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Universidade de Lisboa
Faculdade de Letras
Departamento de Histria
Corrupo e Incria no Santo Ofcio: Funcionrios e Agentes
sob Suspeita e Julgamento
Joo Henrique Costa Furtado Martins
Mestrado em Histria
(Histria Moderna e Contempornea)
2013
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Universidade de Lisboa
Faculdade de Letras
Departamento de Histria
Corrupo e Incria no Santo Ofcio: Funcionrios e Agentes
sob Suspeita e Julgamento
Joo Henrique Costa Furtado Martins
Dissertao de mestrado em Histria Moderna e Contempornea
orientada
pela Professora Doutora Isabel Drumond Braga
2013
-
ndice
Agradecimentos.........................................................................................................................
1
Resumo
........................................................................................................................................
2
Abstract.......................................................................................................................................
3
Siglas e abreviaturas
................................................................................................................
4
Introduo
..................................................................................................................................
5
Estado da Questo
....................................................................................................................
7
Parte I - Inquisio e Disciplinamento Social
1.1 O Santo Ofcio como Mecanismo de Disciplinamento
..................................................... 10
1.2 Contra o Recto Ministrio do Santo Ofcio
.......................................................................
15
Parte II - Alcaides e guardas dos crceres
2.1 Alcaides: Funes
.............................................................................................................
19
2.2 Guardas: Funes
..............................................................................................................
21
2.3 Alcaides e Guardas: Crimes, Motivaes e Consequncias
.............................................. 23
Parte III - Familiares e Comissrios do Santo Ofcio
3.1 Familiares:
Funes...........................................................................................................
56
3.2 Familiares: Crimes, Motivaes e Consequncias
............................................................ 59
3.3 Comissrios: Funes
............................................................................................
84
3.4 Comissrios: Crimes e Motivaes
...................................................................................
86
Parte IV - Solicitadores e Qualificadores
4.1 Solicitadores:
Funes.......................................................................................................
92
4.2 Solicitadores: Crimes, Motivaes e Consequncias
........................................................ 94
4.3 Qualificadores: Funes
....................................................................................................
96
4.4 Qualificadores: Crimes, Motivaes e Consequncias
..................................................... 97
-
Parte V Caracterizao Sociolgica
................................................................................
99
Concluso
.................................................................................................................................
102
Anexos
.....................................................................................................................................
105
Fontes e Bibliografia
............................................................................................................
117
-
1
Agradecimentos
Em primeiro lugar, agradecemos nossa orientadora Professora
Doutora Isabel
Drumond Braga, por todas as sugestes que to amavelmente nos fez,
por toda a
dedicao, pacincia, ateno e minucia com que corrigiu cada
pargrafo durante a
elaborao da presente dissertao. Deixamos ainda uma palavra de
agradecimento a
Lus Magalhes e a Torsten Arnold por todas as horas de trabalho
partilhadas e
Andreia Ferreira pelo auxlio na leitura dos processos. Um
agradecimento especial para
a famlia sem a qual esta etapa no teria sido possvel concluir e
para a Ana por todo o
companheirismo.
-
2
Resumo
O Tribunal do Santo Ofcio em Portugal surgiu no ano de 1536 aps
vrias
tentativas de implementao por parte do poder rgio. Esta
instituio foi criada com o
objectivo principal de controlar os comportamentos desviantes
dos cristos-novos, tem,
desde logo, autoridade sobre vrios delitos at ento sob alada dos
Tribunais vigentes
na poca, sendo por isso, um agente destacado no processo de
disciplinamento social.
Os que prejudicavam o normal funcionamento inquisitorial eram
acusados de irem
contra o recto procedimento do Santo Ofcio. O nosso estudo
centra-se nos
funcionrios e agentes que cometeram este crime, focando as
motivaes e sanes de
que foram alvo, tal como as consequncias que advieram do seu
comportamento, tanto
para si prprios, como para a credibilidade do Santo Ofcio.
Os delitos eram cometidos de mltiplas formas, desde actos de
corrupo,
vinganas, at simples negligncia na execuo de funes. O medo que o
Santo
Ofcio infligia e o lugar ocupado por estes indivduos propiciava
a predisposio de
alguns funcionrios para abusos de poder como forma de coero e
vingana, alm do
sentimento de impunidade perante as restantes foras judiciais.
Numa sociedade
profundamente estratificada, a condenao por um tribunal como o
da Inquisio era
sinnimo de excluso social para o prprio e seus familiares, sendo
esse um dos medos
que pairava sobre os condenados.
Palavras-Chave: Tribunal do Santo Ofcio, funcionrios e agentes,
corrupo,
incria, Portugal
-
3
Abstract
After several attempts of implementation by the royal
institutions the Court of
the Holy Office in Portugal was introduced in 1536. Created to
fulfill the principal
objective to control uncommon practices of the new-christians,
this institution since the
beginning of its existence had the authority to observe and
control several delicts or
crimes. During the time period, court of the Holy Office became
the respective
executing institution of social disciplinary punishments. The
ones who prejudiced the
normal proceedings of the inquisition were accused of act
against the correct
proceedings of the Holy Office. Our study focuses on these
crimes committed by the
agents and officials presenting motives motives and penalties as
well as the
consequences for the respective individuals as well as for the
credibility of the Holy
Office itself.
The delicts of which the individuals were accused of were
committed in various
forms such acts of corruption, revenge or negligence in the
execution of the responsible
functions. The fear inflicted by the Holy Office and the
position occupied these
individuals favored the affinity of some officials abusing their
power by forms of
pressure, revenge, without regarding the feeling of exemption of
punishment regarding
the remaining juridical institutions. In a society characterized
by its distinct social
classes, the condemnation by a court such as the inquisition was
the synonym of social
exclusion of the respective individual and his family members;
one of the pendant fears
of the convicted.
Key words: Court of the Holy Office, agents and officials,
corruption,
negligence, Portugal
-
4
Siglas e abreviaturas
ANTT Arquivo Nacional Torre do Tombo
n(s) nmero(s)
p(p) pgina(s)
proc. processo
s.n sem nome
s.p sem paginao
vol(s) volume(s)
-
5
Introduo
Com a presente dissertao pretende perceber-se as motivaes dos
funcionrios
do Santo Ofcio resultantes do mau desempenho das suas funes. No
esquecendo as
implicaes para as vtimas, analisam-se os processos e as
diferentes condenaes,
consoante a gravidade dos crimes, fazendo-se comparaes entre os
casos sempre que
se julgar necessrio. Objecto de estudo sero tambm as implicaes
para o
desenvolvimento dos processos de outros rus quando a violao do
segredo por parte
de funcionrios inquisitoriais tiver consequncias visveis. O
segredo utilizado pelo
Santo Ofcio, como meio de causar temor e acentuar o respeito da
sociedade por este
Tribunal, era utilizado pelos prevaricadores como refgio para os
seus actos ilcitos. O
prestgio que os funcionrios do Santo Ofcio detinham na
sociedade, facilitava a
execuo de crimes por parte destes agentes, aproveitando-se da
sua credibilidade e do
temor que colhiam junto das populaes para perpetrarem actos
ilcitos.
O nosso trabalho foi estruturado num primeiro momento onde se
abordou o
disciplinamento social, no qual se insere a actividade do Santo
Ofcio, posteriormente
incluiu-se uma alnea sobre o crime contra o recto ministrio do
Santo Ofcio que se
estuda ao longo do trabalho. Seguidamente, temos o
desenvolvimento da dissertao,
onde optmos por dividi-lo em quatro partes, trs delas com uma
abordagem aos
regimentos e crimes: o primeiro referente aos alcaides e
guardas; o segundo tocante
aos familiares e comissrios; por fim, o ltimo aborda
solicitadores e qualificadores.
Esta diviso teve por critrio as categorias das funes exercidas
por cada grupo de
agentes do Santo Ofcio. Os alcaides e guardas esto agrupados por
pertencerem
mesma esfera de aco: o crcere e por existirem crimes cometidos
em conjunto; os
familiares e comissrios por estarem directamente inseridos na
comunidade e, por fim,
os qualificadores e solicitadores por desenvolverem um trabalho
que no estava to
prximo dos visados por crimes pertencentes ao Tribunal do Santo
Ofcio. Finalmente,
-
6
pode encontrar-se uma ltima parte antes das consideraes finais,
dedicada
caracterizao social dos indivduos estudados.
A metodologia para a realizao da presente dissertao de Mestrado
assenta na
recolha dos dados relevantes contidos nos processos que se
encontram no Arquivo
Nacional da Torre do Tombo. O estudo incidir sobre os trs
tribunais inquisitoriais de
vora, Lisboa e Coimbra. A cronologia ser o perodo em que o Santo
Oficio funcionou
em Portugal (1536-1821), pois o nmero de processos diminuto,
pelo que no se
justifica uma delimitao temporal menor. Alguns processos no
entraram no estudo,
devido ao seu mau estado de conservao que no permitiu a sua
consulta, apenas os
processos de Lisboa esto totalmente acessveis por se encontrarem
on-line.
O nmero de processados pelo Tribunal de Lisboa ascende aos 31
indivduos.
Dos 29 processos da Inquisio de Coimbra, entraram no nosso
estudo 16. Por ltimo,
aparece-nos o Tribunal de vora com 11 processados, tendo sido
consultados nove
processos. Para se conseguir ter uma apreenso mais clere a
visualizar os processos
recolhidos, elabormos o quadro que se encontra em anexo contendo
as principais
informaes contidas nos processos. De fora deste estudo fica a
investigao dos
Cadernos do Promotor e as habilitaes por questes que se prendem
com o espao
temporal concedido para a realizao da tese, no ser o suficiente
para uma abordagem
sria e exaustiva dessas fontes como se pretendia. Teremos ainda
em considerao neste
estudo, as visitas realizadas aos tribunais de Lisboa, em 1571,
e em meados do sculo
XVII que se encontram publicadas.
A bibliografia que suportar a dissertao ser a mais abrangente
possvel tendo
em conta a temtica em estudo. No existindo bibliografia
detalhada sobre o tema que
nos propusemos abordar, procurar-se- ir em busca do suporte
bibliogrfico que melhor
se coadunar com uma confrontao slida, que ir ser trabalhada ao
longo do percurso
de elaborao do nosso estudo.
-
7
Estado da Questo
A nossa proposta de dissertao de Mestrado em Histria Moderna,
est inserida
nos estudos sobre a actuao do Santo Ofcio em Portugal. Dentro da
ampla temtica,
propomos estudar os funcionrios inquisitoriais que foram alvo de
processos levantados
pelo Tribunal da Inquisio, por crimes que figuravam como sendo
contra o recto
ministrio do Santo Ofcio, expresso utilizada na poca para
definio, de entre outros
actos, o mau desempenho de funes, deixando de parte crimes de
outras qualidades
que estes possam ter cometido. O interesse sobre esta temtica
especfica, surgiu ainda
na licenciatura, no trabalho realizado para a unidade curricular
Seminrio de Histria
Moderna, onde houve uma abordagem inicial problemtica proposta,
relativa a um
estudo de caso de um familiar do Santo Ofcio que abusou do seu
cargo, extravasando
as suas competncias, para poder extorquir dinheiro, valendo-se
da condio
privilegiada na sociedade, associada ao seu cargo.
A pertinncia de um estudo de ndole mais incisiva sobre a aco
prevaricadora
dos funcionrios que assumiam comportamentos marginais s
competncias e s
funes dos seus cargos, justificada pela falta de investigaes
aprofundadas acerca
desta temtica. No entanto, so encontradas referncias a
funcionrios que actuavam na
metrpole, em trabalhos acadmicos que tm vindo a ser realizados
por estudiosos
como Antnio Borges Coelho1, Elvira Cunha de Azevedo Mea
2 ou Paulo Drumond
Braga3 que na sua tese de doutoramento sobre a actuao da
Inquisio nos Aores,
enuncia problemas com funcionrios existentes no dito arquiplago.
Isabel Drumond
1 Antnio Borges Coelho, Inquisio de vora: dos Primrdios a 1668,
vol.1, Lisboa, Caminho, 1987,
pp. 287 e 289. 2 Elvira Cunha de Azevedo Mea, A Inquisio de
Coimbra no sculo XVI: A Instituio, os Homens e a
Sociedade, Porto, Fundao Eng Antnio de Almeida, 1997, pp.
169-174 e 347-354; ver tambm da
mesma autora, Cotidiano entre as Grades do Santo Ofcio, Em Nome
da F, Estudos In Memoriam de Elias Lipiner, direco de Nachman
Falbel, Aurchan Milgram e Alberto Dires, SP, Editora
Perspectiva,
1999, pp. 131-144. 3 Paulo Drumond Braga, A Inquisio nos Aores,
Ponta Delgada, Instituto Cultural de Ponta Delgada,
1997, pp. 36; ver tambm Paulo Drumond Braga, Uma Confraria da
Inquisio: a Irmandade de So
Pedro Mrtir (breves notas), Arquiplago. Histria, 2. srie, vol.
II, Ponta Delgada, Universidade dos
Aores, 1997, pp. 449-458; Paulo Drumond Braga, Estrangeiros ao
Servio da Inquisio Portuguesa,
in Estudos em Homenagem a Joo Francisco Marques, vol. I, Porto,
Faculdade de Letras da
Universidade do Porto, 2001, pp. 253-260.
-
8
Braga4 fez referncia a um comissrio natural de Madrid acusado de
mau
comportamento e mau desempenho das suas funes, mais recentemente
elaborou um
trabalho sobre o quotidiano nos crceres. Na dissertao de
Mestrado defendida por
Ricardo Pessa de Oliveira5 existem notcias de funcionrios que
tiveram um
comportamento desviante, nomeadamente familiares do Santo Ofcio,
um comissrio e
um guarda dos crceres. Nelson Vaquinhas6 com o seu estudo sobre
a actuao do Santo
Ofcio no Algarve referiu um carcereiro que colocou em causa, por
diversas vezes, o
bom funcionamento do Tribunal. Destacamos ainda Fernanda Olival7
com os seus
estudos acerca dos funcionrios inquisitoriais e Marco Antnio8
que escreveu um artigo
sobre o quotidiano do crcere incidindo fundamentalmente nos
Cadernos do Promotor.
Para o espao colonial destacamos Clia Tavares9, que na sua
dissertao de
Doutoramento, incluiu um captulo denominado de Inquisio versus
Inquisio: a
visitao ao Tribunal de Goa, onde so visados por comportamento
incorrecto diversos
4 Isabel Drumond Braga, Os Estrangeiros e a Inquisio Portuguesa:
Sculos XVI e XVII, Lisboa, Hugin,
2002, p. 291. O processo deste funcionrio ser abordado na
dissertao; Isabel Drumond Braga,
Crcere mais spero do que permite a Razo do Direito. O Quotidiano
nas Prises do Santo Ofcio, Lisboa, Esfera dos Livros, no prelo; ver
tambm Isabel Drumond Braga, A Mulatice como Impedimento de Acesso
ao Estado do Meio, Actas do Congresso Internacional Espao Atlntico
de Antigo Regime: Poderes e Sociedades, Lisboa, Instituto Cames,
2008, pp. 1-12 (disponvel on-line em
http://cvc.instituto-camoes.pt/); Idem, Santo Ofcio, Promoo e
Excluso Social: O Discurso e a Prtica, Lusada Histria, srie II, n
8, Lisboa, 2011; Idem, Bens de Hereges. Inquisio e Cultura Material
Portugal e Brasil (sculos XVII-XVIII), Coimbra, Imprensa da
Universidade de Coimbra, 2012;
Idem, Controlando as Conscincias: D. Antnio Caetano de Sousa e a
Censura de Livros no Portugal do sculo XVIII, Instituciones y
Centros de Reclusin Colectiva. Formas y Claves de una Respuesta
Social (s. XVI-XX), coordenao de Laureano M. Rubio Prez, Len,
Universidade de Len, 2012, pp. 177-194. 5 Ricardo Pessa de
Oliveira, Uma Vida no Santo Ofcio : o Inquisidor Geral D. Joo Cosme
da Cunha,
Lisboa, Tese de mestrado em Histria Moderna apresentada
Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa, 2007, pp. 115, 127, 128; do mesmo autor ver tambm, Para
o Estudo da Irmandade de So Pedro
Mrtir no final do sculo XVIII, Actas do IV Congresso Histrico de
Guimares Do Absolutismo ao
Liberalismo, vol. I, Guimares, Cmara Municipal de Guimares,
2009, pp. 509-530. 6 Nelson Vaquinhas, Da Comunicao ao Sistema de
Informao. O Santo Oficio e o Algarve (1700-
1750), Lisboa, Colibri, 2010, pp. 130-133. 7 Fernanda Olival,
Clero e famlia: os Notrios e Comissrios do Santo Ofcio no Sul de
Portugal (o caso
de Beja na Primeira Metade do sculo XVIII), direco de Giovanni
Levi, Familias, Jerarquizacin y
Movilidad Social, Mrcia, Universidade de Mrcia, 2010, pp.
101-112 (disponvel on-line em
http://dspace.uevora.pt/); Idem, A Visita da Inquisio Madeira em
1591-92, Actas do III Colquio
Internacional de Histria da Madeira, Funchal, Secretaria
Regional do Turismo e Cultura,1993, pp.499-
501; ver tambm da mesma autora Rigor e Interesses: os Estatutos
de Limpeza de Sangue em Portugal,
Cadernos de Estudos Sefarditas, n 4, 2004, pp. 151-182; e,
Comissrios das Ordens Militares e
Comissrios do Santo Ofcio: dois Modelos de Actuao., As Ordens
Militares. Freires, Guerreiros,
Cavaleiros. Actas do VI Encontro sobre Ordens Militares,
Coordenao de Isabel Cristina Ferreira
Fernandes, vol 1, Palmela, GEsOS/ Municpio de Palmela, 2012, pp.
477- 490 8 Marco Antnio, Nos crceres no h segredo nenhum e que se
falam mui livremente como se
estivessem em suas casas, Estudos de Historia do Cotidiano,
organizao de Edgar Gandra e Paulo Possamai, Pelotas, Edies da
UFPEL, 2011. pp. 37-61. 9 Clia Tavares, Jesutas e Inquisidores em
Goa : a Cristandade Insular (1540-1682), Lisboa, Roma
Editora, 2004, pp. 171 a 174.
-
9
funcionrios, incluindo um inquisidor. Mencionamos ainda o
contributo de Daniela
Buono Calainho10
com os seus estudos sobre familiares do Santo Ofcio,
encontrando-se
entre os estudados alguns prevaricadores. Miguel Jos Rodrigues
Loureno11
trabalhou
sobre o comissariado do Santo Ofcio em Macau. Sobre comissrios,
qualificadores e
notrios da Inquisio portuguesa na Baa enunciamos o estudo de
Grayce Mayre
Bonfim12
. Lucas Maximiliano Monteiro13
fez um estudo prosopogrfico sobre os
familiares do Santo Ofcio no Brasil. Ainda no mesmo espao
geogrfico encontramos
os trabalhos de Luiz Mott14
sobre um comissrio chamado Joo Calmon e sobre os
familiares em Rio Grande de So Pedro e Colnia de Sacramento, por
fim, referimos
Aldair Carlos Rodrigues que elaborou um perfil sociolgico dos
comissrios no
Brasil15
. Relembramos que nenhum trabalho se refere especialmente ao
mau
desempenho de funes. As abordagens foram prioritariamente
dedicadas s carreiras e
relao entre funcionrios e estatutos sociais.
10
Daniela Buono Calainho, Agentes da F, Familiares da Inquisio
Portuguesa no Brasil Colonial, So
Paulo, EDUSC, 2006, pp. 152-156; Idem, Pelo Reto Ministrio do
Santo Ofcio: Falsos Agentes
Inquisitoriais no Brasil Colonial, A Inquisio em Xeque : Temas,
Controvrsias, Estudos de Caso,
organizao de Ronaldo Vainfas, de Bruno Faitler e de Lana Lage da
Gama Lima Rio de Janeiro,
EdUERJ, 2006, pp. 87-102. 11
Miguel Jos Rodrigues Loureno, O Comissariado do Santo Ofcio em
Macau (c. 1582- c. 1644): A
Cidade do Nome de Deus na China e a Articulao da Periferia no
Distrito da Inquisio de Goa,
Lisboa, Tese de Mestrado em Histria dos Descobrimentos e da
Expanso Portuguesa apresentada
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2007, exemplar
policopiado. 12
Grayce Mayre Bonfim Souza, Para Remdios das Almas: Comissrios,
Qualificadores e Notrios da
Inquisio Portuguesa na Bahia, Baa, Tese de Doutoramento em
Histria Social apresentada
Universidade Federal da Baa, 2009, exemplar policopiado
(disponvel on-line em http://www.catedra-
alberto-benveniste.org/). 13
Lucas Maximiliano Monteiro, Os Familiares do Santo Ofcio: um
estudo prosopogrfico em Colnia
de Sacramento no sculo XVIII, XIV Encontro Regional da ANPUH Rio
Memria e Patrimnio, Rio
de Janeiro, Julho de 2010, [s.p] (disponvel on-line em
http://www.eeh2010.anpuh-rs.org.br/). 14
Luiz Mott, O Cnego Joo Calmon, Comissrio do Santo Ofcio na Bahia
Setecentista, Bahia:
Inquisio e Sociedade, Salvador, EDUFBA, 2010, pp. 43-64
(disponvel on-line em
https://repositorio.ufba.br/); Idem, Ser Familiar do Santo Ofcio
via Redes Sociais: os Vnculos entre
Agentes Inquisitoriais e suas Testemunhas em Rio Grande de So
Pedro e Colnia de Sacramento (sculo
XVIII) , Revista de Histria, vol. 2, n 2, Baa, UFBA, 2010, pp.
35-58 (disponvel on-line em
http://www.revistahistoria.ufba.br/2010_2/a03.pdf). 15
Aldair Carlos Rodrigues, Os Comissrios do Santo Ofcio no Brasil:
Perfil Sociolgico e Insero
Institucional (sculo XVIII), Honra e Sociedade no mundo ibrico e
ultramarino. Inquisio e Ordens
Militares sculos XVI-XIX, coordenao de Ana Isabel Lpez-Salazar;
Fernanda Olival; Joo Figuera-
Rego, Casal de Cambra, Caleidoscpio, 2013, pp.183-206.
-
10
Parte I
Inquisio e Disciplinamento Social
1.1 O Santo Ofcio como Mecanismo de Disciplinamento
O sculo XVI trouxe mutaes no seio do Cristianismo, as chamadas
reformas
protestantes, suscitaram uma resposta da Igreja Catlica,
resposta esta firmada no
Conclio de Trento, entre diversas decises a par de alteraes de
mbito teolgico
visou-se a reforma dos comportamentos do clero e dos leigos,
atravs do
disciplinamento dos agentes da Igreja16
. Para conseguir o efeito desejado a Coroa e a
Igreja uniram esforos e utilizaram instrumentos de
disciplinamento social de ndole
coerciva e de ndole pedaggica sendo, porm, a linha de fronteira
entre estes dois
conceitos muito tnue, pois possvel encontrar as duas
caractersticas no mesmo
contexto17
. Com caractersticas coercivas encontramos os tribunais
episcopais, o
Tribunal do Santo Ofcio, a censura e as visitaes18
. De caracter pedaggico
16 Mafalda Ferin Cunha, Reforma e Contra-Reforma, Lisboa,
Quimera, 2002, pp. 81-123; Sobre a problemtica do disciplinamento
social, cf. Frederico Palomo, "Disciplina Christiana" Apuntes
Historiogrficos en Torno a la Disciplina y el Disciplinamiento
Social como Categorias de la Historia
Religiosa de la Alta Edad Moderna, Cuadernos de Histria Moderna,
Madrid, n18, pp. 119-136 (disponvel on-line em
http://revistas.ucm.es/); Maria Luisa Candau Chacn,
Disciplinamiento Catlico e Identidad de Gnero. Mujeres, Sensualidad
y Penitencia en la Espaa Moderna, Barcelona, Manuscrits, 25, 2007,
pp. 211-237 (disponvel on-line em http://www.raco.cat/); Jos Pedro
Paiva, El
Estado en la Iglesia y la Iglesia en el Estado Contaminaciones,
Dependencias y Disidencia entre la
Monarqua y la Iglesia del Reino de Portugal (1495-1640),
Barcelona, Manuscrits 25, 2007, pp.45-57
(disponvel on-line em http://ddd.uab.cat/); Ronald Po-Chia Hsia,
Disciplina Social y Catolicismo en la Europa de los siglos XVI y
XVII, Barcelona, Manuscrits, 2007, pp. 29-43 (disponvel on-line em
http://www.raco.cat/). 17
Frederico Palomo, A Contra-Reforma em Portugal, 1540-1700,
Lisboa, Livros Horizonte, 2006, p. 57. 18
Joaquim de Carvalho e Jos Pedro Paiva, Visitaes, Dicionrio de
Histria Religiosa de Portugal,
direco de Carlos Moreira Azevedo, vol. P-V, coordenao de Ana
Maria Jorge, et al, Lisboa, Circulo de
Leitores SA, e Centro de Estudos de Histria Religiosa da
Universidade Catlica Portuguesa, 2001, pp.
365-369.
-
11
encontramos os livros de devoo, catecismos, os sermes, as
imagens, os catecismos,
as peas de teatro, entre outros instrumentos19
.
Portugal no foi excepo no panorama europeu, criando os seus
instrumentos
de regramento, com a finalidade de reger os comportamentos na
sociedade da poca. O
poder rgio enquanto agente poltico alargou a sua ingerncia junto
s elites clericais do
Reino, com o objectivo de as controlar face a poderes exteriores
ou interiores, sob a
forma de reformas, que eram promovidas desde finais do sculo
XV20
. A essas reformas
no escaparam as ordens religiosas durante o reinado de D. Joo
III. No reinado deste
monarca foi ainda nomeado o Cardeal D. Henrique irmo do rei como
legado ad
latere, ou seja representante do Papa, o que facilitou as
reformas no clero regular e a
ingerncia no governo das ordens religiosas21
. Outra criao usada para reforar o poder
rgio na esfera religiosa, foi a Mesa da Conscincia e Ordens,
destinada a atribuir
primazia justia rgia sobre a eclesistica22
.
A par do poder rgio, a Igreja foi um agente relevante no
processo de
disciplinamento social, colaborando com o poder poltico, junto s
populaes23
. A
figura do bispo como pastor presente na vida da sua comunidade,
ntegro, orientador e
disciplinador e a sua autoridade na conduo das medidas
reformadoras da Igreja,
saram reforadas com as decises do Concilio de Trento24
. Tanto os procos como as
ordens religiosas que j tinham um papel fundamental junto das
populaes, foram
previamente alvo de um regramento por parte das directivas
tridentinas para melhor
desempenharem a sua funo. O Tribunal do Santo Ofcio criado em
1536, que iremos
abordar com maior pormenor, foi mais um dos agentes de
disciplinamento e vigilncia
que vigoraram na poca Moderna.
O Tribunal do Santo Ofcio foi criado sob jurisdio Papal, com o
intuito de
combater as heresias. Portugal, contudo, s viria a conhecer a
Inquisio no sculo XVI,
j com caractersticas diferentes de funcionamento e de
relacionamento entre a Coroa e
o poder Papal, tendo aqui um papel fundamental a Inquisio
castelhana - influenciando
a portuguesa - onde a Coroa adquiriu a prerrogativa de nomear o
Inquisidor-Geral,
19
Frederico Palomo, A Contra-Reforma [], p. 57 e 58. 20
Frederico Palomo, A Contra-Reforma [], pp. 21 e 22. 21
Frederico Palomo, A Contra-Reforma [], p. 23. 22
Frederico Palomo, A Contra-Reforma [], p. 24 23
Frederico Palomo, A Contra-Reforma [], p.31. 24
Frederico Palomo, A Contra-Reforma [], pp.33 e 34.
-
12
havendo assim uma ligao estreita entre a esfera de domnio do
religioso e do poder
civil, tipologia esta de relacionamento, caracterstica do perodo
Moderno na Pennsula
Ibrica25
.
Portugal, pelo seu monarca D. Manuel I, em 1515, e em seguida
por D. Joo III
requereu diversas vezes ao Papa, a instaurao do Tribunal do
Santo Oficio. Pedido
esse, vrias vezes recusado, at ao ano de 1536, data da sua
aprovao pela bula Cum ad
nihil magis, tendo sido este processo completado em 1547, com a
bula papal Meditatio
Cordis, que delegava nesta instituio a jurisdio sobre os seus
funcionrios. A
instaurao deste Tribunal em Portugal26
visava essencialmente punir os
comportamentos desviantes dos cristos-novos27
, tendo sido esta, uma das razes da
resistncia Papal ao pedido portugus, devido a presses feitas por
judeus influentes.
No obstante, antes de instaurada a Inquisio em Portugal, ter
sido dificultada a sada
do pas aos cristos-novos, alm da existncia de decretos emanados
do poder rgio que
proibiam a inquirio aos recm-convertidos por um perodo de tempo
determinado.
Com a vinda da Inquisio para Portugal, foram criados tribunais
de distrito, que
sofreram alteraes ao longo do tempo, acabando por prevalecer os
tribunais de Lisboa,
vora, Coimbra e Goa, a partir de 1560.
No perodo entre 1674 e 1681, o Papa imps a suspenso de todos os
tribunais
de distrito, devido a uma petio de cristos-novos, bem como a
denncias
relativamente ao mau funcionamento do Santo Oficio, por parte de
agentes da prpria
Igreja, como o padre Antnio Vieira28
. No entanto, durante este perodo os presos
continuavam detidos, muitos sem saberem a razo de tal demora no
desenrolar dos seus
processos29
. A Inquisio no se detinha apenas nos crimes de judasmo, apesar
destes
constiturem a principal preocupao do Tribunal. Na esfera de aco
do Santo Oficio
encontram-se tambm a punio de crimes como a sodomia, o perjrio,
a bigamia, ou a
25
Francisco Bethencourt, Inquisio, Dicionrio de Histria Religiosa
de Portugal, direco de Carlos
Moreira Azevedo, vol. C-I, coordenao de Ana Maria Jorge, Lisboa,
ed. Circulo de Leitores SA, e
Centro de Estudos de Histria Religiosa da Universidade Catlica
Portuguesa, 2001, pp.447- 453; Cf.
tambm, Francisco Bethencourt, Histria das Inquisies: Portugal,
Espanha, e Itlia, Lisboa, Temas e
Debates,1996. 26
A bula foi conhecida primeiramente na cidade de vora e foi
concedido um perodo de 30 dias de graa
para que quem tivesse cometido algum crime usufrusse de uma
maior misericrdia da Inquisio, cf.
Giuseppe Marcocci e Jos Pedro Paiva, Histria da Inquisio
Portuguesa 1536-1821, Lisboa, Esfera dos
Livros, 2013, pp. 23-24. 27
Foi com este propsito que foi feito o pedido da Instaurao do
Tribunal a Roma. 28
Francisco Bethencourt, Inquisio, Dicionrio de Histria Religiosa
de Portugal [], pp.447 453. 29
Giuseppe Marcocci e Jos Pedro Pais, Histria da Inquisio
Portuguesa 1536-1821 [], pp. 208-209.
-
13
feitiaria, s para citar alguns exemplos. A partir do sculo
XVIII, mais concretamente
com o governo do Marqus de Pombal, a tendncia de colocar o poder
temporal em
sobreposio ao poder religioso, transforma o Tribunal do Santo
Oficio numa
instituio onde o esprito clerical se ia perdendo em detrimento
de um carcter secular,
confirmado pelo seu ltimo regimento de 1774 que proibiu os autos
da f, tendo
anteriormente sido abolida a distino entre cristos-novos e
cristos-velhos, o que
retirou da alada da Inquisio uma das suas principais intervenes
na regulao da
sociedade, acabando esta por ser extinta em 1821, aps o
pronunciamento liberal30
.
Aparentemente, a esfera de actuao do Tribunal do Santo Ofcio
entraria em
conflito com os tribunais episcopais. Contudo, tal no era
desejvel, ficando patente na
bula de fundao, ao deixar claro que os inquisidores deviam
actuar em parceria com os
bispos31
. No de estranhar por isso, que estivesse presente nos editais
das visitaes
levadas a cabo pelo Ordinrio a meno aos crimes de heresia como a
feitiaria,
bigamia e outros, como tambm a referncia aos crimes maiores, a
saber o islamismo, o
judasmo e o protestantismo32
. O Tribunal do Santo Ofcio foi autorizado
progressivamente a julgar crimes que at ento estavam sob a alada
episcopal ou rgia,
como o crime de sodomia em 1553 ou de solicitao em 1599.
Existiam crimes de foro
privativo do Tribunal do Santo Ofcio, estando apenas este
tribunal autorizado a julga-
los e outros delitos, que poderiam estar tambm sob a alada dos
tribunais episcopais33
.
Na estratificao social do Antigo Regime, o reconhecimento pblico
da
dignidade obtinha-se atravs da nobilitao34
. Para desempenhar certos cargos e obter
dignidades era necessrio fazer-se prova da pureza de sangue, ou
seja, o candidato tinha
de se sujeitar a uma investigao, denominada de processo de
habilitao, com o intuito
30
Ana Leal de Faria, A Extino da Inquisio, Histria de Portugal.
Dos tempos Pr-Histricos aos nossos dias, vol. VI, Judasmo, Inquisio
e Sebastianismo, dirigida por Joo Medina, Amadora,
Ediclube 1994, pp 161-198; cf. tambm Giuseppe Marcocci e Jos
Pedro Paiva, Histria da Inquisio
Portuguesa 1536-1821 [], p. 331-448. 31
Jos Pedro Paiva, Baluartes da F e da Disciplina: o Enlace entre
a Inquisio e os Bispos em
Portugal: (1536-1750), Coimbra, Imprensa da Universidade de
Coimbra, 2011, p. 36. 32
Jos Pedro Paiva, Baluartes da F e da Disciplina [...], p. 38.
33
Jos Pedro Paiva, Baluartes da F e da Disciplina [...], pp.
15-20. 34
Jos Veiga Torres, Da Represso Religiosa para a Promoo Social. A
Inquisio como Instncia Legitimadora da Promoo Social da Burguesia
Mercantil, Revista Crtica de Cincias Sociais, Coimbra, n 40, 1994,
p.119. Sobre a mesma temtica Cf. Isabel Drumond Braga, A Mulatice
como Impedimento de Acesso ao Estado do Meio, [], pp. 1 12
(disponvel on-line em
http://cvc.instituto-camoes.pt/index.php?option=com_docman&task=cat_view&gid=76&Itemid=69);
Joo de Figueira-
Rgo, A honra alheia por um fio: os Estatutos de Limpeza de
Sangue no Espao de Expresso Ibrica: (scs. XVI-XVIII), Lisboa,
Fundao Calouste Gulbenkian Fundao para a Cincia e a Tecnologia,
2011.
-
14
de verificar se tinha sangue de judeu, cigano, mouro ou
negro35
. Uma forma de se tocar
a nobreza era obter uma carta de familiar do Santo Ofcio, assim
certificava-se a
limpeza de sangue, os bons costumes e se algum dos seus
familiares j tinha sido preso
pela Inquisio. Era a transposio desta prova que concedia ou
reforava a ascenso
social para os que eram plebeus com recursos36
.
A Inquisio teve necessidade de controlar a pureza de sangue no
seio da sua
rede de funcionrios, criando-se para o devido efeito mecanismos
com o intuito de
investigar as linhagens dos seus ministros, oficiais e
colaboradores a fim de certificar
que todos tinham o sangue limpo37. Este procedimento era idntico
para se pertencer
s demais instituies, como a Universidade ou as ordens
religiosas. Contudo, o sistema
de inquiries para aferir a limpeza de sangue no era to eficaz
como o do Santo
Ofcio, tendo sido por isso, possvel passar entre as malhas de
inquirio do resto das
instituies38
.
O Tribunal do Santo Ofcio foi uma instituio que concedia promoo
social a
quem pertencia sua rede de funcionrios e agentes, em ordem
inversa, promovia a
excluso social aos rus39
. necessrio evidenciar o Tribunal do Santo Oficio como
uma instncia de disciplinamento social, que pretendia promover o
regramento tendo
como um dos veculos a teatralidade das suas penas pblicas40
. O Tribunal do Santo
Ofcio que tinha desde a sua criao como primeira actividade a
represso, transformou-
se a partir do ltimo quartel do sculo XVII numa instituio
dirigida para a promoo
social, obviamente sem esquecer a sua funo principal41
.
35
Isabel Drumond Braga, Santo Ofcio, Promoo e Excluso Social: [],
p.229. Sobre limpeza de sangue ver tambm Fernanda Olival, Rigor e
Interesses: os Estatutos de Limpeza de Sangue em Portugal, Cadernos
de Estudos Sefarditas, n 4, 2004, pp. 151-182. 36
Isabel Drumond Braga, Santo Ofcio, Promoo e Excluso Social, [],
p.230. 37
Jos Veiga Torres, Da Represso Religiosa [], p.114. 38
Jos Veiga Torres, Da Represso Religiosa [], p.114. 39
Isabel Drumond Braga, Santo Ofcio, Promoo e Excluso Social, [],
p.228. 40
Isabel Drumond Braga, Santo Ofcio, Promoo e Excluso Social, [],
p.242; Idem, A Mulatice como Impedimento de Acesso ao Estado do
Meio [], pp. 1-12 (disponvel on-line em
http://cvc.instituto-camoes.pt/). 41
Jos Veiga Torres, Da represso Religiosa [], p.113; Francisco
Bethencourt, Histria das Inquisies: Portugal, Espanha, e Itlia [],
pp. 122-133; Giuseppe Marcocci e Jos Pedro Paiva, Histria da
Inquisio Portuguesa 1536-1821 [], pp. 239-260.
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15
1.2 Contra o Recto Ministrio do Santo Ofcio
De entre os crimes sob a alada do Tribunal do Santo Ofcio, havia
um conjunto
de delitos considerados como perturbadores do regular
funcionamento do Tribunal que
eram denominados como crimes contra o recto ministrio do Santo
Ofcio42. Assim,
eram perseguidos todos os indivduos que impediam e perturbavam
as aces
inquisitoriais, quer fossem seus funcionrios ou no,
nomeadamente, falsas
testemunhas, os que se faziam passar por funcionrios da Inquisio
e quem abusava do
seu cargo no Santo Ofcio, este ltimo crime que iremos estudar na
nossa dissertao,
entre outros delitos passiveis de perturbar o funcionamento
deste Tribunal43
.
O Santo Ofcio teve quatro regimentos, preparando-se um quinto
quando o
Tribunal foi extinto44
. Apenas o de 1640 e o de 1774, referem a configurao destes
crimes e as penas a aplicar45
. O regimento inquisitorial de 1640, elaborado por D.
Francisco de Castro, a este propsito apresenta um ttulo
denominado Dos que
impedem e perturbam o ministrio do Santo Ofcio46, nele est
contido que: Qualquer
pessoa que nas causas e negcios pertencentes f impedir ou
perturbar o ministrio da
Inquisio por algum dos modos contidos neste ttulo ou outros
semelhantes, alm de
incorrer em excomunho ipso facto e haver de abjurar conforme
suspeita que contra
ela resulta e ser havida em direito por fautriz de hereges, ser
condenada em pena de
aoites e degredo para as gals e nas mais arbitrrias que parecer
aos inquisidores, os
quais nelas tero respeito ao que dispe os breves apostlicos dos
Papas Jlio III, Pio V
e Urbano VIII contra os tais delinquentes e ao estilo recebido
no Santo Ofcio47.
42
O monitrio de 1536, no faz referncia s prticas que se ligam aos
delitos que figuram neste delito.
Ver a transcrio do monitrio em Maria Jos Pimenta Ferro Tavares,
Judasmo e Inquisio. Estudos,
Lisboa, Editorial Presena, 1987, pp. 194-199. 43
Sobre o conjunto de crimes que perfazem o delito contra o recto
ministrio do Santo Ofcio. Cf. Regimento de 1640, livro III, ttulo
XXI; XXII; XXIV; Regimento de 1774, livro III, ttulo XVIII;
XIX;
XXI, in Jos Eduardo Franco, Paulo de Assuno, As Metamorfoses de
um Polvo [], pp. 370-374 e 475-477. 44
O primeiro regimento foi o de 1552, o qual se manteve indito.
Cf. Regimento de 1552; Regimento de
1613; Regimento de 1640; Regimento de 1774, in Jos Eduardo
Franco, Paulo de Assuno, As
Metamorfoses de um Polvo [], pp. 107-137; pp. 147 229; pp. 229
419; pp. 419 483. 45
Os regimentos de 1552 e 1613 no fazem referncia a esta tipologia
de crime. 46
Regimento de 1640, livro III, ttulo XXI, in Jos Eduardo Franco,
Paulo de Assuno, As Metamorfoses
de um Polvo [], p. 370. 47
Regimento de 1640, livro III, ttulo XXI, in Jos Eduardo Franco,
Paulo de Assuno, As Metamorfoses
de um Polvo [], p. 370.
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16
Os modos referidos na relao das penas a aplicar assentam nos
crimes de
injria aos ministros do Tribunal enquanto funcionrios da
Inquisio; de ameaas a
testemunhas e roubos de documentos, entre outros crimes48
. Alm destes delitos so
descritas as penas para os ministros e oficiais que revelem o
segredo do Santo Ofcio,
que pela importncia que ter no desenvolvimento do nosso
trabalho, passaremos a
citar: Se houver algum ministro ou oficial do Santo Oficio to
esquecido de sua
obrigao que por malcia, rogos ou peitas, revele o segredo do
Santo Ofcio ou faa
qualquer outra cousa em prejuzo do seu ministrio, impedindo-o e
perturbando-o por
este modo, se a culpa que houver cometido for em matria grave,
sendo ministro
eclesistico, ser privado do cargo que tiver e excludo do servio
do Santo Ofcio e ter
as mais penas arbitrrias que couberem na qualidade de sua
pessoa, para as quais se ter
respeito s circunstncias da culpa. E sendo oficial, alm de
perder o ofcio que tiver na
inquisio e ser excludo na mesma forma, ser condenado em pena de
aoites e
degredado para as gals, pelo tempo que parecer. E se a culpa que
uns e outros
cometerem for em matria leve, se far o que fica ordenado no
livro I, ttulo 3., 4749.
Dentro dos crimes considerados perturbadores do funcionamento do
Santo
Ofcio, encontramos no regimento de 1640 ainda a meno aos que se
faziam passar por
funcionrios inquisitoriais50
e aos que prestariam falso testemunho51
. Relativamente ao
primeiro crime enunciado, que envolvia pessoas que tivessem
extorquido dinheiro
fingindo ter alguma ordem do Santo Ofcio ou que soubessem algum
segredo, teriam de
48
Regimento de 1640, livro III, ttulo XXI, in Jos Eduardo Franco,
Paulo de Assuno, As Metamorfoses
de um Polvo [], pp. 370 e 371. Isabel Drumond Braga faz
referncia a indivduos que cometeram crimes contra o Santo Ofcio.
Encontramos indivduos que injuriaram a Inquisio, o assassinato
do
funcionrio Joo Martins quando este ia proceder priso do irmo de
um mourisco chamado Garcia
Baxira e ainda pessoas que esconderam fugitivos e falsificaram
documentos. Cf. Idem, Os Estrangeiros e
a Inquisio Portuguesa: sculos XVI e XVII, Lisboa, Hugin,
2002,pp. 290-294. 49
Regimento de 1640, livro III, ttulo XXI, in Jos Eduardo Franco,
Paulo de Assuno, As Metamorfoses
de um Polvo [], p. 371. 50
Sobre indivduos que se faziam passar por funcionrios
inquisitoriais, cf. Elvira Cunha de Azevedo
Mea, A Inquisio de Coimbra [], p. 186; Daniela Buono Calainho,
Pelo Reto Ministrio do Santo
Ofcio: Falsos Agentes Inquisitoriais no Brasil Colonial [...],
pp. 87-96; Idem, Agentes da F [], pp.
138-147; Isabel Drumond Braga, A Mulatice como Impedimento de
Acesso ao Estado do Meio, Actas
do Congresso Internacional Espao Atlntico de Antigo Regime:
Poderes e Sociedades, Lisboa, Instituto
Cames, 2008, pp. 1-12 (disponvel on-line em
http://cvc.instituto-camoes.pt/); Grayce Mayre Bonfim
Souza, Para Remdios das Almas: Comissrios, Qualificadores e
Notrios da Inquisio Portuguesa na
Baa, Tese de Doutoramento em Histria Social apresentada
Universidade Federal da Baa, exemplar
policopiado, 2009, pp. 167; Isabel Drumond Braga, Santo Ofcio,
Promoo e Excluso Social: O
Discurso e a Prtica, Lusada Histria, srie II, n 8, Lisboa, 2011;
Bruno Lopes, A Inquisio em Terra
de Cristos-Novos. Arraiolos 1570-1773, Lisboa, Apenas Livros,
2013, pp. 192-193. 51
Regimento de 1640, livro III, ttulo XXII, in Jos Eduardo Franco,
Paulo de Assuno, As
Metamorfoses de um Polvo [], p. 371.
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17
ir a auto da f, no fariam abjurao a no ser que o crime fosse
contra a f e seriam
condenadas a aoites e degredo, ou s a degredo caso fosse pessoa
nobre52
. O crime de
falso testemunho possua variadas formas, a primeira referida,
jurar falso em crime
capital, estando reservado para os prevaricadores aoites pblicos
e degredo para as
gals por tempo que variava entre os cinco e os 10 anos. Caso o
falso testemunho fosse
para absolver um crime de heresia, os implicados teriam de
abjurar de leve ou veemente
com degredo para uma das possesses do Reino. O prevaricador
teria de se apresentar
no auto da f levando carocha com o rtulo de falsrio53. Na mesma
esfera existiam
os crimes de suborno e apresentao de falsas testemunhas;
testemunha falsa contra
relaxados ao brao secular e falsrios eclesisticos ou
religiosos54
.
O regimento de 1774 mantm os trs ttulos a respeito do delito
contra o recto
ministrio do Santo Ofcio55, havendo apenas pequenas alteraes
nomeadamente no
que respeita s penas decretadas. Visto o nosso trabalho incidir
sobre os funcionrios
inquisitoriais que procederam contrariamente ao que era esperado
de um ministro ou
oficial, passamos a citar o ponto do regimento de 1774 que se
debrua particularmente
sobre o assunto: Havendo algum ministro ou oficial do Santo
Ofcio to esquecido da
sua obrigao que, por malcia, rogos ou peitas, obre qualquer
coisa em prejuzo do seu
ministrio ou das diligncias de que foi encarregado, impedindo-o
e perturbando-o por
este modo, se a culpa que houver cometido for de suborno, sendo
ministro, ser privado
do cargo que tiver e excludo do servio do Santo Ofcio e ter as
mais penas arbitrrias
que couberem na qualidade da sua pessoa e, sendo oficial, alm de
perder ofcio que
tiver na Inquisio e ser excludo do servio dela, ser degredado
por dez anos para o
reino de Angola56. Feito o enquadramento geral sobre a aco do
Tribunal do Santo
52
Regimento de 1640, livro III, ttulo XXII, in Jos Eduardo Franco,
Paulo de Assuno, As
Metamorfoses de um Polvo [], p. 371. 53
Regimento de 1640, livro III, ttulo XXIV, in Jos Eduardo Franco,
Paulo de Assuno, As
Metamorfoses de um Polvo [], p. 373. 54
Regimento de 1640, livro III, ttulo XXIV, in Jos Eduardo Franco,
Paulo de Assuno, As
Metamorfoses de um Polvo [], pp. 373 e 374. 55
Regimento de 1774, livro III, ttulo XVIII; XIX; XXI, in Jos
Eduardo Franco, Paulo de Assuno, As
Metamorfoses de um Polvo [], pp. 475-477. 56
Regimento de 1774, livro III, ttulo XVIII, in Jos Eduardo
Franco, Paulo de Assuno, As
Metamorfoses de um Polvo [], p. 475.
-
18
Ofcio enquanto mecanismo disciplinador, concretizando com o
aspecto especfico do
delito contra o Santo Ofcio57
passemos aos casos concretos.
57
Relativamente aos crimes contra o recto ministrio do Santo Ofcio
que no envolvem funcionrios,
veja-se os trabalhos de Isabel Mendes Drumond Braga, Os
Estrangeiros e a Inquisio Portuguesa:
sculos XVI XVII, Lisboa, Hugin, 2002, pp. 289-293; Idem, A
Mulatice como Impedimento de Acesso ao Estado do Meio, Actas do
Congresso Internacional Espao Atlntico de Antigo Regime: Poderes e
Sociedades, Lisboa, Instituto Cames, 2008, pp. 1-12 (disponvel
on-line em http://cvc.instituto-
camoes.pt/); Idem, Santo Ofcio, Promoo e Excluso Social: O
Discurso e a Prtica, Lusada Histria, srie II, n 8, Lisboa, 2011;
Daniela Buono Calainho, Agentes da F, [], pp.138-147; Idem, Pelo
Reto Ministrio do Santo Ofcio: Falsos Agentes Inquisitoriais no
Brasil Colonial. A Inquisio em Xeque [], pp. 87 96 e de Bruno
Lopes, A Inquisio em Terra de Cristos-Novos [], pp. 192-193.
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19
Parte II
Alcaides e guardas dos crceres
2.1 Alcaides: Funes
Para um bom funcionamento da mquina inquisitorial era
fundamental o papel
das figuras do alcaide e dos guardas. O alcaide era o funcionrio
que tinha como misso
vigiar os crceres e fazer cumprir o regimento e as ordens dos
inquisidores, no s no
que se refere aos comportamentos dos presos, mas tambm ao
comportamento dos
guardas e s actividades do dia-a-dia. Tal como para os demais
cargos desempenhados
em nome do Santo Ofcio, as funes de alcaide e de guarda estavam
regulamentadas
pelos regimentos inquisitoriais. Dos quatro regimentos do Santo
Ofcio, o de 1552
apenas referencia os alcaides. J o de 1613 e o de 1640 mencionam
em pontos distintos
alcaides e guardas58
. Quanto aos alcaides e porque s existe referncia aos mesmos,
no
regimento de 155259
, iremos abordar alguns pontos que nos remetero para os
principais
crimes enunciados nos processos estudados contra estes
funcionrios. O ttulo que lhes
foi dedicado faz meno integridade que o individuo ocupante deste
cargo devia
possuir, devendo zelar para que os homens e mulheres detidos se
mantivessem
separados para que no fosse possvel haver contacto de espcie
alguma entre eles.
Deviam ainda ter os guardas necessrios para o bom funcionamento
dos crceres60. O
alcaide era o responsvel por evitar que os presos comunicassem
tanto no interior como
no exterior do crcere atravs da comida que vinha de fora61
, tendo a obrigao de
58
Existe ainda a distino regimental entre os guardas e alcaides do
crcere do Santo Ofcio e os que
desempenham funes no crcere da penitncia, Cf. Regimento de 1613,
ttulo XVII, captulo I-V;
Regimento 1640, livro I, ttulo XXII Jos Eduardo Franco, Paulo de
Assuno, As Metamorfoses de um
Polvo [], pp. 199-200 e 288-290. 59
No regimento de 1552 no existe um captulo dedicado aos guardas.
60
Regimento de 1552, capitulo 99, in Jos Eduardo Franco, Paulo de
Assuno, As Metamorfoses de um
Polvo [], p. 127. 61
A partir de 1570 foi proibida a entrada de comida nos crceres
vinda do exterior, passando esta a ser
confeccionada por presas nas denominadas cozinhas da inquisio.
Cf. Marco Antnio, Nos crceres no h segredo nenhum [], p. 42; Elvira
Cunha de Azevedo Mea,Cotidiano entre as Grades do Santo Ofcio, [],
pp. 31-163. Sobre as consequncias de quem se comunicava no crcere
ver Notcias Recnditas do Modo de Proceder a Inquisio com os seus
presos, Lisboa, Imprensa Nacional, 1821, pp.
33 e 34.
-
20
informar o inquisidor sobre o que se sucedia no crcere62. A
vigilncia do quotidiano do
crcere a que os alcaides estavam obrigados, era relativa tambm
comunicao entre
os guardas e os presos. Proibia-se a abertura das casas dos
detidos sobretudo antes de
lhes serem postas as acusaes por parte do promotor. Em caso de
enfermidade de um
preso, os inquisidores haveriam de ser informados pelo
alcaide63. O regimento estipulava
a proibio dos alcaides e dos guardas manterem amizades com os
presos ou os seus
familiares, como tambm de receberem presentes64. Aos alcaides
cabia a vigilncia das
conversas entre pessoas que fossem autorizadas pelos
inquisidores a falarem com os
presos para que no fossem transmitidas cartas, nem avisos
escritos ou verbais65.
Como verificvel pelos captulos acima mencionados, o alcaide
possua a
responsabilidade de zelar por um dos pilares da eficcia do Santo
Ofcio dentro do
crcere, que era o segredo. Os demais regimentos mantiveram no
seu contedo as
mesmas preocupaes com a confidencialidade. Poderemos, no
entanto, acrescentar um
pargrafo presente no regimento de 1640 sobre a titularidade das
chaves dos crceres,
que deviam estar ao cuidado do alcaide e que ao longo do nosso
trabalho verificaremos
alguns descuidos neste aspecto: o regimento refere que o alcaide
no poderia confiar as
chaves a ningum sem ordem dos inquisidores, deveria manter as
portas do crcere
fechadas e sempre que fosse necessrio abri-las, teria de ser em
presena de um
guarda66. Os crceres da penitncia, com os seus alcaides e
guardas no foram
esquecidos pelos regimentos de 161367
e de 164068, onde as preocupaes foram
semelhantes ao dos funcionrios do crcere secreto.
Nota-se atravs dos regimentos uma evoluo na vigilncia do que se
passa no
seio do crcere. Sendo este ponto do regimento de 1640 um
paradigma dessa evoluo,
pois dos quatro regimentos, este o nico que faz referncia no seu
ttulo
62
Regimento de 1552, capitulo 103, in Jos Eduardo Franco, Paulo de
Assuno, As Metamorfoses de um
Polvo [], p.127. 63
Regimento de 1552, capitulo 104, in Jos Eduardo Franco, Paulo de
Assuno, As Metamorfoses de um
Polvo [], p. 127. 64
Regimento de 1552, capitulo 107, in Jos Eduardo Franco, Paulo de
Assuno, As Metamorfoses de um
Polvo [], p.128 65
Regimento de 1552, capitulo 111, in Jos Eduardo Franco, Paulo de
Assuno, As Metamorfoses de um
Polvo [], p. 128. 66
Regimento de 1640, livro I, ttulo XIV, in Jos Eduardo Franco,
Paulo de Assuno, As Metamorfoses
de um Polvo [], p. 278. 67
Regimento de 1613, ttulo XVII, captulo I-V, in Jos Eduardo
Franco, Paulo de Assuno, As
Metamorfoses de um Polvo [], pp.199-200. 68
Regimento de 1640, ttulo XXII, livro I, in Jos Eduardo Franco,
Paulo de Assuno, As Metamorfoses
de um Polvo [], pp. 288-290.
-
21
explicitamente vigilncia dos guardas por parte do alcaide e aos
recados que estes
possam traficar. Ao analisarmos os referidos pontos dos
regimentos, temos o panorama
das funes de vigilncia dos crceres e de toda a actividade l
realizada. O controlo
deveria ser apertado, porm nem sempre as malhas inquisitoriais
eram impermeveis
aos comportamentos desviantes no interior do crcere como veremos
mais adiante no
nosso trabalho.
2.2 Guardas: Funes
Relativamente aos guardas do crcere, os regimentos de 1613 e de
1640 fazem-
lhes uma referncia particular, o que no acontece no regimento de
1552. No de 1774
estes funcionrios no se encontram contemplados. Segundo o
regimento de 1613 para
se ser guarda era necessrio uma nomeao por parte do
Inquisidor-Geral e para alm
das bvias condies morais, no podiam ser familiares dos alcaides,
nem seus criados e
deveriam ser casados69. Como se pode verificar, para se ocupar
este cargo eram
necessrias boas caractersticas morais e um afastamento a nvel
pessoal do alcaide, o
que teoricamente permitiria por parte quer do alcaide quer do
guarda, a existncia de
uma maior imparcialidade na execuo dos seus ofcios. Os dois
captulos seguintes do
mesmo ttulo so referentes aos perigos de contacto com os presos,
inerentes sua
actividade, focando-se a necessidade de distncia em relao aos
detidos, com a
proibio de se aceitar ddivas ou de se confraternizar com os
presos. Estavam tambm
proibidos de possuir as chaves dos crceres sem ordens superiores
dos inquisidores70. A
estes funcionrios incumbia-se que provessem os presos das suas
necessidades como
refeies e quando fosse necessrio mudar algum de compartimento, o
guarda teria
sempre de acompanhar o alcaide71. Nos dois captulos seguintes,
continua a aluso ao
dever de vigilncia dos presos e obrigao de se fechar a porta do
ptio dos Estaus por
69
Regimento de 1613, ttulo XIV, captulo I, in Jos Eduardo Franco,
Paulo de Assuno, As
Metamorfoses de um Polvo [], p. 197. 70
Regimento de 1613, ttulo XIV, captulo II, in Jos Eduardo Franco,
Paulo de Assuno, As
Metamorfoses de um Polvo [], p. 197. 71
Regimento de 1613, ttulo XIV, captulo III, in Jos Eduardo
Franco, Paulo de Assuno, As
Metamorfoses de um Polvo [], p. 197.
-
22
parte dos guardas72
. Existia por parte do Santo Ofcio a preocupao de vigiar os
guardas a fim de se aferir se comunicavam com os presos ou com
pessoas suspeitas,
pois com a convivncia do dia-a-dia, o perigo da ocorrncia de
amizades entre rus e
funcionrios do crcere era real, estando a Inquisio ciente disso.
O captulo VII deste
ttulo dedicado aos guardas a ilustrao desse mesmo receio, onde
se pede aos
inquisidores vigilncia em relao aos guardas, pois a divulgao de
algum segredo
relacionado com os processos ou qualquer outro tipo de informao,
poderia interferir
no decurso do normal funcionamento do Tribunal73. As chaves do
crcere estavam ao
cuidado do alcaide e os guardas no podiam guardar as mesmas,
tendo de as entregar
aps a execuo do servio, como vem bem explicito no Regimento de
164074.
A vigilncia do que se passava no crcere no estava apenas
restrita aos
funcionrios em relao aos presos. Podemos encontrar implcita e
explicitamente essa
vigilncia dos funcionrios aos seus pares. Se verificarmos os
pontos regimentais j
enunciados, h a preocupao de no deixar apenas um funcionrio a
cumprir uma
determinada tarefa, principalmente quando esta direccionada para
o tratamento mais
prximo com os rus, que ter sem dvida uma preocupao com a
segurana de quem
executava a tarefa, alm de evitar fugas e tambm o controlo da
conduta dos
funcionrios uns pelos outros. Contudo, o regimento de 1640 deixa
explicita essa
vigilncia quando dito que E se [os guardas] notarem ou
advertirem que o alcaide faz
cousa que possa prejudicar ao segredo e resguardo do Santo Ofcio
o faro saber em
Mesa ou a um dos inquisidores para que a matria se d o remdio
que convm 75. Tal
como est presente no regimento de 1640, mas no que referente
vigilncia dos
alcaides em relao aos guardas.
Alcaides e guardas tinham um papel fundamental na preservao do
segredo
inquisitorial, pois eram os funcionrios que privavam mais de
perto com os rus e por
essa razo podiam influenciar os processos, transmitindo
informaes aos ditos presos,
72
Regimento de 1613, ttulo XIV, captulo IV-V, in Jos Eduardo
Franco, Paulo de Assuno, As
Metamorfoses de um Polvo [], p. 197. 73
Regimento de 1613, ttulo XIV, captulo VI, in Jos Eduardo Franco,
Paulo de Assuno, As
Metamorfoses de um Polvo [], p. 197. 74
Regimento de 1640, ttulo XV, livro I, in Jos Eduardo Franco,
Paulo de Assuno, As Metamorfoses
de um Polvo [], p. 282. 75
Cf. o ponto do regimento denominado de Vigiar os presos e o
guarda presente no Regimento de 1640,
ttulo XXII, livro I, in Jos Eduardo Franco, Paulo de Assuno, As
Metamorfoses de um Polvo [], p. 289.
-
23
que de outra forma lhe no poderiam aceder, como iremos comprovar
ao longo do nosso
trabalho.
2.3 Alcaides e Guardas: Crimes, Motivaes e Consequncias
Os regimentos inquisitoriais analisados no ponto anterior
denotam a enorme
preocupao com o sigilo dentro dos crceres. Porm, a realidade era
bastante diferente
da veiculada pelos ditos textos legislativos. Ao contrrio do que
se poderia imaginar, o
Tribunal do Santo Ofcio vivia com problemas econmicos,
reflectindo-se na estrutura
inquisitorial que carecia de instalaes apropriadas e de nmero
suficiente de
funcionrios para o volume de presos que acorriam aos crceres.
Esta situao tornava
mais difcil a manuteno do segredo to desejado para a boa conduo
dos processos.
Marco Antnio Nunes da Silva no seu estudo faz referncia
importncia dos contactos
mantidos entre os presos, como tentativa de uma conduo mais
vantajosa dos seus
processos e proteco de familiares e amigos. Este autor evoca a
comunicao entre os
rus como via para fugir s rotinas do quotidiano, evitando a
queda em depresso76
.
Os recados entre os rus circulavam atravs da alimentao que
chegou a ser
trazida de fora dos crceres at 1570, ano da sua proibio pela
razo de que este
mtodo j no era vivel devido ao crescente nmero de detidos
provenientes de regies
distantes77
. A partir desta data, os alimentos passaram a ser
confeccionados nas cozinhas
da inquisio por reclusas, o que no evitou a continuao da
propagao dos recados78
.
O responsvel pelo provimento dos bens necessrios passava assim a
ser o
76
Marco Antnio, Nos crceres no h segredo nenhum, [], p.41. No
artigo deste autor podemos encontrar casos de guardas
prevaricadores, retirados sobretudo dos cadernos do promotor.
Sobre
carcereiros prevaricadores ver Elvira Mea, Cotidiano entre as
Grades do Santo Ofcio, Em nome da F, Estudos In Memoriam de Elias
Lipiner, direco de Nachman Falbel, Aurchan Milgram e Alberto
Dires,
SP, Editora Perspectiva, 1999, pp. 131-144; Isabel Drumond
Braga, Crcere mais spero do que permite a Razo do Direito []. Sobre
a ocupao do tempo nos crceres do Santo Ofcio, cf. Isabel Drumond
Braga, Crcere mais spero do que permite a Razo do Direito [], pp.
131-163. 77
Elvira Cunha de Azevedo Mea,Cotidiano entre as Grades do Santo
Ofcio, [], p. 137; Sobre um cristo-novo que se comunicava devido
aos alimentos que vinham de fora do crcere ver Maria Leonor
Garca da Cruz, Os Escritos de Aviso como Obstculo Actuao do
Tribunal do Santo Ofcio, Comunicaes apresentadas ao 1 Congresso
Luso-Brasileiro sobre Inquisio, coordenao de Maria
Helena Carvalho dos Santos, vol. 1, Lisboa, Sociedade Portuguesa
de estudos do Sculo XVIII,
Universitria Editora, 1989, pp. 135-147. 78
Marco Antnio, Nos crceres no h segredo nenhum, [], p. 42
-
24
despenseiro79
. Estes avisos circulavam atravs dos utenslios de cozinha e da
prpria
comida, como em cascas de ovo ou de abbora80
, em ameixas, debaixo de postas de
bacalhau, ou arroz81
. Tal acontecia frequentemente, at porque os prprios guardas
poderiam lucrar com este tipo de comportamento, como iremos
demonstrar neste ponto
do nosso trabalho.
Como mtodo de abordagem questo dos carcereiros prevaricadores
optmos
por ordenar os casos destes funcionrios em primeiro lugar
agrupando os que tiveram
processos abertos em conjunto ou que a investigao de um caso
tenha levado
descoberta de outros indivduos prevaricadores. Seguidamente,
tivemos em conta os
alcaides e guardas com processos isolados, que cometeram os
delitos mais comuns
nestes casos, ou seja, a comunicao com os presos nas suas
diversas dimenses. Por
ltimo, estaro expostos os processos por auxlio fuga de rus,
roubo e falta de zelo.
Os processos esto ordenados cronologicamente dentro dos
conjuntos j identificados e
referenciados no quadro seguinte.
Quadro I
Tipologia de crimes dos carcereiros processados
A natureza dos crimes cometidos pelos carcereiros (alcaides e
guardas), prendia-
se sobretudo sua comunicao com os presos e facilitao da
correspondncia entre
os presos. Quando um carcereiro era detido, o desenrolar do seu
processo podia
desencadear a abertura de outros processos onde eram visados
colegas seus. Foi o que
79
Regimento de 1640, ttulo XVIII, livro I, in Jos Eduardo Franco,
Paulo de Assuno, As
Metamorfoses de um Polvo [], pp. 285-286 80
Elvira Cunha de Azevedo Mea,Cotidiano entre as Grades do Santo
Ofcio, [], p. 140 81
Isabel Drumond Braga, Crcere mais spero do que permite a Razo do
Direito [], pp. 230-233. 82
Esto includos os processos em conjunto e os individuais.
Tipologia de
crimes
Comunicao
indevida com
os rus82
Auxlio
fuga
de rus
Roubo Falta de
zelo
N de casos
estudados 20 4 1 1
-
25
sucedeu na Inquisio de Coimbra83
, com a abertura de um processo a Martim
Mendes84
, datado de 1571, que pelo sucedido anos mais tarde, no serviu
de exemplo85
.
Este guarda, foi acusado de receber subornos de cristos - novos,
e de promover a
comunicao entre os presos. Chegou mesmo a trocar de crcere
alguns presos sem a
autorizao dos inquisidores e deixou algumas presas irem assistir
janela a uma
procisso que passava na altura. Alm destes crimes, teve relaes
sexuais com uma r
de nome Branca Nunes e chegou a dormir ao mesmo tempo com duas
presas no local
onde dormia quando tomava conta do crcere. Estes crimes
valeram-lhe uma pena de
degredo perptuo para o Brasil da qual cumpriu 15 anos, por em
1585 ser comutada
para penas espirituais. Segundo os estudos de Elvira de Azevedo
Mea86
, apenas trs
anos depois comeou a vir a lume um conjunto de actos de guardas
condenveis pela
Inquisio. Tudo comeou com a exonerao compulsiva87
de um guarda de seu nome
Mateus Pires88
no ano de 1574. Bernardo Ramires, cristo-novo seria quem
geria
contactos com a finalidade de fazer a divulgao de que ele
conseguia fazer passar
informaes atravs de recados, relativamente a cristos-novos
presos ou que
estivessem a caminho de ser detidos. Para que tal empreendimento
fosse concretizvel,
Ramires, recorreu aos servios do guarda Manuel Leito89
, do notrio Baltasar
Fernandes e ainda ajuda de um outro guarda chamado Mateus Pires,
juntos
conseguiram uma rede de cristos-novos abastados, interessados
nos seus servios.
Como se pode notar, existia aparentemente uma boa organizao
neste esquema, pois
os escritos de Baltasar Fernandes voltavam procedncia para serem
destrudos, outras
vezes a informao era oral90, o que denota um grande cuidado para
no serem
descobertos, at porque os lucros que obtinham eram relevantes.
Contudo, este esquema
foi descoberto e o cardeal-infante D. Henrique enviou os
implicados para serem
julgados pelo Tribunal do Santo Ofcio de vora91
, onde conseguimos obter o processo
de Manuel Leito que iremos explorar de seguida. No entanto, h
lugar ainda para
83
Devido ao mau estado dos processos, s conseguimos consultar o
processo de Martim Mendes, sendo
as nossas informaes baseadas no trabalho de Elvira Cunha de
Azevedo Mea, A Inquisio de Coimbra
[], pp. 351-354. 84
Lisboa, A.N.T.T., Inquisio de Coimbra, proc. 9738. 85
Elvira Cunha de Azevedo Mea, A Inquisio de Coimbra [], p. 351.
86
Elvira Cunha de Azevedo Mea, A Inquisio de Coimbra []. 87
Elvira Cunha de Azevedo Mea, A Inquisio de Coimbra [], p. 351.
88
Processo do guarda com a referncia, Lisboa, A.N.T.T., Inquisio
de Coimbra, proc.1196 no pde
ser visto por estar em mau estado. 89
Os processos com a referncia Lisboa, A.N.T.T., Inquisio de
Coimbra, procs. 8452 e 258 no
puderam ser vistos devido ao seu mau estado. 90
Elvira Cunha de Azevedo Mea, A Inquisio de Coimbra [], p 353.
91
Elvira Cunha de Azevedo Mea, A Inquisio de Coimbra [], p
353.
-
26
referir que Mateus Pires foi obrigado a abjurar de leve suspeito
na f e condenado a um
ano de degredo fora do bispado de Coimbra e Baltasar Fernandes
foi enviado durante
trs anos para as gals92
.
O processo de Manuel Leito que iremos de seguida referir, um
segundo
processo93
, pois este guarda j tinha um pelo mesmo caso aberto no Tribunal
de
Coimbra, que resultou em abjurar de leve suspeito na f e um ano
de degredo para as
gals94
. No processo contido na Inquisio de vora, um guarda do Colgio
da Doutrina
da F, apresentou um escrito que lhe deu lvaro Mendes, para que
este o desse a
Manuel Leito, que dizia o seguinte: o Vila esta como sempre
esteve e milhor e nam
haa que falar nelle os mais estam muito bem o brando e o doutor
esto em vora nos
termos em que vos estais e firmes e se no he esse valhaquo
paneleiro nam haa cousa
que vos faa dano. Avisai me se aveis mister algu cousa que loguo
vo lo mandareis e
descanca que n aguora nem em nenhum tempo vos faltara nada
porque os bos
amiguos que tinhas tendes aguora e tereis sempre e por
esperiencia e por obras vistes
isto e vireis sempre e muito folgara que dous dedos estivsseis
certo nisto pois pera elle
he tanta verdade como pera nos. E se ouuer ordem pera lho
lembrardes fazei o nenhu
cousa haa de novo neste caso mais que o que vos sabeis que eu
tenho por muito bom
nam aver novidade que parece tudo esta quieto Senhora marinha e
todos vosos amiguos
esto bem e sentem vossos trabalhos e espera em Deos de muito
cedo lhe ver bom fim
Elle nos da muita consolao vosso filho haa muitos dias que no
haa novas delle vossa
molher estaa de sade95. Esta carta era uma prova contundente de
que havia
comunicao entre pessoas de dentro e de fora dos crceres e que
Manuel Leito tinha
participao nestes actos. Quando foi chamado para confessar os
seus crimes, o ru
disse que enquanto esteve preso nunca recebeu subornos e que
apenas um homem
chamado Francisco Dias, seu companheiro de crcere, ofereceu-lhe
uns cales e umas
botas velhas e que alguns presos lhe davam de comer por saberem
que ele guarda era
uma pessoa pobre.
92
Elvira Cunha de Azevedo Mea, A Inquisio de Coimbra [], p 353.
93
Este processo consultado refere que foi aberto um segundo
processo pois o guarda fugiu das gals, para
onde tinha sido enviado no processo anterior. 94
Elvira Cunha de Azevedo Mea, A Inquisio de Coimbra [], p 353.
95
Lisboa, A.N.T.T., Inquisio de vora, proc. 9469.
-
27
lvaro Mendes passados trs meses de ter sado em auto da f, mandou
atravs
de Domingos Rodrigues um escrito, seis tostes96
e duas camisas. Assumiu ser verdade
que, enquanto foi guarda em Coimbra, levou muitos recados e
avisos a presos aceitando
subornos de pessoas exteriores aos crceres. Para tentar ganhar
algum dinheiro dos
cristos-novos ter tambm escrito alguns recados97
. Ao fazer a confisso, este guarda
deu alguns exemplos concretos, como quando estava porta dos
crceres para ir dar a
refeio aos presos e Manuel Henriques que tinha presos no crcere,
a sua me, um
cunhado e a sua irm. Aproveitou a aproximao do guarda e
perguntou-lhe como
estavam estes seus familiares, tendo o guarda respondido, que
eles se encontravam bem
de sade. Manuel Henriques ter dado ainda ao ru queijos e
presuntos. Este cristo-
novo informou tambm o guarda que a sua me, segundo o notrio
Baltasar
Fernandes98
, no tinha o processo bem encaminhado. O notrio, segundo o ru,
ter
mesmo estado dentro do crcere com uma presa chamada Leonor
Lopes, advertindo
Manuel Leito para este o avisar caso algum inquisidor o
chamasse.
As conversas entre Manuel Leito e os cristos-novos de fora do
crcere foram
confirmadas pelo mesmo aos inquisidores. O ru ter estado com
Tristo Rodrigues
Vila Real e Francisco Rodrigues, que foram ter com ele porta do
crcere. Nesta
conversa, Vila Real informou o guarda que se ia entregar por
conselho do notrio
Baltasar Fernandes, que lhe ter dito que este no tinha mais que
uma testemunha contra
ele. Sendo assim, o guarda teria de dizer a Simo Castro que
estava preso nos crceres
para no acusar Vila Real, que este s tinha uma testemunha contra
ele e que sendo
assim, apenas sairia com uma vela no auto. No final da conversa,
Vila Real deu ao
guarda 10 cruzados e prometeu-lhe muito mais dinheiro porque era
rico, e assim Manuel
Leito poderia deixar de ser pobre. Depois foi dado ao guarda
seis mil reis para este
passar o tal bilhete a Simo e assim combinou com o guarda qual a
melhor altura para
fazer a entrega. Outro preso, Diogo Lopes, esboou a sua
preocupao em ser
condenado ao relaxamento ao brao secular, pediu ao guarda para
que este lhe fizesse o
favor de perguntar ao notrio se existia essa probabilidade. A
resposta trazida foi que
no se preocupasse pois estava tudo bem. So vrias as informaes
dadas pelo notrio
segundo este testemunho. Existiam presos que sabiam quando iam
sair familiares seus
96
Estes seis tostes constam que ficaram para o guarda Domingos
Rodrigues. 97
Lisboa, A.N.T.T., Inquisio de vora, proc. 9469. 98
A referncia ao que aconteceu a Baltazar est num manuscrito
citado em Elvira Cunha de Azevedo
Mea, A Inquisio de Coimbra [], p 353.
-
28
em auto; a outros presos dava descanso Baltasar, como Guiomar
Brandoa que teve a
informao privilegiada que uma das testemunhas contra si estava
morta, outra ausente
e outra ainda estava doida.
Mesmo o prprio Manuel Leito beneficiou deste esquema enquanto
esteve
detido, a partir do dito notrio obteve informaes de que s iria
ser preso quando
chegasse ao tribunal o inquisidor Doutor Sebastio Vaz. Quem o
ajudou tambm foram
os filhos de Vila Real que o aconselharem a ir para o Brasil,
prontificando-se a
emprestar-lhe dinheiro. Contudo, atravs de um Bernardo Vamires,
soube que o notrio
pensava ser melhor ir para a Galiza ou para Castela, visto o
Brasil pertencer ao mesmo
Reino e assim poderia preso facilmente. O ru parece desconhecer
os contactos entre o
Tribunal de Portugal e o de Castela. A caminho da Galiza, fez
uma paragem em Santa
Comba Do onde recebeu um recado do notrio que continha a
informao de que o
inquisidor j tinha chegado e o meirinho j o tinha mandado
prender. O Santo Ofcio
acabou por saber que este fugira para a Galiza, onde foi preso
em Vigo pelo meirinho
do Santo Ofcio de Coimbra. Aps esta priso pediu ao guarda Mateus
Pires que
perguntasse ao notrio informaes sobre o seu caso semelhana do
que ele prprio
tinha feito a outros presos. Foi ento aconselhado a no confessar
nada, porque tinha
apenas uma testemunha e sendo assim o processo no podia avanar.
Para obter estas
informaes pagou 1000 ris ao guarda Mateus99
. Durante a sua confisso, Manuel
Leito, disse que era sexta-feira que se costumava dar aos presos
a noticia de que iam
ser relaxados ao brao secular e numa dessas sextas-feiras, o
cristo-novo Henrique
Nunes de Linhares se comesou de agastar e queixar dizendo como
avia de aver no
nundo relaxar hum homem que tambem avia cofessado suas culpas e
dado trinta e duas
pessoas ao que elle confitente respondeu que fosse elle a Mesa e
pedisse misericordia
porque alguma cousa lhe faltaria confessar por ho relaxavo e que
ho Senhor Manoel de
Coadros quando fora Inquisidor dava misericordia a todos os que
confessavam e que
isto dixera elle confitente ao ditto Anrique Nunes, por lhe aver
ditto hum castelhano que
estava em sua companhia que o ditto Anrique Nunes avia de hir
denunciar delle a Meza
[] pera com isto ver se lhe podia ganhar a uontade e estorvar
que ho no fosse acusar
a Meza e que segundo sua lembrana lhe parece que disse no
carcere alto que ho podio
ouvir que nunqua sevira relaxar a justia secular pessoas que
confessavam suas culpas
como neste auto se fazia o que dizia por lhe pezar de os ver
entregar a justia secular,
99
Lisboa, A.N.T.T., Inquisio de vora, proc. 9469.
-
29
por serem algumas pessoas destas que entregavam com que elle
tinha comonicao e
amizade e dava recados100.
Enquanto o ru esteve preso nos colgios gerais, um guarda
informou-o que
dentro da sua cela existia um buraco por onde espreitava o
alcaide, caso ele quisesse
fazer algo ilcito teria de ter muito cuidado. A partir deste
episdio o guarda dos
colgios gerais dava-lhe informaes sobre a sua mulher e no s.
Alegremente disse a
Manuel leito que ia haver um auto da f e que isso significava
que iam chegar muitos
cristos-novos, o que significava simultaneamente, muito
dinheiro. Era preciso
aproveitar enquanto eles se encontravam l presos porque segundo
o tal guarda, depois
deles se irem embora j no davam nada aos guardas. Sendo o guarda
prestvel, Manuel
aproveitou os seus favores: E ento elle confitente chamou ao
ditto guarda Domingos e
lhe disse que elle sabia que estava na cidade hum cristo - novo
de Coimbra seu amigo e
que Alvaro Mendez seu companheiro se lhe ofereceo pera lhe aver
delle dinheiro e
outras cousas que avia mister se queria elle depois do ditto
Alvaro Mendes ser solto hir
a sua casa e trazer o que lhe desse e parterio ambos e o ditto
guarda lhe disse que como
o ditto Alvaro Mendez fose solto, que elle hira de boa vontade a
sua casa e traria tudo o
que lhe desse e feito isto elle confitente disse a Alvaro Mendez
que ja a tinha consertado
com ho guarda pera tanto que elle fose solto elle hir ter a sua
casa e o ditto Alvaro
Mendes lhe disse que depois de elle ser solto dahy a trs dias
fosse o ditto guarda a sua
casa e lhe desse hum pano e lhe mandasse pedir favas secas que
lhe serio boas para o
carcere e servirio de sinal de como ho ditto guarda hia por seu
mandado e que elle lhe
escreviria huma carta em que lhe desse conta de todos seus
amigos e quantos sero
presos e lhe mandaria [] dinheiro101. Estes seus actos
custaram-lhe ir a auto da f a
29 de Novembro de 1584, para ali ouvir a sua sentena, sendo
condenado a uma pena de
degredo perptuo para as gals, alm de perder todos os seus bens
para o fisco e cmara
real102
. Esta rede que foi desmantelada coloca a nu as fragilidades do
Santo Ofcio,
atravs da dificuldade de se controlar a actividade nos crceres,
onde os guardas se
queixavam de ser mal pagos e os cristos-novos lhes ofereciam
dinheiro por coisas
aparentemente simples como transmitir recados.
100
Lisboa, A.N.T.T., Inquisio de vora, proc. 9469. 101
Lisboa, A.N.T.T., Inquisio de vora, proc. 9469. 102
Lisboa, A.N.T.T., Inquisio de vora, proc. 9469.
-
30
Em Lisboa entre os anos de 1628 e 1629 foram abertos trs
processos103
a
funcionrios dos crceres, um deles, a um alcaide e os outros dois
a guardas. O primeiro
a ser detido pelo Tribunal do Santo Ofcio foi o guarda Paulo de
Azevedo, em 22 de
Agosto de 1628104
, seguidamente foi a vez de Gonalo Dias, que cerca de 32 anos
antes,
era o meirinho do tribunal lisboeta. Este guarda foi acusado de
falar a ss com os
presos, de lhes ficar com po e ovos e de transportar recados
para os presos. Antnio de
Azevedo, testemunhou que a sua mulher vira Gonalo Dias a falar
com crists-novas105
e que uma delas, chamada Ins de Leo, lhe ter dito atravs de
gestos que os lenos
que estava no momento a fazer, faziam parte do negcio de trfico
de recados para o seu
tio que estava preso, a troco de dinheiro. No entanto, esta no
foi a nica testemunha
das visitas de Gonalo Dias. Maria Francisca, crist-velha, tambm
os viu juntos. Paulo
de Azevedo, guarda processado j referido, confessou que ao ver
um preso a sair do
crcere devido porta se encontrar aberta pediu ajuda a Gonalo
Dias para a fechar. Ao
abordar este assunto com o alcaide e outros guardas, estes
aconselharam a que o
sucedido morresse ali para no haver problemas. No entanto, os
presos disseram-lhe
que quem fechara mal a porta foi o guarda Gonalo Dias. Paulo de
Azevedo afirmou
ainda que o ru tomava po quando os prezos lho davo e o levava
para caza106.
Um cristo-novo preso no crcere chamado Joo Correia acusou o
guarda
Gonalo Dias de tomar tudo o que os presos lhe dessem, como pes,
capotes, dinheiro
entre outras coisas. As acusaes sucederam-se. Desta vez foi
Isabel da Silva que
denunciou o guarda de levar recados da parte de uma freira que
se encontrava presa a
outros detidos do crcere, mas que a tal freira no seria a nica a
usar os prstimos de
Gonalo Dias. A questo das portas mal fechadas veio de novo a
lume quando Maria
Rodrigues, crist-nova, revelou que o ru deixou a porta aberta da
sua cela para que ela
fosse ter ao quarto dele durante a noite, que ele a voltaria a
levar sua cela sem que
ningum visse. Acrescentou ainda que o ru colocava as mos no
peito de Marta Lopes
e a abraava. Ouviu tambm da boca de Maria de Moura, presa, que
Gonalo Dias
beliscava, apalpava, abraava e beijava as moas do crcere. De
entre as coisas que
Gonalo Dias entregava aos presos, encontramos a Crnica de D. Joo
II, as vidas de
103
Durante o decorrer destes processos, um guarda chamado Baptista
Rodrigues foi retirado de guarda e
colocado como homem do meirinho, tendo acabado por ser despedido
dos dois cargos visto ter recebido
prendas dos presos e depois ter servido mal como meirinho. Cf.
Lisboa, A.N.T.T., Inquisio de Lisboa,
proc.8858. 104
No encontrmos o processo, mas o caso referido nos outros dois
processos. 105
Tratava-se de ngela Lopes Henriques e a sua sobrinha Ins de Leo.
106
Lisboa, A.N.T.T., Inquisio de Lisboa, proc.181.
-
31
Santo Antnio e So Francisco107
, que foram dadas a Antnio da Silva, cristo-novo.
No retorno dos livros, este preso deu ao guarda quatro pes,
disse ainda que o ru falava
e comia com os presos na porta do crcere. Os recados segundo
outro testemunho, desta
vez de uma crist-nova chamada Maria Gonalves, eram transmitidos
algumas vezes a
partir da cozinha. Para o devido efeito, Gonalo Dias levava um
alguidar de cepos para
que lho trocassem por carvo, e que nesse alguidar de cepos que
foi trocado, seguiam
alguns escritos embrulhados num pano escuro. Este procedimento
foi repetido e nunca
mais algum guarda ou alcaide o acompanhava quando ia cozinha
realizar estas
trocas108
. O guarda era tratado por uma presa por paizinho, devido aos
favores que ele
fazia. Na sua confisso este funcionrio apenas admitiu ter falado
com trs mulheres e
que uma lhe pegara na mo e a colocara na testa dela sem estar
presente outro guarda ou
alcaide. Negou o resto das acusaes contra ele e como resultado
foi levado a auto da f
pblico, onde ouviu a sentena de degredo por seis anos para
Angola, aoites pblicos e
a privao perptua do ofcio de guarda. Utilizando o argumento de
ser j velho pediu a
comutao da pena de degredo, a qual foi concedida, passando a
estar obrigado a
permanecer pelo a menos vinte lguas ao redor de Lisboa,
perpetuamente109
.
No ano seguinte, a 14 de Agosto, foi preso o alcaide Heitor
Teixeira, que
segundo o testemunho do guarda Paulo de Azevedo110
, fiava as chaves dos crceres aos
guardas, algo que os regimentos proibiam determinantemente. O
incumprimento das
suas funes no ficou s por este tipo de episdio. O ru permitia
que as presas
circulassem pelos corredores dos crceres. Era costume, segundo
testemunhas como a
crist-nova Marta Lopes, este alcaide dar avisos a uma presa
chamada Ana, e segundo a
mesma, o alcaide era desonesto e dizia palavras torpes. Maria da
Cunha chegou a
afirmar que Heitor Teixeira tinha uma ateno especial com D.
Antnia a quem dava
tinta e papel, mais, ter tambm impedido que se lesse na Mesa um
escrito da mesma D.
Antnia. Na sua confisso, comeou por falar de um episdio em que
tentou matar a sua
mulher dizendo que vivendo nas cazas dos estaos [] com Donna
Fellipa sua molher
107
Pelo ano de publicao tratam-se presumivelmente das seguintes
obras: Garca de Resende, Choronica
que trata da vida e grandssimas virtudes, e bondades, magnanimo
esforo, e excelentes costumes e
manhas, e claros feytos do Christianissimo Dom Joo o Segundo
deste nome e dos Reys de Portugal o
Decimo Tercio de Gloriosa Memoria com outras obras que adiante
se seguem, Lisboa, Jorge Rodrigues, 1607; Fr. Fortunato de So
Boaventura, Vida e Milagres de Santo Antnio de Lisboa,
Coimbra, Real Imprensa de Coimbra, 1630; Sobre a obra referente
a So Francisco no encontrmos uma
possvel edio. 108
Lisboa, A.N.T.T., Inquisio de Lisboa, proc.181. 109
Lisboa, A.N.T.T., Inquisio de Lisboa, proc.181. 110
Guarda preso no mbito desta investigao, j referido.
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tentado do diabo a quis mattar e lhe deo huma ferida com hum
arame comprido e
entendendo que morria lhe foi busquar confessor [] ficando elle
entendendo que ella
morreria e tambem teve tentaso de se mattar a si mesmo111.
Relativamente ao
contedo do seu processo, o ru afirmou que no sabia quem que
tinha aberto a porta a
D. Antnia, relatada como a sua protegida, e que falou com uns
presos sem dar conta
Mesa. No acrdo dos inquisidores, referido que o ru descobriu
segredos, aceitou
subornos e ddivas de presos, alm de ter proporcionado a
comunicao entre os
detidos. Foi assim levado a auto da f, no dia 9 de Janeiro de
1633, onde fez abjurao
de leve suspeito na f, tendo sido privado do ofcio de alcaide e
ainda sendo condenado
a pena de 10 anos de degredo para as gals112
. Um ms aps a priso de Heitor Teixeira,
foi a vez do guarda Joo Esteves enfrentar a justia
inquisitorial. Joo de Mora, preso
nos crceres do Santo Ofcio de Lisboa, denunciou o guarda dizendo
que um mdico
que se encontrava tambm detido e de seu nome Joo de Luna,
recebia cartas vindas de
fora, mas apenas sabia que o ru entregou uma carta a frei Lopes
Correia, tambm preso
nos crceres e que a carta dizia que muy amide tinha novas de
suas obrigaes as
quaes lhe trazia o grande amigo113, esse amigo era o guarda
Paulo de Azevedo,
tambm envolvido neste caso. O denunciante referiu ainda a forma
como a carta foi
enviada: e esta carta lanou per hum cordel em huma pella que
tinha feito de lao o
dito frei Lopes114. Este frade revelou ao denunciante que quem
trazia as cartas de fora
era o guarda Paulo de Azevedo, que por sua vez as entregava a
Joo de Luna, que as
enviava ao frade.
Segundo Joo de Mora, foi enviado a um preso de nome Pedro Nunes,
pela mo
do frei Lopes Correia um papel onde se dizia que se tinha
publicado huma graa, em
que se mandava que toda pessoa da nao que confessasse suas
culpas e satisfizesse
[] remittiro as culpas e lhes perdoario em segredo e que a mesma
graa se havia de
publicar aos presos115. Outra informao que circulava nos crceres
era que sua
Majestade tinha dado por juzo s peties dos christos novos o
Inquisidor Geral de
Castella, o qual estava muy afecto s pessoas da nao e que tudo
se