IV CONGRESSO SERGIPANO DE HISTÓRIA & IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA DA ANPUH/SE O CINQUENTENÁRIO DO GOLPE DE 64 Violência, exclusão e isolamento: as produções literárias e o leproso. Leicy Francisca da Silva 1 Narrativa, memória e a definição do lugar dos leprosos Na análise da memória da lepra, consideramos que o passado se faz contemporâneo do presente. Esta contemporaneidade se apresenta nas relações que se estabelecem entre as duas temporalidades. Estas relações podem ser observadas nos escritos literários e na operação historiográfica que constrói um passado que ausente ali se reapresenta por meio do diálogo com os documentos, ou por meio dos rastros deixados por esse mesmo passado. 2 Nesse sentido, as produções literárias, percebidas enquanto importantes documentos históricos para compreensão das relações sociais, bem como dos aspectos subjetivos, podem nos auxiliar a pensar o lugar do leproso e a reação social a esse grupo atingido pela doença em determinado momento histórico. Em fins do século XIX, uma leitura de José de Alencar nos dá pista da relação entre a sociedade, a doença e o doente. O autor expôs ao seu público de leitores os descaminhos e desaventuras vividas por um doente na cidade do Recife. Expulso de sua cidade “pela plebe irritada”, esse indivíduo havia se refugiado em Olinda, numa casa abandonada, de onde o povo requereu “ao juiz que o pusesse (...) para fora”, 1 Doutora em História, professora na Universidade Estadual de Goiás. Email: [email protected]. Esse artigo é parte integrande da pesquisa: “O refúgio dos Rejeitados: Leprosário de Anápolis, a filantropia e assistência aos leprosos”, Financiada pelo Programa de Bolsas de Incentivo ao Pesquisador (BIP-UEG). 2 CHARTIER, Roger. El pasado en el presente: literatura, memória e história. In: Articultura: Revista de História, Cultura e Arte, v. 8, n. 13. Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia, Instituto de História. 2006, pp. 7-20.
21
Embed
IV CONGRESSO SERGIPANO DE HISTÓRIA & IV ENCONTRO …encontro2014.se.anpuh.org/resources/anais/37/1424131507_ARQUIVO_Le... · narrativa, cara a Paul Ricoeur. Ricoeur apresenta por
This document is posted to help you gain knowledge. Please leave a comment to let me know what you think about it! Share it to your friends and learn new things together.
Transcript
IV CONGRESSO SERGIPANO DE HISTÓRIA & IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA DA ANPUH/SE
O CINQUENTENÁRIO DO GOLPE DE 64
Violência, exclusão e isolamento: as produções literárias e o
leproso.
Leicy Francisca da Silva1
Narrativa, memória e a definição do lugar dos leprosos
Na análise da memória da lepra, consideramos que o passado se faz
contemporâneo do presente. Esta contemporaneidade se apresenta nas relações que se
estabelecem entre as duas temporalidades. Estas relações podem ser observadas nos
escritos literários e na operação historiográfica que constrói um passado que ausente ali
se reapresenta por meio do diálogo com os documentos, ou por meio dos rastros
deixados por esse mesmo passado.2 Nesse sentido, as produções literárias, percebidas
enquanto importantes documentos históricos para compreensão das relações sociais,
bem como dos aspectos subjetivos, podem nos auxiliar a pensar o lugar do leproso e a
reação social a esse grupo atingido pela doença em determinado momento histórico.
Em fins do século XIX, uma leitura de José de Alencar nos dá pista da
relação entre a sociedade, a doença e o doente. O autor expôs ao seu público de leitores
os descaminhos e desaventuras vividas por um doente na cidade do Recife. Expulso de
sua cidade “pela plebe irritada”, esse indivíduo havia se refugiado em Olinda, numa
casa abandonada, de onde o povo requereu “ao juiz que o pusesse (...) para fora”,
1 Doutora em História, professora na Universidade Estadual de Goiás. Email: [email protected].
Esse artigo é parte integrande da pesquisa: “O refúgio dos Rejeitados: Leprosário de Anápolis, a
filantropia e assistência aos leprosos”, Financiada pelo Programa de Bolsas de Incentivo ao Pesquisador
(BIP-UEG). 2 CHARTIER, Roger. El pasado en el presente: literatura, memória e história. In: Articultura: Revista de
História, Cultura e Arte, v. 8, n. 13. Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia, Instituto de
IV CONGRESSO SERGIPANO DE HISTÓRIA & IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA DA ANPUH/SE
O CINQUENTENÁRIO DO GOLPE DE 64
codificação estética dessa energia social.7 Eis como captamos nesse trabalho as imagens
construídas pela narrativa literária, e como ela recria por meio das palavras e dela
advêm determinados comportamentos sociais.
É assim que podemos perceber as transformações que ocorrem na
apresentação da imagem e do lugar do leproso na literatura produzida nas primeiras
décadas do século XX. Reforça Gondar: “não há poder político sem controle da
memória e do arquivo; e que a questão do esquecimento é política”.8 O processo de
institucionalização da lepra comportou dentro da política de constituição da memória o
embate entre a força da lembrança e a compulsão ao esquecimento. Nesse jogo de
forças, a vitória pode ser notada no nível institucional arquivística do lado do
esquecimento. Nesse embate, diferentes elementos podem ser considerados, bem como
diversos espaços de poder: as políticas de memória composta a partir do Estado e de
suas aspirações; o poder imanente às instituições e seu interesse na construção de um
discurso atraente ao seu processo de constituição identitária, enquanto grupo; o poder no
plano social ou de elaboração da identidade do doente de lepra, como sentencia
Laurinda Rosa Maciel uma identidade ferida ou traumática.9 Nesse sentido, não é nos
arquivos oficiais que encontramos respostas para algumas questões apresentadas no
quanto à reação popular aos doentes, elas podem ser encontradas nos textos literários.
Como explica Jô Gondar, as políticas de esquecimento decorrem de que
a própria sociedade deseja ocultar tudo aquilo que pode revelar seus
paradoxos, suas falhas, enfim, tudo aquilo que poderia comprometer
a imagem – a ficção – que ela pretende fornecer sobre si mesma.
7 CHARTIER, Roger, op. cit., 2006, pp. 7-20. 8 GONDAR, Jô. Lembrar e Esquecer: Desejo de Memória In COSTA, Icléia Thiesen Magalhães e
GONDAR, Jô (organizadoras). Memória e Espaço – Rio de Janeiro: 7 Letras, 2000, p. 37. 9 MACIEL, Laurinda Rosa. A solução de um mal que é um flagelo: notas históricas sobre a hanseníase no
Brasil no século XX. In: NASCIMENTO, Dilene Raimundo; CARVALHO, Diana Maul (Org.). Uma
história brasileira das doenças. Brasília: Paralelo 15, 2004.
IV CONGRESSO SERGIPANO DE HISTÓRIA & IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA DA ANPUH/SE
O CINQUENTENÁRIO DO GOLPE DE 64
definido como hospital-colônia cujo objetivo central era o isolamento da doença/doentes
para a contenção do crescimento do número de enfermos.12
Esses discursos expunham o novo no quanto ao modelo de medicina, de
arquitetura médica e de definição de políticas estatais para auxílio aos doentes; porém,
mantinham, por outro lado, elementos de representação social acerca da doença e do
doente, advindos dos séculos anteriores. No quanto às permanências, apresentavam a
repetição dos mitos sobre a moléstia e a agressividade do leproso em relação aos sãos, o
que gerava e incentivava o medo dando justificativa à necessidade da segregação. Os
escritos literários sobre a lepra e os leprosos exprimem principalmente esses elementos
representativos das permanências. Nesse processo se percebe uma construção de uma
imagem pejorativa do doente como maneira de explicar ou justificar a violência advinda
da polícia sanitária e das ações de profilaxia médica e sanitária, que seriam
posteriormente utilizadas. Dentro desse novo paradigma de atenção ao problema da
doença, a literatura mostra, no que concerne à relação entre sadios e doentes, uma
posição de violência justificada pela existência dessas novas instituições, único lugar
possível para aqueles enfermos.
De outro lado, podemos perceber que se no século XIX falávamos de
leprosos pobres repelidos dos espaços urbanos, porque insistiam em continuar vagando
pelas ruas e estradas, ou de outros tantos que segregavam-se em leprosários na fronteira
da cidade, expande-se, agora, o poder de exclusão já que a doença atira-os
“incondicional e miseravelmente, fora do convívio familiar e social”.13 Os filhos
recebiam dentro dessa nova política médico institucional e profilática um espaço
específico para que pudessem ser afastados dos pais doentes, os preventórios; já os
12 SILVA, Leicy Francisca da. “Eternos Órfãos da Saúde”: medicina, política e construção da lepra em
Goiás (1830-1962). Tese de doutorado – Universidade Federal de Goiás, 2013. 13 DONZELOT, Jacques. A polícia das famílias. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2ª edição, 1986.
IV CONGRESSO SERGIPANO DE HISTÓRIA & IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA DA ANPUH/SE
O CINQUENTENÁRIO DO GOLPE DE 64
outra pensão na margem oposta, na rua das palhas e dos mocambos,
atravessei o rio à procura de recomendado barracão. Estava o hoteleiro
ausente, mas empregados seus, de caras patibulares, receberam-me.
No dia seguinte aparece o tal, faltavam-lhe várias falanges dos dedos,
lepra mais adiantada que no colega do bairro aristocrata.15
Mais tarde, já na década de 1930, percebe-se nos relatos literários uma maior
exigência em relação ao autoisolamento dos doentes como o que observou Paternostro.
Segundo ele, “Caso de lepra no sertão vive escondido. Não procuram médico por medo
da difamação e da possível perda de casamento das moças da família leprosa, etc. Não
se tratam e a doença se dissemina. Moças recém-casadas, como vi, apresentam sinais
clínicos da doença de Hansen”. 16 Em uma de suas visitas na região sudoeste de Goiás,
fora recebido por um rico fazendeiro de gado, com que almoçara, sua esposa, filhos e
empregada, “moradores daquela casa, não apareciam aos viajantes, porque
apresentavam lesões mutilantes de lepra”.17 Essa prática era comum, segundo seu relato,
em um estado cuja população doente era de, aproximadamente, dois mil indivíduos.18
Esses “vivem segregados no mato ou nas moradias das cidades”, assim “lá ninguém
arrepia os cabelos quando se diz que a família tal é de leprosos”.19
Se esta literatura anteriormente apresentada, escrita nas décadas de 1920 e
1930, não exprime uma violência ativa contra os doentes, não se nota o mesmo no conto
escrito em 1944 pelo regionalista Bernardo Élis (1915-1997). É preciso dizer que a sua
escrita se situa exatamente no momento de maior reforço da política de aprisionamento
15 MAGALHÃES, op. Cit, p. 39. 16 PATERNOSTRO, Júlio. Viagem ao Tocantins. São Paulo. Cia Ed. Nacional. 1945, p.309. 17 PATERNOSTRO, op. cit, 2004, p. 309. 18 Esses dados são tomados por aproximação já que o primeiro censo da lepra, segundo o Boletim
Nacional da Lepra, p. 54, indica para 1940 o total de 823 doentes, em 1941 o mesmo número, em 1942
sobe para 1154 chegando em 1945 no total de 1447. Esse censo apresenta números imprecisos, pois no
ano de 1943, por exemplo, os contadores teriam percorrido apenas 12 cidades (Balisa, Caiaponia,
Corumbá de Goiás, Jaraguá, Jataí, Mineiros, Paraúna, Pirenópolis, Rio Verde, Trindade, Ipameri e
IV CONGRESSO SERGIPANO DE HISTÓRIA & IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA DA ANPUH/SE
O CINQUENTENÁRIO DO GOLPE DE 64
Após empreender fuga, o personagem é perseguido por um desses
elementos. Para certificar-se do que havia visto e vivido, já que o enredo apresenta esse
contato como um pesadelo, retorna. E afirma “lá estava o animal nojento da morfética
caído de bruços”. A ira exprimida nas reações do protagonista mostra toda a carga de
preconceito social contra aquele grupo. Ao deparar-se com a mulher ainda no chão,
afirma “cuspiu-me um cuspo fedorento no rosto. Meu ímpeto foi de matá-la, mas reduzi
isso para um pontapé naquela fuça: - ‘e se saltasse mais poderidão na gente?”.22 Sua
conclusão expõe que à violência aliava-se o medo do outro.
A lepra tornou-se a partir de certo momento uma metáfora do feio, do pobre,
do podre. Susan Sontag explica que quando as enfermidades são compreendidas como
metáforas, são relacionadas com o espaço e com o tempo. Na lepra, são topográficas
suas representações, ela se “espalha”, se “prolifera”, se “extirpa”, se “difunde”. Alonga-
se geograficamente para o espaço visível, assim o espaço que ela toca é o espaço da
pobreza, destruído, enfeado. Em determinados momentos, os termos utilizados para
caracteriza-la, no conto de Bernardo Élis, são os mesmos que caracterizavam a região
(sertão). A doença era identificada pelo seu pertencimento a condições de insalubridade
e promiscuidade, tais elementos caracterizavam o indivíduo leproso, para com ele não
há condescendência, como há para com o tuberculoso.23
Não por acaso, a primeira luta política em relação à lepra foi no sentido de
transformá-la em “doença tropical”, localizando-a espacialmente numa região
empobrecida do globo. Mesmo que ela tenha sido um grave problema na Europa na
Idade Média, mesmo que ela se apresentasse em regiões específicas da Europa no
22 ÉLIS, Bernardo. Ermos e Gerais apud TRONCA, Italo, op. cit., 2000, p. 89. 23 SONTAG, Susan. Doença como metáfora, AIDS e suas metáforas. – São Paulo: Companhia das Letras,