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São de responsabilidade de seus autores os conceitos emitidos nas conferências aqui publicadas. Janeiro 2009 646 v. 54 Sumário Antônio Vieira e Justiça Tributária ............................ 3 Antônio Celso Alves Pereira Aspectos Administrativos, Operacionais e Regulamentares da Crise Financeira Internacional de 2008 ................................................................. 29 Ari Cordeiro Filho A Crise Global ........................................................ 86 Ernane Galvêas Problemas Nacionais Conferências pronunciadas nas reuniões semanais do Conselho Técnico da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo
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Janeiro 2009 646 Problemas Nacionais v. 54 · a navegação e o monopólio do comércio na área compreendida entre a Terra Nova e o estreito de Magalhães, de um lado do Atlântico,

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São de responsabilidade de seus autores os conceitos emitidos nas conferências aqui publicadas.

Janeiro2009

646v. 54

Sumário

Antônio Vieira e Justiça Tributária ............................3Antônio Celso Alves Pereira

Aspectos Administrativos, Operacionais e Regulamentares da Crise Financeira Internacional de 2008 .................................................................29Ari Cordeiro Filho

A Crise Global ........................................................86Ernane Galvêas

Problemas NacionaisConferências pronunciadas nas reuniões semanais do Conselho Técnico da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo

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Solicita-se aos assinantes comunicarem qualquer alteração de endereço.

As matérias podem ser livremente reproduzidas integral ou parcialmente, desde que citada a fonte.

A íntegra das duas últimas edições desta publicação estão disponíveis no endereço www.portaldocomercio.org.br, no link Produtos e Serviços – Publicações – Periódicos.

Publicação MensalEditor-Responsável: Gilberto PaimProjeto Gráfico: Coordenação de Documentação e Informação/Unidade de Programação VisualImpressão: Imo’s Gráfica

Carta Mensal |Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo – v. 1, n. 1 (1955) – Rio de Janeiro: CNC, 1955-

100 p.MensalISSN 0101-4315

1. Problemas Brasileiros – Periódicos. I. Confederação Nacional do Co-mércio de Bens, Serviços e Turismo. Conselho Técnico.

Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo

v. 54, n. 646, Janeiro 2009

BrasíliaSBN Quadra 01 Bloco B no 14, 15o ao 18o andarEdifício Confederação Nacional do ComércioCEP 70041-902PABX (61) 3329-9500 | 3329-9501E-mail: [email protected]

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3Car ta Mensa l • Rio de Janeiro, v. 54, n. 646, p. 3-28, jan. 2009

I

Em dezembro de 1640, aproveitando-se das graves dificuldades internas e externas que afrontavam o Império Espanhol no

reinado de Filipe IV,1 o Duque de Bragança, com o apoio dos Três Estados da nação portuguesa, no rastilho da revolução que restaurou a independência de Portugal, se fez coroar rei como D. João IV, o primeiro da Casa de Bragança.

Após 60 anos de dominação espanhola, o reino de Portugal estava depauperado, desorganizado, sem forças armadas, suas possessões na América, na Ásia e na África assediadas pelas potências coloniais européias, enfim, havia um gigantesco trabalho a ser executado, nos planos interno e externo para consolidar a independência e recuperar a segurança e o prestígio do reino. A situação agônica da economia

Antônio Vieira e Justiça Tributária

Antônio Celso Alves PereiraProfessor de Direito Internacional Público e ex-Reitor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Presidente da Sociedade Brasileira de Direito Internacional.

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portuguesa e a debilidade militar do país, que já eram realidades no reinado de D. Sebastião, agravaram-se nos anos em que Portugal esteve sob o controle espanhol.

Até 1580, na luta pela hegemonia européia, que a Casa de França disputava com a Casa de Áustria, Portugal, sob os reis Avis, apesar das ligações dinásticas com Castela, mantivera-se neutro nesse confronto; entretanto, durante o período da união ibérica, o reino português enredou-se nos negócios de Espanha. Estados europeus inimigos dos Habsburgos espanhóis, como França, Inglaterra e Países Baixos, avançaram sobre as possessões do Império colonial português na América, na África e na Ásia, inicialmente devastando-as pela guerra de corso e, posteriormente, tentando incorporar parcelas importantes desses territórios aos seus domínios coloniais.

Na República das Províncias Unidas dos Países Baixos, comerciantes e investidores, que já vinham auferindo grandes lucros com o saque das colônias portuguesas no Oriente, por meio da Companhia Ho-landesa das Índias Orientais, criada em 1602, fundaram a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, em 1621, para conquistar e explorar a navegação e o monopólio do comércio na área compreendida entre a Terra Nova e o estreito de Magalhães, de um lado do Atlântico, e, de outro lado, entre o Trópico de Câncer e o Cabo da Boa Esperança. Pelo foral que recebera das Províncias Unidas dos Países Baixos a empresa tinha poderes para construir fortificações e cidadelas nes-sas regiões e, da mesma forma, podiam negociar e firmar tratados, designar generais, almirantes, burocratas e administradores, enfim, ampla competência para realizar o que fosse necessário para o melhor proveito e definitiva conquista dos territórios que viesse a ocupar. O governo das Províncias Unidas dos Países Baixos prestava, quan-do fosse o caso, às duas Companhias de Comércio, amplo suporte

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político-militar, para que pudessem atingir seus objetivos. Mirando o controle total da comercialização do açúcar e do pau-brasil, em 1624, os neerlandeses, além da política de talar a costa brasileira por seus corsários, dirigiram seus esforços para conquistas territoriais, com o ataque à capital da colônia, a cidade de Salvador, na Bahia. Uma armada neerlandesa, comandada pelo almirante Jacob Willekens, saqueou e ocupou a Bahia, em 10 de maio de 1624. Com reforços oriundos de Pernambuco e do Rio de Janeiro, a resistência baiana sustentou, por um ano, uma intensa guerra de guerrilha, por meio da tropa de irregulares conhecida como “Milícia dos Descalços”, conseguindo, desta forma, manter o cerco às forças de ocupação. No início de 1625, uma armada sob o comando de D. Fradique de Toledo apertou o cerco e obteve a capitulação dos ocupantes, em 30 de abril daquele ano.

A cobiça neerlandesa sobre o Brasil seria objeto das preocupações patrióticas do Padre Antônio Vieira, desde as primeiras investidas da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais às costas brasileiras. Em um dos seus primeiros escritos, a Carta Ânua da Província Jesuíta do Brasil,2 datada de 30 de setembro de 1626, e dirigida ao Geral da Or-dem, o jovem Antônio Vieira, precocemente apresentava o esplendor de sua prosa, ao descrever, de forma magistral, o ataque neerlandês à Bahia de Todos os Santos, em 1624, bem como a reconquista da cida-de, em 1625. Trata-se de um texto denso, detalhado, elaborado com esmero e grande erudição. Impressionante como aos 18 anos Vieira mostrava-se familiarizado com a terminologia militar e dominava as concepções de estratégia terrestre e naval da época.3 Ainda nesse contexto, vale assinalar que um dos mais belos, veementes e, pode-se dizer, ousados sermões proferidos por Vieira, o famoso Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as de Holanda, pregado em 1640, na Bahia, o grande orador protesta e censura o próprio Deus,

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por permitir, segundo ele, o sofrimento que os hereges neerlandeses, comandados pelo almirante Lichthardt, infringiam ao povo católico da Bahia de Todos os Santos, em mais uma tentativa de conquistá-la.

Pela força da argumentação, pela forma ousada como Vieira se dirige ao próprio Deus, ou seja, não suplica, exige justiça, vale a pena trazer à colação um trecho desse Sermão:

Não hei de pregar hoje ao povo, não hei de falar com os homens; mais alto hão de sair as minhas palavras ou as minhas vozes: a vosso peito divino se há de dirigir todo o sermão. (...) Todos estes dias se cansaram debalde os oradores evangélicos em pregar penitência aos homens; e, pois, eles se não converteram, quero eu, Senhor, converter-vos a vós. Tão presumido venho da vossa misericórdia, Deus meu, que ainda que nós somos os pecadores, vós haveis de ser o arrependido. O que venho a pedir ou protestar, Senhor, é que nos ajudeis e nos liberteis: (...) Não hei de pedir pedindo, senão protestando e argumentando; pois esta é a licença e liberdade que tem quem não pede favor, senão justiça. Se a causa fora só nossa e eu viera a rogar só por nosso remédio, pedira favor e misericórdia. Mas como a causa, Senhor, é mais vossa que nossa, e como venho a requerer por parte de vossa honra e glória, e pelo crédito de vosso nome (...) – razão é que peça só razão, justo é que peça só justiça. Sobre este pressuposto vos hei de arguir, vos hei de argumentar; e confio tanto da vossa razão e da vossa benignidade, que também vos hei de convencer.4

Ao que parece, Deus ouviu e atendeu aos protestos de Vieira, pois, como já foi dito, os invasores foram repelidos. Apesar do fracasso na Bahia, a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais estava disposta a tudo para saquear e devastar, pela guerra de corso, territórios e cidades no Brasil, na África e, se fosse possível, ocupá-los definitivamente. Em 1627, uma esquadra da Companhia, sob o comando de Pieter

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Heyn, tentou, sem sucesso, talar de novo a Bahia. Expulso das cos-tas do Brasil, após saquear várias localidades do Recôncavo baiano, Pieter Heyn obteve uma grande e lucrativa vitória para a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais: em setembro de 1628 capturou, na Baía de Matanzas, na costa cubana, a chamada Frota Espanhola da Prata. Esta ação rendeu aos neerlandeses 14 milhões de florins, o dobro do capital da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, cujos acio-nistas foram beneficiados com 50% de dividendos.5 De posse desses recursos, a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais armou, em 1629, uma grande frota para a conquista de Pernambuco. Em 1630, apesar de todos os esforços dos luso-brasileiros, diante da disparidade de forças e da falta de recursos de toda a ordem, não foi possível sus-tentar a defesa das cidades pernambucanas de Olinda e Recife, sítios que acabaram conquistados pelos holandeses, em 2 de março daquele ano. Contudo, desse infortúnio nascia a forte resistência brasileira que, por 24 anos, sustentaria a guerra contra o invasor.6 A reação luso-brasileira à conquista de Pernambuco pela Companhia Holandesa das Índias Ocidentais gerou um conflito armado que se desdobraria em três fases distintas: a primeira, de 1630 a 1637, caracterizou-se pela resistência concretizada por forças luso-brasileiras e espanholas sob o comando de militares europeus; a segunda, 1637/1644, foi mar-cada pelo carisma do conde Maurício de Nassau no governo-geral do domínio neerlandês no Brasil, batizado por ele de Nova Holanda. Sob Nassau, os holandeses imprimiram uma dinâmica administrativa nova em Pernambuco, eficiente em quase todos os apelos da boa governança e tolerante em matéria religiosa, apesar da oposição das lideranças calvinistas locais. Esta situação permitiu aos neerlandeses, em 1638, dominar amplamente o litoral nordestino do Brasil, isto é, controlavam desde o Rio São Francisco até o Ceará. Ampliou o do-mínio holandês com a incorporação de Sergipe e do Maranhão, em 1641, esta última conquista efetivada em frontal violação do Tratado

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de Tréguas e Cessação de Hostilidades, celebrado entre Portugal e os Países Baixos naquele mesmo ano.7 Antes, em 1638, Nassau tentara, em vão, ocupar a Bahia. Para assegurar mão-de-obra escrava para os engenhos de Pernambuco, mandou ocupar as possessões portuguesas, na África, São Jorge de Minas, Ilha de São Tomé, Guiné e Angola, decisão que também violava o Tratado de Tréguas.8 Em maio de 1644, Nassau foi demitido pela Companhia e retornou à Holanda. A terceira fase da guerra, de 1645 a 1654, época em que se deu a chamada insurreição pernambucana, já sob Portugal restaurado, foi conclusiva e fundamental para os destinos do Brasil.

Recorrendo, como na Bahia, à guerra de guerrilha, comandados por generais que haviam adquirido larga experiência militar ao longo dos anos de guerra,9 as forças locais recrudesceram a luta contra a ocupação holandesa no nordeste brasileiro. Portugal e Países Baixos passaram a viver uma situação político-estratégica paradoxal: aliados contra a Espanha na Europa e inimigos no Brasil. Foi nesse quadro de instabilidade, que Antônio Vieira, como se discutirá em seguida, entrou no serviço da nova monarquia portuguesa, atuando em todos os campos da atividade governamental, como amigo e conselheiro predileto do rei D. João IV. Sua presença na História de Portugal e do Brasil, a partir de 1641, ocasião em que, pela primeira vez, retornara a Lisboa, onde nascera, até sua morte na Bahia, em 1697, foram em tudo e por tudo verdadeiramente marcantes. A inteligência, a coragem e a paixão com que abraçara a causa da Restauração, sua fidelidade à Casa de Bragança, sua vocação para a política, além da força de sua incomparável e fascinante oratória, tornaram-no participante ativo, polêmico e destacado dos anos mais difíceis do processo de conso-lidação da retirada do reino de Portugal da coroa dos Habsburgos de Espanha.

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II

Em 29 de abril de 1641, o Padre Antônio Vieira, juntamente com D. Fernando de Mascarenhas, filho do Vice-Rei do Brasil, D. Jorge de Mascarenhas, Marquês de Montalvão, e um irmão jesuíta, o Padre Simão de Vasconcelos, passaram por momentos angustiantes quando a nau que os levava do Brasil para Lisboa, assolada por tempestades, foi dar ao porto de Peniche. Ao correr pela cidade a notícia de que entre os aportados estava o filho do Marquês de Montalvão, cuja mãe e irmãos, que residiam em Portugal, por serem partidários dos espanhóis estavam na lista dos traidores da Restauração, uma multi-dão tentou linchá-los. Salvou-os o Conde de Atouguia, comandante da guarnição militar da Praça. Antônio Vieira foi agredido, mas no dia seguinte, conseguiu chegar a Lisboa. Retornava à sua cidade na-tal, aos 33 anos de idade, para cumprir a missão que o Marquês de Montalvão encarregara ao filho, a ele Vieira, e ao Padre Simão de Vasconcelos de apresentar ao novo monarca português a adesão e as homenagens do Brasil. No mesmo dia que chegou, Antônio Vieira foi recebido por D. João IV.10 Sabe-se que, por sua inteligência, vasta erudição e, sobretudo, a vocação para a política, a acuidade de suas opiniões e a ousadia em emiti-las, Vieira ganhou logo a admiração e o respeito do rei.

Em 1642 consolida sua posição na corte, principalmente após D. João IV ouvi-lo pregar, no dia 1º daquele ano, na Capela Real, o Sermão dos Bons Anos. Como esclarece João Lúcio de Azevedo, um dos principais biógrafos de Vieira, naquele tempo, por faltar à política os meios eficazes para coordenar opiniões e vontades, “o púlpito era a tribuna pública e o orador sagrado era porta-voz dos grupos em que se dividida o juízo da nação. As prédicas de Vieira, pelo concurso de ouvintes e influência da sua palavra, tinham por vezes aspecto de

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comícios, em que os negócios mais graves do Estado saíam a lume e por meio de alegorias da Bíblia se julgavam atos do governo e as individualidades mais altas dele.”11 Em sua grandeza, Vieira, para-doxalmente, mesclava utopia com realismo, teologia política com pragmatismo, e, nesse quadro, diante das injustiças que sofreu, dos padecimentos que lhe foram infligidos pela Inquisição, e o rancor dos que lhe invejavam o brilhantismo e a admiração do Rei, ele, muitas vezes, manifestara sua descrença nos homens, como se pode ver no maravilhoso jogo de palavras por meio do qual expõe sua impressão sobre as dificuldades para governar os homens. Está do Sermão de São Roque, pronunciado em 1652:

Os filósofos antigos chamaram ao homem mundo pequeno; porém, S. Gregório Nazianzeno, melhor filósofo que todos eles, e por excelência o Teólogo, disse que o mundo comparado com o homem é o pequeno, e o homem, em comparação ao mundo, o mundo grande: Mundum in parvo, magnum. Não é o homem um mundo pequeno que está dentro do mundo grande, mas é um mundo, e são muitos mundos grandes, que estão dentro do pequeno (...). Pois, se nenhum homem pode ser capaz de governar toda esta máquina do mundo, que dificuldade será haver de governar tantos homens, cada um maior que o mesmo mundo (...). A demonstração é manifesta. Porque nesta máquina do mundo, entrando também nela o céu, as estrelas têm seu curso ordenado, que não pervertem jamais; o sol tem seus limites e trópicos, fora dos quais não passa; o mar, com ser um monstro indômito, em chegando às areias pára; as árvores onde as põem, não se mudam; os peixes contentam-se com o mar, as aves com o ar, os outros animais com a terra. Pelo contrário, o homem, monstro ou quimera de todos os elementos, em nenhum lugar pára, com nenhuma fortuna se contenta, nenhuma am-bição nem apetite o farta: tudo perturba, tudo perverte, tudo excede, tudo confunde e, como é maior que o mundo, não cabe nele.12

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Vieira, como se pode ler em sua História do Futuro, entendia o mundo como um teatro, “onde os homens e as figuras que nele representam, e a história verdadeira dos seus sucessos, uma comédia de Deus, tra-çada e disposta maravilhosamente pelas idéias de sua Providência”.13

Assim, a partir de 1640, torna-se astro do teatro político português, co-autor e personagem da grande cena dramática que vive Portugal nos anos iniciais da Restauração. A Europa na década de 1640 vive a tragédia da Guerra dos Trinta Anos, a decapitação do Rei Carlos I e a transformação da Inglaterra na República de Cromwell, a Paz de Vestfália, que determinará os rumos do continente europeu até a Revolução Francesa, mas também será o tempo em que Hobbes publicará o De Cive, o Cardeal Mazarino o seu Breviário dos Políticos, Descartes, seu Principia Philosophiae e Vieira exporá sua teologia polí-tica por meio dos seus sermões em defesa da Restauração e da Nova Monarquia Portuguesa. O Sermão dos Bons Anos, o já citado Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as de Holanda, mais dois outros sermões dedicados a São Roque, o de 1644 e o de 1652, já menciona-do, o Sermão de Santo Antônio, pregado na Igreja das Chagas de Lisboa, em 14 de setembro de 1642 e um outro Sermão pelo Bom Sucesso de nossas Armas, pregado em Lisboa em 1645 conformam textos, a partir dos quais, ele vai construir essa teologia política. O Sermão dos Bons Anos é uma peça apologética, de grande força política, expressando um belíssimo exercício de erudição e de vigor dialético, no qual já se manifesta a propensão de Vieira aos vaticínios, às profecias, ao milenarismo. Neste Sermão ele afirma que D. João IV, é o Encoberto, mas que ele não é D. Sebastião redivivo, que retornou para restaurar a independência, uma vez que Portugal, em suas palavras, “seria remido não esperadamente por um rei não esperado”. E que, evidentemente, “não podia el-Rei D. Sebastião ser o libertador de Portugal, porque o libertador prometido havia de ser um rei não esperado: Insperate ab

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insperato; e el-Rei D. Sebastião era tão esperado vulgarmente, como sabemos todos”. Vejamos o que diz Vieira:

(...) Mas ainda que concedamos que os Portugueses não souberam esperar, não lhes neguemos que souberam amar, e com muita ventura; que talvez buscando a um rei morto, se vêm a encontrar com um vivo. Morto buscava a Madalena a Cristo na sepultura, e a perseverança e amor com que insistiu em o buscar morto, foi causa de que o Senhor lhe enxugasse as lágrimas e se lhe mostrasse vivo. (...) Assim como a Madalena, cega de amor, chorava às portas da sepultura de Cristo, assim Portugal, sempre amante de seus reis, insistia ao sepulcro de el-Rei D. Sebastião, chorando e suspirando por ele; e assim como a Madalena no mesmo tempo tinha a Cristo presente e vivo, e o via com seus olhos e lhe falava e não o conhecia, porque estava encoberto e disfarçado, assim Portugal tinha presente e vivo a el-Rei (...), e o via e lhe falava e não conhecia. Porquê? – Não só porque estava, senão porque ele era o Encoberto.14

No Sermão de São Roque de 1652, pregado quatro anos antes da morte de D. João IV, Vieira, em belíssimo exercício figurativo, compara o trabalho dos soberanos de Portugal com os movimentos do sol.

(...) Tão grande trabalho é ser sol, e tão grande a sua sujeição, posto que em lugar tão alto. Uma inquietação perpétua, um movimento contínuo, um correr e rodear sempre, e dar mil voltas ao mundo, sem descansar nem parar jamais. Quando dizemos que o sol se põe, é engano, porque então se parte a governar os antípodas. Não vamos buscar a prova da semelhança mais longe, pois a temos de casa, e nos nossos reis, mais própria que em nenhum outro do mundo. Quando os vassalos dormem e descansam, parece que um rei de Portugal faz o mesmo, depois do governo e trabalho de todo o dia, e não é senão que passou aos antípodas. Lá nada com o pensamento e com o cuidado pela China, pelo Japão, pelos reinos do Idalcão, do Samori, do Mogor,

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pelo Cabo da Boa Esperança, pelo do Comori, pelos Javas, pelos mares e costas da África, da Ásia e da América, visitando armadas e fortalezas, compondo pazes, abrindo comércios, e meditando sempre aumentos do reino de Deus e do seu, sem outra quietação ou descanso mais que aparente aos olhos, porque o sol não tem verdadeiro ocaso. O relógio, que é o substituto do sol na terra, não soa, nem se ouve por fora, senão a certos tempos; mas nem por isso está ocioso ou quieto, sempre os pesos estão a carregar, sempre as rodas estão a moer: e tais são os cuidados do príncipe de dia e de noite. Para os súditos, que obedecem e servem, há diferença de dias e noites; para o príncipe, que governa e manda, sempre é dia.15

Consoante o comentário de J. Lúcio de Azevedo, a verbosidade de Vieira “entontecia e quase lançava em hipnose o lento D. João IV”.16

Privilegiado pelo favor do rei, que o elegera seu principal conselheiro e preceptor de seu filho, D. Teodósio, príncipe herdeiro, a Antônio Vieira era permitido transitar por todos os espaços da burocracia do Estado; seus conselhos sobre a defesa do reino e as guerras que Portugal estava enfrentando contra a Espanha na Europa, e contra os Países Baixos no ultramar, eram ouvidos e respeitados pelo rei; da mesma forma, eram consideradas pelo monarca suas sugestões sobre as políticas que deveriam ser aplicadas para reinserir Portugal, de forma positiva, nas relações internacionais, em uma Europa en-volvida da Guerra dos Trinta Anos.

Vieira abraçou a vida pública com todas as suas forças, tornando-se para D. João IV “o primeiro homem do mundo”,17 o conselheiro para todos os momentos e para todos os negócios do Estado. Desespe-rado com a fraqueza militar, as dificuldades de toda a ordem para reconstruir o exército e o perdido poderio naval de Portugal, sem

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os quais seria impossível sustentar a guerra de independência contra a Espanha e defender o império ultramarino e as frotas que faziam o comércio do Brasil, da África e do Oriente do assalto de piratas e corsários, Vieira, com a coragem e a disposição conhecidas, pôs-se a elucubrar medidas e projetos arrojados e polêmicos com o objetivo de manter a luta contra a Espanha, e para conter as tentativas de conquista, pelos holandeses, dos territórios coloniais de Portugal no Brasil, na África e no Oriente. Os anos de reinado de D. João IV, 1640 a 1656, foram difíceis para a segurança e conservação do reino. Antes mesmo dos primeiros lances da guerra, que a Espanha moveria contra Portugal, começava a batalha diplomática pelo reconhecimento da independência. A primeira embaixada foi dirigida à Catalunha, que, como Portugal, revoltara-se e estava em guerra contra a Espanha. É oportuno salientar que a rebelião catalã, iniciada em 7 de junho de 1640, dia da festa de Corpus Christi, de toda a forma, serviu de rasti-lho à revolução portuguesa de 1º de dezembro de 1640. Em seguida o monarca despachou seus representantes para a França, República das Províncias Unidas dos Países Baixos, Inglaterra, Dinamarca, Suécia e Roma. Portugal carecia de diplomatas experientes, uma vez que os melhores quadros da diplomacia portuguesa, que até então serviam à chancelaria espanhola, não aderiam à causa dos Bragan-ças e continuaram no serviço da Casa de Áustria.18 Aos diplomatas portugueses, naquela altura, era-lhes muito difícil trabalhar junto às cortes européias e à Santa Sé, pelas pressões do governo espanhol e, sobretudo, pelas fraquezas do reino.

Os Estados europeus não enviavam embaixadores a Portugal; o papa, por sua vez, considerando o fato de que a Espanha era o sustentáculo do partido católico na Guerra dos Trinta Anos e no Congresso de Vestfália, negava-se a receber o embaixador português, não reco-nhecia a independência e, conseqüentemente, a D. João IV como

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rei e, além disso, recusava-se a nomear os bispos indicados por ele; só receberá o embaixador português em 1669, e somente nomeará os bispos, em 1670 – pontificado de Clemente IX – dois anos após o reconhecimento da independência portuguesa pela Espanha. Para se ter uma idéia de como era complicada a vida dos diplomatas por-tugueses, em Roma, nesse período, o primeiro enviado de João IV, D. Miguel de Portugal, Bispo de Lamego, em 20 de agosto de 1642, sofreu um atentado, do qual escapou ferido, perpetrado por um grupo de facínoras comandados pelo próprio embaixador da Espanha, o Marquês de Velez. Com a Inglaterra os negócios políticos e militares não foram logo favorecidos. Até se obter, finalmente, um acordo definitivo com os ingleses, o Tratado de Paz e Aliança e Casamento do Rei Carlos II com a Princesa Catarina de Bragança, firmado em junho de 1661, foram anos de negociações das quais redundaram acordos comerciais bastante favoráveis aos comerciantes ingleses e na cessão à Inglaterra de importantes territórios coloniais portugueses, como Tanger e Bombaim, além de dois milhões de cruzados que completavam o dote da infanta portuguesa. Com a França, apesar do Tratado de Confederação e Aliança de 1641, os Cardeais Richelieu e Mazarino, cada um a seu tempo, usavam Portugal segundo suas conveniências políticas, prometiam muito, atendiam de forma parcial as pretensões portuguesas, enfim, fugiam dos compromissos maiores. O que Portugal realmente desejava obter da França, no Tratado de 1641, era o compromisso de uma liga formal, isto é, que nenhum dos dois reinos negociasse a paz em separado com a Espanha, cláusula que não fez parte do referido Tratado.

A insurreição pernambucana criava sérios problemas para D. João IV. Não podia apoiá-la abertamente, embora, de forma discreta, a incentivasse.19 A revolta em Pernambuco contra a ocupação ho-landesa, explica J. Lucio de Azevedo, “infundia receios de que as

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Províncias Unidas, dando por quebrada a trégua ajustada em 1641, rompessem por sua vez em declarada beligerância”.20 A D. João IV, indeciso diante das pressões internas, da luta entre os partidários da paz a qualquer custo com os Países Baixos e aqueles que defendiam a continuidade da guerra no Brasil, “os valentões”,21 como os chamava Antônio Vieira, só restava, como escreve Evaldo Cabral de Mello, “recorrer à grande arte dos príncipes católicos do Seiscentos, isto é, dissimular, contemporizar, fazer-se de morto, aplacar os ânimos e esperar o momento propício para voltar à carga”.22

Vieira, como principal conselheiro do rei, estabelecera como prio-ridade, no contexto das relações externas de Portugal, a celebração da paz com a República das Províncias Unidas dos Países Baixos. Insistia nessa tese chamando a atenção para o fato de que Portugal não tinha como lutar em duas frentes, na Europa contra a Espanha e no ultramar contra os neerlandeses. Não havia recursos para enfren-tar, com possibilidade de sucesso, uma empresa dessa natureza. O fundamental, naquele momento, era vencer a guerra com a Espanha e assegurar o presente e o futuro da nova monarquia.

D. João IV, no desespero, às vésperas de reunião das Cortes, ou seja, dos estratos sociais do Reino – a nobreza, o clero e o povo – assem-bléia que, nos reinos ibéricos, apesar do absolutismo real, exercia forte influência na determinação das políticas públicas, resolve recorrer ao expediente que, em todos os tempos, os governantes, antes de qualquer outra medida, pela rapidez da resposta, dele se socorrem para cobrir os gastos de Estado: o aumento dos impostos. Deve-se mencionar também, como já nos fora exposto pelo Conselheiro Arno Wehling, em conferência neste plenário, a força que também tinham em Portugal os Conselhos do Reino – o de Conselhos de Guerra, o da Fazenda e Ultramarino, o do Desembargo do Paço e o da Mesa

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da Consciência e Cânones. Temeroso da reação popular, ainda mais em uma situação de estagnação econômica e de dificuldades finan-ceiras de toda a ordem, o rei, confiante na capacidade oratória, na inteligência e coragem de Antônio Vieira, encarrega-o da defesa da reforma tributária que se fazia urgente e, com ela, o lançamento de novos impostos para cobrir as despesas da guerra e do processo de consolidação da Restauração. Vieira, como sempre, não se fez de rogado. Em 14 de setembro de 1642, na Igreja das Chagas de Lisboa, prega o Sermão de Santo Antônio, sustentando a tese de que era neces-sário que todos os estamentos do reino, os Três Estados da Nação Portuguesa, indistintamente, pagassem impostos, principalmente o chamado Décimo Militar, para com isso, “conservar o recuperado”, reequipar o Exército e a Marinha para vencer a guerra de indepen-dência, proteger as colônias e reerguer o comércio ultramarino.

Nesse Sermão Vieira entra em terreno inóspito, polêmico, uma vez que investe firme na contestação de privilégios estabelecidos há sécu-los, isto é, a nobreza e o clero estavam isentos do pagamento de im-postos, recaindo todo o peso da carga tributária nos comerciantes e no povo. Além disso, agravando a situação, os impostos eram arrecadados com extrema violência. A firme posição de Vieira em defesa de uma justiça tributária, tema, como sabemos, que jamais perde atualidade, certamente lhe custaria caro, aguçaria ódio dos seus inimigos nos embates que enfrentaria nos anos seguintes, e que, juntamente com outras ações ousadas, o levaria às masmorras da Inquisição. Como já foi aqui neste plenário muito bem explicado pelo Conselheiro Arnaldo Niskier, no documento em que expõe ao rei “o miserável estado do Reino”23 Vieira, em 3 de julho de 1643, sugere a anuência real para o retorno dos judeus mercadores de origem portuguesa, que, em suas próprias palavras “andavam por diversas partes da Europa”, e cujos

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capitais, de volta a Portugal, receberiam isenções fiscais e propicia-riam a reconstrução do reino e o fortalecimento da nova monarquia. Em 1646 ele voltaria à carga nessa matéria, em documento, também endereçado a D. João IV, no qual advoga “a favor da gente da na-ção”, pedindo a “mudança dos chamados ‘estilos’ empregados pela Inquisição nos interrogatórios dos acusados de heresia ou da prática de judaísmo”.24 Foi, ainda, batalhando pela recuperação do comér-cio ultramarino que Vieira propôs a D. João IV o primeiro negócio dentre os vários que, ao longo dos anos, apresentaria ao monarca, ou seja, segundo suas próprias palavras, “que em Portugal, à imitação de Holanda, se levantassem duas companhias mercantis, uma oriental, e outra ocidental, para que, sem empenho algum da real fazenda, por meio da primeira se conservasse o comércio da Índia, e por meio da segunda o do Brasil, trazendo ambas em suas armadas, defendido dos Holandeses, o que eles nos tomavam, e bastaria para sustentar a guerra contra Castela”.25

Em 1649, consegue do rei a autorização para o funcionamento da Companhia Geral de Comércio do Brasil, que passa a monopolizar o comércio do bacalhau, azeite, vinho e trigo. A presença da armada dessa Companhia nos momentos finais da insurreição pernambucana foi vital para a vitória luso-brasileira sobre os neerlandeses.

Mas voltemos ao tema central desta palestra. A preocupação maior de Vieira, exposta no Sermão de Santo Antônio, de 1642, era realizar a difícil união de desiguais, para que os Três Estados deixassem, se-gundo ele, “de ser o que são, para serem o que é necessário, e iguale a necessidade os que desigualou a fortuna’’.26 Nesse mesmo contexto, Vieira nomeia as responsabilidades de cada um dos corpos da nação no esforço para sustentar a independência, e reafirma a urgência de

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uni-los todos, no projeto maior de construção de um Estado e de uma monarquia fortes e sustentados pela aliança que, desde os pri-meiros tempos da nação, desde a Batalha de Ourique, amalgamava os portugueses a Deus. “Confiamo-nos em que a nossa restauração – escreve Vieira – é obra de Deus, e que Deus, que o fez, o há-de conservar; e eu assim o creio e o espero.”27

Como em todos os seus escritos políticos, Antônio Vieira tece, no jogo das palavras, uma argumentação fundamentada em sua teologia política, em uma dialética insuperável, construindo peças literárias que o colocam em situação destacada entre os grandes oradores sacros e políticos de todos os tempos. O tema central desse Sermão de Santo Antônio, como foi dito, são a reforma e a justiça tributária no Portugal restaurado. Contudo, objetivo a ser alcançado é muito maior, é con-vencer os estratos sociais do reino da necessidade de união de todos, do sacrifício de todos, para a manutenção de Portugal como reino independente. Interessa aos portugueses “conservar o recuperado”. Castela, por sua vez, quer “recuperar o perdido”.

Para explicar a razão do Sermão ter como patrono Santo Antônio, para ele “o melhor Filho de Lisboa, a Glória de Portugal, o sal da Terra” está no fato de que “deparar coisas perdidas é o gênio e a graça particular de Santo Antônio”. Para os estranhos, diz Vieira, “ele é o recuperador do perdido; para com os seus é conservador do que se pode perder”. Ele é o sal da Terra.

“O sal é o remédio da corrupção, mas remédio preservativo; não reme-deia o que se perdeu; mas conserva o que se pudera perder, que é o de que temos necessidade. (...) Quem diz sal, diz conservação.”

O Sermão era particularmente dirigido às Cortes que, pela segunda vez desde a Restauração se reuniriam para tratar das questões prementes

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de Portugal. Na primeira reunião das Cortes, diz Vieira, tratou-se de remediar o reino; nesta segunda trata-se de remediar os remédios.

“Quando os remédios não têm bastante eficácia para curar a enfermi-dade, é necessário curar os remédios, para que os remédios curem ao enfermo. (...) Mas perguntar-me-á alguém, ou perguntara eu a Santo Antônio: Que remédio teremos nós para remediar os remédios? (...) Os remédios, como diz a queixa pública, pecaram na violência (...). Pois modere-se a violência com suavidade, ficarão os remédios remedia-dos. Foram ineficazes os tributos por violentos, sejam suaves, e serão efetivos. (...) A costa de que se havia de formar Eva, tirou-a Deus a Adão dormindo e não acordado, para mostrar quão dificultosamente se tira aos homens, e com quanta suavidade se deve tirar, ainda o que é para seu proveito.

Se é necessário para conservação da Pátria, tire-se a carne, tire-se o sangue, tirem-se os ossos que assim é razão que seja; mas tire-se com tal modo, com tal indústria, com tal suavidade, que os homens não o sintam, nem quase o vejam.”

“Divina doutrina nos deixou Cristo desta moderação na sujeita ma-téria dos tributos. Mandou Cristo a S. Pedro, que pagasse o tributo a César, e disse-lhe que fosse pescar, e que na boca do primeiro peixe acharia uma moeda de prata, com que pagasse. (...) Pudera o Senhor dizer a Pedro, que fosse pescar, e que do preço do que pescasse, pagaria o tributo.” Pois por que dispõe que se pague o tributo não do preço, senão da moeda que se achar na boca do peixe? Quis o Senhor, que pagasse S. Pedro o tributo, e mais que lhe ficasse em casa o fruto de seu trabalho, que é o suave modo de pagar tributos. Pague Pedro o tributo sim, mas que seja com tal suavidade e com tão pouco dispêndio seu, que satisfazendo as obrigações de tributário, não perca os interesses de pescador. Coma o seu peixe como dantes comia, e mais pague o tributo que dantes não pagava. (...) Da boca do peixe se tirou o dinheiro do

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tributo; porque é bem que para o tributo se tire da boca. Mas esta diferença há entre os tributos suaves e os violentos; que os suaves tiram-se da boca do peixe; os violentos da boca do pescador.28

Após chamar a atenção para a violência com que se cobravam os impostos no reino de Portugal, Vieira passa a discutir a questão da jus-tiça tributária, perguntando, inicialmente “que indústria poderá haver para que os tributos se não sintam, para que sejam suaves e fáceis de levar? (...) Não sejam os remédios particulares, sejam universais: não carreguem os tributos somente sobre uns, carreguem sobre todos”. E segue apresentando a seguinte argumentação:

O maior jugo de um reino, a mais pesada carga de uma república são os imoderados tributos. Se queremos que sejam leves, se queremos que sejam suaves, repartam-se por todos. Não há tributo mais pesado que o da morte, e contudo todos o pagam, e ninguém se queixa, porque é tributo de todos. (...) Imitem as resoluções políticas o governo natural do Criador: o qual faz nascer o seu sol sobre os bons e maus, e vir a chuva sobre os justos e injusto.29

No final do Sermão, Vieira retoma a alegoria com que abre seu discurso. “Vós sois o sal da terra” para concluir sobre a distribuição igualitária dos tributos. Volta a jogar de forma maravilhosa com as palavras:

“Assim como o sal é uma junta de três elementos, fogo, ar e água, as-sim a República é uma união de três estados, Eclesiástico, Nobreza e Povo. O elemento fogo representa o Estado Eclesiástico, (...) elemento a quem todos sustentam, isento ele de sustentar ninguém. (...) O elemento ar representa o estado da Nobreza (...) e o elemento água representa o estado do Povo. (...) Amplifiquemos este ponto, como tão essencial, e falemos particularmente com cada um dos três estados:

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Primeiramente o estado Eclesiástico deixe de o que é por imunidade, e seja o que convém à necessidade comum. (...) Tanta é a imunidade das pessoas e bens Eclesiásticos: mas estamos em tempo em que é necessário cederem de sua imunidade para socorrerem a nossa necessidade. (...) O estado da Nobreza também é isento por seus privilégios de pagar tributos. (...) O Estado da Nobreza deixe de ser o que é por imuni-dade, e anime-se a assistir com o que não deve.” Vieira afirma que por duas razões os nobres devem contribuir: a primeira é “porque as comendas e rendas da Coroa, os fidalgos deste Reino são os que as logram e lograram sempre; e é justo que os que se sustentam dos bens da Coroa, não faltem à mesma Coroa com seus próprios bens”. A segunda está fato de que a nobreza fez a Restauração e, por essa razão, deve conservá-la.Para isso deve pagar impostos. Quanto ao povo, que tem a obrigação absoluta de pagar tributos, deixe de ser o que é “por possibilidade, e esforce-se para contribuir com o que pode”. E encerra com esta construção belíssima: cada um dos Estados da Nação “deix-ando de ser o que foi, alcançarão juntos a ser o que devem; sendo esta concorde dos três elementos eficaz conservadora do quarto”. Vós sois o sal da terra. “(...) A água deixando de ser água, faz-se sal, e o sal desfazendo-se do que é, torna a ser água. Neste círculo perfeito consiste a nossa conservação e restauração. Deixem todos de ser o que eram, para fazerem o que devem; desfaçam-se todos como devem, tornarão a ser o que eram. Este é em suma o espírito das nossas quatro palavras: Vois sois o sal da terra.” 30

Autores marxista, instigados com este Sermão, afirmam que Vieira, ao pregar esta forma de justiça distributiva, estaria defendendo a igualdade de classes. Não é nada disso. Ao afirmar que os três estra-tos sociais do reino de Portugal deveriam deixar de ser o que eram,

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Vieira não estava pregando uma revolução social. Para continuar a ser o que eram, deviam contribuir para conservar o reino independente. Deve-se também observar que o pensamento social e político de Vieira estava marcado por influências da tradição medieval, segundo a qual a Respublica Christiana, a Civitas Terrena era una, embora dividida em três estratos sociais: os que oravam, outros que combatiam e os outros que trabalhavam. Estas três partes, como diz o medievalista Jacque Le Goff, “coexistiam e não sofriam com a sua disjunção; os serviços prestados por uma eram condições da obra das outras; e cada uma, por sua vez, se encarrega de aliviar o todo.31

III

Concluindo, pode-se dizer que, apesar de todos os problemas que enfrentou, das campanhas e embates em que se meteu, com arrojo e paixão, da legião de inimigos que arregimentou ao longo dos anos em que exerceu destacado papel como conselheiro preferido do rei D. João IV, não se pode deixar de salientar e de admirar a contribui-ção de Antônio Vieira para a Restauração de Portugal como reino independente, e para a consolidação da Casa de Bragança, que quase dois séculos depois dos sucessos anteriormente discutidos, tangida pelos ventos da guerra, aportaria aqui no Rio de Janeiro e lançaria, de forma definitiva, os alicerces do Estado brasileiro.

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Notas

1. No plano externo a Espanha estava envolvida na Guerra dos Trinta Anos e, no contexto desta, na guerra para impedir a independência da República das Províncias Unidas dos Países Baixos. Este último conflito, que duraria 80 anos, era travado na Europa e nos pontos mais longínquos do Império Espanhol; internamente, o governo de Filipe IV enfrentava as Revoluções na Catalunha e em Portugal e, além disso, o governo do inepto Conde-Duque de Olivares mergulhara o país em gravíssima crise econômica.

2. De conformidade com os mandamentos da Companhia de Jesus, as Províncias Jesuítas espalhadas por todo o mundo devem enviar uma Carta Anua ao Geral da Companhia, relatando todas as atividades da Província e todos os acontecimentos de interesse da Ordem.

3. O texto completo da Carta Ânua redigida por Vieira está em António Vieira – Cartas coordenadas e anotadas por J. Lúcio de Azevedo. V. I, Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1997, p. 3-70.

4. VIEIRA, António. Sermão Pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as da Holanda. In:Textos Escolhidos. Lisboa: Editorial Verbo, 1971, p.13-33.

5. Ver CAPISTRANO DE ABREU, J. Capítulos de História Colonial (1500/1800). Rio de Janeiro: Sociedade Capistrano de Abreu – Livraria Briguet, 1969, p. 114.

6. Para um conhecimento aprofundado desse período decisivo da História de Portugal e do Brasil, consultar a excelente obra de Eval-do Cabral de Melo, O Negócio do Brasil – Portugal, os Países Baixos e o Nordeste, 1641-1669. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003.

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7. O Conde de Nassau, tão logo chegou a notícia do Tratado de Tréguas, celebrado em 12 de junho de 1641, entre o governo por-tuguês e os Estados Gerais, mandou ocupar o Maranhão, alegando que poderia fazê-lo, sem contrariar o que fora acertado na Europa, porque o referido Tratado não havia sido ratificado por Portugal, na ocasião em que tomara aquele território brasileiro. Este foi um ato de má-fé. Os holandeses ocuparam o Maranhão em 25 de novembro; o Tratado foi ratificado por Portugal em 18 de novembro de 1641.

8. Angola foi recuperada, em agosto de 1648, pelas forças portugue-sas comandadas por Salvador Correia de Sá, governador do Rio de Janeiro, cidade onde foi organizada a expedição de reconquista.

9. André Vidal de Negreiros, João Fernandes Vieira, Antônio Dias Cardoso, Henrique Dias e Filipe Camarão.

10. “Aos 29 de abril de 1641 me quiseram matar e me prenderam. (...) Parti para Lisboa e vi Sua Majestade” narrou o próprio Vieira. Comentando este episódio, registram António Sérgio e Hernani Cidade: “E mal viu venceu, como outrora César, conquistando logo o favor do rei e iniciando a carreira de grande homem público.” Ver VIEIRA, António. Obras Escolhidas. V. I. Livraria Sá da Costa Editora, 1951 (prefácio), p. xx-xxi.

11. AZEVEDO, João Lúcio de. História de Antônio Vieira. Tomo I. São Paulo: Alameda, 2008, p. 94

12. VIEIRA, Padre António. Sermão de S. Roque, III. (1652). Textos literários em meio eletrônico. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional. Sítio http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/BT2803052.html

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26 Car ta Mensa l • Rio de Janeiro, v. 54, n. 646, p. 3-28, jan. 2009

13. VIEIRA, Padre António. História do Futuro, v. I, X. Texto-fonte: Obras Escolhidas, Livraria Sá da Costa. Lisboa, 1953. Edição eletrônica http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/futuro1.html#CAPÍTUL0%20X

14. VIEIRA, Antônio. Sermão dos Bons Anos, pregado na Capela Real no dia 1/1/1642. In: Sermões, Tomo 2. PÉCORA, Alcir – (Org.). São Paulo: Hedra, 2003, p. 372.

15. VIEIRA, Antônio. Sermão de São Roque – 1652. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional. Textos Literários em meio eletrônico.

Sitio http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/BT2803052.html Consulta em 3/11/2008.

16. AZEVEDO, J. Lúcio. História de António Vieira. Lisboa: Clássica, 1992, v. I, p. 54.

17. Ver LINS, Ivan. Sermões e Cartas do Padre Antônio Vieira. Rio de Janeiro: Ediouro, 1966, p. 44.

18. Sobre a ação diplomática da coroa portuguesa na consolidação da independência, ver, BRAZÃO, Eduardo. História Diplomática de Portu-gal. V. I, 1640/1815. Lisboa: Livraria Rodrigues, 1932, p. 35-180.

19. Esta é uma questão histórica bastante controversa. J. Lúcio de Azevedo afirma que D. João IV apenas não fizera nada para impedir o inicio da insurreição e, da mesma forma, não a teria incentivado. Nesta mesma linha, C. R. Boxer assinala que o monarca português não deu consentimento expresso para a revolva. Muito ao seu estilo, o rei deixou ocorrer o levante para desautorizá-lo, caso viesse a fracassar. Evaldo Cabral de Mello, de forma contrária, afirma que D. João IV

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mandara fazer a insurreição. Mello chama a atenção para o documento escrito, em 1671, por João Fernandes Vieira, um dos principais líderes do levante, no qual ele deixa muito claro que D. João IV “lhe enviara ‘secretos avisos’ ordenando-lhe que ‘fizesse guerra aos holandeses’”. Cf. MELLO, Evaldo Cabral, op. cit. p. 56-57.

20. Ver VIEIRA, António. Cartas – coordenadas e anotadas por J. Lúcio de Azevedo. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1997, p. 71.

21. VIEIRA, Antônio. Carta ao Marquês de Nisa, datada de 11 de março de 1646. In: Cartas, volume I, p. 82.

22. Op. cit. p. 149.

23. Ver nota de J. Lúcio de Azevedo. In: VIEIRA, António. Cartas, volume I, p. 89.

24. NISKIER, Arnaldo. Padre Antônio Vieira e os Judeus. Rio de Janeiro: Imago, 2004, pág. 54.

25. Carta ao Conde de Ericeira, datada de 23/5/1689. In: VIEIRA, António. Cartas – V. IIII p. 574.

26. Idem, idem.

27. VIEIRA, António. Sermão Pelo Bom Sucesso de Nossas Armas, pregado na Capela Real em 1645, In: Sermões, Tomo 2. PÉCORA, Alcir – (Org.). São Paulo: Hedra, 2003. p. 258. Neste texto, p. 262, Vieira exorta a nação à mobilização para a guerra em defesa da na-ção portuguesa. E dirigindo-se ao Senhor, afirma: “Os soldados e capitães que a defendem, todos vão armados com este divino escudo

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28 Car ta Mensa l • Rio de Janeiro, v. 54, n. 646, p. 3-28, jan. 2009

que levam dentro do peito, dele só esperam a fortaleza e o valor e a ele só prometem referir a vitória. Vossos são e vosso o Reino por que pelejam.”

28. VIEIRA, António. Sermão de Santo Antônio. Pregado na Igreja das Chagas de Lisboa. 1642. In: PÉCORA, Alcir (Org.). Sermões. São Paulo: Hedra, 2003, p. 315-334

29. Sermão de Santo Antônio, 1642, op. cit.

30. VIEIRA, Antônio. Sermão de Santo Antonio. (1642) In: Sermões. Tomo 2. PÉCORA, Alcir (Org.). São Paulo: Hedra, 2003, p. 317-329.

31. Ver LE GOFF, Jacques. A Civilização do Ocidente Medieval. V. II. Lisboa: Editorial Estampa. 1995, p. 9-10.

Palestra pronunciada em 4 de Novembro de 2008

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29Car ta Mensa l • Rio de Janeiro, v. 54, n. 646, p. 29-85, jan. 2009

Aspectos Administrativos, Operacionais e Regulamentares da Crise Financeira Internacional de 2008*

Ari Cordeiro FilhoAdvogado

Antes de ir objetivamente aos trilhos administrativos, operacionais e jurídico-regulamentares em que penso ter havido descarri-

lamento, não posso deixar de me referir ao ativo mais relevante do mercado financeiro e de capitais, um valor que, apesar de intangível, é sua pedra angular – a confiança.

Decisiva para o extraordinário crescimento do comércio internacio-nal, o abalo da confiança atingiu inicialmente franjas do mercado de crédito americano, mas se propagou em ondas concêntricas para outros segmentos, em todo o globo.

Após inúmeras intervenções das autoridades nas principais jurisdi-ções, resta uma seqüela grave para todas as economias, que é a da contração do crédito, ainda presente no próprio coração do sistema

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internacional, entre bancos. Algum progresso já tem sido obtido, como se pode deduzir da redução da LIBOR (London Interbank Offered Rate), embora ainda esteja distante da taxa de um dia (noite) só (OIS).

Há uma natural pressão não só de entidades privadas como dos pró-prios governos, atualmente, no sentido de que os Bancos saiam do que é caracterizado como um imobilismo, na concessão do crédito. A forte concentração bancária brasileira em bancos oficiais, assim como a liberação de parte dos altíssimos depósitos compulsórios aqui vigentes (45% aprox.), contribuiu para amenizar um estreitamento mais sério do crédito baseado em disponibilidades internas.

O dilema aí é de delicada solução. Não pode o sistema financeiro atirar-se na concessão de crédito nos mesmos moldes de antes da crise. Não está disponível o mesmo volume de recursos. Não se vai, também, sair de um risco para compô-lo em um risco maior. É preciso sair da incerteza, entrar em uma fase de conhecer o novo contorno da estrutura de riscos do mundo econômico real.

Não é aconselhável, contudo, com a inércia, criar um problema novo, pela deficiência de giro do crédito, irrazoavelmente, prejudicando de forma circular toda a economia. Seria trabalhar contra a própria so-brevivência. Tudo é uma questão de medida, de crédito prudente.

Os bancos têm excelentes condições de auscultar a economia, de conhecer de antemão dados decisivos. Pode bem ocorrer que haja um grande círculo de negócios saudáveis e problemas mais localizados em setores ou franjas deles.

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Eles estão emprestando de novo, só que os recursos, no mercado internacional, são menores e os custos são mais altos. Resulta afetada a disponibilidade não exatamente por voluntarismos, mas:

• por sérias inadimplências reais ou potenciais, que levam a imobili-zação de recursos ou a novos aportes de grande vulto. Elos circulares de crédito foram interrompidos;

• por “alavancagens” imprudentes, ou seja, endividamento elevado com base em ativos proporcionalmente pequenos ou inadequados, estarem sendo desfeitas. Não dá mais para as instituições financei-ras contarem com a formação de grandes carteiras de títulos para absorver seus recebíveis hipotecários e comerciais de longo e médio prazo. A expectativa de captação certa de recursos, nos mercados de capitais, para formá-las tornou-se praticamente nula. Estancou-se este círculo expansionista do crédito;

• por falta de precificação e de liquidez de títulos já emitidos, recte pela necessidade de aportar garantias adicionais e mais custosas aos financiamentos ainda por pagar de tais carteiras;

• pela redução substancial ou anulação dos mecanismos de secu-ritização e repasse de créditos do sistema para outras instituições receptivas, para fundos, para investidores institucionais ou privados, para entidades fora da jurisdição original;

• por necessidades de rolagem substancial de obrigações importantes;

• pelo ressecamento do mercado de captação direta de recursos de curto prazo por empresas de primeira linha, via commercial papers, ou por leilões de títulos de estados, condados, municípios, universidades, aos quais os bancos davam liquidez diária. A ausência desta fonte

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pressiona o mercado de crédito por certas unidades antes atendidas, nos Estados Unidos e alhures;

• pela menor transferência de recursos para o sistema financeiro internacional por força da maior demanda nos mercados locais.

Recursos que antes estavam em circulação nos mercados buscaram refúgio em aplicações mais seguras e líquidas, no entender de seus detentores (flight to quality, flight to liquidity).

Obs.: No Brasil, havia atendimento regular das necessidades de exportadores por contratos bancários (ACC/ACE). A redução das linhas de crédito chegou a diminuir as contratações a um terço (1/3) dos números anteriores à crise. Atualmente, com medidas supletivas oficiais, a demanda existente passou a ter atendimento substancial.

As empresas tinham também acesso a antecipação de recursos de suas exportações futuras, em um esquema bem parecido com o que se entendia por swaps, na época da edição da Lei 4.595/64. Os seus recebíveis de prazo maior tinham mecanismos de aceitação no mer-cado internacional. Esta aceitação reduziu-se dramaticamente.

No Brasil, para proteger a médio (ou longo) prazo o valor das ex-portações (dólares x reais), não há disponibilidade de contratos de negociação padronizada em Bolsas de Futuros. No exterior os prazos são melhores mas não muito. Ou se negocia em Bolsa proteção para prazo mais curto (swaps, futuros de moeda, opções, quando há) e se vai renovando, com óbvios riscos deste hedge renovado de tempos em tempos (hedges sucessivos com defasagem de prazo), ou se parte para negociação chamada “de balcão”, individualizadamente, com instituições financeiras. Como a oferta é proporcionalmente pequena, surgiu campo para os derivativos em que a contratação de proteção

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cambial era feita com risco desbalanceado. Fizeram-se, também, contratos em valores excedente aos riscos a proteger, em face de uma tendência aparentemente firme de declínio do dólar (especulação). Com a crise e tendo o câmbio se tornado desfavorável (nos contra-tos), os valores e termos desbalanceados destes contratos passaram a pressionar o mercado de crédito, para cobertura, em reais, das perdas ou das chamadas de garantias adicionais (margens), tanto no mercado de balcão quanto nos contratos de Bolsa, em que se buscou garantia ou contragarantia. Progressivamente ajudaram a pressionar o próprio mercado cambial, contribuindo para uma desvalorização forte (exagerada) do real, até os dias de hoje.

O que normalmente deve presidir as decisões é o diagnóstico sobre o benefício efetivo do crédito, ou seja, saber se as atividades a financiar são economicamente viáveis, necessitando do crédito apenas para se aperfeiçoarem.

Na Carta Mensal, 457 (abril de 1993, p. 8), ao falar sobre “Função Social dos Bancos”, tive oportunidade de focalizar uma definição, aparentemente simplória, mas que me parece bastante elucidativa, nas atuais circunstâncias:

“O crédito é a confiança na possibilidade, vontade, solvência de um in-divíduo, no que se refere ao cumprimento de uma obrigação contratada” (F. Von Kleinwächter. In: Economia Política, 1956).

Esta responsabilidade em matéria privada se projeta em aspectos públicos da atuação dos bancos:

“Para ser útil, é necessário que se estabeleça uma relação de medida entre o ato de crédito e o desenvolvimento [saudável] do consumo...

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Sempre que se passa além dos limites da medida assim estabelecida, os resultados vêm inexoravelmente demonstrar que não havia senão excessos, e depreciação” [subseqüente]...

Mais adiante “...e, até, a esparsão do crédito, ao azar, sem critérios econômicos, pode ocasionar sério marasmo social...”

Sobre a atual relutância dos bancos em atender aos apelos para con-cederem crédito:

“O crédito pode criar a riqueza social se as condições são favoráveis, se as possibilidades de produção são aquilatáveis em função de diversos fatores, necessitando do crédito para arremate”... “Nos tempos de crise, as possibilidades de criação de riquezas se apresentam raras: pode haver superabundância de bens, aviltamento de preços, subcon-sumo, tesaurismo ou incerteza política”... “Controlado e verdadeiro, é o grande coadjuvante do desenvolvimento. Já o crédito à ineficiência é um grave pecado social.”

Na pré-crise, parece que o crédito foi serviçal efetivamente para criar riquezas sociais, um extraordinário ritmo de desenvolvimento da produção e do comércio internacional. Os mecanismos criativos engendrados serviram de base para o progresso, até mesmo para afastar a tão temida recessão após as crises globais do fim do século passado e a do início deste século.

É preciso não esquecermos das ameaças de recessão que pairavam sobre os EUA, e que estão na origem do crédito barato e farto san-cionado por medidas do FED americano.

Somos levados a crer em um problema de calibragem e timing ou de dificuldade de estabelecimento de medida, no correr dos fatos.

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Observou-se, em conseqüência, um fenômeno de endividamento em crescimento superior ao crescimento da renda dos indivíduos, sobretudo na jurisdição americana, que já ostentava um nível de endividamento de pessoas físicas bem alto em relação ao PIB. Em proporções menores, também houve excessos nos países europeus.

No que toca ao exercício da função social dos bancos, as economias globais aprenderam, de forma contundente, o preço a pagar pelos desvios ocorridos.

I) SINOPSE

Resumidamente, estas me parecem as principais matrizes causais, nesta crise, ensejando um pouco de luz sobre os pontos em que há possibilidade de ação regulatória.

Primeiro, trata-se de uma crise originária de decisões e fatos em patamar político e macroeconômico geral: temor de recessão nos EUA, no início do século, taxas de juros do FED, comércio interna-cional expandido, déficits/superávits acentuados em certos países, com formação de grandes montes financeiros, bolhas de vendas e de preços setoriais.

Os mercados, contudo, compuseram a crise. Recepcionaram e mag-nificaram fenômenos conseqüentes a decisões de autoridades mone-tárias. Veicularam por suas instituições e por instrumentos próprios uma expansão exagerada e inconsistente do crédito.

Segundo, nos mercados, tratou-se inicialmente, nos EUA e na Europa, predominantemente, de uma crise de principais e não exatamente de derivativos, no que eles são concebidos como instrumentos de

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proteção/transferência de parcelas dos riscos (liquidação por diferen-ça). Os títulos que incorporaram os valores de dívidas de difícil liqui-dação (subprime) eram títulos que continham dívidas por inteiro, não apenas dívidas de juros ou que se fossem liquidar por diferença. Havia uma importância só, correspondendo ao montante principal devido.

Distribuí para os Srs. Conselheiros um diagrama dos derivativos, nos quais se podem visualizar que alguns instrumentos utilizados no coração da crise. Situam-se entre os que conceitualmente são tidos como “instrumentos híbridos” ou títulos estruturados.

Não eram swaps de taxas, de moedas, de índices, de diferenças de preços de títulos, opções, contratos futuros. Logicamente, estes de-rivativos próprios prestam-se a proteger contra riscos, mas também podem ser utilizados especulativamente, ficando, assim, seus usuários sujeitos a riscos de mercado.

Conclusivamente, os “derivativos’ instrumentais do início da crise: na realidade, os títulos que incorporaram créditos subprime são mais compatíveis com títulos de renda comum, adjetivados por garantias de terceiros.

• Essencialmente, o instrumento foi a securitização. Títulos securiti-zadores até podem ser teoricamente considerados como derivativos, por terem seus valores derivados da consistência dos direitos que a eles se incorporaram. No entanto, parece-me apropriado, nas circuns-tâncias atuais, levar em conta que, na ponta do duto gerador da crise, a securitização foi predominantemente um processo de transporte e aglutinação de riscos principais. Ele já é conhecido do mercado, e esteve presente em outras crises, também no Brasil (crise das de-bêntures e das letras hipotecárias, século XIX e primeiro quarto do século XX). Foi utilizado aqui e alhures, por exemplo, no mercado

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imobiliário, sob a roupagem de cédulas e letras hipotecárias (garan-tias de hipotecas específicas ou de carteiras de hipotecas), e poderia estar presente hoje, no nosso mercado, em Certificados de Recebíveis Imobiliários e até em Cédulas de Crédito Bancário. Ou serem veículo de absorção por Fundos de Investimento Imobiliário ou por Fundos de Investimento em Direitos Creditórios. Felizmente, não aconteceu aqui um descontrole, por falta de oportunidade.

• Nos títulos garantidos por hipotecas, a garantia imobiliária de-sempenha um papel fundamental, a latere da solvência do devedor, influenciando ambos a cotação dos títulos. Preços cadentes de imóveis influenciam a vontade de pagar a dívida. Não se deve olvidar, contudo, que estas cotações não são inflexíveis e que pode haver ponderações mutáveis quanto à sua recuperabilidade.

Terceiro, inicialmente e em desdobramentos operacionais poste-riores, foram emitidos os chamados instrumentos híbridos ou títulos estruturados, com um valor de principal (risco direto) e retorno (risco secundário) não provenientes de cálculos aritméticos simples mas dependente de fatores variáveis, de garantias rotativas ou de operações matemáticas por vezes refinadas ou com fatores variáveis a mercado. Nos títulos estruturados (complexos), o retorno depende de cálculos adicionais.

Swaps de crédito (CDS – Credit Default Swaps), por exemplo, funcio-nam essencialmente como um seguro de solvência adaptado a um conceito de derivativo.

Com a evolução, desvelaram-se, igualmente, sem estar no centro da crise global, exposições especulativas a riscos de derivativos, por parte

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de empresas, além do objetivo esperável, de proteção (hedge). Tratou-se do uso de um instrumento que poderia prestar-se a fugir do risco mas que portava em si exposição a outro risco duplicado.

Quarto, nas ocasiões em que a utilização de derivativos foi vista como um fator de composição da crise, tratou-se de um instrumento, e não de uma causa, situada esta em decisões bem intecionadas das pessoas ou então em dolo ou culpa, por imprudência, imperícia ou negligência fora e dentro do sistema financeiro. Eles instrumentaram, em certas etapas, atuações pouco prudentes e dolosas.

Foi utilizada uma orientação aparentemente saudável – aquela de transferir riscos. Só que, por sua dimensão, não para investidores “mais capazes” e “dispostos” a assumi-los, como sugeriu Alan Greenspan, em 1998. Muitos investidores eram efetivamente “dispos-tos” a assumi-los por procurarem maiores retornos ou por obterem vantagens pessoais, como os administradores de recursos de terceiros. Outros, contudo, se mostraram “dispostos” por força de equívocos originários de má informação ou inconsciência quanto ao risco de descasamento de hedge.

Um pressuposto equivocado era o de que seria possível turbinar o crédito e transferir riscos, em elevada progressão e proporção, sem que eles reverberassem, sem que se transformassem em um boomerang letal para todo o sistema.

Já tive oportunidade de abordar este lado da questão em minha palestra anterior “Crise Sistêmica: de Derivativos ou de Principais?” (Carta Mensal, 537, 1999).

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II) SITUAÇÃO REGULAMENTAR EM NOSSOS MERCADOS

Até o momento, no Brasil:

a) Não se conseguiu introduzir, com sucesso, em nossa jurisdição, esquema de transferência de riscos substanciais e/ou temerários, que nosso sistema financeiro eventualmente tivesse recepcionado massiva e simpaticamente do mundo real dos negócios, tais como créditos mal deferidos, por sua alocação a empresas não reguladas ou menos reguladas, tipo sociedades de propósito específico, SIVs (Structured Investment Vehicles), ou fundos diversos (v.g. de recebíveis, de hedge), homiziando sua extensão e gravidade e seus efeitos reverberantes para todo o sistema. É verdade que instituições podem vender créditos de suas carteiras para empresas não reguladas, mas não consta, até o momento, que se trata de um processo vultoso de transferências com-binadas com créditos incestuosos concedidos a essas empresas.

b) Esquemas de possíveis transferências massiva e não transparentes de créditos mal deferidos para absorção em nosso mercado de ca-pitais, via securitização, não deslancharam no Brasil. Seja via títulos securitizadores tipo Cédulas de Crédito Bancário e outras cédulas, Certificados de Recebíveis Imobiliários, Cédulas Hipotecárias, seja via sua absorção por Fundos de Investimento Imobiliário, Fundos de Investimento em Direitos Creditícios.

c) Aqui, a jurisdição das autoridades supervisoras sobre instituições financeiras e do mercado de capitais é mais abrangente e compreen-siva de todas elas, sob as normas e supervisão unificadas das mesmas autoridades (Conselho Monetário Nacional, Banco Central do Brasil). Não há bancos de investimento sub-regulados, em comparação com

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bancos comerciais, ou com liberdade de altos índices de alavanca-gem; há menos oportunidades de escamotear riscos, como ocorreu nos EUA, em nossas paragens ou, pelo menos, não se apresentaram oportunidades aqui como lá.

d) Submetem-se todas as instituições a regras de tais autoridades quanto a limitações de operações, tendo como base multiplicadores em relação ao capital próprio (patrimônio de referência), devidamente ajustados em face de diferentes graus de risco com que opera cada instituição (risco de crédito e de mercado).

e) As regras brasileiras são rigorosas. Nosso limite de exposição está em oito vezes o patrimônio de referência, em face de até 12 vezes aceito pelo acordo de Basiléia. A prática das operações tem revelado, até, multiplicadores menores (em torno de seis); há um sistema de monitoramento indireto eficiente em linhas gerais.

f) As operações com valores mobiliários, inclusive derivativos, em Bolsas de Valores e de Futuros, as do mercado de balcão organiza-do, as de instituições do mercado de capitais (corretoras, bancos de investimento, distribuidoras), bem como de fundos de investimento de diversas naturezas (ações, renda fixa, multimercado e outros), sujeitam-se a normas da Comissão de Valores Mobiliários, que tem estado bastante ativa e atenta quanto a mecanismos que facilitem o desenvolvimento descontrolado de riscos operacionais de instituições, concentração e recepção inconsciente de riscos.

g) As operações com derivativos padronizados (futuros, swaps, opções) negociados em Bolsa de Mercadorias e Futuros ou Bolsas de Valores, têm um aparato de liquidação e garantias líquidas, por ajustes diários e requisitos de margens bastante eficiente, executado por Câmara de

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Liquidação e Custódia (e Compensação). Não se exteriorizaram, na atual crise, até o momento, deslizes em seu funcionamento regular, no rigor das exigências de garantias, na concentração excessiva de responsabilidades. Há um sistema de margens de garantia, reguláveis em função da volatilidade das cotações dos contratos, que mitiga evolução perigosa de riscos de crédito; os registros de operações são transparentes para as autoridades, tanto em termos individuais quanto em termos conglobados.

h) As operações de instituições do mercado financeiro e de capitais realizadas no mercado de balcão, ou seja, individualizadamente, entre instituições e partes, pessoas físicas ou jurídicas, devem ser registradas na CETIP (uma central de títulos privados). Existindo o registro, podem as autoridades ter ciência do seu nível de exposição no mercado interno, bem assim do de contrapartes, como um todo. Não existe um sistema administrador de liquidação, como nas Bolsas, embora possa ser contratada com a BM&F. O acautelamento de ga-rantias depende de cada instituição, podendo haver uma conferência cruzada com o que for informado por cada uma ao Banco Central, periodicamente. No caso, o sistema de gerenciamento de risco é o que cada instituição adota, com um diretor responsável, devendo ser informado à autoridade. Não é de conhecimento público a interação da autoridade com as instituições no tocante a este aspecto específico, no desenrolar das operações.

i) Logicamente, em mercados que estejam com preços inflados por bolhas especulativas, como no exemplo do mercado americano de imóveis, mesmo um sistema informativo periódico à autoridade não oferece uma transparência completa dos riscos, se não houver uma informação qualitativamente esclarecedora, bem como a simulação de cenários pessimistas, como os recentes. Às companhias abertas

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a CVM já recomenda tal transparência, em Notas Explicativas às Demonstrações Financeiras.

Se os subjacentes ou garantias, no mundo físico, estão superaprecia-dos, a transparência não é apta a emitir sinais de alerta e evitar crises. Tanto o método de marcação do mercado quanto o dos valores justos refletem situações estáticas, com pouca sensibilidade para seqüências que podem evidenciar proximidade de uma crise séria.

j) A solução parece residir não em normas de transparência, mas em normas substantivas de provisionamentos ou destinação de recursos a reservas especiais, para fazer face a situações anômalas de mercado.

Aí pode residir ou uma solução operacionalmente viável, ou, depen-dendo da mão, uma asfixia normativa do mercado e do desenvolvi-mento dos negócios.

k) No caso brasileiro, pode haver brechas na transparência quanto à real exposição das empresas ou instituições, se realizarem operações com títulos securitizadores de má qualidade ou com derivativos em outras jurisdições, sem revelar seus números internamente, aqui, no Brasil.

l) Prejuízos reais e potenciais de algumas empresas e de investidores, em aplicações especulativas de derivativos, não tiveram, até o mo-mento, o condão de abalar nosso sistema financeiro como um todo. Pressionaram, contudo, o mercado de divisas.

m) Redução de rentabilidade é possível, generalizadamente, no siste-ma financeiro, sobretudo pela contenção da expansão do crédito, e também por eventual aumento de créditos em liquidação.

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FALTA DE TRANSPARÊNCIA NÃO É CAUSA DA CRISE

• Na falta de transparência dos negócios não se situa, contudo, a causalidade das ocorrências, como já abordei na palestra publicada na Carta Mensal, 637, pelas regras vigentes. A transparência pode ajudar, e muito, na prevenção de novas crises, se houver normas apropriadas para as instituições e os títulos.

A contabilidade não se sensibilizaria diretamente com o risco dos créditos passantes de má qualidade incorporados aos títulos, nem com um risco maior de refluxo de risco generalizado para as instituições, ou com risco sistêmico em gestação, pela generalização das práticas incorretas. As classificações de crédito e fórmulas matemáticas que embasavam decisões não conduziam necessariamente a uma trans-parência esclarecedora dos riscos efetivos.

Em relação a condutas inadequadas de gestão, que tenham níveis de risco acima de limites suportáveis, fazem-se necessários mecanismos de advertência ou de transparência interna, para a administração, oportuna e qualificada, quanto a detalhes das operações, em docu-mentos produzidos com responsabilidade especificada em níveis administrativos apropriados. Tal providência pode estancar processos anormais, no nascedouro ou em evolução perigosa. Não se trata de sobre-regulação, mas de transparência mínima interna exigível em qualquer mercado de capitais, para que a administração possa assumir responsabilidade perante os investidores da existência e funciona-mento de controles internos.

• Não tenho qualquer ilusão de que, com normas atualmente existen-tes, supostamente de boa qualidade, se pudessem ter afastado riscos ou estancado procedimentos temerários.

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Exemplifico: não seria nada esclarecedora dos riscos envolvidos a transparência, em si, em matéria de preços dos imóveis financiados, que permaneciam como lastro da operação de crédito imobiliário. Isto porque a revelação dos preços de mercado, exata ou aproximada, apontaria para valores inflados, que não se imaginavam, em períodos anteriores, suscetíveis de uma desvalorização súbita. Preços de imó-veis costumam subir em centros urbanos, ao longo dos anos. O que é difícil é diagnosticar os limites de uma cultura especulativa de tais preços. A própria contaminação do volume de créditos mal concedi-dos (subprime), com as conseqüentes retomadas e o aperto do crédito, não seria de aferição preventiva tão óbvia e de eficaz estancamento.

Então, tanto a consideração dos preços de mercado (mark to market) quanto a do “preço justo” seriam imperfeitas e desnorteadoras, na situação anterior, dada a progressão paulatina dos preços dos imóveis. O mark to market poderia ser visto como um retrato instantâneo de uma situação transitória e, não, como um filme, mostrando parte de uma situação em desenvolvimento. Parece imperfeita e desnorteadora, também, a consideração a mercado ou por “preço justo” dos preços na situação atual, em plena crise, sem se conhecerem os seus reais contornos, sua extensão, seu direcionamento efetivo a segmentos do mercado, com diferentes gradações de risco. Em alguns destes seg-mentos, onde a inadimplência é pouca, o problema do menor valor das garantias se resolverá com o tempo. A situação pode evoluir no sentido de se distinguirem as situações de tais títulos problemáticos, em diferentes gradações.

Da mesma forma, não é uma transparência plenamente informativa declarar que um financiamento tem como hipoteca ou alienação fiduciária um imóvel x ou y, sem um sistema confiável de avaliações

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locais. Pelo que se presenciou no mercado, garantias são relativas. Deve-se ter uma noção de riscos para cenários adversos, com ava-liação periódica.

III) CENÁRIO DE FUNDO DA CRISE E CAUSAS MEDIATAS: TEMAS RELEVANTES

• Extraordinário crescimento do comércio mundial, em agilidade e em volume.

• Aumento da liquidez internacional. Formação de grandes reserva-tórios de recursos financeiros excedentes, por todo o mundo (espe-cialmente em alguns emergentes).

• Extraordinária interação global e desenvolvimento de megaprojetos.

• A taxa de juros do FED em níveis mínimos, face ao temor de recessão. Crédito fácil e barato nos EUA. Facilidades de crédito na Europa.

• Endividamento crescente dos indivíduos nos EUA em ritmo supe-rior ao crescimento da renda.

• Bolha especulativa dos imóveis. Valorização 100% em dois anos(2005/2006) nos EUA. Valor de patrimônio embasava novos empréstimos. Crise/bolhas em outros setores de consumo (auto-motivo, commodities).

• Estouro da bolha especulativa. Valores declinantes dos imóveis afetam também endividamento para consumo.

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IV) RECEPÇÃO PELO MERCADO FINANCEIRO E DE CAPITAIS

• Aumento da liquidez internacional causou pressão por geração de “produtos” para absorção por montes financeiros.

• Lei Gram Leach Bliley, nos EUA: grupos financeiros com ativida-des de bancos comerciais e bancos de investimento, conjuntamente, possibilitaram o processo de securitização massiva e distribuição no mercado. Bancos de Investimento com alta alavancagem (endivida-mento alto em face de patrimônio). Outras entidades não reguladas e auxiliares, com alta alavancagem (fundos de hedge, sociedades de propósito específico).

• Afrouxamento nos critérios de concessão de crédito (confiança baseada não na análise da solvência do tomador mas nas garantias: imóveis com valores crescentes).

• Desvinculação entre a concessão de crédito e seu monitoramento, pela fonte concedente do crédito. Crescimento e circulação dos cré-ditos subprime (exacerbado pela securitização).

Estes fatores estão abordados em minha palestra de abril de 2008, publicada na Carta Mensal, 637.

V) SECURITIZAÇÃO

a) Instrumentos (títulos) já utilizados no mercado. Aumento de sua utilização pela ativação de mecanismos de absorção: fundos de hedge, sociedades de propósito específico, dentro e fora da jurisdição, ve-ículos de investimentos estruturados (SIVs), instituições de outras jurisdições menos reguladas ou menos atentas.

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b) Multiplicação de títulos e obrigações, com base nos créditos securitizados – CDOs, títulos estruturados expandiam as disponibi-lidades para novos empréstimos (expansão do crédito, crescimento da alavancagem):

• CDO (Collateralized Debt Obligations): dívidas (debt) garantidas por outras obrigações ou por títulos que as incorporavam;

• “Títulos estruturados” (complexos), contendo obrigações que dependem de cálculos para se saber seu retorno efetivo em cima de um principal.

• CDS (Credit Default Swaps), essencialmente um seguro de crédito. Uma seguradora calculava os fluxos de recursos futuros de obrigações ou títulos de uma carteira, com base na solvência provável dos deve-dores, supostamente com “margem desprezível de erro”, por modelos matemáticos. Podiam ser, assim, estabelecidos fluxos prováveis de pagamentos, os quais ensejavam a emissão do swap e sua venda. As fórmulas para apreçamento do swap, para as seguradoras, não levaram em conta custos de reforço de margens de garantia, quando houvesse deterioração na cotação do título, bem assim o fato negativo de que aos swaps correspondiam obrigações no balanço das seguradoras, gerando baixas contábeis (custo maior de captação).

c) Outras modalidades de obrigações sobre obrigações, que compu-seram o exponenciamento do crédito.

Assim, as notas promissórias ou commercial papers emitidas por veícu-los estruturados de investimento (SIVs), instrumentos tipicamente de curto prazo mas que eram garantidos por títulos de mais longo prazo (Asset Backed Commercial Papers):

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• Alavancagem (endividamento) alta de instituições menos ou mal reguladas, como os bancos de investimento e fundos de hedge, pos-sibilitou maior absorção de créditos securitizados e dos títulos e obrigações acima. De se observar que a crise anterior, chamada de crise das “ponto.com”, não foi instrumentada por alavancagem, mas por lançamentos de ações (IPOs).

• Obtenção de classificação de risco pouco precisa ou incorreta, de agências de rating tanto para títulos integrantes da carteira quanto para a carteira, facilitando a alavancagem em cima da sua incorreta boa qualidade.

• Utilização de montes financeiros para expulsar do balanço a expo-sição real de instituições aos riscos de principais; criação de entidades fora da jurisdição (offshore) para contornar os limites regulamentares de endividamento: absorviam os títulos, mediante empréstimos das insti-tuições; reverberação dos riscos (retorno ao sistema em boomerang).

• Integração de fundos de hedge, altamente alavancados, na absorção dos títulos securitizadores, de títulos estruturados e de swaps de crédito.

• Instituições independentes e fundos de outras jurisdições integra-ram-se ao esquema de absorção, incorporando igualmente títulos securitizadores, títulos estruturados, swaps de crédito.

• Expansão do sistema de securitização, para aproveitamento por outros segmentos demandantes de recursos: recebíveis provenientes de cartões de crédito, créditos ao consumo, créditos de hipotecas co-merciais, créditos comerciais e até para obtenção de novos recursos, com outros fins, através de novos títulos ou obrigações garantidos por outras obrigações já existentes, como visto.

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• Até mesmo fundos soberanos de grande porte vieram a alocar porções substanciais de recursos em créditos hipotecários vendidos por empresas supostamente imunes ao risco, gerando um problema efetivo que foi contornado no âmbito internacional.

Com esta multiplicidades de aspectos, o enfoque de autoridades para solução dos problemas tornou-se problemático em patamares:

• Que valor dar aos imóveis garantidores, na base da pirâmide, no momento da procura da solução (antes ou depois de uma eventual execução)?

• Que valor atribuir ao crédito em atraso, com ou sem influência do valor dos imóveis garantidores?

• Que valor atribuir aos títulos representativos (securitizadores) do crédito, para efeito de aquisição ou de considerar como ativo pro-blemático (trouble asset), e que valor atribuir aos demais títulos neles baseados?

O programa de recuperação ou alívio de ativos problemáticos, nos EUA (TARP), enfrenta estes obstáculos a um adequado apreçamento dos ativos planejados adquirir. Deve-se ter em conta que os imóveis desvalorizaram-se em média 21% desde início de 2007 (preços pu-blicados). Não houve perda total ou substancialmente total como podem sugerir as depreciações nos títulos securitizadores.

Os financiamentos subprime não são perda total ou substancial, face à existência dos imóveis garantidores. Em 2008, a inadimplência do subprime está em torno de 19%, contra 6,41 % de inadimplência geral nos financiamentos hipotecários (de US$20 trilhões). Quanto ao percentual de imóveis que, em 2008, têm valor inferior ao valor

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da dívida, nos EUA, eles representariam 16% do total dos imóveis financiados, ou seja, 1 em cada 6.

Em relação aos créditos efetivamente irrecuperáveis, calcula-se que uma retomada de imóvel financiado propicie, nos dias de hoje, uma recuperação de pelo menos 50% do valor esperado, computados todos os custos. Já se encontram mecanismos de composição de dívidas com descontos importantes do valor do principal e refinanciamento a taxas baixas, por prazos longos (com pagamento de um imposto).

Existe uma dinâmica evolutiva que tem descambado para um cres-cimento progressivo das depreciações e aumento de ativos que se propõem elegíveis para o plano de recuperação. Além disto, há uma disputa sobre quem detém efetivamente os riscos. De modo que, após certo tempo sem estancar a crise no seu início, resolver os problemas pode revelar-se uma opção muito mais cara, se cumulativa:

• No patamar dos mutuários, aliviando as condições de pagamento para que sejam suportáveis as prestações: algumas instituições já começam a se movimentar neste sentido (Fannie Mae, bancos).

• No patamar das instituições, relativamente a valores, a problemas de precificação de títulos a adquirir e a saber quais títulos e quais instituições ou, mesmo, que valor de injeção de capital e onde alocar, para um real efeito positivo.

O pacote de socorro já aprovado pelo Congresso americano totaliza uma previsão de US$700 bilhões, com liberação de uma metade, subordinando-se a outra a uma prestação de contas da primeira. Os prejuízos contabilizados pelas intituições do mercado, até os dias atuais, ascendem a mais de US$900 bilhões, e o FMI prevê que as-cendam a US$1,4 trilhões. Estes números parecem até modestos em face das cifras trilhonárias muito mais altas que circulam pela mídia.

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É que aí se computam depreciações de ativos em círculos ampliados. Assim, por exemplo, as ações de empresas cotadas em Bolsa, no mundo inteiro, teriam sofrido uma desvalorização de aproximada-mente US$23 trilhões, o que seria um prejuízo na contabilidade de alguém. Os títulos securitizadores, igualmente, são hoje computados a valores arbitrários.

Daí porque o Secretário de Tesouro americano anunciou que, além dos recursos já utilizados na capitalização de instituições financeiras, seu propósito agora é utilizar os remanescentes US$350 bilhões do pacote já referido, para ativar o crédito fora do sistema (commercial paper, cartões de crédito, financiamentos de estudantes), uma provável medida compensadora do travamento do crédito dentro do sistema financeiro. Este propósito anunciado certamente terá de sofrer outros impactos antes de se tornar uma realidade.

VI) TERAPIAS: REGULAÇÃO NOVA NEM SEMPRE NECESSÁRIA

Indo por passos sugeridos pela seqüência acima:

a) Geração e deferimento do crédito: aparentemente, no caso das instituições bancárias, há necessidade de um maior e mais vincula-tivo enforcement das regras de boa técnica bancária. Já existem regras, tanto nos regulamentos das autoridades internas quanto no Acordo de Basiléia, ao qual a maioria das autoridades aderiu (nem todas). O valor da exposição a riscos de crédito integra um volume de exposi-ção máximo, dependente do grau de capitalização do Banco: há um multiplicador em relação ao capital próprio (patrimônio de referência), devidamente ajustado pela gradação de risco de cada crédito (pon-deração). A supervisão aí é facilitada pelos sistemas de informação gerados e sistematicamente comunicados.

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b) Deve se tentar que, junto com o refinamento de tais normas por uma quase autoridade supranacional, o Banco de Compensações Internacionais (BIS – Bank for International Settlements), se consiga adesão em todas as jurisdições.

c) Nas jurisdições regulamentares onde algumas instituições não são suficientemente reguladas e submissas a regras prudenciais (tipo bancos de investimento, nos EUA), deveriam submeter-se a regras de exposição máxima a riscos, tal como hoje já ocorre nos bancos comerciais.

d) No tocante a riscos de mercado (de taxas, de câmbio), juntamente com os riscos de crédito, deve-se estudar um sistema de provisionamentos, nas instituições, a modo do que se faz na Espanha, em épocas de crescimento do patrimônio líquido acima de certos padrões típicos de estabilidade. Tais provisionamentos destinam-se a constituir um colchão de amortecimento para períodos em que haja aumento de inadimplência ou situações de estresse de mercado. Estes provisio-namentos poderiam assumir a forma de reservas de lucros ou de contingências, com o fito de se adequarem aos padrões de contabi-lidade hoje existentes.

e) Deve ser reavaliado a diretiva de deixar ao critério de cada insti-tuição o sistema de acompanhamento e gerenciamento de risco. Sem atingir o poder de gestão de cada instituição, as normas cautelares podiam assumir uma nova configuração mínima de ponderações quanto ao valor contabilizado das operações e aplicações, de obser-vância obrigatória. De qualquer forma, tais modelos devem evidenciar e fazer transparecer para as autoridades supervisoras a exposição da instituição em situações de estresse de mercado, e sua capacidade de

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absorção; o BIS é o foro ideal para discutir e produzir estas normas, com ênfase em aspectos de transparência.

f) Quanto à securitização: estabelecer classificações claras de risco para títulos securitizadores de obrigações. Tais classificações devem constar no rosto dos títulos destacadamente.

g) Os destaques de face retro devem fazer transparecer, de forma clara e concisa, diferentes faixas de riscos dos devedores. No caso de se tratar de títulos de complexa elaboração e entendimento, deve haver uma designação genérica (tipo: “título complexo”) que os distinga dos demais, e até mesmo com designações quanto a serem impróprios para aquisição por investidores não qualificados, independente de conterem todas as informações que habilitem um investidor a avaliar o retorno e o grau de risco.

h) A tais títulos devem corresponder pesos variáveis, para fins de cálculo de exposição de uma instituição.

i) Quando tais títulos forem absorvidos por fundos de investimento do mercado financeiro e de capitais, os seus administradores devem responsabilizar-se pela aceitação destas classificações juntamente com as instituições vendedoras, reportando destacadamente aos investidores a influência deles no grau de risco e na própria liquidez da carteira.

j) Os fundos deveriam ser mais incisivos em destacar o seu próprio grau de risco, por classificações padronizadas. Estudos devem desen-volver-se para aferir da viabilidade de efetivar ponderação imediata nos valores dos títulos, uma vez ingressados em tais fundos, como opção, em face dos direitos dos investidores.

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k) Quanto a sociedades de propósito específico como expediente de esconder exposições a risco, o sistema repressivo precisa ser posto em prática e revisto, com o rigor necessário, à luz das experiências que motivaram a Lei Sarbanes Oxley.

l) Genericamente, quanto às CDOs e commercial papers com garantias de obrigações ou títulos, estabelecer uma transparência clara, concisa e destacada, em tais instrumentos, quanto aos créditos-base, sua gra-dação de risco, prazos dos créditos-base e sua compatibilidade com o prazo do título (v.g. CDO ou commercial paper de prazo curto com garantia de obrigação ou título de prazo longo). Esclarecer respon-sabilidade pelo acompanhamento dos créditos-base e pela evolução de sua liquidez da solvência dos devedores e do valor de mercado.

m) Quanto aos CDS (Credit Default Swaps), estabelecer, junto com as entidades supervisoras da área, os pressupostos-base mínimos a serem levados em conta para o estabelecimento do preço dos mesmos, bem assim a transparência que deva constar destacadamente na face dos títulos/instrumentos respectivos, inclusive em sistemas de liquidação que sejam criados pelos intermediários.

n) Exigir maior grau de envolvimento e responsabilidade não só dos administradores como de auditores, formuladores técnicos dos instrumentos/títulos que serão colocados no mercado, bem assim de empresas de rating, para que, a modo da Lei Sarbanes Oxley, eles declarem:

• Que existem e são viáveis sistemas de controle e gerenciamento de riscos.

• Que tais sistemas estão em pleno e responsável funcionamento.

• Que as classificações de risco decorrem de dados confiáveis.

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• Quais são os pressupostos utilizados em tais classificações, e onde estão disponíveis eventuais detalhamentos de formulações neles baseadas.

Conclusivamente, é bastante problemática a adoção uniforme de muitas destas diretivas, de forma ágil, no âmbito do executivo e do legislativo das diversas jurisdições. As recentes sugestões do G-20 incorporaram muitas delas e em março de 2009 espera-se algum avanço.

O que é mais concreto, no momento, é um desenvolvimento de entendimentos no âmbito do Banco de Compensações Internacio-nais (BIS – Bank for International Settlements), que já é um foro bem apropriado, em linha de continuidade ao que já se conseguiu até hoje nos Acordos de Basiléia (I e II), em termos de um grande número de jurisdições terem aceito ser partícipes de regras uniformes limitadoras de exposição a riscos pelas instituições.

Uma maior cooperação internacional pode ocorrer no tocante à adequada contabilização e transparência, conforme sugeridas. No âmbito das atuais estruturas decisórias de que resultou a adoção de normas contábeis uniformes (IFRS), é factível que os Chefes de Estado cometam a seus representantes uma qualificação das normas de transparência que incorporem estes desideratos.

VII) DERIVATIVOS

Esclareço, preliminarmente, que não leio a “magnitude” do mercado de derivativos por números que são freqüentemente citados e que se referem a valores referenciais (valores nocionais) e, não, a riscos efetivos assumidos. Uma operação de empréstimo, por exemplo,

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tem um valor de principal claramente definido, ou seja, o montante emprestado (e devido), que é conhecido como o “risco” inicial da operação. No caso de derivativos, é preciso distinguir:

Números nocionais não representam exposições reais... A quase totalidade dos derivativos significativos liquida-se por diferença de preços. Quando se noticiam bilhões, trilhões de dólares de operações com instrumentos ou contratos de derivativos, na realidade estão sendo exte-riorizados os números nocionais ou valores de principais referenciais, em cima dos quais se calculam dois fluxos financeiros distintos de índices, de taxas ou de preços de bens, que se liquidam por diferença.

Destarte, a exposição efetiva de uma parte a um derivativo pode ser um percentual de 2%, 4% de um valor nocional declarado, como é o comum, na maioria dos contratos bancários, que não sejam exóticos ou tóxicos.

É verdade que a especulação em commodities ou em moeda pode re-sultar em percentuais muito mais elevados de valor de liquidação por diferença: 40%, como ocorreu recentemente no mercado cambial brasileiro, em que o fluxo de variação do dólar ficou superior em 40% ao do real, em um curto período. E os derivativos contratados previam limites para o fluxo de valores do real e cálculo em dobro para a diferença, quando o fluxo dos valores em dólar fosse maior, a partir de um valor do dólar (target). Ou, então, podem ocorrer percentuais (provisórios) substanciais do principal, como no caso do credit default swaps (CDS), que são, na realidade, seguros de crédito. São altos em relação àqueles montantes de créditos em que há inadimplência (sem contar a possibilidade de recuperação), mas podem ser reduzidos em relação a uma carteira inteira. Quando seguradoras carregam posi-ções importantes de CDS de créditos ruins, como os subprime dos EUA, evidentemente sua exposição é alta, podendo levar a situações

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limítrofes. Pode haver também contaminação de cotações de títulos securitizadores de recebíveis hipotecários.

O ponto a ressaltar, contudo, é que os números nocionais publicados não representam um “giro” de operações, um risco assumido, que vem a ser um percentual deles. Estes nocionais, mesmo em mercados de futuros referenciados a bens, como moedas ou commodities-não entregá-veis (NDF – Non Deliverable Forwards) e liquidados por diferença – não têm relação com estoques físicos. Tratando-se de números referencias virtuais, em mercados especulativos, os montantes financeiros de nocionais são meras projeções do quanto se quer arriscar nas apostas (diferenças de preços positivas ou negativas). Estes montantes de apostas podem eventualmente influenciar os preços dos ativos físicos, inclusive por técnicas fraudulentas ou de manipulação.

A um mesmo montantes de ativo/passivo a proteger podem corres-ponder dois montantes nocionais (principais) iguais de derivativos. Assim, se uma empresa se protege com um contrato futuro de dólar, no montante principal de, por exemplo, US$ 10 milhões, através de um contrato de balcão com uma instituição financeira, esta mesma instituição financeira pode ir contragarantir-se com contratos futuros no mesmo montante em uma bolsa de futuros. No caso de aquisi-ção de posições especulativas em bolsa, os montantes de contratos em especulação não têm qualquer referência em ativos físicos, e sua limitação ocorre por necessidade de ter garantias suficientes de outros ativos (margem: dinheiro, títulos do Tesouro e outros) para a liquidação por diferença.

• Diversas opiniões localizam na utilização de tais instrumentos financeiros a causa ou uma das causas relevantes da presente crise econômcico-financeira.

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Pelos dados e informações de que disponho, penso tratar-se de uma visão desfocada, uma redução fenomenológica, centrar o nexo causal em instrumentos e não em atitudes perante o risco. Consideram-se fatos isoladamente, instrumentais localizados, desprendidos de um quadro causal geral.

Nas atuais circunstâncias, parece-me que os derivativos não são a causa da crise. Podem adicionar elementos de crise, quando se desvelam algumas práticas recepcionistas de distorções, no mercado financeiro. Ou quando se torna transparente que, no embalo da euforia geral, muitos agentes do mercado e empresas mergulharam fundo, já há algum tempo, na especulação com títulos e valores, entre os quais contratos de derivativos, instrumentais de especulação em mercado-rias (commodities) e em moedas, que ocorreriam igualmente, aqui ou alhures, sob a mesma ou sob outras formas, entre as mais propícias.

Derivativos existem, e estão aí há tempos nos mercados globais. Até nossa lei de reforma bancária, Lei 4.595, de 1964 (!), continha a expressão swaps, literalmente, em idioma estranho ao oficial, para determinar que compete ao Conselho Monetário Nacional regular seu uso (art. 4º, inc. XXXI). A especulação por contratos em que não existe entrega (de moeda ou commodities, p. ex.), com liquidação por diferença, pode ser um modismo, como por vezes sucede com o mercado físico de ações. Apenas povoa seus desdobramentos e é apenas parcela integrante da recepção, pelo mercado de capitais, de desdobramentos de uma crise mais ampla e profunda.

Indo por etapas, vejamos primeiro aspectos relacionados aos deriva-tivos. Ao depois, sua presença na atual crise.

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VII.1)

Contratos, títulos ou valores mobiliários são tidos genericamente como “derivativos” por terem seu valor (financeiro, econômico) derivado (sic) do valor de bens, serviços, direitos, reais ou meramente virtuais, bem assim de taxas ou de índices, usados como referenciais (subjacentes). Estes subjacentes (mercadorias, moedas, taxas de juros, valores mobiliários, índices de preços ou de bolsas) determinam ou in-fluenciam os valores dos derivativos que os têm como referenciais.

Em outra palestra de junho de 1994 (“Os Derivativos e a Legislação Comparada” Carta Mensal, 472), como resultado de um périplo por mim realizado para conhecer in loco o funcionamento e as regras, fiz uma abordagem do tratamento legislativo em diversos países: EUA, Inglaterra, França, Cingapura, China (Hong Kong), Japão Canadá.

Foi ali lembrada a importância atual atribuída aos derivativos, de-corrente de sua utilização para administração de riscos, mas que eles se prestam também a atividades especulativas e que é preciso ter atenção para com o seu real funcionamento e seus desdobramentos. Resumindo, ao final da palestra (p. 58):

O mercado de derivativos é de extraordinária importância para ad-ministração de riscos. Riscos importantes que ele próprio [o mercado de derivativos] representa dizem respeito aos que nele operam com objetivo de assumi-los [riscos], ou sem conhecimento de seu modus operandi.

Os derivativos podem ser utilizados para proteção, salvaguardando valores de ativos ou limitando exposições no passivo. Podem, con-tudo, ser também instrumentos pelos quais uma parte assume risco nu de variações de preços destes instrumentos (ou indiretamente dos itens referenciais subjacentes). Na grande maioria destes últimos

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casos, trata-se de uma postura consciente dos riscos, motivada pela ambição de ganhos substanciais. Em alguns, pode tratar-se de relativa ignorância quanto aos instrumentos utilizados e consciência quanto a seus desdobramentos, em situação de estresse.

Foi materializado com exemplos a dúplice visualização que tais ins-trumentos podem assumir:

a) A utilização de derivativos pode ser, até, considerada um dever de prudência:

A Resenha BM&F (Fev./Mar. 93) em artigo de PEDRO CAR-VALHO, conta a interessante sentença de 2ª instância no Estado de Indiana, nos EUA, em que a Corte condenou a administração de uma cooperativa de grãos por não ter usado instrumentos disponíveis de hedge no mercado, considerando a administração negligente (p. 49).

b) A utilização de derivativos pode assumir a configuração especulativa, com riscos econômicos e também jurídicos, não só para os que os to-mam como para os que os oferecem. No caso de empresas industriais ou comerciais, é preciso atentar para o objeto social, para saber em que medida existe autorização estatutária implícita para a administração entrar em derivativos especulativos, em excesso ou sem ativos ou pas-sivos reais a proteger (em que eventuais perdas sequer são dedutíveis do imposto de renda), em face dos parâmetros da lei societária.

No caso de entes públicos, não há autorização implícita para que entrem em derivativos de forma especulativa, ou não. Deve haver previsão legal, em hierarquia própria. Há países em que se lhes per-mite contratar proteção na exata medida de ativos ou passivos reais referenciais, em consonância com normas estritas (v. g. França).

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Na p. 45, foi trazido o caso do London Borough of Hammersmith and Fulham, em que a U.K House of Lords decidiu, como instância final, que a capacidade de um governo local tomar emprestado não se confundia com a de contratar swaps, mesmo para fins de proteção (hedge), considerado, até, um derivativo especulativo! Em conseqü-ência, a administração não foi considerada vinculada, com um pre-juízo considerável e retroativo a cerca de 75 instituições financeiras (US$175 milhões).

c) A assunção de riscos pode assumir formas efluentes ou dinâmicas, como no caso de não serem os derivativos compatíveis com os ativos ou passivos a proteger: se houver disparidade de prazos (derivativos de prazos menores ou maiores do que os prazos dos itens a prote-ger) ou disparidade de tamanho (derivativos maiores ou menores em valor do que os itens a proteger). Há casos clássicos como o da MetalGeselschaft.

A literatura do mercado já é abundante em casos de uso indevido dos derivativos: Codelco (Chile); Banco Barings (Inglaterra); Société Générale (França), e vários outros com vultosos prejuízos.

Na anterior crise asiática, manifestei-me a propósito de crises globais (palestra de julho de 1999, sob o título: “Crise Sistêmica, de Deriva-tivos ou de Principais?”, Carta Mensal, 537, p. 48):

A questão posta é trifacetada: saber se o mercado de derivativos, por sua magnitude, é causa da crise ou se a crise o atinge, em conseqüência, ou se ele adiciona elementos à crise, concomitantemente... Tudo indica que a crise, iniciada em países asiáticos (Tailândia, Coréia, Malásia, Indonésia), atingindo gravemente a Rússia, e contaminando o Brasil, não foi uma crise devida aos mercados referenciados de derivativos,

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e, sim, uma crise de confiança estribada em deficiências financeiras físicas das economias em questão. Atingiu indistintamente ativos e passivos financeiros físicos de propriedade ou titularizados por entes públicos e privados dos países, a começar pela moeda. Entre ativos e passivos, estão os contratos ou instrumentos derivativos, em proporção reduzida, no total.

VIII) CRISE SISTÊMICA

Vamos aproximar-nos do que se entende por crise sistêmica, um conceito que, aqui no Brasil, em crises passadas, se tentou desprezar como lana caprina.

a. Transcrevo trecho de minha palestra de 1 julho de 1999, publica-da na Carta Mensal, 537, (p. 41), sob o título “Riscos Sistêmicos: de Derivativos ou de Principais?”:

O Relatório publicado em 1992 pelo Bank for International Settle-ments – BIS, conhecido como PROMISEL REPORT, considera como RISCO SISTÊMICO: “O risco de que uma ruptura (numa empresa, num segmento do mercado, num sistema de liquidações etc.), cause dificuldades generalizadas em outras empresas, em outros segmen-tos do mercado ou no sistema financeiro como um todo.” Uma CRISE SISTÊMICA seria uma “perturbação que danificasse seriamente o funcionamento do sistema financeiro e, no seu grau máximo, causasse sua completa paralisação”.

Crises sistêmicas podem originar-se de várias formas, mas, em úl-tima análise, “elas danificariam pelo menos uma das três funções fundamentais do sistema financeiro: 1) a alocação do crédito; 2) pagamentos; e 3) a precificação dos ativos financeiros”.

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Da mesma palestra de 1999 (p. 41):

“... as atuais estreitas vinculações entre mercados financeiros globais tornam mais fácil a irrupção de uma crise sistêmica...”

Para registro, ocorreram rupturas difusamente, em várias institui-ções, nos principais mercados financeiros e de capitais do mundo: EUA e Europa. A gravidade desta ruptura pode aquilatar-se pelo fato de somente uma dentre as grandes instituições que quebraram, o banco de investimento Lehman Brothers, com 158 anos de ativida-de, ter ativos de US$639 bilhões, cerca de 26 mil empregados e 62 escritórios no mundo.

É um valor muito grande (metade do PIB brasileiro), e as repercus-sões são formidandas.

Na Europa, igualmente, gigantes bancários e do crédito imobiliário foram estatizados, como medida de emergência temporária, ou foram conven-cidos a receber injeção de capital por participação acionária do Estado.

O crédito estagnou-se na própria cúpula dos sistemas financeiros das grandes economias e também de economias menores, mesmo aparen-temente sem vinculações fortes com os fenômenos causais da crise. A precificação dos ativos financeiros resultou sem parâmetros válidos: não se sabe o quanto valem os ativos baseados em hipotecas, não se pode vendê-los. Outros ativos, em ondas concêntricas, foram atingi-dos, de tal sorte que se produziu um semi congelamento geral.

Mais recentemente, após decididas intervenções dos governos da União Européia, o interbancário vem ativando-se lentamente e até a taxa LIBOR já experimentou algum declínio, o que significa que o mercado interbancário já começa a fluir.

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IX) QUE TIPO DE CRISE TEM O BRASIL

SISTEMA FINANCEIRO – O sistema financeiro brasileiro tinha sofrido bastante, até meados da década de 1990, com o término de dé-cadas de inflação crônica. Fora saneado (PROER), e vinha operando conservadoramente, regido por normas prudenciais (Acordo de Ba-siléia) adequadamente implementadas. Alguns exageros na concessão de crédito – prazos elastecidos para financiamento de automóveis e imóveis – estavam em fase embrionária, mas eram localizados e não chegaram a se constituir em massa crítica.

O Brasil não exterioriza crise sistêmica em seu sistema financeiro. Sofre, contudo, conseqüências, com o enxugamento de certas fontes e estreitamento de crédito, como já abordado.

Além do estreitamento do crédito, o mercado financeiro se vê mais pressionado por demanda de empresas que contavam com capitalizar-se via mercado de ações ou, então, recorrer ao mercado de debêntures, ou a fundos de recebíveis, o que foi frustrado ou teve perspectivas reduzidas, desde o 1º semestre de 2008. A capitalização da Cia. Vale do Rio Doce é um caso isolado de lançamento substancial.

Por seu turno, muitas decisões de investimento antes tomadas ou projetadas restam na expectativa de clareamento de horizontes. Di-nheiro com que se contava como quase certo, portanto, fica apenas na expectativa, causando paralisia em muitas decisões. Algumas de-cisões estão prejudicadas por fatos internos das empresas e outras dependem fundamentalmente de uma melhoria global da situação econômica mundial, o que é difícil de se diagnosticar, no momento, ou de saber em que setores.

Diversas atividades dependentes também restam prejudicadas, até no campo cultural.

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O fluxo de investimentos diretos, ou seja, aqueles que aqui aportam em moeda estrangeira sem objetivo apenas de aplicação financeira em renda fixa ou em Bolsa (portfolio), teve um comportamento positivo neste ano, com saldo líquido de entradas de US$34,747 bilhões. Para este ano não se prevêem reversões, mas o fluxo será contido, res-tando incógnito o que se passará ano que vem, em face das decisões de investimento que serão tomadas em caráter global. Tratando-se de “dinheiro marcado” para projetos específicos, sua influência no período de crise pode ocorrer pelo lado negativo, ou seja, se não entrar o previsto, os projetos ou param ou pressionam o mercado interno de crédito.

Os investimentos estrangeiros em portfolio (títulos e valores) tiveram este ano um saldo positivo acumulado de US$2,506.00 bilhões, até outubro (entre ingressos e retornos), mas o seu efeito na disponibi-lidade nova de recursos tem sido apequenado, sobretudo no tocante a lançamentos de ações (IPOs). Já foi bem mais alto o saldo e em outubro, houve fortes retiradas, no montante de US$7,943 bilhões.

NOSSAS BOLSAS DE VALORES

• As bolsas são um local de negociação para ações e outros papéis. Os proprietários destes títulos, que desejam fazê-lo, seja para vender, seja para adquirir, têm ali um ambiente regulado em que a oferta e a procura podem melhor confluir, para formar um preço justo na-quele momento. Neste sentido, é fundamental que funcionem como mercados ordeiros e contínuos. Tanto a desordem de mercado, por artificialismos ou fraudes, quanto a descontinuidade são pecados fundamentais em sua existência. O fechamento de uma Bolsa seria um fato anômalo, ainda que por período restrito, como aconteceu no caso do ataque à Torres gêmeas em Nova Iorque, em que os próprios sistemas de comunicações estavam afetados. A descontinuidade pode

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trazer lesões gravíssimas ao apreçamento dos valores, aos direitos das pessoas, aprofundar pânicos e quebrar um elo importante da circulação do dinheiro na economia.

As Bolsas refletem normalmente as crises não só da economia, em geral, como do sistema financeiro em particular.

É esperável que elas, no momento atual, espelhem a crise geral, com fidelidade.

Os reflexos nelas, contudo, podem adicionar elementos negativos a uma situação de crise. Elas integram conjunto de efeitos-riqueza, ou seja, quando vão bem ou funcionam regularmente, com volatilidade esperável, os negócios fluem melhor, os indivíduos sentem-se enco-rajados a consumir (e a endividar-se, alavancados por seu patrimônio crescente), as empresas levantam capital e se efetivam negócios e mega negócios mediante troca de ações.

O que é inadmissível é que sejam sede de fraudes ou manipulações indevidas. Na crise atual, seria de se esperar que houvesse reflexos na bolsa brasileira, em face de fatores negativos, uma vez que suas mais importantes ações são negociadas em mercados globais, sujeitando-se aos seus humores. O fato de algumas de nossas principais ações terem boa liquidez funcionou em detrimento de suas cotações, já que, no âmbito dos mercados internacionais, necessidades prementes de caixa ou a preferência por qualidade (flight to quality) significou o desfazimento de posições em ações para se aplicar em títulos consi-derados mais seguros, como os títulos do Tesouro americano ou de alguns países europeus. Estas pressões de vendas sobre ações líquidas se fazem sobretudo nos ADRs, que são certificados de depósito de ações brasileiras negociados nos EUA.

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VENDAS A DESCOBERTO

No momento brasileiro, penso ser pertinente avaliarem-se exageros artificiais de baixa nas cotações, mediante fenômenos endógenos e oportunistamente pouco saudáveis do próprio mercado, como o das vendas a descoberto. Vendas a descoberto, para os não iniciados, são vendas de valores, sem se ter a sua propriedade, no momento da venda. Os títulos podem ser alugados de terceiros. A Caixa de Liquidação e Custódia da Bolsa tem os registros de títulos disponí-veis para venda (ou aluguel). Em princípio, então, como, no Brasil, os títulos hoje são necessariamente nominativos, este aluguel acaba afetando tais registros de disponibilidade, e na Caixa de Liquidação da Bolsa se sabe o quanto de títulos está sendo alugado. Estabelece ela limites quanto ao montante de títulos que pode ser alugado (3% do total em circulação no mercado) e garantias (atualmente em 130% do valor dos títulos alugados).

Nos EUA, considerado como o mercado-símbolo da liberdade, suspenderam-se, recentemente, por certo tempo, as vendas a desco-berto de ações de instituições financeiras, por se terem tornado um instrumento de desassossego de seu mercado e de procedimentos visando à deterioração intencional de cotações. Elas estavam cola-borando para aprofundar a crise sistêmica, naquela jurisdição, e as autoridades não tiveram dúvidas de adotar providências restritivas.

Em 1971, na grave crise do mercado brasileiro, em que havia grandes quantidades de títulos ao portador e físicos em custódia nas insti-tuições, as autoridades tomaram conhecimento e coibiram, quando informadas, práticas de intermediários, que chegavam a vender e entregar títulos de clientes, em vendas a descoberto, sem autorização ou contrato de aluguel, para posterior reposição.

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Parece-me que uma pesquisa acurada deva ser feita sobre o volume de vendas a descoberto e de day trades sua influência nas cotações, levando em consideração a quantidade dos papéis-alvo que é efe-tivamente negociada diariamente, pois 3% pode ser um montante consideravelmente influente em um mercado já com tendência ao desânimo ou até ao pânico. Dependendo da hora e das circunstâncias do pregão, uma presença alardeada e consistentemente vendedora destes 3% pode ser um referencial decisivo de deflagração de um movimento apelidado de “manada”. Tal como nos “estouros” iniciais das manadas, não é preciso um percentual significativo dos títulos em circulação para abalar o equilíbrio, em tais épocas. Aos 3% podem adicionar-se imediatamente, pelo efeito-demonstração, outros tantos percentuais dos que podem vender sem aluguel, operações de day trade no mesmo sentido, talvez com os mesmos propósitos especulativos oportunísticos e iguais efeitos.

Obs.: Numa operação day trade, pode-se vender uma ação de manhã, aproveitando o mesmo sentido de uma “manada” de baixa, e se re-compra ao fim do dia, por um preço menor, com lucro, mantendo-se uma posição anterior.

Indicativamente, o propósito de estabelecer restrições às vendas a descoberto, na MP 443, levou a uma recuperação razoável do mer-cado, em curto intervalo de tempo e em pregões consecutivos. A justificativa de que esta ameaça de inclusão na MP levou as pessoas a comprar os títulos, “antecipadamente”, não parece portar elementos comprobatórios mais convincentes quanto ao aspecto de “manada”.Se, no conjunto, a reversão destes 3% máximos levou a uma valoriza-ção em pregões consecutivos inédita, para os tempos atuais (36%), o raciocínio de que, no movimento de vinda, elas também capitanearam a baixa não fica prejudicado.

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Seriam, assim, nocivas e injustificáveis, em épocas de crise como as que vivemos. Um instrumento odioso de desbalanceamento artificial de oferta, de aproveitamento do pânico de não iniciados, exponen-ciando suas perdas. Em tais ocasiões nada adicionam e só abalam o desiderato de um mercado justo e ordeiro.

Posso estar equivocado, mesmo porque, nos dias atuais, nos surpreen-demos diariamente com a revelação constante de fatos novos. Não me convenço de sua neutralidade ou utilidade, pelos dados que conheço.

Em outros mercados inquietos, como o de Hong Kong, adota-se a regra de permitir vendas a descoberto apenas com mercado em alta (ticker up).

INVESTIDORES ESTRANGEIROS

É corrente a convicção de que a atual desvalorização do mercado, no Brasil, tem muito a ver com a fuga de investidores estrangeiros. É que, nestes dois últimos anos, aumentou substancialmente a sua presença nas negociações bursáteis.

Vamos estudar alguns números relativos ao Ibovespa em dólar, fluxo de recursos de estrangeiros, operações em bolsa destes investidores e valor de sua carteira.

O Ibovespa, desde 2005, teve uma evolução, em reais e em dólares (aprox.), conforme abaixo:

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PERÍODO IBOVESPA IBOVESPA em REAIS (pts.) em US$ (pts.)

JAN. 2005 24.351 9,042

JAN. 2006 38.382 16,879

JAN. 2007 44.641 20,875

JAN. 2008 67.868 40,185

MAIO 2008 72.592 43,717

SET. 2008 49.541 27,529

OUT. 2008 37.256 17,146

07/11/2008 36.665 16,966* (aprox.)

21/11/2008 31.500 12,952 (aprox.)

Abstraindo-se impostos e custos de transação, a aplicação numa carteira de ações brasileiras que tivesse o valor em dólares, por exemplo, de US$ 9,042.00, em janeiro 2005, se fosse mantida intacta (supondo-se que o Ibovespa tivesse a mesma constituição), em maio de 2008, ensejaria uma remessa de US$43,717.00 (4,83 vezes o valor aplicado).

Mais para trás, desde janeiro de 2003 (Ibovespa em US$ 3,182), o valor até o pico de maio de 2008 seria multiplicado por 13,73 vezes.

No quadro acima, tomando-se janeiro de 2005 como base, teria havido lucros razoáveis em todo o período. Até mesmo em 7/11, o multiplicador seria de 1,87: 87% em quase quatro anos, ou 21,75 a.a. Em 21/11, o multiplicador seria 1,43: 43% ou 10,75% a.a.

Entretanto, em curto e médio prazos, internamente dentro do período, houve diferentes constatações.

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Entre maio de 2008 (pico do Ibovespa) e outubro de 2008, a desva-lorização do Ibovespa, em dólar, é de 61,8% ou seja, uma carteira ideal de ações integrantes do índice Bovespa (Ibovespa) teria, em outubro de 2008, um valor equivalente a 39,2% do que ela valia no pico de valorização do mercado (maio de 2008), quando o dólar estava a R$1,66.

O valor em 21/11/2008 (US$12,952,) seria substancialmente inferior àquele do pico de maio de 2008 (Ibovespa máximo, US$43,717.00 e dólar a R$1,66). Corresponderia a 29,62% do valor de maio de 2008!!! Uma desvalorização de 70,38%. Um senhor prejuízo!!!

Obs.: Correspondentemente, a capitalização (valor de mercado das ações) das empresas negociadas em Bolsa, no Brasil, apresenta a seguinte evolução:

PERÍODO REAIS (aprox.) US$ (aprox.)

(milhões) (milhões)

JAN. 2005 871.281,00 323,535.00

JAN. 2006 1.292.000,00 568,200.00

JAN. 2007 1.582.000,00 740,000.00

JAN. 2008 2.276.000,00 1,283.000.00

MAIO 2008 2.577.000,00 1,552.000.00

SET. 2008 1.787.000,00 993,365.00

OUT. 2008 1.383.000,00 625,790.00

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COMENTÁRIOS ARTICULADOS COM O VALOR DE INGRESSOS E RETORNO E VALOR DA CARTEIRA DE INVESTIMENTOS EM CARTEIRA POR ESTRANGEIROS (PORTFOLIO)

Já seriam anti econômicas atualmente as liquidações (para remessas) de investimentos em ações feitos desde 2006, como raciocínio ge-nérico, baseado nos valores do índice. Falo em raciocínio genérico, porque o índice Bovespa é uma referência geral (uma carteira teórica das ações com mais liquidez), não refletindo necessariamente inves-timentos feitos em ações específicas, que podem ter dado retorno diferente. Algumas ações podem ter tido uma desvalorização mui-to superior, em períodos menores, como as que foram objeto de lançamentos iniciais (IPOs), e que tiveram grande participação de subscritores estrangeiros.

Para ações, se entrarmos em consideração com o custo de opor-tunidade (retorno que se teria em aplicações altenativas), o termo (mês) inicial poderia recuar um pouco. Então, hoje, como raciocínio genérico, para aplicações realizadas a partir de janeiro de 2006, a motivação para vender pode ser de necessidade premente de caixa no exterior, realização de prejuízo em limite estabelecido (stop loss) ou pânico, mesmo (hipótese que me parece menos plausível, na maioria dos casos).

Vejamos, então, se podemos estabelecer algum raciocínio articula-do com os números relativos a investimentos de estrangeiros, no Brasil.

• O saldo de Investimentos em Carteira (Portfólio: ações, renda fixa e outros) por estrangeiros era até setembro de 2008 (último dado disponível no site da CVM):

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PERÍODO AÇÕES (e %) RENDA FIXA (e %) CARTEIRA (US$ milhões) (US$ milhões) (US$ milhões)

JAN. 2005 $25,586.00 (89,34%) $2,563.00 (8,95%) $28,640.00

JAN. 2006 $63,730.00 (86,98%) $4,769.00 (6,51%) $73,270.00

JAN. 2007 $85,197.00 (81,42%) $18,165.00 (17,36%) $104,640.00

JAN. 2008 $149,069.00 (75,57%) $42,637.00 (21,61%) $197,260.00

MAIO 2008 $200,886.00 (76,05%) $55,788.00 (21,12%) $264,150.00

SET. 2008 $109,835.00 (63.78%) $55,021.00 (31,95%) $172,210.00

OUT. 2008 $76,060.00 (61,30%) $42,380.00 (34,16%) $124,090.00

• A desvalorização do índice Ibovespa, em dólares, entre maio e setembro de 2008, foi de 61,8% aproximadamente.

O decréscimo de valor da carteira de ações de estrangeiros, de US$ 200,886.00 milhões, em maio de 2008 (pico), para US$76,060.00 milhões, em outubro de 2008, corresponde a uma diminuição per-centual de 62,14 %. A carteira em outubro de 2008 vale 37,86% do que valia em maio/2008.

Em estado de inércia, correspondentemente, considerado o Ibo-vespa em dólares como referência, o valor da carteira de ações de estrangeiros teria decaído, assim, de US$200,886.00 milhões para US$ 76,055.00 milhões, o que vem a ser praticamente igual ao valor constante dos registros da CVM (US$76,060.00 milhões, saldo de carteira de ações de estrangeiros). Não teria, assim, havido liquidação de ações da carteira para remessas?

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• Uma margem de erro é possível tendo em vista que os portfólios de investidores dificilmente reproduzem o portfolio utilizado para construir o índice geral (Ibovespa).

Obs.: Um efeito colateral da desvalorização acentuada da carteira é a diminuição do seu potencial de ameaça às nossas reservas internacio-nais, latente em uma saída em massa dos investidores estrangeiros.

INGRESSOS/RETORNO DE RECURSOS DE INVESTIDORES ESTRANGEIROS NO PAÍS, PARA APLICAÇÃO EM CARTEIRA (ações, renda fixa, e outros)

Os números de ingressos e retornos, registrados como Investimentos em Carteira por estrangeiros, aparentemente não são sugestivos de compatibilidade com aqueles que vimos, relativos a transações em Bolsa (compra e vendas de estrangeiros), em que os números nega-tivos são bastante mais significativos do que os que constam como saldo negativo entre ingressos/retornos (de recursos de investidores estrangeiros).

Saldos negativos entre compra e vendas de ações, em Bolsa, não significam necessariamente remessas dos valores líquidos das vendas ao exterior.

Entraram líquidos, em 2007 (saldo líquido entre ingressos e retornos), cerca de US$33,877.00 milhões, para Investimentos em Carteira. Em 2008, até outubro, entraram líquidos US$2,505.59 milhões, sendo negativos os meses de maio (US$641 milhões), julho (US$4,165.00 milhões), setembro (US$1,756.00 milhões) e outubro (US$7,943.41

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milhões). No mês de outubro houve ingresso de US$11,541.00 mi-lhões e retorno de US$19,485.00 milhões.

• Friso que, no ano de 2007, e em 2008, até outubro, os números de saldo da carteira de ações de estrangeiros não sugerem uma saída líquida massiva do País, de investimentos estrangeiros em carteira.

Aparentemente, também, não houve migração por venda de ações da carteira para aplicações de renda fixa, cujo saldo ficou relativamente estável entre maio e setembro 2008, mas caiu US$13 bilhões apro-ximadamente em outubro. A eventual decisão de liquidar carteira de renda fixa com idade recente (2007, 2008), com a valorização de mais de 40% do dólar, passou a não ser interessante.

US$ 100.000,00 há pouco tempo atrás (maio 2008) teriam com-prado um título de renda fixa de valor de face, por exemplo, de R$166.000,00. Com taxa constante, ele poderia ter um valor acumulado resgatável de, por exemplo, R$177.371,00 (6 meses, 6,875% de rendimento, desde maio de 2008). Se fosse liquidar agora, teria o equivalente a US$80,258.00 (dólar a R$2,20), para remessa, ante os US$100,000.00 investidos (abstraídos custos de transação e impostos).

Estas contas, assim genéricas, logicamente não se sensibilizam com pormenores de situações individuais, embora se pudesse supor uma desvalorização maior por conta do envolvimento em IPOs, no caso de ações.

Sem refinamento de dados, assim, fica no ar uma indagação sobre por que as baixas das cotações em Bolsa, no geral, não ocasionaram

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numericamente um desfazimento real de posições registradas como carteira de investidores estrangeiros.

O maior volume rotativo de vendas em relação a compras, no recinto da Bolsa de Valores, constantes nos meses recentes, pode refletir maior atuação em vendas a descoberto ou day trade?

A parte (suposta como repatriada) teria ficado por aqui mesmo? Teria aproveitado as imensas oportunidades que um mercado como o nos-so, mesmo em baixa, oferece, e dado suporte a vendas a descoberto ou day trade, por exemplo?

NEGÓCIOS DE INVESTIDORES ESTRANGEIROS EM BOLSA

Vejamos um dado auxiliar: os números de investimentos de estran-geiros em transações bursáteis, apenas em 2008, onde nos está inte-ressando saber sobre liquidação de posições e remessas.

Obs: Em 2007, as vendas em Bolsa de estrangeiros também supera-ram as compras em US$2,410.00 milhões, para todo o período, com saldos negativos mais fortes em junho/julho e em outubro/novembro (entre US$1 bi e US$1.9 bilhões cada mês).

Em 2008, o saldo negativo entre compras e vendas de estrangeiros na Bovespa foi de US$11,186.00 milhões, com forte supremacia de vendas em janeiro e nos meses de junho a setembro. Entre junho e outubro, o saldo negativo (vendas superiores a compras) foi de US$13,933.00 milhões.

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A par de saldos negativos terem começado a existir desde 2007, con-forme observação acima, deve-se tomar boa nota de que os níveis negociados de estrangeiros (compras e vendas) saíram de um pata-mar mensal ente US$9 e US$10 bilhões, em janeiro de 2007 para o dobro e o triplo, em alguns meses de 2008 (junho de 2008: compras de US$28 bilhões e vendas de US$32 bilhões, p. ex.).

• Quando se aborda o tema de desvalorização galopante de nossas bolsas, não se deve esquecer que nossas principais ações têm nego-ciação no exterior, sobretudo na Bolsa de Nova Iorque. Sua cotação é muito influente na evolução do índice Bovespa. No exterior, as que têm bom grau de liquidez se submetem a toda sorte de influências locais, entre as quais predominam hoje as de necessidades premen-tes de recursos e as de fuga de títulos de países emergentes, como raciocínio genérico. São negociadas através de ADRs (American Depository Receipts), e movimentos de vendas hoje imperantes no mercado americano deprimem suas cotações, com óbvios efeitos nas suas cotações internas, no Brasil.

• Existe a crença de que haverá estancamento de recursos de investi-dores estrangeiros, de Bolsa, para as nossas reservas, até a normaliza-ção do mercado internacional. E os últimos números de ingressos/retornos confirmam esta crença.

X) EQUÍVOCOS E CRENÇAS

Alguns equívocos e crenças conceituais estiveram em jogo também. Na esteira de equívocos e crenças, muitos erros se cometeram. Assim, o de até que ponto as instituições teriam capacidade de se precaver, mediante adequada gestão de risco, autonomamente (auto-regulação). Ou de que elas poderiam expulsar riscos do sistema financeiro, me-

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diante instrumentos inovadores criados, afastando o chamado risco moral (moral hazard) de se socorrer instituições com dinheiro público. A idéia inicial era boa, mas sua implementação prática revelou dis-torções inesperadas.

Esta crença, talvez no entusiasmo das inovações que a veicularam, não levou na devida conta não só limites físicos como éticos, em que tal expulsão poderia ocorrer. Foi também muito focada, de boa-fé, no uso correto de derivativos, em sua função clássica de proteger contra riscos. Acontece que os derivativos podem ser ofertados agres-sivamente e tomados por especuladores tanto profissionais quanto imprudentemente por empresas produtivas. E outros instrumentos não exatamente derivativos podem portar em si, escamoteados, riscos inaceitáveis. Excessos ou perturbações no mercado dos subjacentes e no mercado de derivativos podem ter conseqüências danosas para a economia como um todo e, conseqüentemente, para o próprio sistema financeiro (reverberação, derivativos boomerang).

Esta filosofia de expulsão de riscos acabou presidindo decisões não relativas a derivativos mas a créditos mal deferidos (subprime), que foram securitizados e passados adiante. Neste caso, não se tratou de derivativos liquidados por diferença, mas de transferência de risco de principal.

A geração de títulos no mercado financeiro e de capitais, a partir de empréstimos hipotecários (bons e ruins), foi muito longe em termos de dar suporte a tais empréstimos. Foram criadas novas obrigações (CDOs – Collateralized Debt Obligations) e instrumentos financeiros (CDS – Credit Default Swaps – swaps de risco de crédito). As obrigações (CDOs) eram garantidas por obrigações, por títulos securitizadores ou pelos próprios empréstimos. Os swaps são na realidade, garantias

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de pagamentos. Estas obrigações e swaps eram vendidos por institui-ções e por seguradoras. A despeito de aumentarem a liquidez global, espalharam insubsistências crescentes, existentes nas franjas destes volumes excepcionais, urbi et orbi.

Os créditos ou títulos podiam ser passados para carteiras (de fundos, de instituições). Podiam ser aglutinados em novos títulos ou obriga-ções com vistas a serem vendidos ou se obter crédito (alavancagem). Fundos de hedge, sociedades de propósito específico ou veículos de investimento estruturado puderam endividar-se com base em carteira avaliadas com boa classificação de risco e, até, emitir commercial papers (asset backed). As instituições que os financiavam sentiam-se “confor-táveis” (!) com as classificações de risco de seus financiados.

As instituições que fossem reguladas podiam passar adiante os cré-ditos ou títulos, inclusive para sociedades de propósito específico, veículos de investimento estruturados (SIVs), fundos diversos, com isto contornando a vigilância das autoridades (em termos de limites de riscos). Os títulos ou montes financeiros receptores obtinham boa gradação de risco das empresas de rating (mais uma vez), assim considerados de boa qualidade, ensejando empréstimos das institui-ções. Mesmo com os maus antecedentes do expediente de registrar entidades em outras jurisdições não regulamentadas (ou pouco), que levou à falência importantes empresas do mercado de ações americano (Enron e outras), mesmo apesar de instituições terem levado pesadas multas por tais práticas, o fenômeno voltou a ocorrer. Instituições reincidiram, apesar da Lei Sarbanes Oxley.

• A propósito dos Credit Default Swaps (CDOs), eles não são mais do que seguros de solvência dos devedores. O seu preço de venda pro-vinha de cálculos matemático-estatísticos quanto à probabilidade de

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não pagamento dos empréstimos subjacentes. Tais cálculos davam conforto às seguradoras quanto aos preços praticados no sentido de eles anularem ou superarem fluxos negativos de pagamentos de sinistros de crédito, mantendo assim íntegros ou até mais lucrativos os prêmios recebidos das instituições.

Nem sempre, contudo, os gênios da matemática captam por inteiro os fenômenos. Suas fórmulas podem omitir ponderações operacio-nais importantíssimas. No caso, as seguradoras tinham de aportar garantias (margens) às instituições, para proteger quanto a riscos de oscilações de preços nos papéis securitizadores. Quando os preços dos papéis securitizadores passaram a comandar deságios importantes e até extremados, o aporte de garantias adicionais passou a ter um custo pesado para as seguradoras. Além do mais, os títulos estavam registrados em seus balanços, onde deviam sofrer a devida marcação a mercado, depreciando consideravelmente seus ativos. Estes fatores de ponderação – aporte de garantias adicionais, contabilização de aumento de exposição – não integraram os modelos matemáticos que serviram de base à precificação dos CDS, e, na realidade, simulações de situações de mercado como as que ocorreram certamente teriam desencorajado as seguradoras a entrar neste tipo de negócio, que, afinal, funcionou como um encorajador importante para o sistema como um todo.

Obs.: Muito se tem discutido sobre a atuação do Chairman do Fe-deral Reserve Bank americano (FED), Alan Greenspan, na gênese da crise. Abordo em outro trecho aspectos por ele já mencionados de que recebeu mandato para conduzir uma política monetária anti-inflacionária e concomitantemente evitar uma crise de grandes proporções nos EUA, objetivos que ele julga terem sido atendidos: não recebeu mandato para romper bolhas especulativas, apesar de ter alertado quanto a elas.

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No que tange a derivativos, foi entusiasta destes instrumentos. Trans-crevo três trecho da já mencionada Carta Mensal, 537 (p. 46, 1999), para as devidas ponderações:

i) O presidente do Federal Reserve americano, ressaltou, na 24ª Con-ferência da ... FIA, em março deste ano, que... os números de risco de crédito dos bancos americanos, em contratos de derivativos, foram calculados pelo FED, e ajustados para US$ 325 bilhões, em dezembro de 1998, correspondendo não a 11% dos ativos, como geralmente con-siderado, mas a menos de 6% (seis por cento), em face de compensações e outros fatores de eliminação de risco. Constatou como íntegra, ainda, sua afirmativa anterior de que os derivativos aumentam a capacidade “de os bancos transferirem riscos para os mercados, para investidores mais capazes ou dispostos a assumi-los” (Notícias BM&F – Brasil nº 23 de abril de 1999).

Dois aspectos: Primeiro, o sistema bancário, com a posterior integra-ção de bancos de investimento, acabou mergulhando nos riscos inte-grais de créditos mal deferidos. Os títulos securitizadores de créditos representam riscos integrais de principal, e não de diferenças.

Segundo, obviamente não pensava o Sr. Greenspan em estratagemas de esperteza. Este não é o sentido de suas palavras “investidores mais capazes ou dispostos” a assumir tais riscos. Implícita está a revelação transparente de tais riscos e não o seu escamoteamento, mediante ardis.

A partir desta crença bem intencionada, contudo, passou-se a acreditar que o sistema financeiro poderia maldosamente transferir para tercei-ros riscos de créditos mal deferidos, riscos de gradação real efetiva-mente desconhecida, não feita transparecer. A transferência de riscos de diferenças não se deu por derivativos que fossem gerados de forma

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correta. Os riscos transferidos foram dos montantes integrais de crédi-tos mal deferidos, transpostos para títulos, securitizados. Ocorreu uma assunção monumental de riscos integrais, que reverberou para dentro do próprio sistema. Os expedientes de transferência para sociedades de propósito específico, para fundos-veículo, financiados dentro do próprio sistema, e para instituições financeiras de outras jurisdições acabou por ferir de morte a confiança que une e faz funcionar todo sistema global e infligiu perdas mirabolantes a todos.

ii) Mais um trecho da citada palestra, de 1999:

(p. 46) No continente europeu, contudo, mais recentemente, se tem notícia de envolvimento sério ocasional de bancos com opções ou com financiamento de atividades especulativas nos mercados (UBS).

Nos Estados Unidos, um grupo representativo de instituições atu-antes no mercado (predominantemente, merchant banks, invest-ment banks) também apostou em atividades especulativas, através do LTCM – Long Term Capital Management e de outros fundos (apostas diretas e financiamentos). Nestes casos, perdas sérias seriam incorridas... tornou-se necessário socorro financeiro de suporte emergen-cial, a fim de se evitar contaminação financeira epidêmica. Ao que se divulgou, a presença do FED foi catalítica... O volume, em si, seria suportável, no mercado, mas a crise de confiança conseqüente poderia ser ruinosa, atingindo nominadamente grupo significativo e representativo de instituições americanas e européias.

Não foi, assim, por falta de antecedentes, de casos-símbolo, que o sistema deixou de precaver-se. A reincidência foi clara. Pode parecer que o LTCM foi um precedente de como se poderia operar errado e, ainda assim, obter socorro.

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iii) (p. 46) “É inegável fazer-se necessária uma presença não apenas contemplativa das autoridades supervisoras, em termos de riscos assu-midos por instituições isoladamente, sobretudo quando há alavancagem (utilização de recursos de terceiros).”

Em 1999, já se pensava que as autoridades deviam atentar para dis-torções que evoluíssem perigosamente, no coração do sistema. As entidades não reguladas ou pouco reguladas cavalgaram livremente em suas imprudências e fraudes. As reguladas, em grande parte, iludiram, com as supostas transferências de riscos para fora do balanço.

iv) (p. 47) Os riscos de mercado têm-se mostrado insidiosos, em épocas de crises dos mercados globais. Isto porque o crédito ou as operações de mercado podem parecer suficientemente garantidos, em condições normais, mas em situações de stress, as garantias podem sofrer severas depreciações. O chamado flight to quality leva os participantes do mercado a migrar para ativos financeiros considerados mais seguros, ocasionando baixa acentuada no preço dos demais ativos ou de alguns deles em particular (excesso de oferta) e prejuízo nas taxas das novas alternativas selecionadas (aumento do seu preço, face à demanda aumentada). Assim, em swaps de moedas (sobretudo aqueles com risco de principal)... em contratos de futuros cujos preços aumentam ou diminuem além dos parâmetros usuais, a necessidade de antecipar liquidação de operações ou de repor o nível de garantias, ante suas cotações depreciadas ou ante o aumento dos preços das garantias de melhor qualidade solicitadas, ocasiona riscos de crédito exponenciados para algumas unidades econômicas... “em face da falta de cobertura de garantias, da necessidade de realizá-las, de cumprir compromissos com terceiros (empréstimo de títulos) ou de aportar novas garantias mais onerosas. Podem tornar-se inadimplentes, se estão excessivamente “alavancadas” (uso de recursos de terceiros), gerando grandes prejuízos, para si e/ou para garantidores. Concentração de riscos, por assunção de posições excessivas em determinados contratos, contém em si o perigo

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de perturbar um mercado ordeiro, sendo um problema não apenas individual, de uma instituição, mas de todo o sistema”.

Uma descrição bem atual, em 1999, do que agora ocorreu.

• Então, a retirada de títulos tóxicos das instituições corre o risco ter ampliada sua área de desinfecção, não se restringindo ao montante dos créditos originários.

A solução natural seria a destruição do estoque inconsistente de obrigações (IOUs), com a assunção respectiva dos prejuízos pelos seus credores e as conseqüentes falências e quebras de empresas e instituições? O que restaria após, no mundo físico dos negócios?

Ou se procuraria preservar substancialmente o status quo do aparato produtivo da economia real e dos principais agentes financeiros, no pressuposto de que ele contém uma matriz apta a dar suporte à produção e consumo consistente de bens? Até que ponto e com que seletividade?

Em tal caso, que segmentos da sociedade (governos, empresas, in-divíduos) teriam capacidade ou quereriam aportar capital de partici-pação (e como) ou dívida pagável de mais longo prazo, para suporte às instituições, na expectativa de um ajustamento apropriado e de participação do fluxo de rendas futuras?

A mim me parece que grandes beneficiários da situação de extraor-dinário desenvolvimento do comércio internacional – indivíduos e suas empresas, e até governos, bancos centrais e suas reservas (estes, provisoriamente) – são os candidatos naturais a suprir de substância o capital próprio deteriorado das instituições. Poderão aproveitar as lições da crise para não encorajar novas aventuras operacionais, sem ferir a criatividade do sistema.

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Algumas instituições já lograram aportes substanciais de recursos de capital, ou procederam a aquisições, fusões ou incorporações que fortaleceram suas estruturas operacionais e de capital.

Os governos de diversos países parecem ter tomado oportuna dian-teira, assumindo participações acionárias em instituições financeiras mais viáveis com ativos problemáticos, no pressuposto de serem participações transitórias. O desafio é fazer com que a intervenção do Estado seja quantitativamente apta e qualitativamente hábil para preservar as engrenagens que fazem a economia real se mover, a partir inclusive da restauração interativa do crédito saudável.

Medidas tomadas pelos governos do mundo inteiro foram eficientes em estancar e reduzir os efeitos maiores de uma séria crise sistêmica no sistema financeiro global. Ainda restam nódulos duros a desfazer, até que o mercado de crédito readquira razoável fluidez.

Quanto à economia real, a solução que se dê à reorganização do sistema financeiro, em termos globais, parece-me ser uma condição necessária para estancar uma crise de enormes proporções para o sistema econômico dos diversos países. Não é contudo suficiente para uma cura total, em face de um ajuste natural que se faz necessário em variáveis do mundo real dos negócios.

* Texto apresentado em Mesa Redonda do Conselho Técnico em Novembro de 2008.

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Ernane GalvêasEx-Ministro da Fazenda

Síntese da ConjunturaA Crise Global

A Crise Global

É evidente que a recessão mundial, hoje espalhada por todos os continentes, também já chegou ao Brasil. Entrou pela porta da

frente, via comércio exterior, configurada, segundo a AEB, por uma previsão de queda de mais de US$20 bilhões em nossas exportações, em 2009.

Se é verdade que a crise vai, praticamente, envolver todos os países, é fácil perceber que o Brasil será um dos países menos atingidos, pois se a crise é de confiança no sistema financeiro, ela vai encontrar os grandes bancos brasileiros em uma situação sólida, bastantes seguros em relação à qualidade de seus créditos, graças à estrita observância das normas dos Acordos da Basiléia. Se a crise é de liquidez, tam-bém aí a situação da economia brasileira é menos vulnerável, graças

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à existência de mais de US$ 200 bilhões de reservas cambiais e mais de R$ 270 bilhões de depósitos compulsórios dos bancos, junto ao Banco Central, que estarão sendo usados para sustentar uma política anti-cíclica de prevenção e de combate à crise.

Também é fácil perceber que o normal na economia brasileira não pode ser o boom automobilístico, crescendo 20% ao ano, o mon-tante do crédito bancário expandindo 34%. Isso é anormal. As cidades brasileiras não estão preparadas para receber tantos carros, que atravancam o trânsito e poluem a atmosfera, deteriorando a qualidade de vida da população. O crescimento tem que ser mo-derado e sustentável.

Foi o que se viu na atual crise nos Estados Unidos, onde uma combi-nação de fatores levou à insolvência do sistema financeiro, que acre-ditava que os preços dos imóveis iriam continuar subindo sempre ou estabilizar-se, e que a expansão do crédito bancário não teria fim.

Quando essas distorções chegam ao fim e se transformam em recessão e desemprego, é ilusão tola pensar que o Banco Central possa trazer a normalidade de volta, simplesmente manipulando a taxa de juros. Isto poderia ser viável nas épocas em que a quantidade de moeda (e dos meios de pagamento) representava 50% do PIB. Essa situação não existe mais e, atualmente, o que se observa é que uma alta taxa de juros, acima de tudo, transfere fundos do setor privado para o setor público.

A economia mundial, assim como as nacionais, tende a evoluir em “ciclos econômicos” de expansão e retração, de acordo com as “on-das de inovações”. O ideal seria prolongar moderadamente as fases

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ascendentes e evitar as recessões. Entretanto, uma vez instalada a recessão, a receita lógica terá de vir, basicamente, do setor fiscal, e não da política monetária. O poder dos Bancos Centrais não reside mais no fato de ser a única instituição com competência legal para emitir moeda. Há muitos anos, isso deixou de ser verdade, na me-dida em que se sabe que o crédito bancário também gera depósitos e, pois, cria liquidez, da mesma forma que o Banco Central. Então, a emissão de moeda é conseqüência e não causa. Atualmente, são incontáveis os instrumentos e mecanismos capazes de gerar liquidez, inclusive a securitização alavancada e as operações praticamente ilimitadas com derivativos.

Quando ocorre a crise e a retração das atividades econômicas, o im-portante é saber que o aumento da liquidez pode ser induzido por uma expansão dos gastos fiscais, com impacto direto sobre os níveis de investimento e do emprego da mão-de-obra. E é isto que deve preva-lecer na política anti-cíclica, de prevenção ou de combate à recessão.

A atual crise econômica global tem duas configurações nítidas, em sua origem: a falta de liquidez no mercado e a falta de confiança nas instituições financeiras. Daí que o caminho das soluções para comba-ter a crise, deve, necessariamente, incluir: 1) uma ampla garantia aos depositantes; 2) um amplo acesso à carteira de redescontos do Banco Central, não somente para dar liquidez aos ativos problemáticos, como, também, para recompor as linhas tradicionais de financiamento bancário afetado pela crise; e 3) um mecanismo de recomposição do capital dos bancos mais fracos, diretamente ou através de sua absorção por bancos mais sólidos.

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A DEPRESSÃO DOS ANOS 30

Após a Guerra 1914/18, houve um boom na economia americana, com estabilidade dos preços e alta taxa de empregos: de 1925 a 1929, o número de empresas industriais passou de 184 mil para 207 mil e a produção aumentou 90%, principalmente no setor automobilístico. A Bolsa de Nova York subiu de 64 pontos, em 24/08/1921, para 381, em 03/09/1929.

Em 1926, a situação começou a mudar, principalmente após a passa-gem de dois furacões na Florida (milhares de pessoas perderam suas casas), seguida do estouro da “bolha” imobiliária.

A partir da primavera de 1927, o FED baixou os juros e criou uma nova “bolha” no mercado de ações. Surgiram os contratos a termo nas Bolsas e as vendas a descoberto. A regulação dos mercados era praticamente nula. A Bolsa de Nova York “explodiu” em 24 de ou-tubro de 1929, com queda de 13%. Até julho de 1932, a Bolsa caiu 90%. Faliram 4 mil bancos, o desemprego chegou a 25% e a Renda Nacional nos Estados Unidos caiu 50%. A crise durou quatro anos e terminou em 1933, com a implantação de vasto programa de obras públicas no Governo Roosevelt, conhecido como New Deal.

A diferença entre a crise dos anos 30 e a de hoje está na ação coorde-nada dos governos e bancos centrais. No Brasil, a base do programa anti-crise será a implantação do PAC, acompanhada da ampla utili-zação dos recursos disponíveis na conta de depósitos compulsórios dos Bancos, nas reservas cambiais, no FGTS, no FAT e, também no Orçamento Público.

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PERSPECTIVAS ECONÔMICAS

O PIB do Brasil, em 2009, poderá ter crescimento mínimo de 2,0%, principalmente devido ao efeito estatístico do carry over procedente do último quadrimestre de 2008. A agricultura vai produzir menor quantidade de grãos, a siderurgia vai reduzir a produção, assim como a mineração, a indústria automobilística, papel e celulose, produtos químicos, etc. Também a construção civil reduzirá o ritmo e, possivel-mente, algumas empresas terão dificuldades financeiras. As empresas exportadoras serão duramente atingidas, embora beneficiadas pela desvalorização cambial, que deve continuar. Por dificuldades de fi-nanciamento, também cairão as importações de equipamentos, ainda mais devido à redução dos investimentos e atraso nos cronogramas de muitos projetos.

Entretanto, temos um ponto significativamente positivo: deverão ficar de fora desse quadro negativo os investimentos nas áreas de infraestrutura, cujos projetos, já iniciados, não podem parar. Se parar, o prejuízo será maior. Aí estão os investimentos em hidrelétricas, portos, rodovias e comunicações, assim como saneamento urbano, praticamente os projetos listados no PAC. Essa é a essência da po-lítica anticíclica.

Indústria

Depois que o licenciamento de veículos, em outubro, caiu 11%, em relação a setembro, e a produção caiu 1,3%, ficou mais claro que a recessão global estava chegando ao Brasil. Vagarosamente, mas está chegando. Possivelmente, os dois setores mais atingidos pela crise se-rão o imobiliário e o siderúrgico. As vendas de habitação diminuíram,

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no 3º trimestre. 33 companhias listadas na BOVESPA já perderam R$ 47 bilhões, até novembro.

Na indústria automobilística, os novos investimentos estão parados.

Segundo a INDA, a distribuição de produtos siderúrgicos teve queda de 14% em outubro sobre setembro, prevendo-se uma retração de 30% nas vendas, no 1º trimestre de 2009.

Também o setor de energia elétrica começa a sentir os primeiros sinais da crise: em outubro, segundo a ONS, houve uma queda de 3,3% no consumo, embora no período de 12 meses ainda se registre uma alta de 3,1%. Para agravar o clima de incertezas, a Justiça Federal do Pará sus-pendeu as obras da Termoelétrica PECEM, no Pará, do Grupo MPX.

A produção de aço bruto sofreu queda de 3,7% em outubro/se-tembro, recuo de 0,1% em relação a outubro/07 e alta de 6,5% no acumulado do ano. A Gerdau prevê uma redução de 24% nas ven-das da Açominas. A Usiminas anunciou a suspensão temporária da produção, para nivelar os estoques. A produção de minério de ferro da VALE está sendo reduzida em 30%, enquanto são paralisadas as minas de outros minérios menos importantes.

Os investimentos nas obras do PAC deverão ser preservados, mas já se sabe que o BNDES suspendeu o financiamento da Hidrelétrica Serra do Facão e as linhas de transmissão das Usinas do Rio Madeira estão sendo adiadas. Um vazamento no gasoduto Brasil-Bolivia, em 24/11, poderá prejudicar o abastecimento nos Estados do Sul. Com a limitação de crédito por conta da crise global, muitas usinas do setor sucroalcooleiro estão revendo seus projetos de expansão e até

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mesmo adiando a construção de novas plantas. O mercado revela preocupação com a situação de caixa da Petrobrás, que anunciou um lucro de R$ 26,6 bilhões até setembro, mas teve que levantar R$ 2 bilhões na CEF, para capital de giro. Vários de seus projetos de investimentos estão suspensos.

Comércio

As vendas do comércio varejista subiram em setembro 1,2% em re-lação a agosto e 9,4% na comparação com igual mês do ano passado. No ano, as vendas acumulam alta de 10,4% e em 12 meses, de 10,3%. Ainda não há dados sobre as vendas em outubro e novembro, mas tudo indica que o Natal deste ano será positivo. No início de dezembro, as lojas estão super-lotadas, liquidando estoques com desconto.

Pesquisa divulgada pela Fecomércio-DF mostrou que o faturamento do varejo em outubro recuou 5,06%, em relação a outubro de 2007, e 5,24% em relação a setembro deste ano.

O nível de inadimplência das empresas brasileiras avançou 9,2% em ou-tubro, na comparação com igual mês do ano passado, apontou o Indi.

Os dez setores analisados pelo IBGE apresentaram aumento nas ven-das. Equipamentos e material para escritório fecharam setembro com a maior alta, em 6,9%. Veículos e motos registraram alta de 5,5%.

Em setembro, o índice de inadimplência do Serasa ficou em 7,3%, abaixo de agosto (7,5%). Mas em outubro, alguns dados começaram a apontar para um patamar mais elevado, revelando crescimento de 4,9% sobre setembro e de 7,5% no ano, em relação ao mesmo período de 2007. Os cheques sem fundos aumentaram 12,3%.

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Em setembro, a inadimplência nos financiamentos para a compra de veículos atingiu o maior patamar da série histórica: 3,83% dos empréstimos com atraso superior a 90 dias.

Agricultura

As chuvas fortes que estão caindo sobre Santa Catarina, e também em outros Estados, como o Espírito Santo, já comprometem a próxima safra, que o IBGE anunciou como 3,3% inferior à safra de 2008. Os sinais de queda são visíveis: caíram as vendas de máquinas agrícolas, assim como de fertilizantes. Em Mato Grosso, alguns bancos estão retomando tratores dos agricultores inadimplentes, mas o Governo está atento aos problemas e reforçando as linhas de crédito do Banco do Brasil, inclusive com verbas orçamentárias.

Mercado de Trabalho

Segundo o DIEESE, a crise ainda não alcançou o mercado de em-pregos no Brasil. A taxa de desemprego total em seis regiões (Belo Horizonte, Porto Alegre, Salvador, Recife e São Paulo) caiu de 14,1% em setembro para 13,4% em outubro, a menor taxa para esse mês desde 1998.

Em outubro, o nível de ocupação cresceu 2,3% em Recife, 1% em São Paulo, 0,85% em Porto Alegre e 0,3% em Belo Horizonte, caindo 0,3% em Salvador. No Distrito Federal, a taxa manteve-se estável. O rendimento médio real dos assalariados teve recuo de 1%.

Na comparação com outubro de 2007, o nível de ocupação nas seis regiões pesquisadas aumentou 5%. Nos últimos 12 meses, a taxa de desemprego nas seis regiões diminuiu de 15,0% para 13,4%.

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O IBGE divulgou taxa de desemprego de 7,5% em outubro, ante 7,6% no mês anterior. O rendimento médio real, porém, caiu 1,3% ante setembro, o maior recuo em quase três anos. A expectativa de analistas é que a crise só venha a afetar o mercado de trabalho bra-sileiro a partir de 2009.

Os dirigentes das Centrais Sindicais estão propondo ao Governo a proibição de demissões pelas empresas que receberem ajuda oficial.

Sistema Financeiro

O montante do crédito no sistema financeiro continua crescendo, apesar do corte das linhas de financiamento dos bancos estrangeiros e dos grandes bancos nacionais para os médios e pequenos bancos. Em outubro, o total de créditos do sistema financeiro subiu 2,9%, acumulando no ano 26,8% e em 12 meses 34,6%(!), atingindo 40,2% do PIB, contra 30,7% em 2006.

Em outubro, em relação a outubro/07, os financiamentos rurais cresceram apenas 20,5%, contra 41,8% dos industriais, 34,9% do comércio e 28,2% das pessoas físicas. Os desembolsos do BNDES estão crescendo rapidamente, na medida em que a instituição se transformou no principal instrumento da política anti-cíclica do Governo. Vai receber mais R$ 7,5 bilhões dos depósitos compulsó-rios dos bancos no Banco Central e mais R$ 5,0 bilhões do Tesouro Nacional. Os bancos menores já venderam 30% de suas carteiras de empréstimos.

O Banco do Brasil comprou a Nossa Caixa, de São Paulo, por R$ 5,39 bilhões.

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Inflação

A inflação subiu em novembro, pelo índice oficial IPCA-15, atingindo 0,49% contra alta de 0,30% em outubro, atingindo 6,54% em 12 me-ses. Entretanto, o IGPM/FGV caiu de 0,98% em outubro para 0,38% em novembro, refletindo menor elevação dos preços no atacado.

A cesta de compras da cidade do Rio de Janeiro registrou aumen-to de 0,68% na primeira semana de novembro, de acordo com a Fecomércio-RJ.

A desvalorização cambial de setembro a novembro foi de 48,9%, refletindo sobre as reservas de US$ 205 bilhões, com efeito de mais de R$ 100 bilhões na relação divida/PIB.

Setor Fiscal

A Receita Federal arrecadou R$ 65,493 bilhões em outubro, um crescimento de 17,13% sobre setembro e de 12,36% ante outubro de 2007, já descontada a inflação. O valor é recorde para meses de outubro. No ano, a arrecadação da Receita já soma R$ 564,178 bilhões, uma alta real de 10,33% em relação a igual período de 2007, em boa parte favorecida pela desvalorização cambial.

De janeiro a outubro, o setor público “economizou” R$ 132,9 bilhões para pagar R$ 134,7 bilhões de juros. A dívida mobiliária chegou a R$ 1.226,3 bilhões, apenas R$ 1,4 bilhão acima de 31/12/07. Por outro lado, a dívida bruta atingiu R$ 1.684,3 bilhões, R$ 141,4 bilhões acima do saldo em dezembro do ano passado. Atenção: não é tempo ainda, para comemorar a queda da dívida pública líquida, de 42,7%

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(31/12/07) para 36,6% em relação ao PIB, em outubro último, uma queda que é puro reflexo da desvalorização cambial.

Segundo a Fecomércio-RJ, a carga tributária continua crescendo, com 40,5% incidentes sobre produtos, 29% sobre a renda e 26,6% de contribuições sociais.

Continua pairando sobre o Governo o fantasma de três projetos de autoria do Senador Paulo Paim, que podem representar um acréscimo de cerca de R$ 90 bilhões nos gastos públicos.

Setor Externo

O mês de outubro vai servir como um divisor de águas no quadro do nosso balanço de pagamentos. Em novembro, o valor das exportações brasileiras caiu 21,3% e das importações 24,1%. Isso significa que a crise mundial está entrando no Brasil pela porta da frente, via comér-cio exterior. As exportações brasileiras devem fechar o ano acima de US$ 200 bilhões, mas a AEB estima que em 2009 caiam para US$ 180 bilhões. Ai, sim, a recessão terá desembarcado em nossas praias.

A dívida externa, em outubro, subiu para US$ 278,9 bilhões, incluindo US$ 58,2 bilhões de inter-companies e o montante das reservas cambiais caiu de US$ 207,5 bilhões, em setembro, para US$ 203,2 bilhões, em outubro, voltando a US$ 206,7 bilhões, em novembro. Até outubro, os investimentos estrangeiros diretos montaram a US$ 32,2 bilhões, cerca de US$ 4 bilhões acima do mesmo período de 2007. Está ha-vendo fuga de dólares: US$ 13 bilhões, em 2 meses.

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A recessão mundial continua se agravando. Nos Estados Unidos, au-menta o desemprego com deflação e aprofunda-se a crise da indústria automobilística; na Europa, inclusive a Rússia, idem; na Ásia, a China ainda é uma grande interrogação, mas já se dá como certo a queda do PIB de 11% para 9%. O Governo chinês aprovou um pacote de US$ 568 bilhões para combater a recessão.

Na América Latina, o Brasil corre o risco de levar um calote de US$ 5,0 bilhões, do Equador, Bolívia, Venezuela e Paraguai.

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Lembrança

Conselheiro Paulo Mário FreireMembro do Conselho Técnico da Confederação Nacional do Comércio

de Bens, Serviços e Turismo1991-2008

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CONSELHO TÉCNICO1953-2008

IN MEMORIAM

CONSELHEIROS

PRESIDENTES DA CNCBRASÍLIO MACHADO NETOCHARLES EDGAR MORITZ

JESSÉ PINTO FREIREJOÃO DE SOUZA VASCONCELLOS

ADROALDO JUNQUEIRA AYRESAFFONSO ALMIRO RIBEIRO DA COSTAAGOSTINHO MONTEIROALDO BAPTISTA FRANCOALEXANDRE KAFKAANÍSIO TEIXEIRAANTÔNIO CAMILLO DE OLIVEIRAANTÔNIO CORRÊA DO LAGOANTONIO VIANNA DE SOUZA ARTHUR CEZAR FERREIRA REIS AUGUSTO RUSCHI BASÍLIO MARTINS BENJAMIN SOARES CABELLO CAIO PRADO JÚNIORCAIO TáCITOCANDIDO MOTTA FILHOCARLOS ARTHUR DA SILVA MOURACARLOS BERENHAUSER JÚNIORCARLOS MEDEIROS SILVA CASIMIRO ANTÔNIO RIBEIROCLáUDIO VIANNA DE LIMACLÓVIS RAMALHETEDARIO DE ALMEIDA MAGALHÃESDÊNIO NOGUEIRADEREK HERBERT LOVELL-PARKER DJACIR MENEZES DOLOR FERREIRA DE ANDRADE EDGARD TEIXEIRA LEITE EDMUNDO DE MACEDO SOARES E SILVA EUGÊNIO GUDIN FRANCISCO CLEMENTINO SAN TIAGO DANTAS FRANCISCO DE ASSIS GRIECO FRANCISCO DE SOUZA BRASIL GENIVAL DE ALMEIDA SANTOS GERALDO EULáLIO DO NASCIMENTO E SILVA GILBERTO DE ULHÔA CANTO GLADSTONE CHAVES DE MELO GLYCON DE PAIVA GUSTAVO CORÇÃOHAROLDO CECIL POLAND HÉLIO BELTRÃO HÉLIO DE ALMEIDA BRUM HERALDO DE SOUZA MATTOS HERCULANO BORGES DA FONSECAHERVáSIO GUIMARÃES DE CARVALHOHERMES LIMAJAYME BASTIAN PINTO

JESSÉ MONTELLOJOÃO BATISTA VIANAJOÃO CALMONJOÃO NEDERJORGE KAFURIJORGE OSCAR DE MELLO FLÔRESJOSÉ AUGUSTO BEZERRA DE MEDEIROSJOSÉ FERNANDO CARNEIROJOSÉ GARIBALDI DANTASJOSÉ GARRIDO TORRESJOSÉ HONÓRIO RODRIGUES JOSÉ LUIZ MOREIRA DE SOUZAJOSÉ LUIZ NOGUEIRA PORTOJOSÉ OCTáVIO KNAACK DE SOUZAJÚLIO FLEICHMANLUCAS LOPES LÚCIO MARTINS MEIRA LUIZ J. CABRAL DE MENEZESLUIZ PAULO MACEDO CARVALHOLUIZ SIMÕES LOPES MANOEL DE AZEVEDO LEÃOMANOEL FERNANDO THOMPSON MOTTA MANUEL DIÉGUES JÚNIORMARCIAL DIAS PEQUENOMáRIO ABRANTES DA SILVA PINTOMARIO GIBSON BARBOZAMIGUEL SEABRA FAGUNDESMIRCEA BUESCU NÉLIO REISNELSON WERNECK SODRÉNILO MEDINA COELIOCTáVIO GOUVÊA DE BULHÕESOMAR EMIR CHAVESOMAR GONÇALVES DA MOTTAORLANDO GOMESOSWALDO BENJAMIN DE AZEVEDOPAULO DE CARVALHO GODOYPAULO MáRIO FREIRE PAULO PEREIRA LIRAPETER A. H. LANDSBERGPLÍNIO CANTANHEDEROBERTO DE OLIVEIRA CAMPOSSYLVIO FRÓES DE ABREUTHEMÍSTOCLES BRANDÃO CAVALCANTITHEOTÔNIO MONTEIRO DE BARROS Fo TULLIO ROMANO CORDEIRO DE MELLO