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O ECONOMICISMO E A INVISIBILIDADE DAS
CLASSES1.
Jess Souza
O objetivo deste texto refletir acerca das assim chamadas
classes populares no
Brasil contemporneo. Toda interveno no campo das idias se d, no
entanto,
dentro de um contexto j constitudo com uma semntica e um
conjunto de noes
dominantes. Perceber isso especialmente importante quando se
trata da questo
mais importante para a estrutura e legitimao de toda a ordem
social: o tema da
produo e reproduo das classes sociais. No existe questo mais
importante para a
compreenso adequada de qualquer ordem social posto que: 1) o
pertencimento de
classe que nos esclarece acerca do acesso positiva ou
negativamente privilegiado a
qualquer tipo material ou ideal de recurso social escasso; e, 2)
dado que a
sociedade moderna se legitima na medida em que aparece como
justa e igualitria,
so as justificativas para a desigualdade efetiva entre as
classes que formam o ncleo
da legitimao social e poltica que permitem que a sociedade
moderna possa ser
aceita como justa tambm pelos injustiados e humilhados por
ela.
Quando dizemos que o pertencimento de classe a questo mais
importante da vida
social porque ela no define apenas o acesso privilegiado a todo
tipo de bem
material, como a compra do carro do ano e do apartamento com
varanda. Esse
pertencimento pr-decide tambm o destino dos recursos escassos
ideais como
respeito, auto-estima, reconhecimento, cultura, prestgio,
charme, os quais vo
permitir, portanto, no s o acesso diferencial a empregos de
prestgio e bons
salrios, mas, tambm, o acesso a certos amigos, a conquista bem
sucedida de
certo tipo de mulher ou de homem, e de tudo quilo que desejamos
e sonhamos
acordado ou dormindo todas as 24 horas do dia. Assim,
compreender a produo e a
reproduo das classes sociais a chave mestra para o desvelamento
do mistrio
do funcionamento da sociedade como um todo.
O problema que o descobrimento do mistrio acerca do mecanismo
de
funcionamento da realidade social tem vrios e poderosos
inimigos. Todos os
interesses e poderes que esto ganhando tm interesse na reproduo
da sociedade
injusta e desigual tal como ela e a legitimam, por exemplo,
dizendo que todo
privilgio vem da ideologia da qual trataremos em detalhe mais
tarde - do mrito
1 Agradeo a Maria Teresa Carneiro e Ricardo Visser pelas crticas
e comentrios a este texto.
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individual. Todas as propagandas de cigarro ou carro, todos os
Best Sellers vendidos
como romance, 90% dos filmes de grande bilheteria, todas as
telenovelas, alm de
toda a percepo fragmentada da realidade cotidiana que confunde o
principal e o
secundrio e ficam na superfcie de toda real compreenso do mundo
social tambm
ajudam para a manuteno da opacidade social.
Mas quem termina por fechar o crculo que constri a nossa
cegueira acerca do
efetivo funcionamento da sociedade so as cincias da ordem, ou
seja, as cincias
que cumprem papel semelhante s propagandas de cigarro, s
telenovelas, e
fragmentao da conscincia cotidiana. As cincias da ordem perfazem
80% ou 90% do
que se passa por cincia seja no Brasil seja fora dele. As
cincias da ordem imitam a
cincia verdadeira apegando-se aos artifcios de cientificidade,
exemplarmente a
partir da quantificao da realidade afinal os nmeros lembram
exemplarmente as
cincias naturais - com equaes e grficos. Mas elas no so cincias
de verdade,
pelo simples fato de que cincia verdadeira apenas a cincia
crtica desta mesma
realidade. Apenas a cincia crtica capaz de explicitar todos os
conceitos que usa
para no contrabandear noes do senso comum comprometidas com a
manuteno
da ordem e, desse modo, ser capaz de reconstruir a sociedade no
pensamento
como um todo. apenas deste modo que podemos restituir a
compreensibilidade
roubada pelos interesses da manuteno e reproduo de todos os
poderes que esto
ganhando. A cincia social tem que ser crtica da realidade social
seno no
verdadeira. Seno ela apenas reflete e refora com o prestgio da
cincia os mesmos
preconceitos sociais que produzem e reproduzem a dominao social
e sua
legitimao.
Minha tese que o tema da produo e reproduo das classes sociais
no Brasil o
tema que poderia estruturar uma concepo verdadeiramente crtica
sobre o Brasil
contemporneo - dominando por uma leitura economicista e redutora
da
realidade social. Por economicista eu no imagino gostaria que
fosse ocioso dizer
isso, mas infelizmente no algo que atributo de economistas. No
estou de
modo algum em uma cruzada corporativista que oporia socilogos a
economistas
at porque a maior parte dos meus colegas socilogos so, eles
prprios, ou
economicistas ou adeptos da desfigurao da realidade social que a
fragmentao
da disciplina em incontveis reas de interesse provoca. Mas no so
apenas
economistas e socilogos que so economicistas. Toda a realidade
social
economicista posto que construda para receber e consumir
conhecimento
superficial e confundir informao com reflexo.
Iremos escolher dois dos mais eminentes economistas brasileiros
para criticar o
economicismo e perceber suas possibilidades e limites,
simplesmente pelo fato de
que a economia tornou-se a cincia da ordem oficial, inclusive
tomando para si
temas antes tpicos de outras cincias como o tema das classes e
da desigualdade
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social. Duas razes so decisivas para o novo papel da economia e
dos economistas: 1)
a esfera econmica a esfera social mais visvel o que no significa
mais
importante - nos seus efeitos sobre a sociedade; e, 2)a economia
logrou construir para
si a partir de sua formalizao matemtica conseqente uma aparncia
de
cientificidade derivada das cincias naturais.
Certamente, a economia tem muito a contribuir para o
esclarecimento da realidade
social confusa. Mas ela aparenta dar mais coisas do que
efetivamente d. Ela
promete coisas que no entrega. A temos o economicismo: uma viso
empobrecida
e amesquinhada da realidade, como se fosse toda a realidade
social. Vamos
examinar a obra recente de dois dos mais festejados e
reconhecidos economistas
brasileiros, os professores Mrcio Pochmann2 e Marcelo Nri3, para
tentar comprovar
nossa hiptese. Se minha hiptese estiver correta, poderemos, na
segunda parte deste
artigo, a partir da demonstrao precisamente daquilo que o
economicismo esconde
ou no entrega, reconstruir um diagnstico mais completo de nossos
problemas e
desafios do que os que esto disponveis hoje em dia no debate
pblico brasileiro.
LIMITES E POSSIBILIDADES DO ECONOMICISMO
Ao ler o livro do Prof. Pochmann fui surpreendido com o fato de
que este autor, to
srio e competente, ter feito uma aluso4 ao meu livro Os
batalhadores brasileiros:
classe mdia ou classe trabalhadora? UFMG, 2010, como sendo um
daqueles que
teriam associado a assim chamada classe C ao conceito de classe
mdia
ascendente5. Em considerao a capacidade de interpretao do Prof.
Pochmann eu
presumo que ele no leu o livro e sequer atentou ao ttulo, o qual
j antecipa o debate
precisamente contra essas mesmas interpretaes as quais ele me
vincula, talvez, na
nsia de por todos os autores que escreveram sobre o tema em uma
mesma gaveta.
No existe uma s vrgula em todo o texto coletivo do livro que
possa ter levado
Pochmann a essa concluso. O contrrio o caso. Durante todo o
livro construmos o
conceito de uma classe trabalhadora precarizada em formao,
utilizando, para isso,
tanto trabalho terico de modo a compreender essa formao como
ligada a
desenvolvimentos recentes do capitalismo internacional, quanto
trabalho emprico
qualitativo de trabalhadores do setor de servios, comrcio,
agricultura e indstria
artesanal de todas as grandes regies brasileiras. A verdade que
antecipamos em
2 Pochmann, Marcio, Nova classe mdia? O trabalho na base da
pirmide social brasileira, Boitempo,
2012. 3 Nri, Marcelo, A nova classe mdia: o lado brilhante da
base da pirmide, Saraiva, 2012.
4 Souza, Jess et alli, Os batalhadores brasileiros: nova classe
mdia ou nova classe trabalhadora?, Ed.
UFMG, 2010. 5 Pochmann, ibid, Pag. 30
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2010 a concluso principal do trabalho do prprio Prof. Pochmann
dois anos mais
tarde: ou seja, em suas prprias palavras, que a suposta classe C
na verdade
representa uma reconfigurao de parte significativa da classe
trabalhadora6.
Quaisquer que tenham sido os motivos que levaram Pochmann tanto
a ter induzido o
seu leitor em erro quanto a no reconhecer que sua tese principal
j havia sido
formulada antes, no queremos, aqui, incorrer no mesmo engano. O
trabalho de
Pochmann, em seu livro recente, representa para mim uma das
anlises estatsticas
mais preciosas acerca de todo o desenvolvimento das relaes de
trabalho no Brasil
contemporneo. O fato de ter examinado todo o desenvolvimento
recente da
estrutura das relaes de trabalho no capitalismo brasileiro desde
os anos 70, permitiu
que Pochmann pudesse perceber tendncias de desenvolvimento
fundamentais para
qualquer anlise das relaes de classe neste perodo. Assim, o
leitor tem uma idia
clara e bem construda acerca de praticamente todas as variveis
importantes das
transformaes estruturais do capitalismo brasileiro. Exemplos
disso so os estudos
sobre a evoluo da composio setorial das ocupaes, a evoluo do
saldo lquido
mdio anual das ocupaes geradas, alm de uma preciosa anlise em
detalhe acerca
da renovao ocupacional da base da pirmide social no Brasil nos
ltimos dez anos
que o aspecto mais aprofundado em todo o livro.
O ponto talvez mais relevante de toda a pesquisa para os nossos
fins aqui a tese de
que todo o movimento positivo da pirmide social brasileira, na
primeira dcada do
sculo XXI, na verdade envolveu postos de trabalho que se
encontram na base da
pirmide social. Nesta, os movimentos mais importantes indicam a
criao de quase
dois milhes de ocupaes abertas anualmente, em mdia, para os
trabalhadores com
remunerao mensal de at 1,5 salrios mnimos, e de 616 mil postos
de trabalho
anuais em mdia, para a parcela de ocupados pertencentes faixa de
rendimento
entre 1,5 e 3 salrios mnimos7. Na maior parte de seu estudo,
Pochmann se dedica a
mostrar em maior detalhe o universo ocupacional precisamente
desses trabalhadores.
O trabalho de Neri, assim como o de Pochmann, tambm o trabalho
de um virtuoso
no uso de dados estatsticos. A mirade de dados dos rgos
censitrios e de pesquisa
do governo so tornados compreensveis e agrupados de modo a
estabelecer relaes
estatsticas importantes. Estamos tratando aqui com pesquisadores
qualificados,
inteligentes e de grande inventividade. Afora uma diferena de
tom no existe
nenhuma diferena substancial entre a anlise estatstica de
Pochmann e a anlise de
Neri em seu mais recente trabalho que estaremos usando para fins
de contraposio.
Ambos, inclusive, louvam os mesmos aspectos principais deste
fenmeno recente que
so, para os dois, a expanso do emprego formal com carteira
assinada8, o potencial
6 Ibid, Pag. 123.
7 Ibid, pag. 19.
8 Pochmann, ibid, pag. 38 e Neri, ibid, pag. 183.
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de mobilidade ascendente acompanhando de incluso no mercado de
bens e
consumo9 e a diminuio da abissal desigualdade brasileira10. At
os fatores causais
dessa mudana so percebidos por ambos do mesmo modo, na medida em
que os
ganhos de salrio real e aumento real do salrio mnimo, por um
lado e o sucesso do
bolsa famlia e do micro-crdito, por outro lado, so compreendidos
como elementos
decisivos.
Como a fonte dos dados para os dois muito semelhante, muito da
aparente diferena
pode ser esclarecida pelo fato de Pochmann analisar o ganho
individual, enquanto a
famlia e seus rendimentos agregados a unidade bsica da anlise
estatstica de
Neri11. Afora isso, as anlises de ambos possuem os mesmos pontos
fortes e fracos:
excelente tratamento estatstico dos dados, por um lado, e
carncia de qualquer fora
explicativa mais profunda do fenmeno analisado por outro. A nica
diferena
efetivamente observvel que Pochmann enfatiza o fato de que
estamos falando da
base, da classe trabalhadora, do setor de baixo da populao
brasileira ou seja,
repete, sem citar, o que havamos dito antes dele - enquanto Neri
enfatiza o carter
mediano e ascendente deste mesmo grupo. Ainda que o modo como
denominamos
os fenmenos sociais seja importante j que a forma como eles so
interpretados
socialmente depende disso, no basta, no entanto, denominar os
fenmenos sociais
para compreend-los.
Efetivamente a construo do conceito de uma nova classe mdia por
Marcelo Neri
carece de qualquer reflexo aprofundada. Neri simplesmente toma o
rendimento
mdio como indicador daquilo que ele chama de classe C ou nova
classe mdia. Em
seguida imaginando com isso contornar todas as dificuldades
desta noo diz que
no est falando de classe social, supostamente para tranqilizar
os socilogos,
mas sim de classes econmicas12. O conceito de classe econmica
absurdo de fio
a pavio j que; ou pressupe que as determinaes econmicas so as
nicas variveis
realmente importantes para o conceito de classe o que eu suponho
seja
efetivamente o caso ainda que o autor no tenha a coragem de
admitir13 - ou, caso
contrrio, deveria simplesmente se referir a faixas de renda e no
a classes. Esta
ltima opo no a de Neri at porque faixas de renda no possuem o
mesmo
apelo no imaginrio das pessoas que classe. Ao contrrio, Neri usa
as tais classes
econmicas como se fossem classes sociais em sentido estrito, j
que o ponto
decisivo que elas tomam o seu lugar na analise e so o fundamento
central para
todas as hipteses construdas por Neri para explicar o Brasil
contemporneo e seus
dilemas e desafios.
9 Pochmann, ibid, pag. 46 e Neri, ibid, pag. 85.
10 Pochmann, ibid, pag. 31 e Nri, ibid, pag. 59.
11Pochmann, ibid, pag. 19 em diante, e Nri, ibid, pag.81
12 Nri, ibid, pag. 17.
13 Como as recorrentes menes de Nri ao bolso como parte mais
sensvel do corpo humano deixam
entrever. Nri, ibid, pag. 17.
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O problema que, apesar de sua inteno explcita, a anlise de
Pochmann no
fundamentalmente diferente da de Neri. Ao contrrio, para alm das
diferenas
superficiais j apontadas, Pochmann compartilha todos os
fundamentos essenciais da
anlise de Neri. Pochmann acrescenta, em relao a Neri, um estudo
mais detalhado
das ocupaes que ganharam dinamismo no ltimo momento econmico e
confere
menos nfase aos dados de consumo. Assim, poderamos dizer,
utilizando as
subdivises consagradas por Karl Marx acerca da esfera econmica,
que Neri pratica
um economicismo da distribuio, enquanto Pochmann pratica um
economicismo da produo. Mas o principal, o economicismo, ou
seja, a crena
explcita ou implcita, de que a varivel econmica por si s
esclarece toda a realidade
social est presente nos dois autores e contamina todas as suas
hipteses e
concluses.
Assim, ainda que eu concorde com as crticas de Pochmann,
dirigidas provavelmente
ao prprio Neri na introduo do seu livro, no acho que Pochmann
acrescente
qualquer ponto explicativo decisivo em relao a Neri que possa
p-lo no outro plo
do debate brasileiro acerca dessas questes fundamentais. Citemos
o prprio
Pochmann literalmente:
Em sntese: entende-se que no se trata da emergncia de uma nova
classe
muito menos de uma classe mdia. O que h, de fato, uma orientao
alienante sem
fim, orquestrada para o seqestro do debate sobre a natureza e a
dinmica das
mudanas econmicas e sociais, incapaz de permitir a politizao
classista do
fenmeno de transformao da estrutura social..14
.
Assim como para Pochmann, meu interesse maior precisamente
estimular com
meios do esclarecimento cientfico a politizao classista das
transformaes
sociais no Brasil recente. O que no acredito que o trabalho de
Pochmann
malgrado as preciosas informaes que o tratamento srio e
qualificado dos dados
estatstico proporciona - tenha efetivamente contribudo de
qualquer forma
substancial para este desiderato. Afinal no simplesmente
apresentando os dados
ainda que muito bem agrupados e esclarecidos da estrutura
ocupacional que se
conhece e se compreende qualquer coisa relevante acerca da
dinmica das lutas de
classe do Brasil contemporneo.
Esse ponto condensa precisamente todo o balano crtico que
gostaria de fazer da
obra desses dois autores: ainda que o tratamento estatstico dos
dados, seja no nvel
da produo, como em Pochmann, seja prioritariamente no nvel do
consumo, como
em Neri, seja extremamente bem feito nos dois casos,
proporcionando informaes
valiosas para qualquer interpretao que se queira fazer da
realidade, nos dois
casos, temos apenas isso: informaes valiosas para uma posterior
interpretao.
14
Pochmann, ibid, pag. 8
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O que os dois autores produzem ajudar a mapear um campo a ser
explorado
pelo pensamento reflexivo e interpretativo com ajuda de
conceitos que permitem,
estes sim, problematizar a realidade em toda a sua realidade. Ai
est, em minha
opinio, as possibilidades e os limites do economicismo e de todo
conhecimento
estatstico.
Como informao preliminar no existe conhecimento mais valioso,
tanto que
utilizamos, ns mesmos, dados estatsticos de estudos anteriores
tanto do prprio Neri
quanto do prprio Pochmann (e do IPEA) para escolher alguns dos
tipos sociais de
nossa ltima grande pesquisa qualitativa. Os dados estatsticos
permitem o acesso
grandeza e significao quantitativa dos elementos que informam a
transformao
dos fenmenos sociais. Da sua importncia fundamental. Interpretar
a realidade sem
essa ajuda pode ser desastroso. Confundir a apresentao desses
dados, no entanto,
com uma efetiva compreenso da realidade, muito especialmente dos
meandros
que envolvem a legitimao do poder simblico indispensvel para
qualquer
dominao social bem sucedida objetivo que parece estar no centro
das atenes
tambm de Pochmann , para dizer o mnimo, muito ingnuo.
Mas aqui eu no quero apenas dizer a crtica. Eu quero enfrentar o
desafio de
comprov-la com o meio tpico do debate cientfico por excelncia
que a
competio entre argumentos. Isso parece ser bvio, mas,
infelizmente, no . Entre
ns confunde-se o tempo todo o poder interpretativo dos conceitos
com as posies
polticas pessoais ou, ainda pior, as posies partidrias - dos
autores que as
enunciam com resultados previsivelmente lamentveis. Por exemplo,
Srgio Buarque,
que no seu livro mais importante, Razes do Brasil15, criou a
falsa oposio entre
Estado corrupto e mercado virtuoso e o falso tema do
patrimonialismo estatal como
maior problema nacional, criando as bases ideais modernas de um
liberalismo to
cego e perverso quanto o brasileiro, tido, por ter sido, no
final da vida, um dos
fundadores do PT, como um escritor progressista. O programa do
partido
liberal/conservador brasileiro mais importante, o PSDB, no
entanto, , no seu ncleo
principal de defesa do Estado mnimo e combate s supostas
oligarquias patrimoniais,
a mais perfeita realizao institucional e partidria das idias de
Buarque. Pergunto ao
leitor: quem o Buarque mais relevante, afinal, o cidado que
assinou a ficha de
inscrio de um partido de trabalhadores, ou o criador de uma idia
que se expandiu
por todo o pas e se institucionalizou em partidos, rgos de
imprensa, senso comum
discutido nas ruas, etc.?
O mesmo poderia ser dito de Raimundo Faoro, outra vaca sagrada
do nosso panteo
de grandes pensadores intocveis, cuja crtica acirra dios de
muitos como se ele fosse
um ente acima dos mortais e acima da crtica. Faoro, na verdade,
apenas continuou o
trabalho de Buarque e influenciou decisivamente a obra de alguns
de nossos
15
Buarque, Srgio, Razes do Brasil, companhia das letras, 2003.
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pensadores conservadores mais eminentes aqueles que legitimam
com meios
pseudo-cientficos a reproduo de todos os privilgios injustos -
como Simon
Schwartsmann, Bolvar Lamounier ou Roberto DaMatta. Eu ainda me
lembro,
adolescente, da admirao que sentia por Faoro como presidente da
OAB na luta pela
redemocratizao do Brasil. Um liberal/conservador lutando contra
uma ditadura pode
demonstrar notvel coragem pessoal, mas isso no torna as suas
idias progressistas
ou verdadeiramente crticas.
Mas a confuso entre pessoa e obra fruto da pouca
institucionalizao da esfera
cientfica e, portanto, da fragilidade do mundo das idias entre
ns. Ainda hoje a
imensa maioria dos nossos intelectuais ainda pensa que quem tem
uma boa idia deve
realiz-la, e torn-la prtica no Estado. Como se houvesse um
abismo entre idia
e prtica, quando na verdade, as idias so performativas, ou seja,
elas so em si
ao, e pensar o mundo de modo alternativo, ou contribuir no mundo
das idias
para uma percepo crtica deste mundo j , em alguma medida
varivel, mud-lo.
por isso que o debate de idias cientficas primeira trincheira da
luta poltica e da
luta de classes16. E ai o que precisamos de idias que tenham o
poder de
reconstruir o mundo no pensamento de outro modo de como ele se
apresenta
nossa conscincia. A relao entre cincia e poltica no externa,
como se fosse
possvel posies progressistas com conceitos ultrapassados e
limitados. Ao
contrrio, a relao interna prpria cincia e depende da fora
argumentativa e do
alcance interpretativo de seus conceitos.
Para o leitor atento existe um mtodo infalvel de perceber, mesmo
no sendo
especialista, quando ele est diante de uma perspectiva cientfica
crtica daquelas
que re-constroem o mundo confuso em pensamento lhe
conferindo
compreensibilidade ou diante de uma abordagem menos ambiciosa e
passvel de ser
colonizada pelas noes de senso comum. que toda abordagem
verdadeiramente
crtica tem que prestar conta de seus pressupostos. Um exemplo do
nosso tema em
discusso pode deixar esse ponto central mais claro. Pochmann
critica na introduo
de seu livro a abordagem de Neri ainda que no o nomeie
diretamente por que ela
seria incapaz de permitir a politizao classista do fenmeno de
transformao da
estrutura social.... do Brasil17. Concordo em gnero, nmero e
grau com a crtica de
Pochmann a Neri. Eu s no concordo que Pochmann faa aquilo que
critica nem que
ele explique adequadamente o que ele entende por estrutura
social.
O que , afinal, estrutura social e, mais importante ainda, o que
a estrutura social
tem a ver com as classes sociais? Por que um estudo to bem feito
como o de
Pochmann acerca da estrutura ocupacional do Brasil nos ltimos 40
anos apresenta
16
A cincia herda boa parte do prestgio das grandes religies e no
existe assunto na esfera pblica que dispense a presena de um
especialista cientfico. Todas as idias que movimentam partidos,
imprensa, instituies, prticas sociais, foi ou criao de intelectuais
em sentido lato. 17
Pochmann, ibid, pag. 8.
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limites que o deixam prximo do estudo mais superficial de Neri
malgrado a inteno
de seu autor? E, ainda, como se pode ir alm, na verdade muito
alm, do que ambos
os autores ofereceram? Essas so as trs questes as quais quero me
dedicar a seguir.
PARA IR ALM DO ECONOMICISMO
Quais so os pressupostos da anlise de Pochmann, que ele no
explicita, e quais suas
limitaes para perceber tanto o tema da estrutura social quanto
da luta de classes?
Pochmann utiliza em seu estudo noes marxistas centrais e partir
do uso
conseqente dessas noes que ele pretende vislumbrar a estrutura
social do Brasil
moderno e as relaes de classes que ela enseja. A noo central de
capital, definida
por Marx, seguindo David Ricardo, como expresso de trabalho
acumulado 18, servia
a Marx precisamente para compreender a estrutura social e a
dinmica de classes
por ela criada, para alm da vaga e fragmentada idia que temos
dela no senso
comum. Capital j era, para Marx, um conceito relacional, ou
seja, ele s desenvolve
suas virtualidades de apropriao de privilgios em uma situao
social concreta.
Assim, a propriedade dos meios de produo, capital fixo, produto
ele prprio de
trabalho acumulado anterior morto e materializado nele, define a
classe dos
capitalistas. A classe dos despossudos dos meios de produo de
seu prprio trabalho
tem que vender a nica mercadoria que possuem, o trabalho vivo,
para ser
empregado e explorado pelo capitalista que recebe um algo a mais
do que investiu,
seja pelos meios de produo que adquiriu, seja pelo trabalho que
comprou sob a
forma salarial.
Tambm a qualificao do trabalho para Marx um produto de
trabalho
acumulado anterior. Assim, o valor maior pago ao trabalho mais
qualificado, na
verdade pagaria o tempo de trabalho investido na sua formao.
Essa diferena na
qualidade do trabalho seria a principal responsvel pela
estratificao social interna
da classe trabalhadora. E precisamente o estudo das variaes
estatsticas da
estratificao interna da classe trabalhadora brasileira dos
ltimos 40 anos que perfaz
o cerne do trabalho de Mrcio Pochmann.
Ainda que Karl Marx tenha sido um autor genial e o pai de toda a
cincia social crtica,
as cincias sociais no pararam em 1883 quando Marx morreu. Ao
contrrio, elas se
desenvolveram e se sofisticaram pelo menos a meu ver - a um
ponto em que as
grandes questes marxistas clssicas puderam ser respondidas de
modo muito mais
convincente. O conceito central de capital, por exemplo, foi
desenvolvida por outros
autores, como o socilogo francs Pierre Bourdieu, com um
potencial criativo muito
18
Marx, Karl, Das Kapital, Tomo I, in: Marz-Engels Werke, Volume
23, Berlin oriental 1953.
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mais penetrante, esclarecedor e sofisticado do que seu uso por
Marx. Em primeiro
lugar, capital deixa de ser apenas uma categoria econmica, mas
passa a incluir
tudo aquilo que passa a ser decisivo para assegurar o acesso
privilegiado a todos os
bens e recursos escassos em disputa na competio social. Ainda
que Bourdieu
reconhea que o capital econmico decisivo para assegurar
vantagens permanentes
nesta disputa, ele no est sozinho.
Para alm do capital econmico, uma das maiores descobertas de
Bourdieu para a
cincia social crtica foi a descoberta da importncia, to central
como a do capital
econmico, do capital cultural. Capital cultural para Bourdieu
tudo que aquilo que
logramos aprender e no apenas os ttulos escolares. O
conhecimento, a cincia,
j era fundamental para Marx j que a reproduo do capitalismo
depende de
conhecimento, seja para qualificar sua fora de trabalho, seja
para auferir ganhos
em produtividade em inovaes tcnicas aplicadas aos meios de
produo. Mas Marx
era um homem do sculo XIX e pensava o processo de aprendizado
como o de um
sujeito j pronto que adiciona certo tipo de conhecimento sua
bagagem, como
algum enche um cesto vazio quando vai a feira do Sbado. Nesta
concepo, o
conhecimento se aloja na cabea do sujeito e seu corpo um mero
meio para
faz-lo caminhar e segurar a cabea que envolve seu esprito.
Essa a concepo cartesiana do sujeito, que era alta filosofia no
sculo XVII e que
hoje senso comum e base das cincias da ordem. Tanto que Pochmann
e Neri,
homens do sculo XXI, usam essas pr-noes como fundamento no
explicitado de
seus prprios trabalhos. Eles tambm partem de homens e mulheres j
formados que
sero agrupados seja em diferentes agrupamentos ocupacionais, no
caso de
Pochmann, seja em distintos grupos de renda, no caso de Nri.
Aonde reside, nessa
discusso dos pressupostos da anlise, a cegueira de toda forma de
economicismo?
Para mim reside no fato de no perceber que a faceta mais
importante do capital
cultural o fato de ele ser uma in-corporao, literalmente,
tornar-se corpo, de
toda uma forma de se comportar e de agir no mundo, a qual
compreendida por
todos de modo inarticulado e no refletido. O avano cientfico
aqui a superao
da oposio entre corpo e esprito, onde o corpo pensado como
matria sem vida
e sem esprito, em favor de uma concepo onde o corpo compreendido
como um
emissor de sinais e como prenhe de significados sociais19.
precisamente esse
avano cientfico que permite perceber o trabalho da gnese e da
reproduo das
classes sociais e, portanto, da produo diferencial dos seres
humanos que ela
constitui para alm da cegueira da percepo unilateral e
amesquinhada da
determinao econmica seja na produo seja no consumo.
19
Essa virada epistemolgica nas abordagens mais sofisticadas das
cincias sociais da segunda metade do sculo XX , muitas vezes
chamada de revoluo Wittgensteiniana. Ver, por exemplo, Taylor,
Charles, To Follow a Rule, in: Calhoun, Craig, et alli. (orgs)
Bourdieu: critical debates, Chicago, 1993.
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11
Esse avano cientfico que implica a percepo de outro tipo de
capital
fundamental que no apenas o econmico esclarece, inclusive, a
prpria ao do
capital econmico e a sua relao com outras formas de capital.
Afinal, o capital
econmico jamais est sozinho como a cegueira economicista
imagina. O ponto
decisivo aqui que os indivduos so constitudos, em seus limites e
possibilidades na
competio social, de modo muito distinto dependendo de seu ponto
de partida de
classe. Esse ponto de partida envolve, basicamente, trs
capitais: o econmico, o
cultural e o social. Os dois primeiros so, nas sociedades
modernas, os mais
importantes.
Assim, uma famlia de classe mdia, que tem menos capital econmico
que a classe
alta, s pode assegurar a reproduo de seus privilgios - como
empregos de maior
prestgio e salrio seja no mercado seja no Estado - se a famlia
possui algum capital
econmico para comprar o tempo livre dos filhos, que no precisam
trabalhar
cedo como os filhos das classes populares, para o estudo de
lnguas ou de capital
cultural tcnico ou literrio mais sofisticado. Isso mostra a
importncia do capital
econmico mesmo para as classes que no se reproduzem
majoritariamente a partir
dele como as classes altas. Ao mesmo tempo, a competio social no
comea na
escola. Para que possamos ter tanto o desejo quanto a capacidade
de absoro de
conhecimento raro e sofisticado, necessrio ter tido, em casa, na
socializao com os
pais ou quem ocupe esse lugar, o estmulo afetivo afinal nos
tornamos seres
humanos imitando a quem amamos para, por exemplo, a concentrao
nos
estudos, ou a percepo da vida como formao contnua onde o que se
quer ser no
futuro mais importante que o que se no presente.
Os filhos das classes mdias, com grande probabilidade, possuem
esses estmulos
emocionais e afetivos, ou seja, possuem esse capital cultural, o
que ir garantir a sua
reproduo de classe como classe privilegiada em dois sentidos. Em
primeiro lugar
vo chegar como vencedores na escola e depois no mercado de
trabalho e ocupar
espaos que as classes populares classe trabalhadora e ral - no
podero
alcanar; em segundo lugar, reproduzem tambm a invisibilidade do
processo social
de produo de privilgios que se realizam na privacidade dos lares
e que podem
aparecer, posto que sua gnese encoberta, como mrito individual
e, portanto,
como merecimento dos filhos das classes mdias. Que o privilgio
aparea como
merecido a forma especificamente capitalista e moderna de
legitimao da
desigualdade social. A cegueira do economicismo , portanto,
dupla: ela cega em
relao aos aspectos decisivos que reproduzem todos os privilgios;
e cega, tambm,
em relao a falsa justificao social de todos os privilgios. Em
outras palavras o
economicismo congenitamente conservador posto que joga gua no
moinho da
reproduo no tempo de todos os privilgios injustos, posto que ele
no possui meios
cientficos de criticar a ideologia do mrito individual.
-
12
Mas os limites do economicismo no param ai. O economicismo
incapaz at de
perceber adequadamente o prprio capital econmico. A reproduo das
classes altas
que tem no capital econmico seu elemento principal na luta pelos
recursos sociais
escassos tambm depende em boa medida de outros capitais. Por
exemplo, um rico
sem capital cultural de alguma espcie - nem que seja aquela
espcie de cultura
que significa saber os novos lugares in no soho em Nova Iorque,
o vinho da hora, ou
qual ilha no oceano ndico agora a legal para se levar a amante -
no levado a srio
por seus pares. Ao rico bronco esto vedadas no apenas as
importantes relaes
entre o capital econmico e o capital cultural, o qual
possibilita a naturalidade a
leveza, o charme pessoal, to importante no mundo dos negcios
como em
qualquer outro lugar. Mas a ele esto vedadas tambm as relaes com
uma terceira
forma importante de capital - ainda que secundria em relao aos
estudados
anteriormente - que o capital social de relaes pessoais20. este
capital que
permite aquele amlgama especfico entre interesses e afetos, to
importantes para
a gnese e reproduo das amizades, casamentos e alianas de todo
tipo no interior
de uma classe onde a reproduo dos direitos de propriedade to
decisiva.
O economicismo , portanto, cego em relao tanto a estrutura
social, que implica a
considerao de capitais que no se restringem ao econmico, como
cego em
relao ao ponto verdadeiramente decisivo em relao s classes
sociais: a forma
velada e encoberta de como as classes sociais so produzidas e
reproduzidas. Se o
economicismo incapaz de perceber a gnese e a reproduo das
classes ele incapaz
pelas deficincias no das posies progressistas pessoais de seus
defensores, mas
pela superficialidade de seu aparato conceitual - de compreender
qualquer fato
realmente importante em relao dinmica das classes sociais. Ele
pode at falar
de classes sociais, mas sua compreenso deste fenmeno to decisivo
e central difere
muito pouco da forma como o senso comum (no) percebe as classes.
isso que
permite que Pochmann trate apenas do mundo das ocupaes e pense
estar
oferecendo uma anlise verdadeiramente compreensiva das relaes de
classe no
Brasil moderno. isso que permite tambm Nri falar de classes
econmicas -
envolvendo apenas faixas de renda e hbitos de consumo - e achar
que est
interpretando as novas relaes de classe do Brasil
contemporneo.
Como Pochmann (nem Nri) sequer pe como problema explicar a
produo de seres
humanos diferencialmente aparelhados, pela herana familiar que
sempre tambm
uma herana de classe ou seja, a construo do capital cultural
especfico a cada
classe social - para a competio social ento o pressuposto de que
estamos tratando
com um sujeito genrico, igual em todas as classes, inescapvel.
Por conta disso, a
investigao sobre a estrutura ocupacional no diz nada de
verdadeiramente relevante
20
Bourdieu, Pierre, A Distino, Zouk/Edusp, 2010 e Boike, Rehbein e
Frhlich, Gerhard, Bourdieu Handbuch: Leben, Werke, Wirkung, J.B.
Metzler, 2009, pags. 134 e seguintes,
-
13
acerca da dinmica de classes do Brasil moderno porque nada se
sabe acerca de sua
gnese nem de sua reproduo no tempo.
Pochmann no responde - na verdade nem sequer atenta - para o
fato de que a
questo principal para o problema que ele prprio quer resolver a
questo acerca do
por que? precisamente aquela classe est condenada a exercer
aquele tipo de
ocupao e quais so os fatores que a eternizam nela. No so as
ocupaes que criam
as classes sociais, como parece pensar Pochmann, mas o
pertencimento a certa
classe que pr-decide a escolha por certo tipo de ocupao. Mas s
um estudo
terico e emprico - da incorporao dos diversos tipos de capital
cultural pode
esclarecer o tipo especfico de socializao que permite, ou
melhor, pr-decide, a
escolha de precisamente quele tipo de ocupao.
Sem um estudo da socializao anterior, que explica a incorporao
de certo tipo de
capital cultural, tem-se que, necessariamente, pressupor que
todos so iguais, um
homo economicus que reage sempre do mesmo modo, um sujeito
genrico, o qual
, no fundo, o sujeito tpico do liberalismo clssico sem passado,
sem socializao
prvia e, portanto, sem classe - que o economicista engajado
compra sem saber. A
simples investigao quantitativa do horizonte ocupacional no nos
esclarece em nada
acerca do que realmente relevante, ainda que seja uma informao
importante
neste caminho.
O engano de Nri complementar. Saber-se que a populao brasileira
se divide em
dadas faixas de renda uma informao relevante para uma posterior
anlise das
estruturas de classe no Brasil. Mas apenas isso. Por que tambm
Nri sequer atenta
a cegueira congnita de toda percepo redutoramente economicista
da realidade
social - que a questo central para o que ele quer saber e no
sabe por que
precisamente aquele porcentual de indivduos logrou ascender a
outros patamares de
consumo, enquanto outros permaneceram onde estavam. O tamanho do
bolso
uma informao preliminar relevante, mas sequer toca no principal.
A cincia da
sociedade tem como sua questo central saber por que as pessoas
se comportam
diferencialmente21. Se sabemos disso, podemos analisar e
interpretar a sociedade,
dizer onde esto seus problemas e para onde ela tende ir. Mas no
sabemos um
milmetro a mais acerca desta questo se conhecemos a magnitude
quantitativa das
faixas de renda ou da estrutura ocupacional, ainda que essas
informaes sejam
relevantes como informao preliminar.
UMA INTERPRETAO NO ECONOMICISTA DAS CLASSES POPULARES NO
BRASIL
CONTEMPORNEO.
21
Essa a definio clssica de Max Weber e seguida por Bourdieu. Ver
Weber, Max, Wirtschaft und Gesellschaft, J.C.B. Mohr, 1985, pags.
1/30.
-
14
Como ir-se alm da percepo limitada e superficial do capital
econmico e com isso
produzir uma percepo verdadeiramente crtica da realidade social
brasileira? Esse foi
precisamente o desafio que nos propusemos nas duas pesquisas que
redundaram em
dois trabalhos publicados subseqentemente: um trabalho sobre os
muito
precarizados socialmente, que chamamos provocativamente de
ral22; e o trabalho
sobre os batalhadores23, ou seja, os tambm precarizados
socialmente, mas com
maiores recursos e possibilidade de ascenso social.
Os dois estudos devem ser analisados de modo combinado: s se
pode compreender
porque alguns brasileiros ascenderam socialmente se
compreendemos tambm as
razes que impossibilitaram outros brasileiros de ascender ou de
terem tido ascenso
menor. Os dois estudos representam, portanto, um esforo de
compreender e
responder quela questo central a nica verdadeiramente
fundamental - deixada
de lado pelo economicismo, seja da produo seja do consumo:
afinal, o que que faz
com que alguns ascendam e outros no? Essa a questo decisiva
posto que apenas
ela pode compreender e explicar as razes profundas tanto da
ascenso quanto
da marginalidade social algo que os dados e nmeros que so
informaes
importantes, mas, jamais, interpretaes - por si s jamais podero
fazer.
Isso no significa, obviamente, que o conhecimento estatstico no
seja fundamental.
Pelo contrrio, ns construmos nossos tipos ideais das classes
populares, nas duas
pesquisas, com base em conhecimento estatstico, por um lado, e
pelo seu potencial
significativo, por outro lado. Assim, por exemplo, estudamos as
empregadas
domsticas, no livro da ral, posto que 18% do trabalho feminino
poca era
trabalho domstico. Como quase todas elas eram da ral, que no
nosso estudo
estatstico especialmente encomendado para este livro abrangia
1/3 da populao24,
isso significava que mais da metade das mulheres da ral exerciam
alguma espcie de
trabalho domstico. Neste caso, coincidia significao estatstica e
significao
heurstica. Mas ns estudamos, tambm, os catadores de papel e
lixo, por exemplo,
no porque eles so estatisticamente relevantes, mas, por que seu
estudo mostra, de
modo especialmente evidente, ou seja, uma significao heurstica,
destinada a
tornar clara a humilhao social, a fantasia compensatria e o
abandono dessa classe
presente em vrias das ocupaes mais humilhantes da ral.
Assim, o conhecimento estatstico um meio e no um fim em si,
posto que est
a servio da necessidade interpretativa, ou seja, daquilo que vai
permitir
reconstruir uma realidade que no visvel a olho nu de modo novo e
indito. O que
22
Souza, Jess, et alli, A ral brasileira: quem e como vive, UFMG,
2009. 23
Souza, Jess, et alli, Os batalhadores Brasileiros: Nova classe
mdia ou nova classe trabalhadora, UFMG, 2010. 24
Souza, Jess et alli, 2009, pags. 463/481.
-
15
h de novo e indito no livro da ral e como ele ajuda a
compreender melhor a
ascenso social de setores significativos das classes populares,
enquanto outros
ficaram para trs? A meu ver o que h de novo e indito no estudo
dos
desclassificados brasileiros , antes de tudo, a percepo de que
eles formam uma
classe social especfica25, com gnese, reproduo e futuro provvel
semelhante.
Tanto o senso comum como a cincia dominante entre ns deixam de
percebem essa
classe enquanto classe ao fragment-la ao ponto de torn-la
irreconhecvel. Mas
possvel defini-la seja na periferia das grandes cidades do
Sudeste seja, por exemplo,
no serto do Nordeste, como a classe social reduzida a energia
muscular, posto que
no dispe ou no dispe em medida significativa das pr-condies para
a
incorporao do capital cultural indispensvel no capitalismo
moderno para o
trabalho no mercado competitivo.
Essa classe , portanto, moderna posto que formada pela
incapacidade estrutural na
sua socializao familiar sempre de classe - de dispor dos
estmulos afetivos e das
pr-condies psquicas, cognitivas e emocionais que possibilitam a
incorporao do
conhecimento til necessrio reproduo do capitalismo competitivo.
Como o
economicismo, arrogantemente mope, parte do indivduo sem
passado, j adulto e
igual a todos e, portanto, sem classe, esta questo central
sequer percebida como
relevante ainda que ela v decidir, inclusive, que tipo de
sujeito econmico ser criado
pelas distintas heranas de classe. O capital cultural constitudo
por ambas as
coisas: tanto as pr-condies afetivas e psquicas para o
aprendizado; quanto pelo
aprendizado em si do conhecimento julgado til. No caso da ral a
carncia e o
abandono so tamanhos que a questo principal a da ausncia em
maior ou menor
medida dos prprios pressupostos indispensveis ao aprendizado do
papel social de
produtor til no contexto da economia competitiva.
isso tambm que faz com que essa classe no seja passvel de ser
confundida com o
lumpenproletariado marxista, o famoso exrcito de reserva do
capital, posto que
no capitalismo do tempo de Marx a quantidade de incorporao de
conhecimento
necessria ao trabalhador era mnima, tanto que at crianas podiam
realizar o
trabalho das tecelagens de Manchester. Com o desenvolvimento das
foras produtivas
do capitalismo, no entanto, a incorporao crescente de
conhecimento aos meios de
produo exige tambm que quem opera as mquinas por exemplo, os
robs da
indstria automobilstica moderna - tambm seja perpassado por uma
certa
economia emocional e por conhecimento tcnico. O trabalhador
moderno do setor
competitivo tem que ter incorporado, ou seja, tornado corpo,
reflexo automtico e
25
Que no se confunda com os diversos trabalhos sobre a pobreza e
os pobres. O trabalho anterior mais importante sobre uma classe de
desclassificados entre ns o clssico de Florestan Fernandes, A
integrao do negro na sociedade de classes, tica, 1978. Neste
brilhante clssico da sociologia brasileira, Florestan termina por
confundir raa e classe social o que limita de modo decisivo o
alcance de seu trabalho. Para conhecer minha crtica em detalhe, ver
Souza, Jess, A construo social da subcidadania, 2 edio, com prefcio
de Axel Honneth, UFMG, pags. 153 e seguintes.
-
16
naturalizado, tanto a disciplina e o autocontrole necessrio ao
ritmo das mquinas
como o conhecimento para sua operao bem sucedida.
esse tipo de incorporao de capital cultural que caracteriza as
classes
trabalhadoras modernas e que reencontramos nos batalhadores de
nossa pesquisa.
A ral, ao contrrio - ainda que as fronteiras entre as diversas
classes populares na
realidade concreta sejam na imensa maioria dos casos muito fluda
pode ser
definida, para fins analticos, como a classe abaixo da classe
trabalhadora, posto que
caracterizada, para fins analticos, pela ausncia dos
pressupostos acima definidos. Isso
no significada, obviamente, que esta classe tambm no seja
explorada. Ela o de
modo inclusive muito mais cruel j que jogada nas franjas do
mercado competitivo,
condenada a exercer todos os trabalhos mais duros, humilhantes,
sujos, pesados e
perigosos. Foram esses trabalhadores tornados precrios que
estudamos durante os
quatro anos da pesquisa.
A compreenso da profundidade da explorao sistemtica desses
trabalhadores pelas
classes do privilgio no Brasil as classes mdias que incorporam
capital cultural raro e
sofisticado, e as classes altas que reproduzem, antes de tudo,
capital econmico sob a
forma de direito de propriedade foi, talvez, o nosso principal
resultado de pesquisa.
Isso implica simplesmente poder perceber a luta de classes no
cotidiano de todos
ns, onde ela opera de modo velado, naturalizado em prticas
sociais sem discurso
e sem articulao consciente, e, por isso mesmo, muito mais
eficazes socialmente.
As classes do privilgio exploram esse exrcito de pessoas
disponveis a fazer de quase
tudo. Desde o moto boy que entrega pizza; ao lavador de carros;
ao trabalhador que
carrega a mudana nas costas; a prostituta pobre que vende seu
corpo para
sobreviver; ou o exrcito de serviais domsticos que fazem a
comida e cuidam dos
filhos da classe mdia e alta que assim pode se dedicar a estudos
ou trabalhos mais
rentveis. este tempo roubado de outra classe que permite
reproduzir e eternizar
uma relao de explorao que condena uma classe inteira ao abandono
e a
humilhao, enquanto garante a reproduo no tempo das classes do
privilgio.
Luta de classes no apenas a greve sindical, ou a revoluo
sangrenta nas ruas
que todos percebem. Ela , antes de tudo, o exerccio silencioso
da explorao
construda e consentida socialmente, inclusive por abordagens
cientficas que
malgrado a inteno, como no caso do prof. Pochmann no dispe dos
meios
cientficos adequados a essa percepo. No a reproduo estatstica,
por mais
bem feita, das ocupaes brasileiras que vai permitir a politizao
classista do
fenmeno de transformao da estrutura social ...do Brasil26 no
Brasil como a
inteno do Prof. Pochmann. A percepo da luta de classes exige os
meios
cientificamente adequados a isso. Exige tornar visvel a formao e
a gnese das
26
Pochmann, ibid, pag. 8.
-
17
classes sociais e, portanto, do conjunto de capitais que iro
pr-decidir toda a
competio social por recursos escassos - l onde elas so
constitudas de modo muito
especfico.
Como as classes esto inter-relacionadas apenas a percepo de sua
gnese e de
suas relaes especficas de reproduo e explorao precisamente
como
procuramos mostrar - que pode aportar conhecimento no visvel a
olho nu e,
portanto, perceber conflitos sistematicamente mascarados. Este o
ponto decisivo. A
tese central do livro da ral que a luta de classes mais
importante e, ao mesmo
tempo, a mais escamoteada e invisvel do Brasil contemporneo a
explorao
sistemtica e cotidiana dos nossos desclassificados sociais o que
apenas contribui para
sua reproduo no tempo. No existe nenhum problema real, que seja
especfico do
Brasil e de pases em condio semelhante, que no advenha do
abandono desta
classe27.
Usamos o mesmo mtodo no estudo da classe que chamamos de
batalhadores. Aqui
a questo foi tentar perceber como possvel reverter o crculo
vicioso de abuso
sexual generalizado, instrumentalizao dos mais fracos pelos mais
fortes, baixa auto
estima, baixa capacidade de concentrao e auto controle, etc.,
que caracteriza o
cotidiano de muitas das famlias da ral, e as condenam a uma vida
sem futuro e
sem esperana. Ascender socialmente s possvel a quem logra
incorporar as pr-
condies que o capitalismo atual pressupe para a crescente
incorporao de
distintas formas de conhecimento e de capital cultural como
porta de entrada em
qualquer de seus setores competitivos. A fronteira entre ral e
batalhadores - a
qual sempre fluda na realidade concreta, embora, analiticamente,
para efeitos de
compreenso seja importante precisamente enfatizar o contraste -
est situada
precisamente na possibilidade da incorporao pelos batalhadores
dos pressupostos
para o aprendizado e o trabalho que faltam a ral.
Mas porque falta a uns o que possvel a outros nas fludas
fronteiras das classes
populares? A resposta dessa questo exige o passo terico que
tomamos na nossa
pesquisa de criticar e complementar o esquema utilitarista dos
capitais em Bourdieu.
Ainda que a verso enriquecida dos capitais em Bourdieu
possibilite que se
compreenda o clculo e a estratgia de indivduos e classes no
capitalismo, o
comportamento social no apenas utilitrio. As pessoas tambm
precisam dotar
sua vida de sentido, de onde retiram tanto a auto-estima quanto
o reconhecimento
social para o que so e o que fazem. No estudo das classes
populares essa dimenso
fundamental, por que o que se retira dos dominados socialmente
no so apenas os
meios materiais. O domnio permanente de classes sobre outras
exige que as classes
dominadas se vejam como, inferiores, preguiosas, menos capazes,
menos
27
Que se pense na (in)segurana pblica, no gargalo da mo de obra
qualificada, nos problemas da sade e da educao pblicas, etc.
-
18
inteligentes, menos ticas, precisamente o que reencontramos em
todas as nossas
entrevistas. Se o dominado socialmente no se convence de sua
inferioridade no
existe dominao social possvel28.
Precisamente para percebermos adequadamente a dor e o sofrimento
humanos
envolvidos nesta condio, ns acrescentamos dimenso
bourdieusiana
utilitarista da teoria dos capitais que no se reduzem ao capital
econmico - a
dimenso valorativa do que as sociedades modernas julgam ser a
boa vida. a
noo prtica de boa vida que define o que a virtude e, portanto, o
que perfaz
um indivduo digno de respeito ou de desprezo. Essa dimenso
implcita e no
articulada, mas todos ns nos julgamos a ns mesmos e julgamos os
outros baseados
nela as 24 horas do dia. Utilizamos a reconstruo do filsofo
social canadense Charles
Taylor29, que mostra, como nenhum outro a relevncia dessas
categorias que se
tornaram instituies e, portanto, prtica naturalizada e
irrefletida no mundo
moderno. Para Taylor, assim como para Max Weber30, julgamos
socialmente uns aos
outros baseados nas figuras do produtor til e da personalidade
sensvel. O efeito
de distino produzido pela noo implcita de personalidade sensvel
foi a base do
estudo mais brilhante de Bourdieu acerca das lutas de classe na
Frana31.
Nos nossos estudos das classes populares brasileiras procuramos
tornar operacional o
conceito de dignidade do produtor til. Dignidade aqui um
conceito procedural
e no substantivo, ou seja, ele no um valor moral especfico, mas
um conjunto
de caractersticas psicossociais incorporadas praticamente
afetivas, emocionais e
cognitivas que fazem com que tanto a auto-estima pessoal, quanto
o
reconhecimento social seja possvel. essa seleo prtica que
qualquer entrevista
de emprego no mercado ou qualquer prova de concurso pblico
procura fazer. a
mesma seleo que fazemos todos os dias acerca de quem apertamos a
mo ou de
quem evitamos at usar a mesma calada. Essa dimenso to encoberta
e
escamoteada quanto a dimenso dos capitais no econmicos. Da que a
realidade
social tenha que ser reconstruda de modo novo em pensamento para
que faa
sentido.
As classes populares no so apenas despossudas dos capitais que
pr-decidem a
hierarquia social. Paira sobre as classes populares tambm o
fantasma de sua
incapacidade de ser gente e o estigma de ser indigno, drama
presente em
literalmente todas as entrevistas. As classes com essa
insegurana generalizada,
como a ral e boa parte dos batalhadores, esto divididas
internamente entre o
28
Essa tambm uma tese clssica de Max Weber. Ver Weber, ibid, pags.
122/176. 29
Taylor, Charles, Sources of the self: the making of modern
identity, Harvard,1989. 30
As clebres figuras do especialista sem esprito e do hedonista
sem corao, no final do livro sobre a tica protestante, referem-se a
papis sociais muito prximos ao desenvolvidos por Taylor. Ver,
Weber, Max, Die protestantische Ethik und der Geist des
kapitalismus, J.C.B. Mohr, 1948. 31
Bourdieu, Pierre, A distino, Zouk/EDUSP, 2010.
-
19
pobre honesto, que aceita as regras do jogo que o excluem, e o
pobre delinqente,
o bandido no caso do homem, e a prostituta no caso da mulher. A
maioria esmagadora
das famlias pobres convive com essa sombra e com essa ameaa,
como a me da
prostituta que a sustentava e que dizia a filha em uma discusso:
j fiz de tudo na
vida, minha filha, mas puta eu nunca fui32. Como o estigma da
indignidade ameaa
a todos, vale qualquer coisa contra quem quer que seja para se
conseguir um alvio
momentneo de tamanha violncia simblica.
Assim, as classes do privilgio no dispem apenas dos capitais
adequados para vencer
na disputa social por recursos escassos, mas dispem tambm da
autoconfiana de
quem teve todos os cuidados na famlia, de quem sabe que
freqentou a melhor
escola, que possui a naturalidade para falar bem lnguas
estrangeiras, que conta
com as economias do pai para qualquer eventualidade ou fracasso,
que conta com
exemplos bem sucedidos na famlia. Tudo isso tambm fonte de
recursos
valorativos como a crena em si mesmo, produto de uma
autoconfiana de classe,
to necessria para enfrentar todas as inevitveis intempries e
fracassos eventuais da
vida sem cair no alcoolismo e no desespero, e usufruir do
reconhecimento social dos
outros como algo to natural como quem respira.
As classes populares, ao contrrio, no dispem de nenhum dos
privilgios de
nascimento das classes mdia e alta. A socializao familiar muitas
vezes disruptiva, a
escola pior e muitas vezes consegue incutir com sucesso
insegurana na prpria
capacidade33, os exemplos bem sucedidos na famlia so muito mais
escassos, quando
no inexistentes, quase todos necessitam trabalhar muito cedo e
no dispem de
tempo para estudos, o alcoolismo, fruto do desespero com a vida,
ou o abuso sexual
sistemtico so tambm sobre representados nas classes populares.
Os efeitos desse
ponto de partida acarretam que a incorporao da trade disciplina,
autocontrole e
pensamento prospectivo, que est pressuposta tanto em qualquer
processo de
aprendizado na escola quanto em qualquer trabalho produtivo no
mercado
competitivo seja parcial e incompleto ou at inexistente.
Sem disciplina e autocontrole impossvel, por exemplo, se
concentrar na escola da
que os membros da ral, que analisamos no nosso livro anterior
sobre essa classe,
diziam repetidamente que fitavam o quadro negro por horas a fio
sem aprender.
Essa virtude no natural, como pensa o economicismo, mas um
aprendizado de
classe. Por outro lado, sem pensamento prospectivo ou seja, a
viso de que o
futuro mais importante que o presente - no existe sequer a
possibilidade de
conduo racional da vida pela impossibilidade de clculo e de
planejamento da vida
pela priso no aqui e agora.
32
Ver trabalho de Patrcia Mattos em Souza, Jess et alli, ibid,
2009, pags. 173 e seguintes. 33
Ver Trabalho de Lorena Freitas em Souza, Jess et alli, ibid,
2009, pags. 281 e seguintes.
-
20
No contexto das classes populares, nosso estudo dos batalhadores
se concentrou na
determinao das fronteiras que os separam da ral, por um lado, e
da classe mdia
verdadeira, por outro. Observamos, por exemplo, fontes
importantes de auto
confiana individual e de solidariedade familiar baseada na
socializao religiosa,
temas negados por estudiosos conservadores34. O tipo de
religiosidade pentecostal,
crescentemente importante nas classes populares brasileiras,
tende a ser, nos
batalhadores dominado pelas denominaes mais ticas ao contrrio da
ral
onde predominam as denominaes mais mgicas do pentecostalismo -
onde a
regulao racional da vida cotidiana e a crena na prpria
capacidade passa a ser o
valor mximo35. Isso implica, nos melhores casos, na
possibilidade de se conquistar
tardiamente estmulos morais e afetivos que, nas classes do
privilgio, dado pelo
horizonte familiar em tenra idade. O belo estudo de Maria de
Lourdes Medeiros
mostra como tambm a igreja catlica no interior do Nordeste pode
servir de
incorporao de slida tica do trabalho para muitas famlias36. A
religio tambm
pode ser fundamental na redefinio da tica do trabalho de
mulheres que o racismo
havia condenado ao destino de objeto sexual37.
Assim, do mesmo modo que a no incorporao familiar, escolar e
social dos
pressupostos de qualquer aprendizado e trabalho moderno o que
produz e reproduz
a ral, os batalhadores representam a frao das classes populares
que lograram sair
deste crculo vicioso. Como as fronteiras aqui so muito fludas,
isso significa que no
existe classe condenada para sempre. Com condies polticas e
econmicas
favorveis, os setores que lograram incorporar, seja por
socializao religiosa tardia,
seja por pertencerem a famlias comparativamente mais bem
estruturadas malgrado
o ponto de partida desvantajoso comum a todas as classes
populares a incorporao
das pr-condies para o desempenho do papel social do trabalhador
til, podem
ascender socialmente.
Alm da importncia inegvel, para classes socialmente to frgeis,
da varivel
religiosa, procuramos perceber a dinmica e os efeitos da
incorporao, ainda que
tardia, familiar e extra familiar, dos pressupostos emocionais,
afetivos, morais e
cognitivos para a ao econmica racional nas classes populares.
Este o caminho
oposto de toda forma de economicismo que simplesmente pressupe
e, portanto,
naturaliza o ator econmico universal, escondendo a luta de
classes que implica,
precisamente, uma incorporao diferencial e seletiva desses
pressupostos. A maior
34
Ver minha crtica ao trabalho de Lamounier, Bolvar e Souza,
Amaury, A classe mdia brasileira: ambies, valores e projetos de
sociedade, Campus/CNI, 2010, em Souza, Jess et alli, ibid, 2010,
pags 349 e seguintes. 35
Ver o trabalho de Arenari, Brand e Dutra, Roberto, em Souza,
Jess et alli, ibid, 2010, pags. 311 e seguintes. 36
Ver o trabalho de Maria de Lourdes de Medeiros, em Souza, Jess
et alli, ibid, 2010, pags. 199 e seguintes. 37
Ver o trabalho de Djamila Olivrio, em Souza, Jess et alli, ibid,
2010, pags.173 e seguintes.
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parte do livro, inclusive, se dedica a compreender, levando em
conta as desvantagens
do ponto de partida das classes populares, como se aprende, na
prtica, com erros e
acertos, por exemplo, a ser um trabalhador ou a calcular e a
administrar um
pequeno negcio de um trabalhador autnomo38? Ou ainda, na dimenso
mais poltica
e social, tentar responder a questo acerca das bases da
solidariedade familiar
pressuposta nas pequenas unidades produtivas. Ou ainda de como o
trabalhador
formal, mas, precrio, especialmente dos servios e do comrcio39,
so tornados refm
de uma legitimao de um novo tipo de capitalismo que se expande
precisamente para
essas reas do capitalismo moderno40.
O nosso livro tratou da ascenso social, portanto, como um
conceito relacional. Quando se trata o tema da ascenso de maneira
relacional possvel perceber, por exemplo, como a ascenso tambm traz
consigo sofrimento, esforo, assim como o prprio medo de uma possvel
desclassificao social futura. Se tratamos o tema da ascenso social
desta maneira, foi para demonstrar que ascenso no uma categoria
linear de um ponto ao outro, como um trem social que se pega de uma
classe outra. Ela no uma bala que vai de um ponto a outro sem
encontrar obstculo. Qualquer entrevista no livro comprova isso. Pra
levar o conceito a srio temos que considerar a ascenso social como
uma prtica em constante re-afirmao, um jogo social, cujos
participantes so postos prova a todo o momento com o fantasma da
queda social e da desclassificao sempre a espreita.
Mas temos a clara compreenso de que o nosso prprio trabalho foi
apenas uma
primeira aproximao neste horizonte to novo e to desconhecido.
Seria muito
desejvel se os estudos estatsticos bem feitos pudessem ser
associados a trabalhos
sociolgicos mais refinados para os estudos posteriores dos
diversos ambientes
sociais, os millieus41 ou fraes de classe em movimento na nossa
sociedade.
Apenas assim, seria possvel perceber e ter uma idia mais clara
dos fatores que esto
em jogo tanto na ascenso quanto na estagnao ou decadncia social
dos diversos
setores das classes populares brasileiras no atual momento do
capitalismo mundial.
O que faz uma concepo triunfalista das classes populares no
Brasil, como a
defendida pelo Prof. Marcelo Nri - onde apenas ascenso social e
felicidade42 so
38
Ver o trabalho de Fabrcio Maciel em em Souza, Jess et alli,
ibid, 2010, pags.173 e seguintes 39
Ver o trabalho de Ricardo Visser, em Souza, Jess et alli, ibid,
2010, pags.61 e seguintes. 40
Ver meu captulo inicial em Souza, Jess et alli, ibid, 2010,
pags.19 e seguintes. 41
Ver, acerca da importncia dos diversos ambientes sociais ou
millieus para a reproduo de uma classe social, o livro clssico de
Vester, Michael et alli, Soziale Milieus im Gesellschaftlichen
Strukturwandel, Suhkamp, 2001. 42
O fato do habitus, ou seja, o conjunto dos esquemas de avaliaes
e percepo do mundo,
incorporado nos sujeitos, no ser consciente a eles, implica que
a anlise emprica dos sujeitos no
pode ter a ingenuidade da pesquisa sobre felicidade dos
brasileiros citada vrias vezes pelo Prof. Nri
com tanto ardor. que, como nota Max Weber, a necessidade primria
dos seres humanos no dizer
a verdade, mas sim a de legitimar a prpria vida que levam. No
ter conscincia disso correr o risco
de sria ingenuidade acerca da vida social. Antes do hiphop e do
Funk at Cartola dizia como o
morro era melhor que o asfalto, mais alegre e mais humano. Do
mesmo modo as prostitutas da
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percebidos - ser to cientificamente superficial e politicamente
conservadora
precisamente a negao sistemtica de sofrimento e da dor do
dominado e do
humilhado socialmente. Afinal, apenas conhecendo e reconhecendo
a dor e o
sofrimento injustos que podemos mitig-lo. Enfeit-lo e neg-lo ,
ao contrrio, a
melhor maneira de torn-lo eterno. De certo, apenas, a certeza de
que um Brasil
melhor se faz olhando nossos problemas e mazelas nos olhos,
difceis e desafiadores
como eles so. No existe nenhum outro caminho para o
aperfeioamento individual
ou coletivo. A escolha nossa.
nossa pesquisa fantasiavam uma vida familiar idlica e s depois,
nas entrevistas subseqentes - que
faziam parte do mtodo crtico que construmos - que, por exemplo,
o abuso sexual do pai e a
competio com me ficavam explcitos. O discurso inicial, nesses
casos, sempre uma fantasia
compensatria, uma necessidade transformada em escolha, humana,
demasiado humana, para quem
tem negado, como no caso das classes populares, vrios dos
fundamentos de uma vida digna que
podem proporcionar auto-estima e reconhecimento social. O que no
compreensvel uma cincia
to ingnua o fato das pesquisas serem internacionais parece que
funciona como uma espcie de
carteirada ou fetiche cientfico para nossos pesquisadores - que
desconhea esse fato to bsico.