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HVMANITAS- Vol. LH (2000)
N U N O SIMES RODRIGUES Universidade de Lisboa
FLVIO JOSEFO A INVENO DA TEOCRACIA
Abstract: - The word theocracy was created by Flavius Josephus
in his book Against Apion, written between 93 and 96 A. D. However,
as we try to show in this essay, its invention can't be considered
a total originality or a simple product of the fortune, since this
kind of politicai theorization was a cornmon philosophical topos
among several previous and contemporaneous authors, like Herodotus,
Xenophon, Plato, Aristotle, Polybius, Ccero, Pliny, the Elder, and
Philon of Alexandria, who gave a context to Josephus. Besides, the
use of the term theocratic in connection to the history of Israel
also seems not to be a pacific question in Josephus' work, mainly
when we compare the Jewish Antiquities with the Against Apion. So,
we try to understand the context of this invention and the reasons
for these discrepancies.
Apesar de o termo teocracia, criado por Flvio Josefo numa das
suas obras, o Contra Apio (II, 165), se ter difundido amplamente no
mbito da filosofia e da cincia poltica, sendo frequentemente usado
a nvel historio-grfico para caracterizar o sistema de organizao
poltica de algumas civili-zaes, estados/instituies e/ou perodos
histricos, no tem sido dos temas mais tratados na extensa
bibliografia dos autores que se interessam por este historiador
judeu do sculo I d. C.1
a propsito de um elogio de Moiss, que Josefo afirma ter sido a
sua actuao como legislador um modelo de desempenho poltico para os
povos, ao ter estabelecido um regime que o historiador caracteriza
com uma palavra nova, a teocracia. Com este estudo, nossa inteno
demonstrar que a inveno da teocracia no apenas produto de uma sbita
inspirao lin-gustica de Josefo; que se situa num contexto cultural
bem definido. Preten-
1 Dos autores que abordaram a questo, so de destacar os
trabalhos de G.
Hlscher, Die Ouellen des Josephus fr die Zeit vom Exil bis zum
jiidischen Kriege, Leipzig, 1904; Daniel R. Schwartz, Josephus on
the Jewish Constitutions and Community, Scripta Clssica Israelica
VII, 1983-1984, pp. 30-52; Yehoshua Amir, as a concept of politicai
philosophy: Josephus' presentation of Moses1 Politeia, Scripta
Clssica Israelica VIII-IX, 1985-1988, pp. 83-105.
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196 NUNO SIMES RODRIGUES
demos tambm mostrar que a classificao de Israel como estado
teocrtico no linear em Josefo e que o ideal de teocracia no parece
ser a nica pro-posta do historiador para a anlise do regime poltico
do seu povo. finalmente, tentar perceber os condicionalismos da
criao do termo de tanto sucesso e por que razo existe uma
discrepncia na classificao feita por Flvio Josefo nos primeiros
livros da sua obra e na que expe no Contra Apio.
1. O contexto da teorizao poltica greco-romana
No se pode, de forma alguma, dizer que a introduo do assunto na
obra josfica seja uma originalidade ou uma novidade para a
literatura antiga. Na verdade, o tema da politea era j, ao tempo de
Josefo, um tpico usado quer por historiadores quer por tericos do
pensamento greco-romano2. A inveno da poltica, da politologia e da
histria institucional deve-se aos Gregos, como salientaram C. Moss,
J. Bordes e M. Finley3, e Herdoto , ao que parece, o primeiro autor
conhecido a introduzir a questo, no terceiro livro das suas
Histrias. A propsito da histria dos Persas, despoletado um debate,
onde trs personagens (Drio, Megabizo e Otanes) argumentam quanto s
qualidades dos diversos regimes polticos, monarquia, oligarquia e
democracia, suas vantagens e seus inconvenientes (III, 80-82). Cabe
a Drio apresentar aquele que acabar por vencer, a monarquia,
valorizando-se, no entanto, a democracia, ao se referir que Otanes,
a personagem defensora deste regime, era, apesar de tudo, o mais
livre dos Persas (III, 82). Os exege-tas de Herdoto salientaram j
que as concepes subjacentes a estes discur-sos so, por certo,
gregas e no persas, visto que os argumentos e as catego-rias neles
usados o so tambm4. Parece estarmos perante o mesmo processo,
quando Josefo enuncia a politea de Israel e dos Judeus.
2 Etimologicamente, significa constituio ou forma de governo
de uma polis ou cidade-estado, tudo o que diz respeito vida
pblica de um Estado. Os Romanos consideraram respublica o termo
latino equivalente. A definio de Maria Helena da Rocha Pereira,
Introduo in Plato, A Repblica, 6" ed., Lisboa, F.C.G., 1990, p.
XLVII. Deve ainda referir-se que, para os Gregos, o termo englobava
diversas realidades da cincia poltica, como regime, constituio,
governo e cidadania. Neste texto, trabalhamos o vocbulo enquanto
sinnimo de regime. Cf. Aryeh Kasher, The Jews in Hellenistic
andRoman Egypt, Ttibingen, 1985, p. 359.
3 Claude Moss, Histoire d' une dmocratie: Athnes, Paris, 1971;
Jacqueline
Bordes, Politea dans lapense grecquejusqu' Aristote, Paris,
1982; Moses I. Finley, Politics in ancient World, London, 1983 e L'
invention de la Politique, Paris, 1985.
4 Sobre esta questo, ver J. A. S. Evans, Notes on the debate of
the Persian
Grandees in Herodotus 3, 80-82, QUCC, 1981, pp. 79-84, citado
por Cristina
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FLVIO JOSEFO A INVENO DA TEOCRACIA 197
Por vezes historiador, por vezes pedagogo, por vezes economista,
por vezes simplesmente filsofo, Xenofonte no resiste a opinar tambm
acerca do melhor dos regimes. Na Constituio dos Lacedemnios, o
autor apresenta a defesa de uma ideia de poder assente na figura
exclusiva do chefe que exerce a autoridade sobre os seus
subordinados/sbditos5. Foi a experincia militar de Xenofonte que
lhe deu a tendncia para considerar o problema fundamental do
governo como o de garantir e manter a disciplina, de fazer com que
o bom cidado seja um bom soldado ou um bom oficial. A forma de o
fazer atravs da persuaso, havendo quem os guie, no quem os obrigue
ou force obedincia, pois isso tirania. Com esta tese, Xenofonte
evoca j a lei da seleco natural, visto que o mais fraco deve estar
sujeito ao mais forte, sendo que este deve ser naturalmente fiel e
capaz de inspirar a fideli-dade aos outros. O rei deve ser um
modelo para cada um dos seus sbditos em matria de piedade, de
disciplina pessoal, de atenes para com os outros e de integridade.
Assim, o monarca ideal de Xenofonte aquele que possuir estas
qualidades, identificando-se com a prpria lei e devendo rodear-se
de pessoas com as mesmas caractersticas. Na Ciropedia, o autor far
de Ciro a imagem ideal desse monarca.
Alguns anos mais tarde, Plato volta ao problema, sendo o
primeiro autor a sistematizar/reflectir, na Repblica e nas Leis,
sobre as formas poss-veis e ideais de um regime poltico (e. g. Leis
712). Plato retoma a classifi-cao de Herdoto e Xenofonte, mas com
novidades em relao a estes, pois prope um regime baseado numa ideia
reguladora: o Bem. Para o pai do idealismo, o regime ideal a
monarquia do rei-filsofo, um sistema que M. Prlot e G. Lescuyer
apelidaram de sofiocracia, o poder do sbio6. Plato reconhece, para
alm desta forma, a oligarquia, que pode degenerar em timo-cracia ou
em plutocracia, e a democracia. A sofiocracia, por sua vez, pode
tambm degenerar em tirania, considerada a pior forma de governo
para o filsofo. Outra particularidade do pensamento poltico de
Plato o facto de ele reconhecer um processo cclico nos regimes
polticos, uma anaciclese (?). Isto , todas as sociedades passam
pelas diversas formas de regime preconizadas, voltando a elas
ininterruptamente, pois evoluem e trans-
Abranches em Herdoto, Histrias- Livro 3, traduo, introduo e
notas de Maria de Ftima Silva e Cristina Abranches, Lisboa, 1997,
p. 111.
5 Ideia sugerida por Diogo Freitas do Amaral em Histria das
Ideias Polticas,
vol. I, Coimbra, Almedina, p. 83. Na mesma obra pode igualmente
encontrar-se uma sistematizao do pensamento poltico de Plato.
Aristteles e Ccero, que tambm consultmos para a sntese desta
introduo, pp. 85-150.
6 Termo apresentado por Mareei Prlot e Georges Lescuyer em
Histoire des
Ides Politiques, 1 Ia ed., Paris, 1992, p. 50, a partir de ? e
Kpcos.
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formam-se consoante as circunstncias histricas, mas subordinadas
lei do eterno retorno. De algum modo, esta tese reassume o esprito
da evoluo das idades da concepo hesidica.
Para Aristteles, um regime pode ser definido como a organizao da
cidade no que se refere a diversas magistraturas e, sobretudo, s
magistraturas supremas. O governo o elemento supremo em toda a
cidade e o regime , de facto, esse governo {Pol. 1278b). Na
Poltica, Aristteles divide os regimes polticos em sos e em insanos.
A monarquia, a aristocracia e aquilo a que chama politea, por um
lado; a tirania, a oligarquia e a democracia, por outro {Pol.
1279a). Tudo depende da quantidade de indivduos que controla as
instituies e os rgos de deciso/soberania; bem como da moderao ou
desmesura com que o fazem. A justa-medida grega, a eunoma (), a
concepo que preside a estas definies e teorizaes. Para o
Estagirita, a tirania uma monarquia regulamentada pelo interesse
exclusivo do monarca, e assim sucessivamente em relao aos restantes
regimes. Isto , a deficincia dos regimes at ento propostos que
nenhum deles se ocupa do benefcio da comunidade em si mesma e
enquanto um todo, mas de apenas uma parte dela. Pelo que, a soluo
aristotlica acaba por ser de compromisso: a optimizao vem do
aproveitamento dos vrios aspectos positivos de dois dos trs
regi-mes, da oligarquia e da democracia7. A originalidade
aristotlica est tambm na relativizao, visto que o filsofo afirma
que o regime poltico no uma universalidade, mas que cada
povo/comunidade deve optar pelo que mais lhe convier. O mestre de
Alexandre destaca-se ainda de Plato ao apresentar a evoluo dos
sistemas polticos de forma diferente: enquanto em Plato a evoluo se
faz do positivo para o negativo, em Aristteles comea-se pelo regime
que cronologicamente teria antecedido todos os outros,
verificando-se posteriormente uma evoluo gradual positiva. Comea
com a monarquia, passa oligarquia, tirania, democracia e termina
com o que apenas designa como politea.
Em Polbio, voltamos a encontrar o mesmo tema e o mesmo processo
de apresentao, a propsito da histria de Roma (os historiadores
referem-se aos regimes polticos como parte necessariamente
integrante da histria dos Estados-tema dos seus livros). Para este
historiador, tambm os regimes se sucedem uns aos outros num
processo de anaciclese, o ciclo das constituies e a sua ordem
natural, que se alteram e transformam para retor-nar ao ponto de
origem (VI, 5-6, 10). Fazendo as distines j clssicas entre regimes,
o historiador das guerras pnicas no aceita as seis propostas
7 J Tucdides enunciara esta questo a propsito do governo dos
cinco mil,
VIII. 97.
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FLVIO JOSEFO A INVENO DA TEOCRACIA 199
tradicionais como as nicas possveis, nem sequer as melhores.
Antes pelo contrrio; recebendo por certo influncia aristotlica,
afirma dever consi-derar-se como ptimo o regime misto, o que
integre as trs caractersticas, como prova o caso de Esparta. Polbio
distingue tambm monarquia de tira-nia, referindo que aquela deve
ser aceite apenas quando o regime escolhido livremente como tal e
exercido atravs da razo e no atravs do medo ou da violncia (VI,
3-4). Para Polbio, a realeza deriva da monarquia, forma espontnea
de governo, e degenera em tirania.
Entre os latinos, um dos pensadores que reclamou a reflexo da
cincia poltica foi Ccero. Este comea por aceitar as propostas
gregas, reconhe-cendo a monarquia, a aristocracia e a democracia
como os regimes possveis. Mas, para o pensador romano, nenhuma
destas formas por si s a ideal. Todavia, pode retirar-se de cada
uma delas o que de benfico existe para o governo da cidade. Pelo
que, a melhor constituio poltica aquela que resulta da fuso
harmoniosa destes trs tipos de governo salutar8. Ccero recupera
assim a concepo eunmica de Aristteles. Onde est a novidade em relao
ao Estagirita? O contributo provm dos trs regimes, como j propusera
Polbio, e no apenas de dois; depois distribui as funes pblicas
pelos rgos de governo correspondentes, consulado, senado e
tribunais, colocando frente de cada um desses rgos indivduos
provenientes dos diferentes grupos sociais. De algum modo, Ccero
acabou por teorizar a legi-timao do sistema de principado que
combateu at morte. Sistema que se preparara com Sula e com Jlio
Csar e que se concretizou com Augusto. Isso porque esta proposta
rene aspectos dictatoriais/monrquicos a sena-toriais/oligrquicos e
a democrticos/republicanos (assembleias/comcios). Pode assim
dizer-se que Ccero descreveu uma cidade que surge como uma platnica
idealizao de Roma e que, por sua vez, servir de modelo ao
principado de Augusto9. Ainda entre os latinos seria injusto no
referir a importncia de Plnio, o Antigo, para a temtica em anlise,
visto que este contemporneo de Josefo tambm dedicou as suas
reflexes s formas de constituio poltica, nomeadamente figura do rex
e s caractersticas do tirano10.
8 ... statu esse optime constituam rem publicam quae ex tribus
generibus illis...
confusa modice..., Rep. II, 41. 9 Ideia enunciada por Eduard
Meyer e Paul Friedlnder em Plato, vol. 3, New
York, 1969, p. 140, citado por Maria Helena da Rocha Pereira,
Introduo in Plato, A Repblica, &' ed., Lisboa, F. C. G., 1990,
p. LI, nota. 128.
10 Sobre Plnio, ver Francisco de Oliveira, Les ides politiques
et morales de
Pline Ancien, Coimbra, INIC, 1992, em especial as pp. 3-104 e
Claude Nicolet, Les ides politiques Rome sons la Republique, Paris,
1964.
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200 NUNO SIMES RODRIGUES
Tambm contemporneo de Josefo, Flon de Alexandria, que com o
historiador partilhava o facto de ser judeu, abordou tambm esta
questo. O interesse deste filsofo helenizado pelo tema da politea
surge a propsito da crtica que faz do Pentateuco, o qual considera
conter j a proposta de regime ideal para a comunidade dos homens.
Para Flon, a oligarquia e a tirania so regimes inaceitveis;
enquanto a monarquia, a aristocracia e, particularmente, a
democracia so aceitveis. Todavia, a supremacia de Deus j enunciada
na reflexo de Flon. A propsito de alguns costumes orientais, como o
casamento incestuoso, por exemplo, que Moiss recusa adoptar para a
sociedade de Israel, o filsofo refere que o legislador no podia
aceitar tais leis estrangeiras como tolerveis e contrrias a uma
politea irrepreensvel como se pretendia aquela. O melhor dos
regimes (? ?), tambm chamado o regime sagrado (ep ), que j em Flon
tem como protagonista a figura de Moiss, deriva do facto deste
autor considerar Israel o povo adoptado por Deus e, como tal,
governado directamente por ele".
Sem contarmos com as obras desaparecidas, de outros autores que
dis-cutiram este problema e a que Flvio Josefo poderia
eventualmente ter tido acesso, h pelo menos sete nomes da
literatura greco-latina, todos eles ante-riores ou contemporneos do
nosso historiador, que apresentam e debatem a questo. Assim, parece
estarmos perante um tema comum aos pensadores clssicos, dos quais
encontramos reminiscncias em Josefo, a avaliar pela forma como este
enuncia o problema. Avaliar e indagar a melhor politea um problema
universal da filosofia poltica antiga12. Todos criticam algum
regime, ao mesmo tempo que praticamente todos propem regimes e
constituies ideiais e Josefo no foge a essa regra, recorrendo para
isso a
2. Dois regimes para um mesmo Estado
A apresentao do regime poltico de Israel em Josefo faz-se de
duas formas. A primeira nas Antiguidades Judaicas, compndio de
histria de Israel terminado em 92-93 d. C, sem que no entanto
exista qualquer livro ou
11 Ideias expressas em textos como Spec. I, 51; III, 24, 167;
IV, 55, 161-181,
237; Fug 10; Agric. 46; Decai. 155; Virt, 180; Abr. 242; Confus.
108; Somn. I, 219; Deus 176.
12 Cf. a obra clssica de T. A. Sinclair, A history of greek
politicai thought,
London, 1951, que nunca cita o nome de Josefo. Polbio tem sido
considerado o autor que mais influenciou Josefo neste assunto,
Shaye D. Cohen, Josephus, Jeremiah, and Polybius, History and
TheorylX, 1982, pp. 366-381.
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FLVIO JOSEFO A INVENO DA TEOCRACIA 201
sequer pargrafo inteiramente dedicado a ele. A enunciao das opes
pol-ticas faz-se ao longo da obra, a propsito da mudana de
conjuntura poltica, de reinado ou de perodo histrico e isso ,
apesar de contextualizada na narrativa histrica do povo, uma
novidade em relao aos autores anterior-mente citados, visto que no
se dedica um espao propriamente dito ao tema; d-se antes
oportunidade ao leitor/auditor de ele prprio sistematizar essas
informaes e tirar essas concluses. assim possvel apresentar em
sntese o pensamento de Josefo quanto evoluo poltica do Estado judeu
ao longo da sua histria e enunciar as principais concluses
relativas aos regimes pol-ticos por que se optou, que da se
inferem. O perodo histrico que vai de Moiss a Josu caracterizado
como uma aristocracia (), enquanto o perodo que decorre entre a
morte de Josu e a instituio dos Juzes considerado uma anarquia ().
O tempo dos Juzes consi-derado um retorno aristocracia e o dos
reis, inaugurado com Saul, carac-terizado como uma realeza ()13. O
perodo do cativeiro em Babi-lnia no merece, como bvio, um tipo de
rtulo poltico por parte do histo-riador. O regime poltico de Israel
aps o regresso do exlio em Babilnia, que ocorreu sob domnio persa,
que coincide com a gnese do judasmo e que vai at ao perodo
hasmoneu, significa para Josefo um retorno aristocracia. De
Aristbulo I conquista de Jerusalm por Pompeio, Israel organizou-se
novamente sob uma realeza. As reformas de Gabnio so consideradas
uma posio poltica de natureza aristocrtica. Com Herodes e Arquelau
volta-se realeza, apesar de Arquelau nunca ter sido rei
oficialmente. Todavia, a atitude de Josefo coincide com uma norma
de tratamento geral da literatura antiga em relao a esta personagem
(M 2,22, por exemplo). Finalmente, o perodo que vai do exlio de
Arquelau, em 6 d. C, destruio do Templo novamente considerado uma
aristocracia^.
No Contra Apio, que no um livro de histria, mas sim um tratado
apologtico de defesa dos Judeus face aos seus acusadores
helensticos e romanos, escrito entre 93 e 96 d. C, encontramos sim
alguns pargrafos que no s sintetizam o regime poltico em enunciao
filosfica, num espao propositadamente dedicado a isso, como se
introduzem alteraes em relao s ideias insinuadas nas Antiguidades
Judaicas. Isto , as posies apresen-tadas na primeira obra no so
coincidentes com as fundamentadas na segunda. As questes so: quais
a novidades e por que razo a diferena?
13 Em Josefo, o termo aparece pela primeira e nica vez em AJ
XX,
229, a propsito do regime estabelecido pelos Juzes. Para definir
o poder de um s, Josefo recorre sempre a .
14 Sobre estas avaliaes, vide AJ VI, 36, 83-85, 268; XI,
111-112; XIII, 301;
XIV, 91, 389; XV, 11; XX, 229, 241, 247, 251, 261; GJ\, 170.
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202 NUNO SIMES RODRIGUES
A novidade assenta fundamentalmente na introduo de uma reflexo
original sobre o regime poltico institudo por Moiss para os
Hebreus/futuros Judeus, que Josefo no tinha feito nas Antiguidades,
e na qual usa o neolo-gismo teocracia (), isto , o poder ou a. fora
de Deus (CA II, 165). No primeiro caso no estamos perante uma
sistematizao filosfica, nem sequer perante uma proposta poltica.
Estamos sim perante uma anlise factolgica, a partir da qual se
podem retirar algumas concluses. Mas esse um trabalho do leitor de
Josefo e no do historiador. Nessa sistematizao, possvel perceber a
teoria da anaciclese, j anteriormente enunciada por autores como
Plato ou Polbio, patente no ciclo
aristocracia-realeza--aristocracia-realeza-aristocracia, que se
estabelece a partir da evoluo das conjunturas polticas de Israel.
Enquanto em Plato a evoluo se faz pas-sando por vrios estados no
sentido da decadncia, em Josefo alterna-se apenas entre dois
estados, comeando pelo positivo. Esta enunciao est longe de nos
parecer aleatria ou at mesmo afastada da prpria teoria bblica da
histria de Israel. Josefo parece atribuir um certo sentido negativo
realeza, de acordo com a filosofia deuteronomista da histria, e um
sentido positivo aristocracia, na linha do esprito clssico que
despreza a monarquia na sua forma totalitria ou tirnica15.
A evidncia dessa posio est no tratamento do chamado testamento
poltico de Samuel (1 Sm 8,11-21/A/ VI, 40-44), onde se enunciam as
desvantagens da realeza, que coincidem de forma extraordinria com a
caracterizao da tirania em quase todos os autores citados.
Considerado um extracto deuteronomista, o discurso do profeta
Samuel antes da uno de Saul um manifesto evidente de oposio
monarquia como regime poltico em Israel. As razes apresentadas para
essa oposio assentam nas relaes de subservincia, contra as quais o
profeta alerta. Na sua perspectiva, a monarquia trar ao povo de
Israel a opresso e a explorao dos jovens, que sero levados como
servos para suprir as necessidades pessoais do rei, sendo usados
como cocheiros, lavradores, recolectores, artesos, perfumistas,
cozi-nheiras e padeiras, e a espoliao dos bens do povo16. Esta viso
da monar-
15 O Deuteronomista aplica a tese da alternncia entre rei
bom/rei mau histria
de Israel. Saul e David exemplificam essa ideia. O Saul de
Josefo uma leitura pessoal original do escrito deuteronomista, dado
que o historiador tem conscincia da forma injusta como se tratou
esta figura, que considera trgica. Sobre esta questo, vide os
nossos trabalhos Rei Saul segundo Flvio Josefo, Diss. Mestrado,
Fac. Letras-Univ. Lisboa, 1996 e Saul Rei: heri trgico na
historiografia de Israel, Cadmo 6/7, 1996-1997, pp. 89-122.
Refira-se que Dionsio de Halicarnasso, em quem Josefo parece ter-se
inspirado bastante, usa tambm o tema da decadncia dos regimes em
Antiguidades Romanas III, 36; IV, 41, 80; X, 54; XI, 8.
16 A mesma ideia expressa-se em Dt. 17,14-20.
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FLVIO JOSEFO A INVENO DA TEOCRACIA 203
quia, feita a posteriori no perodo ps-exlico, a partir da prpria
experincia negativa da realeza na histria de Israel, aponta para o
condicionamento da liberdade do povo, que contribuiu para denegrir
a imagem do rei e o afas-tamento da monarquia como soluo poltica.
Josefo manteve-a nas Antigui-dades, acrescentando
significativamente no final a expresso indita supli-careis a Deus
que se compadea de vs e que vos conceda uma rpida libertao dos rei.
(AJ VI, 42) [o sublinhado nosso]. Isto , a referncia final est de
acordo com as posies do historiador quanto ao regime ideal a
seguir. De algum modo, esta viso da realeza coincide com o que o
pensador grego entendia por tirania, e que em Josefo sintoma do
afastamento dos homens em relao a Deus (AJV, 132-135). O mesmo
regime que criticado negativamente e recusado por todos os autores
acima referidos.
assim que o encontramos logo em Herdoto que, no parecer de
Otanes, se refere aos excessos de Cambises e afirma que a monarquia
prejudicial, porque adultera os costumes dos antepassados, violenta
as mulheres e at condena morte sem prvio julgamento (o termo
hybris, $, aparece quatro vezes neste discurso contra a monarquia,
dizendo-se que este regime era uma forma de a encorajar, III, 80);
em Xenofonte, que apresenta um Licurgo que pretende abster-se de
inspirar aos reis sentimentos tirnicos (XIV, 8); em Plato, para
quem o tirano pior do que as pessoas que roubam, assaltam casas, vo
s carteiras, tiram a roupa, saqueiam os templos, vendem como
escravos pessoas livres (Rep. 575b); em Aristteles, que afirma que
a tirania o governo de um s que exerce um poder desptico sobre a
comunidade poltica (Pol. 1279b); em Polbio, que se refere
ferocidade dos regimes monrquicos tirnicos (VI, 9); e at em Ccero,
que considera tirano o rei que orienta o seu governo injustamente e
a quem chama o mais monstruoso (taetrius, Rep. II, 48) e em Flon,
para quem o bom prncipe, que se ope ao tirano, deve ter Deus como
modelo (Spec. 186-188).
Assim, o perodo correspondente promulgao das leis e da
constituio de Israel, centrado nas figuras de Moiss e Josu e
expresso por um regime aristocrtico, francamente um perodo
positivo. Alis, a con-cepo que h-de predominar como base da
apologia do sistema poltico dos Judeus para grego e romano verem. O
mesmo se diga acerca dos perodos dos Juzes, do regresso do exlio, o
tempo de Esdras e Neemias e da canonizao cultural de Israel, e do
tempo do prprio Josefo. J o perodo dos reis de uma forma geral mal
visto, como demonstram o discurso de Samuel antes da uno de Saul, o
falhano do primeiro rei, as guerras de sucesso aps as mortes de
David e Salomo ou figuras como Abiam, Nadab, Basa, Omeri, Acab,
Acazias, Joro, Atlia, Jezabel, Joacaz, Jeroboo, Herodes e os
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204 NUNO SIMES RODRIGUES
Hasmoneus. De qualquer modo, o relativo sucesso dos reinados de
David, Salomo ou Josias entendido como um nvel aceitvel de piedade
virtuosa; porm jamais o regime ideal.
No segundo caso, estamos tanto perante uma anlise de cincia
poltica, que vem no seguimento das de outros autores gregos, em
relao a Estados ou comunidades como Atenas, Esparta, Cartago ou
Roma, como perante uma proposta de regime ptimo, enunciada pelo
princpio da teocracia. Negam-se, portanto, as ideias anteriores.
Desapareceram as concepes de anaciclese e de alternncia
positivo-negativo. A afirmao da excelncia da constituio judaica
coincide assim com a tese apologtica da importncia da cultura
judaica para a humanidade, contrariando a ideia que se difundia
entre os no-Judeus, de que o contributo do povo de Israel para a
felicidade dos Homens tinha sido nulo. a utilizao de tpicos
greco-latinos, que Josefo insere na matria bblica, que lhe permite
fazer a legitimao dessa apologia no mundo helenstico. Trata-se de
uma tcnica retrica usual em toda a obra de Flvio Josefo, como os
trabalhos de L. H. Feldman tm demonstrado ao longo dos ltimos
anos17. Para melhor introduzir a sua mensagem a uma audincia
greco-romana, ou pelo menos culturalmente grega, Josefo utiliza
temas e termos da cultura clssica de modo a aproximar o contedo da
sua mensagem dos seus auditores-objectivo. Aqui, h vrios aspectos a
destacar.
Em primeiro lugar, a evocao de outros regimes: uns confiaram a
monarquias, outros a oligarquias e outros ainda ao povo o poder
poltico. Tema que encontramos em alguns dos pensadores antes
referenciados. Esparta um exemplo quase omnipresente em todos eles,
desde Xenofonte, o que acaba por criar relaes de dependncia textual
entre os autores18. So precisamente os casos de Esparta e de Creta,
associados ao de Atenas, que Josefo recorda no Contra Apio quando
se refere s formas de educao cvica das diversas cidades em questo
{CA 172). Parece-nos que uma hiptese de dependncia maioritria de
Aristteles na teorizao poltica de Josefo, fortificada pela aluso ao
caso ateniense, ganha crdito com esta passagem.
17 Um dos textos de L. H. Feldman que melhor sintetiza esta
questo Use,
authority and exegesis of Mikra in the writings of Josephus in
Mikra: Text, Translation, Reading and Interpretation ofthe Hebrew
Bible in Ancient Judaism and Early Christianity, J. Mulder e H.
Sysling eds., Assen, 1988, pp. 455-518.
18 O caso de Esparta, ou Lacedemnia, citado, por exemplo em
Plato, Rep.
452c, 544c, 599d; em Aristteles, Pol. 1275b, 1285a, 1294b; em
Polbio VI 10, 49; em Ccero, Rep. XXIII, 42; e, claro, na obra de
Xenofonte inteiramente dedicada a esse exemplo. Alm destes autores,
houve outros, como Crtias, Dioscrides e Esfero que se ocuparam do
caso de Esparta. O mesmo se passa com o caso de Creta.
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FLVIO JOSEFO A INVENO DA TEOCRACIA 205
Em segundo lugar, a construo da imagem do legislador judeu, que
Josefo reintroduz depois da experincia de Flon, com o recurso a
temas da filosofia platnica19. Nesta passagem, trata-se de aplicar
ao legislador dos Judeus, Moiss, as virtudes cardiais, que surgiam
j em Pndaro e em Esquilo, e que caracterizam o heri clssico do
perodo helenstico. O libertador do Egipto e autor da constituio dos
Judeus assim rotulado como um homem de piedade religiosa (?), de
justia (), de temperana () e de firmeza (), acrescentando-se ainda
a virtude da concrdia () 2 0. So estas virtudes que permitem fazer
o contraste com as acusaes mais vulgares de que Moiss era alvo
entre os defensores do anti-semitismo e que o historiador de
Massada aqui recorda: No foi um feiticeiro, nem um impostor, como
aqueles que nos insultam dizem injustamente (CA II, 161). Para
Xenofonte, uma personalidade como esta identificava-se com o ideal
de kalokagatha (), a perfeita honestidade e lealdade (X, 4). Tal
como para Herdoto a tirania se define pela ausncia, no tirano, de
qualidades de moderao e de prudncia, que fazem de um homem no um
soberano caprichoso, mas um governante respeitado e respeitador das
tradies21, tambm para Josefo isso precisamente o que Moiss no foi:
Ele organizou todo o povo de modo a depender dele e, ao ach-lo dcil
em todos os aspectos, no tirou proveito dessa situao para a sua
ambio pessoal, mas nas circunstncias em que precisamente os chefes
se apoderam do imp-rio absoluto e da tirania, e habituam os povos a
viverem sem leis, Moiss, elevado a esse grau de poder, assumiu o
contrrio... (CA II, 158-159).
Com este tratamento, Josefo demonstra conhecer o suficiente da
tra-dio clssica, que atribua a determinadas personagens-chave a
misso de estabelecer regimes polticos. Licurgo de Esparta o caso
mais paradigm-
19 Sobre a possvel influncia de Flon en Josefo, vide W. C. van
Unnik,
Josephus' account of the story of Israels sin with alien women
in the country of Midian (Num. 25:1 ff.) in Traveis in the world of
the Old Testament, Assen, 1974, pp. 241-261 e H. W. Attridge, The
Interpretation of Biblical History in the Antiquitates Iudaicae
ofFlavius Josephus, Missoula, 1976, p. 141.
20 CA II, 159, 170. Nesta passagem, Josefo utiliza o termo em
vez
do clssico , coragem, usado por Plato n' A Repblica, IV, 427e.
Por outro lado, a evoca uma virtude romana de origem grega, a
concrdia, que faria tambm todo o sentido aos ouvidos dos seus
auditores de formao latina, substituindo de algum modo a sabedoria
(), que est ausente.
21 Cf. Dominique Colas, La grammaire politique de Occident. Sur
criture
constitutionnele in Xnophon, Constitution de Sparte- Aristote,
Constitution d' Athnes, Paris, 1996, pp. 15-16. Este retrato de
Moiss confirma o que Josefo traa do legislador bblico ao longo
de/fJII, 224-230, 290; III, 65, 212-213; IV, 13, 42,
156-158,329-331.
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206 NUNO SIMES RODRIGUES
tico. Mencionado por quase todos os tericos da poltica grega,
aparece insinuado por Josefo. A partir do sculo IV a. C, Licurgo,
considerado o melhor de todos os legisladores pela maioria dos
Gregos, assim como o regime espartano um regime modelo, comeou a
ser objecto de uma imensa literatura que durar at ao perodo
imperial e cujo exemplo mais conhecido ser o de Plutarco, um
contemporneo de Josefo22. O seu Licurgo o sbio e o legislador
perfeito, homem de justia, de temperana, de paz e de amor, instrudo
por Apolo Ptio. Uma vida que em tudo se assemelha do Moiss
apresentado por Flvio Josefo. Este, por seu lado, aproveita a
ocasio para introduzir na sua apologia a construo do seu prprio
legislador. Trata-se do terceiro aspecto a destacar, relativamente
ao mtodo usado pelo historiador: outros factores da construo da
imagem do legislador judeu. As funes de fundador, que instituiu as
melhores leis; de lder, por se encarregar de guiar as mirades de
homens que saram do Egipto, atravessando com eles o deserto; de
gestor altrusta, por ser considerado o mais precavido dos
conselheiros e o mais consciente dos administradores e no tirar
proveito da situao para sua ambio pessoal, o que de imediato o
afasta das caractersticas de tirano enunciadas pelos predecessores
de Josefo; e, claro, de heri, por vencer os seus inimigos e
combater para salvar as suas mulheres (CA II, 157-159, 163). Assim
se constitui Moiss como legislador ideal, digno de figurar ao lado,
ou mesmo acima, de figuras paradigmticas como Minos, Licurgo, Slon,
Drcon, Clstenes e Srvio Tlio.
Em quarto lugar, citemos precisamente a enunciao de nomes da
tradio clssica. raro Josefo recorrer a este mtodo. Ao longo dos
retratos historiogrficos que traa nas suas obras, encontramos
associaes de ideias ou de carcter entre as personagens bblicas e ou
da histria de Israel com personagens da mitologia e ou histria
clssica, no comparaes evidentes. Todavia, na exposio da politea
moisaica, o esforo de Josefo por se integrar no mundo em que vive
to grande, que no hesita em recorrer a nomes que sirvam como
argumentos de autoridade entre Gregos e Romanos. assim que se
menciona o caso de Minos, o rei mtico to elogiado pelos Gregos,
considerado o legislador da politea cretense, e outros legisladores
que se lhe seguiram, de onde se infere o j referido Licurgo. A
tradio clssica dizia que Minos tinha sido o primeiro a governar os
Cretenses com justia, dando-lhes leis para esse efeito, chegando a
afirmar-se que era inspirado pelo prprio Zeus. Enquanto legislador,
Minos era frequentemente posto em paralelo com Radamanto, seu irmo,
tendo ambos assento no
22 Plutarco, Licurgo, em particular os pargrafos 5-7, 29-31.
Numa Pomplio, o
primeiro organizador de Roma, imitar, segundo Plutarco, o de
Esparta.
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FLVIO JOSEFO A INVENO DA TEOCRACIA 207
Inferno para julgar as almas dos mortos23. Com esta meno, Josefo
apro-xima-se da cultura em que est inserido, como faz quando
atribui determi-nadas caractersticas dos heris greco-romanos aos
heris bblicos. Com a diferena de que agora nomeia declaradamente a
personagem, demonstrando estar dentro da matria cultural grega, que
aproveita para argumentar o seu prprio ponto de vista. O facto de
apresentar uma figura conceituada no meio cultural dominante e de a
fazer subordinar em importncia a Moiss, s pode ter como objectivo
valorizar este ltimo face aos outros.
Em quinto lugar, a utilizao de outras concepes filosficas
greco-romanas implcitas, das quais se destaca o estoicismo. A
formao estica de Josefo tem j sido muitas vezes referida e
justificada. Apesar de no ser um bom filsofo, ao longo de toda a
sua obra, o historiador insinua posies filosficas que se aproximam
do pensamento estico, nomeadamente no que diz respeito ao problema
de Deus. A exposio da politea judaica no Contra Apio, parece ser
mais uma oportunidade para o autor introduzir as suas ideias no que
respeita s questes metafsicas. Josefo comea assim por fazer uma
crtica s formas tradicionais da religiosidade greco-romana, dizendo
que uns atribuem as suas leis a Zeus, outros fazem-nas remontar a
Apolo e ao seu orculo de Delfos, para que dessa forma consigam
formas de autoridade legtima sobre o povo para quem legislam (CA
II, 162). Do mesmo modo, tambm Moiss se apoiou no divino para
estabelecer o regime, pois O nosso legislador no pousou o seu olhar
em qualquer destes governos. A diferena est na essncia desse
divino. O historiador usa thes (es), para designar Deus. Como j
analismos anteriormente, a utilizao do termo aponta para uma
neutralizao da figura divina, que ao mesmo tempo se conota com as
concepes esticas da divindade24. A escolha dos exemplos de Zeus e
Apolo deve-se ao facto de serem Minos e Licurgo os outros
legisladores em comparao. No que respeita identificao da divindade,
o historiador judeu abstracciona, como seu apangio, e atribui-lhe
caractersticas que tambm so esticas, quando diz que Nada pode
escapar o seu conhecimento, nem qualquer das nossas aces, nem
qualquer dos nossos pensamentos ntimos, tratando-se de um Deus
nico, no criado, eternamente imutvel, mais belo do que toda a forma
mortal, reco-
23 Od. XI, 568ss. Ccero cita tambm este exemplo, juntamente com
os de
Licurgo, Teseu, Drcon, Slon e Clstenes em Rep. II, 2. 24
Cf. Rei Said segundo Flvio Josefo, pp. 226-228 e A. Schlatter,
Wie sprach Josephus von Gott in Kleinere Schriften zn Flavius
Josephus, Darmstadt, 1970, p. 71. Os tradutores ingleses de Josefo
da edio Loeb usam a palavra deity para traduzir o Oes josfico.
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208 MUNO SIMES RODRIGUES
nhecvel atravs do seu poder, mas irreconhecvel na sua essncia25.
Estas palavras traduzem a mesma ideia de um Deus providncia,
omnipresente, omnipotente e omnisciente, princpio bsico de todas as
coisas, que se identi-fica com a natureza e com a prpria lei.
Josefo partilha aqui com os esticos a concepo unitria e
abstraccionista de Deus, que engloba todos os atributos do ser
divino. O que filosoficamente considerado um estado superior, em
relao personalizao mltipla e consequente fragmentao do divino, pela
ausncia de absoluto, como seriam Apolo ou Zeus26. o prprio Josefo
quem revela essa conexo, como j fizera quando se confessara prximo
dos esticos (Vida 12), ao dizer que Pitgoras, Anaxgoras, Plato, os
filsofos do prtico que vieram depois, todos eles, quase sem excepo,
tiveram mani-festamente essa concepo da natureza divina (CA II,
168). A enunciao destas personalidades funciona tambm como
argumento de autoridade perante o seu pblico, mostrando que afinal
os Judeus tambm tm as mesmas posies do que os Gregos ou os Romanos
sobre determinados aspectos fundamentais da vida e do pensamento.
Mais, que os Judeus, em parte, superaram os outros, ao terem
constitudo a sua religio e o seu regime poltico com base numa
concepo de Deus totalitria e abrangente. aqui inicia a apologia
para alm da igualdade. Trata-se j da crena na superio-ridade dos
Judeus face aos outros povos, patente em afirmaes como quem
instituiu as melhores leis e quem ensinou as normas mais justas
sobre religio ou esta concepo de Deus foi a dos mais sbios entre os
Gregos, que se inspiraram em ensinamentos dados pela primeira vez
por Moiss (CA II, 168). O primado do legislador dos Judeus sobre
todos os outros culmina a apologia.
Assim, ao longo da enunciao da metodologia josfica, verificamos
que tudo serve para demonstrar no s a importncia, como mesmo a
superioridade da cultura judaica, desde que fundamente a posio do
autor.
25 Diz Josefo em CA II, 167: va ?
, ? ? ? , , ? ' .
26 Refira-se que, para alguns esticos, essa entidade
identifica-se com Zeus,
enquanto Deus absoluto. No entanto, partimos do princpio que a
meno de Josefo a Zeus, neste contexto, est relacionada com a figura
de Minos, pois este teria recebido do pai dos deuses, em Creta, a
orientao legislativa, tal como Licurgo a teria recebido de Apolo,
em Delfos. Trata-se, portanto, de duas referncias concretas, por
relao s duas personagens citadas, que, como vimos, eram as
tradicionalmente referidas em textos de cincia poltica. Sobre a
metafsica estica, A. A. Long, Hellenistic Philosophy, London, 1974,
p. 165.
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FLVIO JOSEFO A INVENO DA TEOCRACIA 209
3. A inveno da teocracia
De onde vem a proposta da teocracia? De matria bblica, sem
dvida. Ao longo das escrituras hebraicas, so vrios os textos que
apontam para uma concepo teocrtica do poder poltico27. tambm essa
ideia que est subjacente expresso ... que Eu no reine mais sobre
eles. (1 Sm 8,7). Na sua maioria, estes so textos deuteronomistas,
cuja elaborao data do perodo exlico ou ps-exlico, aps a falncia da
monarquia. Essa posio flosfico-poltica a mesma que justificou a
instalao de um regime aristocrtico em Israel, como o prprio
historiador reconhece, cuja particularidade era o facto de o grupo
dos aristoi ser constitudo pela casta sacerdotal de Israel, qual
pertencia a famlia de Josefo, e que alguns entenderam como o
aparelho executivo do regime supostamente teocrtico.
Assim, o neologismo no surge tambm de um repentino influxo do
historiador. De acordo com os textos hebraicos, j nas Antiguidades
Judaicas (VI, 60), no texto parfrase do testamento poltico de
Samuel, se usa a expresso basilea () divina para distinguir de
nthrpou basilea ( ), realeza humana. Do mesmo modo, em VI, 61, l-se
que, como governante, Deus o melhor de todos ( jioto). Mas, ao
mesmo tempo, esta expresso tinha um carcter messinico, no
conveniente para ser usado e no servindo para apresentar a politea
moisaica a uma audincia helenizante. Foi este factor, aliado tradio
historiogrfica e proftica de Israel e ao contexto da cincia poltica
grega, que levou criao do neologismo, que resulta assim de uma
reflexo lgica, de um trabalho de hermenutica bblica.
Como se articula a posio demonstrada nas Antiguidades Judaicas
com a que transparece no Contra Apiol De algum modo, o ideal
teocrtico est j subjacente ao sistema aristocrtico enunciado, visto
que para Josefo os aristoi devem governar, no por iniciativa
prpria, mas por delegao divina. Trata-se do poder da lei com Deus
como rei, como se sugere em Antiguidades IV, 223 e V, 135. O
governo dos Juzes ou a prpria actuao de Moiss, por exemplo,
comungam j, em parte, desse ideal teocrtico, pois
27 Ex 15,18; Jz 8,23; ISm 8,6-7; 19-20; lRs 22,19; lCr 17,14;
2Cr 13,8; SI
24,7-10; 47,3; 103,19; Is 6,1-5; 41,21; 43,15; Jr 10,7-10.
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210 NUNO SIMES RODRIGUES
Deus quem governa atravs dos seus representantes na terra.
Agora, coincide a teocracia josfica com o governo dos sacerdotes,
na perspectiva aristotlica de grupo ou classe poltica que controla
as instituies? Pensamos que essa no a ideia nem a perspectiva de
Josefo, apesar de ser a realidade efectiva. Para o historiador,
trata-se de Deus como chefe () da sociedade, como entidade suprema,
expressa pela frase Deus basta como governante (AJW, 114, 223).
Novidade josfica, que vai ao encontro de determi-nadas posies
tericas greco-romanas, nomeadamente o estoicismo. Estamos perante
uma soluo de compromisso, cuja percepo s possvel a partir de uma
comparao das Antiguidades Judaicas com o Contra Apio. S assim
percebemos como relaciona Josefo o seu afecto pela aristocracia com
o impulso de inventar a teocracia. Avanaramos com a proposta de
classificar a perspectiva josfica do regime de Israel como uma
teocracia aristocrtica, em que eventualmente a aristocracia
corresponderia imagem institucional real e a teocracia imagem
institucional ideal ou utpica, algo semelhante Idade de Ouro de
Hesodo que, desenvolvida, daria lugar teorizao messinica do Reino
de Deus. O que por motivos bvios, Josefo no fez. Assim, esta
teocracia permite-se aproximar mais de modelos executivos
aristocrticos do que de modelos de poder absoluto, ou at mesmo de
tiranias.
Novidade terica dada por Israel, uma vez que que no h ainda
teorizao em torno da cultura egpcia (onde o representante teocrtico
no o grupo, mas o rei/fara), apesar dessa forma de governo se
intuir j em determinadas actuaes polticas, mesmo em Roma e em
reinados anteriores aos dos Flvios, como os de Augusto e Calgula,
por exemplo28. O signifi-cativo ser entender a forma como convivem
as realidades imperador e Deus/imprio romano e reino de Deus no
esprito josfico. Ser o imperador um representante de Deus na terra
ou substitui a funo divina? Nesse caso, deixar de haver teocracia
aristocrtica para passar a existir uma teocracia monrquica, o que
corresponde soluo imperial.
Em concluso, aparentemente, Josefo parece recusar o sistema em
que estava politicamente inserido, ao valorizar e elogiar como o
melhor regime o de Israel. Acontece que a proposta do historiador
acaba por se revelar um compromisso que permite a convivncia da
utopia judaica, de natureza platnica, com a realidade poltica
romana. Na esteira dos seus predeces-sores, recusa a tirania, como
se infere pela sua posio que afirma que Moiss no foi ambicioso.
Existe discurso messinico? No o cremos. Estamos
28 Josefo usar tambm as categorias Oes e para se referir a
Augusto, AJ XIX, 289.
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FLVIO JOSEFO A INVENO DA TEOCRACIA 211
perante a anlise e a avaliao de sistemas. A vitria atribuda ao
caso de Israel corresponde ao esprito agnico clssico, em que a
competitividade permite o aperfeioamento. Coube a Israel expressar
esse aperfeioamento, historicamente atestado. Mas no se prope a
abolio do sistema poltico em vigor. Em vez disso evoca-se
simplesmente um exemplo modelar do passado que convive de forma
pacfica com a realidade que provavelmente lhe chega atravs da
integrao das comunidades judaicas na dispora romana. O que faz com
que, de acordo com o esprito josfico, este no seja propriamente um
texto de interveno em relao ao regime institudo. Da a apresentao do
regime num contexto perfeitamente definvel, com referncias
evidentes s exposies anteriores. Para o relativismo aristotlico,
esta exposio/pro-posta de regime seria apenas mais uma forma de
governar. Quanto ao esprito platnico, esse rev-se especialmente ao
longo das Antiguidades Judaicas, onde Josefo reconhece em parte a
tese da anaciclese aplicada aos regimes de Israel, que se alteram
ao longo da Histria, de acordo com as conjunturas e as vicissitudes
polticas, como j Polbio defendia. Alm disso, para Plato, o Bem a
finalidade, o objecto supremo de todo o desgnio e de toda a
aspirao, a causa criadora que sustenta o mundo. A ideia de Bem
coincide com a ideia de Deus29. Do mesmo modo, em Josefo, Deus
tambm se identifica com o Bem, pelo que s a teocracia pode ser o
melhor dos regimes, aquele que gerido pelo Bem/Deus. Mas a tese da
superioridade vai mais longe. Na cidade ideal de Plato, o
rei-filsofo decide sozinho. Deus identi-fica-se com a ideia
reguladora, mas Plato no o coloca nominalmente como base do regime.
a que Josefo introduz a novidade com o Contra Apio: a presena
nominal de Deus como elemento regulador da organizao do sistema
poltico.
Resta-nos lembrar que Josefo no um terico da poltica. Talvez
advenham da as incongruncias e a falta de homogeneidade entre o que
lemos nas Antiguidades Judaicas e no Contra Apio. Porqu ento a
diferena?
Primeiro, no podemos esquecer que o segundo texto uma apologia,
onde o autor tem como objectivo definido demonstrar que os Judeus
no esto ao nvel que alguns Gregos e Romanos os colocam e que, como
tal, no so merecedores das acusaes de que so alvo. Portanto, Josefo
tem de ser mais incisivo na sua definio, mais objectivo e muito
menos ambguo. Da, uma afirmao clara e eficaz.
29 O que leva Ernest Barker a afirmar que o ideal poltico de
Plato no fundo
uma teocracia, Greek politicai theory- lato and his
predecessors, London, 1918, p. 304.
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212 NUNO SIMES RODRIGUES
Depois, o Contra Apio , ao contrrio das Antiguidades Judaicas,
um espao de reflexo mais alargado, logo mais propcio teorizao. Isto
, a apologia a reflexo possvel depois da longa anlise que foram as
Antiguidades Judaicas e a Guerra dos Judeus. verdade que h concepes
que usou nessas obras que esto ausentes no Contra Apio. Mas talvez
isso se deva ao facto de estarmos perante apenas o necessrio para
uma exposio terico-poltica de base, que sustente uma prvia formulao
historiogrfica, imprescindvel para a compreenso da evoluo do
processo histrico, que serve ento como introduo a um texto mais
elaborado, onde se encaixa um apurado debate intelectual, como
aquele que encontramos na apologia.
Finalmente, tendo sido a ltima obra a ser escrita, Contra Apio
por isso a que teve mais oportunidades de teorizao, aquela onde
tambm esto presentes mais leituras de natureza filosfica. Este
texto permite situar o autor no ltimo estado evolutivo da sua
maturao terica e, conse-quentemente, aquela em que se l a
forma/proposta de Estado mais pura que Israel ter atingido e que
funciona como ideal.
Assim, a inveno da teocracia acaba por ser no uma negao da
cincia poltica grega, mas o coroamento da mesma, uma perfeita
sntese cultural, s plenamente entendida quando vista do prisma
daquela, na qual est inserida e da qual depende, como se v pela
contextualizao feita a partir das referncias aos autores implicados
no processo. S usando as cate-gorias da cultura grega, poderia
Josefo ser bem sucedido a passar essa mensagem. o que ele faz,
ainda que tema violentar a lngua grega. De qualquer modo, se a
violentou, f-lo eficazmente. A mensagem conveniente, perfeitamente
josfica, que lhe permite defender a que considera cultura
supostamente mais subtil e evoluda dos Judeus. Tomar outra posio
seria entrar em rota de coliso com as foras da sociedade
greco-romana antagnicas ao judasmo. O que, conhecendo o passado de
Flvio Josefo, no seria plausvel que acontecesse.