João Vitor Rodrigues Loureiro UMA AGENDA POSSÍVEL? Desenvolvimento e direitos humanos no PNDH-3 e o neodesenvolvimentismo brasileiro Dissertação de Mestrado apresentada à Banca Examinadora do Programa de Mestrado em Direitos Humanos e Cidadania da Universidade de Brasília (UnB), como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direitos Humanos e Cidadania. Orientador: Prof. Dr. Wellington Lourenço de Almeida BRASÍLIA 2014
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João Vitor Rodrigues Loureiro
UMA AGENDA POSSÍVEL? Desenvolvimento e direitos humanos no PNDH-3 e o neodesenvolvimentismo brasileiro
Dissertação de Mestrado apresentada à Banca Examinadora do Programa de Mestrado em Direitos Humanos e Cidadania da Universidade de Brasília (UnB), como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direitos Humanos e Cidadania. Orientador: Prof. Dr. Wellington Lourenço de Almeida
Uma agenda possível? Desenvolvimento e direitos humanos no PNDH-3 e o neodesenvolvimentismo brasileiro
Dissertação de mestrado apresentada à Banca Examinadora do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania do Centro Avançado de Estudos Multidisciplinares da Universidade de Brasília – UnB, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direitos Humanos e Cidadania.
Orientador: Prof. Dr. Wellington Lourenço de Almeida Banca Examinadora: _______________________ Prof. Dr. Wellington Lourenço de Almeida (Orientador) PPGDH – CEAM _______________________ Profa. Dra. Vanessa Maria de Castro PPGDH – CEAM ________________________ Profa. Dra. Magda de Lima Lúcio PPGDSCI – CEAM Brasília, Dezembro de 2014.
O Brasil tem observado, nesta última década, uma experiência híbrida de política
econômica, que oscila entre concepções desenvolvimentistas, implementadas ao longo de sua
modernização capitalista em boa parte do século XX, e de concepções neoliberais,
vivenciadas sobretudo na década de 1990. Esse cenário misto de concepções econômicas
aponta um projeto de crescimento com inclusão social, produzido do ponto de vista discursivo
e das políticas públicas, como um projeto de desenvolvimento do país. Tal projeto recebeu o
nome de neodesenvolvimentismo pela literatura recente, e sua implementação pode ser
parcialmente explicada por uma dependência de trajetória da política econômica brasileira. Ao
mesmo tempo, o conceito de desenvolvimento, estruturado ao longo da modernização
capitalista mundial, contribuiu para a criação de exigência de fundo ético e universal: o direito
humano ao desenvolvimento. Constituído como expressão recente dos direitos econômicos,
sociais e culturais, afirmados em nível internacional, tal direito ganhou expressividade na
teoria de Amartya Sen, que extrapolou o viés meramente econômico e o equiparou à liberdade
humana com igualdade de capacidades. Esse quadro conceitual, global e histórico auxilia a
compreensão da formulação da agenda política doméstica de desenvolvimento e direitos
humanos, prevista no Programa Nacional de Direitos Humanos 3 – PNDH-3. A pesquisa aqui
proposta tem por objeto analisar, a partir desse quadro, o Eixo Desenvolvimento e Direitos
Humanos no PNDH-3, com base em dados documentais e empíricos, obtidos em entrevistas
com gestores responsáveis pela formulação do Programa. Conclui-se que a formulação da
agenda escolhe, em nível pragmático e de forma adequada à convenção
neodesenvolvimentista, as ações e projetos de reconhecimento do desenvolvimento como
direito humano no Brasil.
Palavras-chave: Desenvolvimento, Direitos Humanos, Brasil, Política Pública, PNDH-3, Neodesenvolvimentismo, Desenvolvimentismo, Neoliberalismo, Amartya Sen.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES...................................................................................................12 INTRODUÇÃO E CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS..........................................13 1. ENTRE DESENVOLVIMENTISMO, NEOLIBERALISMO E NEODESENVOLVIMENTISMO: A FINA TRAMA DO DESENVOLVIMENTO BRASILEIRO..........................................................................................................................17 1.1 Introdução. Origem e breve conceituação......................................................................17 1.2 Historicizando o neodesenvolvimentismo. Notas e inflexões políticas.........................23 1.2.1 1930-1964: o primeiro ciclo do desenvolvimentismo brasileiro....................................24 1.2.2 O segundo ciclo de formação do desenvolvimentismo brasileiro: 1964-1980................29
1.2.3 A decadência do modelo desenvolvimentista e a ascensão do neoliberalismo…............33
1.2.4 Uma trajetória dependente: a hibridização do neodesenvolvimentismo..........................43
2. O DIREITO AO DESENVOLVIMENTO: DO ANSEIO PERIFÉRICO À EXIGÊNCIA RETÓRICA.....................................................................................................58 2.1 Introdução.........................................................................................................................58 2.2 Desenrolar as amarras do passado e do presente: a ideia de desenvolvimento...........59 2.3 Desenvolvimento como liberdade: uma tarefa de conceituação...................................68 2.4 Direitos humanos econômicos e sociais: desenvolvimento como imperativo, retórica ou efetividade?.........................................................................................................................76 2.5 Um debate global. A agenda internacional do direito ao desenvolvimento.................81 2.6 Conclusão...........................................................................................................................88 3. UMA PROPOSTA DE DESENVOLVIMENTO NUMA POLÍTICA DE DIREITOS HUMANOS: O PNDH-3....................................................................................91 3.1 Introdução..........................................................................................................................91 3.2 A agenda política dos Direitos Humanos: os Programas Nacionais de Direitos Humanos..................................................................................................................................92 3.3 O governo Lula e o contexto de formulação do PNDH-3............................................102 3.4 O PNDH-3 e uma inovação: o direito ao desenvolvimento.........................................108 3.5 Conclusão.........................................................................................................................120
4. CONCLUSÃO...................................................................................................................121 5. REFERÊNCIAS................................................................................................................124 6. APÊNDICES......................................................................................................................132 6.A Eixo Desenvolvimento e Direitos Humanos do Programa Nacional de Direitos Humanos 3 ............................................................................................................................132 6.B Roteiro de perguntas realizadas nas entrevistas..........................................................150
Figura 1: Quadro comparativo dos aspectos gerais da economia brasileira entre os dois ciclos do desenvolvimentismo................................................................................................32 Figura 2: Evolução Histórica do Produto Interno Bruto Brasileiro (1995-2010).............46 Figura 3: Ciclo “virtuoso” de inclusão de renda e crescimento econômico.......................50 Figura 4: Quadro dos principais conceitos da teoria do desenvolvimento como liberdade.............................................................................................................................74/75 Figura 5: Expansão do Produto Interno Bruto Mundial, 1986-1999.................................85 Figura 6: Distribuição do rendimento. Participação do quintil dos 10% superior no total da renda nacional (1995-2009)....................................................................................106 Figura 7: Correlação de Ações do Eixo Desenvolvimento e Direitos Humanos do PNDH-3 e Programas de Governo instituídos em governos antecessores....................................111
diz respeito à definição geral de desenvolvimento como direito humano, que parte de uma
investigação bibliográfica, e que buscou identificar os conceitos-chave para a teoria de
Amartya Sen, de desenvolvimento como liberdade. Por fim, para a análise da agenda do
direito ao desenvolvimento prevista no PNDH-3, partiu-se da interpretação documental, do
texto propriamente dito das ações do programa, de alguns dados quantitativos disponíveis
sobre o Governo Lula, úteis para contextualizar a formulação do Programa, e também de
entrevistas com gestores responsáveis pela sistematização e redação das propostas contidas no
texto.
Sob esse último aspecto, a pesquisa é parcialmente empírica; isto é, ela leva em
consideração alguns dados da realidade, por nós coletados, para a obtenção de seus resultados,
apesar de tais dados não constituírem as fontes fundamentais da própria investigação, mas de
pontos de apoio para observação e interpretação. Nos dizeres de Lee Epstein e Gary King:
A palavra ‘empírico’ denota evidência sobre o mundo baseada em observação ou experiência. Essa evidência pode ser numérica (quantitativa) ou não-numérica (qualitativa); nenhuma é mais “empírica” que a outra. O que faz uma pesquisa ser empírica é que seja baseada em observações do mundo – em outras palavras, dados, o que é apenas um termo para designar fatos sobre o mundo. Esses fatos podem ser históricos ou contemporâneos, ou baseados em legislação ou jurisprudência, ou ser o resultado de entrevistas ou pesquisas, ou os resultados de pesquisas auxiliares arquivísticas ou de coletas de dados primários. Os dados podem ser precisos ou vagos, relativamente certos ou muito incertos, diretamente observados ou conseguidos indiretamente; podem ser antropológicos, interpretativos, sociológicos, econômicos, jurídicos, políticos, biológicos, físicos ou naturais. Desde que os fatos estejam de alguma maneira relacionados ao mundo, eles são dados, e, contanto que a pesquisa envolva dados que são observados ou desejados, ela é empírica (EPSTEIN et. KING, 2013, p. 9-10)
Portanto, para alcançar os objetivos pretendidos, o caminho escolhido foi o de
interpretação da realidade a partir de ampla investigação bibliográfico-conceitual, de alguns
dados disponíveis sobre o governo Lula e sobre a economia brasileira, de dados documentais
e também de dados empíricos, estes últimos decorrentes de entrevistas realizadas pelo autor.
Ao final do trabalho, está anexado o roteiro que orientou as entrevistas realizadas, de caráter
semi-estruturado.
Quanto à estrutura do texto da dissertação, o primeiro Capítulo apresenta uma breve
trajetória da modernização capitalista brasileira, a fim de compreender a importância do
desenvolvimentismo de matriz estruturalista e do neoliberalismo para a política econômica, e
relacionar tais trajetórias como experiências constitutivas da concepção
neodesenvolvimentista recente. Para tanto, também é utilizada a perspectiva de dependência
de trajetória, ferramenta conceitual que auxilia a compreensão do quadro de escolhas políticas
1. ENTRE DESENVOLVIMENTISMO, NEOLIBERALISMO E NEODESENVOLVIMENTISMO: A FINA TRAMA DO DESENVOLVIMENTO BRASILEIRO
1.1. Introdução. Origem e breve conceituação Desde o ano de 2003, o termo novo desenvolvimentismo tem sido trabalhado pela
literatura acadêmica, numa reflexão propositiva sobre os projetos de desenvolvimento para o
Brasil. O termo aparece de forma conceituada e crítica pela primeira vez na obra de Luís
Carlos Bresser-Pereira, autor conhecido por sua participação nos quadros da Administração
Pública Federal, como Ministro de Estado da Fazenda, Ministro da Administração Federal e
ainda Ministro da Reforma do Estado, nos governos de José Sarney e de Fernando Henrique
Cardoso. Bresser-Pereira cunha o conceito pela primeira vez na 5a. Edição de
Desenvolvimento e Crise no Brasil: História, Economia e Política de Getúlio Vargas a Lula
(BRESSER-PEREIRA, 2003), ao introduzir um inédito capítulo 20, abordando de forma
precisa e inaugural o conceito do que passou a ser definido como novo desenvolvimentismo:
(…) um novo desenvolvimentismo, ou seja, uma teoria econômica e uma proposta de política econômica voltada para o desenvolvimento econômico. Uma proposta que não sofra dos vícios da frouxidão fiscal (populismo fiscal) e da frouxidão cambial (populismo cambial), mas que afirme a necessidade de uma intervenção firme do Estado para sanar parcialmente as falhas do mercado. Uma proposta que esteja comprometida com o equilíbrio fiscal e o fortalecimento do Estado, inclusive porque só Estados fortes podem garantir mercados fortes. Uma proposta que esteja voltada para os interesses dos mais pobres e para o interesse nacional. (...) O novo nacionalismo e o novo desenvolvimentismo admitem a superioridade econômica e tecnológica dos países desenvolvidos, mas não a sobreestima. Admite que eles tenham instituições melhores do que as nossas, mas não as copia servilmente, inclusive porque entre eles os modelos variam. (BRESSER-PEREIRA, 2003, pp. 430-445)
Não por acaso, o esforço teórico da geração que seguiu a reflexão de Bresser-Pereira,
com o intuito de construir um novo conceito de política econômica para o país, aparece após a
eleição de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República no ano de 2002, e se propaga
nos anos seguintes, imbuída de força conceitual e crítica. Autores como Boito Jr. (2003)
(2009), Sicsú et. al. (2005), Paulani (2008), Erber (2011), são expoentes, cada um a seu estilo,
de reflexões sobre o modelo de sociedade, política e economia que seriam inaugurados nos
anos da era Lula (2003-2010).
Sicsú (2005), a propósito, desenha em linhas gerais a origem do novo
desenvolvimentismo na economia keynesiana, por haver certa relação complementar entre
Estado e mercado, e no neoestruturalismo cepalino, de que a industrialização não conseguiu
resolver a forte desigualdade social, advogando uma transformação produtiva com maior
equidade social. Isso permitiria compatibilizar crescimento econômico sustentável com
melhor distribuição de renda. Apesar de reconhecer as diferentes nuances desse projeto, Sicsú
ressalta a importância dessas características como um programa alternativo ao monetarismo
neoliberal.
Este capítulo propõe discutir em que medida o conceito de neodesenvolvimentismo,
tributário dessa matriz teórica novo-desenvolvimentista, representa uma nova realidade da
economia brasileira: se de fato constitui uma ruptura ou transformação da linha de política
econômica adotada pela administração petista pós-Cardoso, ou se consiste em leves ajustes
conjunturais, em um cenário ainda marcado pela forte injunção internacional da liberalização
dos mercados nacionais pós-Consenso de Washington. Para essa abordagem, a política
econômica é considerada como política pública, e sua compreensão parte de uma análise
baseada na noção de path dependence, ou dependência de trajetória, que busca entender como
tal opção de desenvolvimento foi se constituindo, fortalecendo e alcançando as raias de um
modelo econômico adotado recentemente por governos brasileiros, sem descuidar dos
contextos passados que a informaram.
A reflexão econômica é, por excelência, a reflexão sobre os rumos dos modelos de
organização produtiva de uma sociedade. Ela requer um aprofundamento sobre a realidade,
percebida de forma imediata em suas evidências palpáveis, concretas, materiais. Trata-se de
discutir como, por que e em que medida escolhas são adotadas para organizar a produção e
circulação de bens, serviços e ativos numa economia. Isso abre também um importante leque
de discussão sobre valores sociais, papel do Estado e das forças políticas representativas numa
determinada sociedade, e sobre comportamentos e práticas sociais vigentes nessa mesma
sociedade. Em última análise, a discussão sobre política econômica é uma discussão
complexa, interdisciplinar, que envolve temas políticos, sociológicos, filosóficos, culturais e
evidentemente, econômicos. Conforme aponta Souza (2011, p. 53):
No mundo moderno – o mundo do naturalismo e da evidência material e concreta superficial como medida de todas as coisas – tenderíamos a não perceber a influência de ideias. Isso é especialmente verdade num país como o Brasil, onde o mundo econômico, o mundo da materialidade por excelência, parece ser o único existente e visível. As concepções dos intelectuais, no entanto (…) são centrais para a forma como uma sociedade escolhe e leva a cabo a seus projetos coletivos, (…) são elas que explicam por que o mundo material e econômico visível e palpável se construiu dessa forma e não de outra forma qualquer, (…) e explicam por que temos 'essa vida' social e política, e não qualquer outra possível.
Neste sentido, o trabalho de explicar a realidade econômica, evidenciar as ideias que
fundamentam escolhas e operam sobre essa realidade, criticar a adoção de escolhas políticas,
entender certa gênese de problemas de fundo conjuntural e estrutural parece ser o desafio
dessa geração de economistas e cientistas sociais e políticos, que começam a debater as
transformações da economia brasileira no início do século XXI. Eles reinserem na evidência
da realidade material e econômica, na superfície das aparências, a profundidade da análise
crítica, e o papel das ideias não apenas como explicativas dessa realidade, mas também como
transformadoras dela mesma. O papel das ideias que informam o projeto de política
econômica (e o projeto político de país a ele subjacente), e explicam os porquês de nossa
realidade material se constituir de uma forma e não de outra, é objeto dessa reflexão.
Esses autores se inserem em um período de novo vigor intelectual, preocupados com a
uma formulação também assumidamente nova, que propunha se contrapor aos anos dos
governos de Fernando Henrique Cardoso. Como veremos adiante, tais anos, compreendidos
entre 1994 e 2002, foram profundamente marcados pela liberalização econômica do país e
pela adoção, em maior ou menor medida, das regras basilares do Consenso de Washington1.
Escolhemos desbravar a discussão com o propósito de entender por que caminhos o
Brasil trilha sua jornada rumo ao desenvolvimento, essa exigente e vacilante proposta da
modernidade capitalista. Afinal, em que modelo de política o Brasil se afirma na condição de
país em desenvolvimento, e em que medida isso consiste em uma novidade no cenário das
políticas econômicas? Ela efetivamente se contrapõe à política econômica em curso nos anos
da administração peessedebista?
A formulação do conceito de novo desenvolvimentismo, nesse sentido, parece tentar
apontar uma saída aos dilemas que o capitalismo mundial, também em transformação,
coloca(va)m à frente da inserção do Brasil no chamado sistema-mundo2: o mundo que viu o
1 O Consenso de Washington foi o resultado de uma deliberação de funcionários do governo estadunidense
com representantes de organismos financeiros – Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial e Banco Interamericano de Desenvolvimento, que resultou em propostas de políticas econômicas. Resultou do debate e avaliação de reformas econômicas empreendidas por países da América Latina no final dos anos oitenta. O encontro realizado em 1989 na capital dos Estados Unidos ganhou força simbólica nos foros internacionais multilaterais, integrando ideias esparsas e discursos isolados, sistematizando o que ficaria conhecido como ideário neoliberal: reformas profundas em prol da liberalização econômica e sobretudo financeira, desregulamentação, diminuição do papel do Estado em promoção de políticas sociais e distributivas. Trata-se de uma reformulação dos conceitos do liberalismo econômico clássico, que elege o mercado como a instituição social mais eficaz e que por isso deveria funcionar de modo puro, sem barreiras, considerando imprescindível diminuir ou mesmo aniquilar o papel das demais instituições sociais que despurifiquem a lógica fundamental de funcionamento do mercado: Estado, sindicatos, associações, cooperativas.
2 A teoria do sistema-mundo foi elaborada pelo sociólogo Immanuel Wallerstein, em sua obra The Modern World System, de 1974. Influenciado por uma perspectiva braudeliana de história, em que aponta a existência de uma estrutura mundial dividida entre centro, semiperiferia e periferia, Wallerstein descreve a existência
muro de Berlim cair e, com ele, o socialismo real, é o mundo que, na década de noventa,
viveu um período de intenso fortalecimento e hegemonização do capitalismo financeiro,
avolumado pela expansão monetária, pelo crescimento de economias centrais e periféricas, e
pela crescente liberalização de mercados. Em meio a esse crescimento, crises sucessivas nos
finais do século XX começavam a dar sinais de alerta a essa liberalização financeira
ascendente: México, Rússia, Argentina e Tigres Asiáticos foram acertados em cheio por
bolhas especulativas3.
Na tentativa de contornar os dilemas estruturais do capitalismo financeiro e do
receituário neoliberal mainstream que o acompanhou na década de noventa, o novo
desenvolvimentismo se propõe não apenas como alternativa ao neoliberalismo, mas também
ao desenvolvimentismo tradicional, de matriz estruturalista, que caracterizou o modo de
desenvolvimento do capitalismo brasileiro em meados do século passado, marcado por forte
intervenção do Estado em certos domínios econômicos. Essa intervenção buscava garantir
preços, monopólios de produção de certos bens, sem descuidar de investimentos – por meio
de capitais nacionais ou estrangeiros – voltados ao crescimento econômico.
Entretanto, o que de fato se tem verificado, na tentativa de implementação do projeto
novo desenvolvimentista brasileiro, é uma relativização prática, adaptada às exigências
contextuais, que exigem medidas adequadas a expectativas de agentes de mercados,
empresariado e que ao mesmo tempo responda a demandas sociais historicamente
menosprezadas por políticas de governo.
interligada de duas esferas nessa estrutura: o sistema-mundo capitalista, acompanhada da divisão internacional do trabalho e o sistema-mundo interestatal, moldado a partir da tendência à guerra entre as nações modernas. Utilizamos essa noção de sistema-mundo para designar a aceleração do processo de globalização deflagrado com o fim da guerra fria, sobretudo a expansão hegemônica da lógica organizacional do sistema-mundo capitalista que, salvo raras exceções, atingiu em cheio a maior parte das nações do globo terrestre. (WALLERSTEIN, 2002, p. 45)
3 A crise mexicana data do biênio 1994-1995, e remonta a uma política macroeconômica de desvalorização cambial progressiva, coerente com as taxas de juros e com a inflação. Uma valorização cumulativa do peso mexicano e a abertura do país ao Nafta fez aumentarem as importações e gerou um forte desequilíbrio no balanço de pagamentos mexicanos, o que empurrou o país à desregulamentação da entrada de capitais financeiros, a fim de criar reservas que equacionassem esse desequilíbrio. Já a crise dos Tigres Asiáticos teve início em 1997, num processo de fuga de capitais e deflação de ativos financeiros, em que as moedas nacionais de alguns países (Tailândia, Malásia, Indonésia e Filipinas) sofreram forte desvalorização cambial, acompanhadas da recessão econômica japonesa e do declínio de exportações da Coreia do Sul, tratando-se uma crise das finanças desreguladas e globais. A crise russa, por sua vez, ocorrida em 1998, que levou o país a decretar sua moratório, foi resultado do impacto da crise dos Tigres Asiáticos, em razão da redução da liquidez internacional, reduzindo o crédito ao país e a queda no preço das commodities exportadas pela Rússia. A crise argentina, de 1999, foi marcada pelo fim do regime cambial de paridade entre o peso argentino e o dólar, um medo generalizado da desvalorização da moeda local de forma expressiva, e, diante da desvalorização do real em 1999, uma expressiva redução de suas exportações, o que desequilibrou sua balança de pagamentos e levou o país a decretar da moratória da dívida externa em 2001. Neste sentido, ver a obra de José Luís Fiori: 60 lições dos 90. (FIORI, 2002)
Nesse sentido, o novo desenvolvimentismo teria feito germinar, no Brasil, uma espécie
híbrida de sua matriz teórica, que intenta conciliar as formas de capitalismo vividas pelo país
nas últimas décadas, oscilando entre a intervenção do Estado na esfera econômica e as regras
e pressupostos de funcionamento dos mercados tidos por livres, através da redução de custos
transacionais e proteção integral à propriedade privada. Tal espécie foi recentemente batizada
de neodesenvolvimentismo.
Esse termo passou a expressar algo que estaria numa posição intermediária, entre uma
revisão dos anos de política neoliberal, e a proposta assumida pelo novo desenvolvimentismo.
A diferença entre novo desenvolvimentismo e neodesenvolvimentismo, dois termos que
expressariam motes distintos da política econômica, estaria no fato de o primeiro modelo ser
caracterizado como uma formulação de natureza mais teórica, referindo-se a um conjunto de
exigências e propostas para a estratégia nacional de desenvolvimento de países de renda
média, na contramão das exigências neoliberais, enquanto o segundo, a política econômica
brasileira efetiva, real, experimentada nos últimos anos pelas administrações petistas de Luiz
Inácio Lula da Silva (2003-2010). Essa diferença é explicitada com maior clareza por Fábio
Erber, que aponta: Do ponto de vista econômico, seu núcleo duro [o do neodesenvolvimentismo] é de inspiração keynesiana — o crescimento é impulsionado pelo aumento autônomo da renda familiar dos grupos mais "pobres", via salário mínimo e transferências fiscais, e de investimentos em infraestrutura e construção residencial, regidos pelo Estado. No entanto, distingue-se da convenção "novo-desenvolvimentista", que tem a mesma matriz teórica (...), pela aceitação, mesmo que a contragosto, da política macroeconômica da convenção institucionalista restrita, que os "novo-desenvolvimentistas" explicita e fortemente rejeitam. (ERBER, 2011, p. 8)
Para Erber, o conceito de novo desenvolvimentismo constitui-se muito mais num apelo
crítico de economistas e acadêmicos em disputa pela hegemonia de um projeto de
desenvolvimento para o Brasil que, de fato, um conjunto sistemático de políticas e medidas
implementadas pelos governos petistas recentes. Sua principal crítica volta-se à existência de
um modelo híbrido de desenvolvimento, designado como neodesenvolvimentista. Esse
modelo representaria uma convenção que, por um lado, preserva os pressupostos
fundamentais da convenção institucionalista4, e, por outro, adota uma maior participação do
4 Ao utilizarmos o termo “convenção institucionalista”, referimo-nos a uma corrente de pensamento centrada
na noção de evolução gradual da economia, focada no papel das instituições sociais nesse processo. Hábitos, aprendizado sujeitos, crenças e ações dos indivíduos caracterizariam a busca por produtividade e a lucratividade, e estariam dependentes de uma trajetória precedente historicamente construída, ao longo desse processo evolutivo. Sâo expoentes dessa corrente Thorstein Veblen, Adolph Berle e Clarence Ayres. Apesar de diretamente não se referir a uma convenção neoliberal, veremos adiante haver uma aproriação dessa perspectiva, do ponto de vista ortodoxo, que admite o funcionamento da economia somente se preservados alguns pressupostos fundamentais – tornados instituições – e definidos pela atuação do Estado. Essa
Estado na regulação e incentivo à atividade econômica, por meio de investimento em
infraestrutura, expansão de crédito público e privado, criação de círculo virtuoso estimulado
pelo consumo e aumento de renda, investimento em inovação e de uma política externa
independente. (ERBER, 2011) Para o autor, essa convenção é também marcada por uma visão
competitiva e meritocrática da economia, para a qual algumas normas e organizações
garantem o funcionamento correto dos mercados, vinculando-se a uma visão institucionalista
ortodoxa: metas fiscais e de inflação, e autonomia e protagonismo no Banco Central para a
definição de políticas de juros seriam características marcantes dessa visão.
Trabalharemos com maior detalhamento, mais adiante, com os reais sentidos do
neodesenvolvimentismo, e avaliaremos que medidas, ações e decisões constituem sua agenda
formativa. Por ora, aderimos à percepção de Erber: o neodesenvolvimentismo germina,
floresce e se explica num contexto de realpolitik5 capitalista, e se afirma reproduzindo ou
reforçando instituições típicas desse contexto: crença na eficácia e legitimidade do livre
mercado (isto é, o mercado enquanto instrumento mais legítimo e eficaz de organizar e
conduzir a economia e a sociedade) na alocação de recursos, adoção de instrumentos e de
políticas estatais – como as metas de inflação via definição da taxa de juros de títulos da
dívida pública por uma autoridade monetária, o Banco Central, estabilização de preços
relativos, adoção de um superávit primário por meio de rigor fiscal, e flutuação cambial e
valorização das taxas de câmbio.
Esse conjunto de medidas tem como intenção clara atender os interesses de agentes
financistas e setores empresariais, intimamente relacionados com a estrutura do Estado por
meio de vínculos não tradicionais (isto é, em alguma medida informais, constituídos nos
bastidores da política). Foi o que o sociólogo e ex-presidente da República, Fernando
Henrique Cardoso, definiu como anéis burocráticos.6 Abordaremos com mais atenção essas
dependência de instituições acaba por fazer o neodesenvolvimentismo herdar um arcabouço institucional neoliberal e, se no plano discursivo prefere se esquivar dessa imputação, objetivamente guarda importantes semelhanças com ele.
5 O termo realpolitik é uma palavra em alemão que literalmente traduzida significa “política real”. Foi usada pela primeira vez por Ludwig von Rochau, escritor e político alemão do século XIX para designar a concepção de Meternich, no plano das relações internacionais, para o equilíbrio de forças entre as principais nações imperialistas europeias após o Congresso de Viena (ROCHAU: 1853). O autor descreve o termo em Grundsätze der Realpolitik angewendet auf die staatlichen Zustände Deutschlands, de 1853, como o estudo dos poderes que modelam, mantêm e alteram o Estado e a base de todo o discernimento político, e leva à compreensão que a lei do poder governa o mundo das nações da mesma maneira como a lei da gravidade governa o mundo físico. Desta forma, o termo passou a se referir, de modo geral, à política real, mais ao realismo e pragmatismo político e menos à ideologia política, com os constrangimentos das forças organizadas, das alianças e correlações pragmáticas, e dos modos de fazer política limitado pelos contextos históricos e fatores domésticos e externos.
6 O termo anéis burocráticos foi cunhado pela primeira vez por Fernando Henrique Cardoso para analisar a
características em seguida. Por ora, nos é suficiente dizer que o neodesenvolvimentismo é
uma espécie híbrida, que bebe tanto na fonte novo-desenvolvimentista, quanto bebe, seja a
contragosto ou em benefício de interesses reais do jogo político, o amargo xarope do
receituário neoliberal do Consenso de Washington. O termo neodesenvolvimentista, assim, é o
mais adequado para a crítica, pois reflete a preocupação com o que de fato tem cada vez mais
se constituído enquanto modelo econômico. E é esse modelo o que ocupa especial atenção
deste trabalho.
1.2. Historicizando o neodesenvolvimentismo. Notas e inflexões políticas.
O neodesenvolvimentismo, como apontado, é um sistema híbrido – que adota
características da convenção novo-desenvolvimentista e da convenção neoliberal – e um
sistema em construção, posto que experimentado recentemente pelos governos petistas, em
um certo processo de transformação conjuntural no Brasil contemporâneo. Portanto, sua
notícia histórica é imprescindível para que entendamos sua ascensão, suas características, o
que de fato herdou como espólio do desenvolvimento capitalista brasileiro, e as principais
razões de sua implementação.
Ao adotar uma perspectiva que relaciona intimamente o desenvolvimento do país com
o desenvolvimento econômico, o neodesenvolvimentismo concebe a dinamização e
diversificação das atividades econômicas como fortes aliadas a uma segunda transformação,
de caráter social, isto é, através da diminuição, ainda que superficial, de profundas
desigualdades e barreiras historicamente constituídas.
Para a análise do atual estágio da política econômica brasileira, escolhemos apresentar
uma brevíssima resenha do processo de modernização econômica no Brasil, uma vez que as
condições econômicas do presente são informadas por um passado, que alicerçou as bases
fundamentais do capitalismo e da disputa de projetos políticos ao seu redor.
Nesse passado, a industrialização, se poderia contribuir a um salto do desenvolvimento
do país – segundo as visões predominantes em diferentes épocas – jamais conseguiu saldar a
dívida histórica da colonização e não foi capaz de promover profundas e radicais
transformações das imensas desigualdades na sociedade brasileira. O Brasil, no século XX,
organização política da sociedade brasileira com relação ao Estado planejador e desenvolvimentista. O conceito serve para designar as ligações entre a burocracia estatal, (seja do governo ou de suas empresas públicas) com a burocracia corporativa do setor privado: empresas, sindicatos, agências nacionais e internacionais. Essas ligações extrapolariam as diretrizes do próprio Estado. (CARDOSO, 1972)
profissionais liberais, e mesmo cafeicultores em crise com a política de câmbio fixo e
desvalorização da atividade, a “Revolução de 1930” foi responsável por profundas mudanças
na economia brasileira (SKIDMORE, 2010).
1930 não apenas inaugura o ingresso do Brasil na modernização capitalista, por meio
de uma acelerada industrialização, através do Modelo de Substituição de Importações - MSI,
mas também dá o pontapé inicial a um projeto de desenvolvimento nacionalista, uma vez que
a industrialização foi fortemente incentivada e promovida pelas mãos do Estado, e estava
voltada ao aumento de demanda interna e estímulo ao fortalecimento de mercado. Esse
processo de industrialização é caracterizado pelo etapismo, que, em fases sequenciais de
diversificação produtiva, aos poucos dinamiza a produção industrial, partindo da produção de
bens de consumo não duráveis, seguindo para os bens de consumo duráveis, prosseguindo aos
bens intermediários até que sejam produzidos bens de capital.
O que se inaugura com o governo de Getúlio Vargas, a partir de 1930, é uma forte
participação do Estado no domínio econômico, que se justifica pela necessidade de recuperar
o atraso histórico da economia brasileira, tornando-a dinâmica, expandindo seu mercado
interno e criando condições estruturais para investimento e poupança. Essa forma estatal de
intervenção na economia mudaria aos sabores das intenções políticas, e formaria os ciclos
ideológicos e estruturantes do que a literatura resolveu chamar de desenvolvimentismo: “um
projeto de industrialização integral como via de superação do subdesenvolvimento, conduzido
pelo Estado”. (BIELSCHOWSKY, 2010, p. 15). Conforme aponta Celso Furtado, a crise de
1929 faz, portanto, o “centro dinâmico da economia brasileira se deslocar do mercado exterior
para o mercado interno”. (FURTADO, 2007, p. 278). E, ainda mais, a crise de 1929, que
resultou na chamada Revolução de 1930, não só desloca o centro dinâmico do mercado
externo para o interno, como também inicia com maior vigor o processo de deslocamento do
centro dinâmico da economia brasileira: do campo para a cidade.
A maior participação do Estado na vida econômica do país – que desenha as formas
principais do desenvolvimentismo que se organizou no Brasil – a partir de 1930, é verificada
através de seu desempenho em quatro funções principais: a adequação de um arcabouço legal-
institucional à indústria, com a adoção de uma legislação trabalhista reguladora do mercado
de trabalho urbano em expansão, e de uma burocracia estatal e de agências para gestão do
processo de desenvolvimento (DASP7, BNDE8, CTEF9, etc.). Além disso, a criação de uma
7 O Departamento Administrativo do Serviço Público foi um órgão criado pelo Decreto-lei nº 579, de 30 de
julho de 1938, portanto, posteriormente à Constituição de 1937, que inaugura o Estado-Novo varguista e tinha como objetivos organizar e a racionalizar o serviço público no país, e proceder a uma ampla reforma
infraestrutura básica que aliviasse os pontos de estrangulamento para escoamento da
produção, o fornecimento de insumos básicos necessários ao processo de industrialização,
com a criação de empresas estatais que oferecessem aço, minério e petróleo, por exemplo, à
demanda crescente do parque industrial nascente (Companhia Siderúrgica Nacional,
Companhia Vale do Rio Doce e Petrobrás), e o financiamento da economia, por meio de
bancos públicos, como o Banco do Brasil e o Banco Nacional do Desenvolvimento
Econômico - BNDE (GREMAUD et. al., 2011). Curiosamente, apesar de temporalmente
localizadas, essas formas de atuação não são menos frequentes em tempos mais recentes, em
que o papel da legislação ainda é importante para “destravar” investimentos e regular setores
da economia, os investimentos públicos em sistemas de concessões para obras de
infraestrutura são exigidos por setores produtivos ao governo, o papel da Petrobrás na
intervenção de estoques e controle de preços do mercado interno de combustíveis ainda é
visível, e mesmo Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil e BNDES constituem
importantes fontes de financiamento de atividades produtivas, como a pequena agricultura
familiar, a habitação ou a expansão comercial de empresas. Em suma, as medidas iniciadas
com Vargas, que inauguravam a nova fase da economia brasileira, voltada ao centro dinâmico
de seu mercado interno, constituem marcos da própria ação organizadora do Estado, enquanto
força motriz da formação do capitalismo industrial no Brasil, influenciando ações
governamentais também de anos mais tarde.
A participação do Estado na economia fica clara também nos anos que se seguiram a
Vargas. Sucessivas intervenções, que oscilavam entre um caráter mais ortodoxo e certa
heterodoxia da equação Estado-mercado, apontavam os rumos conjunturais do processo de
modernização brasileiro. O rigor no controle inflacionário e nos preceitos liberais propagados
administrativa do Estado.
8 O BNDE, inicialmente Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, foi criado pela Lei nº 1.628, de 20 de junho de 1952, como uma autarquia federal vinculada ao Ministério da Fazenda, no governo de Getúlio Vargas pós-Estado Novo, em seu mandato eleito iniciado em 1951. Em 1971 a autarquia tornou-se empresa pública, ampliando sua capacidade de captação e aplicação de recursos, desempenhando um papel fundamental no processo de substituição de importações, e canalizando seus investimentos em setores de bens de capital e insumos básicos. O Banco passou a ser designado Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social em 1982, por meio do Decreto nº 1.940, de 25 de maio. Sua trajetória institucional revela as disputas dos modelos econômicos brasileiros , desde sua criação. O Banco foi responsável pela operacionalização técnica do processo de privatizações iniciado em 1991, com o Plano Nacional de Desestatização. Passou a vincular-se ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Sua principal função é fomentar as atividades produtivas do país, por meio da captação de recursos e oferta de crédito a preços baixos a diferentes setores da economia, com incentivo às exportações, o fortalecimento do mercado de capitais e a promoção da competitividade da economia brasileira.
9 O Conselho Técnico de Economia e Finanças foi um órgão técnico consultivo do Ministério da Fazenda, criado em 1937, com o objetivo de reunir informações sobre a tributação, situação financeira e outras informações, como legislação bancária e monetária, incentivos fiscais e política energética, das diferentes unidades da federação, no processo de centralização administrativa promovido no Estado-Novo varguista.
pelos acordos de Bretton-Woods10 foram marcas do governo Dutra. (1946-1950). Esse
governo combinou, em seu começo, taxa de câmbio sobrevalorizada, controle de importações
e contrações no investimento público, com expansão creditícia e maior frouxidão monetária,
em seu final, para citarmos um exemplo.
Merece destaque também, na formação econômica de tom desenvolvimentista, o
governo de Juscelino Kubitscheck (1956 – 1961), que lançou o Plano de Metas. Tal plano foi
concebido sob a forma pragmática de uma economia mista, pois visava o crescimento tanto do
setor público quanto do setor privado, em um mote de extremo otimismo, progressista, de
produzir um verdadeiro salto da economia brasileira: cinquenta anos em cinco. Tendo
angariado apoio político de classes empresariais e de trabalhadores por meio de reajustes
salariais, e promovido investimentos em infraestrutura – com a mudança do eixo prioritário de
transportes, do ferroviário para o rodoviário – o Plano de Metas de Kubitscheck merece
destaque no processo de industrialização brasileiro, por adotar uma política de maior
endividamento externo, uma vez que admitiu investimentos estrangeiros sem cobertura
cambial, e incentivou isenções fiscais que estimularam a instalação de empresas estrangeiras
no país. (GREMAUD et. al., 2011). Tal período foi também marcado por forte crescimento
econômico, aumento de inflação e concentração de renda, e profundas mudanças estruturais,
com a expansão da atividade industrial em taxas de crescimento superiores a 10 porcento ao
ano. (GREMAUD et. al., 2011).
Contudo, uma conta cara foi cobrada anos mais tarde. O MSI apresentava limites
bastante claros: além de se caracterizar pela produção de forte concentração de renda,
apresentava crescimento marginal de demandas por novos equipamentos e tecnologias,
acompanhado de lucros cada vez menores resultantes do incremento produtivo: o mercado
interno não crescia no mesmo ritmo das expectativas dos setores industriais. A inflação
crescente preocupava setores empresariais, que viram também os estímulos estatais
viabilizadores de investimentos serem sufocados ou inibidos no começo da década de
sessenta, após o Plano de Metas. Sob tais condições, o populismo brasileiro11 que gravitava ao
10 Os Acordos de Bretton Woods designam disposições ajustadas por países aliados em julho de 1944, na cidade
de Bretton-Woods, estado de New Hampshire, Estados Unidos. Essas tratativas tinham por objetivo estabelecer diretrizes para a economia mundial no pós-guerra. São precisamente esses acordos que fazem surgir um sistema financeiro de caráter mundial, beneficiando fortemente a economia estadunidense, ao adotar o dólar como moeda padrão para transações correntes. Os EUA assumiam assim um importante papel no sistema de distribuição de capitais na economia mundial.
11 Ao usarmos o termo populismo, referimo-nos à forte base de sustentação popular de governos chefiados por lideranças carismáticas, que promoveram medidas reformadoras e geralmente expansionistas da renda de trabalhadores, com importantes expoentes: Getúlio Vargas, Juscelino Kubitscheck e o próprio João Goulart são presidentes marcados por esse apoio popular.
redor dessa matriz desenvolvimentista encontrava-se, na primeira metade da década de
sessenta, em estágio terminal. Caracterizava-se pela elevada inflação, o alto endividamento
externo e também pela limitação de remessas de lucros para o exterior12.
Esta crise encerrou o primeiro ciclo de formação do desenvolvimentismo brasileiro,
que se caracterizou pela definição estatal da expansão de setores específicos da economia,
pela captação de recursos no exterior, e pela promoção de investimentos estratégicos em áreas
consideradas prioritárias, como a indústria de base – siderúrgica, de extração e refino de
petróleo, e mineração, por exemplo. Ficou também clara, nesse período, a dificuldade de
formação de uma burguesia industrial autonomista, capaz de liderar o processo de
industrialização, centrado fortemente no Estado.
A crise sinalizava um profundo nível de tensão que se colocava, relativa a interesses
em disputa no processo de modernização brasileiro: de um lado, crescia a preocupação sobre
como retomar o rápido crescimento econômico e destinar os benefícios desse crescimento a
uma fatia cada vez maior da população brasileira, além de equilibrar industrialização e
agricultura, as fontes de capital (estrangeiro, público e privado), a correção de desequilíbrios
regionais e a distribuição de renda quanto a salários, tributos e políticas de bem-estar, além de
como alcançar tais objetivos com uma inflação controlada (SKIDMORE, 2010). De outro
lado, uma tensão cada vez maior de setores tradicionais e novos, sobre os passos que eram
dados nessa direção, e um alarmismo generalizado sobre o conteúdo e natureza de reformas
empreendidas nesse sentido.
Três assuntos figuravam-se como centrais na discussão da crise que o modelo
apresentava: “como sustentar a continuidade do processo de crescimento no Brasil; qual seria
a exata participação do capital estrangeiro nesse processo; e de que forma a industrialização
poderia reverter a miséria urbana em crescimento”. (BIELSCHOWSKY, 2010, p. 19). O
historiador brasilianista Thomas Skidmore (2010, pp. 360-365) apresenta um cenário bastante
esclarecedor sobre esse período: Nos vinte anos transcorridos desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o Brasil se revezara entre a expansão e a tentativa de estabilização. Depois da exaustão das reservas de moeda estrangeira em 1947, o país incorrera num crescente endividamento externo. O financiamento estrangeiro era um resultado previsível e necessário do impulso de industrialização. Ainda assim, adiava uma parte do custo do desenvolvimento, e representava um fardo crescente, que se transformou em desvantagem política cada vez maior para sucessivos governos. A taxa de crescimento econômico continuou alta, uma das mais altas do mundo até 1962, mas o amplo uso de financiamento estrangeiro significava que uma percentagem cada vez
12 Por meio das reformas de base implementadas por João Goulart, em especial através do Decreto 53.451, de
20 de janeiro de 1964, que garantia à Superintendência de Moeda e de Crédito – SUMOC o controle de todas as operações de remessa de lucros, evitando a evasão de divisas e o descontrole cambial.
maior das já escassas reservas estrangeiras tinha de ser usada para pagar os juros. (…) Ao lado do pesado endividamento, veio o crescente sentimento de nacionalismo político (…) atitude que (…) era fomentada pela esquerda organizada, culpava a incompreensão e a má vontade estrangeiras pelas dificuldades do Brasil para manter o desenvolvimento econômico. Como acontecia com tantos países em desenvolvimento, uma mobilização total de recursos foi o que faltou claramente ao Brasil durante seu impulso desenvolvimentista da década de 1950. (…) O fato é que a necessidade de escolhas impopulares e dolorosas em estratégia de política econômica impôs sérios limites ao potencial de liderança carismática ou populista (…) [e] a incapacidade de controlar a elite política no meio de uma controvertidíssima crise de formulação econômica.
Uma conta cara foi cobrada à organização política brasileira, anos mais tarde, muito
em razão das controvérsias da política econômica brasileira do período. Tal conta foi
representada pelos anos de chumbo sucedâneos, e o período autoritário estendido até 1985,
com a ditadura civil-militar. Para se ter uma ideia, no ano imediatamente antecedente ao golpe
de 1964, a economia brasileira apresentou um crescimento muito pequeno, de apenas 0,6%, e
retração da produção industrial (GREMAUD, 2011), o que se mostrava completamente díspar
aos anos precedentes. Os setores produtivos reagiam, vociferantes, às tentativas de reformas
de base propostas por João Goulart, que pretendia constituir um trabalhismo progressista,
através da ampliação de direitos sociais a trabalhadores do campo e da cidade. O abalo
conjuntural significava crise para esses setores, e deveu-se, em grande medida, a uma
insatisfação de lideranças de setores empresariais e à trajetória de contribuição do Estado no
processo de modernização e crescimento econômico. Ou seja, se a economia apresentava
sinais de instabilidade e debilidade, o que parecia também instável e débil, a esses setores,
também era o Estado, ou o governo que o ocupava. Portanto, era necessária uma incisiva
alteração da ordem institucional, segundo essa visão.
Num contexto de crise do populismo, tentativas de reformas de base por João Goulart,
pressões externas apoiadas no discurso anticomunista e antiesquerdista da guerra fria e a
instabilidade política e institucional interna, além de uma sensível adesão de parcelas da
sociedade, como algumas classes médias urbanas, parte importante do empresariado brasileiro
viu seus interesses contemplados pelo regime inaugurado com o Golpe Militar de 1964, tendo
a ele oferecido seu apoio e financiamento, assim como à ditadura que com ele foi instaurada.
1.2.2. O segundo ciclo de formação do desenvolvimentismo brasileiro: 1964-1980 O Golpe de 1964 marca o início de um novo período da história econômica brasileira.
Trata-se de um corte no desenvolvimentismo que vinha se apresentando até então, no qual o
poderoso quadro burotecnocrata que favoreceria a constituição de tais laços, por outro,
implicava também formas de favorecimento insulado, privilegiado e setorial da economia.
Nesse sentido, discordamos da abordagem que Schneider (SCHNEIDER, 1994) apresenta, de
que o êxito da política industrial brasileira no período teria relação direta com sua formulação
tecnocrática legal-racional, como fizeram Roberto Campos e Mário Henrique Simonsen, em
defesa de uma política econômica despolitizada, marcadamente técnica e por isso mesmo
superior ao que havia se verificado até 1964. Essa forma de interpretação da política
econômica é errônea, ao afirmar que a política seria algo externo à burocracia, quando na
verdade o que acontece é precisamente a manifestação de escolhas contextualizadas, que
avaliam estratégias distintas de atuação, e que constituem, nesse período, um fazer político de
agentes estatais, entrelaçados com os setores produtivos.
O segundo ciclo desenvolvimentista, iniciado em 1964, estende-se deste modo até
1980, ainda marcado por uma forte intervenção e planejamento estatal na economia, com a
finalidade de industrialização do país. O período consolida um desenvolvimentismo
autoritário, em que o Brasil alcançou o que se chamou de “milagre brasileiro”, apresentando
expressivas taxas de crescimento, superiores a oito porcento ao ano, forte aceleração de
investimentos, execução de grandes obras e projetos que beneficiaram setores específicos da
economia (construtoras e bancos, p. ex.), controle de inflação e crescimento dos níveis de
emprego e renda, considerados pelos governos militares como o caminho para a melhoria das
condições de vida da população. A ideia-força que movia a política econômica era crescer a
riqueza do país, ou “fazer o bolo crescer” para então poder reparti-lo, nos termos usados por
Antônio Delfim Netto, Ministro da Fazenda (1967-1974) e do Planejamento (1979-1985) no
período da ditadura civil-militar.
O período difere-se do primeiro ciclo de formação do desenvolvimentismo brasileiro,
na medida em que, além do mencionado nível de interação entre burotecnocracia e
empresariado, fez surgirem divergências teóricas importantes, apresentadas por uma geração
de economistas13, ao modelo autoritário. O modelo autoritário mostrava-se incapaz de
equacionar os graves problemas sociais que vinham acompanhando a acelerada
industrialização e urbanização do país, desassociada da distribuição de renda.
Até meados da década de setenta, esse modelo se consolida num cenário de extremo
13 Maria da Conceição Tavares, Celso Furtado, José Serra, Edmar Bacha, Antônio Carlos Lessa e outros são
expoentes dessa crítica, que caracterizava a expansão do modelo militar como socialmente perversa, com trágicos saldos de concentração de renda e desigualdade social. (BIELSCHOWSKY, 2006, p. 47).
otimismo, tendo sido colapsado com a primeira crise do petróleo em 197314 e se aprofundado
com o segundo choque, em 197915. As crises do petróleo representaram o momento mais
delicado da internacionalização econômica brasileira: as vulnerabilidades externas
ameaçavam o modelo de incentivos à economia nacional. Essa fase sinalizou, à economia do
país, e ao próprio modelo desenvolvimentista em vigor, sua crise e decadência, anunciando
também a queda livre da organização autoritária do Estado brasileiro, e uma nova lógica de
projeto nacional.
Para uma breve comparação entre os dois primeiros ciclos de formação do
desenvolvimentismo brasileiro, sugerimos observar a figura 1 abaixo:
Figura 1: Quadro comparativo dos aspectos gerais da economia brasileira entre os dois
ciclos do desenvolvimentismo
Primeiro Ciclo do Desenvolvimentismo (1930 -
1964)
Segundo Ciclo do Desenvolvimentismo (1964-1985)
Endividamento externo
Sim Sim
Controle inflacionário
Baixo, oscilando mais em direção ao aumento das
taxas de inflação
Alto, por meio do PAEG, Plano Trienal, minidesvalorizações cambiais, inflação reprimida no governo Geisel; correção monetária até que a inflação atingisse
os 10 porcento ao ano
Taxas médias de crescimento
5,6% a.a. 6,29% a.a.16
Investimento em setores da economia
Sobretudo bens intermediários (aço,
petróleo, derivados) e bens de produção (maquinário,
instalação de indústrias automotivas, etc.)
Bens de produção, bens de consumo,
insumos básicos, etc.
Endividamento Sim Sim
14 O primeiro choque do petróleo refere-se ao boicote internacional de fornecimento de petróleo pelos países
produtores da Organização dos Países Exportadores de Petróleo – OPEP, cartel formado sobretudo por nações do Oriente Médio de formação cultural islâmica. Tal boicote se deu em resposta ao apoio estadunidense à permanência do Estado de Israel ao longo da guerra do Yom Kippur, deflagrada em outubro de 1973, com o contra ataque de Síria e Egito contra o estado israelense.
15 O segundo choque do petróleo ocorreu com a deposição do Xá da Pérsia, Reza Palehvi em 1979, a ascensão da República Islâmica do Irã com o movimento revolucionário e o conflito desencadeado com o Iraque, em 1980, o que fez reduzir drasticamente a oferta internacional do produto por dois dos principais produtores mundiais.
16 Fonte: Anuário estatístico do Brasil. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE.
1.2.3 A decadência do modelo desenvolvimentista e a ascensão do neoliberalismo
Os sinais de debilitação econômica vieram com força após os choques do petróleo. A
reorganização do capitalismo em nível internacional e sua acelerada financeirização foram
responsáveis por desmontar paulatinamente a forma nacional-desenvolvimentista de
organização da economia.
A década de 1980 foi batizada como “década perdida”17. Essa designação representa,
em grande medida, o que em termos econômicos os anos oitenta significaram para o Brasil:
baixos índices de crescimento, inflação fora do controle e uma redução importante da
capacidade de investimento, acompanhada de uma crise no balanço de pagamentos do país,
incapaz de reter reservas de dólares.
As crises do petróleo na década de 70 assinalavam o grau de vulnerabilidade externa
da economia brasileira. Ainda que o processo de desenvolvimento predecessor, no país, tenha
assumido forte caráter nacional, alicerçado no crescimento do mercado doméstico, seu
financiamento dependia diretamente dos mercados externos e de investimentos estrangeiros,
para que pudesse proceder à substituição de importações e aos grandes projetos e obras de
infraestrutura (como Itaipu, Ponte Rio-Niterói, a Transamazônica, por exemplo).
Esta dependência de mercados e investimentos estrangeiros foi drasticamente
ameaçada com as crises de petróleo e a política restritiva de Ronald Reagan, presidente dos
Estados Unidos. O FED – Federal Reserve System, autoridade monetária estadunidense,
elevou a taxa de juros a patamares altos, a fim de absorver a liquidez mundial, num período
de aperto de crédito nos mercados. Esse receituário era difundido pelos chicago boys, grupo
de economistas liberais que acederam aos postos-chaves do governo Reagan e que viam o
problema da economia daquele país no excesso de intervenção e tributos do governo.
Os anos 80 no Brasil foram, nesse contexto, voltados à contenção da demanda
agregada, desvalorização cambial do Cruzeiro, elevação de preços de derivados do petróleo, 17 A década perdida é um termo utilizado para fazer referência à estagnação econômica da economia da
América Latina ao longo da década de 1980, quando se verificou de forma mais ou menos generalizada uma diminuição considerável da produção industrial e um menor crescimento da economia como um todo, muito em razão dos choques do petróleo de fins da década de 1970. Essa década representou o esgotamento do ciclo desenvolvimentista brasileiro, e o fim do milagre verificado na década de 1970.
contenção de preços públicos, controle de juros e subvencionamento à exportação, por meio
dos reflexos da reedição do Plano Nacional de Desenvolvimento – PND II, e de políticas que
marcariam uma profunda crise fiscal do Estado, sobretudo mediante a disponibilização de
títulos da dívida pública no mercado interno a altos juros, com o intuito de transformar a
dívida externa em dívida interna.18
À crise que se figurava na economia brasileira somava-se um contexto de franca
decadência dos países socialistas, o que justificava cada vez menos a existência de governos
autoritários nos países latino-americanos, apoiados por Washington para conter uma suposta
“ameaça vermelha” na região. De igual modo, a linha política de abrandamento do regime
militar, que sucedeu os anos Médici, veio sinalizar a abertura gradual do regime,
acompanhada do recrudescimento das mobilizações e greves sindicais. Curiosamente, a
ruptura certeira com o regime militar e a adoção de um novo quadro político-institucional, em
um contexto que clamava por eleições diretas, por democracia e maior participação popular,
que desembocou na promulgação da Constituição de 1988, é um contexto também marcado
por uma importante crise econômica.
Deste modo, revisitar a história política e institucional brasileira do século XX nos faz
observar que as rupturas político-institucionais brasileiras desse mesmo século XX (1930,
1964, 1985) guardam importante relação com rupturas dos modos de estruturação,
organização e hegemonia do capitalismo no país, sempre informado por condicionantes
externas. Essa constatação diz respeito a rearranjos institucionais reforçados, apoiados e
conduzidos por elites políticas e econômicas diretamente alicerçadas nas transformações
internacionais do sistema capitalista.
Assim, 1930 remete-se ao crack de Nova York em 1929, à crise da economia cafeeira
e da política das controlada por oligarquias rurais locais, ao impulso da industrialização, e à
necessidade de sua organização pelo Estado. 1964 guarda íntima relação com 1959 e a
revolução cubana, e o receio norte-americano de que novos países americanos vivenciassem
regimes socialistas reais, aliado a certa comoção das elites políticas e econômicas, com o
estado intestinal do Brasil, o cenário de crise e baixo desempenho da economia nos anos
Goulart, e seu reformismo distributivista. 1985, por sua vez, refere-se ao esgotamento do ciclo 18 Referimo-nos aqui à críse da dívida brasileira, processo que resulta na moratória em 1987, e à recessão
econômica que se seguiu. Na década de 1970 o capitalismo mundial começa a dar sinais de um impressionante giro. Trata-se do processo de “financeirização”, no qual a acumulação ocorre segundo e em razão da lógica da valorização financeira. Os choques do petróleo e a política de juros americana, conhecida como reaganomics, acabaram levando também a um impressionante desequilíbrio das contas externas brasileiras, à dificuldade de financiamento do desenvolvimento e a necessidade de instrumentos auxiliares para garantir reservas ao país. Com isso, a rolagem da dívida e consequentes resgates e débitos junto ao Fundo Monetário Internacional passam a fazer parte do cenário econômico brasileiro.
desenvolvimentista dependente do capital internacional, que ancorava as condições de
industrialização e expansão econômica nas reservas e nos investimentos externos, e que foi
enfim colapsado com os choques do petróleo de 1973 e 1979 e a extrema aceleração da
financeirização capitalista iniciada em nível global. O modelo de substituição de importações
sinalizava, assim, seu crepúsculo.
O cenário de rearranjo institucional, diante do colapso do desenvolvimentismo, fez
sucederem, no Brasil, entre 1986 e 1988, distintos planos econômicos que tinham por objetivo
contornar a situação inflacionária galopante, represada no período autoritário pelo arrocho
salarial e pela política de emissão de títulos do Tesouro Nacional para financiamento de gastos
públicos. A segunda metade da década de oitenta assinala uma busca frenética de planos
econômicos que faziam uso de instrumentos como o aumento de juros, a diminuição de gastos
públicos, a desindexação da economia e o congelamento de preços: Plano Cruzado, Plano
Bresser, e Plano Verão, para tentar contornar a inflação descontrolada. Mostraram-se
fracassados, apesar de o Plano Cruzado ter obtido relativo êxito no controle da inflação em
seu período inicial. Incapazes de superar o ciclo de esgotamento do desenvolvimentismo
brasileiro, tais planos não removeram dos anos oitenta a alcunha de “década perdida”19, em
que se verificou uma forte estagnação econômica do país.
O período em que a economia brasileira sinalizava sua crise existencial foi renovado
por um contexto em que a democracia, as eleições diretas e a assembleia constituinte
representariam os anseios por uma nova era, de reconhecimento de direitos de cidadania e dos
fundamentos constitutivos de uma sociedade livre, justa e solidária. Foi essa guinada
institucional que também abriu certa oportunidade política para uma disputa do controle
hegemônico do país. As forças organizativas do neoliberalismo – classes empresariais que
vinham se modernizando, aliadas a setores parceiros de grupos empresariais transnacionais –
operaram então com grande vigor nessa disputa, num movimento que vinha apresentando
claros sinais de ascensão, sobretudo no plano internacional.
Afinal, após duas décadas de prosperidade e crescimento econômico nada desprezível
(1960 e 1970) o capitalismo começava a sinalizar a crise cíclica não apenas no Brasil, mas
também em nível mundial. Conforme assinala Paulani (2010, p. 37):
19 Apesar de manifestada como crise inicialmente de endividamento externo, a crise econômica nos anos oitenta
se revela de forma abrangente e significativa, se analisarmos alguns dados sobre a economia brasileira: o PIB per capita, que de 1970 a 1980 vinha se expandindo à taxa média de 6,1% ao ano, diminui 13% entre 1980 e 1983, oscilando entre altos e baixos até 1989. A renda per capita caiu 0,6% entre 1980 e 1989. A participação econômica de trabalhadores sem vínculo empregatício na economia sobe de 41,9 para 47,2% no mesmo período (1980-1983), enquanto o salário-mínimo sofre sucessivas reduções, passando de 100 dólares no começo da década de 1980, a 47,3 dólares em 1992. (MEDEIROS, 1993; IBGE,1993)
Um dos fatores mais importantes que permitiu a ascensão dos neoliberais foi a desaceleração cíclica, acontecimento normal depois de duas décadas de forte crescimento econômico, que vem acompanhado de grande volume de investimentos. Em determinada hora, a demanda por investimentos fica suprida e há uma desaceleração, o que é natural. O investimento não acaba, mas cresce a taxas menores, e essa variável reduz o crescimento econômico.
Foi nesse contexto de depressão econômica na década de 80 que moedas foram
regularmente desvalorizadas, ou realinhadas com sistemas monetários de conversão, e muitas
restrições relativas a trocas comerciais e movimentação financeira para o exterior foram
reduzidas. Os instrumentos de política neoliberal foram também direcionados às economias
domésticas de muitos países. Em muitos casos, a desregulamentação atingiu ainda os
mercados de trabalho, geralmente envolvendo a dessindicalização e a abolição de leis de
salário-mínimo, de modo a restringir o consumo das famílias e direcionar o excedente ao
investimento privado, em um modelo trickle-down, isto é, um modelo que deposita forte
crença no fato de que benefícios e isenções fiscais concedidas a setores empresariais e de
negócios, com maior renda e poder aquisitivo, beneficiariam também as classes sociais menos
favorecidas, numa espécie de efeito cascata. Além disso, outras medidas complementares iam
sendo implementadas, caracterizando o projeto neoliberal, como aquelas direcionadas à
redução do gasto público, especialmente através da privatização de empresas estatais e da
redução do tamanho da burocracia, dos investimentos em educação, assistência social, saúde,
previdência social, transporte e sistema de comunicações. (PRESTON, 1996).
O neoliberalismo não foi, nessas condições, uma experiência inteiramente nova no
Brasil, ou algo completamente aleatório, que abateu sobre a organização do processo de
desenvolvimento capitalista no país de maneira fortuita. Muito antes pelo contrário, sua
existência no Brasil foi condicionada por importantes experiências prévias, em governos em
outros contextos, como o de Margaret Thatcher, no Reino Unido (1979-1990), de Ronald
Reagan, nos Estados Unidos (1981-1989), e de Augusto Pinochet (1973-1990), no Chile. Tais
governos se caracterizaram, de diferentes maneiras e métodos, por adotar os preceitos mais
significativos do cânone neoliberal, que encontrava na escola austríaca sua matriz teórica
fundante: Carl Menger, Friedrich Hayek e Ludwig von Mises, autores que revisitaram o
liberalismo econômico clássico em fins do século XIX e início do século XX e, em alguma
medida inspiraram, anos mais tarde, o trabalho intelectual de Milton Friedman, em Chicago.
Friedman foi um importante contribuidor da escola monetarista. Para ele, a estabilidade das
economias capitalistas dependia de instrumentos monetários, como o controle do volume de
economicismo enquanto discurso, que coloca o “capital financeiro no volante”, baliza as rodas
e os anseios de elites (econômicas e políticas) e passa a ser cotidianamente parte dos discursos
de veículos midiáticos, em compromisso com essa nova lógica que passa a organizar o
quotidiano da política e da economia mundial. As instituições que participam dessa reunião
reforçam, no plano internacional, a ideologia de supremacia dos mercados sobre o Estado, que
passa a ser visto como um problema, devendo ser reduzido a um espaço de atuação mínimo
necessário.
De forma bastante resumida, podemos destacar os seguintes apontamentos
(exigências) resultantes da reunião do Consenso de Washington, que consideram necessário
esse novo impulso pela eliminação de barreiras e restrições ao processo de mundialização
financeira do capital: abertura comercial, mediante a redução de tarifas alfandegárias em nível
mundial, a privatização de estatais, a redução de gastos públicos, a disciplina fiscal (enquanto
ferramenta de controle inflacionário, evitando o expansionismo), a reforma tributária, que
reduza e otimize os impostos sobre produção e circulação de bens e serviços, sobretudo os
serviços bancários e financeiros, a desregulamentação trabalhista (que supostamente tenderia
a favorecer a contratação), o estímulo a investimentos estrangeiros diretos (eliminando
barreiras à instalação de filiais de multinacionais e as restrições para o investimento de
capitais), e a prática de taxas de juros de mercado e câmbio também de mercado, associados
diretamente às intervenções das autoridades monetárias.
O neoliberalismo ganha força ao longo dos anos, mas suas origens remontam a um
processo iniciado com a crise do petróleo nos anos setenta. Nas palavras de Harvey (2011, p.
16), o neoliberalismo: Assumiu a retórica da liberdade individual, autonomia, liberdade pessoal e as virtudes da privatização, livre-mercado e livre-comércio, legitimou políticas draconianas destinadas a restaurar e recompor o poder da classe capitalista.(...) Um dos princípios básicos pragmáticos que surgiu na década de 1980, por exemplo, foi o de que o poder do Estado deve proteger as instituições financeiras a todo custo. Esse princípio, que bateu de frente com o não intervencionismo que a teoria neoliberal prescreveu (…) de modo nu e cru, (...) era: privatizar os lucros e socializar os riscos.
Nessa esteira o Brasil caminhou ao longo da década de 1990. A redemocratização do
país, se por um lado significou a possibilidade de escolha direta dos representantes que
assumiriam o primeiro governo eleito democraticamente em 1989, por outro, abriu espaço
para a oportunidade política de que os setores das elites políticas e econômicas alinhados com
as diretrizes de Washington vissem atendidos seus anseios. Foi precisamente com o candidato
Fernando Collor de Mello que, após o pleito eleitoral de 1989, o país ingressou sua economia
Esse processo ficou bastante claro, na medida em que se verificaram: 1. o objetivo de
rompimento com a indexação econômica, por meio da redução da liquidez na economia, do
bloqueio de depósitos à vista, de fundos e também da poupança, 2. a promoção de uma
reforma administrativa e fiscal, que pressupunha a redução de subsídios, incentivos e isenções
e custos de funcionamento da máquina pública, a redução do custo de rolagem da dívida
pública e a promoção de programa de privatizações, e 3. A mudança do regime cambial fixo
para o flutuante e liberalização do comércio exterior, com redução das tarifas de importações,
conhecida como “abertura” do país às importações. (GREMAUD, 2011) Incapaz de controlar
a inflação mesmo com sua política forçosa de superávits fiscais, que veio acompanhada de
uma baixa arrecadação, o primeiro presidente eleito democraticamente após a ditadura foi
impedido de permanecer no exercício do mandato, após a série de denúncias sobre escândalos
de corrupção que o acompanharam.
Após o rápido mandato de Collor, o Brasil volta a reforçar os preceitos do Consenso
de Washington com os mandatos de Fernando Henrique Cardoso (1995-1998 e 1999-2002).
Com a missão de combater a inflação no país, o governo de Cardoso foi responsável por
articular um complexo ajuste para a estabilização monetária. O plano, batizado de Plano Real
e gestado no governo precedente (em que o vice-presidente Itamar Franco assumiu a cadeira
após o impedimento de Collor), enquanto Cardoso ocupou a pasta da Fazenda, iniciou-se com
um forte ajuste fiscal, cortando gastos em despesas de investimento e pessoal e aumento da
arrecadação, e também com a criação de imposto temporário sobre movimentações
financeiras. No plano discursivo, o presidente antecipou sua política econômica e
administrativa de forma bastante clara:
Que a própria complexidade da matriz produtiva implantada excluía novos avanços da industrialização por substituição de importações. Que a manutenção dos mesmos padrões de protecionismo e intervencionismo estatal que sufocava a concorrência necessária à eficiência econômica e distanciaria cada vez mais o Brasil do fluxo de inovações tecnológicas e gerenciais que revolucionavam a economia mundial. E que a abertura de um novo ciclo de desenvolvimento colocaria necessariamente na ordem do dia os temas da reforma do Estado e de um novo modo de inserção do País na economia internacional. (...) A remoção destes entulhos do velho modelo aumentará enormemente a eficiência global da economia brasileira. Reduzirá os custos das empresas. Reduzirá os custos da política econômica para o próprio governo, hoje sobrecarregado por subsídios e pela administração de sua parafernália regulatória. E redundará em preços finais mais baixos (...) O processo de privatização deve ser acelerado e estendido a outras atividades e empresas dos setores de energia, transporte, telecomunicações e mineração. (…) O próprio conceito de privatização deve ser ampliado: venda de empresas com controle acionário direto ou indireto da União; venda de participações acionárias, venda de ativos imobilizados, concessões de serviços públicos, incluindo a responsabilidade por novos investimentos, contratos de administração de serviços com empresas
privadas e terceirização de atividades (...) Bem ao contrário de ameaças à soberania do Estado, devemos aprender a ver as ONGs como organizações neo-governamentais. Formas inovadoras de articulação da sociedade civil com o Estado (…) descentralização e parceria com a comunidade, portanto, são as linhas mestras das ações do futuro governo no sentido de universalizar o acesso a serviços de saúde e a um ensino fundamental de boa qualidade. (CARDOSO, 1994, pp. 4-9) (grifos nossos)
O governo de Fernando Henrique, por menos que o próprio presidente aceite a
designação de neoliberal, foi marcado por uma diminuição sensível da participação do Estado
na execução de políticas públicas, redimensionando o papel da execução direta de serviços
públicos, e da intervenção estatal na esfera econômica, após sistemáticas reforma da
administração pública e reorganização da política econômica, consubstanciada na elaboração
do plano Real e em sua manutenção nos anos seguintes. Segundo o ex-presidente:
Por motivos de luta político-ideológica, assim como por pouca informação, muita gente quer confundir ou confunde esta nova postura com o antigo “neo-liberalismo”. Mas a verdade é que se trata da reconstrução do Estado para ser capaz de, respeitadas as limitações do mercado, atender com não menor devoção aos anseios da solidariedade e de novas formas de atuação. Nunca, porém, de destruição ou de minimização do Estado e da atuação dos governos. (CARDOSO, 1998, p. 7)
A implementação da agenda neoliberal no Brasil foi um processo conduzido ao longo
da década de 1990: a necessidade de atração de investimentos estrangeiros e constituição de
reservas monetárias significavam uma inserção na nova ordem de funcionamento do
capitalismo em nível internacional. Nesta ordem, as políticas públicas ficam constrangidas e
dificultadas, se não houver capacidade de investimento. A dívida pública e sua possibilidade
de ser rolada são também poderosos instrumentos que financiam a capacidade de
investimento do Estado (apesar de não novos), que coloca seus títulos no mercado para que os
investidores possam negociá-los. A confiança nesses títulos e papéis do governo, conforme os
níveis de reservas cambiais e taxas de retorno – mensurada pelas taxas de juros da dívida
pública – garantem a permanência de governos e sua credibilidade internacional, num
poderoso jogo de xadrez das nações na atualidade. Agências de risco passam a traduzir esse
nível de confiança e a operar também nesse cenário. A autoridade monetária recorre ao
aumento frequente das taxas de juros, como fica sinalizado no período do governo FHC, e a
equipe econômica composta por Pedro Malan, Ministro da Fazenda, e Gustavo Franco e
Armínio Fraga, no Banco Central.
As medidas adotadas pelo governo de Fernando Henrique Cardoso podem ser
caracterizadas como uma fratura nas relações entre Estado e mercado que alicerçavam o
outras formas de participação do mercado e da sociedade civil no desenho institucional de
políticas públicas. No que diz respeito à política econômica, sua maior herança foi, como
vimos, a readequação da estabilidade inflacional – e aqui há que se frisar que o monetarismo
passou a ser uma forma decisiva de organização e funcionamento da economia brasileira,
alicerçada sob o Plano Real – por meio da adoção do tripé macroeconômico câmbio flutuante,
superávit primário e metas de inflação. Esse período também apresenta um nível de
expansão instável do Produto Interno Bruto – PIB, com baixo dinamismo da economia
brasileira, o que parece ser também a tônica da economia nacional nos anos posteriores.20
1.2.4 Uma trajetória dependente: a hibridização do neodesenvolvimentismo
O fim da era FHC representou o enfraquecimento dos preceitos de uma economia cada
vez menos regulamentada, que deslocava o centro de atenção do Estado para o mercado,
traduzia a atuação do Estado na economia via formulismo monetário, promovia a
dessindicalização e abria espaço para o agigantamento e inserção de grupos de instituições
financeiras. Se essas características foram os tons da situação econômica ao longo da década
de 90, o mesmo não se pode dizer dos anos 2000, sobretudo a partir de 2003.
A eleição presidencial de 2002 foi vencida por Luiz Inácio Lula da Silva, uma das
figuras mais emblemáticas da história do Partido dos Trabalhadores - PT, conhecido por sua
atuação como liderança sindical no ABCD (região formada pelos municípios de Santo André,
São Bernardo do Campo, São Caetano do Sul e Diadema) paulista. Desde a fundação do PT
em 1980, o partido, que agregava diferentes setores organizados da esquerda, intelectuais,
setores de base de movimentos sociais urbanos e campesinos, setores progressistas da Igreja
Católica, agregava também aqueles de base ideológica gramsciana21 e leninista22,
erepresentava um programa ligado a uma agenda de esquerda, espelhada no chamado
socialismo democrático.23 A vitória de Lula no pleito eleitoral deu fôlego às esperanças por
20 Entre 1994 e 2002, o Produto Interno Bruto Brasileiro cresceu, em média, 2,7% ao ano, chegando a uma
variação próxima a zero no biênio 1998-1999, ano da crise cambial do Plano Real. (IBGE; FGV, 2013) 21 O Partido dos Trabalhadores, adotou, desde sua fundação, caros princípios formulados por Antônio Gramsci,
como a teoria da hegemonia, a ideia de fortalecimento da sociedade civil (enquanto luta de classes) e a construção de um bloco que produzisse reformas que reforçassem a democracia condição para a onstituição de um novo modelo de socialismo). Conforme Carlos Nelson Coutinho, mesmo na década de noventa essa marca ideológica é ainda forte, como se constatou no VII Encontro Nacional do Partido, realizado em 1990 em São Paulo, em que, das oito teses apresentadas, seis utilizavam explicitamente conceitos gramscianos. (COUTINHO, 1999, p. 298)
22 Neste sentido, ver artigo de Reginaldo Benedito Dias: Ação Popular Marxista-leninista e a formação do PT. (DIAS:2009)
23 No discurso de Lula à 1ª. Convenção Nacional do PT, o sindicalista afirma que o socialismo que queremos se definirá por todo o povo, como exigência concreta das lutas populares, como resposta política e econômica
um novo projeto de país, seja da parte de setores tradicionais da esquerda, seja de um
eleitorado independente, assumindo a necessidade de superação dos efeitos das crises
antecedentes, marcadas por recessão e desaceleração econômica.
Desde a campanha de 2002, o discurso do Partido dos Trabalhadores foi sendo
abrandado, readequado em tons mais moderados, versando-se em um progressismo
constituído por uma ampla frente, mobilizada por reformas econômicas. Assumindo
compromissos nacionais e internacionais, o PT divulgou naquele ano a Carta ao Povo
brasileiro, documento com o intuito de apaziguar a tensão pré-eleitoral verificada pelos
mercados financeiros deflagrada pela possibilidade concreta de eleição do primeiro presidente
ligado a um partido abertamente ligado ao movimento sindical e a setores de esquerda menos
moderados no país. Ressaltamos alguns pontos nesse documento:
A crescente adesão à nossa candidatura assume cada vez mais o caráter de um movimento em defesa do Brasil, de nossos direitos e anseios fundamentais enquanto nação independente. Lideranças populares, intelectuais, artistas e religiosos dos mais variados matizes ideológicos declaram espontaneamente seu apoio a um projeto de mudança do Brasil. Prefeitos e parlamentares de partidos não coligados com o PT anunciam seu apoio. Parcelas significativas do empresariado vêm somar-se ao nosso projeto. Trata-se de uma vasta coalizão, em muitos aspectos suprapartidária, que busca abrir novos horizontes para o país. (…) Será necessária uma lúcida e criteriosa transição entre o que temos hoje e aquilo que a sociedade reivindica. O que se desfez ou se deixou de fazer em oito anos não será compensado em oito dias. O novo modelo não poderá ser produto de decisões unilaterais do governo, tal como ocorre hoje, nem será implementado por decreto, de modo voluntarista. Será fruto de uma ampla negociação nacional, que deve conduzir a uma autêntica aliança pelo país, a um novo contrato social, capaz de assegurar o crescimento com estabilidade. (…) À parte manobras puramente especulativas, que sem dúvida existem, o que há é uma forte preocupação do mercado financeiro com o mau desempenho da economia e com sua fragilidade atual, gerando temores relativos à capacidade de o país administrar sua dívida interna e externa. É o enorme endividamento público acumulado no governo Fernando Henrique Cardoso que preocupa os investidores. (…) Trata-se de uma crise de confiança na situação econômica do país, cuja responsabilidade primeira é do atual governo. Por mais que o governo insista, o nervosismo dos mercados e a especulação dos últimos dias não nascem das eleições.(...) Superando a nossa vulnerabilidade externa, poderemos reduzir de forma sustentada a taxa de juros. Poderemos recuperar a capacidade de investimento público tão importante para alavancar o crescimento econômico. Esse é o melhor caminho para que os contratos sejam honrados e o país recupere a liberdade de sua política econômica orientada para o desenvolvimento sustentável. (…) Ninguém precisa me ensinar a importância do controle da inflação. Iniciei minha vida sindical indignado com o processo de corrosão do poder de comprar dos salários dos trabalhadores. (…) Quero agora reafirmar esse compromisso histórico com o combate à inflação, mas acompanhado do crescimento, da geração de empregos e da distribuição de renda, construindo um Brasil mais solidário e fraterno, um Brasil de todos. (...)A volta do crescimento é o único remédio para impedir que se perpetue um círculo vicioso entre metas de
global a todas as aspirações concretas que o PT seja capaz de enfrentar. (…) O socialismo que nós queremos irá se definindo nas lutas do dia a dia, do mesmo modo como estamos construindo o PT. (PARTIDO DOS TRABALHADORES, 1998, p. 114)
inflação baixas, juro alto, oscilação cambial brusca e aumento da dívida pública.(...)Vamos preservar o superávit primário o quanto for necessário para impedir que a dívida interna aumente e destrua a confiança na capacidade do governo de honrar os seus compromissos. (...)Mas é preciso insistir: só a volta do crescimento pode levar o país a contar com um equilíbrio fiscal consistente e duradouro. A estabilidade, o controle das contas públicas e da inflação são hoje um patrimônio de todos os brasileiros. Não são um bem exclusivo do atual governo, pois foram obtidos com uma grande carga de sacrifícios, especialmente dos mais necessitados. (LULA DA SILVA, 2003) (grifos nossos)
Essa sinalização de uma proposta de política econômica fez-se parcialmente coerente a
seus propósitos ao longo dos anos de governo Lula: de fato, sua eleição foi fruto de uma
ampla negociação – uma vez que fortes setores do empresariado financiaram24, e uma forte
base de apoio se consolidou para sua reeleição, angariando até mesmo o Partido do
Movimento Democrático Brasileiro – PMDB.
Uma interessante análise sobre a transformação do arco de alianças e a predominância
ideológica no seio do Partido dos Trabalhadores é apresentada por André Singer, que afirma
haver um abandono da posição anticapitalista e da política de alianças petista, com o
predomínio de uma defesa da ordem capitalista, com preservação da estabilidade econômica,
de estabilidade monetária e fiscal e acordos políticos com partidos à direita, como o extinto
Partido Liberal (Atual Partido da República), com o PMDB, e mesmo o Partido Trabalhista
Brasileiro (PTB), nos governos Lula. (SINGER, 2012). Essa base de apoio foi fundamental
não só à campanha, mas também no apoio político aos anos de governo Lula, e foi
beneficiada com expressiva participação na vida política nacional.
Também se observou a geração de 15,3 milhões de empregos formais, entre celetistas
e estatutários (BRASIL, 2011), a preservação do superávit primário (que, na série histórica
iniciada em 2002, apresentou taxas expressivas) e a preservação de contratos (sem declarar
moratória, reestatizar empresas privatizadas ou estatizar propriedades privadas, além da
redução dos juros25. Seu principal desafio, em que deixou a desejar, foram os índices de
crescimento da economia brasileira, que permaneceram baixos e caracterizavam-na como
economia de baixo dinamismo e instável. O que se verificou após a eleição de Lula e a
ascensão do governo foi uma certa continuidade do modelo de crescimento instável de baixo 24 Conforme podemos observar no sítio eletrônico do TSE, a Companhia Vale do Rio Doce, doou algo em torno
de 4 milhões de reais à campanha do candidato Luiz Inácio Lula da Silva. Camargo Corrêa, OAS e Andrade Gutierrez, bancos como Itaú, Bradesco, ABN Amro Bank e siderúrgicas (CSN e Gerdau), além da fabricante e sucos de laranja Cutrale, constam da lista dos principais financiadores da campanha presidencial no ano de 2002. (BRASIL, 2011)
25 Entre as oscilações da taxa Selic no período, a taxa de juros geral revelou-se em 22 de janeiro de 2003, num patamar de 25,36% a.a., chegando, ao final do mandato de Lula no segundo governo, em 08 de dezembro de 2010, a 10,66% a.a. Apesar da redução sensível, o valor geral das taxas de juros reais, isto é, taxas efetivas, que não são refletidas pelas taxas nominais reportadas, variaram de 47,32% a.a. para 29,35% a.a. Apesar da redução significativa, o Brasil ainda figura como um dos países com as maiores taxas reais de juros.
mostrava-se com frequência vulnerável a choques externos, aplicava uma política de base
fortemente monetarista e aprofundava, em meio a crises de recessão, desigualdades sociais,
com diminuição dos níveis de emprego e a corrosão do poder aquisitivo das classes
trabalhadoras.
Como resposta a esse contexto, o PT reforça a tonalidade de seu discurso
comprometido com a defesa das classes trabalhadoras e de grupos sociais à periferia do
processo de desenvolvimento capitalista. Apoiado em sua própria formação, constituída em
bases fortes de movimentos organizados da sociedade civil, o PT rechaça a política neoliberal
dos anos FHC, e apresenta-se como portador de um projeto político de país distinto,
democrático-popular, que se propunha capaz de promover a inclusão de setores
historicamente excluídos da vida política, social e econômica brasileira.
No entanto, o PT se instrumentalizou no campo de disputa política, tendo abandonado
o projeto e certo discurso avesso à lógica capitalista, que marcaram sua fundação, e angariado
apoio entre lideranças e setores empresariais da burguesia interna brasileira, defensores de um
novo modelo econômico para o Brasil. A constituição do projeto neodesenvolvimentista
dependeu, desta maneira, de um convencimento de diferentes setores produtivos brasileiros,
que apoiaram a candidatura de Lula à Presidência da República e foram fundamentais à linha
política adotada nos anos desse governo.
Ao assumir o governo, o desenho do projeto neodesenvolvimentista é estruturado por
uma frente política dirigida por grandes setores do empresariado, urbano e rural, e destinado a
um envolvimento – ainda que marginal - de classes trabalhadoras tradicionalmente excluídas
do bloco no poder (BOITO JR., 2012) – baixa classe média, operariado, campesinato e
trabalhadores da massa marginal, aos quais são voltados esforços do governo central no
sentido de elevar seu nível de renda, seja pela política de valorização salarial, seja por
programas de transferência de renda. Deste modo, o neodesenvolvimentismo se alicerça em
uma forte base de apoio político. (Ibidem) Além de enfrentar, ao menos no plano discursivo, o
campo e a experiência neoliberal predecessora, assumindo a vontade de criar um novo pacto
social no Brasil, coordenando ações voltadas tanto a setores tradicionais do empresariado,
quanto a grupos sociais menos favorecidos das classes trabalhadoras.
Em linhas gerais, a construção do conceito de neodesenvolvimentismo está, assim,
fortemente associada à tese apresentada por André Singer, em sua obra “Os sentidos do
lulismo”. Segundo o autor:
Teria havido, a partir de 2003, uma orientação que permitiu, contando com a mudança da conjuntura econômica internacional, a adoção de políticas para reduzir a
pobreza – com destaque para o combate à miséria – e para a ativação do mercado interno, sem confronto com o capital. Isso teria produzido, em associação com a crise do ‘mensalão’, um realinhamento eleitoral que se cristaliza em 2006, surgindo o “lulismo”. O aparecimento de uma base “lulista”, por sua vez, proporcionou ao presidente maior margem de manobra no segundo mandato, possibilitando acelerar a implantação do modelo ‘diminuição da pobreza com manutenção da ordem’ esboçado no primeiro quadriênio”. (SINGER, 2012, p. 13)
Do ponto de vista político, a base de apoio do modelo petista de administração e
condução da política econômica alicerça-se no que Singer caracteriza como “base lulista”,
eleitorado progressivamente beneficiado pelo processo de inclusão de renda de classes mais
baixas, ao mesmo tempo que satisfaz os interesses de diferentes setores produtivos –
empresários da indústria automobilística, de eletrodomésticos, roupas, alimentos e outros,
impulsionados pelo reaquecimento e expansão do mercado interno, sem alterar
significativamente a pauta de exportações brasileiras – baseada sobretudo em commodities, e,
o mais importante: sem promover qualquer alteração significativa na entrada de capitais
financeiros no país, bem como na forma de rolagem e endividamento público, pela emissão
de títulos da dívida do tesouro nacional.
Sob esse aspecto, o neodesenvolvimentismo caracteriza-se como uma espécie de
concertação econômica, que busca, pela acomodação de diferentes grupos, dispor de
microrreformas nas formas de funcionamento do capitalismo no Brasil sem, contudo,
confrontação radical (nas suas raízes constitutivas) ou incisiva sobre suas formas de operação.
Trata-se de uma opção política estratégica, que não visa tensionar os fundamentos essenciais
da macroeconomia institucional. Garante com isto os ganhos tradicionais de setores
financeiros e especulativos, sustenta o empresariado de grandes obras e projetos que contrata
com o Estado, além de promover, conforme condições conjunturais, universalização de
acessos e políticas, e ganhos marginais a setores historicamente excluídos.
Do ponto de vista econômico, a forte inspiração do modelo neodesenvolvimentista é
keynesiana, uma vez que o crescimento econômico almejado é alavancado pela ação do
Estado, que tem por objetivo aumentar a renda das famílias, sobretudo as mais pobres,
excluídas dos processos de produção e circulação de bens e serviços, seja por uma política de
transferências fiscais, por valorização do salário-mínimo e qualificação de mão-de-obra a fim
de gerar maior empregabilidade, além de investir em infraestrutura e em obras de construção
civil. (ERBER, 2011). Nesse sentido, o neodesenvolvimentismo propõe redução das
desigualdades sociais, mas o faz de maneira marginal, limitada por seu contexto.
O mote do neodesenvolvimentismo, ao menos no plano discursivo, é o de crescimento
com redução de desigualdades, que aponta a existência de um círculo “virtuoso” resultante
das transferências de renda para a diminuição das desigualdades, e para a própria contribuição
ao processo de crescimento econômico sustentado pelo ingresso nas cadeias produtivas e
consumidoras de pessoas que estiveram, durante anos, à margem da economia capitalista no
Brasil. A inclusão de famílias trabalhadoras pobres no mercado de consumo teria, nessa
acepção, contribuído a certa retomada do crescimento econômico, à capacidade estatal de
cumprir compromissos fiscais e respaldar sua capacidade também de organizar suas
atividades e financiar políticas públicas. A figura a seguir tenta traduzir de forma simplificada
esse ciclo:
Figura 3: Ciclo “virtuoso” de inclusão de renda e crescimento econômico27
A figura representa o que se tornou o trunfo dos governos petistas ao longo dos
últimos anos, sobretudo por meio dos programas de transferência de renda (combinação entre
Bolsa-Família, Benefício de Prestação Continuada e garantia de uma Previdência Social
universal, inclusive a trabalhadores do campo), além de uma política de valorização do 27 Fonte: Desenvolvimento econômico Evolução e estado atual do pensamento no Brasil. Apresentação de Ricardo Bielschowsky CEPAL na Universidade Federal da Bahia/SIAGS/NEPOL. Dezembro de 2004
taxas de juros. A meta de estabilidade macroeconômica decorrente do Consenso de
Washington é complementada com um firme compromisso com o pleno emprego e uma
distribuição de renda mais progressiva. “A fé ortodoxa no livre comércio desembaraçado é
substituída pela aceitação de controle de capitais, taxas moderadas de endividamento externo
e a acumulação de reservas domésticas para aumentar o nível de investimento”. (BAN, 2013,
p. 304, trad. do autor).
Isso se reflete de forma muito clara nos discursos de posse de Lula, tanto em 2003
quanto em 2007. Vejamos:
O Brasil pode e deve ter um projeto de desenvolvimento que seja ao mesmo tempo nacional e universalista, significa, simplesmente, adquirir confiança em nós mesmos, na capacidade de fixar objetivos de curto, médio e longo prazos e de buscar realizá-los. O ponto principal do modelo para o qual queremos caminhar é a ampliação da poupança interna e da nossa capacidade própria de investimento, assim como o Brasil necessita valorizar o seu capital humano investindo em conhecimento e tecnologia. (…) Sobretudo vamos produzir. A riqueza que conta é aquela gerada por nossas próprias mãos, produzida por nossas máquinas, pela nossa inteligência e pelo nosso suor. (LULA DA SILVA, 2003)
O Brasil ainda possui sérias travas ao seu crescimento e fragilidades nos seus instrumentos de gestão. Mas nosso País é diferente, para melhor: na estabilidade monetária; na robustez fiscal; na qualidade da sua dívida; no acesso a novos mercados e a novas tecnologias; e na redução da vulnerabilidade externa. Hoje, digo que os verbos acelerar, crescer e incluir vão reger o Brasil nestes próximos quatro anos. (…) Mas é preciso combinar essa responsabilidade com mudanças de postura e ousadia na criação de novas oportunidades para o País. (…) É necessário, igualmente, que este crescimento esteja inserido em uma visão estratégica de desenvolvimento que nosso País há muito tempo havia perdido.É preciso uma combinação ampla e equilibrada do investimento público e do investimento privado. Para lograr este equilíbrio, temos de desobstruir os gargalos e de romper as amarras que travam cada um destes setores. Isso significa ampliar e agilizar o investimento público, desonerar e incentivar o investimento privado. Sei que o investimento público não pode, sozinho, garantir o crescimento. Porém, ele é decisivo para estimular e mesmo ordenar o investimento privado. Estas duas colunas, articuladas, são capazes de dar grande impulso a qualquer projeto de crescimento. (…) Este conjunto de iniciativas significa o reforço das linhas mestras da política macroeconômica, com a redução da taxa real de juros. Tenho claro que nenhum país consegue firmar uma política sólida de crescimento se o custo do capital, ou seja, o juro, for mais alto do que a taxa média de retorno dos negócios. (LULA DA SILVA, 2007)
O primeiro discurso reforça o caráter nacional do desenvolvimento brasileiro: o
projeto político abraçado pelo governo Lula espelha o foco no nacional, na medida em que
nega a inserção periférica do país no plano internacional. Se historicamente o Brasil, apesar
de sua industrialização, inseriu-se no sistema-mundo ainda como um grande exportador de
commodities, é no plano nacional que a indústria fortaleceu seu mercado interno. A estratégia
discursiva é evidente, e denota o próprio caráter industrialista dessa visão de
desenvolvimento. Que, ao mesmo tempo, em sua implementação prática, teve de ceder espaço
2. O DIREITO AO DESENVOLVIMENTO: DO ANSEIO PERIFÉRICO À EXIGÊNCIA RETÓRICA 2.1. Introdução No capítulo anterior, descrevemos brevemente o processo de modernização capitalista
brasileiro, e as condições nas quais a atual opção de política econômica acedeu ao governo
federal. Tratamos da formação de uma política oscilante, entre um aspecto mais social, de
inclusão e aumento de renda de grupos à margem do crescimento capitalista, e mais liberal,
caracterizado pela manutenção, ainda que relativa, de fundamentos monetaristas de
estabilidade econômica e observância de compromissos internacionais, em prol de
credibilidade internacional e do suposto crescimento econômico dela decorrente.
Nesse aspecto, o quadro que marca os governos de Lula se caracteriza por essa
oscilação pragmática, ao sabor da reorganização das forças predominantes no cenário político
brasileiro. A constituição desse modelo de inserção, ainda que periférica, de pobres no
mercado de consumo e de trabalho, somado ao compromisso resoluto de erradicação da
miséria e de maior participação do Estado na indução e elaboração de programas e políticas
voltados à universalização de acessos a educação, saúde, previdência social, e a outras
políticas sociais sinaliza – ainda que de forma tímida – um projeto perseverante de
desenvolvimento.
Não é portanto fortuito nem eventual que esse modelo econômico tenha recebido, pela
literatura acadêmica, o nome de neodesenvolvimentismo. Se sua origem, como apontamos,
está entrelaçada com o desenvolvimentismo de matriz estruturalista, não menos entrelaçada
está com a ideia de desenvolvimento. Os dois mandatos de Lula à frente do Poder Executivo
formaram uma síntese contraditória, conforme pontua Singer (2012, p.122), ao “promover,
simultaneamente, políticas que beneficiam o capital e a inclusão dos mais pobres, com
melhora relativa na situação dos trabalhadores”.
Afinal, qual ideia de desenvolvimento se localiza no cerne do
neodesenvolvimentismo? Será possível que, num modelo erguido na mutação tardia do
neoliberalismo, o desenvolvimento tenha um papel tão central assim? Essas perguntas são
fundamentais ao propósito deste trabalho: afinal, qual a relação entre desenvolvimento
enquanto um direito humano e desenvolvimento enquanto anseio de uma proposta constituída
nos limites mais pragmáticos da política brasileira contemporânea?
Nesse sentido, apresentamos, neste capítulo, o que é desenvolvimento, sob a
perspectiva de ideia-força das economias globalizadas no capitalismo, e sua conceituação
enquanto direito humano. Para tanto, resgatamos sua afirmação conceitual, a partir das
anotações de Amartya Sen e, em seguida, apresentamos brevemente o contexto de seu
reconhecimento no plano internacional, para que possamos, no capítulo seguinte, entender o
contexto de formulação de políticas de desenvolvimento como direito humano no país, e suas
relações com o modelo neodesenvolvimentista vigente.
2.2. Desenrolar as amarras do passado e do presente: a ideia de desenvolvimento A ideia de desenvolvimento está associada a certa percepção vulgar, comum, do tempo
histórico da civilização ocidental e capitalista. O tempo histórico situa-se como um terceiro
tempo, entre o tempo físico e o tempo filosófico. O tempo físico reflete-se nos movimentos
naturais, sucessivos: nascer e pôr do sol, seca e chuva, cheia e vazante, primavera, verão,
outono e inverno, dia e noite, sem diferençar passado de presente e de futuro, mas
acontecimentos simultâneos daqueles sucessivos, geralmente cíclicos. O tempo filosófico, por
sua vez, é o tempo que se define pela apreensão consciente das mudanças, capaz de entender,
ainda que diante de eventos que se repetem, o que foi o passado, o que é o presente e criar
expectativas sobre o que será o futuro.
Conforme pontua José Carlos Reis, o tempo histórico é um tempo intermediário,
construído a partir de duas noções de tempo: o tempo natural da física e o tempo consciente
da filosofia. (REIS, 2007). As transformações evidenciadas a partir da segunda metade do
século XVIII, com o início da revolução industrial, e a disseminação do ideário racionalista
iluminista na porção ocidental da Europa trouxeram à tona uma noção de tempo histórico, à
medida em que o capitalismo industrial constituía suas principais bases, e com ele iam se
formando as sociedades de massa. Esse tempo histórico se conectava ao tempo de
transformação material, evidente, em que diversos fenômenos iam se sucedendo: cidades
cresciam, famílias cresciam, tecnologias, produção, riquezas e pobrezas cresciam
numericamente. O racionalismo científico pugnava pela apreensão racional dessas
transformações, com o intuito de interpretá-las e classificá-las entre a superação do passado,
os desafios do presente e as possibilidades e anseios do futuro.
Essa noção racional do tempo histórico achatou, de modo linear, as transformações
materiais da vida social humana, afirmando uma necessidade permanente de “superação do
passado”. Ao passado, vinculava-se a noção de atraso, ao presente, de verdadeiro, e ao futuro,
de promissor. Uma das correntes teóricas expoentes dessa noção foi o próprio positivismo
comtiano28, para a qual o progresso decorreria de uma ciência social, positiva, significada a
partir da apreensão de leis imutáveis que regeriam a vida dos seres humanos, a fim de atingir
uma significação moral e social maior, positiva. Um estágio em que os demais estágios da
existência humana, teológicos ou metafísicos, estivessem superados. Não por acaso, essa
corrente surge na primeira metade do século XIX, período em que o capitalismo monopolista
iniciava sua empreitada em diversas regiões da África e da Ásia, por meio da expansão
imperialista europeia.
Outra perspectiva fundamental do campo científico, surgida também no século XIX, é
atribuída a Charles Darwin que, apesar de não ter como objeto de estudo diretamente a
sociedade, trouxe a noção de evolucionismo e seleção natural ao cerne do debate acadêmico.
Essa perspectiva foi transposta por meio de simplificações comparativas no campo das
ciências sociais, com o nome de darwinismo social, que tentava explicar as incongruências e
desigualdades observadas a partir do fenômeno da industrialização com base em teorias de
seleção, evolução e adaptação ao sistema capitalista industrial de produção. Tal corrente teve
Herbert Spencer e Richard Hofstadter como seus principais expoentes.
Não por acaso, no século XIX, a expansão imperialista repetia alguns cânones do
colonialismo de séculos atrás, ao se referir a culturas e civilizações em “atraso”, e justificava a
necessidade de expansão de certa missão civilizadora europeia. Cecil Rhodes, empresário e
político britânico que viveu na segunda metade do século XIX, sustentava: “somos a primeira
raça do mundo, e quanto mais do mundo habitarmos, tanto melhor será para raça humana...Se
houver um Deus, creio que Ele gostaria que eu pintasse o mapa da África com as cores
britânicas”. (RHODES apud HUBERMAN, 2010, p. 200) Essa percepção de uma cronologia
intrínseca ao processo de expansão capitalista, entre atraso e modernização, entre barbárie e
civilização, tornou-se um poderoso mecanismo de hierarquização cultural, de dominação de
28 Corrente teórica que contribuiu ao surgimento da sociologia, iniciada na França em meados do século XIX
por Auguste Comte, e que representou certa desvalidação de fundamentos metafísicos, exteriores, a uma dada realidade, buscando nas relações existentes entre fatos, acessíveis pela observação, as causas para a realidade. Resumia-se a sete palavras-chaves: real, útil, certo, preciso, relativo, orgânico e simpático. Todas elas expressavam motes de um sistema de valores e certa metodologia para a ação positiva. O surgimento da corrente está fortemente associado ao contexto de profundas transformações políticas, sociais e econômicas na França no século XIX.
mercados e povos, imprimindo à globalização tardia do capitalismo algumas características
fortemente associadas à colonização mercantil.
A noção racionalista de tempo histórico acerca da existência humana, em progresso
linear e evolucionista, foi sucessivamente confrontada pelo debate acadêmico, que teve nas
contribuições metodológicas da história nova29 (contraposta à velha história, a história
política, de grandes feitos e epopeias, associada a um entendimento de mudanças como
superação) e das correntes antropológicas pós-evolucionistas30 os principais expoentes.
Apesar de apresentar críticas profundas e sistemáticas à ideia de progresso e caminho linear
das sociedades, essas correntes não afastaram por completo uma certa confusão, não somente
vulgar, mas também presente ainda na atualidade, entre desenvolvimento e progresso31.
A crença em um tempo histórico baseado nas ideias de superação do passado,
realidade do presente, e expectativa do futuro foi ajustada aos intensos processos de
transformação econômica, política e social iniciados com a revolução industrial. Com isso, a
civilização que dali nasceu se enxergava como soberana sobre sua cronologia: o presente,
real, justificava-se como melhor que o passado, e a incerteza do futuro como possibilidade de
ser ainda melhor que o presente. Inventava-se, pela simplificação, a progressividade da
existência humana. E com esta maneira de interpretar o processo, a própria percepção da
complexidade humana, transitória, via sua importância diminuída. Enfraquecia-se, afinal, o
significado mais profundo de desenvolvimento.
29 A história nova encontra seus pioneiros com a geração da Escola dos Annales, surgida na França, na década
de sessenta. Um tempo histórico baseado na ideia de forças profundas e longa duração no tempo histórico, e a ideia de velocidade de curto prazo (incapaz de compreender mudanças de fundo) são introduzidos por essa corrente de pensamento, que passa a questionar a própria noção de tempo histórico. O mover histórico é constante, mas há aquilo que permanece ao longo do tempo, sendo lentamente substituído. Nesse sentido, o progresso é questionado por essa corrente, que vê no tempo histórico um delicado e complexo jogo de continuidades e rupturas, singularizadas conforme as exigências próprias de cada contexto social. Para Marc Bloch, só há apenas uma história, “pura e simples em sua unidade. A história que é toda social, por definição”. (BLOCH apud LE GOFF, 2005, p. 36)
30 Consideramos, nesse sentido, as correntes teóricas da antropologia que questionavam a noção de evolução seletiva e progresso indefinido da escola evolucionista do século XIX. Nessa categoria, o funcionalismo, a escola sociológica francesa e o estruturalismo são importantes exemplos.
31 Uma interessante observação sobre esse ponto pode ser feita a partir da inserção de novas metodologias de pesquisa de opinião – surveys – sobre desenvolvimento e bem-estar. Em vez de insistir em critérios objetivos – e muitas vezes paradigmáticos, espelhados em exemplos exitosos de qualidade de vida de outros países, tidos por desenvolvidos - recentemente algumas pesquisas têm se preocupado com a percepção subjetiva da qualidade de vida e bem-estar econômico das pessoas, o chamado Subjective Well Being (SWB). Como apontam AFSA et. al (2008, p. 15) “uma vez que os indivíduos são os maiores interessados em seu próprio bem-estar, pode-se considerar que eles são os melhores juízes sobre sua qualidade de vida”. Curiosamente, o survey consultado utiliza o termo “progresso social” em seu título, reforçando a confusão comum entre desenvolvimento e progresso também no campo especializado.
cada canto do planeta, romper sua endogenia, externalizando suas relações comerciais com o
ocidente tornou-se máxima. Abrir-se, conforme os critérios exigidos pelos países
protagonistas da industrialização, a esse processo intenso que a Europa Ocidental vivia na
segunda metade do século XIX. Um movimento expansivo, de dentro para fora, do doméstico
ao internacional, que também se livrava dos grilhões protecionistas – ainda que parcialmente
– e exclusivistas do mercantilismo.
A ideologia preponderante que justificava essa expansão era o liberalismo econômico,
que teve por princípios básicos assegurar os direitos à propriedade e à liberdade de transações
comerciais, e engendrou os Estados burgueses modernos como elementos principais de
instrumentalização do poder de “determinar regras que governam relações sociais de
produção no interior de sua jurisdição territorial”, e não reconhecer “nenhuma restrição à sua
liberdade legislativa, exceto aquelas que eles mesmos se impõem” (WALLERSTEIN, 2001, p.
44). Apesar de todo esse poder conferido aos Estados modernos, que passavam a definir tais
regras em constituições, a necessidade de liberdade de mercado e de direito a realizar
transações comerciais sem grandes restrições preponderou por anos, ao menos no plano
discursivo. Era indispensável, para essa ideologia, subtrair as amarras e invólucros do Estado
mercantil colonialista, e permitir que a livre iniciativa empreendesse abertamente suas
atividades.
Em suma, a história da expansão capitalista em nível mundial associa-se a uma
necessidade de expansão dos mercados, num processo avassalador centrado na liberalização
econômica. Assim:
A liberação da iniciativa privada, o motor que, todos concordam, promoveu o progresso da indústria. Nunca houve um consenso mais esmagador entre economistas ou políticos e administradores inteligentes no que toca à receita para o crescimento de sua época: o liberalismo econômico. As barreiras institucionais que sobreviverem ao livre movimento dos fatores de produção, à livre iniciativa ou a qualquer coisa que concebivelmente pudesse vir a tolher sua operacionalidade lucrativa caíram diante de uma ofensiva mundial (…)Indiscutivelmente, este vasto processo de liberalização encorajou a iniciativa privada, assim como a liberalização do comércio ajudou a expansão econômica, mas não devemos esquecer que grande parte da liberalização formal não era realmente necessária (…). Por outro lado, a questão do lugar que as mudanças institucionais ou legais têm na proteção ou limitação do desenvolvimento econômico é demasiadamente complexa para a fórmula simplista do século XIX: “A liberalização cria progresso econômico”. (HOBSBAWM, 2011, pp. 69-72)
Repaginado anos mais tarde, e sujeito a crises de especulação semelhantes, o
liberalismo econômico segue ressignificado, conforme a participação maior ou menor dos
Estados nacionais no exercício de seu próprio poder de regulação: de mercados domésticos
urbana repleta de mercadorias e serviços, produto da industrialização. A modernização
capitalista era o prenúncio de “uma passagem da pobreza universal para graus variados de
prosperidade [que] aconteceu com rapidez no breve espaço de tempo da história da
humanidade (…)” (SACHS, 2011, p. 53).
Entretanto, a prosperidade material, nesse processo de expansão de dentro para fora
das economias, foi sendo constatada em graus bastante variados: enquanto uns tornavam-se
extremamente prósperos, ricos, outros eram deixados à condição de absoluta indigência, que
crescia também em velocidade acentuada. Em continentes inteiros, uma imensa maioria da
população crescia e se formava marginalmente, em condições precárias de vida. A expansão
do produto material não se demonstrou suficiente para que todos tivessem acesso a uma
mesma cesta de produtos e serviços básicos, a fim de garantir continuidade de sua existência.
Suas necessidades mais elementares, como comer, vestir, morar sob um teto, saber ler e
escrever e gozar de água encanada e rede de coleta e tratamento de esgoto, por exemplo, não
eram atendidas de forma automática, como decurso da expansão capitalista.
O crescimento econômico, imensa transformação na produção material, não foi
acompanhado de uma universalização do bem-estar, por meio do efetivo acesso a uso de
recursos, produtos e serviços por uma enorme parcela da população. O crescimento da
pobreza acompanhou o imenso crescimento demográfico e econômico verificado nos séculos
XIX e XX, em grande parte do planeta. Segundo estimativas do Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento – PNUD, cerca de 1,57 bilhão de pessoas vivem atualmente em
situação de pobreza multidimensional32, o que corresponde a mais que 30% (trinta porcento)
da população dos 104 países objeto de estudo da organização. (PROGRAMA DAS NAÇÕES
UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO, 2013) O crescimento da pobreza, em escala
mundial, não apenas coincidiu com o crescimento das economias capitalistas. Demonstrou ser
também sua consequência mais imediata: a organização em escala mundial da produção levou
a divisões e especializações do trabalho e da produção, a certas zonas desiguais de
investimento e especialização tecnológica, a estruturas favoráveis ou desfavoráveis à
acumulação de capital. Dividia-se cada vez mais a distância entre o mundo pobre e o mundo
rico, em que o primeiro se espelhava em, um dia, tornar-se tão próspero quanto o segundo.
32 Convém de antemão explicar que o conceito de pobreza multidimensional vai além da noção monetarista,
simplificada, de pobreza, comumente adotada pelo Banco Mundial para seus estudos e diagnósticos. O Banco Mundial, nessa visão monetarista de pobreza, considera miseráveis aqueles que vivem com menos de dois dólares por dia. A pobreza multidimensional refere-se ao número e intensidade de privações sobrepostas, em saúde, educação e padrões de vida.
econômico, a liberdade transacional e produtiva colocada no centro do sistema capitalista foi
traduzida na ideologia do liberalismo econômico. Todavia, como apresentamos, a expansão
econômica pela via da liberalização foi também acompanhada de forte aumento da pobreza e
concentração de riquezas. A liberdade como máxima da economia tornou-se o próprio veneno
do processo, na medida em que produziu desigualdades imensas, não foi tornada igualmente
universal, e deixou um saldo de milhões de pessoas à margem desse processo, sem a liberdade
mais elementar do sistema: poder escolher “utilizar recursos econômicos com propósitos de
consumo, produção ou troca”. (SEN, 2009, p. 55) O sistema capitalista liberal processou,
assim, sua própria contradição.
Nesse sentido, uma definição interessante de desenvolvimento econômico foi proposta
por Celso Furtado. O economista paraibano traduziu a ideia de desenvolvimento na junção
entre crescimento econômico e benefício geral das pessoas. Tal benefício geral é medido por
meio de eficiência. Uma economia ascendente precisa disponibilizar com eficiência e em
benefício do maior número de pessoas quanto possível o resultado de seu incremento
produtivo. Quanto mais pessoas puderem fazer uso de produtos e serviços os mais distintos,
maior será a satisfação de suas necessidades e desejos, e tanto maior será o desenvolvimento
de determinado grupo. Assim:
A ideia corrente de desenvolvimento econômico refere-se a um processo de transformação – no sentido morfogenético: adoção de formas que não são um simples desdobramento das preexistentes – que engloba o conjunto de uma sociedade. Essa transformação resulta da adoção de métodos produtivos mais eficazes e se manifesta em aumento do fluxo de bens e serviços finais à disposição da coletividade. Assim, a ideia de desenvolvimento liga-se, causalmente, ao conceito de eficiência e, por outro, à de abundância ou riqueza. Às formas mais racionais de comportamento corresponde uma satisfação mais plena das necessidades humanas. (FURTADO:,2008, p. 130)
Ora, a abundância ou riqueza, de fato, é expressa pelo crescimento da produção
material: quanto mais bens, produtos, mercadorias, matérias-primas, e ativos existirem,
quanto mais abundantes forem, maior a chance de essa economia explorá-los e transacioná-
los, e apresentar crescimento econômico com algum vigor. Mas a ideia de eficiência somente
pode ser concebida em economias capazes de distribuir corretamente tais riquezas: quanto
maior for o total de pessoas a gozar ou dispor de bens e serviços, reduzindo as perdas de uma
grande maioria em detrimento da concentração de riqueza de uma minoria, mais eficiente será
a disponibilização de produtos e serviços finais à coletividade, a fim de se garantir que o
maior número possível de pessoas perceba e usufrua da abundância. A ideia de
desenvolvimento, para Celso Furtado está assim fortemente associada a um aspecto
avanço tecnológico e a modernização das sociedades representam meios de se expandir a
liberdades das pessoas (SEN, 2009, p. 17). Não se trata de confundi-los com
desenvolvimento, tampouco de classificá-los como consequência do desenvolvimento, mas
percursos possíveis dessa trajetória.
Contudo, a expansão de liberdades (o desenvolvimento, nessa acepção de
desenvolvimento como liberdade) depende também de outras influências. Sen admite que o
crescimento econômico é algo importante para o exercício das liberdades, uma vez que é
capaz de gerar oportunidades (SEN, 2009). Mas o exercício da liberdade não se restringe a
essa condição. A carência de serviços públicos de assistência social, educação, instituições
para manutenção da paz e ausência de participação política podem levar a severas violações
da liberdade, e impedir o processo de desenvolvimento. A expansão das liberdades é, para
Sen, portanto, a finalidade do desenvolvimento.
A teoria de desenvolvimento como liberdade advoga, de certo ponto de vista liberal, o
caráter abrangente e complexo do processo de desenvolvimento. Não se trata de uma visão
puramente econômica de desenvolvimento, mas de uma visão que atravessa questões sociais e
políticas. Sob esse aspecto, Sen (2009, p. 23) ressalta:
(…) faz diferença adotar a visão do desenvolvimento como um processo integrado de expansão de liberdades substantivas interligadas. É essa visão que apresentamos, esmiuçamos e utilizamos neste livro para investigar o processo de desenvolvimento integrando considerações econômicas, sociais e políticas. Uma abordagem ampla desse tipo permite a apreciação simultânea dos papéis vitais, no processo de desenvolvimento, de muitas instituições diferentes.
Para que possamos avançar em nossa análise, é preciso antes de tudo deixar claro que,
ao apontarmos, no Capítulo I, a trajetória da modernização capitalista brasileira ao longo dos
séculos XX e XXI, nossa intenção está longe de considerar o desenvolvimento em seu aspecto
puramente econômico. Trata-se muito mais de apresentar as condições estruturantes, de
formação de um novo modelo de Estado, com capacidades ampliadas, que guarda relação
profunda de sua atuação com o passado, e que aposta suas fichas numa proposta de
desenvolvimento para o presente. Veremos com mais atenção a formação e limites dessa
proposta, sob a perspectiva dos direitos humanos, no próximo capítulo.
Feita essa ressalva, uma interessante e próxima definição de desenvolvimento à
apresentada por Sen é concebida por Ignacy Sachs, que afirma que o desenvolvimento tem a
pretensão de tornar cada ser humano apto a exercer suas potencialidades, talentos e
imaginação, em busca de autorrealização e felicidade, através de ações individuais e coletivas,
completamente inútil a um tuaregue do Saara. Os funcionamentos podem ser coisas
elementares e universalmente necessárias, como alimentação, ou se ver livre de doenças
evitáveis, ou podem variar de pessoa para pessoa. (SEN, 2009) As capacidades são as
combinações alternativas de funcionamentos: quanto mais se puder escolher entre um
funcionamento ou outro, e quanto maior o número de alternativas e escolhas, maior o estado
de liberdade dessa pessoa. Essas condições são indispensáveis a uma economia do bem-estar,
cujo principal objetivo é reverter-se em bem-estar pessoal e coletivo.
Portanto, três conceitos são apresentados por Sen em sua teoria da economia do bem-
estar: liberdade, capacidade e funcionamentos.
A capacidade é principalmente um reflexo da liberdade para realizar funcionamentos valiosos. Ela se concentra diretamente sobre a liberdade como tal e não sobre os meios para realizar a liberdade, e identifica as alternativas reais que temos. Neste sentido, ela pode ser lida como um reflexo da liberdade substantiva. Na medida em que os funcionamentos são constitutivos do bem-estar, a capacidade representa a liberdade de uma pessoa para realizar bem-estar. (SEN, 2012, p. 89)
Ao dissecar esses conceitos, Sen preocupa-se fundamentalmente com uma
aproximação entre ética e economia. Claramente influenciada pelo utilitarismo33, sua teoria
tenta no entanto se afastar da concepção meramente utilitarista de economia, resultante da
combinação entre welfarismo (“bondade”34 de estado de coisas resultante de informações
sobre utilidades relativas a tal estado), ranking pela soma (informações sobre utilidades
relativas a qualquer estado consideram apenas o somatório de todas as utilidades desse estado)
e consequencialismo (toda escolha é determinada pela “bondade” de estados de coisas
decorrentes). (SEN, 2012).
Ou seja, a crítica de Sen, em suma, é dirigida ao modelo welfarista de economia, que
representa uma forte limitação de base de informações, na medida em que se importa apenas
com as utilidades (o grau de satisfação de carências e desejos), que passam a ser o único
33 A escola utilitarista surgiu na Inglaterra em finais do século XVIII e início do século XIX, por meio da obra
de Jeremy Bentham e John Stuart Mill. Com fundamento no “greatest happiness principle”, ou princípio da maior felicidade, o utilitarismo na economia advoga que o comportamento de agentes econômicos tentem a ser maximizadores de uma determinada função utilidade. Isto é, a produção e a circulação de bens numa economia estariam atrelados ao princípio de utilidade, de satisfação de necessidades e desejos para obtenção de um prazer, uma realização, ou em última análise, de felicidade. Assim, admite que, se uma mudança for vantajosa para cada pessoa, tende a ser uma mudança vantajosa para toda a sociedade. Tal tendência de maximização das utilidades levaria ao chamado teorema da optimalidade de Pareto, em que seria impossível aumentar a utilidade de uma pessoa sem reduzir a utilidade de outra pessoa. Seria um estágio máximo de eficiência econômica, ou máximo de bem-estar, em que utilidades, bens e serviços estariam eficientemente distribuídos entre as pessoas, satisfazendo seus desejos de forma satisfatória – senão plena – e no maior número possível.
34 Wellness, no texto original. Seria uma espécie de estado de coisas ou situações benéficas, favoráveis às pessoas.
brasileira, pode considerar muito mais relevante, para si, em um dado momento de sua vida,
que sua casa não desabe por motivos de deslizamentos decorrentes de chuvas, que qualquer
outro acesso (seja a ensino gratuito, seja a políticas de igualdade racial, seja a oportunidades
reais de trabalho e capacitação profissional).
Por isso, há que se considerar a avaliação como um processo essencial às escolhas dos
sujeitos (comparativamente a outros sujeitos, mas também a outros funcionamentos
disponíveis ou pretendidos). Para o exemplo citado, a segurança protetora da defesa civil,
num dado momento de risco aparente de outras habitações vizinhas em decorrência de
chuvas, por exemplo, e a garantia de continuidade do acesso a moradia própria, são mais
relevantes que outros funcionamentos. Essa ordem de prioridades é feita diariamente em
nossas vidas, nas escolhas pessoais que nos movem, ou nas ações e escolhas de outros que nos
possam ser úteis.
Retomaremos, no capítulo seguinte, a teoria proposta por Sen, aproximando-a do
contexto recente de fortalecimento das capacidades estatais no Brasil, de erradicação da
pobreza extrema, e avaliaremos parcialmente o modelo de desenvolvimento em curso.
Por ora, é necessário indagar: se a teoria de Sen se afasta do welfarismo e de seu
critério de desconsideração de utilidades e vantagens pessoais, em detrimento de certa
utilidade universalista, será possível entender um certo relativismo metodológico dessa teoria,
que tenderia a enfraquecer o discurso de universalidade de acessos? Nestes termos, quão
compatível seria a teoria do desenvolvimento como liberdade com a ideia de desenvolvimento
enquanto direito humano?
Preliminarmente, é preciso lembrar que, para a teoria de desenvolvimento como
liberdade, a avaliação subjetiva e intersubjetiva é essencial. Trata-se de priorizar acessos e
capacidades específicos a agentes determinados, diante de certas informações disponíveis. A
avaliação das condições e limitações específicas é uma ferramenta essencial não para o fim de
realização de um bem-estar abstrata ou genericamente considerado, mas para a garantia do
exercício da liberdade de alcançar o bem-estar concreto e mais adequado a cada condição.
Trata-se de uma visão que não menospreza a importância do agente na condução de sua
melhor escolha, revertida no resultado mais eficaz de satisfação de seu bem-estar. Noutras
palavras, uma liberdade instrumental para o alcance do bem-estar. Assim:
no contexto de elaboração da política estatal para cidadãos adultos, a liberdade para o bem-estar pode ser de maior interesse do que a realização do bem-estar. Por exemplo, o Estado pode ter razão para oferecer a uma pessoa oportunidades adequadas para superar a fome, mas não para insistir em que ela precisa aceitar sem
falta a oferta. A oferta a todos da oportunidade de levar uma vida minimamente decente não necessita ser unida à insistência de que todos façam uso de todas as oportunidades que o Estado oferece. Por exemplo, a garantia de todos do direito de dispor de uma quantidade adequada de alimento não necessita ser unida a uma proibição estatal do jejum. (SEN,2013, p. 322)
Não se trata de um liberalismo tradicional, que traduz liberdade sobretudo como
ausência ou mínimo possível de ingerência estatal na vida dos cidadãos, mas de liberdade em
seu aspecto mais substantivo: o de exercício amplo e efetivo de diferentes escolhas.
Nesse sentido, mesmo que a avaliação pessoal priorize o acesso a diferentes
funcionamentos de acordo com as situações pessoais, Sen não estabelece um elogio irrestrito
do relativismo liberal. Admite que a garantia do exercício de direitos está fortemente
associada ao esforço estatal, à ação coordenada que assegure liberdades nos aspectos mais
variados quanto necessários. Tais liberdades são o que Sen classifica como liberdades
substantivas.
Liberdades substantivas são fundamentais ao processo de desenvolvimento. Significa
dizer que, à medida que as pessoas se sentem cada vez mais livres para realizar as atividades
de que gostam, sem obstruções ou constrangimentos que as impeçam de fazer o que
valorizam, maior a chance de obterem resultados valiosos. Para isto, a noção de iniciativa
individual e eficácia social são fundamentais: quanto mais iniciativa tiverem as pessoas,
individualmente, mais eficazes serão suas ações, em busca de cuidar de si mesmas e do
mundo que as cerca. (SEN, 2009) Algo como uma felicidade intrínseca a esse status libertatis
faz parte da linha argumentativa de Sen, que considera, ciente dos riscos de sua simplificação
explicativa, o aspecto da condição de agente do indivíduo. O agente, portanto, atua de acordo
com seus próprios valores, membro do público e ator em ações em diversas transações
econômicas, sociais e políticas.
De forma simplificada, poderíamos traduzir os principais conceitos da teoria seniana
do desenvolvimento como liberdade conforme o quadro conceitual abaixo:
Figura 435 – Quadro dos principais conceitos da teoria do desenvolvimento como liberdade:
Conceito
Definição
Funcionamentos
Estados, atividades e coisas que as pessoas valorizam em suas vidas
Capacidades
Combinações múltiplas de funcionamentos atividades e modos de ser que uma pessoa pode alcançar, que reflete a liberdade pessoal de escolher entre vários modos de viver.
Liberdades substantivas
Processos e oportunidades constitutivos (senão indispensáveis) ao exercício de outras liberdades, como evitar a fome, a subnutrição, ter liberdade de expressão
Liberdades instrumentais
Processos e oportunidades obtidos por meio de direitos e funcionamentos disponíveis para expansão da liberdade humana em geral, que podem variar em grau de obtenção e reconhecimento: participação política, oportunidades sociais e facilidades econômicas
Há uma linha fundamental na teoria do desenvolvimento como liberdade. Trata-se de
certo equilíbrio do nível de responsabilidades sobre a qualidade de vida das pessoas: nem
tanto ao Estado, nem exclusivamente ao indivíduo. Assumindo o pressuposto de que
iniciativa, esforços pessoais e respeito próprio são elementos importantes para que as pessoas
zelem por seus próprios interesses e problemas, Sen também admite que sem um contexto de
circunstâncias sociais e ambientais favoráveis, em certa medida de responsabilidade do poder
público, é impossível uma vida de qualidade. Esse argumento é central em sua obra (SEN,
2009, pp. 321-322):
Qualquer afirmação de responsabilidade social que substitua a responsabilidade individual só pode ser, em graus variados, contraproducente. Não existe substituto para a responsabilidade individual. O alcance e a plausibilidade de um apoio exclusivo na responsabilidade pessoal podem ser mais bem discutidos somente depois de seu papel essencial ter sido reconhecido. Contudo, as liberdades substantivas que desfrutamos para exercer nossas responsabilidades são extremamente dependentes das circunstâncias pessoais, sociais e ambientais. (…) Assim, o argumento do apoio social para expandir a liberdade das pessoas pode ser
considerado um argumento em favor da responsabilidade individual, e não contra ela. O caminho entre liberdade e responsabilidade é de mão dupla. Sem a liberdade substantiva e a capacidade para realizar alguma coisa, a pessoa não pode ser responsável por fazê-la. Mas ter efetivamente a liberdade e a capacidade para fazer alguma coisa impõe à pessoa o dever de refletir sobre fazê-la ou não, e isso envolve responsabilidade individual. Nesse sentido, a liberdade é necessária e suficiente para a responsabilidade.
Tais liberdades substantivas (liberdades essenciais que garantem o exercício de outras
liberdades individuais) tendem a se reverter em benefícios para além do indivíduo. O desenho
das liberdades individuais, nesse sentido, é traçado junto ao desenho institucional de políticas
públicas. Isto é, uma política é eficaz na medida em que visa atender os interesses de um
público-alvo que, diante do atendimento desses interesses, é capaz de estimular por sua vez
outras pessoas a agirem e influenciarem suas vidas e contextos de forma positiva. Por isso
mesmo, Sen atenta-se para “a expansão das capacidades das pessoas de levar o tipo de vida
que valorizam […], que podem ser aumentadas pela política pública, mas também, por outro
lado, a direção da política pública pode ser influenciada pelo uso das capacidades
participativas do povo”. (SEN: 2009, p. 32).
2.4. Direitos humanos econômicos e sociais: desenvolvimento como imperativo, retórica
ou efetividade?
O afastamento da ética universalista do welfarismo, de utilidades universais, resulta
em certa relativização do conceito de desenvolvimento, conforme visto na seção anterior.
Como será possível, então, aproximar o conceito de desenvolvimento ao conceito de direitos
humanos, geralmente associado a um universalismo ético, que prega a existência de direitos
extensíveis de forma objetiva a todo e qualquer ser humano? Como aproximar o
desenvolvimento, que depende da avaliação circunstancial de bem-estar, transitiva, à ideia de
que existam direitos universalmente reconhecidos, atribuídos a todo e qualquer ser humano?
Algumas questões, formuladas por Amartya Sen em sua obra A ideia de justiça, podem nos
ser bastante úteis para estendermos e aprofundarmos essas indagações: afinal, seriam os
direitos humanos uma crença geral e atraente, uma espécie de retórica com alguma eficácia
política? E mais: os direitos humanos existem? Sua existência decorre simplesmente da
A existência dos direitos humanos decorre de um largo processo histórico, de lutas
travadas nas sociedades ocidentais, e advém do reconhecimento que tais direitos passaram a
ter, sobretudo a partir da segunda metade do século XVIII, com as revoluções liberais
burguesas iluministas e as declarações que manifestavam certos direitos inalienáveis, como a
vida, a liberdade de opinião, expressão e crença, o direito de eleger representantes e participar
da vida política, o direito a um processo legal que ofereça recursos de defesa, e outros tantos.
A partir de então, os processos de demandas sociais, por meio de reivindicações e lutas
organizadas se complexificaram, trazendo à tona novas dinâmicas, novas pretensões e sujeitos
de direito e, com isto, outros muitos direitos, reconhecidos como direitos humanos por meio
de declarações e compromissos além das fronteiras dos estados nacionais.
Tais declarações, documentos formais que consubstanciam um protocolo de intenções
escritas, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, reconhecem a
existência de direitos, tratando-se, portanto, de projetos esperados: de algo que deve ser feito.
Tais declarações exigem o reconhecimento, por todas as pessoas, de que algo precisa ser feito
para concretizar liberdades reconhecidas através desses direitos. Esse aspecto formal da
existência dos direitos humanos é alvo de críticas, que geralmente enxergam nas declarações
um belo protocolo de intenções, infelizmente não observado com a devida efetividade e sem
realização concreta e efetiva em muitos contextos.
Amartya Sen rebate tais críticas, ao afirmar que os direitos humanos não pretendem
ser o que já são os direitos previstos em leis, estatutos ou costumes, dotados de coercitividade
para que tenham efetivo cumprimento, e correspondência imediata de dever de um agente (ou
destinatário específico). Os direitos humanos são, em essência, revestidos de conteúdo ético e,
além de servirem como certa dose de inspiração para a elaboração de leis nacionais,
necessitam de adesão racional ampla e constante, mediante o reconhecimento de que é preciso
fazer algo para concretizar as liberdades por eles proclamadas.
No que diz respeito ao aspecto das declarações, e também da defesa de direitos
humanos, o autor ressalta:
As declarações éticas, com distinto conteúdo político e pertencentes a uma declaração de direitos humanos podem provir de pessoas ou instituições, e ser apresentadas como comentários individuais ou como enunciados sociais. Também podem ser feitas, com bastante destaque, por grupos específico encarregados de examinar essas questões; (...) As vias e as maneiras de defender a ética dos direitos humanos não precisam se restringir à elaboração de novas leis (embora muitas vezes a legislação possa se mostrar o caminho correto para se proceder); por exemplo, o monitoramento social e outras formas de apoio ativista, oferecidas por organizações como o Human Rights Watch, a Anistia Internacional, a Oxfam, os Médicos sem Fronteiras, Save the Children a Cruz Vermelha e a Action Aid (citando tipos muito
variados de ONGs), podem contribuir para ampliar o alcance concreto dos direitos humanos reconhecidos. Em muitos contextos, de fato, não há nenhum envolvimento na legislação. (SEN, 2013, pp. 394; 399- 400)
Deste modo, Sen admite em sua teoria que o conteúdo ético dos direitos humanos
serve de motivação para diversas mobilizações, seja a de elaboração e aplicação de leis com
conteúdo de direitos humanos, pelo Estado, seja a mobilização de pessoas, da sociedade civil
organizada contra violações de direitos, em busca de conferir alcance concreto a prescrições
sociais (SEN, 2013). Seu conteúdo não diz respeito a um único e determinado destinatário,
mas serve de instrumento em prol da mobilização que visa assegurar liberdades fundamentais,
e garantir às pessoas o exercício de uma vida com dignidade. Tratam-se de direitos que
fornecem razões para que as pessoas lhes concedam séria atenção. Por isso mesmo, são
direitos sujeitos a amplo debate público, com importância social suficiente para que, na esfera
pública, possam ser debatidos pelo crivo da opinião pública.
As prescrições deontológicas dos direitos humanos constituem uma certa exigência
ética, que se pretende universal: oferecem instrumentos razoáveis (submetidos ao crivo do
debate em arenas públicas) para se admitir que, se uma pessoa (ou várias) tem condições de
fazer algo para impedir a violação de um direito, ela tem boa razão para fazê-lo. A concretude
e realização dos direitos humanos decorrem da combinação entre a avaliação subjetiva, e a
prescrição ética que de fato mobiliza alguém a fazer algo por outra pessoa.
Portanto, a violação, ou a não realização de liberdades subjacentes a direitos
significativos, a direitos humanos, compreende uma realização social geral ruim, indesejável.
A avaliação subjetiva, das condições de violações de direitos humanos, depende de certo
exame do que seria possível fazer racionalmente para ajudar a realização de uma liberdade de
uma outra pessoa. Nesse sentido, Sen reafirma a importância da avaliação como instrumento
de ação.
Para que fique mais claro, tomemos um exemplo: certo número de crianças morrendo
de fome e inanição numa aldeia no sul da Etiópia. Para aquelas pessoas que ali vivem, a fome
não é um acaso, mas ocorre com certa frequência, por problemas de abastecimento, plantio,
estoques e extrema pobreza da população local. Nessas condições, certos direitos humanos
são sucessivamente violados: direito a uma alimentação adequada, direito à vida, direito à
saúde. Por mais que as autoridades locais e os habitantes daquela aldeia conheçam o problema
frequente que ali se apresenta, sua capacidade de ação e mobilização contra tais violações de
direitos é muito baixa: faltam recursos para investir em técnicas de plantio e manejo
Um dos aspectos centrais do texto da Declaração de 1986 é a afirmação peremptória
de seu artigo 1°, que inaugura o corpo do texto com a premissa que constitui a tônica do
próprio texto como um todo:
o direito ao desenvolvimento é um direito humano inalienável do qual toda pessoa humana e todos os povos estão habilitados a participar do desenvolvimento econômico, social, cultural e político, a ele contribuir e dele desfrutar, no qual todos os direitos humanos e liberdades fundamentais possam ser plenamente realizados. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1986, p. 1)
O direito ao desenvolvimento é reconhecido a dois destinatários: tanto aos povos
quanto aos indivíduos. Além disso, a participação é um aspecto fundamental da própria ideia
de desenvolvimento: tomar parte é ser ao mesmo tempo agente e beneficiário, contribuir ao
processo de desenvolvimento e dele desfrutar. Os múltiplos aspectos do desenvolvimento são
desta forma objeto de apropriação e participação dos interessados: desenvolvimento
econômico, social, cultural e político, e se traduzem no objetivo de realização plena de
direitos humanos e liberdades fundamentais. Tal tradução aproxima-se da teoria de
desenvolvimento como liberdade, conforme vimos anteriormente, ao admitir como objetivo a
realização plena de liberdades fundamentais.
No que diz respeito à recíproca, aos deveres de implementação do direito ao
desenvolvimento, tanto Estados quanto indivíduos são responsáveis por sua realização. Nos
termos da Declaração:
§3. Os Estados têm o direito e o dever de formular políticas nacionais adequadas para o desenvolvimento, que visem ao constante aprimoramento do bem-estar de toda a população e de todos os indivíduos, com base em sua participação ativa, livre e significativa, e no desenvolvimento e na distribuição equitativa dos benefícios daí resultantes. (Ibidem, p. 3)
A importância do Estado na formulação de políticas públicas que viabilizem o
desenvolvimento e também a participação dos indivíduos nesse processo fica evidente no
texto da Declaração de 1986. Tal previsão é essencial para que possamos conceber uma
política nacional de reconhecimento do direito ao desenvolvimento como direito humano.
É possível identificar três dimensões centrais no texto da Declaração sobre o Direito
ao Desenvolvimento (PIOVESAN, 2010): justiça social com equidade, igual oportunidade de
acessos a recursos básicos, como saúde, educação, alimentação e moradia; participação e
accountability, com o dever estatal de favorecer e estimular a livre e significativa participação
das pessoas na “elaboração, implementação e monitoramento de políticas de
desenvolvimento” (Ibidem, p. 211); e, ainda, a adoção de programas e políticas nacionais e
cooperação internacional, assumindo que a realização do direito ao desenvolvimento depende
tanto de ações nacionais quanto formas de cooperação internacional. Os Estados, nessa
acepção, têm o dever de adotar medidas, de forma individual ou coletiva, voltadas a formular
políticas de desenvolvimento internacional, a fim de facilitar a plena realização de direitos,
essencial para que os países em desenvolvimento encontrem meios para alcançarem tal fim.
O cerne da declaração de 1986 aproxima-a de “uma concepção estrutural ao processo
de desenvolvimento, amparada normativamente nos parâmetros internacionais de direitos
humanos e diretamente voltada à promoção e à proteção dos direitos humanos” (PIOVESAN:
2010, p. 105). Como veremos adiante, no próximo capítulo, essa aproximação entre padrões
internacionais e concepção estrutural de desenvolvimento constitui marco da formulação de
uma política doméstica, nacional, prevista no Eixo do Direito ao Desenvolvimento, no
Terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3).
Em suma, o reconhecimento do direito ao desenvolvimento como direito humano
alcançou a agenda política internacional de maneira simultânea à complexificação e
oscilações do capitalismo em nível internacional. Não é fortuito o fato de a Declaração sobre
o Direito ao Desenvolvimento datar do final da década de 80, sucedendo a crise internacional
do petróleo (mencionada no Capítulo I), tampouco o fato de suceder o aprofundamento da
crise de manutenção do regime soviético e do socialismo real, nos anos de abertura e
reestruturação da Glasnost e Perestroika36. Esse contexto internacional demandava respostas,
também em nível internacional, do sistema organizado das Nações Unidas, em torno de
propósitos comuns, e de mobilizações que consolidassem um conteúdo inadiável: o direito de
as pessoas “desfrutarem de condições favoráveis do desenvolvimento econômico, sem
qualquer tipo de exclusão”. (CALLEGARI, 2010, p. 495).
Com efeito, apesar de a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento de 1986
expressar uma visão integrativa de desenvolvimento, assumindo a indivisibilidade e
interdependência das diferentes dimensões desse direito (justiça social e igualdade de acessos,
manutenção da paz, garantia e respeito de liberdades fundamentais, cooperação internacional
36 A Perestroika foi a completa reformulação da economia planejada soviética, que antecipava a produção e distribuição de bens conforme o planejamento estatal centralizado. Nas palavras de Octávio Ianni, a Perestroika “pôs em prática mudanças profundas na estrutura do sistema econômico soviético, com a substituição dos mecanismos de economia centralmente planificada pelos mecanismos de economia de mercado”(IANNI, 1995, p. 12). A Glasnost, por sua vez, foi a politica de abertura do Estado soviético ao maior controle pela sociedade, permitindo maior liberdade de organização e expressão por organizações da sociedade civil e por cidadãos, e maior transparência das atividades estatais, inaugurando certa democratização e o progressivo desmantelamento da União Soviética, rumo a sua fragmentação política.
que assegurar liberdades seja uma via facilmente trilhável por Estados e pessoas, em direção a
se assegurar uma vida de qualidade. Um modelo que favorece o reforço de tais desigualdades,
repleto de enormes dificuldades de reversão dessas mesmas desigualdades, posto que ainda
não se provou capaz de derrubar de vez a linha imaginária – e a distinção material real,
concreta – que divide o mundo rico, próspero e desenvolvido, do mundo pobre e
subdesenvolvido.
O problema da liberdade acompanha o problema da desigualdade. Um dos críticos
recentes das roupagens institucionais do capitalismo liberal, Thomas Piketty, assume haver
duas principais razões para as desigualdades de renda das pessoas:
“a desigualdade de renda do trabalho e desigualdade de renda do capital. Quanto mais desigualmente distribuído é cada um desses componentes, maior a desigualdade total. Em abstrato, é perfeitamente possível imaginar uma sociedade em que a desigualdade relacionada ao trabalho é alta e a desigualdade relacionada ao capital é baixa, ou vice-versa, assim como uma sociedade na qual ambos os componentes são altamente desiguais ou altamente igualitários” (PIKETTY: 2014, p. 224, livre trad. do autor).
Não é tampouco o fato de haver a liberdade de mercado que as liberdades e
capacidades sejam tolhidas, como alguns autores pregam. As oportunidades econômicas de
realizar trocas vantajosas, encontrar o que melhor satisfaça desejos ou necessidades mediatas
ou imediatas são garantidas no momento em que também se garante a liberdade de transações,
de trocas justas. Nelas, o elemento monetário é revertido em bem ou serviço, a fim de pagar
pelos custos de sua produção ou prestação. O valor que excede o custo da produção ou
prestação de serviço, lucro que gera investimento para expansão produtiva, pode ser
condenável do ponto de vista de reproduzir as próprias desigualdades da já existente
concentração de meios de produção. Resolver esse dilema não é tarefa das mais simples, mas
um dos pontos cruciais para tanto, estaria, em princípio, em se estabelecer regras de tributação
justa, através das quais os que detivessem mais meios de produção pagassem mais por isso,
enquanto os mais pobres devessem pagar proporcionalmente menos, em comparação a seu
rendimento total e a sua capacidade de gerar rendimento com seu conjunto de bens
disponíveis (riqueza).
Evidentemente, estabelecer um equilíbrio entre crescimento demográfico, substituição
populacional, ingresso no mercado de trabalho e aposentadoria, entre expansão da atividade
produtiva e tributação que a retarde não são cálculos simples, que possam se reverter em
maior justiça social e gerar maiores oportunidades, bem-estar e qualidade de vida às
populações. No entanto, ao apresentarmos a teoria de desenvolvimento como liberdade,
3.2. A agenda política dos Direitos Humanos: os Programas Nacionais de Direitos Humanos
Certas áreas temáticas são comumente consideradas objetos de políticas públicas,
como Educação, Saúde, Segurança Alimentar e Nutricional, Comércio Exterior, Previdência
Social, Assistência Social, Trabalho e Emprego, Defesa ou mesmo Política Fiscal. Todas essas
áreas temáticas são lembradas pela relevância que assumem na vida das pessoas. No entanto,
quando se considera os direitos humanos como conteúdo de políticas públicas, não raramente
se verifica uma certa visão de individuação ou segmentação de tal conteúdo, como se as
políticas em direitos humanos fossem exclusivamente direcionadas a grupos vulneráveis e
minorias: população de lésbicas, gays bissexuais e transexuais, crianças e adolescentes,
negros, mulheres, população de rua ou em situação carcerária, etc. Essa visão restritiva
olvida-se da universalidade dos direitos humanos, e acaba resultando em discursos
simplificadores e nem sempre verdadeiros sobre o real conteúdo das ações voltadas à proteção
e promoção de tais direitos.
Não se duvida da relevância das políticas seccionadas, voltadas a grupos vulneráveis e
minorias como política de reconhecimento de diversidade e diferença, e empoderamento para
o exercício, em condições de igualdade com as demais pessoas, de outros direitos. O que não
é possível admitir é que o objeto das políticas em direitos humanos restrinja-se tão somente a
tais parcelas: é preciso, não obstante, enxergar as ações voltadas à universalidade das pessoas,
consideradas também em sua igual titularidade de direitos. Por isso mesmo, o direito ao
desenvolvimento, a garantia de poder desobstruir amarras e obstáculos que impeçam o livre
exercício das potencialidades e talentos individuais é, talvez, um dos mais universais desses
direitos.
Nesse sentido, alguns questionamentos se fazem necessários: o que são políticas
públicas? Qual a sua importância para os direitos humanos? E em que consistiria uma política
pública em direitos humanos?
Segundo Colebatch, policy38 é um “conceito na análise do processo de governo”
(COLEBATCH apud HOWLETT et al., 2013, p. 3). Essa definição, um tanto abrangente,
38 Os estudos e análises mais relevantes sobre politicas públicas surgem nos Estados Unidos da América, no
século XX, focados na ação dos governos. A principal premissa desses estudos é a de que, nas democracias estáveis, o que um governo faz ou deixa de fazer pode ser objeto de reflexão acadêmica independente. Isso
correlaciona política pública à atividade de governo. Isso significa que a noção de governo
pode ser decomposta a partir de suas atividades, dentre as quais estão as políticas públicas.
Essa definição coaduna-se com a definição de Thomas Dye, que diz que políticas públicas são
“tudo aquilo que um governo decide fazer ou deixar de fazer” (DYE, 1972, p. 2). Apesar de se
tratar de uma definição um tanto simples, uma vez que as atividades governamentais vão
muito além do conteúdo das políticas públicas, o fato de situar o governo como ator das
políticas públicas significa reconhecê-lo como instância de decisão oficial a respeito de um
determinado assunto, embora algumas atividades de atores não governamentais possam
influenciar decisões de governo, e também auxiliá-lo na implementação de políticas públicas.
Outro conceito de políticas públicas é apresentado por Jenkins, que nos traz uma
definição um pouco mais completa:
“um conjunto de decisões inter-relacionadas, tomadas por um ator ou grupo de atores políticos, e que dizem respeito à seleção de objetivos e dos meios necessários para alcançá-los, dentro de uma situação específica em que o alvo dessas decisões estaria, em princípio, ao alcance desses atores” (JENKINS apud HOWLETT et. Al, 2013, p. 8)
Tal noção perpassa portanto duas ideias: a de que políticas públicas são um conjunto
de decisões, portanto, são complexas e demandam diferentes ações, simultâneas ou
sucessivas, e estão voltadas a alcançar um determinado objetivo. A relação entre meios
escolhidos para atingir determinado fim é portanto determinante para o campo de formulação
de políticas públicas. Nessa definição, vemos que esse cálculo, a escolha entre fazeres (ações)
e não fazeres (omissões) é feita por atores políticos, sejam eles estatais ou não, com
capacidade de escolha, dentre um leque de opções disponíveis, entre fazer ou não fazer algo.
A língua inglesa possui duas palavras para distinguir esses conceitos: policy e politics,
distinção que, em certa medida, denota a interpretação frequente de autores anglófonos, de
que as políticas públicas são objetivamente mensuradas como produtos, isto é, resultados de
um processo político, decisório. É o que Randall Ripley define serem as políticas públicas:
um “conjunto de atividades realizadas pelos atores, que resultam em produtos identificáveis”
(RIPLEY: 1995, p. 158, trad. do autor). Não diferente é o conceito apresentado por Maria das
Graças Rua: “as políticas públicas (policies) são outputs (produtos), resultantes da atividade
teria permitido o desenvolvimento de estudos no campo multidisciplinar dessas políticas, analisadas sob o enfoque da sociologia, da ciência política, da administração, da economia e de outros conhecimentos das chamadas ciências sociais aplicadas. Autores como Guy Peters, Theodor Lowi, Thomas Dye, Laurence E. Lynn Jr. foram responsáveis por conduzir importantes estudos nesse campo. Introduzimos o conceito de políticas públicas pelo uso de policy no texto deste trabalho, a fim de remeter à origem do termo, apresentando a distinção entre policy e politics dois parágrafos adiante.
política (politics): compreendem o conjunto das decisões e ações relativo à alocação
imperativa de valores.” (RUA, 1998, p. 14)
Essas definições apresentam em comum a noção de produto, o que representa uma
certa lógica de justificação da existência dos Estados na modernidade capitalista: a de que os
cidadãos são usuários, beneficiários desses produtos, e que o Estado (e seus parceiros) são os
fabricantes, autores desses produtos. Essa lógica justifica ou reforça a existência do próprio
Estado, uma vez que cria uma espécie de simbiose entre Estado e cidadania: imprime nas
pessoas um conjunto de expectativas sobre a ação concreta do Estado para resolver problemas
comuns, e estimula as pessoas a participarem de processos decisórios, a demandarem por mais
resultados e políticas de qualidade, reforçando os mecanismos democráticos indutores de
políticas e decisões na estrutura do Estado.
Chama também a atenção a noção de valor, de alocação imperativa de valores,
expressa na definição de Rua. Os valores são escolhas, são expressões do que se considera
importante num dado contexto espacial e temporal de uma sociedade, por ela mesma ou por
grupos de poder a ela pertencentes: preservar o meio ambiente, impedir a mobilidade social,
proteger a propriedade privada, educar as crianças para a participação política, garantir que
mulheres usem o chador em público, ou garantir liberdades religiosas, de crença e culto, por
exemplo. A alocação imperativa desses valores constitui uma exigência ética (um dever ser)
da decisão por fazer ou não fazer algo e, comumente, o império da lei (rule of law) é o recurso
que legitima essa ação estatal, sobretudo nas democracias ocidentais. Alocar valores é
portanto decidir por algo com fundo ético, escolher tomar uma decisão e usar os meios
disponíveis para cumprimento dessa decisão.
Nesse sentido, o que seriam políticas públicas em direitos humanos? Ora, como vimos,
os direitos humanos são prescrições éticas importantes, que necessitam de adesão racional
ampla e constante. Ao constituírem um chamado à mudança, seu fundo imperativo se constitui
na medida em que exigem a participação e têm como pressuposto a democracia: em um
debate amplo, racional, sobre que prescrições devem ser observadas. Nos dizeres de Sen:
As proclamações de direitos humanos, mesmo que sejam formuladas reconhecendo a existência de coisas chamadas direitos humanos, são declarações éticas realmente fortes sobre o que deve ser feito. Elas exigem que se reconheçam determinados imperativos e indicam que é preciso fazer alguma coisa para concretizar essas liberdades reconhecidas e identificadas por meio desses direitos.
Aqui cabe considerar que a força da afirmação sobre a existência dos direitos humanos se encontra no reconhecimento de algumas liberdades importantes que alegadamente devem ser respeitadas e, por conseguinte, da aceitação por parte da
sociedade de suas obrigações de apoiar e promover essas liberdades, de uma forma ou de outra. (SEN, 2013, pp. 398 – 399)
A dificuldade em conceituar ou visualizar uma política pública em direitos humanos é
evidente, pela amplitude de objetos a que tais direitos dizem respeito: se considerarmos a
visão de Amartya Sen sobre os direitos humanos como proclamações revestidas de conteúdo
ético, a fim de conferir concretude a liberdades, é necessário, antes de tudo, definir o conteúdo
dessas proclamações, de modo que constituam um chamado à ação em defesa de liberdades
fundamentais.
Nesse sentido, a teoria do desenvolvimento como liberdade consubstancia em
profundidade o propósito mais caro dos direitos humanos: o de garantir que as pessoas
possam exercer suas capacidades e potencialidades de forma livre, desimpedidas de
obstáculos e amarras que dificultem seus acessos sociais. O chamado do direito ao
desenvolvimento consiste na defesa de que as pessoas exerçam o poder de autodeterminação,
e vivenciem essa experiência também em defesa da autodeterminação de seus semelhantes.
Situando a liberdade como valor, Amartya Sen faz uma importante observação:
A liberdade é um conceito complexo. Deparar-se com mais alternativas não necessita ser invariavelmente considerado como uma expansão da liberdade de uma pessoa para fazer coisas que gostaria de fazer. Se for dado valor a uma vida sem complicações (e a rotina apressada da constante tomada de decisões não for superestimada), a liberdade para realizar a forma preferida de vida não necessariamente aumentará com a multiplicação de escolhas triviais. (…) A expansão das escolhas a serem feitas é tanto uma oportunidade (as escolhas podem ser feitas por nós mesmos) e um ônus (as escolhas têm de ser feitas por nós mesmos). (SEN, 2012, pp. 111-112)
Reconhecer a liberdade como poder de escolha, e não dever de escolha, é talvez a mais
difícil tarefa do chamado ético dos direitos humanos. O poder de escolha é a forma de
empoderamento de as pessoas exercerem a vida que mais desejam levar. Trata-se de criar
oportunidades para a autodeterminação, e de reconhecer que alguns outros mundos possam
caber neste mundo. Não é o fato de as economias capitalistas crescerem sua produção e as
pessoas serem inseridas em seus mercados com maiores e mais amplas possibilidades de
escolhas triviais que as garanta maior liberdade de poder exercer a vida que mais desejam:
uma camponesa que queira uma vida simples, um indígena que queira viver sossegado e
longe dos excessos de uma grande cidade, um quilombola que pretenda não mais que se
realizar em sua comunidade, com seus semelhantes, não necessariamente são menos livres
que um jovem urbano e rico, que viva numa grande cidade como São Paulo, e disponha de
uma série de produtos ou bens para sua satisfação própria.
Esse alerta é importante porque constitui o fundamento ético de realização das
pessoas, e constitui também o fundamento dos direitos humanos: situar liberdades enquanto
oportunidades, enquanto instrumentos de poder exercer a vida da forma mais aprazível que se
pretender, e não como mera multiplicação de escolhas sociais triviais. Trata-se de empoderar
as pessoas para poderem se autodeterminar, realizarem-se e, em última instância serem felizes
conforme a avaliação de seu contexto e a projeção ideal (e concretizável) de felicidade que
pretenderem para si.
Uma política de direitos humanos, portanto, tem por escopo eleger liberdades
indispensáveis para que as pessoas possam viver uma vida satisfatória, revertendo em seu
benefício, em seu bem-estar, o exercício de tais liberdades, sejam elas instrumentais ou
substantivas. Em decorrência dessa necessidade de eleger seus conteúdos éticos, quais
liberdades devem ser observadas e garantidas, é que a chamada montagem de agenda das
políticas públicas em direitos humanos é indispensável para sua elaboração e concretização.
Segundo John Kingdon,
A agenda (…) é a lista das questões ou problemas que recebem alguma atenção séria, em algum dado momento, por arte dos funcionários do governo e das pessoas de fora do governo que estão próximas a esses funcionários... Do conjunto de todas as questões ou problemas concebíveis, aos quais os funcionários poderiam estar voltando sua atenção, na realidade prestam séria atenção apenas a alguns, e não a outros. Assim, o processo da montagem da agenda limita esse conjunto de questões concebíveis ao conjunto que de fato se torna foco de atenção. (KINGDOM apud HOWLETT et. al., 2013, p. 103)
A agenda dos direitos humanos, ao menos no plano internacional, como vimos no
capítulo anterior, remonta ao período pós-segunda guerra, a partir do qual as nações passaram
a endereçar questões importantes relativas a direitos humanos, assumir compromissos e
fortalecer fóruns multilaterais de compromissos recíprocos. Esse contexto certamente
contribuiu para que cada país também concebesse políticas domésticas de proteção e
promoção de direitos humanos. A montagem de agenda dos direitos humanos no Brasil,
portanto, está intimamente relacionada aos compromissos assumidos pelo país no plano
internacional, e as escolhas, princípios e diretrizes dos Programas Nacionais de Direitos
Humanos refletem, em boa medida, tais compromissos.
Foi após a II Conferência Internacional de Direitos Humanos, realizada em Viena, na
Áustria, no ano de 1993, que algumas resoluções passaram a impactar concepções de
desenvolvimento humano. A Declaração de Viena constituiu-se marco para os direitos
humanos, que passaram a ser considerados em seu caráter indivisível, além de ter enfatizado a
importância dos direitos de solidariedade, do direito à paz, do direito ao desenvolvimento e
dos direitos ambientais.
A participação do Brasil na Conferência de Viena, com a presidência da Comissão
Final de Redação, garantiu importante respaldo nas negociações com o conjunto de demais
países, e contribuiu decisivamente com o texto do Programa de Ação em seu tópico C
(cooperação, desenvolvimento e fortalecimento dos direitos humanos). A partir da
Conferência, o governo brasileiro admitiu, em 1995, a crítica situação dos direitos humanos
no país e assumiu a necessidade de lançar um programa nesse sentido, que tratasse de temas e
questões sensíveis, seguindo a recomendação final da Conferência, de que os Estados-Parte
adotassem programas nacionais de direitos humanos. Conforme destaca Lourenço de
Almeida:
O Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) foi lançado pelo Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, em 13 de maio de 1996, por meio do Decreto nº 1.904/1996. Assim, o Brasil foi o terceiro país a cumprir as recomendações da Conferência de Viena (junho – 93). (…) O PNDH consolidou, no plano normativo e político, significativo consenso em torno de propostas debatidas entre o governo e diversas entidades da sociedade civil, impulsionadas pelo processo preparatório e seguimento da Conferência de Viena. (…) A intensa participação nos seminários preparatórios para a elaboração do PNDH evidencia uma evolução positiva no debate entre governo e sociedade antes da elaboração final do PNDH. O programa foi concluído entre novembro de 1995 e abril de 1996, sob a coordenação do então chefe de gabinete do Ministério da Justiça, José Gregori, a partir de projeto básico elaborado pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV – SP). (…) Sua gênese ode ser explicada a partir das modificações ocorridas, na primeira metade dos anos 90, em relação ao comportamento do Estado e da comunidade brasileira de direitos humanos diante da agenda doméstica e externa do tema. A partir do processo preparatório para a Conferência Mundial de Direitos Humanos das Nações Unidas, inicia-se diálogo entre o Estado e esses atores. Em certa medida, esse contato propicia uma aliança pontual no que diz respeito à estruturação da agenda brasileira de direitos humanos, retirando-a do estágio de mera denúncia das violações, buscando algum consenso para a definição de uma agenda positiva. (LOURENÇO DE ALMEIDA: 2002, pp. 131-132)
O diagnóstico sobre a situação dos direitos humanos, à época do governo de Fernando
Henrique Cardoso, incentivou a criação de uma agenda de direitos humanos nacional, que
encontra fortes características do chamado modelo de mobilização que “descreve o processo
da construção da agenda em situações em que os líderes políticos iniciam uma política, mas
exigem o apoio maciço do público para sua implementação.[..]o problema crucial é
transportar a questão da agenda formal para a agenda pública.” (ROSS et. al. apud
HOWLETT et. al, 2013, p. 114).
Em que pesem a mobilização da sociedade civil no período de transição entre a
ditadura civil-militar e a democratização, sobretudo com a campanha das Diretas Já e o novo
marco político inaugurado com Constituição de 1988, a agenda dos direitos humanos no
Brasil ainda não contava com respaldo sistemático, articulado e suficientemente mobilizado
entre os setores da sociedade civil brasileira no começo dos anos 90, para exigir do governo a
formulação de políticas também em caráter sistemático, transversal e complexo de uma
agenda inteiramente autônoma, iniciada exclusivamente entre tais setores. Esse diagnóstico
demandava uma decisão dos próprios agentes governamentais, em consonância com os
compromissos assumidos em Viena em 1993 para estimular e mobilizar a sociedade civil a
construir a apresentar suas demandas nessa área. Foi o que aconteceu, num processo iniciado
após a declaração do Presidente Fernando Henrique em 7 de setembro de 1995, de
mobilização das organizações da sociedade civil para discutir propostas preliminares de ação governamental, elaboradas pelo NEV (Núcleo de Estudos sobre a Violência da Universidade de São Paulo), para serem incluídas no pré-projeto do Plano Nacional de Direitos Humanos. Ocorreu rápida resposta por parte da sociedade, e em curto espaço de tempo foram viabilizados seis seminários regionais, reunindo as organizações mais representativas de direitos humanos, personalidades e especialistas da área. (LOURENÇO DE ALMEIDA, 2002, p. 136)
Já o PNDH-2, constituído no ano de 2002, foi resultado de uma ampla revisão do
Primeiro Programa (que na verdade foi concebido com o formato de Plano), atentando-se para
as críticas e recomendações constantes da IV Conferência Nacional de Direitos Humanos, de
1999. Podemos observar que o PNDH 2 constitui-se de forma já distinta do PNDH, sob dois
aspectos essenciais: o modelo de montagem de agenda pela via exclusiva de mobilização é
relativizado, uma vez que as Conferências Nacionais de Direitos Humanos já se
configuravam como experiências em curso (a primeira delas data de 1996), passando a uma
maior proximidade ao modelo de iniciação externa de montagem de agenda (HOWLETT et.
al, 2013, p. 114) e a própria nomenclatura se altera: deixa-se de lado a ideia de Plano de
Direitos Humanos para passar a ser conhecido como Programa, em caráter sistemático,
programático, transversal e estruturante, como política de Estado.
O modelo de montagem de agenda pela via de iniciação externa pressupõe que as
questões tenham origem nos grupos não governamentais e em seguida expandam seu alcance
para chegar à agenda pública e finalmente à agenda formal. Os grupos sociais exercem o
papel protagonista de articular reivindicações e cobrar, do governo, ações concretas.
(HOWLETT et. al, 2013). Consideramos aqui o maior protagonismo das organizações da
sociedade civil, diante da trajetória precedente da primeira versão do PNDH, o papel das
Conferências Nacionais, a ampliação dos debates internacionais cobre o tema, e o contexto da
democracia brasileira. Sob esse aspecto, podemos dizer que a segunda versão do PNDH
oscila entre um modelo e outro de formação de agenda (entre o modelo de mobilização e o de
iniciação externa), já que tanto governo quanto sociedade civil atuam de forma complementar
na construção e elaboração das propostas, tendo a segunda um papel fundamental, posto que a
revisão e atualização do Primeiro Programa decorrem de uma demanda dela. Conforme se
observa no texto de introdução ao PNDH-2:
O processo de revisão do PNDH constitui um novo marco na promoção e proteção dos direitos humanos no País, ao elevar os direitos econômicos, sociais e culturais ao mesmo patamar de importância dos direitos civis e políticos, atendendo a reivindicação formulada pela sociedade civil por ocasião da IV Conferência Nacional de Direitos Humanos, realizada em 13 e 14 de maio de 1999 na Câmara dos Deputados, em Brasília.
A atualização do Programa Nacional oferece ao governo e à sociedade brasileira a oportunidade de fazer um balanço dos progressos alcançados desde 1996, das propostas de ação que se tornaram programas governamentais e dos problemas identificados na implementação do PNDH.
As propostas de atualização foram discutidas em seminários regionais, com ampla participação de órgãos governamentais e de entidades da sociedade civil e, posteriormente, registradas e consolidadas pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo – NEV/USP. Após esforço de sistematização, aglutinação e consulta aos Ministérios e órgãos da área social, sob a coordenação da Casa Civil da Presidência da República, chegou-se a texto com 500 propostas, consideradas todas as categorias de direitos. A Secretaria de Estado dos Direitos Humanos realizou ainda, no período de 19 de dezembro de 2001 a 15 de março de 2002, consulta pública através da internet, dela resultando, após correções e ajustes finais, o texto do PNDH II com 518 propostas de ações governamentais. (BRASIL, 2002, p. 2-4) (grifo nosso)
O papel da sociedade civil como iniciador do processo, e o papel complementar do
governo, como elemento de articulação e sistematização das propostas, foram fundamentais
ao segundo Programa. Seu marco constitutivo é o Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, também de 1999, sendo que a IV Conferência Nacional de
Direitos Humanos que originou o Programa teve como subtítulo: sem direitos sociais não há
direitos humanos.
A grande inovação do PNDH-2, além do caráter mais sistemático de suas propostas e a
diferença de seu modelo de iniciação, é a de reconhecer a importância dos direitos
econômicos, sociais e culturais. Essa inflexão contribuiu para que a agenda dos direitos
humanos fosse tornada política de Estado: diferentemente do PNDH-1, em que tais direitos
haviam sido eclipsados por razões políticas, o PNDH-2 inova ao reconhecer tais direitos,
mil representantes da sociedade civil organizada e do poder público, o que revestiu o
programa de uma relevante participação social.
Chama a atenção também o fato de o PNDH-3 constituir-se de forma apartidária,
como foram os Programas anteriores, espelhando visões de direitos humanos originadas na
sociedade organizada, nas recomendações do comitês de monitoramento de tratados da
Organização das Nações Unidas e nos próprios Tratados e Convenções de que o Brasil faz
parte, não privilegiando nenhum tipo de hegemonia partidária ou visões exclusivas de seus
membros de qualquer partido, mas resultado de uma mediação de interesses distintos,
expressos por meio de seus mecanismos de participação. Dentre tais mecanismos, além das
etapas prévias e Conferências realizadas, o texto do PNDH-3 contou também com uma
consulta pública na Internet no ano de 2009, em que a versão preliminar do Programa esteve
disponível para sugestões de aperfeiçoamento no sítio virtual da Secretaria de Direitos
Humanos da Presidência da República. (BRASIL, 2009)
Curiosamente, mesmo com todas essas características (ampla participação social,
mediação de interesses, sistematização de propostas resultantes de diferentes conferências
temáticas, consulta pública, apartidarismo), o Programa foi objeto de severas críticas por
setores midiáticos, acadêmicos, jurídicos, e políticos, que afirmavam que a Proposta
compreendia medida “semelhante ao modelo venezuelano”, seguia o “estilo da União
Soviética”, o “estilo de Hitler e Mussolini”, e ainda previa uma “reformulação completa da
Constituição”39, além de fazer entrar a “velha visão esquerdista e ideológica”40
O completo desconhecimento sobre os históricos dos Programas de Direitos Humanos
no Brasil e a agressividade retórica de que se valeram setores de opinião expuseram um ódio
visceral ao Programa. Também partiram do próprio governo algumas críticas ao PNDH-3,
como fez o Ministério da Defesa, que capitaneou a maior parte das retificações ao texto de
2009, consubstanciadas no Decreto nº 7.177, de 12 de maio de 2010 (BRASIL, 2010). O
recuo com relação a temas como identificação de logradouros públicos com nomes de agentes
da ditadura, e o acompanhamento de tramitação judicial de processos originados no período
da ditadura civil-militar foram revistos no Decreto nº 7.177, em meio a um ano eleitoral.
3.3. O governo Lula e o contexto de formulação do Programa
39 Entrevista concedida ao Programa de Televisão Jô Soares, (Programa do Jô, transmitido pela Rede Globo de
Televisão) pelo jurista Ives Gandra da Silva Martins em 27 de outubro de 2009, em que tais termos foram utilizados para se referir ao PNDH-3. (JÔ SOARES ENTREVISTA IVES GANDRA SOBRE O PNDH-3, 2009)
40 Reportagem publicada no Jornal Folha de São Paulo, em 12 de janeiro de 2010. (ABREU: 2010).
enxergar ganhos comparativos maiores, com a expansão da renda do trabalho via expansão
salarial e aumento da massa trabalhadora e dos programas de transferência de renda.
O governo Lula conseguiu, ao longo de oito anos, a façanha de um reformismo que,
ainda que classificado como “fraco” (SINGER, 2012) por não alterar as desigualdades
socioeconômicas de forma estrutural, conseguiu beneficiar fatias nada desprezíveis da
sociedade brasileira, compondo uma verdadeira coalizão de forças sociais no cerne de uma
economia emergente. Fez, ainda que marginalmente (e, como vimos, herdando práticas e
visões predecessoras, sem alteração estrutural de questões como os grupos e segmentos no
exercício do poder), o que Bresser-Pereira defende como proposta de seu novo-
desenvolvimentismo:
desde o começo deste século, comecei a desenvolver um sistema novo de pensamento que hoje já é uma coisa bastante estruturada: uma economia política e uma macroeconomia novo-desenvolvimentistas. A economia política está baseada na idéia de uma coalizão de classes desenvolvimentista e portanto em um Estado desenvolvimentista que é essa coalizão formada por empresários, trabalhadores e a burocracia pública – para se opor à coalizão de classes liberal ou neoliberal, formada fundamentalmente por capitalistas rentistas, por financistas, que administram a riqueza dos primeiros, e por uma classe média também rentista bastante grande. A meu ver este é o conflito que existe nas sociedades capitalistas, que existe no Brasil, nos EUA ou na França. Então, o que procuro é primeiro entender a lógica dessa coalizão de classes, suas contradições, dificuldades etc.. Sobre isso eu tenho todo um conjunto de trabalhos. E depois tenho a teoria econômica, que vai ser uma microeconomia e uma macro. (BRESSER-PEREIRA, 2014)
Com efeito, a coalizão de forças dos governos Lula (2003-2010) apresentou um forte
componente de atendimento simultâneo de interesses, que atravessou desde setores mais
pobres da sociedade às camadas do setor financeiro e rentista. Em grande medida, o conjunto
de reformas e expansão de capacidades estatais promovido nesse período foi favorecido por
um contexto internacional extremamente favorável à entrada de divisas, e por um saneamento
fiscal do Estado, o que permitiu também o financiamento das políticas de interesse desses
diferentes setores.
Por outro lado, apesar do otimismo que marcou esse período, com relação às
perspectivas econômicas e a possibilidade de financiamento de políticas especificas, o que o
neodesenvolvimentismo produziu foi uma concertação conjuntural de classes, sem tocar com
profundidade em consequências históricas do processo de acumulação capitalista brasileiro,
dentre as quais se sobressai, de forma relevante, a imensa desigualdade social. O que acontece
no período, de fato, foi uma inclusão importante, porém marginal da população mais pobre
nos mercados de trabalho e consumo, e uma expansão não desprezível de sua renda. No
que a desigualdade de renda no Brasil permanece muito alta e estabilizada entre os anos de
2006 e 2012. Revela também que quase metade de toda a renda produzida no Brasil está
concentrada nos 5% mais ricos, e um quarto dessa renda, no 1% mais rico, e ainda que o
milésimo mais rico da população brasileira acumula mais renda que o total da metade mais
pobre da população (MEDEIROS, SOUZA e CASTRO, 2014). Segundo os autores,
isso reflete um perfil que já é bem conhecido: o Brasil é marcado por uma grande massa de população de baixa renda que se distingue de uma pequena, porém muito rica, elite. Esse perfil não se altera significativamente ao longo do tempo. Há mudanças no longo trecho da base da distribuição que vai do 0% ao 90% mais pobres, mas a concentração no topo é bastante estável, especialmente acima do 1% mais rico. (Ibidem, p. 27)
O modelo de perda da legitimidade política da agenda do Consenso de Washington,
que caracterizou em alguma medida o neodesenvolvimentismo brasileiro e que, segundo
Gomide e Pires “recolocou um papel central para o Estado no processo de desenvolvimento”
(2014, p. 15), e resgatou um ativismo estatal sem estatismo (ARBIX e MARTIN, 2010), por
meio de ferramentas que estimulam o mercado ao mesmo tempo que também investiu em
políticas sociais de combate à miséria. No entanto, esse modelo não tocou com intensidade e
profundidade na apropriação da renda nacional, o que proporcionou a continuidade de ganhos
comparativamente muito distantes entre pobres e ricos, reforçando as desigualdades sociais já
existentes.
Em última análise, o neodesenvolvimentismo pode ser caracterizado por uma forma de
gestão do sistema capitalista no Brasil, constituído na era Lula, que conseguiu beneficiar
diferentes segmentos da sociedade brasileira, por meio da diversificação da atuação e
participação do Estado em uma ampla gama de políticas públicas, com programas de estímulo
e expansão do crédito com taxas subsidiadas por bancos públicos, investimentos em
infraestrutura, ampliação de programas de transferência de renda e mesmo de outras políticas,
como as de acesso ao ensino superior sem, contudo, deixar de possibilitar o enriquecimento
dos setores financeiros e rentistas, beneficiados por taxas de juros ainda comparativamente
vantajosas em relação ao resto do mundo (ainda que tenham sido objeto de algumas
importantes reduções).
Essa forma de gestão do capitalismo e de suas crises no país atentou-se a uma
expansão do emprego e da renda de classes trabalhadoras, sem desatentar-se, em
contrapartida, com os ganhos de investimento de capital financeiro, e os ganhos de renda
historicamente díspares entre capitalistas e trabalhadores. Márcio Pochmann reconhece que,
A grande inovação do PNDH-3 foi sua estruturação em eixos temáticos. Isso agregou
ações em linhas de atuação claras, estruturantes, o que constitui um fator de facilitação do
monitoramento da implementação de iniciativas. Apesar de o PNDH-2 ter sido elaborado no
contexto em que o Pacto Internacional dos Direitos Sociais, Econômicos e Culturais já havia
sido objeto de mobilização da Própria Conferência Nacional que delineou as diretrizes do
Programa, ele não contempla, de forma sistemática, os direitos econômicos, mas sobretudo os
direitos sociais (como direito à assistência e previdência social, ao trabalho, moradia, acesso à
terra, saúde, alimentação). Tais direitos são igualmente contemplados pelo PNDH-3, que
agrega, além destes, também ações voltadas à promoção de direitos de natureza econômica,
como o incentivo à produção local, a técnicas de manejo sustentável, políticas de geração de
renda, fomento a tecnologias com redução de danos à saúde, fortalecimento da agricultura
familiar, a defesa da concorrência, dentre outras questões.
As duas primeiras versões dos Programas Nacionais de Direitos Humanos mencionam
apoio à formulação e implementação de politicas e ações sociais para reduzir desigualdades
econômicas, sociais e culturais, com vistas à plena realização do direito ao desenvolvimento.
O Subsídio para Revisão e Atualização do Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH,
documento elaborado em 2008 pela então Secretaria Especial de Direitos Humanos da
Presidência da República, para auxiliar processo de revisão e sistematização dos Programas
anteriores, reconhece a dispersão do tema do direito ao desenvolvimento (o que talvez tenha
também contribuído para sua organização posterior em um Eixo temático específico).
Vejamos:
Como se trata de uma meta que abrange diversas temáticas e ações em direitos humanos, as informações pertinentes estão demonstradas em outros itens mais específicos do PNDH, como por exemplo, na garantia do direito à igualdade (mulheres, povos indigenas, afrodescendentes, idosos, pessoas com deficiência, LGBT) e garantia do direito ao trabalho e acesso à terra. (BRASIL, 2008, p. 1)
Essa preocupação foi estruturada em torno do Eixo Desenvolvimento e Direitos
Humanos, que trouxe uma série de ações, em princípio muito distintas entre si, mas agregadas
a partir de um ponto de sustentação comum: a visão do desenvolvimento como conceito
complexo e multidisciplinar. A Introdução a tal eixo torna ainda mais clara essa visão: O tema desenvolvimento tem sido amplamente debatido por ser um conceito complexo e multidisciplinar. Não existe modelo único e preestabelecido de desenvolvimento (...) A teoria predominante de desenvolvimento econômico o define como um processo que faz aumentar as possibilidades de acesso das pessoas a bens e serviços,
propiciadas pela expansão das capacidades e do âmbito das atividades econômicas. O desenvolvimento seria medida qualitativa do progresso da economia de um país, refletindo transições de estágios mais baixos para estágios mais altos, por meio da adoção de novas tecnologias que permitem e favorecem essa transição. Cresce nos últimos anos a assimilação das ideias desenvolvidas por Amartya Sen, que abordam o desenvolvimento como liberdade e seus resultados centrados no bem estar social e, por conseguinte, nos direitos do ser humano. (BRASIL, 2009, p. 41) (grifos nossos)
O acesso a bens e serviços, a expansão qualitativa por meio da expansão das
capacidades e do âmbito das atividades econômicas endossa o ponto de vista apresentado por
Celso Furtado, conforme pudemos expor brevemente no Capítulo 2, do aspecto distributivo
do desenvolvimento. Mas não apenas: reconhece como meio para a promoção do
desenvolvimento humano a questão do desenvolvimento econômico, e que o simples
crescimento econômico não garante, de forma automática, bem-estar:
acreditava-se que, uma vez garantido o aumento de bens e serviços, sua distribuição ocorreria de forma a satisfazer a necessidade de todas as pessoas. Constatou-se, porém, que, embora importante, o crescimento do PIB não é suficiente para causar, automaticamente, melhoria do bem-estar de todas as camadas sociais. (Ibidem)
Além do desenvolvimento econômico, por meio da garantia de medida qualitativa de
progresso de um país, o Programa reconhece expressamente a importância da teoria de
desenvolvimento como liberdade, sendo o Eixo Desenvolvimento e Direitos Humanos o único
dentre os seis Eixos do PNDH-3 a mencionar expressamente um autor, Amartya Sen, como
referência teórica e conceitual.
É possível observar, a partir da análise mais geral das ações previstas no Eixo
Desenvolvimento e Direitos Humanos, um esforço de agregar, a partir da experiência
pregressa de governos democráticos, a transformação dessas experiências de governo, em
princípio desconexas, em uma política de Estado de direitos humanos. A sistematização de
propostas – concretas ou de conteúdo concretizável, possível de serem mensuradas se
implementadas ou não – na área de desenvolvimento parte do know-how precedente, da
trajetória de uma crescente ampliação de capacidades estatais, espelhada na criação e
inovação no campo das políticas públicas. Como vimos no Capítulo 1, essa ampliação de
capacidades estatais fica ainda mais mais clara com a matriz neodesenvolvimentista, e os
governos que a promoveram (e não somente eles, pois é possível identificar iniciativas de
outros governos que auxiliaram as propostas), que inovaram numa série de políticas em
diversas áreas. Essa experiência foi aproveitada na articulação de uma política mais geral de
direitos humanos. O quadro a seguir espelha certa correlação entre programas de governo
predecessores e as ações do PNDH-3, no que diz respeito ao eixo Desenvolvimento e Direitos
Humanos:
Figura 7: Correlação de Ações do Eixo Desenvolvimento e Direitos Humanos do PNDH-3 e Programas de Governo instituídos em governos antecessores
Ações Programas e Experiências antecedentes
a) Ampliar e fortalecer as políticas de desenvolvimento social e de combate à fome, visando a inclusão e a promoção da cidadania, garantindo a segurança alimentar e nutricional, renda minima e assistência integral às famílias.
Programa Bolsa-Familia, Programa Fome Zero, Programa Nacional de renda mínima vinculado à Saúde – Bolsa-Alimentação, Programa Nacional de Acesso à Alimentação – PNAA
b) Expandir politicas públicas de geração e transferência de renda para erradicação da extrema pobreza e redução da pobreza.
Beneficio de Prestação Continuada (BPC), Programas de Transferência de Renda (Bolsa-Escola, Vale-Gás, unificados no Bolsa-Família), Programa de Transferência Condicionada,
e) Incentivar as politicas públicas de economia solidária, de cooperativismo e associativismo e de fomento a pequenas e microempresas
Programa Economia Solidária em Desenvolvimento, instituição do Simples Nacional (regime simplificado de tributação reduzida de micro e pequena empresas), instituição da figura jurídica nova, Microempreendedor Individual (MEI), Programa Nacional de Microcrédito Produtivo Orientado (PNMPO)
h) Erradicar o trabalho infantil, bem como todas as formas de violência e exploração sexual de crianças e adolescentes nas cadeias produtivas, com base em Códigos de Conduta e no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), de 1996.
b) Fortalecer a agricultura familiar camponesa e a pesca artesanal com ampliação do crédito, do seguro, da assistência técnica, da extensão rural e da infraestrutura para comercialização.
Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), de 1996.
c) Fomentar tecnologias alternativas para substituir o uso de substâncias danosas à saúde e ao meio ambiente, como poluentes orgânicos persistentes, metais pesados e outros poluentes inorgânicos.
Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel, de 2004.
b) Fortalecer o sistema brasileiro de defesa da Estruturação e definição de competências do
Por isso mesmo, essa concepção e coaduna com o que Amartya Sen considera indispensável à
elaboração de política de redução de desigualdades sociais:
uma recomendação de política está condicionada à exequibilidade, mas o reconhecimento da pobreza tem de ir além disso. Pode-se argumentar que o primeiro passo consiste em diagnosticar a privação, e relacionado com ele, determinar o que devemos fazer se tivermos os meios. E então o próximo passo é fazer escolhas de políticas reas em conformidade com nossos meios. Neste sentido a análise descritiva da pobreza tem de ser anterior à escolha de políticas. (SEN, 2012, p. 171)
A importância da avaliação é central ao sucesso, à exequibilidade de uma política de
direitos humanos. As diferentes expressões da pobreza, assim como os diferentes contextos e
meios de sua superação revelam-se ter precedido a elaboração das ações previstas no Eixo
Desenvolvimento e Direitos Humanos do PNDH-3. Uma descrição atenta das condições
diversas de pobreza no Brasil foi necessária para estruturar ações mais concretas para
erradicação da pobreza. Apesar do caráter parcialmente generalista das ações, dado que a
agenda ali contida é de expressão nacional, observa-se também um conteúdo mais ocupado
com o desenvolvimento de forma regionalizada, especificada conforme o contexto de
superação.
Essa preocupação com as diferentes expressões da pobreza é indicada no texto das
ações do Programa, que se voltam, por exemplo, a comunidades tradicionais, quilombolas e
indígenas, e às possibilidades de enfrentamento da pobreza, inclusão produtiva e fomento à
produção nos meios urbanos e rurais, sem descuidar de uma lógica regionalizada dessa
proposta de desenvolvimento. Ações de estímulo à economia solidária, ao associativismo e
cooperativismo sustentáveis, à agricultura familiar e atividades econômicas agroecológicas
também refletem essa preocupação.
Dentre as ações previstas previstas na diretriz de número 5 do Eixo Desenvolvimento
e Direitos Humanos, voltadas à valorização da pessoa humana como sujeito central do
processo de desenvolvimento, uma ação bastante sensível ao projeto neodesenvolvimentista
diz respeito à participação e controle social em políticas públicas de desenvolvimento com
grande impacto socioambiental. Afinal, o modelo neodesenvolvimentista, ao retomar
capacidades do Estado para oferecer uma estrutura que viabilize e estimule a produção – por
meio da viabilização de construção de estradas, aeroportos, hidrovias e ferrovias, ou a
produção de energia – , acaba também entrando em choque com interesses e visões de mundo
diversos, sobretudo de povos e comunidades não diretamente estabelecidos na lógica de
expansão das economias capitalistas modernas, as chamadas comunidades tradicionais. Sob
essas condições, seria o desenvolvimento um empecilho à diversidade, à existência humana
contrassistêmica? Resultaria o desenvolvimento num processo com a tendência de esmagar a
diferença local, em prol de um projeto supostamente universal de bem-estar?
As ações previstas no Programa apontam certa mitigação desse conflito: afirmam a
importância de consultas prévias, diálogos, transparência de execução de grandes obras e
projetos e capacitação qualificada e participativa de comunidade afetadas por tais obras e
projetos (BRASIL, 2009). Há uma intenção de mediar o possível conflito entre as ações de
grandes obras e empreendimentos e comunidades tradicionais, estimulando o debate e
prevendo consultas em atenção à previsão da Convenção no. 169, da Organização
Internacional do Trabalho, a qual o Brasil é signatário.
A proposta de mediar os eventuais conflitos adequa-se à ideia de garantia de
liberdades propostas por Amartya Sen, uma vez que os funcionamentos úteis a uma vida de
qualidade, como acesso a água encanada, energia elétrica, rede coletora de esgoto e outros
serviços públicos devem estar disponíveis para aqueles que os considerem úteis, para que
possam ser revertidos em seu próprio benefício. Tratam-se de funcionamentos, ou seja, de
alternativas com acesso disponível. Nos dias atuais, dificilmente uma comunidade conseguiria
se manter isolada por muito tempo e não sujeita às lógicas de integração de sua região à
economia global. O movimento expansivo das economias capitalistas implicou o uso de
recursos em diferentes partes do planeta e a integração de economias locais e regionais às
oscilações internacionais. A demanda pela construção de obras e projetos que atendam
interesses mais gerais da população - ou mais específicos, de setores produtivos - trouxe ao
cerne do debate a noção de preservação, transformação, de desenvolvimento e universalização
de acessos, entre autodeterminação e liberdade de escolha.
Sobre esse possível conflito, entrevistamos um dos gestores (aqui chamado de
Entrevistado 1) responsáveis pela sistematização das propostas das Conferências regionais do
PNDH-3, para a conclusão do texto final do Programa, sobre esse suposto conflito entre
desenvolvimento e povos tradicionais. Sua avaliação sobre a inclusão desse assunto no texto
do Programa é a seguinte:
“Eu acho que tem uma...No Brasil tem umas tensões, uns debates que demonizam muito. Acho que uma visão que é pouco correta é essa. Não é que o desenvolvimento é violador dos direitos humanos. Empreendimentos que são pra avançar nossa estrutura, nossa capacidade produtiva, hoje são vistos como requisitos mínimos para uma vida civilizada. Quando a ONU diz que banda larga é um direito humano, você incorpora a lógica de universalidade de acessos. Os avanços
tecnológicos e científicos são de propriedade dessa humanidade, todos devem se beneficiar deles. Todas as coisas trabalhadas trazem consigo os seus bônus, com a possibilidade de aumentar o acesso. E também o seu ônus: há casos em que é a transformação da localidade, de espaços geográficos, não raro, sobretudo no Brasil, onde comunidades com características especificas que muitos querem ver preservadas. O debate sobre isso é muito importante. Nossa legislação é bastante avançada nesse sentido. Você tem discussões feitas entre empreendedores e comunidades afetadas, num processo de negociação e construção, sobre o que pode ser feito. A ideia é buscar qual o senso comum, o meio termo, o que é razoável, o que dá pra fazer e o que adiante tem de trabalhar em medidas compensatórias.
Trata-se de um processo naturalmente desequilibrado, por isso você precisa de transparência, (…) em que é difícil de ter uma clareza de onde se vai chegar, e chega a uma discussão maniqueísta em que um demoniza um e canoniza o outro.(...) Você tem um processo naturalmente desequilibrado, que precisa saber se foi válido ou não. Essa multiplicidade de interesses, de atores, cria uma constelação de pessoas que se organizam conforme tal. (...) A transparência é uma das melhores medidas para coibir os abusos. (ENTREVISTADO 1, 2014)
Perguntado se enxerga a criação de grandes obras e projetos de infraestrutura como
uma forma de opressão do Estado a povos que não necessariamente compartilham da lógica
de crescimento econômico das sociedades capitalista, o entrevistado avaliou:
Sobre essa questão de ver o Estado como rolo compressor..Embora eu ache que o Estado já fez por merecer esse tipo de qualificação, eu não entendo que quando o Estado faz investimentos para garantir o acesso a tecnologias que já são dadas, básicas, e que são base para acesso a outras melhorias de vida, você está movendo nessa direção. Questionar essa lógica significa rediscutir o modelo econômico. Você pode até fazer isso, mas isso é uma questão muito mais ampla. Até que você consiga produzir efeito do diálogo [sobre mudança do modelo econômico] você vai ter muitas pessoas que precisam daquele investimento. Aí você entra num debate principiológico e que pode ser absolutamente pertinente. O debate pertence a essa esfera. Mas (…) dentro do que você trabalha nesse documento, ele incorpora um debate histórico, os pleitos e anseios daquele momento. Vamos em frente, mas não atropelem os pequenos, a medida aqui é de garantir que haja sempre essa discussão. Acredito que o Programa não segue uma lógica de rolo compressor. Até porque não é uma logica contrária aos interesses da população. Você trabalha para que as pessoas não sejam privadas. Até que seja criada uma outra alternativa, é preciso garantir direitos.” (ENTREVISTADO 1, 2014) (grifo nosso)
A fala do entrevistado 1 corrobora a noção de que os resultados do desenvolvimento
são de propriedade comum, de todos os seres humanos, o que demanda a maximização de seu
acesso a todas as pessoas. Novamente, a noção de que há um projeto que requer certa
urgência – o projeto, o chamado dos direitos humanos, requer também a disponibilização de
funcionamentos importantes para a qualidade de vida de comunidades e de sociedades como
um todo. Evidentemente, ouvir as diferentes partes, considerar suas formas de vida social e
pontos de vista sobre a realidade, e garantir sua liberdade – o direito de escolha – entre
usufruir ou não usufruir de avanços tecnológicos é um direito garantido pelas ações previstas
Em outro momento da entrevista, quando indagamos ao Entrevistado 1 se não haveria
uma antevisão simplista de algumas ações previstas no Eixo Desenvolvimento e Direitos
Humanos, no que diz respeito à erradicação da pobreza em comunidades tradicionais, ao
transpor um conceito de pobreza de políticas baseadas no pressuposto monetarista, a algumas
populações que vivem sem partilhar desses princípios, o Entrevistado 1 respondeu:
Aqui você fala em igualdade de acesso [referindo-se às ações de erradicação da pobreza em comunidades tradicionais, quilombolas e indígenas] com o mesmo grau, e também de igual oportunidade. Idealmente essas politicas todas são para se atingir um certo patamar. É como aprender a andar de bicicleta. Primeiro você oferece uma bicicleta com rodinhas, para aquele que tem dificuldade, até não precisar mais das rodinhas. Você tem de trabalhar politicas de geração de renda com as ferramentas que tem hoje a sua disposição para que a população possa atingir esse patamar.
A proposta é isso. Constata que um grupo precisa de atenção especifica. Olha, talvez ferramentas possam ajudar essa população também. (…) Às vezes o que você está precisando construir é uma adaptação de uma ferramenta específica. O problema é não fazer o debate, pois esses direitos você não conseguiria suprir de maneira imediata. (...) Você, trabalhando algum tipo de proteção com melhoria de acessos e garantias, pode produzir um efeito prático. Ao grupo que você disponibiliza ferramentas, você tem de fazer uma escolha de se envolver ou não, e estabelecer relação com os seus princípios, com suas visões de mundo: você propõe o diálogo, e vê se tem adesão. De fato, quem tem que trazer soluções é o Estado. Fica muito mais fácil o Estado trabalhar se há uma proposta. O debate de direitos humanos é muito pouco propositivo, muito mais reativo, ele propõe muito pouco. O grau de anuência ao principiológico. (ENTREVISTADO 1, 2014)
As políticas de geração de renda que possibilitam diferentes acessos (e aqui importa
frisar, são diferentes no sentido quantitativo e relativamente à renda e propriedade pessoal, e
iguais no sentido de que dez reais, excetuadas as diferenças de preços regionais, possibilitam
a qualquer pessoa comprar a mesma quantidade de feijão, por exemplo) em economias
capitalistas partem de um ponto de vista liberal, que visa permitir a inclusão pela via da
adesão às regras de operação das economias de mercado.
Numa segunda entrevista, indagamos a outra pessoa entrevistada – aqui chamada de
Entrevistado 2 - à época da elaboração do PNDH-3 gestora na Secretaria Especial de Direitos
Humanos da Presidência da República, sobre as razões de Amartya Sen ser o único autor
nominalmente citado no texto do Programa, e também como ela enxergava essa proposta de
erradicação da pobreza em populações tradicionais. As respostas apontaram para a seguinte
direção:
Foi uma exigência [referindo-se à citação de Amartya Sen no texto do PNDH-3] do Ministro [Paulo Vannuchi], uma escolha de que a teoria do desenvolvimento como liberdade aparecesse. Vale lembrar que como slogan do governo anterior era Brasil um pais de todos. A gente sempre teve uma reflexão de que isso se ligava ao fato de que o Brasil era o pais também dos banqueiros e grandes empresários e que o Lula não faria
uma ruptura com isso e tal. Mas um olhar para o pequeno produtor, que se voltasse a quilombolas, pro desenvolvimento que incluísse essas pessoas era um..Era não, né, “é” a grande prioridade do governo. Então isso é direitos humanos. O que traz de novidade nesse eixo é dizer que o desenvolvimento como liberdade é direitos humanos. Mas eu vejo isso daqui como reflexo da política que é adotada e das prioridades desses dois governos. Não sei se há reflexão pra além disso.
De fato tem uma ruptura do modelo neoliberal de desenvolvimento que não considerava a redução da desigualdade como elemento fundamental do desenvolvimento do pais. Acho que essa era a grande diretriz desse eixo, de que precisavam ficar muito bem refletidos os direitos humanos e a redução de desigualdades como elementos fundantes da revolução democrática e o desenvolvimento do pais. Acho que isso ficou muito bem refletido.
A sensação que me dá é que sim é possível ter desenvolvimento do país e crescimento do país com respeito a autodeterminação dos povos, diversidade cultural, território em que se encontram. Um conflito com os próprios povos indígenas, olha o desenvolvimento vai tirar a gente daqui. Então é uma tensão, tem uma aparente contradição mas não é impossível coexistir. As ações tomadas e o diálogo feito (…) a gente vê que de fato é possível produzir um diálogo e ter um modelo de desenvolvimento de projeto de infraestrutura que respeite as especificidades de cada povo, apesar de ser bastante criticado. (ENTREVISTADO 2, 2014) (grifo nosso)
A partir da fala do Entrevistado 2, é possível compreender que as próprias autoridades
gestoras responsáveis pela articulação da agenda de direito ao desenvolvimento em nível
nacional partem da premissa teórica do desenvolvimento como liberdade, e consideram as
regras de inclusão de renda ( como forma de inclusão nos mercados capitalistas de trabalho e
consumo) para promoção de liberdades substantivas e para a superação da pobreza. O forte
caráter de inclusão de toda a população pobre na dinâmica dos mercados (afinal, a renda nada
mais é que a remuneração dos fatores de produção, cuja utilidade pode ser revertida na
demanda da própria produção, pelo consumo) é marca dessa visão: a inclusão pelo consumo.
Outra visão que fica clara na fala do entrevistado aponta para o reconhecimento de
interpretações mais gerais de que o governo Lula teria beneficiado também os setores
financeiros, mais ricos, e também os grandes empresários, mas que também foi capaz de
voltar as atenções a pequenos produtores, a populações quilombolas, a sujeitos historicamente
menosprezados da história social brasileira. O mesmo entrevistado aponta como grande
diferencial do governo Lula, contrastando-o em comparação com o modelo neoliberal de
desenvolvimento, a questão da redução da desigualdade, afirmando-a como elemento
fundante de uma “revolução democrática.” A marca de inclusão de pobres nos mercados
segue a lógica das economias liberais no capitalismo, e é uma característica importante da
janeiro de 2010. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/f z1201201008.htm>. Data de acesso: 02 de outubro de 2014. ADORNO, Sérgio. História e desventura: o 3º. Programa Nacional de Direitos Humanos. Novos Estudos: CEBRAP. São Paulo, n. 86, março de 2010. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002010000100001&lng= en&nrm=iso>. Data de acesso: 30 de setembro de 2014.
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APÊNDICE 6 B - Roteiro de perguntas realizadas nas entrevistas
Pergunta 1: Você participou da formulação do PNDH-3. Você poderia dizer em que medida participou, que cargo exercia e onde trabalhava? Poderia também descrever como os eixos e ações foram elaborados e como você contribuiu a esse processo? Pergunta 2: Especificamente com relação ao Eixo 2 do Programa, Desenvolvimento e Direitos Humanos, você poderia relatar algo que se lembre da formulação desse Eixo?
Pergunta 3: Como é sabido, o PNDH-3 sofreu diversas críticas, de setores políticos, jornalísticos, de juristas e partidas do próprio Estado. Questões de gênero, participação social, laicidade do Estado, igualdade racial foram duramente atacadas. Contudo, não se viu com a mesma expressão críticas específicas, dirigidas ao direito ao desenvolvimento. Você poderia apontar possíveis razões para isso?
Pergunta 4: O nome de Amartya Sen aparece na introdução do Eixo Desenvolvimento e Direitos Humanos. Ele é o único autor nominalmente citado no texto do Programa. Você sabe apontar alguma razão para esse reconhecimento?
Pergunta 5: Nas ações (d) a (f) do Objetivo Estratégico 1 da Diretriz 5 do Eixo Desenvolvimento e direitos Humanos, aparecem algumas questões relativas a consulta, participação e transparência de consulta a populações atingidas por grandes obras. Saberia dizer as razões dessas ações constarem do texto?
Pergunta 6: Como você avalia a inclusão no texto de políticas de inclusão de renda e políticas de erradicação de pobreza rural em comunidades tradicionais, quilombolas e indígenas?
Pergunta 7: Houve alguma divergência dentro do governo com relação a esse Eixo, Desenvolvimento e Direitos Humanos?
Pergunta 8: Uma das ações previstas na Diretriz 5, objetivo estratégico 2, há a previsão de considerar critérios de equidade e prevalência de direitos humanos da avaliação orçamentária e previsão de gastos. O que se imaginou ao inserir tal ação?
Pergunta 9: Esteja à vontade para tecer comentários, impressões e reflexões sobre o processo de formulação e o texto do Programa.