na extrema direita, enxergavam na auto-imolao da Europaburguesa uma oportunidade de lutar por algo melhor. Os anos 30 foram, paraAuden, a dcada vil, desonesta; mas foram tambm um tempo de engaja-mento e determinao poltica, culminando nas iluses e vidas perdidas naGuerra Civil espanhola. Foram o vero tardio das vises radicais surgidas nosculo XIX, agora investidas dos intensos compromissos ideolgicos de umtempo mais severo: Que tremendo anseio por uma nova ordem para a hu-manidade houve no perodo entre as duas guerras mundiais, e que triste foi aincapacidade de pr em prtica tal ordem (Arthur Koestler).

    Desesperados com a situao na Europa, alguns fugiram: primeiro para asdemocracias liberais que ainda restavam no extremo ocidental do continente;depois aqueles que conseguiram sair a tempo para as Amricas. E alguns,como Stefan Zweig e Walter Benjamin, acabaram com as prprias vidas. Nasvsperas da queda final do continente no precipcio, parecia no haverqualquer esperana para a Europa. Seja l o que se perdeu quando da im-ploso da civilizao europia perda cujas implicaes tinham sido hmuito intudas por Karl Kraus e Franz Kafka na Viena de Zweig , jamais ser-ia recapturado. No clssico filme de Jean Renoir, produzido em 1937, aGrande Iluso da poca era recorrer guerra e aos mitos de honra, casta eclasse a ela atinentes. Mas, j em 1940, para os europeus mais perspicazes, amaior das iluses da Europa agora desacreditada a ponto de ser consid-erada irresgatvel era a prpria civilizao europia.

    luz dos acontecimentos pregressos, compreensvel o desejo de narrar ahistria da inesperada recuperao da Europa, a partir de 1945, em tom deautocongratulao, ou mesmo de lirismo. E esse, deveras, tem sido o temapredominante que subjaz s histrias do ps-guerra na Europa, especialmenteas escritas antes de 1989 e esse era tambm o tom adotado por estadistas

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  • europeus, quando refletiam sobre seus feitos pessoais nas referidas dcadas. Asimples sobrevivncia e o ressurgimento dos Estados independentes daEuropa continental aps o cataclismo da guerra total; a ausncia de disputasentre naes e a intensificao das formas institucionalizadas de cooperaointra-europia; a recuperao sustentada aps trinta anos de imploso econ-mica e a normalizao da prosperidade, do otimismo e da paz: fatorescomo esses propiciaram uma reao exagerada. A recuperao da Europa eraum milagre. A Europa ps-nacional aprendera as lies amargas dahistria recente. Havia surgido um continente conciliatrio, pacfico, qual aFnix, das cinzas do seu prprio passado assassino-suicida.

    A exemplo de tantos mitos, essa avaliao benevolente da Europa na se-gunda metade do sculo XX contm um ncleo de verdade. Mas ignora muitasquestes. A Europa Oriental desde a fronteira austraca at os montesUrais, de Tallinn at Tirana aqui no se encaixa. certo que nessas regiesas dcadas do ps-guerra foram pacficas, comparadas ao que acontecia antes,mas isso se deu ao custo da presena do Exrcito Vermelho: tratava-se da pazdo presdio, da paz guardada pelo tanque. E se os pases-satlites do bloco so-vitico praticavam uma cooperao internacional, superficialmente com-parvel dos Estados do Oeste Europeu, era porque Moscou lhes impunha in-terao bem como a criao de instituies fraternais.

    A histria das duas metades da Europa no ps-guerra no pode ser contadaseparadamente. O legado da Segunda Guerra Mundial (e as dcadas que ante-cederam a guerra, bem como a guerra anterior) imps aos governos e aos pov-os da Europa Oriental e Ocidental escolhas difceis quanto aos melhoresmeios de evitar qualquer retorno ao passado. Uma opo seguir a agendaradical dos movimentos populares da dcada de 1930 foi, a princpio,bastante aceita em ambas as metades da Europa (um lembrete de que, narealidade, 1945 jamais foi o novo comeo que s vezes parece ser). No LesteEuropeu, algum tipo de transformao radical era inevitvel. No existiaqualquer possibilidade de voltar a um passado desacreditado. O que, ento,haveria de substitu-lo? O comunismo talvez fosse uma soluo equivocada,mas o dilema ao qual ele buscava responder era bastante real.

    No Ocidente, a perspectiva de mudana radical foi afastada, graas inclus-ive ajuda (e presso) norte-americana. O apelo da agenda das frentes pop-ulares e do comunismo perdeu a fora: ambos eram receitas para temposdifceis e, no Ocidente, ao menos depois de 1952, os tempos j no eram todifceis. E assim, nas dcadas seguintes, as incertezas dos primeiros anos do

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  • ps-guerra foram esquecidas. Mas em 1945 a possibilidade de que as coisastomassem um rumo diferente deveras, a probabilidade de que tomariamum rumo diferente parecia muito real; foi para impedir a volta de velhosdemnios (desemprego, fascismo, militarismo germnico, guerra, revoluo)que a Europa Ocidental seguiu a nova trilha que hoje conhecemos. Ps-nacional, praticando o Estado previdencirio e a cooperao, a Europapacfica no nasceu do projeto otimista, ambicioso e progressista imaginadocom bons olhos pelos idealistas que hoje defendem o euro. A Europa foi umafilha insegura da ansiedade. Oprimidos pela histria, os lderes europeus im-plementaram reformas sociais e criaram instituies de carter profiltico, afim de acuar o passado.

    Fica mais fcil compreender a situao quando nos lembramos de que, ba-sicamente, as autoridades do bloco sovitico estavam engajadas no mesmoprojeto. Elas tambm buscavam, acima de tudo, construir uma barreira contrao retrocesso poltico ainda que nos pases sob o regime comunista tal objet-ivo fosse alcanado nem tanto atravs do progresso social mas do uso da forafsica. A histria recente foi reescrita e os cidados foram encorajados aesquec-la a partir da assero de que uma revoluo social liderada porcomunistas havia, definitivamente, apagado no apenas as deficincias dopassado mas tambm as condies que as propiciaram. Conforme veremos,essa reivindicao tambm mito, na melhor das hipteses, meia-verdade.

    Mas o mito comunista, involuntariamente, constitui um testemunho da im-portncia (e da dificuldade), em ambas as metades da Europa, de lidar comuma herana onerosa. A Primeira Guerra Mundial destruiu a velha Europa; aSegunda Guerra Mundial criou as condies para uma nova Europa. Mas, de-pois de 1945, todo o continente viveu durante muitos anos sob o efeito som-brio de ditadores e guerras que pertenciam ao passado europeu recente. Essa uma das experincias que os europeus da gerao ps-guerra tm emcomum e que os distingue dos norte-americanos, aos quais o sculo XX ensin-ou lies bem diferentes e muito mais otimistas. tambm, necessariamente,o ponto de partida para qualquer pessoa que pretenda compreender a histriada Europa antes de 1989 e constatar o quanto essa histria mudou desdeento.

    Ao discutir a viso que Tolstoi tem da Histria, Isaiah Berlin estabeleceu umainfluente distino entre dois estilos de raciocnio intelectual, citando palavrasclebres do poeta grego Arquloco: A raposa sabe muitas coisas, mas o porco-

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  • espinho sabe uma grande coisa. Segundo os termos de Berlin, este livro no, absolutamente, um porco-espinho. No tenho uma grande teoria a re-speito da histria europia contempornea a propor nestas pginas; nenhumtema dominante a desenvolver; nenhum relato nico, superabrangente, a ap-resentar. Isso no quer dizer, todavia, que eu ache que a histria do perodoque sucedeu Segunda Guerra Mundial na Europa no tenha forma temtica.Ao contrrio: tem mais de uma. A exemplo da raposa, a Europa sabe muitascoisas.

    Em primeiro lugar, trata-se do relato da reduo da Europa. Depois de1945, os Estados constituintes do continente europeu j no podiam aspirar aum status internacional ou imperial. As duas excees a essa regra a UnioSovitica e, at certo ponto, a Gr-Bretanha consideravam-se apenas par-cialmente europias e, em todo caso, no final do perodo aqui abordado, am-bas tambm se encontravam bastante diminudas. A maior parte do restanteda Europa continental tinha sido humilhada pela derrota e pela ocupao. Ex-clusivamente atravs dos seus prprios esforos, a Europa no havia con-seguido se libertar do fascismo; tampouco conseguira, sem auxlio externo, in-timidar o comunismo. A Europa no ps-guerra foi libertada ou imunizada por terceiros. Somente atravs de grande esforo e de um processo que de-morou dcadas os europeus recuperaram o controle do seu prprio destino.Podados dos territrios ultramarinos, os antigos imprios martimos europeus(da Gr-Bretanha, da Holanda, da Blgica, de Portugal), no decorrer dos anosem questo, encolheram, voltando aos seus ncleos europeus e redirecion-ando a ateno para a prpria Europa.

    Em segundo lugar, as ltimas dcadas do sculo XX testemunharam o en-fraquecimento das narrativas-mestras da histria europia: as grandesteorias da Histria surgidas no sculo XIX, com seus modelos de progresso emudana, de revoluo e transformao, que abasteceram os projetos polti-cos e os movimentos sociais responsveis pela destruio da Europa naprimeira metade do sculo. Tambm esse relato s faz sentido numa tela pan-europia: o declnio do fervor poltico no Ocidente (exceto entre uma minoriaintelectual marginalizada) foi acompanhado por razes bem diversas pela perda de f na poltica e pelo descrdito em relao ao marxismo oficialno Leste Europeu. Durante um breve momento nos anos 80, sem dvida,parecia que a direita intelectual seria capaz de encenar um renascimento emtorno de um projeto (tambm oitocentista) de desmantelamento da so-ciedade e da entrega das questes pblicas ao livre-mercado e a um Estado

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  • minimalista; mas o espasmo passou. Depois de 1989, no foi oferecido naEuropa qualquer projeto ideolgico abrangente, fosse de esquerda ou dedireita a no ser a perspectiva de liberdade, que para a maioria doseuropeus era uma promessa agora devidamente cumprida.

    Em terceiro lugar, e como substituto modesto das ambies extintas nopassado ideolgico europeu, surgiu, tardiamente e bastante por acaso , omodelo europeu. Nascido de uma mescla ecltica de legislao socialdemo-crata e democrata crist e do crescimento institucional da ComunidadeEuropia e da Unio subseqente, o modelo era, distintamente, um mecan-ismo europeu para regular a interao social e as relaes entre Estados.Abarcando tudo, desde puericultura at legislao internacional, essa abord-agem europia significava mais do que meras prticas burocrticas da UnioEuropia e dos pases membros; j no incio do sculo XXI, a abordagemtornara-se sinal e exemplo para naes aspirantes Unio Europia, bemcomo um desafio global aos Estados Unidos e ao apelo rival representado peloAmerican way of life.

    Essa transformao imprevista da Europa, de uma expresso geogrfica(alis, bastante conturbada) a modelo exemplar e plo de atrao para indiv-duos e pases, foi um processo lento, cumulativo. A Europa no estava, se-gundo a parfrase irnica de Alexander Wat ao se referir s desiluses dos es-tadistas poloneses no perodo entre as guerras, fadada grandeza. O surgi-mento da Europa nessa nova condio no poderia, absolutamente, ser prev-isto com base nas circunstncias de 1945, nem mesmo nas de 1975. Essa novaEuropa no era um projeto comum e preconcebido: ningum se incumbiu decri-lo. Mas, tendo ficado claro, depois de 1992, que a Europa ocupava essanova posio no esquema internacional, as relaes entre o continente e osEUA, em particular, assumiram um aspecto diferente tanto para europeusquanto para norte-americanos.

    Eis o quarto tema que se entrelaa neste relato da Europa no ps-guerra: asrelaes entre o continente e os Estados Unidos, complexas e freqentementeincompreendidas. Depois de 1945, os europeus ocidentais passaram a desejaro envolvimento dos EUA em questes europias mas tambm se ressentiamdesse envolvimento e do que ele pudesse sugerir quanto ao declnio daEuropa. Alm disso, a despeito da presena dos EUA na Europa, especial-mente depois de 1949, os dois lados do Ocidente continuaram a ser locaisbastante diferentes. A Guerra Fria era vista na Europa Ocidental de modobastante diverso da reao alarmista que o fenmeno provocou nos EUA, e a

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  • subseqente e suposta americanizao da Europa nos anos 50 e 60 foi umtanto exagerada, conforme veremos.

    A Europa Oriental, evidentemente, enxergava os Estados Unidos e seus at-ributos de maneira bastante distinta. Mas, tambm nesse caso, seria errneoexagerar a influncia dos EUA sobre os europeus do leste, seja antes ou depoisde 1989. Crticos dissidentes, nas duas metades da Europa por exemplo,Raymond Aron, na Frana, ou Vclav Havel, na Tchecoslovquia , tinham ocuidado de enfatizar que no consideravam os EUA modelo ou exemplo paraas suas respectivas sociedades. E, embora uma gerao de europeus orientaisps-1989, durante algum tempo, almejasse a liberalizao de seus pases deacordo com o modelo norte-americano, com servios pblicos limitados, im-postos baixos e livre-mercado, a moda no pegou. O momento norte-amer-icano da Europa ficou no passado. O futuro das mini-Amricas da EuropaOriental estava exclusivamente na Europa.

    Finalmente, a histria do ps-guerra na Europa constitui um relato mar-cado pelo silncio, pela ausncia. O continente europeu fora, no passado, umaintrincada tapearia, com idiomas, religies, comunidades e naes sobrepos-tas. Muitas cidades europias em especial, as menores, situadas nas divisasdos velhos e dos novos imprios, tais como Trieste, Sarajevo, Salonika,Cernovitz, Odessa ou Vilna eram sociedades verdadeira e precocementemulticulturais, onde viviam catlicos, gregos ortodoxos, muulmanos, judeuse seguidores de outras religies habituados a tal justaposio. Mas no deve-mos idealizar essa velha Europa. O que o escritor polons Tadeusz Borowskichamou de incrvel, quase cmico caldeiro de povos e nacionalidades, fer-vendo perigosamente no corao da Europa costumava ser lacerado em con-seqncia de rebelies, massacres e pogroms mas era real, e sobreviveu ata memria recente.

    Entre 1914 e 1945, contudo, aquela Europa foi esmagada por completo. AEuropa mais arrumada que surgiu de olhos arregalados na segunda metade dosculo XX tinha menos pendncias. Graas guerra, ocupao, aos ajustesde fronteiras, s expulses e aos genocdios, quase todos agora viviam em seusrespectivos pases, entre a sua prpria gente. Durante os quarenta anos que seseguiram Segunda Guerra Mundial, europeus nas duas metades do contin-ente viveram em enclaves nacionais hermticos, onde minorias tnicas ou re-ligiosas por exemplo, os judeus na Frana representavam uma percent-agem diminuta da populao, tendo sido inteiramente integradas s re-spectivas culturas e ao meio poltico dominante. Somente a Iugoslvia e a

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  • Unio Sovitica esta um imprio, no um pas, e, em todo caso, apenas par-cialmente europia, conforme j foi observado mantinham-se parte dessanova Europa, cada vez mais homognea.

    Mas, desde os anos 80, e principalmente desde a queda da Unio Soviticae da expanso da Unio Europia, a Europa tem encarado um futuro multicul-tural. Refugiados, trabalhadores estrangeiros, cidados de antigas colniaseuropias atrados para a metrpole pela perspectiva de emprego ou liberdadee migrantes voluntrios e involuntrios provenientes de Estados fracassadosou repressivos situados s margens expandidas da Europa transformaramLondres, Paris, Anturpia, Amsterd, Berlim, Milo e uma dezena de outroslocais em cidades globais e cosmopolitas, querendo elas ou no.

    Essa nova presena dos outros, vivos, na Europa por exemplo, pos-svel que 15 milhes de muulmanos j estejam na Unio Europia, conformehoje constituda, e mais 80 milhes aguardem admisso na Bulgria e na Tur-quia fez ressaltar no apenas a atual inquietao europia diante da per-spectiva de crescente variedade, mas tambm a facilidade com que osoutros, mortos do passado europeu, foram obliterados do pensamento.Desde 1989, ficou mais claro do que nunca o quanto a estabilidade da Europano ps-guerra dependeu das realizaes de Josef Stalin e Adolf Hitler. Soma-dos seus esforos, e auxiliados pelos colaboracionistas durante a guerra, osdois ditadores arrasaram a charneca demogrfica sobre a qual as fundaes deum continente novo e menos complicado foram ento construdas.

    Essa dificuldade desconcertante na tranqila narrativa do progresso daEuropa em direo ao que Winston Churchill chamou de plagas ensolaradasfoi pouco mencionada, nas duas metades do continente ao menos at osanos 60, quando passou a ser invocada exclusivamente em relao ao exterm-nio dos judeus pelos alemes. A no ser pela ocasional e controversa exceo,o registro de outros criminosos e de outras vtimas foi mantido em siln-cio. A Histria e a memria da Segunda Guerra Mundial ficaram, tipicamente,restritas a um conhecido conjunto de convenes morais: o bem contra o mal,antifascistas versus fascistas, membros das resistncias versus colabora-cionistas etc.

    Desde 1989 com a superao de antigas inibies tornou-se possveladmitir (por vezes, mesmo diante de objees e negaes virulentas) o customoral do renascimento da Europa. Poloneses, franceses, suos, italianos, ro-menos e outros povos tm hoje melhores condies de saber se quiseremsaber o que de fato ocorreu em seus pases h poucas dcadas. At os

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  • alemes esto revisitando a histria oficial de seu pas com conseqnciasparadoxais. Agora pela primeira vez em muitas dcadas so o sofrimentoalemo e a condio de vtima dos alemes, seja em conseqncia de bom-bardeiros britnicos, soldados russos ou expulsores tchecos, que se tornaramalvos de ateno. Os judeus, mais uma vez se pretende sugerir, em certos cr-culos respeitveis, no foram as nicas vtimas...

    Se tais discusses so positivas ou negativas questo a se debater. Sertoda essa memria pblica um sinal de sade poltica? Ou ser, s vezes, maisprudente, conforme De Gaulle e outros entendiam to bem, esquecer? Estaquesto ser retomada no Eplogo. Aqui, quero apenas observar que os recen-tes soluos de lembranas perturbadoras no precisam ser entendidos como por vezes o so (notadamente nos Estados Unidos), quando justapostosa erupes de preconceito tnico e racial como provas negativas do PecadoOriginal europeu: a incapacidade de aprender com os crimes do passado, anostalgia amnsica, a eterna propenso de voltar a 1938. A situao no con-figura, nas palavras do jogador norte-americano de beisebol Yogi Berra,outro dj-vu novo.

    A Europa no est voltando ao turbulento passado guerreiro ao con-trrio, est deixando esse passado para trs. A Alemanha, tanto quanto o rest-ante da Europa, mostra-se hoje mais consciente da sua prpria histria nosculo XX do que nos ltimos cinqenta anos. Mas isso no quer dizer que elaesteja sendo atrada de volta ao passado, pois a referida histria jamais seafastou. Conforme o presente livro procura demonstrar, a grande sombra daSegunda Guerra Mundial pesou sobre toda a Europa no perodo ps-guerra.No entanto, tal sombra no podia ser reconhecida em toda a sua plenitude. Osilncio em relao ao passado recente da Europa foi condio necessria paraa construo de um futuro europeu. Hoje em dia no rastro de espinhososdebates pblicos em quase todos os demais pases europeus parece conce-bvel (e, em todo caso, inevitvel) que tambm os alemes sintam-se final-mente capazes de questionar os cnones da memria oficial bem-intencion-ada. possvel que essa idia nos cause desconforto; talvez nem mesmo sejaum bom pressgio. Mas no deixa de ser uma espcie de concluso. Sessentaanos depois da morte de Hitler, a guerra que ele causou e as conseqncias doconflito esto entrando para a Histria. O ps-guerra na Europa durou muitotempo, mas, afinal, est chegando ao fim.

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  • PRIMEIRA PARTE

    Ps-guerra: 1945-1953

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  • II

    Punio

    Durante a guerra, belgas, franceses e holandeses cresceram aprendendoque seu dever patriota era enganar, mentir, atuar no mercado paralelo,

    duvidar e defraudar: esses hbitos se consolidaram depois de cinco anos.Paul-Henri Spaak (ex-ministro das Relaes Exteriores da Blgica)

    A vingana um despropsito, mas havia quem no tivesse lugar no mundoque pretendamos construir.

    Simone de Beauvoir

    Que uma sentena justa e rigorosa seja lavrada e executada,como requer a honra da nao e como bem merece seu maior traidor.

    Deciso da resistncia organizada tcheca, exigindo punio severa para opadre Jzef

    Tiso, em novembro de 1946

    A fim de que os governos da Europa libertada tivessem legitimidade, para quepudessem reivindicar a autoridade de Estados devidamente constitudos, foinecessrio, primeiramente, lidar com o legado dos regimes infames instaladosdurante a guerra. Os nazistas e seus parceiros tinham sido derrotados, mas,em vista da escala dos crimes por eles cometidos, derrota, evidentemente, nobastava. Se a legitimidade dos governos do ps-guerra dependia apenas davitria militar sobre os fascistas, em que medida eram melhores do que os re-gimes dos tempos de guerra? Era importante classificar como crimes asatividades desses ltimos regimes e puni-los com o devido rigor. Havia, portrs de tudo isso, uma adequada motivao legal e poltica. Mas o desejo depunio visava tambm a uma necessidade mais premente. Para a maioria doseuropeus, a Segunda Guerra Mundial no foi uma rotina de manobras e batal-has, mas de degradao diria, um processo em que homens e mulheres eram

  • trados e humilhados, forados a cometer delitos mesquinhos e degradantes,nos quais todos perderam um pouco e muitos perderam tudo.

    Alm disso, e em contraste marcante com a lembrana ainda viva daPrimeira Guerra em vrios locais, havia, em 1945, pouco do que se orgulhar emuito do que se envergonhar e se sentir culpado. Como j vimos, para amaioria dos europeus a experincia da guerra foi algo passivo derrota e ocu-pao por um grupo de estrangeiros, e libertao por outro. A nica fonte deorgulho nacional coletivo eram os movimentos de resistncia armada aos inv-asores, motivo pelo qual foi na Europa Ocidental, onde a resistncia efetivatinha sido menos visvel, que o mito da Resistncia teve maior importncia.Na Grcia, Iugoslvia, Polnia ou Ucrnia, onde nmeros elevados de mem-bros ativos da resistncia tinham entrado em combate direto com as foras deocupao e entre si, a situao era, como de hbito, mais complicada.

    Na Polnia libertada, por exemplo, as autoridades soviticas no viam combons olhos as homenagens resistncia armada, cujo sentimento era to anti-comunista quanto antinazista. Na Iugoslvia, durante o ps-guerra, como jfoi visto, alguns grupos de resistncia tinham mais valor do que outros aomenos aos olhos do marechal Tito e de seus vitoriosos combatentes comunis-tas. Na Grcia, a exemplo da Ucrnia, em 1945, as autoridades locais caavam,aprisionavam e executavam todos os membros da resistncia identificadoscomo tal.

    Em suma, resistncia era categoria varivel, incerta e, em alguns locais,inventada. Mas colaboracionismo constitua algo diferente. Colaboracionis-tas tendiam a ser universalmente execrados. Eram homens e mulheres quetrabalhavam para as foras de ocupao, que com elas mantinham relaessexuais, homens e mulheres que selavam a prpria sorte com a sorte dosnazistas ou fascistas e que, com oportunismo, buscavam vantagens polticasou econmicas valendo-se do contexto da guerra. Por vezes, tratava-se deminorias religiosas, tnicas ou lingsticas e, portanto, j desprezadas outemidas por outros motivos; e ainda que colaboracionismo no fosse consid-erado crime, com definies legais e punies explicitadas, colaboracionistaseram passveis da acusao de traio, crime flagrante, com punio mereci-damente rigorosa.

    A punio dos colaboracionistas (verdicos e imaginados) teve incio antesmesmo do fim dos combates. Na realidade, tal punio operou durante todo operodo da guerra, espontaneamente ou sob instrues de organizaessecretas de resistncia. Mas, no intervalo entre a sada dos exrcitos alemes e

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  • o estabelecimento do controle efetivo por parte dos governos aliados, as frus-traes das populaes e as vinganas pessoais, muitas vezes matizadas poroportunismo poltico e vantagem econmica, geraram um ciclo breve massangrento de acerto de contas. Na Frana, cerca de 10 mil pessoas forammortas em processos extrajudiciais, muitas das quais por grupos de res-istncia independentes, de modo particular as Milices Patriotiques, quecaavam colaboracionistas suspeitos, confiscavam-lhes as propriedades e, noraro, fuzilavam-nos sumariamente.

    Cerca de um tero das execues sumrias ocorreu antes do desembarquena Normandia, em 6 de junho de 1944, e a maioria das restantes foi registradaao longo dos quatro meses seguintes de lutas travadas em solo francs. Decerto modo, os nmeros so bastante reduzidos, considerando a intensidadedo dio recproco e a desconfiana constatada na Frana depois de quatroanos de ocupao e do regime do marechal Ptain, em Vichy; ningum se sur-preendeu com as represlias nas palavras de um ex-primeiro-ministrofrancs, j idoso, Edouard Herriot: A Frana precisa primeiro passar por umbanho de sangue, antes que os republicanos possam retomar as rdeas dopoder.

    Sentimento idntico era observado na Itlia, onde represlias e puniesextra-oficiais, de modo especial nas regies da Emlia-Romana e da Lom-bardia, resultaram num nmero de mortos que, nos ltimos meses da guerra,aproximou-se de 15 mil, e prosseguiram, esporadicamente, ao menos nos trsanos seguintes. Em outros locais da Europa Ocidental o grau de derrama-mento de sangue foi bem mais baixo na Blgica, cerca de 265 colabora-cionistas, de ambos os sexos foram linchados ou executados; na Holanda,menos de cem. Outras formas de represlia, no entanto, eram bastantecomuns. Acusaes contra mulheres, que cnicos (falantes de lngua francesa)tachavam de colaborao horizontal, eram freqentes: moffenmeiden, naHolanda, eram lambuzadas de alcatro e cobertas de penas, e por toda aFrana houve cenas de mulheres despidas e raspadas, em praas pblicas,muitas vezes, no dia em que o respectivo povoado era libertado das foras deocupao, ou pouco tempo depois.

    A freqncia com que mulheres eram acusadas no raro por outras mul-heres de ter relaes com alemes reveladora. Havia um fundo de verdadeem muitas acusaes: a oferta de favores sexuais em troca de comida, roupasou algum tipo de auxlio pessoal era um caminho, muitas vezes o nico,disponvel a mulheres e famlias em situaes desesperadoras. Mas, a

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  • popularidade da imputao e o prazer da vingana atinente punio con-stituem um lembrete de que, tanto para homens quanto para mulheres, a ex-perincia era encarada, acima de tudo, como uma humilhao. Jean-PaulSartre, mais tarde, descreveria colaboracionismo em termos nitidamentesexuais, como submisso fora do invasor, e em mais de um romancefrancs dos anos 40 colaboracionistas eram retratados ora como mulheres,ora como homens fracos (efeminados), seduzidos pelo charme teutnico dosinvasores. Descarregar sentimentos de vingana em mulheres corrompidasera um meio de superar a memria desconcertante de fraqueza pessoal ecoletiva.

    Atos anrquicos de represlias violentas eram tambm comuns no LesteEuropeu, mas assumiam formas distintas. No oeste, fora intensa a procurados alemes por quem colaborasse; em terras eslavas ocupadas, os alemesgovernavam diretamente e por meio da fora. Apenas a colaborao dos sep-aratistas locais era incentivada de maneira sistemtica, e mesmo assimsomente na medida em que atendesse aos propsitos germnicos. Como res-ultado, depois da retirada dos alemes as primeiras vtimas de represlias es-pontneas no Leste Europeu foram as minorias tnicas. As foras da UnioSovitica e os aliados locais nada fizeram para inibir tal ao. Ao contrrio, osacertos de contas de natureza espontnea (que nem sempre deixaram de serincitados) contriburam para a remoo de elites e polticos locais quepudessem constituir empecilhos s aspiraes comunistas no ps-guerra. NaBulgria, por exemplo, a recm-criada Frente da Ptria incentivou represliasextra-oficiais contra colaboracionistas de todos os tipos, recorrendo de modogeneralizado acusao de simpatizante fascista e estimulando a dennciade qualquer indivduo que exibisse sentimentos a favor do Ocidente.

    Na Polnia, os judeus eram o alvo principal de represlias por parte dapopulao 150 judeus foram mortos na Polnia libertada nos primeirosmeses de 1945. J em abril de 1946 os nmeros beiravam 1.200. Ataques emmenor escala ocorreram na Eslovquia (em Velk Topolcany, em setembro de1945) e na Hungria (em Kunmadaras, em maio de 1946), mas o pior pogromaconteceu em Kielce (Polnia), em 4 de julho de 1946, onde 42 judeus forammortos e muitos outros feridos, em seguida ao boato do seqestro e assas-sinato de uma criana da regio durante um ritual religioso. Em certo sentido,essas mortes tambm configuravam represlias contra colaboracionistas, pois,aos olhos de muitos poloneses (inclusive de antigos guerrilheiros

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  • antinazistas), os judeus eram suspeitos de simpatizar com as foras soviticasde ocupao.

    O nmero preciso de execues na Europa Oriental sob ocupao sovitica,ou na Iugoslvia, durante os primeiros meses de expurgo e matana no-autorizada desconhecido. Mas em lugar nenhum o acerto de contas desreg-ulado durou muito tempo. No era do interesse de governos novos e frgeis,que estavam longe de ser universalmente aceitos e que eram, muitas vezes,flagrantemente provisrios, torturar e matar vontade. A primeira tarefa dasnovas autoridades era garantir o monoplio da fora, a legitimidade e as in-stituies da justia. Qualquer deteno ou acusao referente a crimescometidos durante a ocupao era responsabilidade das autoridades compet-entes. Quaisquer julgamentos deveriam transcorrer sob o domnio da lei. Qu-alquer derramamento de sangue era questo exclusiva do Estado. Taltransio ocorria assim que as novas foras sentiam-se poderosas o suficientepara desarmar os ex-guerrilheiros, impor a autoridade da nova polcia e re-frear a nsia popular por punies severas e castigos coletivos.

    O desarmamento das resistncias mostrou-se surpreendentementepacfico, ao menos na Europa Ocidental e Central. Fez-se vista grossa em re-lao a assassinatos e outros delitos cometidos durante os meses frenticos doperodo de libertao: o governo provisrio da Blgica decretou anistia paratodas as contravenes cometidas pela Resistncia ou em nome dela, comprazo de vigncia de 41 dias em seguida data oficial da libertao do pas.Porm, prevalecia o acordo tcito de que as recm-constitudas instituiesgovernamentais assumiriam a tarefa de punir os culpados.

    Aqui comeavam os problemas. O que era um colaboracionista? Comquem teriam colaborado, e com qual propsito? Alm de casos bvios de as-sassinato ou furto, do que seriam os colaboracionistas acusados? Algumhaveria de pagar pelo sofrimento da nao, mas como definir esse sofrimento,e quem seria responsabilizado por ele? A forma desses enigmas variava depas para pas, mas o dilema geral era comum: no havia precedente para aexperincia europia dos seis anos anteriores.

    Em primeiro lugar, qualquer lei que contemplasse as aes de indivduosque houvessem colaborado com os alemes seria, necessariamente, retroativa antes de 1939, o crime de colaborao com as foras de ocupao eradesconhecido. Houve guerras anteriores em que exrcitos de ocupao bus-caram e conseguiram a cooperao e assistncia dos povos cujas terras tinhamsido invadidas; no entanto, exceto em circunstncias muito especficas

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  • como, por exemplo, o caso dos nacionalistas flamengos na Blgica sob ocu-pao alem, entre 1914 e 1918 , a prtica no era vista como um convite aocrime, mas apenas como parte dos prejuzos paralelos guerra.

    Conforme j foi observado, o nico sentido em que se poderia dizer que ocrime de colaborao estava contemplado na lei era quando o delito envolviatraio. Para considerar um exemplo representativo, na Frana, muitos col-aboracionistas quaisquer que fossem os detalhes do seu comportamento foram julgados e condenados nos termos do Artigo 75 do Cdigo Penal de1939 por passar informaes ao inimigo. No entanto, com freqncia, ho-mens e mulheres julgados pelos tribunais franceses tinham colaborado nocom os nazistas, mas com o regime de Vichy, liderado e administrado porfranceses e constitudo, nitidamente, como herdeiro legtimo do Estadofrancs que funcionava antes da guerra. Aqui, tanto quanto na Eslovquia, naCrocia, no Protetorado da Bomia, na Repblica Social de Sal (de Mus-solini), na Romnia do marechal Ion Antonescu e na Hungria, durante aguerra, colaboracionistas se defendiam alegando que trabalhavam to-somente para as autoridades dos seus prprios Estados.

    No caso de policiais de alto escalo ou funcionrios do governo flagrante-mente culpados de servir aos interesses nazistas atravs dos regimes fan-toches que os empregavam, a referida defesa era, na melhor das hipteses, in-sincera. Mas a situao de figuras de menor importncia, sem falar nos mil-hares de indivduos acusados de aceitar emprego em governos de fachada, ouem agncias ou empresas que para eles trabalhavam, revelava a confuso emtorno do problema. Seria correto, por exemplo, depois de maio de 1940, acus-ar algum de pertencer a um partido poltico que gozava de representao leg-al no Parlamento antes da guerra, mas que passara a colaborar com osalemes durante a ocupao?

    Os governos exilados franceses, belgas e noruegueses tinham procurado seprevenir em relao a esses dilemas por meio de decretos baixados durante aguerra que continham advertncias acerca de punies severas depois dotrmino do conflito. Mas o objetivo desses decretos era dissuadir a populaode colaborar com os nazistas; os dispositivos no abordavam questes maisamplas, tais como jurisprudncia e eqidade. Acima de tudo, os decretos nopodiam resolver, por antecipao, o problema de se pesar a responsabilidadeindividual contra a coletiva. Em 1944 e 1945, o saldo da vantagem poltica per-mitiu a atribuio, de modo generalizado, de responsabilidade por crimes deguerra e de colaborao a categorias predeterminadas de pessoas: membros

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  • de certos partidos polticos, organizaes militares e agncias governamen-tais. Porm, tal procedimento ignorava muitos indivduos cuja punio eraamplamente exigida; isso inclua gente cuja ofensa principal fora inrcia oucovardia; e, o mais importante, a prtica implicava uma forma de indi-ciamento coletivo, algo execrado pela maioria dos juristas europeus.

    Como alternativa, indivduos foram levados a juzo, com resultadosbastante variados, dependendo do tempo e lugar. Muitos homens e mulheresforam injustamente escolhidos. E muitos outros escaparam de qualquerpunio. Houve inmeras irregularidades e ironias processuais, e as mo-tivaes de governos, promotores pblicos e jurados estavam longe de ser dig-nas fosse por interesse prprio, calculismo poltico ou paixo. Esse res-ultado foi negativo. Mas, para avaliar os processos criminais (e a catarsepblica a eles associada) que marcaram a transio, na Europa, de um tempode guerra para um tempo de paz, preciso ter sempre em mente o drama doque acabara de ocorrer. Sob as circunstncias de 1945, deveras ex-traordinrio que o domnio da lei tenha sido restabelecido afinal, jamais umcontinente inteiro tentara definir um novo conjunto de crimes em tamanhaescala e levar os criminosos a algo que se assemelhasse justia.

    Os nmeros de pessoas punidas e o grau das punies variavam muito depas para pas. Na Noruega, pas com populao de apenas 3 milhes de habit-antes, todos os 55 mil membros do Nasjonal Sammlung, a principal organiza-o de colaboracionistas pr-nazistas, foram julgados, alm de outros 40 milindivduos; 17 mil homens e mulheres receberam penas de deteno e trintasentenas de morte foram expedidas, 25 das quais levadas a cabo.

    Em nenhum outro local as propores foram to elevadas. Na Holanda,200 mil pessoas foram investigadas, das quais quase a metade foi detida, al-gumas pelo crime de terem adotado a saudao nazista; 17.500 funcionriospblicos perderam o emprego (mas quase ningum no mundo empresarial, narea da educao ou nas profisses liberais); 154 pessoas foram condenadas morte, quarenta das quais executadas. Na vizinha Blgica, um nmero bemmais elevado de sentenas de morte foi exarado (2.940), porm um nmeromais reduzido de sentenas (apenas 242) foi cumprido. Um nmero basica-mente idntico de colaboracionistas foi para a priso; contudo, enquanto osholandeses logo anistiaram a maioria dos detidos, o Estado belga os manteveencarcerados por mais tempo, e ex-colaboracionistas condenados por crimesgraves jamais recuperaram totalmente os direitos civis. Ao contrrio do queprope um antigo mito do ps-guerra, a populao flamenga no foi alvo de

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  • punies desproporcionais, mas, ao reprimir indivduos que durante a guerradefenderam a Nova Ordem, as elites belgas catlicos, socialistas e liberais restabeleceram o controle tanto sobre Flandres quanto sobre a Valnia.

    O contraste entre Noruega, Blgica, Holanda (e Dinamarca), onde os gov-ernos legtimos fugiram para o exlio, e a Frana, onde, na viso de muitagente, o regime de Vichy constitua o governo legtimo, sugestivo. Na Din-amarca, o crime de colaboracionismo era praticamente desconhecido. Porm,de cada 10 mil dinamarqueses 374 foram condenados deteno, em julga-mentos realizados no ps-guerra. Na Frana, onde o colaboracionismo emtempo de guerra foi generalizado, por esse mesmo motivo a prtica foi punidatimidamente. Uma vez que o prprio Estado atuou como o principal colabora-cionista, parecia excessivo e um tanto quanto desagregador condenar cid-ados comuns pelo mesmo crime ainda mais porque, na Frana, trs emcada quatro juzes que presidiam os julgamentos de colaboracionistas tinham,eles prprios, servido ao Estado colaboracionista. Em todo caso, 94 indivduosem cada 100 mil (menos de 0,1% da populao) foram presos por delitoscometidos durante a guerra. Dos 38 mil detidos, a maioria foi libertada combase na anistia parcial concedida em 1947, e todos, exceto 1.500 dos remanes-centes, foram soltos na anistia de 1951.

    Na Frana, entre 1944 e 1951, os tribunais oficiais condenaram morte6.763 pessoas (3.910 in absentia) por traio e crimes afins. Dessas sentenas,apenas 791 foram cumpridas. A principal punio que pesou sobre os col-aboracionistas franceses foi a chamada degradao nacional, introduzida em26 de agosto de 1944, logo aps a libertao de Paris, e definida, sardonica-mente, por Janet Flanner: Degradao nacional consistir em ser privado dequase tudo que os franceses apreciam como o direito de exibir condecor-aes de guerra; o direito de ser advogado, tabelio, professor de escolapblica, juiz e at testemunha; o direito de dirigir editora, estao de rdio ouempresa cinematogrfica; e, acima de tudo, o direito de atuar como diretor deseguradora ou banco.

    Na Frana, 49.723 homens e mulheres receberam essa punio. Entre osservidores pblicos, 11 mil (1,3% federais, nmero bem inferior aos 35 mil de-mitidos sob o regime de Vichy) foram afastados ou penalizados, mas a maioriafoi reinstituda no prazo de seis anos. Ao todo, a puration (depurao, ex-purgo), conforme o processo ficou conhecido, envolveu 350 mil pessoas, cujasvidas e carreiras, na maioria dos casos, no foram afetadas de maneiradramtica. Ningum foi punido pelo que hoje chamaramos de crimes contra a

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  • humanidade. A responsabilidade por esse tipo de delito, assim como por out-ros crimes de guerra, foi imputada apenas aos alemes.

    A experincia italiana divergiu, por vrias razes. Embora fosse uma daspotncias ex-integrantes do Eixo, a Itlia foi autorizada pelos governos aliadosa realizar seus prprios julgamentos e depuraes afinal, em setembro de1943, o pas tinha mudado de lado. Mas havia muita ambigidade quanto aquem e o que deveria ser levado a juzo. Enquanto em outros locais da Europaa maioria dos colaboracionistas foi, por definio, acusada de fascista, naItlia o termo abarcava um contingente por demais vasto e ambguo. Tendosido governado por fascistas de 1922 at 1943, o pas comeou a ser libertadodo regime de Mussolini por um dos marechais do prprio ditador, PietroBadoglio, cujo primeiro governo antifascista era constitudo por muitos ex-fascistas.

    O nico crime fascista claramente condenvel era colaborao com o in-imigo aps 8 de setembro de 1943 (data da invaso alem). Como conseqn-cia, a maioria dos acusados encontrava-se no norte sob ocupao e tinha lig-aes com o Estado fantoche instalado em Sal, no lago Garda. O questionrioFoste fascista? (o Scheda Personale), alvo de tanta zombaria, que circulouem 1944, centrava-se precisamente na diferena entre fascistas de Sal e deoutros locais. As sanes contra os primeiros baseavam-se no Decreto n 159,baixado em julho de 1944 pela Assemblia Legislativa Interina, um docu-mento que explicitava os atos de gravidade especial que, embora no con-figurassem crime, [eram] considerados contrrios s normas de sobriedade edecncia poltica.

    Essa legislao obscura destinava-se a contornar a dificuldade de se con-denar homens e mulheres por atos cometidos sob as ordens de autoridadesnacionais constitudas. E o Supremo Tribunal, institudo em setembro de1944 para julgar os prisioneiros mais importantes, compunha-se de juzes eadvogados que, em sua maioria, eram ex-fascistas, tanto quanto os membrosdos Tribunais Especiais, estabelecidos para punir funcionrios de escales in-feriores pertencentes ao regime colaboracionista. Dadas as circunstncias, osprocessos judiciais dificilmente conquistariam o respeito por parte da popu-lao de modo geral.

    No de se estranhar que o resultado no tenha deixado ningum satis-feito. J em fevereiro de 1946, 394 mil funcionrios pblicos tinham sido in-vestigados, dos quais apenas 1.580 foram demitidos. A maioria dos question-ados alegou gattopardismo (mudana de aparncia para conservar,

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  • oportunisticamente, intacto um privilgio), argumentando que, diante dapresso fascista, havia recorrido a um sutil jogo duplo afinal, funcionriospblicos eram obrigados a ingressar no Partido Fascista. Visto que muitos dosque comandavam os interrogatrios poderiam, perfeitamente, estar do outrolado da mesa, era grande a simpatia por essa linha de defesa. Aps os julga-mentos, amplamente divulgados pela mdia, de alguns generais e fascistasgraduados, o prometido expurgo do governo diminuiu de intensidade.

    O Alto Comissariado, cuja tarefa era dirigir o expurgo, foi extinto em marode 1946, e trs meses mais tarde as primeiras anistias foram anunciadas, in-clusive o cancelamento de todas as sentenas prisionais com penas inferioresa cinco anos. Praticamente todos os governadores, prefeitos e burocratas domdio escalo exonerados durante 1944 e 1945 iriam reconquistar o empregoperdido ou evitar o pagamento das multas impostas, e a maioria dos quase 50mil italianos detidos em decorrncia de atividades fascistas ficou pouco tempoem recluso.13 No mais do que cinqenta pessoas foram condenadas judi-cialmente e executadas em conseqncia de crimes praticados, mas o nmerono inclui 55 fascistas massacrados por guerrilheiros na Penitenciria deSchio, em 17 de julho de 1945.

    Durante a Guerra Fria, a transio suspeita e indolor observada na Itlia,que passou de potncia do Eixo condio de aliada democrata, foi muitasvezes atribuda presso internacional (norte-americana), assim como in-fluncia poltica do Vaticano. Na realidade, a questo era mais complexa. certo que a Igreja Catlica saiu-se muito bem, considerando as relaes amis-tosas do papa Pio XII com o fascismo e a vista grossa (preventiva) que fez opontfice em relao a crimes nazistas cometidos na Itlia e em outros locais.A presso da Igreja foi exercida. E, enquanto procuravam restabelecer a nor-malidade do cotidiano na pennsula, as autoridades militares anglo-americ-anas relutaram em remover administradores comprometidos. Alm disso, demodo geral, o expurgo de fascistas foi mais eficiente em regies onde prevale-ciam a Resistncia esquerdista e seus representantes polticos.

    No entanto, foi Palmiro Togliatti, 51, lder do Partido Comunista Italiano,que, no cargo de ministro da Justia do governo de coalizo no ps-guerra, es-boou a Anistia de junho de 1946. Aps duas dcadas no exlio e muitos anosexercendo um alto posto na Internacional Comunista, Togliatti tinha poucasiluses acerca do que era possvel e impossvel no perodo subseqente guerra na Europa. Ao retornar de Moscou, em maro de 1944, ele anunciou,em Salerno, o compromisso do partido com a unidade nacional e a

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  • democracia parlamentarista para a perplexidade e surpresa de muitosseguidores.

    Num pas onde milhes de pessoas (que nem sempre pertenciam direita)estavam comprometidas em decorrncia de seu envolvimento com o fascismo,Togliatti no via muita vantagem em empurrar a nao para uma guerra civil ou melhor, em prolongar a guerra civil que j estava em curso. Era bemmelhor trabalhar pelo restabelecimento da ordem e da normalidade cotidiana,deixar para trs a era fascista e buscar o poder atravs das urnas. Alm disso,Togliatti, a partir de sua posio privilegiada como figura importante do movi-mento internacional comunista, cuja perspectiva estratgica transcendia oslimites da Itlia, tinha em mente a situao da Grcia, como precauo eadvertncia.

    Na Grcia, apesar do nvel significativo de cooperao entre as elites buro-crtica e empresarial, expurgos realizados no ps-guerra no visaram direita, mas esquerda. O caso foi nico, mas tambm revelador. A guerracivil de 1944 e 1945 convencera os britnicos de que somente o firmerestabelecimento de um regime conservador em Atenas haveria de estabilizaraquele pas pequeno porm estrategicamente vital. Expurgar ou ameaarempresrios ou polticos que haviam trabalhado com italianos ou alemes po-deria ter implicaes radicais num pas onde a esquerda revolucionria pare-cia pronta a tomar o poder.

    Em pouco tempo, a ameaa estabilidade no Egeu e no sul dos Blcs deix-ou de ser o Exrcito alemo em retirada e passou a ser os bem entrincheiradoscomunistas gregos e seus guerrilheiros aliados nas montanhas. Na Grcia,poucas pessoas foram punidas com rigor por terem, durante a guerra, col-aborado com as potncias do Eixo, mas a pena de morte foi aplicada ampla-mente na luta contra a esquerda. Por no haver, em Atenas, distino congru-ente entre guerrilheiros esquerdistas que lutaram contra Hitler e guerrilheiroscomunistas que tentavam derrubar o Estado grego do ps-guerra (e, na ver-dade, muitas vezes tratava-se dos mesmos homens), foram os membros daresistncia, e no seus inimigos colaboracionistas, que nos anos seguintesseriam julgados e detidos. Alm disso, ficariam excludos da vida civil durantedcadas: at seus filhos e netos haveriam de pagar caro, pois ainda em plenadcada de 1970 no conseguiam obter emprego no inchado setor pblico.

    Os expurgos e julgamentos na Grcia foram, portanto, flagrantementepolticos. Mas, em certo sentido, o mesmo se pode dizer dos processos maisconvencionais observados no Oeste Europeu. Qualquer processo judicial

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  • realizado em conseqncia direta de uma guerra ou luta poltica ser poltico.A atmosfera dos julgamentos de Pierre Laval ou Philippe Ptain, na Frana,ou do chefe de polcia Pietro Caruso, na Itlia, no foi, absolutamente, aquelaque se verifica em processos judiciais comuns. Acerto de contas, sangria,represlia e calculismo poltico desempenharam papis cruciais nos referidosjulgamentos e em muitos outros processos e expurgos. preciso ter em mentetal noo, quando consideramos as punies oficiais aplicadas no perodo ps-guerra na Europa Central e Ocidental.

    No resta dvida de que, sob o ponto de vista de Stalin e das autoridadessoviticas de ocupao que atuavam em todos os territrios controlados peloExrcito Vermelho, os julgamentos e outras penalidades impostas a colabora-cionistas, fascistas e alemes constituam sempre, e antes de tudo, um meio dedesobstruir o cenrio poltico e social local de empecilhos ao domniocomunista. O mesmo se aplicava Iugoslvia de Tito. Muitos homens e mul-heres foram acusados de delitos fascistas graves, quando seu maior crime erapertencerem ao grupo social errado, estarem associados a alguma comunid-ade religiosa ou partido poltico inoportuno, ou apenas disporem de visibilid-ade ou popularidade na comunidade local. Expurgos, expropriaoimobiliria, expulses, sentenas prisionais e execues que visavam elimin-ao de adversrios polticos incriminados eram estgios importantes numprocesso de transformao poltica e social, conforme veremos. Mas essas me-didas tambm atingiram e puniram fascistas convictos e criminosos de guerra.

    Assim, ao atacar a Igreja Catlica na Crocia, Tito aproveitou para proces-sar o notrio cardeal de Zagreb, Alois Stepinac, apologista de alguns dospiores crimes perpetrados pelo regime croata Ustase; o cardeal teve sorte porter passado apenas 14 anos em priso domiciliar, antes de falecer, em casa, em1960. Draza Mihajlovic, lder da resistncia chetnik, foi julgado e executadoem julho de 1946. Na seqncia da execuo de Mihajlovic, durante os doisanos seguintes libertao da Iugoslvia, dezenas de milhares de outros no-comunistas foram mortos, todos vtimas de uma represlia cuja motivao erapoltica; porm, levando em conta as aes desses indivduos, seja junto aoschetniks, ao Ustasa, Guarda Branca Eslovnia ou como domobranci arma-dos, muitos teriam recebido sentenas severas sob qualquer sistema jur-dico.14 Os iugoslavos executaram e deportaram muitos indivduos de origemhngara pela participao em massacres militares cometidos pelos hngarosem Voivodina, em janeiro de 1942, e suas terras foram entregues a partidrios

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  • do novo regime (que no tinham origem hngara). Foi um gesto poltico de-liberado, mas em muitos casos as vtimas eram, de fato, culpadas.

    O caso da Iugoslvia foi particularmente complexo. Mais ao norte, na Hun-gria, no decorrer de 1944, os Tribunais Populares criados no ps-guerra ini-ciaram seus trabalhos julgando, precisamente, criminosos de guerra, sobre-tudo os ativistas dos regimes pr-germnicos de Dme Sztjay e FerencSzlasi. No ps-guerra, o ndice de fascistas e colaboracionistas condenadosna Hungria no excedeu os nmeros de condenados na Blgica ou na Holanda mas no resta dvida de que cometeram crimes graves, inclusive ao ante-cipar e implementar, com entusiasmo, os planos alemes para arrebanhar etransportar para os campos de concentrao milhares de judeus hngaros. So-mente mais tarde as autoridades hngaras acrescentaram categorias comosabotagem e conspirao, cujo claro propsito era abranger um nmeromaior de opositores e indivduos propensos a resistir tomada de poder peloscomunistas.

    Na Tchecoslovquia, os Tribunais Populares Extraordinrios, estabelecidosem 19 de maio de 1945 por decreto presidencial, exararam 713 sentenas demorte, 741 sentenas de priso perptua e 19.888 sentenas mais brandas atraidores, colaboracionistas e elementos fascistas pertencentes s fileiras danao tcheca e eslovaca. A linguagem do decreto se assemelha ao jargo leg-alista sovitico e, com certeza, pressagia o futuro sombrio da Tchecoslovquia.Mas houve, de fato, traidores, colaboracionistas e fascistas na Tchecoslov-quia durante a ocupao; um deles, o padre Tiso, foi enforcado em 18 de ab-ril de 1947. Se Tiso e outros foram objeto de julgamento justo se poderiamter sido objeto de julgamento justo naquela atmosfera , questo pro-cedente. Mas o tratamento que tiveram no foi pior do que o tratamento dis-pensado, digamos, a Pierre Laval. A justia tcheca no ps-guerra preocupava-se sobremaneira com a categoria vaga e inquietante de crimes contra anao, mecanismo utilizado para conferir punio coletiva, de modo especiala alemes da regio dos Sudetos. Mas, naqueles anos, o mesmo era verdadeem relao justia francesa, talvez com menos motivos para tal.

    Em se tratando do ps-guerra, difcil avaliar o sucesso dos julgamentos eexpurgos antifascistas realizados na Europa antes ocupada. O procedimentodas sentenas era muito criticado poca pessoas julgadas enquanto aguerra ainda transcorria, ou logo aps a libertao de um determinado pas,estavam sujeitas a penas mais severas do que indivduos julgados posterior-mente. Como resultado, na primavera de 1945, transgressores acusados de

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  • crimes menos graves receberam sentenas prisionais bem mais longas do quecolaboracionistas inveterados cujos processos s chegariam aos tribunais umano mais tarde. Na Bomia e na Morvia, registrou-se um percentual bastanteelevado (95%) de sentenas de morte, em conseqncia de uma norma se-gundo a qual o prisioneiro devia ser executado dentro de duas horas a partirda promulgao da sentena; em outras localidades, qualquer pessoa que es-capasse da execuo imediata podia contemplar a possibilidade da comutaoda sua prpria sentena.

    Penas de morte eram comuns poca e suscitavam pouca oposio: a de-preciao do valor da vida durante a guerra fez com que penas capitais pare-cessem algo menos extremo e mais respaldado do que sob circunstnciasnormais. O que causava mais indignao e, em alguns locais, talvez tenhamesmo comprometido a validade dos processos era a evidente falta de coern-cia das punies, sem falar que muitas penas eram determinadas por juzes ejris cujo histrico pessoal durante a guerra era bastante maculado. A situ-ao de escritores e jornalistas, pelo fato de terem deixado registros escritosde suas alianas na poca da guerra, era a mais difcil. Julgamentos que eramobjeto de grande publicidade por exemplo, o processo que envolveu RobertBrasillach, em janeiro de 1945, em Paris provocavam protestos de resist-entes ferrenhos, como Albert Camus, que considerava injusto e imprudentecondenar e executar indivduos em decorrncia de suas opinies, por maismedonhas que elas fossem.

    Em contrapartida, empresrios e altos funcionrios que tinham lucradocom a ocupao pouco sofreram, ao menos na Europa Ocidental. Na Itlia, osAliados insistiam que um homem como Vittorio Valletta, da Fiat, fosse man-tido em seu posto, apesar de sua notria ligao com as autoridades fascistas.Outros executivos italianos sobreviveram, por comprovarem que haviam feitooposio Repblica Social de Sal e, de fato, muitas vezes esses executivostinham se oposto a Sal, precisamente por ser a repblica por demais social.Na Frana, processos com base em colaborao de carter econmico forampreteridos pela nacionalizao seletiva das fbricas da Renault, por exem-plo, como punio pela importante contribuio de Louis Renault para o es-foro de guerra germnico. E, por toda parte, pequenas empresas, banqueirose funcionrios que haviam auxiliado na administrao dos regimes de ocu-pao construindo a Muralha do Atlntico, cujo propsito era defender aFrana de qualquer invaso, prestando assistncia ao abastecimento dasforas alems etc. foram mantidos em seus postos, a fim de desempenhar

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  • funes similares a favor das democracias subseqentes e garantir continuid-ade e estabilidade.

    Concesses desse tipo foram, provavelmente, inevitveis. A prpria escalade destruio e colapso moral constatados em 1945 indicava que qualquercoisa que restasse seria necessria como laje de construo para o futuro. Osgovernos provisrios instalados durante os meses de libertao eram quaseimpotentes. A cooperao incondicional (e grata) das elites econmicas, fin-anceiras e industriais era vital para que alimentos, vestimentas e combustveisfossem fornecidos s populaes indefesas e famintas. Expurgos econmicospoderiam ser contraprodutivos, at mesmo incapacitantes.

    Mas o preo disso foi o cinismo poltico e uma acentuada desiluso com asesperanas surgidas em torno da libertao. J em 27 de dezembro de 1944 oescritor napolitano Guglielmo Giannini escreveu as seguintes palavras emLUomo Qualunque, jornal de um novo partido italiano homnimo queapelava, precisamente, para esse sentimento de amargo desencanto: Sou osujeito que, ao encontrar um ex-gerarca (superior), indaga: Como voc setornou um expurgador? [...] Sou o sujeito que olha em volta e diz: Essesmtodos e sistemas so fascistas [...] Sou o sujeito que j no acredita emnada e em ningum.

    A Itlia, como vimos, foi um caso difcil. Mas em fins de 1945 sentimentoscomo os expressos por Giannini eram comuns na Europa, e abriram caminhopara uma sbita alterao do estado de esprito. Aps atribuir culpa pelo pas-sado recente e punir indivduos cujos casos eram mais graves ou psicologica-mente gratificantes, a maioria das pessoas que vivia em terras at recente-mente sob ocupao alem estava interessada em deixar para trs memriasconstrangedoras ou desagradveis e tocar para a frente as vidas sofridas. Dequalquer modo, poucos homens e mulheres naquela poca estavam dispostosa incriminar seus conterrneos por crimes hediondos. Em relao a estes, se-gundo o consenso geral, a responsabilidade era totalmente dos alemes.

    Na realidade, era to difundida a noo de que a culpa mxima doshorrores da Segunda Guerra Mundial recaa, exclusivamente, sobre os ombrosda Alemanha que at a ustria ficou isenta. Nos termos de um acordo firmadopelos Aliados, com data de 1943, a ustria fora declarada, oficialmente, aprimeira vtima de Hitler e, portanto, terminada a guerra, mereceu trata-mento diferenciado em relao Alemanha. Isso convinha insistncia deWinston Churchill quanto origem prussiana do nazismo, viso incitada apartir da obsesso da gerao de Churchill pelo surgimento da ameaa

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  • prussiana estabilidade europia ao longo do ltimo tero do sculo XIX. Masa idia tambm convinha aos demais aliados e a localizao geogrfica es-tratgica da ustria e a incerteza em relao ao futuro poltico da Europa Cen-tral sugeriam ser prudente separar o destino da ustria do destino daAlemanha.

    Contudo, no era cabvel tratar a ustria como qualquer outro pas ocu-pado pelos nazistas, um pas onde bastava punir fascistas e colaboracionistasnazistas para que a vida normal pudesse ser restabelecida. A ustria, pas commenos de 7 milhes de habitantes, tinha contado com 700 mil membros doPartido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemes: no final da guerra,ainda havia 536 mil nazistas registrados na ustria; 1,2 milho de austracostinham servido em unidades germnicas durante o conflito. A representaoaustraca na SS e na gesto dos campos de concentrao tinha sido despropor-cional. A vida pblica e a alta cultura austraca estiveram saturadas de simpat-izantes nazistas 45 dos 117 integrantes da Orquestra Filarmnica de Vienaeram nazistas (ao passo que a Filarmnica de Berlim tinha apenas oito mem-bros do Partido Nazista entre 110 msicos).

    Considerando as circunstncias, a ustria foi poupada, surpreendente-mente poupada. Cento e trinta mil austracos foram investigados por crimesde guerra, dos quais 23 mil foram a julgamento, 13.600 considerados culpa-dos, 43 condenados morte e apenas trinta executados. Cerca de 70 mil fun-cionrios pblicos foram exonerados. No outono de 1946, as quatro potnciasaliadas envolvidas nas ocupaes concordaram em, a partir de ento, deixar austria lidar com seus prprios criminosos e com o processo de erradicaodo nazismo. O sistema educacional, que estivera especialmente infestado, foidevidamente desnazificado: 2.943 professores do ensino fundamental e 447do ensino mdio foram demitidos, mas somente 27 professores universitriosperderam o emprego a despeito da notria simpatia nazista demonstradapor parte de muitos acadmicos veteranos.

    Em 1947, autoridades austracas aprovaram uma lei que distinguia entrenazistas mais e menos incriminados. Dentre os ltimos, 500 mil foram an-istiados no ano seguinte, reconquistando o direito ao voto. Os primeiros aotodo cerca de 42 mil seriam anistiados at 1956. Depois disso, os austracossimplesmente esqueceram seu envolvimento com Hitler. Uma razo que ex-plica a facilidade com que a ustria sobreviveu ao flerte com o nazismo queconvinha a todos os interesses locais ajustar seu passado recente para seu pro-veito: o Partido Popular (conservador), herdeiro do Partido Socialista Cristo

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  • (que remontava ao perodo anterior guerra), tinha motivos para limpar ascredenciais no-germnicas do prprio partido e da ustria, a fim de desviara ateno que recaa sobre o regime corporativista imposto pelo Partido Popu-lar em 1934. Os socialdemocratas austracos, inquestionavelmente antinazis-tas, tiveram, no entanto, que superar o histrico de suas prprias reivin-dicaes, antes de 1933, por Anschluss com a Alemanha. Outra razo era quetodos os partidos tinham interesse em buscar os votos de ex-nazistas, umeleitorado de peso que haveria de moldar o futuro poltico do pas. E mais,conforme veremos, havia as novas configuraes delineadas pelo advento daGuerra Fria.

    Ponderaes como essas tambm se aplicavam Alemanha. Mas ali a pop-ulao local no era ouvida no que dizia respeito ao prprio destino. Namesma Declarao de Moscou, de 30 de outubro de 1943, que isentava a us-tria de responsabilidade pela aliana com os nazistas, os Aliados advertiam osalemes de que eles seriam responsabilizados por crimes de guerra. E, de fato,o foram. Numa srie de julgamentos realizados entre 1945 e 1947, as foras deocupao presentes na Alemanha processaram nazistas e colaboracionistaspor crimes de guerra, crimes contra a humanidade, assassinato e outros deli-tos cometidos em defesa dos objetivos nazistas.

    Entre esses processos, o Tribunal Militar Internacional de Nuremberg, quede outubro de 1945 a outubro de 1946 julgou o alto escalo da liderananazista, o mais conhecido, mas houve vrios outros: tribunais militaresnorte-americanos, britnicos e franceses, em suas respectivas zonas de ocu-pao, julgaram nazistas pertencentes a escales inferiores e, ao lado da UnioSovitica, as referidas foras de ocupao extraditaram nazistas primordial-mente para a Polnia e Frana , para que fossem julgados em foros onde oscrimes haviam sido cometidos. O programa de Tribunais de Crimes de Guerraprosseguiu durante todo o perodo em que os Aliados ocuparam a Alemanha:nas zonas ocidentais, mais de 5 mil pessoas foram condenadas por crimes deguerra ou crimes contra a humanidade, das quais quase oitocentas receberampena capital, sendo 486 executadas as ltimas execues ocorreram na ca-deia de Landsberg, em junho de 1951, ignorando veementes apelos de clemn-cia expressos pelos alemes.

    Punir alemes apenas por serem nazistas era algo praticamente fora dequesto, ainda que o Tribunal de Nuremberg houvesse definido o PartidoNazista como organizao criminosa. Os nmeros eram por demais elevados,e os argumentos contrrios noo de culpa coletiva por demais

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  • contundentes. E, alm disso, desconhecia-se o que poderia advir de se con-denar milhes de pessoas. As responsabilidades dos lderes nazistas eram, noentanto, patentes, e jamais houve dvida sobre o destino que lhes caberia. Naspalavras de Telford Taylor, um dos promotores pblicos norte-americanosque atuaram em Nuremberg e chefe da Promotoria em julgamentos sub-seqentes: Muita gente achava que tinha sido prejudicada maliciosamentepelos lderes do Terceiro Reich e desejava um julgamento nesses termos.

    Desde o incio, os julgamentos de crimes de guerra perpetrados poralemes tanto envolveram pedagogia quanto justia. As sesses do Tribunalde Nuremberg foram transmitidas pela rdio alem, duas vezes ao dia, e asprovas ali acumuladas seriam expostas em escolas, cinemas e centros educa-cionais por todo o pas; contudo, a ao exemplar dos julgamentos nemsempre era bvia. Em vrios dos primeiros processos julgados, que envolviamcomandantes e guardas de campos de concentrao, muitos acusados es-caparam de qualquer tipo de pena. Os advogados desses indivduos sevaleram do sistema anglo-americano de justia inquisitorial, interrogando ehumilhando testemunhas e sobreviventes de campos de concentrao. NoTribunal de Lneberg, onde foram julgados os empregados de Bergen-Belsen(de 17 de setembro a 17 de novembro de 1945), foram os advogados de defesabritnicos que argumentaram, com algum sucesso, que seus clientes apenasobedeciam s leis (nazistas); dos 45 rus, 15 foram absolvidos.

    , portanto, difcil saber at que ponto os julgamentos dos nazistas con-triburam para a reeducao poltica e moral da Alemanha e dos alemes.Muitos reclamaram dos processos, definindo-os como justia de vencedor, eisso o que, de fato, eles foram. Mas foram tambm julgamentos legtimos decriminosos autnticos acusados de comportamentos nitidamente delituosos, eabriram precedentes vitais para a jurisprudncia internacional nas dcadassubseqentes. Os julgamentos e as investigaes realizadas entre 1945 e 1948(quando foi desfeito o Tribunal de Crimes de Guerra institudo pela ONU)trouxeram tona uma quantidade extraordinria de documentao e depoi-mentos (em especial no que dizia respeito ao projeto germnico de extermniodos judeus da Europa), precisamente no momento em que os alemes e outrospovos estavam dispostos a esquecer o passado o quanto antes. Os referidosdados deixavam claro que crimes perpetrados com propsitos ideolgicos oude Estado tinham, apesar de tudo, responsabilidade individual e eram plaus-veis de punio nos termos da lei. O argumento de obedecer a ordens no con-stitua defesa.

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  • Havia, entretanto, duas deficincias inevitveis no processo de punio im-posto pelos Aliados aos alemes por crimes de guerra. A presena de pro-motores e juzes soviticos era interpretada por muitos observadores na Ale-manha e na Europa Oriental como evidncia de hipocrisia. A conduta do Exr-cito Vermelho e as prticas soviticas em regies libertadas no eram se-gredo na realidade, tais fatos eram ento mais conhecidos e divulgados doque o seriam em anos futuros. E os expurgos e massacres cometidos nos anos30 ainda estavam impressos na memria do povo. Permitir que soviticos jul-gassem nazistas s vezes acusados de crimes que os primeiros haviam, elesmesmos, cometido desvalorizava o Tribunal de Nuremberg (e outrostribunais) e fazia com que aquilo tudo aparentasse ser nada mais do que umexerccio de represlia contra os alemes. Segundo as palavras de George Ken-nan: A nica implicao que tais procedimentos podiam sugerir era de que,afinal de contas, os crimes em questo eram ju