ISOFORMA RITA DINIS
ISOFORMA
RITA DINIS
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PARA A MINHA MÃE,
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CAPÍTULO 1 - PARIS
AS DESPEDIDAS NUNCA SÃO FÁCEIS.
Depois dos dois meses e meio de Verão, chegava o momento da partida. Não que a
minha família não estivesse habituada a ver-me partir por alguns meses e voltar nas férias
de maior temporalidade mas, por mais vezes que a situação se repetisse, nestes momentos
sempre se atingia um pico de exagerado proteccionismo.
O voo cujo destino era Paris foi calmo e não demorou mais de duas horas. Viajar sozinha
para um outro país era, de facto, um grande desafio para mim…e uma enorme fonte de
preocupação para os meus pais.
Após aterrar pacificamente no Aeroporto d’ Orly, tratei de recolher as minhas
bagagens e enquanto percorria o terminal do aeroporto em busca da saída, pensei no que
ainda teria para fazer e organizei mentalmente uma lista de prioridades. Primeiro, tinha
que telefonar aos meus pais para lhes dizer que já tinha chegado, pois se bem os conhecia,
provavelmente teriam cronometrado o tempo de viagem e estariam certamente a
perguntar-se o porquê de eu ainda não ter dado notícias. Depois, teria que apanhar um
táxi, porque não fazia ideia da localização do apartamento onde iria viver durante o
próximo ano. Finalmente, teria que ser cautelosa, porque Paris não era o tipo de cidade à
qual eu estava habituada.
Dois volumosos sacos de viagem resumiam a quantidade de bagagem que trazia
comigo, o que até não era muito, avaliando as monumentais cargas com que eu já vira
algumas pessoas que tinham passado por mim, com uma dificuldade evidente em gerir
aquelas enormes quantidades de bagagem. O terminal do Aeroporto d’ Orly era muito
grande, indubitavelmente gigantesco em comparação com o terminal do aeroporto de
Faro, a minha cidade natal e de onde parti no voo que me trouxe até Paris. Ainda que
fosse considerado o aeroporto mais pequeno e o mais antigo, era um dos que recebia
alguns voos internacionais, pelo que as minhas opções estavam claramente limitadas.
Localizava-se a vinte quilómetros a sul do centro da cidade e podia, agora, constatar que
era bastante movimentado, mas tal provavelmente dever-se-ia à hora do dia: eram onze
horas da manhã. Apesar da sua grandiosidade, estava muito bem sinalizado e nem sequer
precisei de perguntar por direcções. Alguns quilómetros adiante, saí pelo terminal Orly-
Sud e encontrei a famosa fila para os táxis. Já me haviam informado que a melhor opção
para quem não está familiarizado com a rede de caminhos de ferro, - como era o meu caso
– a melhor opção seria, sem dúvida, um táxi. Olhei. Estavam cerca de quinze pessoas
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aguardando táxi mas, para minha satisfação, a fila desfez-se rapidamente e, em menos de
dez minutos, fui atendida por um simpático senhor de bigode, sorridente, que me
cumprimentou de forma entusiástica enquanto colocava as bagagens dentro da mala do
táxi.
- Bonjour mademoiselle!
- Eh…Bonjour…- respondi, atrapalhadamente. A língua ia, definitivamente, ser um
problema. Já dentro do táxi, tirei da mala um papel com um endereço rabiscado: era o
local para onde seria suposto dirigir-me. Aclarei a garganta e apliquei um esforço
substancial para pronunciar o endereço da forma mais correcta possível.
- Cité Universitaire, Boulevard Jourdan, s’il vous plaît.- declarei, triunfante.
Presumi que a minha tentativa tivesse sido bem sucedida, uma vez que o taxista acenou
em sinal de confirmação e, segundos depois, dava início à viagem. Portanto, tinha-me
feito entender e senti-me muito satisfeita com este meu pequeno sucesso linguístico, logo
à chegada.
A viagem foi calma, grande parte dela no periférico de Paris. Pude então observar
que, a certa altura, tomámos o desvio na direcção do centro da cidade e foi aí que percebi
que íamos entrar concretamente e mergulhar na enorme Paris. Tive dificuldade em prestar
atenção a tantos pormenores, direcções, edifícios e, quando dei por mim, já estava perdida
em tantos sentidos únicos, semáforos e rotundas. Desisti de tentar compreender e
identificar onde estava, quando olhei e vi a marca incomparável da cidade: a torre Eiffel.
Fiquei um pouco desiludida com a minha primeira impressão e o meu pensamento
imediato foi “Pensei que fosse maior…”. De facto, já a tinha visto inúmeras vezes na
televisão e realmente a ideia com que se fica é outra. A viagem continuou e, entre
inúmeros desvios, não demorei mais de trinta minutos a chegar ao destino.
O endereço era uma referência aproximada do local onde eu ia residir que, podia
agora observar, se localizava muito próximo da Cité Universitaire. O apartamento
pertencia a um edifício cinzento de aspecto estável, com cinco andares. Olhei. A porta de
entrada do prédio parecia ter sido esculpida por artistas de há dois séculos atrás. Retirei da
mala um par de chaves de aspecto tosco mas consistente, que se relacionavam com o
aspecto do prédio. Ao entrar, encontrei um hall antigo, mas bem conservado, forrado a
mármore cinza, plantas a flanquear as paredes e logo após cinco degraus de escadaria,
diversas caixas de correio harmoniosamente esculpidas na parede, com a mesma precisão
e detalhe que tinha encontrado na porta de entrada do prédio. Espantoso! Seria impensável
existirem prédios assim em Portugal sem serem imediatamente vandalizados no dia
seguinte.
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Percorrido o hall, finalmente, encontrei o elevador. Lá dentro, cabia eu e as minhas
modestas bagagens, – com alguma dificuldade - e desejei sinceramente não encontrar
ninguém até chegar ao terceiro andar, onde teria que sair. Felizmente, não havia
movimentação àquela hora e cheguei ao destino sem demoras nem interrupções. Ao sair
do elevador, procurei pela letra C, que encontrei facilmente. Apressei-me a destrancar a
porta e entrei.
Estava escuro, procurei com a mão por interruptores ao longo da parede a que
tinha acesso, até que encontrei o que pretendia, clicando imediatamente. Agora com
luminosidade, entrei com as bagagens e fechei a porta atrás de mim, para me deparar com
um apartamento escassamente mobilado. Ao entrar, reparei que as paredes do hall tinham
um tom amarelo suave, assim como todas as divisões, excepto a cozinha e a casa-de-
banho, que estavam forradas a azulejos de uma cor neutra, clara. Havia dois quartos e uma
sala pequena. Fui imediatamente abrir as portas dos quartos e concluí que eram
exactamente iguais, em termos de espaço e acessórios: uma cama, roupeiro e secretária.
“O essencial para estudantes”, pensei. A única diferença era a vista, pelo que, sem
grandes hesitações, ocupei o quarto que tinha vista para a Boulevard Jourdan, por me
parecer mais luminoso. Ao colocar as bagagens em cima da cama, ocorreu-me com algum
nervosismo que ainda não tinha realizado o telefonema obrigatório para os meus pais.
Apressei-me a encontrar o telemóvel e efectuar a chamada, atendendo-me uma voz
masculina que eu conhecia muito bem.
- Sim, pai?
- Oh, filha, então? Já chegaste há muito tempo?
A sua voz evidenciava uma preocupação marcante.
- Sim, talvez… meia hora. Mas está tudo bem.
- Ainda bem, querida. E… já estás em casa?
- Já, já…
- E que tal?
- É…acolhedora - afirmei, com alguma hesitação na escolha da palavra. - Serve
perfeitamente para o que eu estou cá a fazer.
- O teu tio confirmou-me que está bem localizada e em boas condições.
- Sim, pai, é óptima!
- A outra rapariga também chega hoje, mas provavelmente mais à noitinha.
- Ah, é verdade…
- Vais ver que ela é simpática e que se vão dar bem!
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- Espero que sim… Não estou com muita disposição para festas e paródia neste ano aqui
em Paris - declarei, algo incomodada. - Estou aqui para estudar e não para festejar -
esclareci, com um tom um pouco amargo.
- Garantiram-me que ela é estudiosa - disse o meu pai, com um tom de voz esperançoso.
- Espero que sim. Agora vou arrumar as coisas e talvez comprar algo para o almoço.
- Está bem. Nós telefonamos à noitinha.
- Ate já então.
- Se precisares de alguma coisa, liga, está bem?
- Está bem.
- Até já.
- Até já.
Ao desligar o telefone, respirei fundo. A minha cabeça parecia um turbilhão. A
ideia de ter que partilhar a casa com alguém que eu não conhecia assustava-me um pouco.
Eu prezava bastante a tranquilidade para poder estudar em paz e se a rapariga se
comportasse como uma boémia íamos certamente entrar em conflito. Pior, se fosse uma
hippie com ideias vanguardistas e rotinas excêntricas, certamente quereria divertir-se sem
limites e eu iria seguramente arreliar-me. Assim, avizinhar-se-ia um ano académico
catastrófico.
Sentei-me na beira da cama, um pouco incomodada com a minha última linha de
pensamento. Definitivamente não podia estar já a imaginar um desfecho tão funesto para
esta relação com uma pessoa que eu ainda nem sequer conhecia. Pelo menos, teria que lhe
dar o benefício da dúvida, dar-lhe uma hipótese de se revelar. Não iria ser assim tão
complicado coabitar com alguém – completamente – desconhecido. Definitivamente,
precisava de aclarar as ideias. Dirigi-me à casa-de-banho, localizada estrategicamente
entre os dois quartos, entrei e olhei para o espelho. A imagem reflectida resumia-se a um
semblante de cansaço, preocupação e expectativa, com umas ligeiras olheiras e uns longos
caracóis monótonos. Hoje sentia-me diferente, talvez pelo facto de estar num país
estrangeiro… e de me ter levantado a horas impróprias para chegar sem atrasos ao
Aeroporto. A minha face consistia numas feições suaves, o nariz semi-arrebitado, coberto
de sardas, assim como a zona malar. Sem dúvida tinha sido o intenso sol de Verão do sul
de Portugal o responsável pelo destaque que esta minha imagem de marca apresentava,
assim como pela maior intensidade da cor da pele. Até os meus olhos evidenciavam uns
ocasionais laivos esverdeados na íris castanho-avelã que, com o sol, também sobressaíam.
O cabelo era, quase sempre, o grande causador de modestos atrasos matinais. Quando
estes genes são dominantes, os descendentes não têm hipótese de escolha, a não ser uma
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elevada quantidade de acessórios para controlar o volume que, às vezes, mais parece
omnipotente. Por isso, nunca o podia deixar crescer mais do que tinha neste momento,
sensivelmente na linha média das costas.
Rapidamente concluí que um duche seria a melhor opção. Ágil, saltei para a banheira e o
alívio foi-se revelando quase imediato, a tensão foi desaparecendo à medida que a água
quente corria, atenuando assim os pensamentos menos bons.
O resto do dia decorreu pacificamente e nem me apercebi da passagem do tempo,
enquanto arrumava as bagagens e a escassa roupa que levava, tentando ainda personalizar
o quarto (que estava bastante descaracterizado), mas sem sucesso evidente.
Eram sensivelmente seis horas da tarde quando ouvi a porta principal abrir-se. Só
poderia ser ela. A hippie, a boémia, concebida na minha mente. Saí rapidamente do quarto
e dirigi-me ao hall de entrada, para encontrar uma rapariga esguia, de cabelo e olhos
escuros, de aparência elegante, muito característica. Exactamente na zona central da testa
evidenciava um sinal avermelhado, de um tamanho considerável, denunciando a sua
origem. Os olhos dela eram enormes, expressivos, escuros mas muito bonitos e que,
juntamente com as suas harmoniosas feições, lhe conferiam uma expressão muito alegre,
contagiante. Até os lábios dela pareciam ter sido minuciosamente desenhados, e o cabelo
negro que possuía parecia, literalmente, brilhar de tão liso que era, mais ou menos do
tamanho do meu. Exibia uma espampanante veste com diversos tons de azul que faziam
sobressair as suas modestas formas e estava acompanhada por um homem de feição grada
que, pelos traços faciais, só poderia ser um familiar próximo, provavelmente o pai. Ambos
tinham uma cor característica que imediatamente cataloguei de asiática – indiana, muito
provavelmente – e falavam num dialecto que confirmou as minhas suspeitas. A rapariga
dirigiu-se a mim com um sorriso, estendendo-me a mão.
- Bonsoir!
Raios.
Ela falava em francês. Senti-me a bloquear, incapaz de formular uma única frase,
presumia eu que fosse da surpresa que, certamente, deveria estar espelhada na minha face.
- Inglês? - Sorriu ela, timidamente, semicerrando um pouco os olhos.
- Sim, por favor - afirmei eu, com um tom um pouco desesperado. Ainda me sentia muito
pouco à vontade com esta nova língua que em breve teria que dominar. De facto, poder
falar qualquer outra língua (que não a minha língua materna) com um mínimo de à-
vontade, era deveras confortável.
- É o meu pai - declarou a rapariga.
- Dhaval.
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O senhor estendeu-me a mão, cumprimentando-me vigorosamente. Apresentei-me.
- Maria.
- És a sobrinha do Henri, n’est ce pas?
- Sim.
- Estás bem recomendada. O teu tio diz maravilhas de ti.
Sorri suavemente mas fiquei um pouco incomodada. O que andaria o meu tio a
dizer? Muito provavelmente a espalhar aos sete ventos que a sobrinha dele já era quase
médica, a alegria e o orgulho da família. E isso não era uma coisa que eu apreciasse
particularmente.
- Bem, vou-vos deixar. Ainda tenho muito para fazer hoje – referiu. - Maria, foi um
prazer.
- Igualmente – disse eu.
E assim, saiu rapidamente, despedindo-se da filha. Pude constatar que era um
homem de poucas palavras. Imediatamente após o pai sair, a rapariga dirigiu-se a mim
com ar indignado.
- Oh, Maria, que falta de educação a minha! Chamo-me Bhaktivashya, - declarou ela,
triunfantemente. E continuou, – significa Aquela-que-é-conquistada-por-devoção.
Fiquei sem palavras e, involuntariamente, arregalei os olhos em sinal de espanto.
O nome dela significava… isso? Esperaria ela que eu lhe dissesse o significado do meu?
Maria?… hum, não fazia ideia, mas neste momento talvez significasse Aquela-que-tem-
cara-de-idiota-sem-fazer-muito-esforço. E, para não mencionar aquele nome, que era
simplesmente impronunciável. A minha expressão facial certamente seria um espelho de
surpresa e espanto.
- Já sei que é difícil de proferir, mas… é o meu nome - declarou ela, ligeiramente
ressentida com a minha aparente inércia.
- E…não há alternativas? - Tentei solucionar.
- Não - afirmou ela, com um tom irredutível.
- Não sei se consigo… verbalizar. E que tal um diminutivo? - Disse eu, tentando esboçar
um sorriso.
Ela não parecia muito feliz com a minha constatação. Mas que poderia eu fazer?
Era, sem dúvida, uma palavra que não se conseguia pronunciar sem pensar várias vezes e
ela não me estava a dar alternativas. De repente, algo se formou na minha mente.
- És indiana?
- Sim… – ela parecia curiosa com a minha pergunta.
- Importavas-te se eu te chamasse…Shiva? - Perguntei eu, a medo.
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Os olhos dela abriram-se expressivamente e eu fiquei momentaneamente
preocupada, porque não conseguia perceber se ela estava contente ou… ofendida com a
minha sugestão.
- Sentir-me-ia muito honrada!... - Exclamou ela, visivelmente sensibilizada.
Não pude evitar rir, lançando uma pequena gargalhada. Honrada, pois claro que
sim. Quem não se sentiria honrada se alguém sugerisse chamá-la pelo nome do deus
supremo, meditante e benevolente, onde se diz residir toda a alegria? Não obstante, era
bem mais prático e… fácil de pronunciar, acima de tudo. A minha pequena explosão de
originalidade valeu-me sorrisos para o resto da tarde e noite. Shiva estava muito
entusiasmada com a ideia de vivermos juntas – ainda que fosse só por um ano -,
conversarmos e treinarmos várias línguas. Realmente era uma situação caricata: eu era
portuguesa, ela era indiana, ambas comunicávamos em inglês e estávamos num país de
língua oficial francesa. Seria, certamente, um ano muito produtivo em termos linguísticos.
Acompanhei-a na arrumação do quarto, ajudando-a a desfazer as inúmeras bagagens que
trazia. Fiquei então a saber que, apesar de ser de origem indiana, estudava Física em
Londres e estava em Paris este ano no Programa de Intercâmbio, tal como eu, por
conselho paternal. Pareceu-me uma rapariga calma, apesar de bastante extrovertida, o que
de certo modo atenuou as preocupações com que estava há algumas horas atrás.
Nessa noite encomendámos uma pizza para o jantar. Ambas tínhamos alguma
dificuldade em comunicar abertamente em francês e como tal constatámos que ainda não
estávamos preparadas para a grande Paris e o seu enorme esplendor. Afinal de contas,
tínhamos chegado a um novo país ainda não havia vinte e quatro horas. Como era
domingo, resolvemos projectar as tarefas para o dia seguinte: ainda não tinham começado
as aulas, havia tempo para explorar as faculdades, horários e desvendar as labirínticas
linhas do Metropolitano, Comboios e outros eventuais transportes públicos de que
pudéssemos necessitar. Senti-me mais acompanhada e até satisfeita por ter esta rapariga
como colega de casa, ainda que só a conhecesse por algumas horas. Já passava da meia-
noite quando nos fomos deitar.
Acordei sobressaltada e ainda demorei alguns segundos a relembrar-me onde
estava, no entanto o barulho e as vozes na rua ajudaram-me a tirar qualquer dúvida. Sim,
estava mesmo em Paris e eram oito da manhã. Ainda fiz algumas tentativas para voltar a
adormecer mas como já não conseguia dormir, resolvi levantar-me e preparar-me para o
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dia em cheio que me esperava, a mim e à minha companheira, Shiva. Quando saí do
quarto pude constatar que ela estava já a pé, preparada, com o pequeno-almoço pronto,
para duas pessoas. Surpreendentemente, Shiva hoje já não trazia a característica veste com
que a tinha visto ontem.
- Olá, bom dia! - Disse ela, alegremente.
- Bom dia! - Respondi eu, enquanto olhava de forma surpresa para a quantidade exagerada
de comida que Shiva tinha disposta na mesa da cozinha. Era mais que suficiente para
quatro ou cinco pessoas.
- Hoje ofereço eu. Aqui mesmo ao virar da esquina está um pequeno supermercado -
explicou ela, triunfantemente.
- Estás a habituar-me mal! - Retorqui eu, sorrindo, enquanto me sentava na cadeira que
estava mais próxima de mim.
Tomámos o pequeno-almoço enquanto conversávamos alegremente sobre o que
iríamos fazer nesse dia que, decerto, não iria ser nada monótono. Decidimos que primeiro
iríamos à descoberta das nossas faculdades, depois almoçar e, durante a tarde, visitar um
pouco de Paris.
Saímos e procurámos o Metropolitano que, segundo Shiva, era a forma mais rápida de
chegar fosse onde fosse. Não foi muito difícil encontrá-lo, no entanto, tivemos que optar
primeiro pelo eléctrico, para poder chegar à estação de metro mais próxima. Decifrar
todas aquelas linhas apresentava-se uma autêntica Odisseia, pelo menos para mim, que
somente estava habituada às escassas cinco linhas do Metropolitano de Lisboa. Mais uma
vez me valeu a experiência da minha recente amiga, que estava familiarizada com as
linhas igualmente complexas do Metropolitano Londrino.
Chegámos, sem grandes demoras à Faculté de Physique, onde acompanhei Shiva nas suas
tarefas e burocracias relacionadas com alunos de Intercâmbio. Foi aí que ficámos a saber
que nesse mesmo dia haveria uma reunião para alunos de Intercâmbio de todos os
Centros.
- Lá se vai a nossa tarde de passeio - retorquiu Shiva.
- Ainda podemos aproveitar grande parte da tarde. Já viste as horas da reunião? - Disse eu.
- Às nove da noite?! - Exclamou ela.
Limitei-me a sorrir, levantando ligeiramente o sobrolho.
- Vamos, que ainda tenho que descobrir onde é a minha faculdade - Alertei eu.
A faculdade de medicina encontrava-se a algumas estações de metro de distância
da faculdade que Shiva frequentava. Ainda me sentia vagamente deslocada naquela
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imensidão de cidade, mas certamente iria adaptar-me, mais tarde ou mais cedo. Uma vez
na faculdade, procedi às mesmas burocracias e mais uma vez confirmámos a existência da
dita reunião para alunos de Intercâmbio, confirmando de novo a hora e o local: às vinte e
uma horas, na Biblioteca Universitária da Universidade Paris 6 Pierre e Marie Curie, à
qual ambas as nossas faculdades pertenciam.
A manhã já estava praticamente no fim e aproximava-se a hora de almoço. Por conselho
das simpáticas funcionárias da faculdade, fomos almoçar à Maison Internacionale, que
fazia parte da Cité Universitaire, um agradável campus onde existia um refeitório, um
pequeno bar e inúmeras residências para estudantes, das mais variadas nacionalidades. Era
um espaço muito engraçado, com relvados enormes e uma disposição harmoniosa.
Almoçámos e saímos. A tarde estava muito luminosa e quente, mesmo para início de
Outubro e, como tal, resolvemos passear um pouco pelo vasto Campus, admirando e
observando os vários edifícios que formavam as residências, cada um com características
do seu país.
Com espanto, pudemos constatar que o nosso modesto apartamento se localizava muito
perto de uma das saídas do Campus, o que seria certamente muito prático nas alturas em
que o tempo para cozinhar fosse escasso.
A tarde passou vagarosamente, mas de forma muito agradável, em conversa com a
minha nova amiga. Perto das oito e trinta da noite, pusemo-nos a caminho, para estarmos
a horas na dita reunião. Shiva estava muito agitada, presumo eu que fosse da expectativa
de conhecer novas pessoas, em situação similar à nossa.
Quando lá chegámos, foi fácil perceber quem eram os alunos de Intercâmbio, porque
tinham um ar tão perdido quanto o nosso, seguramente. A maior parte deles encontravam-
se espalhados em pequenos grupos de três, quatro pessoas, sentados nas escassas cadeiras
encostadas à parede, conversando timidamente. Sem aviso prévio, Shiva resolveu dirigir-
se a um pequeno grupo de duas pessoas que estavam de pé, em frente a umas portas
gigantescas que provavelmente pertenceriam a um anfiteatro.
- Bonsoir! - Exclamámos, sorrindo.
Shiva foi a primeira a iniciar a conversa, primeiro em francês e, cerca de cinco afirmações
depois, em inglês, pelo que percebi que grande parte das pessoas que ali estava não
compreendia o francês melhor que eu.
Aquele era um par bastante sui géneris: Vera, era uma dinamarquesa séria, alta, esguia e
de tez branca como neve, olhos azul celeste e cabelo tão loiro que quase parecia branco;
Thomas era alemão, mas não muito típico, pois tinha olhos e cabelos castanhos, de
estatura média e um sorriso muito expressivo. Pela forma como comunicavam, era óbvio
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que ambos partilhavam mais do que exibiam, o que me fez pensar que talvez já se
conhecessem há mais tempo. Shiva estava destemida, focada em não deixar morrer a
conversa com aqueles dois estudantes que quase não tinham tempo para elaborar
respostas. Com alguma dificuldade, consegui inserir-me na conversação que estava agora
a ficar mais leve, mais equilibrada, em suma, bastante agradável.
A certa altura, as portas do anfiteatro foram abertas por um funcionário que nos informou
que o professor responsável estava alguns minutos atrasado e, como tal, que entrássemos e
esperássemos alguns minutos. Entrámos e sentámo-nos todos perto uns dos outros, o que
facilitava a comunicação. Podia agora constatar que Shiva já tinha estendido a sua
extasiante simpatia aos restantes alunos que ali se encontravam e, inclusivamente, estava
já a combinar uma saída e um jantar para todos os alunos de intercâmbio, incluindo
eventuais visitas a várias zonas de Paris.
O nosso pequeno grupo manteve-se animado e entretido durante cerca de dez minutos, até
que entraram duas pessoas no anfiteatro. Todos nós olhámos automaticamente na direcção
deles, presumindo que fossem alunos de Intercâmbio e esperando, naturalmente, que
viessem juntar-se a nós. Contudo, não foi isso que aconteceu. Os dois alunos sentaram-se
no canto exactamente oposto ao nosso e não se incomodaram, nem em cumprimentar-nos,
nem em olhar na nossa direcção. Era como se nenhum de nós estivesse ali. Como se não
existíssemos.
Shiva estava sentada à minha direita e também olhava surpresa – quase ofendida –
para aqueles dois estranhos alunos, que tinham um aspecto desconcertante. Ambos
vestiam roupas escuras e o aspecto geral era bastante descuidado. Um deles tinha cabelo
negro, disposto de forma a esconder os olhos negros que se deixavam adivinhar pelos
movimentos erráticos que fazia e a sua pele, branca como cal, fazia sobressair o negro do
cabelo e olhos. O outro também tinha uma tez branca, de um pálido doentio e o cabelo
escuro, também desalinhado, caía-lhe para a face, como se estivesse a tentar escondê-la.
Não consegui distinguir a cor dos olhos mas, de um modo geral, este tinha um aspecto
ligeiramente melhorado, dentro do género.
A postura deles era perturbadora. Estavam ligeiramente curvados para a frente, como se
estivessem com alguma dor ou algo a incomodá-los superficialmente, como se um
nervoso miudinho se tivesse apoderado deles e os impedisse de relaxar. As mãos e os
braços, ora se mantinham escondidos, ora pendiam das cadeiras com uma postura tensa,
enquanto murmuravam entre si palavras ininteligíveis.
Foi Shiva que interrompeu a minha observação com uma constatação que nos fez a todos
desviar o olhar.
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- Devem ser de Artes… - sussurrou.
- Sejam eles do que for, são assustadores - constatei, com alguma tensão.
- Que aspecto horrível…- afirmou Vera.
- Se calhar são tímidos…- declarou novamente Shiva, com um tom esperançoso. - Se
estão aqui, são alunos de intercâmbio.
Olhámos todos para ela. Uma constatação óbvia. Claro que eram alunos de intercâmbio,
mas não tinham que ser obrigatoriamente simpáticos como todos os outros que ali se
encontravam.
O professor responsável pela reunião chegou finalmente, entrando apressadamente,
atribuindo a demora ao trânsito e desculpando-se repetidamente. A chegada do professor
tinha desviado a nossa atenção dos perturbantes recém-chegados e agora fitávamos
atenciosamente o professor que retirava com uma rapidez desastrosa, inúmeros papéis da
sua volumosa pasta. Observei à nossa volta e constatei que o anfiteatro estava
escassamente ocupado por um total de dez pessoas.
Finalmente, dava-se início à reunião, que consistia numa série de avisos, ajudas e
conselhos para os alunos de Intercâmbio, com a finalidade de os ajudar na integração e
facilitar a compreensão da língua durante o tempo que estaríamos em Paris.
Estava com alguma dificuldade em concentrar-me no discurso monótono do professor e,
mais uma vez, olhei discretamente para aquele par perturbador. Era inevitável não olhar
para eles, mas não pelas melhores razões. Naquele momento, estavam ligeiramente
agitados, mantinham uma frequência respiratória algo irregular e, ocasionalmente,
afastavam o cabelo da cara. Foi então que observei que, afinal, o rapaz de “melhor”
aspecto tinha olhos claros e a cor da pele, definitivamente, apresentava uma tez muito
pouco saudável. Por momentos considerei se aqueles dois poderiam ter algum problema
que pudesse explicar o aspecto tão doentio que tinham. Sim, definitivamente, tinham que
ter algum problema e, fosse o que fosse, era concomitante com a sua aparência
absolutamente sinistra, principalmente o dos olhos negros que parecia, agora, imerso num
transe que lhe dava um aspecto quase animalesco.
Esta minha última constatação obrigou-me a desviar o olhar e já não consegui espreitar
nem mais uma vez aquelas duas figuras que, sem sombra de dúvida, tinham algum
problema, viessem donde viessem. Ainda estava eu a fazer um esforço considerável para
me abstrair daquela visão transtornante, quando ouvimos tocar um telemóvel. Era do
professor que, mais uma vez se desculpou, afirmando que tinha que atender a chamada.
Imediatamente começou o burburinho característico no pequeno grupo de alunos em meu
redor.
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- Eu vou convidá-los para o jantar - declarou Shiva, decidida.
Olhei para ela, incrédula.
- Vais fazer o quê?
- Então, eles são nossos colegas. Eu vou lá - insistiu ela.
- Não percebo para quê Shiva!! Eles não estão interessados!!... É bem visível - afirmei eu,
tentando, de alguma forma, demovê-la.
- Tentar não custa - disse ela, piscando-me o olho, com um sorriso malandro.
- Boa sorte… - sussurrei. Claramente Shiva gostava de desafios. Só podia ser essa a razão
pela sua disparatada insistência.
Sinceramente não compreendia qual era a sua verdadeira intenção. Que interesse poderia
ela ter naqueles dois? Observei atentamente a investida da minha recente amiga, enquanto
ela se dirigia a eles, lentamente, sem aquelas duas figuras sequer olharem na nossa
direcção. Uma vez lá, pude constatar que a cara de espanto deles era tão óbvia quanto a
dela, o que me fez esboçar um leve sorriso, que tentei esconder de imediato. Shiva iniciou
o seu discurso pausadamente, em inglês, explicando o que estava a organizar, não que eu
estivesse a ouvir o que ela dizia, mas o tema já me era familiar. Eles olhavam para ela de
uma forma estranha, visivelmente surpreendidos, como se dela emanasse ousadia,
simplesmente por se ter dirigido a eles. Por instantes, pensei que tudo fosse descambar
naquele momento.
Pude, então, observar que só o dos olhos negros falou, interrompendo o discurso de Shiva,
que o olhava boquiaberta enquanto ele proferia as palavras que eram, sem dúvida,
agressivas, pelo tom que ele exibia e pela face atónita que Shiva evidenciava. O outro
rapaz, sem nunca falar, olhava-a ocasionalmente com ar desinteressado e vago. Ele era,
sem dúvida, misterioso, com feições mais elaboradas, mas ainda assim não deixava de ser
intimidante.
A determinada altura, vi a minha colega regressar na minha direcção, com uma expressão
de censura absoluta. Tal como seria de prever, a conversa não tinha sido, de todo,
amigável.
- Então? - Perguntei eu.
- São uns antipáticos - respondeu Shiva.
Olhei para ela com ar inquiridor, mas não surpreendida.
- Era previsível…
- Aquele italiano idiota disse-me que não estavam interessados - afirmou ela, visivelmente
ofendida.
- Italiano?
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- Sim, aquele dos olhos negros. Tem um sotaque inconfundível - confessou ela, com um
tom um pouco amargo.
- E o outro?
- Deve ser mudo - disse ela, sarcasticamente. - Não proferiu nem uma palavra.
- E são artistas? - Brinquei eu.
Ela olhou para mim com uma expressão divertida.
- Por acaso são. Tal como eu suspeitava - afirmou, sorrindo.
O regresso do professor e da sua interminável chamada telefónica trouxe-nos de volta à
realidade. A reunião recomeçou e, mais uma vez, aqueles estranhos rapazes se
mantiveram à parte, como se de foragidos se tratasse. Por uma única vez, interromperam o
professor e foi a vez do rapaz de olhos claros falar, num francês tão fluido e elegante, que
quase me fez duvidar que de um aluno estrangeiro se tratava. A sua voz era tão segura e
forte, que parecia não pertencer a uma pessoa com um aspecto tão inconsistente e…
estranho. O professor olhou-os de forma atónita e, após pestanejar um par de vezes,
acenou, dando-lhes clara permissão para saírem. Reparei então que ambos eram de
estatura média e que a forma como se afastavam reflectia alguma urgência. Sinceramente,
fiquei aliviada por vê-los sair.
Voltei a olhar para Shiva. Felizmente, podia constatar que o episódio anterior não lhe
tinha deixado marcas muito profundas, pois que já se encontrava a segredar palavras
divertidas aos nossos recentes amigos, como se nada se tivesse passado.
Foi então que percebi que a reunião já tinha terminado e que o afamado jantar que incluía
todos os alunos de intercâmbio já estava marcado para o próximo sábado, às oito da noite,
em Montmartre.
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CAPÍTULO 2 - MONTMARTRE
A SEMANA QUE SE SEGUIU FOI BASTANTE PRODUTIVA A NÍVEL SOCIAL.
A chegada à faculdade nos restantes dias da semana revelou-se muito agradável e,
para minha surpresa, a maior parte dos colegas eram bastante simpáticos e afáveis. Como
qualquer pessoa que vai estudar para o estrangeiro, tinha algum receio de não ser
particularmente bem recebida, mas felizmente não foi esse o caso. Conheci uma rapariga
bastante amável que, ao ver o meu semblante perdido, se dirigiu a mim, oferecendo a sua
ajuda. Chamava-se Adèle e era uma rapariga de tez rosada, com olhos claros - azulados –,
cabelo castanho claro, ligeiramente ondulado e de feições tão características que a faziam
assemelhar-se a uma boneca de porcelana. Desde que a conheci, mantive-me quase
sempre perto dela, dentro e fora das aulas, questionando-a constantemente acerca do
funcionamento das aulas práticas e dos inúmeros entraves linguísticos com que me
deparava.
Finalmente, chegava o fim-de-semana e poderia descansar minimamente, se não
fosse a energia inesgotável da minha colega de casa que, às oito da manhã de sábado, já
estava pronta para dar início a uma tournée pelas lojas de Paris. Compras.
Não tive muita hipótese face às suas investidas e argumentos acerca das inquestionáveis
razões para sair da cama tão cedo. E assim foi. Eram dez da manhã e já estávamos em La
Défense, uma zona nos subúrbios oeste de Paris com inúmeros edifícios ultra-modernos
que criavam uma atmosfera quase independente do resto da cidade. Ali, num imenso
centro comercial espelhado, - Les Quatre Temps - pretendíamos cumprir o objectivo de
saciar o apetite consumista de Shiva. Pessoalmente, não estava com muita disposição para
fazer compras, mas a convicção da minha recente amiga era tal que, meia hora depois, já
estava a experimentar roupa com ela.
Apesar da minha escassa iniciativa em tocar em assuntos que não fossem a faculdade,
tinha que admitir que estaria a perder muito divertimento se não estivesse com ela e, até
certo ponto, se não me deixasse levar, de vez em quando, pelas suas extravagâncias.
Talvez este fosse um ponto (entre tantos outros, sem dúvida alguma) que eu devesse tentar
melhorar na minha fastidiosa personalidade. O que restava da manhã, assim como toda a
tarde, passou célere, enquanto nos divertíamos e, rapidamente se aproximava a hora do
jantar em Montmartre, o momento tão esperado do dia para Shiva.
Saímos de La Défense e rumámos para Montmartre, para o local onde o jantar ia
ter lugar. Extasiada, Shiva informava-me que tinha sido ela a escolher o restaurante, a
reservar mesa e que estava muito entusiasmada com a expectativa de conhecer melhor os
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colegas de intercâmbio que, segundo ela, por terem mais em comum, tendiam a
aproximar-se uns dos outros, o que não era, de todo, irreal, mas não era regra geral, como
tínhamos observado em primeira mão na reunião de intercâmbio. E, mais uma vez, ela se
referia com amargura aos dois “artistas” antipáticos e anti-sociais que tão ofensivamente
se tinham recusado a fazer parte da sua ideia inovadora.
Montmartre localizava-se, literalmente, numa colina, assemelhando-se a uma
simples vila, mas de onde se podia observar a agitada metrópole Parisiense. Após
subirmos várias escadarias íngremes com centenas de degraus que quase me esgotavam as
forças – tendo em conta os quilómetros que já tinha percorrido no centro comercial –,
caminhámos por mais algumas ruas caracteristicamente estreitas, de calçada, onde as
moradias permaneciam pintadas de branco e onde existiam vários jardins que se
prolongavam até às mais variadas escadarias, rusticamente iluminadas por candeeiros
antigos. Chegámos finalmente ao local onde já se encontrava Thomas, presumivelmente à
espera que alguém conhecido aparecesse, naquele espaço que era a Place de Tertre. Ao
vê-lo, a face de Shiva iluminou-se de uma forma tão óbvia que tocava o exagero.
Sinceramente, ela conhecia-o havia meia dúzia de dias. Resolvi não dar importância ao
momento, pois provavelmente seria o entusiasmo a falar mais alto.
A Place de Tertre era relativamente ampla, mas não excessivamente grande, onde
existiam vários restaurantes, cafés e já se dispunham vários pintores com as suas telas,
expostas em vitrinas claramente improvisadas para o momento. Grande parte deles
dedicavam-se a desenhar retratos e caricaturas, abordando as pessoas que ali passavam,
disponibilizando a sua arte. Ponderei seriamente em pedir a um deles que me desenhasse a
carvão, mas se o fizesse, só seria depois do jantar.
Subitamente, vi Vera aproximar-se de nós, com um semblante próximo do da neutralidade
e, dirigindo-se a Shiva, informou-a que os outros não viriam, por motivos alheios ao
conhecimento dela. Como tal, éramos uma multidão de quatro pessoas para uma mesa
reservada para vinte. Pareceu-me ver Shiva corar de irritação, ao ver como o evento
organizado por ela não tinha tido o sucesso esperado. Após um pequeno silêncio, vi-a
dirigir-se ao restaurante, com o intuito de comunicar ao gerente que afinal, só eram quatro
pessoas. Thomas e Vera comunicavam, mais uma vez, sem palavras, deixando-me a
sensação de que algo mais se passava entre eles, embora eu não compreendesse o porquê
da necessidade de esconder fosse o que fosse. Mas enfim, eles lá teriam as suas razões.
Shiva regressava agora, com um semblante bem mais leve. Pelo alívio que emanava, o
diálogo com o gerente do restaurante tinha sido amigável.
- Vamos, então! - Informou ela, fazendo-nos sinal para entrar.
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O restaurante não era grande, mas tinha um aspecto bastante confortável, a decoração era
simples e típica. Sentámo-nos numa mesa para quatro pessoas, onde começámos a
conversar alegremente. Foi Thomas quem iniciou a conversação.
- Então, Maria…- afirmou, na minha direcção. Como reflexo, olhei para ele, curiosa. -
Estás em que faculdade?
- Eh… Medicina - respondi eu. - E tu? – Inquiri.
- Letras - retorquiu ele, com um sorriso. - Assim como Vera.
O característico sotaque cerrado de Thomas fazia-o proferir o “V” mais como “F”,
com vogais graves, de tal forma de mais parecia pronunciar o nome de Vera como Fêrra
e, constatar esta realidade fazia-me esboçar um leve sorriso, enquanto tentava abstrair-me
da sua cómica troca de consoantes.
- Estudam o mesmo? - perguntei eu, tentando dar continuidade ao diálogo.
- Não, eu estudo Filologia Germânica e Vera, Filologia Românica. Mas estamos ambos na
mesma faculdade.
- Claro - acenei eu, com um ligeiro sorriso. Agora sim, compreendia o porquê da
cumplicidade entre eles, pois era mais fácil conviver com alguém de áreas semelhantes, na
mesma faculdade, ainda que não me parecesse que fosse assim tão inocente. Seguramente,
algo se passava entre eles, ou então… ia passar-se, quase de certeza.
- Já exploraram Paris? - Disparou Shiva, mudando de assunto.
- Mais ou menos - declarou Thomas. E continuou, com um sorriso. - Ainda só passou uma
semana, só tive tempo para descobrir onde era a faculdade e localizar as salas de aulas.
- Como eu te compreendo… - afirmei eu, em tom de desabafo, na direcção dele.
Continuámos a conversar e a conviver animadamente, durante todo o jantar, ao
som da mais variada música francesa, donde se destacava a incrível “Le petit pan au
Chocolat” do não menos famoso Joe Dassin, a qual Shiva cantarolava divertida, pedindo
inclusivamente ao garçon que passasse a música repetidas vezes, para que ela pudesse
treinar o seu francês. Como opção unânime, resolvemos experimentar um prato típico do
país – Tartiflette - que se revelou uma escolha divinal, em termos gastronómicos, pois
consistia numa verdadeira iguaria concebida à base de queijo Reblochon.
Já eram quase onze da noite quando decidimos sair. Todos ríamos, genuinamente
divertidos com a nossa aparente dificuldade em comunicar as nossas intenções aos
pacientes garçons que nos serviam no restaurante, sempre com um sorriso nos lábios.
Desembocámos novamente na praça central, que agora parecia bem mais pequena, devido
à quantidade de pessoas que ali se encontrava.
- Crepes? - Sugeriu Shiva, olhando-nos, expectante.
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- Boa ideia! - Exclamou Vera.
- Vão andando. Eu já vou ter convosco - declarei eu, enquanto apontava na direcção dos
pintores. - Portrait - afirmei, com uma pronúncia marcadamente exagerada.
- Queres que espere por ti? - Sugeriu Shiva, sorrindo.
- Não, não é preciso…vai ser rápido. E não te preocupes, eu não me perco!
- É já ao fundo daquela rua. É fácil - elucidou Vera, enquanto apontava para uma das
ruelas à nossa esquerda.
- Até já! - Exclamei eu, enquanto me dirigia ao pintor que se encontrava disponível
naquele momento. Sentei-me no local que ele indicou e deixei-me estar, contemplando
aquele espaço, tentando memorizar os sons, os cheiros, os pormenores daquele sítio tão
agradável. Paris teria certamente imenso para oferecer e eu tinha que pensar, seriamente,
em tirar algum proveito.
Em vinte minutos o desenho estava terminado. O pintor entregou-mo e eu não pude deixar
de o observar de forma curiosa. Era estranha a forma como eu estava representada naquele
pedaço de papel: as linhas do meu rosto eram tão marcadas, o sorriso parecia forçado e os
olhos… bem, mostravam mais do que deviam, uma expressividade excessiva, com
demasiada transparência, um caminho directo até aos confins da alma. A única
característica que imediatamente identificava como minha era, sem dúvida, o cabelo, com
os caracóis viçosos e indomáveis. Nesta pintura, mais parecia estar a olhar para um
familiar afastado do que propriamente para mim própria. Engraçado, esta não era a
imagem que eu tinha de mim mesma e, lamentavelmente, talvez esta fosse a forma como
os outros me viam, como alguém comum e insalubre.
Repentinamente, despertei do pequeno momento de introspecção, para concluir que tinha
que ir ter com o resto do grupo que, a julgar pelo apetite voraz de Shiva, já teria
certamente dado lucro suficiente à casa de crepes. Olhei em meu redor, tentando orientar-
me e recordar para onde teria que dirigir-me. Apesar de todas as ruas me parecerem
iguais, alguns segundos foram suficientes para deduzir qual das ruas era a correcta e, de
forma apressada mas firme, pus-me a caminho.
Nas estreitas ruas por onde caminhava não circulavam veículos, somente pessoas
e, à medida que avançava, estas eram cada vez mais escassas. Era um bairro muito
pitoresco e alegre. Contudo, a noite estava escura e só a fraca luz dos candeeiros permitia
que eu visualizasse toda a longitude do percurso que me aguardava. Presumivelmente ter-
me-ia enganado, porque nesta rua não havia nenhum estabelecimento comercial e, em
meu redor, só existiam moradias, muito provavelmente abandonadas ou em recuperação.
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Definitivamente, havia pouco movimento e… Raios! Agora sim, tinha a certeza absoluta
que estava na rua errada.
À medida que caminhava pela calçada, só ouvia o som dos meus apressados
passos, enquanto pensava na forma mais rápida de encontrar a rua correcta, até que, a
certa altura, fui invadida por uma sensação de desconforto. Claro…o escuro e a minha
imaginação, a dupla infalível para alimentar os mais ridículos pavores na minha cabeça.
Estava distraída, pensando como iria reencontrar o meu grupo de amigos, quando ouvi um
gemido abafado vindo de uma ruela escura, à minha direita. De imediato, senti o meu
batimento cardíaco acelerar e, instintivamente, olhei na direcção do ruído.
Ali estavam duas pessoas, intimamente entrelaçadas junto à parede, só podia discernir o
pouco que a fraca luz do candeeiro me permitia. Parecia-me uma rapariga e um rapaz, mas
a confirmação só surgiu alguns momentos depois: a rapariga tinha cabelo loiro, comprido,
algo emaranhado e o rapaz, alguns centímetros mais alto do que ela, tinha cabelo escuro,
que lhe cobria a cara enquanto estava debruçado sobre ela. Ele tinha também um casaco
indistinto, mas era só isso que conseguia ver, pois todo o resto estava obscurecido pela
escuridão da ruela. Subitamente, a rapariga moveu-se, trémula, descansando a cabeça
sobre o braço dele, que estava posicionado de modo a evitar qualquer tentativa de
movimento ou fuga.
Foi aí que vi a cara dela. A expressão dela era de surpresa e os seus olhos emanavam
terror e medo numa magnitude tal que eu pensava não ser possível existir. Do seu nariz e
boca semi-aberta, escorria lenta e vagarosamente um líquido viscoso avermelhado que,
instintivamente, identifiquei como sangue. Fiquei presa naquela visão horrível, não
consegui falar, nem gritar, nem mover-me. O que se estaria ali a passar que eu não
conseguia compreender o que era, nem no que consistia?
O rapaz moveu-se ligeiramente, de forma lenta mas firme, afastando-se um pouco da
rapariga, sem nunca a deixar, até que o olhar dele encontrou o meu. Continuava sem
conseguir descobrir os traços da sua face, pois a sua postura era engenhosa e os seus olhos
claros tinham uma profundidade intemporal, um brilho absolutamente animalesco, que me
fez tremer de medo.
Eu não devia estar aqui, constatei para mim mesma. Ainda assim, não fui capaz de me
libertar do seu olhar. Ele não me deixava.
O que era isto?
A cor pálida da sua pele, era algo que me era familiar, mas de onde? Tinha uma cor tão
pouco natural, tão… doentia. Subitamente, engoli em seco. Eu sabia quem ele era, a sua
tez tinha-o denunciado.
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Mas o que estava ele a fazer? – Questionei-me.
- Maria! - Ouvi repentinamente. Pude libertar-me daquela agonizante visão e olhar na
direcção oposta. Pelo tom de voz, era Shiva que chamava por mim. - Estamos aqui!
Instintivamente, voltei a olhar para a ruela e, para minha surpresa, não encontrei nada,
nem vestígios, nem marcas de que alguém ou algo tivesse estado ali segundos atrás. Por
momentos, pensei se tudo o que tinha visto não teria sido imaginação minha. Não.
Definitivamente, não poderia ter imaginado algo tão vívido, algo tão… intenso.
Dirigi-me apressadamente na direcção do pequeno grupo que agora me esperava ao fundo
da rua.
- Então? Perdeste-te? - Brincou Thomas.
- Acho que sim… - sussurrei eu, com um sorriso amarelo, ainda chocada com o que
acabara de observar.
- O que foi? - Questionou Shiva, dirigindo-se a mim e observando a minha postura tensa.
Senti alguma relutância em descrever o que tinha observado. Não era algo fácil de
relembrar.
- Acho que vi ali qualquer coisa… – confessei, para logo depois, desmentir. - Não, eu
acho que não vi nada… – referi, mais como um sussurro, como se estivesse simplesmente
a pensar alto. Todos eles me olhavam como se eu estivesse à beira da loucura.
- Mas, afinal, viste ou não viste… algo? - Reforçou Thomas, visivelmente curioso.
- Parece-me que… sim - afirmei eu, concordando comigo própria, absolutamente segura
de que tinha, efectivamente, visto algo.
- E? - Perguntou Vera, olhando-me, também curiosa.
- Foi muito estranho… - comecei eu.
- Estranho? - Agora era a vez de Shiva revelar impaciência face à minha relutância em
falar.
- Sim…ali, numa ruela, estavam um rapaz e uma rapariga… - ia eu começar, quando Vera
me interrompeu bruscamente.
- Ah, isso. Acontece muito por aqui.
Olhei para ela com olhar inquisidor, atónita.
- Prostituição - esclareceu ela.
- Não me pareceu… isso - hesitei eu, semicerrando os olhos enquanto relembrava o
episódio que havia observado, na minha mente. - Ela estava a… - hesitei um pouco antes
de dizê-lo. - …sangrar do nariz e da boca.
- Hum!! Um cliente violento, talvez - brincou Thomas.
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Definitivamente, não me estavam a levar a sério. O que seria necessário eu afirmar para
que os conseguisse convencer de que aquilo era algo mais que um simples episódio de
prostituição?
- O rapaz… eu reconheci-o - declarei eu.
Foi instantâneo. Olharam todos na minha direcção como eu fosse comunicar um segredo
de estado.
- Era um dos rapazes da reunião - sussurrei eu, como se tivesse receio de o afirmar com
um tom de voz mais elevado. Seguiu-se um pequeno e incómodo silêncio.
- Os artistas? - Vociferou Shiva, espantada.
- A-Acho que sim - hesitei eu, uma vez mais, embora estivesse completamente segura de
que era ele, era aquele rapaz da reunião.
Novamente, senti-me o centro das atenções, mas não pela melhor razão. Provavelmente
pensariam que eu era doida ou então que era muito inocente, por não ser capaz de
reconhecer à simples vista uma prostituta a trabalhar. Senti o olhar de crítica dos meus
colegas na minha face. Claro está que foi Shiva que quebrou o gelo com a mais inesperada
intervenção.
- Oh! Será que ele a vai levar para casa e pintá-la numa tela, como fez aquele artista no
vídeo Always dos Bon Jovi?
- Shiva! Por favor! - Exclamei eu.
Foi gargalhada geral, a qual tive que acompanhar, dado o ridículo da afirmação.
- Não é nada fora do comum nos artistas, Maria - afirmava agora, Thomas.
- O quê?
A minha curiosidade era sincera, estaria ele a referir-se a levar prostitutas para casa para
as pintar?
- Contratar… serviços.
- Ah…
Pois claro, serviços. Tudo isto era demasiado excêntrico para mim. Estudantes
estrangeiros de Arte a contratarem “serviços”? Ao fim de uma semana de aulas? Essa não
seria certamente uma associação que eu faria de modo imediato e aqueles rapazes da
reunião não pareciam ser desse tipo, apesar da sua aparência desconcertante…
- É que a rapariga… não parecia uma prostituta - referi, tentando justificar-me da melhor
forma possível.
- A maior parte delas não parece, Maria - constatou Thomas. - E as aparências iludem…
bastante - reforçou novamente.
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- Estamos em Paris, aqui as coisas são diferentes - advertiu Vera. - Não estás em casa,
Maria.
Pelo tom de voz, concluí que era claramente uma provocação e senti suavemente a
amargura das suas palavras expressarem a opinião que tinha de mim, que certamente se
aproximaria dos conceitos de ingénua e simplória. Não pude evitar olhá-la com
reprovação. O modo como ela se expressava era de uma austeridade lamentável. Eu sabia
o que tinha visto e sabia que não era nada daquilo que eles tentavam convencer-me que
era. Apesar de tudo, achei melhor deixar o assunto morrer ali. Não valia a pena, pois,por
mais que eu tentasse explicar que o que eu tinha visto me parecia mais do que uma
prostituta com um cliente, sempre encontrariam algum argumento que anulasse a minha
linha de pensamento e Vera sempre haveria de encontrar algo para continuar a descompor-
me. Por isso, continuámos a andar, até que nos dirigimos para a grande movimentação que
se encontrava perto da Basílica Sacré Coeur, apesar de já ser bastante tarde. A forma
como estava iluminada conferia-lhe um aspecto quase celestial, embora eu não
conseguisse deslocar a minha atenção para apreciar fosse o que fosse em meu redor.
Agora encontrávamos novamente as íngremes escadarias e as infindáveis ruas que nos
levariam – finalmente – até à Boulevard Rochechouart, movimentada o suficiente para
encontrar facilmente um táxi. Enquanto descíamos, Thomas, Vera e Shiva conversavam
alegremente. Só eu, não conseguia esquecer aquele episódio infeliz, talvez por estar ainda
demasiado recente na minha memória. Por momentos, desejei ser mentecapta e ignorante,
para que não conseguisse entender o que me rodeava nem pudesse contestar o que me
diziam. Talvez se não fosse minimamente inteligente, não teria a sensação de que tudo
aquilo que tinha testemunhado era mais do que parecia. E isso incomodava-me
profundamente.
Uma vez na Boulevard Rochechouart, Shiva apressava-se, com passos miudinhos, a
procurar um táxi. Estava cansada de tanto andar e instalava-se agora um vento incómodo,
frio para o que era costume em Outubro. O nosso pequeno passeio estava a tornar-se, a
todos os níveis, desagradável. Sentia um desejo súbito de chegar a casa. Despedimo-nos
rapidamente uns dos outros, com promessas renovadas de outros jantares e cafés em
conjunto, nas semanas seguintes.
Em qualquer sítio, mas não aqui, por favor.
Foi o último pedido que verbalizei para mim própria, assim que entrei para o táxi com a
minha colega de casa, rumo ao nosso apartamento.
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Aconchegada no conforto da minha cama, não conseguia fechar os olhos, pois
estava demasiado tensa com todos os acontecimentos dessa noite. O que mais me
perturbava naquela imagem que se negava a sair da minha cabeça era o olhar daquele
rapaz que tinha uma intensidade tão extraordinária quanto aterradora, como se tivesse
algum significado que eu não conseguia depreender qual era, como se ele estivesse a falar
numa língua que eu não entendia. Isto era extremamente frustrante, para além do facto de
eu não compreender o porquê das circunstâncias. Recusava-me a aceitar que fosse um
episódio de prostituição, tal como os meus colegas sugeriam de uma forma tão impetuosa.
Simplesmente não podia ser, porque eu sentia que não era assim e esta minha certeza
interior começava a ser tão perturbante quanto os factos em si. Fechei os olhos e tentei
relaxar, procurando uma linha de pensamento mais racional. Alguns minutos depois,
falhava completamente, outra vez. Isto tinha que parar, de uma vez por todas, pela minha
própria sanidade mental.
Concentrei-me arduamente. - Não interessa o que viste. Já passou. Não vale a pena
perderes tempo a pensar sobre algo que não tem importância… – e, a pouco e pouco,
tudo começou a melhorar. Senti a minha mente e corpo a relaxar quando, finalmente,
adormeci, num sono tranquilo e livre de sobressaltos.
Acordei já tarde, com alguém a tocar vigorosamente à porta do meu quarto. Só
poderia ser a incansável Shiva, com a sua inesgotável energia.
- Sim? - Rosnei eu, ainda dominada por um sono colossal.
- Olá, dorminhoca! - Afirmava ela, entrando no meu quarto, dirigindo-se firmemente para
a janela, começando a puxar o estore, enquanto uma luminosidade gradual começava a
inundar aquele modesto quarto, que consistia nos meus aposentos.
- Que horas são?
- Hum… quatro da tarde… - informou Shiva, com um leve sorriso.
- Oh... Raios! - Era tardíssimo. Levantei-me de rompante, puxando os lençóis e a coberta,
de forma que fiquei sentada à beira da cama, enquanto Shiva também se sentava ao meu
lado.
- Ora, é Domingo! Quando é que nos podemos dar ao luxo de dormir assim, Maria? -
Exclamou ela, enquanto observava com atenção a forma das suas unhas, que tinham uma
cor escura e densa que eu não consegui discernir qual era, mas aproximava-se do
castanho. Certamente consistiria numa tentativa de aproximação a garras.
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- Estão enormes, Shiva. Como é que consegues fazer seja o que for com as unhas desse
tamanho? - Declarei eu, enquanto sorria, olhando na direcção das suas enormes garras.
- É uma questão de hábito - elucidou ela, com um tom repleto de firmeza. - São lindas.
Pois claro.
- Como te sentes, hoje? - Questionou ela, olhando-me com uma preocupação genuína nos
seus expressivos olhos escuros.
- Estou bem. Obrigado - respondi eu, enquanto acenava, como se, desta forma,
pretendesse confirmar a minha última asseveração.
- Ontem estavas tão…incomodada! - Declarou ela, hesitando claramente ao voltar a falar
daquele assunto. Na verdade, a última coisa que eu não precisava neste momento era
alguém relembrar-me do que eu tão forçosamente tentava esquecer.
- Não interessa, Shiva - afirmei, enquanto fechava os olhos e me deixava, novamente, cair
para a cama. Só esperava que ela não insistisse muito, porque sinceramente, não tinha
mais nenhuma desculpa suficientemente credível que servisse de justificação.
- De certeza? - Reafirmou ela, olhando-me novamente
- Absoluta - reafirmei eu. - Não vou dar importância a algo insignificante.
- Muito bem - sorriu Shiva, aparentemente satisfeita com as minhas ambíguas
justificações.
- Vou comer alguma coisa, estou francamente esfomeada! - Declarei eu, enquanto me
levantava novamente, desta vez de uma forma mais vagarosa e procurava pelas minhas
confortáveis pantufas cor-de-rosa que pareciam estar dispersas em cantos opostos do
quarto.
- Eu acompanho-te - afirmou Shiva, enquanto seguia atrás de mim, na direcção da
cozinha, reparando que ambas estávamos de pijama, o que classificava o nosso domingo –
caracteristicamente - como dia de descanso, a todos os níveis, físico e mental. De forma
pachorrenta, com sumos de fruta da época e sanduíches mistas de pão integral, deixámos a
tarde passar, ao som dos vários episódios da série “CSI Miami” dobrada em francês, que
se revelava a melhor opção de entre as disponíveis nos limitados canais a que tínhamos
acesso.
Estava dez minutos atrasada. Raios! Tentei telefonar a Adèle mais de dez vezes,
sem sucesso aparente. Provavelmente ela já estaria na aula, com o telemóvel no silêncio e
eu… perdida algures no Hospital Saint-Antoine. Definitivamente, ia chegar atrasada à
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minha primeira sessão de práticas, facto que me aborrecia de forma visceral. Após várias
tentativas falhadas para encontrar o Departamento de Medicina Legal, rendi-me às
evidências e resolvi perguntar onde estaria o respectivo departamento - em francês. Fiz
um esforço sobre-humano para conseguir elaborar um discurso coerente e perceptível, à
medida que me aproximava de duas senhoras com aspecto sério mas acessível, que
conversavam animadamente frente a uma marquesa.
- Pardon, le Département de Médicine Légal, s’il vous plaît ?
Olharam-me com curiosidade. Certamente a minha pronúncia característica ter-
me-ia denunciado. Com um sorriso na face, uma delas explicou-me com uma lentidão
desnecessária, onde estava localizado o Departamento. Felizmente, não estava longe dali,
apressei-me a descer dois lances de escadas, depois sempre em frente e última porta à
esquerda, recordando as indicações da prestável senhora.
À medida que avançava, caso não tivesse a certeza se o departamento era ali ou não, o
cheiro que começava a intensificar-se no ar retirava qualquer sombra de dúvida. Ao abrir a
porta, encontrei de imediato uma simpática senhora que me observou com olhar crítico,
pois eu estava ligeiramente ofegante da minha pequena corrida. Sem dizer uma palavra,
apontou para um recanto onde se encontravam várias dezenas de cacifos, onde presumi
que tinha que deixar todas os meus pertences. Aproximei-me do conjunto metálico à
minha direita, para encontrar somente um cacifo vazio, ainda com a chave na fechadura.
Tal como imaginava, a frequência às aulas práticas era rigorosamente controlada. E eu
estava atrasada!! Apressei-me a colocar tudo o que trazia dentro do cacifo e voltei à
pequena entrada, esperando encontrar novamente a senhora, para lhe perguntar onde
estavam a decorrer as práticas de Medicina Legal que, muito graciosamente, me informou
onde eram. Alguns corredores mais adiante, comecei a ouvir uma voz forte, com um
burburinho característico à mistura. Só poderia ser ali! Graças a Deus! Finalmente, ia
terminar a minha odisseia matinal na procura da sala de aula.
Encontrei facilmente o olhar surpreso do professor e o dos meus colegas, não sei se por
estar atrasada, se por apresentar um ar de espanto misturado com fatiga, como se tivesse
acabado de correr uma maratona. Percorri os olhares até encontrar o de Adèle, que me
acenou com um sorriso aberto e reparei também que todos estavam vestidos
caracteristicamente, o que me fazia parecer completamente deslocada naquela enorme
sala. O professor olhava-me com estranheza por cima dos seus minúsculos óculos,
posicionados caracteristicamente na ponta do nariz. Era um homem grisalho, ligeiramente
calvo e com barba um pouco comprida e olhos claros, de um azul quase transparente.
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Também ele se vestia caracteristicamente, deixando entrever a camisa branca com uma
elegante gravata azul escura. Subitamente, ouvi-o falar na minha direcção:
- Mademoiselle Maria?
- Oui - respondi prontamente.
- Par ici, s’il vous plaît - ordenou, firmemente, manifestando-se algo incomodado com a
minha demora…ou com a minha interrupção, ou… até mesmo, com ambas. Desculpando-
me como podia, incansavelmente, segui o professor até uma pequena sala disposta
lateralmente à anterior, na qual ele me informou onde estavam diversas vestimentas, as
quais teria que usar sempre durante a temporalidade das práticas de Medicina Legal.
Rapidamente me vesti, pronta para acompanhar a aula que estava mesmo a começar, tal
como havia comentado o professor. Novamente na sala com os meus colegas, reparei que
estavam todos dispostos em grupos de três, o que me deixava a mim sem grupo. Mais uma
vez, o professor foi extremamente compreensivo e permitiu que me juntasse ao grupo de
Adèle, que comigo constituía uma pequena multidão de quatro pessoas.
Éramos dezasseis alunos, dispostos frente a cinco marquesas, ainda vazias. Enquanto o
professor explicava o funcionamento das práticas, entraram alguns auxiliares com os
nossos “objectos de estudo”, ou seja, cinco cadáveres, onde cada grupo iria “trabalhar”.
Pude observar, de soslaio, a postura divertida e maliciosa dos auxiliares, que certamente
esperariam, a qualquer momento, que algum aluno desmaiasse ou fizesse uma cena, mal o
professor desse início à aula. Senti um pequeno formigueiro no estômago, estava a ficar
um pouco nervosa à medida que observava o professor a destapar os cadáveres, dando
instruções aos alunos acerca do que fazer. Por fim, chegou ao meu grupo e enquanto nos
advertia das nossas tarefas, olhei sorrateiramente para o vulto coberto diante de mim. Só
conseguia distinguir que era uma mulher.
O que se passou em seguida foi muito rápido. O professor começou a destapar o cadáver e
mal vi a cara da pessoa à minha frente, senti um choque que me incapacitou de formular
qualquer pensamento coerente. Eu conhecia aquela face, tinha-a visto há duas noites atrás,
naquela ruela em Montmartre, com aquele… rapaz.
Senti perder as forças e, instintivamente, dei dois passos para trás, colidindo com a mesa
dos instrumentos, que caíram ruidosamente no chão. Todos os olhos naquela sala se
fixaram em mim e senti o riso abafado dos auxiliares na minha direcção. Naquele
momento, não existia ninguém em meu redor, era só eu e ela, não conseguia deixar de
olhar para ela. Como era possível ela estar aqui, neste local, morta?
Senti a mão de Adèle no meu ombro e encontrei em mim o seu olhar preocupado.
- Maria? Estás bem?
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Não conseguia ouvir nem dizer nada, nem formular o mais simples monossílabo. Voltei a
olhar para ela, ali deitada, à minha frente, como uma estátua humana. O cabelo loiro
estava agora mais escurecido e a cor dela era de um branco-acinzentado intenso,
provavelmente por estar debaixo do foco luminoso. Quase que identificava um brilho em
seu redor, como se de um anjo se tratasse. Um anjo caído. Tinha várias marcas nos pulsos,
pescoço e peito, que não consegui identificar. Ouvi alguém, longínquo, chamar pelo meu
nome.
- O que se passa? Maria? - Era o professor, que me fitava de forma atenta.
Olhei para ele. Tinha que lhe dizer alguma coisa, dar-lhe alguma explicação.
- Eu conheço-a. - Foi o que consegui articular.
Conseguia sentir a tensão no ar que me rodeava, os meus colegas olhavam-me algo
aterrorizados e os auxiliares estavam agora perto de mim e do professor, curiosos.
- E-Eu vi-a…- voltei a balbuciar, sem conseguir deixar de olhar para ela.
- Maria, é melhor sairmos. Vamos - interrompeu o professor, apontando para a porta da
saída.
Saí acompanhada pelos auxiliares, debaixo do constante olhar perplexo de todos, na
direcção de uma pequena sala não muito longe dali, onde me sentei num pequeno sofá. Os
auxiliares informaram-me de que o professor viria rapidamente acompanhar-me e saíram,
deixando-me sozinha. Poucos segundos depois fui invadida por uma enorme sensação de
infelicidade e tive que fazer um esforço considerável para não chorar.
O que era isto? O que teria eu visto e o que se teria passado naquela ruela, para a rapariga
estar na morgue daquele hospital? Tinha o meu batimento cardíaco aceleradíssimo, quase
conseguia ouvi-lo a sobrepor-se à minha voz interior e estava a ficar taquicárdica.
Coloquei as minhas mãos nas fontes e tentei acalmar-me, fechando os olhos e tentando,
em vão, pensar em algo menos funesto.
Ouvi alguém aproximar-se de mim e abri os olhos automaticamente. Era o professor, que
puxava uma cadeira e se sentava exactamente à minha frente, como se fosse interrogar
uma criminosa.
- Então, conta-me o que se passou - pediu ele, calmamente.
Inspirei fundo, numa tentativa de aclarar a minha mente e conseguir explicar com o
mínimo de lógica e coerência o que se tinha passado nas últimas quarenta e oito horas.
- Sábado à noite fui sair a Montmartre com uns amigos - comecei. O professor olhava-me
atentamente.
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- A certa altura perdi-me e… meti pela rua errada - voltei a inspirar fundo. Estava a
aproximar-me do momento difícil de descrever. - Numa rua transversal vi…vi-a com um
homem.
Olhei novamente para o professor, que se mantinha inexpressivo.
- Continua - disse ele.
- Ela…parecia estar assustada e… – hesitei, olhando novamente para ele, que acenou para
que eu continuasse a falar. - …estava a sangrar.
Seguiu-se um silêncio desconfortável.
- Então, não a conhecias – concluiu ele.
- Não, eu só a vi … nas circunstâncias que acabei de lhe explicar - esclareci eu.
- E achas que lhe aconteceu alguma coisa, foi?
- Não sei… – Foi a minha resposta imediata. - Foi uma situação tão estranha, não consigo
explicar-lhe o que se estava ali a passar.
- Fala-me do homem que estava com ela - pediu o professor.
O modo como me pediu que descrevesse o “homem” assustou-me ligeiramente, o que me
fez pensar que talvez não fosse muito boa ideia referir que o tinha reconhecido. Até
porque eu o considerava mais como um “rapaz” que como um “homem”, mas a verdade
era que eu não sabia concretamente como descrevê-lo.
- Não consegui ver bem… - menti. - Estava escuro… só vi que tinha um casaco escuro
e…
- Sim?
- …era muito pálido - terminei, como se esta característica fosse excepcionalmente
informadora.
- Pálido?
Acenei com a cabeça, confirmando a minha última afirmação.
- E viste-lhe a cara?
- Não - menti, novamente. Bem, não era propriamente uma mentira, pois se eu não o
tivesse visto na reunião de intercâmbio, nunca o teria reconhecido. - Tinha o cabelo a
tapá-la - reforcei.
- Mas viste que era pálido.
- Sim…
As minhas afirmações estavam a contradizer-se, de certo modo. Quer dizer, não lhe tinha
visto a face, mas sabia que era pálido. Além disso, estava a sentir-me ligeiramente
manipulada. Comecei então a perceber o que se estava a passar: se o professor estava a
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tentar que eu me contradissesse, então estava a conseguir. Era a justificação perfeita para
me desarmar.
- Hum. E achas que ele lhe fez mal?
- Não sei - menti, mais uma vez. Eu tinha a certeza absoluta que ele lhe tinha feito alguma
coisa. - Provavelmente… não sei.
O professor lançou-me um olhar inquisidor, avaliando a minha resposta cautelosamente.
- Estás em Paris há quanto tempo?
- Há uma semana.
Senti o sorriso dele ainda não tinha acabado de pronunciar as minhas últimas palavras, o
que não me agradou de todo.
- Oh, Maria… - continuou ele, sorrindo. - Provavelmente confundiste-a com alguém que
viste nessa noite. Ela tem uma cara comum.
Fiquei estupefacta a olhar para aquele homem, que mais parecia estar a zombar de
mim e da minha sanidade mental.
- Não é possível que seja a mesma rapariga. Sabes porquê?
Eu mantinha-me em silêncio, olhando-o, atónita.
- Esta rapariga suicidou-se na madrugada de domingo em sua casa. Tinha problemas
psiquiátricos.
Fiquei boquiaberta. Como era possível? Eu estava tão segura, tinha a certeza, eu sentia
que era ela. Tudo isto era demasiado estranho e, ao mesmo tempo, demasiado complexo
para mim. Seria o meu ponto de vista assim tão ridículo? Era ela que tinha estado naquela
ruela, com aquele rapaz, era ela a rapariga que jazia naquela morgue. A mesma pessoa.
- Como é que ela se suicidou? - Perguntei eu.
- Isso, mademoiselle, é que eu pretendo que deduza - referiu alegremente o professor. -
Estás pronta para voltar para a sala de aula?
- Acho que sim - afirmei eu, enquanto me levantava do sofá.
- Faça o favor - disse o professor, permitindo-me passagem.
Voltámos silenciosamente para a sala de aula, onde estavam os outros grupos,
debruçados nos seus cadáveres. Regressei para junto do meu grupo, que continuava a
lançar olhares curiosos na minha direcção. O professor ficou connosco analisando o
cadáver, dando-nos pistas e informando-nos do que considerava necessário para
chegarmos à conclusão que estava já descrita no relatório de autópsia.
- Repara, Maria - chamou ele. - Feridas infligidas com objecto afilado, ângulos de entrada
consistentes com auto-agressão e lesão de artérias principais. Causa de morte?
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- Hemorragia intensa - respondi eu, automaticamente, enquanto na minha mente pululava
a palavra Homicídio.
- Voilá! - Sorriu o professor, na minha direcção.
Senti todo o grupo dispersar, o que significava que a aula tinha terminado. Olhei mais uma
vez para aquela rapariga, que parecia estar envolta num manto de serenidade.
Instintivamente, toquei-lhe na testa, dirigindo-me depois para o maxilar. Estava fria, e a
pele tinha uma textura característica, de uma enorme suavidade. Raios! Tinha a certeza
absoluta que era ela.
- Então, Maria, tudo bem? - Perguntou o professor, mais uma vez, dirigindo-se a mim.
- Sim - confirmei eu. - Tem razão, professor. Devo tê-la confundido com alguém que vi
naquela noite - menti, descaradamente. Sem dúvida, seria melhor assim, para não levantar
suspeitas desnecessárias sobre mim.
O professor, por outro lado, parecia algo desconfiado da minha súbita aceitação dos factos
que tão discretamente tinha rejeitado há pouco.
- Obrigado e… desculpe todo este episódio lamentável - reforcei, mais uma vez.
- Até amanhã! - Retorquiu ele.
- Até amanhã.
Apressei-me a sair daquela sala e daquele local, precisava de ar para pensar com
mais calma no que ali tinha visto. Tinha uma certeza imperiosa que era aquela a rapariga
que eu vira na ruela com ele. E não tinha sido suicídio, eu estava absolutamente ciente
disso. Seguramente algo tinha acontecido naquela noite e eu não estava a perceber o que
era. Fosse o que fosse, era algo sério e eu tinha testemunhado esse evento.
Aniquilando todo o esforço que tinha feito nos dias anteriores, com o objectivo de
esquecer aquele episódio, tentei recordar pormenorizadamente o que tinha visto naquela
noite, com o intento de compreender o que se estava a passar em meu redor. O que estava
ela a fazer com ele, naquele beco? Afinal eu tinha razão. Ela não era uma prostituta, mas
sim alguém… com problemas psiquiátricos. Quem era ele e o que quereria dela? E o que
lhe fez ele? Esta última linha de pensamento assustava-me particularmente, porque eu
sabia que ele me tinha visto, portanto ele sabia quem eu era. E eu acabava de levantar
ondas na morgue do hospital. Tinha que chegar a casa rapidamente, sentar-me e pensar
calmamente e em silêncio no assunto.
Nunca a viagem de metro até casa me pareceu tão demorada. Já em casa, no meu
quarto, sentei-me na beira da cama e tentei organizar toda a sequência de eventos na
minha cabeça. Tinha que ser, acima de tudo, racional, pois tudo isto certamente teria uma
explicação óbvia e eu não estaria, certamente, a atingi-la. A imagem daquela rapariga,
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naquele beco, alternada com a imagem dela deitada naquela marquesa, não tinha uma
sequência lógica. Suicídio? Feridas auto-inflingidas? Tudo isto era demasiado
conveniente, demasiado… correcto. A certa altura, ocorreu-me que deveria ter pedido o
relatório da autópsia. O professor não mo negaria e, certamente, seria um pedido comum
entre os alunos.
Tudo isto era uma coincidência perturbante. Se havia algo que me cansava acima de tudo,
era eu não compreender o que estava por detrás de todos estes acontecimentos que, para
todos pareciam insignificantes, excepto para mim. O que me levaria a contestar tudo e
todos? Porquê esta situação, em concreto, a pôr constantemente em causa toda a minha
racionalidade?
Não, eu não poderia estar a pensar nestes termos. Provavelmente, seria eu que estaria a
complicar o que é simples e a criar uma história misteriosa em redor de uma pessoa que
tinha problemas mentais sérios, que a levaram ao suicídio. Talvez tudo isto não fosse mais
do que uma coincidência infeliz. Sim, provavelmente seria isso.
Adiante.
Era hora de almoço e não tinha fome nenhuma. Mais uma vez relembrei a face daquela
rapariga, tão fria, tão distante. Desejei ser capaz de eliminar estas imagens da minha
mente, sem rejeitar instantaneamente todo e qualquer pormenor da história que me tinham
“vendido”.
Definitivamente, este era um fantasma que eu tinha que exorcizar sozinha.
Nessa tarde e noite resumi-me ao silêncio do meu quarto e somente dirigi um
escasso conjunto de palavras a Shiva, que estranhou, como seria de esperar, a minha
atitude de alienação. Ainda considerei mencionar-lhe o que se tinha passado de manhã, na
aula prática de Medicina Legal, mas desisti da ideia quase instantaneamente. Porque
haveria ela de acreditar em mim e nas minhas teorias que, segundo todos, estavam
deslocadas da realidade? Certamente haveria de justificar a presença da rapariga na
morgue com a mesma certeza e segurança que os demais e eu seria apelidada como aquela
tola que alimentava teorias conspirativas. Por momentos, imaginei-me em camisa-de-
forças, rodeada de pessoas dispostas a internar-me num hospital psiquiátrico. Sim, sem
dúvida seria o desfecho mais provável se eu continuasse a insistir em questionar o que era
aparentemente tão óbvio para todos, excepto para mim.
Estava sentada na minha cama, a olhar concretamente para nada, enquanto ouvia Shiva a
preparar-se para ir dormir, a julgar pela movimentação que sentia no corredor e na casa-
de-banho. Talvez fosse melhor eu fazer o mesmo. Talvez fosse melhor deixar a noite
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passar e dormir sobre o assunto, para que o amanhã pudesse ser um dia o mais próximo
possível do normal.
Só esperava que conseguisse dormir descansada para que o dia seguinte fosse
minimamente suportável.
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CAPÍTULO 3 – NADINE
PARIS AMANHECEU RUIDOSA E ACORDEI MUITO ANTES DA HORA, de um sono sem
sonhos, graças a Deus.
Hoje seria mais um dia de aula prática de Medicina Legal e Forense, realidade que me fez
sentir um pequeno formigueiro no estômago. Apesar da minha incessante vontade de
esquecer todos os eventos que me perturbavam a mente, a ideia de voltar àquela morgue
era aliciante, pois talvez pudesse espreitar o relatório da autópsia da tal rapariga. Era uma
hipótese de exorcizar o meu fantasma. A ideia retirou-me todo e qualquer vestígio de sono
ou preguiça que pudesse ainda residir em mim e, com uma rapidez invulgar, levantei-me e
tratei de tomar duche, vestir-me e tomar o pequeno-almoço, apressando-me a sair de casa,
com o meu recente objectivo bem definido.
Hoje, tudo em meu redor parecia movimentar-se em câmara lenta, desde a água que saía
do chuveiro, tornando o duche matinal mais demorado, o leite a sair da embalagem, a
torrada a tostar, até o elevador do prédio a descer, assim como a viagem de Metro até ao
Hospital, que foi estranhamente vagarosa. Provavelmente seria o excesso de adrenalina
que eu tinha, hoje, a percorrer a minha circulação sanguínea.
Cheguei ao departamento de Medicina Legal quase trinta minutos antes da hora da aula:
eram oito e meia da manhã. Com uma rapidez pouco típica para uma hora tão matutina,
coloquei os meus pertences no cacifo e dirigi-me à sala onde, no dia anterior, tinha sido a
protagonista do tão memorável episódio, para lá encontrar já alguém que não o professor
responsável. Provavelmente seria um médico ou até mesmo um auxiliar. Era difícil
distingui-los porque todos se vestiam da mesma forma e quase nenhum evidenciava
crachás identificativos para facilitar a nossa tarefa. Fosse o que fosse, estava
decididamente concentrado a preencher papéis no balcão mais longínquo da sala e só lhe
conseguia distinguir os óculos de forma quadrilátera, a face engelhada e a ausência quase
total de cabelo, sendo o pouco que tinha de uma cor cinza esbranquiçado, dificilmente
visível por debaixo do gorro, mas que se adivinhava pelas escassas patilhas que
ameaçavam começar a formar-se.
- Bonjour - cumprimentou-me, alegremente, sem se incomodar em olhar na minha
direcção.
- Bonjour! - Respondi, com timidez. E agora? Dizia o quê? Como lhe ia eu explicar o
porquê da minha chegada trinta minutos antes da hora? Ainda estava eu a tentar elaborar
um modo de intervir de forma discreta, quando ele se dirigiu a mim.
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- Chegaste cedo – afirmou, olhando para mim agora de forma curiosa, enquanto eu
acenava com a cabeça, como se estivesse a confirmar a sua óbvia afirmação. Pronto, ele
tinha-me reconhecido. Claro que sim. Imagino quem é que naquele departamento ainda
não saberia do meu mediático episódio na sala de autópsias.
- Então, foste tu que reconheceste a Nadine?
Olhei-o com espanto. Nadine. Era esse o nome dela. A sua imagem angélica, prostrada na
mesa da autópsia surgiu-me de imediato na mente, o que me fez demorar um pouco a
preparar uma resposta.
- Sim. Quer dizer, não - apressei-me a corrigir, desviando o olhar. - Afinal, confundi-a
com alguém. Aparentemente ela tinha uma cara comum e eu só cá estou há uma semana -
terminei eu, com um tom de voz ligeiramente sarcástico e um ligeiro sorriso amarelo, que
se começava a formar na minha face.
- Hum. Não te preocupes. Isso acontece mais vezes do que imaginas - retorquiu ele.
- Pois, acredito - reafirmei, com segurança.
Regressando à sua elaborada papelada, aquele homem parecia agora aparentemente
desinteressado da nossa pequena troca de palavras. E eu precisava de ter acesso ao
relatório da autópsia. Essa era a minha grande necessidade, neste momento.
- Os alunos têm acesso aos relatórios de autópsias? - Disparei, praticamente sem pensar.
Raios! Se estava a tentar ser discreta, tinha acabado de falhar redondamente.
O homem diante de mim admitiu uma postura séria e desconfiada, olhando-me como se
me estivesse a pedir uma justificação. De imediato senti-me amargamente arrependida de
ter feito a pergunta daquela forma.
- Queria confirmar um óbito. - Foi a única fundamentação credível que me surgiu naquele
momento.
- Ah… - retorquiu o homem, que não parecia muito convencido. - E de quem queres
confirmar o óbito? Posso saber?
Agora a sua postura era de uma curiosidade desafiadora, como se já soubesse qual ia ser a
minha resposta, aguardando somente a confirmação. Foi um momento um pouco
desagradável e como não manifestei a prontidão desejada a responder à pergunta,
respondeu ele por mim.
- Se procuras o relatório da Nadine, então tenho imensa pena, mas o caso dela já foi
arquivado.
Olhei para aquele homem com estranheza.
- Arquivado? - Perguntei, pasmada, sem ideia do que isso poderia significar.
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- Temos problemas de espaço. A ocorrência foi resolvida, o corpo foi cremado e o caso
encerrado.
Novamente olhei para aquele homem com espanto. A indiferença com que ele se
referia ao processo da pobre Nadine era admirável, pelas piores razões. Para não
mencionar a terrível referência à cremação, que era simplesmente arrepiante.
- Mas, se tens dúvidas, podes perguntar ao teu professor - referiu o homem, com nítido
sarcasmo, enquanto olhava firmemente por cima do meu ombro.
Pude então constatar que o meu professor tinha acabado de chegar e não parecia muito
contente com a minha pequena invasão antes da hora estabelecida.
- Mademoiselle Maria, - referiu ele, enquanto me fitava por cima dos seus arcaicos óculos,
visivelmente desagradado - pensava que já tínhamos esclarecido todas as dúvidas acerca
deste caso.
- Sim, já esclarecemos - aprontei-me a concordar.
- Então porque é que insiste em mencionar novamente o assunto, Maria? - Voltou a
perguntar, aumentando ligeiramente o tom e continuando a insistir.
- Há algo que a incomoda? Alguma dúvida respeitante ao que ontem aqui foi dito?
- N-Não - respondi timidamente.
- Acho bem, Mademoiselle - respondeu ele, com frieza. - Há assuntos que, uma vez
resolvidos, devem ser esquecidos. Deixe a rapariga descansar em paz, Maria!
O seu tom finalizou firmemente a nossa conversa e eu não tive a mínima hipótese de
voltar a mencionar o assunto. Aliás, nem me atreveria a fazê-lo.
Algo desiludida, dirigi-me à sala do vestuário. Talvez fosse melhor assim, era da forma
que teria que esquecer definitivamente este assunto que, tinha que admitir, estava a
ocupar-me a mente de uma forma desproporcionadamente exagerada. Já mais
conformada, vesti-me e preparei-me para a aula que ia começar dentro de minutos,
procurando desocupar a minha mente dos assuntos que tinham, para todos os efeitos,
morrido naquela sala de autópsias.
O dia passou-se sem ocorrências marcantes. A prática de Medicina Legal mostrou-
se bastante proveitosa e foi com algum alívio que constatei que o meu episódio prévio de
aparente insubordinação não tinha afectado em nada a relação professor-aluno: ele
comportava-se como se nada se tivesse passado.
Aproveitei toda a tarde para organizar os meus apontamentos e começar, definitivamente,
a estudar. Se estava num país com uma língua que não dominava, então seria prudente
começar a estudar nessa língua com alguma antecedência, para que não colapsasse quando
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chegasse a hora dos exames. Eram já oito da noite quando ouvi Shiva entrar em casa,
muito provavelmente vinda da faculdade. Pensei convidá-la para me acompanhar no
jantar, um pouco como forma de compensar a minha atitude anti-social do dia anterior.
- Olá! - Cumprimentei eu, alegremente
- Olá! - Respondeu ela, visivelmente incomodada.
- Então que tal o dia?
- Terrível - referiu ela, claramente aborrecida. - Carregaram-me de trabalhos e projectos.
Não sei se vou conseguir dormir, hoje.
- Ah… - Não me parecia que tivesse a sorte de ter companhia para jantar, mas ainda assim
perguntei-lhe.
- Já jantaste?
- Sim - respondeu-me prontamente. - Jantei na faculdade, para poder chegar a casa e
começar imediatamente a trabalhar.
- Está bem.
Jantar sozinha não era algo que me incomodasse mas também não me agradava muito,
pelo que decidi dirigir-me à cozinha, tentando pensar em algo saboroso para cozinhar.
Como a minha imaginação para a culinária hoje não estava particularmente aguçada,
desisti prontamente da ideia e resolvi ir jantar ao refeitório na Maison Internationale, a
opção mais próxima de casa. Era prático e certamente ainda voltaria a tempo de estudar
algo.
- Shiva, vou jantar à Maison, está bem? Não demoro.
- O.K.! - Respondeu ela, do quarto.
Decidi levar somente as chaves de casa. Ia ser um jantar rápido e certamente não iria ter
telefonemas urgentes na próxima meia hora, pelo que desci e caminhei na direcção da
Maison Internationale.
O sol estava a pôr-se e a luminosidade que se abatia sobre a cidade tinha um tom laranja –
acastanhado, reflectindo-se estrategicamente nas folhas das imensas árvores que
constituíam o enorme campus, dando-lhe um aspecto de tela acabada de pintar. Corria um
vento fresco, demasiado frio para o que eu estava acostumada, mas ainda assim muito
agradável e extremamente ajustado ao cenário por onde passava. Paris era, de facto, uma
cidade mágica.
À medida que passava no campus, observava as residências atentamente, perguntando-me
instintivamente onde estaria a Maison de Portugal. Provavelmente noutra zona que, de
certeza, ainda não tinha explorado.
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Finalmente, chegava ao edifício que constituía a Maison Internationale em si e dirigi-me
ao refeitório.
Entrei pelas portas basculantes e caminhei até encontrar as diferentes ofertas para as
refeições do dia. Desinteressada do aspecto do Plat du Jour e sem vontade de arriscar os
grelhados, constatei que a melhor opção provavelmente seria a Pasta que, de facto, estava
bastante saborosa. Jantei rapidamente, com a minha mente um pouco alheada do que me
rodeava, planeando mentalmente a ordem de temários a estudar numa outra disciplina que
ainda não tinha iniciado.
Levantei-me, coloquei o tabuleiro no local correspondente e dirigi-me à saída do
refeitório, enquanto trincava uma consistente e volumosa maçã que tinha retirado para
sobremesa. Reparei que já era noite cerrada, o que me fez sentir subitamente
desconfortável e, instintivamente, apressei o passo enquanto percorria os corredores que
me levariam à saída do edifício.
Contudo, quando cheguei às portas da saída, não foi preciso fazer um grande esforço para
me aperceber que lá fora estava alguém à minha espera. Ao olhar em frente, encontrei um
par de olhos claros e brilhantes que perturbadoramente aprisionaram o meu olhar por um
momento eterno. Eu sabia quem ele era, eu reconhecia aquele olhar que era marcante, da
pior maneira possível. Ele estava a cerca de dez metros da porta, do lado de fora, com uma
ira e uma segurança no olhar que me fez ter a certeza de que era eu quem ele procurava,
no meio daquela pequena multidão de pessoas que nos rodeava. E eu sabia porquê.
A minha reacção foi instantânea: voltei para dentro do edifício, sem saber para onde ir
nem o que fazer, sem conseguir pensar nem falar. Era uma situação que já me acontecera,
e, pela segunda vez, sentia em mim aquele olhar incapacitante, quase que a arder na minha
mente, quando fechava os olhos. Quando dei por mim, percebi que os meus pés me
tinham levado até à casa-de-banho, onde me sentei, desesperada. Definitivamente
precisava de pensar.
E agora, fazia o quê? Arrependia-me amargamente de ter tido uma reacção tão cobarde,
como se estivesse a planear uma fuga que só podia classificar de patética, no mínimo.
Agora ele já sabia quem eu era, onde estava e, acima de tudo, que estava cheia de medo, o
que não abonava a meu favor. Subitamente, lembrei-me do porquê. Claro, algo muito
sério deve ter mesmo acontecido naquela ruela, porque senão ele não estaria aqui, a
perseguir-me, a vigiar-me com aquele olhar demente.
Senti uma enorme vontade de chorar. Eventualmente eu teria que sair daqui e ele ia estar à
minha espera, para me fazer sabe Deus o quê. Olhei para as minhas mãos, lívidas do stress
e, nos bolsos do casaco, somente encontrei as chaves de casa. Nem sequer tinha o
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telemóvel, nem nada com que pudesse contactar alguém. Raios! Não deveria ter sido tão
imprudente e agora… ele tinha-me apanhado. Não tinha hipótese. Por momentos, lembrei-
me de Nadine. Seria esta a aflição em que ela estaria, antes de se encontrar nos braços
daquele rapaz que, definitivamente, lhe tinha feito alguma coisa? Respirei fundo e olhei
para o relógio: tinham passado dez minutos. Eu tinha passado dez minutos escondida na
casa-de-banho a congeminar uma escapatória. Era incrível como o desespero nos podia
tornar nos seres mais ridículos à face da terra. Se não fosse a gravidade inerente ao facto,
até seria capaz de encontrar piada a toda esta situação em que me encontrava. Eu,
escondida na casa-de-banho, com medo de alguém que me tinha fitado com um olhar
funesto.
Ter-se-ia ele ido embora? Meu Deus, como eu desejava que isso fosse verdade.
A minha única chance era pedir a alguém que me acompanhasse a casa. Não seria muito
difícil, o edifício estava cheio de estudantes e eu poderia explicar facilmente a situação.
Era uma hipótese, sem dúvida, à qual eu teria que me agarrar para poder sair dali e chegar
a casa, sã e salva. Expirando ruidosamente, saí da casa-de-banho com o intento de
encontrar alguém que me pudesse ajudar. Contudo, para minha desilusão, não encontrei
absolutamente ninguém naquele edifício, com excepção das pessoas que estavam a
trabalhar no refeitório e no bar. Definitivamente, tudo isto parecia uma brincadeira de
muito mau gosto, pois não encontrava nada nem ninguém a que me pudesse agarrar para
fugir dali, para fugir dele.
E agora?
Estava desesperada e sentia-me a começar a hiperventilar.
Subitamente lembrei-me de algo que, eventualmente, me poderia salvar daquele pesadelo
tão real. O edifício tinha duas saídas, uma delas pelo lado do bar… instintivamente, sem
pensar duas vezes, apressei-me nessa direcção.
Ao sair, percorri de imediato, com olhar atento, todo o Campus a que conseguia ter acesso
e não vi ninguém. Aparentemente. Contudo, ao descer as escadas percebi que, afinal,
estava errada e que aquele estranho rapaz estava, literalmente, à minha espera, no final do
lance de escadas, encostado despreocupadamente ao muro, como se esperasse a minha
óbvia reacção. Senti o meu coração disparar, não só de medo mas também de vergonha,
pois a minha ridícula tentativa de fuga tinha sido facilmente descoberta.
Não tenho hipótese… - congeminei.
Agora sim, tinha que descer as escadas e ir ao encontro daquele obscuro indivíduo que,
somente com a sua presença, ameaçava a minha frágil existência. Desci lentamente as
escadas, temerosa com o que se iria passar. Subitamente, senti o olhar dele em mim, tão
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característico, tão intenso… recordava-me perfeitamente daquele mesmo olhar que me
havia lançado naquela noite, na ruela… e assustava-me profundamente. Tive a ligeira
sensação de que ele sabia perfeitamente o efeito que provocava em mim. Chegaria eu a
casa, esta noite?
À medida que descia, abrandava instintivamente o passo, enquanto ele se dirigia a mim,
nunca deixando os meus olhos, até parar a cerca de dois metros de mim, como se essa
fosse a “distância de segurança”.
- Olá - cumprimentou ele. Abordou-me em inglês e pude recordar o timbre da sua voz.
- Olá - respondi, secamente, quase sem voz.
Seguiu-se um estranho silêncio e foi aí que eu tive oportunidade de o observar com algum
pormenor. Não havia luar, a única luz existente era a fraca luminosidade proveniente dos
candeeiros da rua, junto com a que emanava do edifício. Ele vestia calças escuras e uma
camisa clara com um casaco, também escuro, visivelmente leve para o frio que estava. As
mãos estavam tensamente escondidas nos bolsos e a sua postura era defensiva. Pude
observar que o cabelo estava disposto de um modo anárquico, escondendo parcialmente a
face mas, ainda assim, podia agora discernir-lhe as feições com mais pormenor. Eram
bastante finas, como que trabalhadas e a palidez que delas emanava era absolutamente
única e muito pouco natural, tal como eu recordava das últimas duas vezes que o tinha
visto. Os olhos claros eram, afinal, verdes e continuavam fixos em mim, certamente
procurando respostas na minha face. Ou, pelo menos, assim parecia.
- És aluna de intercâmbio, certo? - Perguntou, com um sotaque tipicamente britânico.
Limitei-me a acenar, espantada com a sua perspicácia. Afinal, lembrava-se de mim da
reunião de intercâmbio.
- Chamo-me David, David Henshaw. E tu és…? - Questionou, com uma voz calma e
segura.
- Maria - respondi secamente.
- Maria… - parafraseou ele, com uma entoação claramente diferente da minha. Se não
fosse pelas circunstâncias, provavelmente rir-me-ia da pronúncia que ele tinha utilizado ao
referir o meu nome.
- És hispânica? – Perguntou novamente, a sua face curiosa.
- Sou Portuguesa - respondi, com uma voz fraca. Não estava a perceber onde queria
chegar com tais perguntas.
- Ah, estou a ver - constatou. - E és estudante de Medicina, não é verdade?
A convicção nas palavras dele era assustadora. Como é que ele sabia o que eu
estudava? Limitei-me a responder com monossílabos.
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- Sim…
A postura dele alterou-se minimamente, afastando os olhos dos meus, pela primeira vez
desde que tínhamos iniciado o nosso estranho diálogo. Senti-me instantaneamente mais
confortável, agora que ele parecia imerso num estranho transe, claramente afastado do
mundo real. Este rapaz era, definitivamente, muito esquisito.
Subitamente, senti-o aproximar-se de mim, com uma rapidez invulgar, fitando-me
intensa e perturbadoramente, quebrando a distância de segurança que ele próprio tinha
estabelecido.
- Portanto, suponho que sejas uma pessoa muito racional - disparou ele.
- T-Tento ser… - engasguei, em vão. Que raio de afirmação era esta?
- E aplicas essa linha de pensamento a tudo na vida? - Continuou, visivelmente
interessado em ouvir a minha resposta. O problema era que eu não estava a compreender
qual era o objectivo recôndito daquela pergunta.
- O que… queres dizer com isso? - Tentei, em vão, perguntar e senti-o aproximar-se,
novamente, com um passo firme, na minha direcção.
- Consegues encontrar sempre uma explicação racional para tudo? - Questionou.
Agora sim, a pergunta tinha um objectivo, que estava claramente explícito por detrás das
palavras tão graciosas que tinha utilizado.
- Eu tento…mas nem sempre consigo.
Foi o melhor que consegui elaborar, pois a proximidade dele era algo desconcertante, o
seu olhar era intimidante e eu estava a ficar francamente assustada.
- E porque é que achas que isso acontece? - Perguntou novamente, com sério interesse na
voz. Senti-me estremecer, ao aperceber-me que não sabia como responder a estas
enigmáticas perguntas. Por momentos perguntei-me quando é que ele me iria atacar e
comecei a sentir um pico de desespero.
- Não estou a perceber o que… - tentei começar, quando ele me interrompeu com uma
firmeza irredutível.
- Aparentemente, há acontecimentos que são inexplicáveis.
Fiquei absolutamente perplexa, incapaz de pronunciar uma palavra.
- O que eu estou a tentar dizer é que… há factos que são como são e… deixemo-los
permanecer assim - concluiu ele, com um tom claramente ameaçador.
A minha face deveria certamente ser um espelho do espanto que eu sentia. Estava
perplexa.
- Está bem.
Foram as únicas duas palavras que consegui articular.
42
- Boa noite - disse, afastando-se.
- Boa noite… - sussurrei, atónita, enquanto o via desaparecer, imerso nas sombras do
Campus.
Tentei, com um esforço notável, recompor-me e pensar no que ali se tinha passado.
Sem dúvida alguma, esta tinha sido a ameaça mais eloquente que alguma vez me tinham
feito e, finalmente, compreendia agora a gravidade da minha situação, ou seja, eu tinha
testemunhado algo grave e teria que me remeter ao silêncio. Desejei de todo o coração não
voltar a vê-lo nunca mais.
Agora, longe da sua influência, sentia os efeitos daquele pavor que tinha acumulado a
libertar-se, trazendo lágrimas aos meus olhos e obrigando-me a respirar mais
profundamente. Apressei-me a caminho de casa, aproveitando a fresca brisa que corria
para aclarar as ideias, enquanto limpava com o dorso das mãos as insistentes lágrimas que
corriam pela minha face, resultantes do perturbante episódio que tinha vivido minutos
atrás.
Cheguei a casa em dez minutos, incapaz de apagar este encontro da minha mente. Assim
que abri a porta de casa, deparei-me com Shiva, com um aberto sorriso que se desvaneceu
mal olhou para mim. Eu devia ser muito transparente. Só esperava que os meus olhos não
obviassem a recente libertação lacrimal.
- Maria, passou-se alguma coisa? - Perguntou ela, visivelmente preocupada.
- Não vais acreditar no que me aconteceu - disse eu, expirando ruidosamente. Graças a
Deus, as lágrimas já tinham cessado.
- Preciso de me sentar - afirmei eu, enquanto me dirigia ao meu quarto, seguida pelos
passos miudinhos de Shiva, que se sentou comigo em cima da cama, enquanto me olhava
com uma expressão de curiosidade na face.
- Então, o que foi?
- Acabei de ter uma conversa extremamente perturbante - respondi eu, sem olhar para ela,
enquanto colocava desesperadamente as mãos na cara.
- Com quem?
- Com um dos nossos colegas de intercâmbio - disse eu, olhando-a. Shiva levantou o
sobrolho, com uma expressão de interrogação.
- Os… artistas – esclareci eu, como se fosse algo muito óbvio.
Imediatamente Shiva arregalou os olhos, em ar de espanto.
- Qual deles?
- O de olhos claros. Verdes. Chama-se David - elucidei eu, novamente. Houve um
pequeno silêncio.
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- O que é que ele queria?
- Sinceramente… não sei - desabafei eu.
- Então, mas… o que é que ele te disse, concretamente?
Respirei fundo, sem saber como caracterizar aquela bizarra conversa que tinha mantido
com ele, de forma a não estimular excessivamente a imaginação de Shiva.
- Ele… fala por enigmas - expliquei eu. - E é, garantidamente, assustador.
- Enigmas? - Repetiu ela, semicerrando os olhos.
- Sim… por exemplo, perguntou-me se eu era uma pessoa racional - comecei. - E se tinha
explicação para tudo.
Observei o ar indignado da minha colega ao ouvir as minhas palavras, enquanto
ela acenava lentamente com a cabeça.
- Isso é muito esquisito, no mínimo - concluiu ela. - E não disse mais nada?
- Também disse que havia factos que eram inexplicáveis ou qualquer coisa do género -
afirmei eu, sem compreender o significado das palavras que tinha acabado de proferir.
Shiva mantinha-se sem palavras, perplexa. Era visível na sua face, o que era
normal, tendo em conta que ela desconhecia inteiramente o verdadeiro significado das
palavras aparentemente absurdas daquele rapaz.
- Acho que eles se metem nas drogas, Maria – mencionou, triunfantemente, Shiva,
fazendo-me sorrir levemente. Sim, sem dúvida seria essa a conclusão mais óbvia a que
qualquer pessoa normal chegaria.
- Não sei… provavelmente - concordei eu.
De facto, era o que parecia, mas eu sabia que a realidade era bem diferente. Só esperava
que todas estas peripécias terminassem por aqui, pois seria extremamente complicado não
poder partilhá-las com alguém. Sentia uma enorme vontade de desabafar com Shiva, mas
algo me impedia de o fazer, provavelmente seria a certeza quase imperiosa de que ela não
iria acreditar em mim. Na verdade, se ela não acreditou em mim no início, porque iria
acreditar agora? E, fosse como fosse, seria melhor mantê-la à parte das ocorrências, para
bem dela. Não me imaginava a chegar a casa e dizer-lhe “Olá, acabei de ser ameaçada
por aquele rapaz que eu vi na ruela com a tal rapariga que, por acaso, está morta.” Não
conseguia imaginar qual seria a reacção dela, caso alguma vez lhe comunicasse alguma
coisa deste género. Se de pânico, se de troça.
- Oh, Maria, esquece isso. Os estudantes de Arte, aqui em Paris, têm uma fama que os
ultrapassa – esclareceu Shiva, rolando os olhos em ar de crítica.
Acenei, em ar de confirmação, sem compreender o porquê de uma afirmação que, na
minha opinião, era extremamente caricata.
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- Ainda assim, tiveste sorte! - Afirmou Shiva na minha direcção, com um sorriso maroto. -
Esse é bem mais interessante que o italiano, não achas?
Olhei para ela com pasmo. Esta rapariga era impressionante! Como era ela capaz
de fazer uma afirmação destas com o lhe tinha acabado de relatar?
- Não sei Shiva porque, sinceramente, não reparei! - Disparei eu, com algum sarcasmo.
Estava demasiado ocupada a ser ameaçada, pensei, de imediato.
- A sério? - Afirmou, com bastante surpresa. - Como é que isso é possível? Não acredito
que não o tenhas observado minimamente.
Tentei rever na minha mente os momentos em que o observei, que ainda estavam recentes
na minha memória. Recordava pormenorizadamente as suas esculpidas feições, tão
marcantes quanto a sua palidez, assim como a intensidade do seu misterioso olhar e o seu
abstracto discurso. De facto, todas estas características se harmonizavam estranhamente
entre si, conferindo-lhe um aspecto assustador, mas ao mesmo tempo, enigmático e, sem
dúvida, diferente.
- Ele é muito estranho - foi a única característica que consegui verbalizar.
- Hum! Pode ser que o encontres outra vez - provocou Shiva, sorrindo e piscando-me o
olho.
Não consegui rir-me perante aquela afirmação.
- Espero, muito sinceramente, que isso não aconteça - respondi eu, com um tom um pouco
amargo, enquanto me dirigia para a janela do meu quarto, sob o olhar malicioso de Shiva.
Sentia-me francamente arrependida de lhe ter mencionado o episódio desta noite.
Contrariamente ao previsto, já não consegui estudar mais nada nessa noite, pois o eco das
palavras daquele rapaz era constante, na minha mente. Resolvi deitar-me e tentar dormir,
numa tentativa vã de enviar para o meu subconsciente todos estes bizarros episódios. A
minha vida rotineira tinha-se transformado um verdadeiro cubo de Rubik! Teria a
realidade assim tantas faces, algumas delas tão inexplicáveis como incompreensíveis?
Imersa em pensamento, nem dei conta de Shiva se dirigir a mim, olhando-me com uma
expressão simultaneamente preocupada e carinhosa.
- Maria…porque é que estás a dar tanta importância a isto?
- Não estou a dar importância…só estou impressionada, é isso - retorqui eu, enquanto
compunha os lençóis e a coberta da cama, afastando as almofadas que a decoravam.
- Tens que relaxar mais, Maria!… Não podes dramatizar tanto as coisas.
Se tu soubesses…, respondeu, de imediato, a minha mente.
Olhei-a, concordando com um sorriso amarelo, sabendo eu que ela nunca iria
compreender o meu ponto de vista.
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- Vai dormir, descansar. Amanhã é um novo dia. Esquece este episódio - aconselhou
Shiva, acariciando-me os caracóis.
- Eu sei - sussurrei eu.
Quem me dera conseguir esquecer isto tudo…
- Até amanhã - afirmou ela, enquanto se afastava de mim, na direcção do seu quarto.
- Até amanhã…e obrigado pelas palavras de conforto - declarei eu.
- Não tens que agradecer! – Exclamou Shiva, enquanto apagava as luzes que iluminavam
o nosso modesto apartamento.
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CAPÍTULO 4 – REVELAÇÃO
AS SEMANAS QUE SE SEGUIRAM FORAM PARTICULARMENTE CALMAS.
As aulas foram bastante produtivas, tive oportunidade de fortalecer a minha amizade com
Adèle e preparar-me para os exames que se aproximavam. As minhas tardes de estudo
eram extraordinariamente rigorosas, mas de vez em quando permitia-me distrair com a
constante boa disposição de Shiva e com as mensagens amigas de Adèle. Estava a
melhorar francamente a minha fluência na língua francesa, tal como Shiva previra,
inclusivamente dava por mim, às vezes, a murmurar opiniões em francês.
Estávamos agora em meados de Novembro e o frio que se fazia sentir em Paris era
abismal. Diariamente saía de casa munida de uma enorme quantidade de adereços para
tentar combater o gélido vento que se instalava pela manhã e que ameaçava a integridade
dos meus pavilhões auriculares. O vestuário de eleição consistia quase sempre em alegres
camisolas de lã com as típicas calças de ganga e botas de pêlo, envolta por fim num kispo
de penas, que eu esperava ser elegante o suficiente para que não me assemelhasse ao
boneco da Michelin.
A minha mente estava agora mais leve, despreocupada e longe das perturbantes
ocorrências da primeira semana de Outubro. Raramente pensava no assunto e recordava
todos aqueles episódios mais como um ilusão distante e irreal, um delírio longínquo no
tempo e no espaço. Ainda assim, evitava deliberadamente sair à rua depois do pôr-do-sol,
não fosse o acaso refrescar-me a memória. Shiva não compreendia de modo algum a
minha renitência em manter-me em casa a partir das sete horas da noite, mas também não
me contrariava… muito. Por inúmeras vezes, perdi jantares e convívios com os nossos
colegas de intercâmbio, simplesmente por serem à noite.
As semanas de exames aproximavam-se e eu começava a ficar francamente preocupada
com algumas das disciplinas que exigiam algo mais da minha fluência linguística,
contrariamente à componente científica, a qual dominava com orgulho. Foi em Adèle que
encontrei uma preciosa ajuda, mais uma vez.
Adèle vivia relativamente perto de mim, a algumas estações de metro do meu
apartamento, num prédio luminoso e robusto, fácil de encontrar. Fui convidada a passar a
tarde com ela, repassando e treinando os vocábulos-chave para o exame que seria dali a
três dias. Acabei por jantar em sua casa, rodeada da sua simpática família.
Eram dez e meia da noite quando saí de sua casa. Já era noite, o que me fez sentir
imediatamente desconfortável. A viagem de Metro não era a minha preocupação, já que
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rara era a estação que estava deserta, fosse a que horas fosse. Paris era, sem dúvida, “a
cidade que nunca dorme”. O que me preocupava realmente era o percurso que eu teria que
fazer desde a estação de metro até ao eléctrico e deste até casa, sendo este último tão
luminoso durante o dia quanto obscuro durante a noite, o que me fazia pensar em
encontrar uma outra alternativa. Olhei para o relógio, faltavam dez minutos para as onze
da noite. A melhor opção seria, sem dúvida, atravessar a Cité Universitaire que, mesmo a
uma hora tão tardia, sempre teria algum movimento, alguém a circular.
Como tal, uma vez na Cité Universitaire, entrei e imediatamente procurei o caminho mais
rápido para chegar a casa, que ficava estrategicamente situada perto de uma das saídas do
enorme Campus. À medida que avançava pelos calmos passeios do campus, podia
constatar que o movimento era escasso, não só devido à hora, mas muito provavelmente
devido ao frio que se fazia sentir, que era cortante. Dei por mim a pensar que, se
continuasse assim, certamente iria nevar, ideia que me fez esboçar um leve sorriso de
expectativa. A imagem de Paris coberta de um manto branco levou-me imediatamente a
imaginar como seria a sensação e a textura dos flocos de neve na face, nas mãos e…
batalhas de bolas de neve. Sorri, mais uma vez, só de pensar.
Reparei que já avistava a saída alguns metros à minha frente quando, subitamente,
ouvi um barulho sufocado vindo dos arbustos localizados a alguns metros do passeio, por
onde eu passava naquele momento. Era um recanto escuro como breu e, à primeira vista,
não me pareceu ver nada nem ninguém. Provavelmente algum animal, pensei.
Ainda não tinha terminado de verbalizar mentalmente a minha linha de pensamento,
quando o cenário se tornou mais óbvio… e dantesco.
No chão jazia alguém, que me parecia ser um rapaz, visivelmente inanimado e sobre ele
estavam debruçados três indivíduos, astuciosamente vestidos de negro. Confundiam-se
facilmente com a sombra que os rodeava e tive necessidade de semicerrar os olhos para
conseguir distingui-los.
À medida que avançava, pude observar com mais clareza o que se estava a passar. Um
deles tinha a face estrategicamente encaixada no pescoço do rapaz, enquanto lhe afastava
o queixo para cima, com a mão, numa tentativa óbvia de facilitar o acesso. O rapaz tinha
os olhos abertos, mortiços, com a cara salpicada de sangue e os outros dois, curvados
sobre ele, pareciam olhá-lo avidamente, respirando com sofreguidão, como se de um
alimento suculento se tratasse.
Subitamente, o olhar deles desviou-se do rapaz para se centrar, agora, em mim e foi com
um terror inexplicável que eu os vi erguer-se e observar-me com uma postura atenta e
hostil. O brilho no olhar deles era marcante, mas não desconhecido, pois era exactamente
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igual ao dele, David, naquela ruela. Seguro, aterrador e…incapacitante. Com igual
ligeireza, o que estava debruçado sobre o pescoço do rapaz ergueu-se e, lentamente,
voltou-se na minha direcção.
Se a imagem que estava a ter já era terrível, a que agora se juntava a este conjunto era
absolutamente diabólica. O rapaz, certamente moribundo, agonizava enquanto jorrava
sangue das artérias carótidas que tinham sido, por certo, destruídas e a sua garganta estava
exposta, rasgada. Pelo diminuto tamanho que o jorro de sangue apresentava, o rapaz já
estaria certamente esvaído... como se tivesse sido… drenado.
O outro indivíduo, eu conhecia-o. Era um dos rapazes da reunião de Intercâmbio, o
italiano que tinha “ofendido” Shiva com a sua amarga argumentação. Mas agora ainda
estava mais assustador que da última vez, algo que eu nunca pensei ser possível. Tinha a
face coberta de sangue, que pingava do nariz e escorria pela boca, até ao pescoço, o que
lhe dava um aspecto selvagem e intensificava ainda mais a sua doentia palidez. Tinha o
cabelo negro caído sobre a cara, onde aderia de forma caótica devido ao sangue que aí se
encontrava. E agora, estava a olhar para mim. Todos eles estavam a observar-me, com
uma postura agressiva… cruel. Agora sim, sabia o que tinha acontecido com Nadine.
Vi o italiano movimentar a cabeça ligeiramente para o lado, sem nunca deixar os meus
olhos, com uma feição curiosa, seguramente constatando o óbvio: ele conhecia-me e ia
atacar-me. Eu conseguia sentir a determinação no olhar dele.
Fiquei ali parada no tempo, durante… um segundo? Um minuto? Uma hora? Não sabia.
Senti os livros que trazia escorregarem dos meus braços e ouvi como caíam desamparados
no chão, o que me libertou momentaneamente da visão funesta em meu redor.
Foi instantâneo. Não pensei e comecei a correr. Senti-me desesperada, à medida que
corria o mais rápido que podia, pelos passeios escuros, acompanhada pela fraca luz
disponível que me rodeava na direcção da saída que, cada vez mais, me parecia
inatingível. Enquanto corria vi, com espanto, a rapidez invulgar com aqueles rapazes se
movimentavam. Era simplesmente impossível alguém – humano – correr àquela
velocidade. Pela direcção que eles estavam a tomar, percebi que estavam a cercar-me e
então, aí sim, comecei a entrar em pânico. O meu destino ia ser o mesmo do daquele
rapaz, eles iam aniquilar-me.
Maldita a hora em que havia entrado na Cité Universitaire.
Ainda não tinha tido tempo para me consciencializar do terrível fim que me aguardava,
quando senti um forte puxão que me derrubou rapidamente para o arvoredo mais próximo,
num recanto que eu nem sabia existir. Esperava encontrar a qualquer momento a espessa
vegetação nas mãos e na face, ferindo-me e segurando o impacto que havia sofrido.
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Contudo, o que encontrei foi bem diferente. Senti uns gélidos braços em meu redor e uma
forte mão glacial cobrindo-me a boca, enquanto a outra me imobilizava os membros
superiores.
- Shhhh - suspirou uma voz, na direcção do meu ouvido direito, enquanto me arrastava
para os confins daquele obscuro recanto, cheio de vegetação. Não podia mover-me mesmo
que tentasse, tinha a respiração acelerada e o batimento cardíaco a um ponto que parecia
ser audível num raio de vários metros.
Repentinamente, parei. As mãos e os braços gélidos mantinham-se, sem hesitar, sem se
mover e sentia trespassar o frio que deles emanava, pela minha espessa vestimenta. Não
conseguia discernir onde estava nem com quem, nem sequer tive tempo para entrar em
desespero, quando senti o sussurro glacial de uma voz inconfundível, quase anestesiando
o meu ouvido direito: David.
- Não fales.
Mesmo que quisesse, não conseguiria articular uma única palavra e sentia-me a enregelar
cada vez mais. A noite estava fria, ele estava frio, já estava a sentir uma espécie de
formigueiro onde a sua pele tocava a minha, eu parecia estar encerrada, imóvel, numa arca
frigorífica. A minha respiração estava cada vez mais dificultosa, por estar limitada a
utilizar somente o nariz, contudo estranhava curiosamente a rara essência que emanava em
meu redor e que, com cada inspiração que fazia, me entorpecia os sentidos. Seria este
aroma proveniente da abundante vegetação que me rodeava? Provavelmente. O que estava
ele a fazer aqui, e o que me iam fazer a mim? Não conseguia compreender o que se estava
a passar, mais uma vez.
Repentinamente, senti três presenças a rodearem-nos, dirigindo-se a nós. Podia sentir a
hostilidade no olhar deles, como o leão que se prepara para atacar a zebra e, naquele
momento, só desejei poder ter uma morte rápida e indolor. A uma distância sensivelmente
de um metro observei, espantada, que a investida tinha cessado e que aqueles três haviam
retrocedido e mantinham-se afastados, garantindo a distância de segurança, ainda que nos
cercassem de forma animalesca.
- David - ouvi o italiano chamar, com uma voz desagradável, ligeiramente surpreendida.
- Nevio - respondeu a fria voz, detrás de mim. Ah, era esse o nome do italiano.
A partir daí, iniciou-se um diálogo repleto de palavras ininteligíveis, que eu não consegui
identificar com nenhuma das línguas que tinha ouvido até agora. Pela sonoridade parecia-
me ser oriundo dos países de Leste, mas não conseguia identificar qual deles.
O facto de eu não compreender o que estavam a dizer, sabendo eu que estava envolvida na
discussão, junto com a amargura das palavras trocadas era, a meu entender, sinal de que a
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conversa estava a correr mal, o que me fazia sentir ainda mais desesperada. E não estava
enganada.
A voz de David estava a adquirir um tom exaltado, sem nunca perder a firmeza,
contrariamente a Nevio, que estava notoriamente descontrolado. Os outros dois nunca
intervieram em nenhum momento do diálogo.
A certa altura, David mencionou três ou quatro palavras com um tom de voz que parecia
deformada, quase gutural, semelhante a um grunhido, encerrando claramente o diálogo
com o italiano. Esta última intervenção fez-me estremecer da cabeça aos pés. E agora, o
que iria ser de mim?
Senti todos os olhares fixos em mim, como se tivesse verbalizado o meu último
pensamento. Abruptamente, senti David a mover-se por detrás de mim, a sua face a tocar
no meu cabelo, pescoço, orelha e, quase de imediato, senti-me invadida por uma enorme
vontade de dormir, um cansaço enorme, excessivo, pouco comum. Parecia que as minhas
pálpebras tinham vontade própria, pesadas, tal como todo o meu corpo, atordoado. Ainda
tive tempo para considerar que talvez me tivessem drogado, quando, sem mais demora,
senti-me a perder os sentidos e abandonar toda a minha vontade, segura nuns braços
firmes como pedra.
Acordei com uma intensa sensação de tontura e náusea, uma dificuldade imperiosa
de abrir os olhos e uma estranha torpeza de movimentos. A habitação onde me encontrava
era-me familiar… era o meu quarto, mas estava escuro e a única luz disponível emanava
do exterior, entrava pela minha janela, que estava completamente aberta, deixando o luar
invadir o modesto cubículo onde me encontrava. Comecei a movimentar-me lentamente,
quando senti uma presença mover-se na sombra, num recanto escondido do meu quarto. A
minha reacção foi imediata. Sentei-me e recolhi-me defensivamente até encontrar a
cabeceira da cama, com joelhos flectidos, braços e as pernas contraídos, aguardando o
desconhecido.
- Vais-me fazer mal? - Sussurrei eu, a medo, na direcção da sombra que parecia estar viva.
- Não - respondeu firmemente aquela voz que, imediatamente, reconheci como a de
David. Aquele sotaque era inconfundível, até mesmo na imensa escuridão que nos
rodeava, onde eu não conseguia distinguir nada, a não ser vultos imprecisos.
- O que é que me aconteceu? - Questionei, sem saber muito bem o que esperar como
resposta.
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- Perdeste os sentidos e eu trouxe-te para casa - afirmou ele, secamente.
Instintivamente, lancei a mão ao interruptor, numa tentativa de iluminar melhor o nosso
recente espaço de diálogo e porque me fazia uma certa confusão falar com um autêntico
semblante animado. Constatei, com alguma surpresa, que não tinha luz em nenhum
instrumento electrónico no meu quarto.
- É melhor conversarmos assim - afirmou ele, claramente respondendo à minha acção
anterior. Era melhor conversarmos assim?… para ele, certamente, porque para mim, era
extremamente frustrante. Olhei para a porta e pensei automaticamente em Shiva. Estaria
ela em casa? Que horas seriam? Da última vez que tinha olhado para as horas, era perto
das onze da noite.
- Que horas são? - Perguntei eu, alarmada.
- São duas da manhã.
Meu Deus! Eu tinha estado inconsciente todo este tempo? E Shiva? Teria ela perguntado
por mim?
- Não te preocupes com a tua colega. Ela hoje não veio dormir a casa - afirmou
novamente. Pela segurança das suas palavras, certamente teria lido a preocupação na
minha face. Sim, eu deveria ser muito transparente. E como é que ele sabia disso?
Provavelmente Shiva ter-me-ia deixado uma nota ou uma mensagem que eu, obviamente,
não li. Comecei a ficar nervosa, à medida que recordava os eventos ocorridos há algumas
horas atrás. Eram chocantes, graves, horríveis - concluí. Aqueles rapazes matavam,
perseguiam… e David era um deles e estava aqui, agora, comigo. Tinha uma franca e
sincera dificuldade em compreender o porquê de todos estes acontecimentos. Mais uma
vez, David interrompeu o meu confuso raciocínio para responder à minha visível
incompreensão dos factos.
- Compreendeste o que viste?
- Sinceramente, não sei… - Respondi, com toda a franqueza, sem olhar na direcção dele.
Era verdade. Não sabia, não compreendia o que tinha visto. A única certeza que tinha era
que se tratava de algo altamente disfuncional.
- Vocês… - comecei eu.
- Sim? - Interrompeu ele.
- … pertencem a algum Culto, ou assim?
Seguiu-se um pesado silêncio após a minha pequena intervenção, enquanto eu olhava
vagamente para a sombra onde ele se encontrava, imóvel. A sua postura alterou-se
ligeiramente e eu percebi que ele estava a olhar na minha direcção, pelo leve brilho que
me pareceu distinguir na escuridão, certamente pertencente ao seu intenso olhar.
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- É isso que tu pensas? - Perguntou ele, com um tom visivelmente desapontado, o que me
fez deduzir que a minha suposição estava errada.
- É só uma hipótese…mas, muito sinceramente…
As palavras fugiam-me. Estava a ficar bastante desesperada com o meu óbvio
desconhecimento dos factos. Mais valia perguntar directamente do que vaguear sem
objectivos concretos.
- O que é se passou ali? - Indaguei eu, com um tom algo desesperado.
- Tu viste - Foi a sua resposta imediata.
- Mas… mas eu não consigo… não entendo… - respondi eu, visivelmente atrapalhada.
A reacção dele foi inesperada. Vi-o dirigir-se a mim, com uma ligeireza pouco
natural, abrandando na interface luar/sombra e levantando um braço na minha direcção,
um claro pedido para me aproximar. Hesitante, levantei-me da minha posição quase fetal e
fiquei de pé, a poucos metros dele, vacilando inúmeras vezes, enquanto encurtava a
distância entre nós com tímidos passos na sua direcção. Não conseguia ver-lhe a face nem
parte do tronco, que mantinha escondido na sua própria sombra, enquanto todo o resto
estava exposto ao luar, dando-lhe uma tonalidade quase marmórea, como se de uma
estátua viva se tratasse. Reparei que tinha vestido exactamente o mesmo casaco que das
outras escassas vezes em que o vi e parei a cerca de um metro dele. O que queria ele de
mim? Como pretenderia dar-me respostas, depois do que eu tinha visto?
Com uma rapidez invulgar, agarrou-me o pulso com uma firmeza tão suave que me fez
estremecer - de medo? -, efeito certamente potenciado pela sua gélida temperatura.
- Olha para mim - ordenou ele, saindo da sombra e expondo-se, agora, à luz do luar.
Fiquei estupefacta a observar o estranho rapaz cuja face revelava mais idade do
que aparentava e que estava, agora, a escassos centímetros de mim. Os olhos eram a sua
característica mais marcante, pela intensidade que deles emanava e, contrariamente a
todas as outras vezes, agora não lhes encontrava hostilidade nem ira, mas sim tristeza e
desapontamento. Reconheci o invulgar aroma que nos rodeava, constatando que era dele
que emanava, enquanto o cabelo se posicionava persistentemente a turvar os pormenores
que nele existiam, escondendo todos os seus mistérios.
Levantei a minha mão trémula na direcção da sua face, afastando lentamente algumas
madeixas, para poder descobrir o que a sua face me escondia. Das suas esculpidas feições
brotava a tão característica palidez, que eu tão adequadamente qualificava de doentia e
agora estava tão intensificada pela luz do luar. A sua pele tinha uma aparência marmórea,
quase intemporal e ao toque era fria, cadavérica, igual à de Nadine.
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- É fria… - sussurrei eu, verbalizando o meu pensamento. Ele não me respondeu.
Manteve-se ali, à minha frente, como uma estátua viva, continuando a agarrar-me o pulso
que, neste momento, já se encontrava ligeiramente dormente. Foi então que reparei nos
dois vultos proeminentes que sobressaíam discretamente do lábio superior e,
instintivamente, passei os dedos por esses vultos, tentando em vão adivinhar no que
consistiam. David tinha os lábios firmemente cerrados mas, ao adivinhar a minha
curiosidade, abriu-os ligeiramente, permitindo-me observar algo que eu nunca mais iria
esquecer.
Aqueles vultos pertenciam a um par de volumosos caninos, que se elevavam a um nível
diferente dos restantes dentes, dando-lhe uma aparência absolutamente felina. Agora, sim,
percebia a forma como aquele rapaz tinha morrido, recordando as imagens da sua
garganta rasgada e as suas carótidas destruídas. A minha inevitável conclusão fez-me
cobrir a boca com a mão, em ar de choque, à medida que me afastava, com pequenos
passos para trás. David já me havia deixado o pulso, sem que eu me apercebesse.
- Vocês… bebem sangue?
- Sim - afirmou ele, secamente.
- Porquê? - A minha voz perdia firmeza e mais parecia um sussurro.
- É vital.
- E os dentes servem para… - Não conseguia encontrar um verbo para descrever aquele
acto tão característico dos mais ferozes felinos.
- Sim - interrompeu ele, adivinhando a causa da minha hesitação.
- Mas… nunca tinha reparado que…
- São retrácteis - explicou ele e, com um passo, aproximou-se novamente de mim. Pude
observar, com assombro, os proeminentes caninos a desaparecerem tão rapidamente
quanto tinham aparecido. Sem dúvida, estava perante estranhas criaturas.
- Meu Deus - suspirei eu, chocada.
Não conseguia acreditar no que tinha acabado de contemplar. Tudo isto parecia um
autêntico circo de monstruosidades, cada uma mais excêntrica que a outra. Sangue?
Caninos retrácteis? Estes rapazes tinham, sem sombra de dúvida, algum problema. Estaria
eu a sonhar? Provavelmente. Só em sonhos poderia eu conceber tais fantasias, só num
mundo imaginário era possível a sua existência.
- Porque é que me estás a dizer estas coisas? - Perguntei eu, com toda a sinceridade que
tinha em mim.
Como que adivinhando o sobressalto que se apoderava de mim, senti-o dirigir-se para a
porta do quarto e olhei para ele, questionando-o com o olhar.
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- Evita apareceres à noite – disse, inesperadamente.
Com tal resposta, vi-o desaparecer na sombra que se abatia por toda a casa e ainda pude
ouvir a porta principal fechar-se, precedida de um ruidoso click. Imediatamente, apareceu
o característico intermitente do meu relógio-despertador e o candeeiro da minha mesa-de-
cabeceira encheu-se de luz.
Agora, sentada à beira da cama, não conseguia formular um pensamento coerente. Apenas
olhava indistintamente para o vazio. A pouco e pouco sentia-me a ganhar compostura,
tentando processar toda a informação desta atribulada noite. Levantei-me e aproximei-me
da janela, que me dava acesso a toda a Avenida, agora completamente deserta e somente
inundada pela luz do luar e pela chama artificial dos candeeiros que a decoravam. Olhei
para o relógio. Eram duas e quarenta da madrugada.
Encerrei a janela, puxando firmemente os estores, enquanto concluía que precisava
urgentemente de dormir, sem pensar nem contestar nada do que se tinha passado…por
enquanto.
Decidida, saí do quarto e ao abrir a porta, encontrei uma nota de Shiva rabiscada num
post-it em forma de flor aderido à porta do seu quarto, onde me avisava de forma
resumida que ia dormir a casa de uma colega e onde as palavras “projecto”, “stress” e
“prazo limite” se salientavam especialmente. De imediato, recordei que as palavras firmes
de David informando-me da ausência de Shiva teriam seguramente como base esta
distinta nota.
Dirigi-me à casa-de-banho, preparando-me para me ir deitar, quando ao olhar-me no
espelho, reparei que estava com a mesma roupa que tinha vestido pela manhã, o que me
fez relembrar da dolorosa realidade. Mesmo tendo passado por aquele incidente
assustador, perdido os sentidos e posteriormente acordado com alguém no meu quarto,
esse alguém não tinha invadido a minha integridade física, o que me acalmou quase
instantaneamente. De igual forma, constatei que não tinha marcas de ter sido drogada nem
a pele perfurada com nenhum objecto afilado.
Após confirmar várias vezes se a porta de casa estava completamente encerrada, dirigi-me
velozmente para o meu quarto e, já aconchegada na cama, desejei conseguir adormecer
rapidamente, para não ter tempo de me consciencializar da desconhecida realidade que me
envolvia.
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CAPÍTULO 5 – PESQUISA
COMO SERIA DE ESPERAR, FOI MUITO COMPLICADO ADORMECER NESSA NOITE.
O que mais me perturbava era a constante imagem daquele rapaz, moribundo, que
insistentemente não me saía da cabeça, tal como tudo o resto que acontecera e que eu
classificava de absolutamente irreal.
Não fui à faculdade no dia seguinte. Eram onze da manhã quando recebi uma mensagem
de texto de Adèle, que estranhava a minha ausência, perguntando-me o que se tinha
passado e se estava bem. Sentida com a preocupação da minha recente amiga, tratei de
responder de imediato à sua inquieta mensagem, comunicando-lhe que me sentia cansada
e que tinha optado por ficar a descansar durante toda a manhã. Enquanto enviava a
mensagem, senti-me imediatamente culpada por estar a arranjar desculpas vagas e a
mentir vergonhosamente a uma pessoa que se preocupava comigo. Contudo, seria
absolutamente impensável contar-lhe a verdade acerca da autêntica razão pela qual estava
eu, encerrada em casa a sete chaves, como quem teme a chegada do dia do juízo final.
Sorri levemente ao imaginar a cara de espanto de Adèle se eu me justificasse afirmando
que ontem tinha testemunhado um homicídio e que, depois de reconhecer os
intervenientes como colegas de intercâmbio, tinha perdido os sentidos para, momentos
depois, acordar no meu quarto com um deles a observar-me de forma doentia. Não.
Definitivamente, esta não seria uma opção viável.
Deixei-me estar aconchegada no meu volumoso edredão enquanto ouvia,
longínquos, os ruídos da cidade, durante algum tempo. Tentava recordar com o máximo
pormenor possível a minha conversa com David, pois estava certa de que todas as
respostas às minhas questões estariam seguramente nas entrelinhas do seu discurso,
aparentemente incoerente e evasivo. Era complicado falar com aquele rapaz, pois o pouco
que dizia estava rodeado do mais puro dos mistérios. Pensar que se ia tornar habitual
conversar com ele era algo inquietante, mas ao mesmo tempo, despertava-me a
curiosidade. Era provável que assim fosse, agora que estava completamente ciente das
bizarras actividades do seu pequeno clube. Mas o que quereria ele dizer com evitar
aparecer à noite? E porquê, se eu já vira o que não era suposto ter visto? Decididamente,
não compreendia esta questão. Nem esta, nem uma consistente centena delas que ele, tão
amavelmente, se esquivava a aclarar. Fechei os olhos e expirei ruidosamente. Isto era
extremamente frustrante.
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Levantei-me num pulo, abrindo os estores da janela, para descobrir um dia repleto
de sol. Havia uma movimentação excessiva na zona da Cité Universitaire para a qual eu
tinha acesso directo da minha janela. Subitamente, lembrei-me se teriam encontrado o
corpo do rapaz.
Essa hipótese fez-me sentir arrepios na espinha. Eu também tinha lá estado e isso poderia
meter-me em sarilhos, ainda que eu tivesse participado como mera observadora. Pensar
nestes termos fez-me aperceber da verdadeira situação em que eu me encontrava: eu tinha
testemunhado um homicídio, conhecia os assassinos e, ao remeter-me ao silêncio, fazia de
mim cúmplice.
Olhei para a minha secretária, onde estavam os livros que no dia anterior tinha deixado
cair naquele maldito passeio na Cité Universitaire. Cuidadosamente empilhados, era como
se nunca tivessem saído do meu abraço, como se eu tivesse chegado a casa pelo meu
próprio pé. Até o meu casaco estava pendurado no bengaleiro, como é meu hábito e eu
não recordava tê-lo colocado ali, ontem. Eram imensas perguntas sem respostas,
demasiadas para uma pessoa normal ficar quieta em casa e conformar-se. Eu não
conseguia fazê-lo.
Dirigi-me à casa-de-banho para o meu duche diário, que hoje ia ser particularmente
rápido. Resolvi vestir as típicas calças de ganga, com umas botas confortáveis e uma
quente camisola de lã de tons alaranjados, que combinava com o dia. O meu cabelo estava
particularmente implacável, pelo que tive obrigatoriamente que colocar inúmeros ganchos
para que o meu aspecto fosse minimamente civilizado. Dei duas dentadas numa torrada e
peguei no casaco, preparando-me para sair, enquanto acabava de beber um iogurte líquido.
Quando saí do prédio, parei momentaneamente para organizar o começo oficial da minha
busca de respostas e dirigi-me com firmeza ao local que mais recente estava na minha
memória. Primeira paragem: Cité Universitaire.
Sempre havia ouvido dizer que os assassinos voltam ao local do crime e estes não
seriam excepção. Então, fui caminhando apressadamente pelo Campus até reconhecer os
edifícios e as tenebrosas vegetações da noite anterior e, aí, o meu passo tornou-se mais
hesitante. Eram momentos e memórias difíceis.
Observei com atenção o passeio por onde caminhara na noite anterior e examinei a
vegetação que escondia o recanto onde eu vira o rapaz moribundo. Dirigi-me para o
interior desse mesmo recanto e foi com alguma surpresa que constatei que não havia
qualquer sinal de que tivesse ocorrido um homicídio naquele local, a não ser que esmagar
algumas formigas que por ali circulavam se pudesse considerar um assassinato. Debaixo
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do meu olhar atento, confirmei que não havia salpicos de sangue, nem pegadas, enfim,
nenhum vestígio de todo. A terra estava completamente macia, sem marcas, e a vegetação
parecia intocada. Impressionante.
Saí daquele verdejante recanto, como se fosse uma paranóica exploradora de
plantas, debaixo do olhar atento de dois alunos que passavam ali naquele momento e que,
provavelmente, pensariam que eu estaria afectada por algum tipo de demência.
Percorria agora o passeio por onde recordava ter corrido desalmadamente, até ter sido
puxada por David para mais um recanto apinhado de vegetação. Sem dúvida estes rapazes
tinham uma obsessão por zonas recatadas e escondidas. Dirigi-me novamente ao interior
deste novo recanto que agora conseguia distinguir estar repleto de um intenso arvoredo.
No seu interior havia uma pequena clareira, formada pela disposição natural das pequenas
árvores, precisamente onde eu tinha estado aprisionada nos braços daquele estranho rapaz.
Da vegetação emanava um suave aroma floral e os fracos raios de sol que por ela
penetravam davam-lhe um aspecto absolutamente viçoso, mesmo sendo Inverno. Muito
diferente da perspectiva que tivera ontem à noite. Olhei atentamente, para me desiludir
mais uma vez: nem uma marca, nem um vestígio. Nada.
Aqueles indivíduos eram como sombras, espectros com vida própria, que deambulavam a
velocidades inacreditáveis e capazes das maiores atrocidades, como fantasmas que
aterrorizavam quem se cruzasse no seu caminho. Má sorte a minha - pensei.
Rapidamente saí daquele apinhado recanto para encontrar novamente os raios de sol,
enquanto caminhava, consternada, a caminho de casa. Mais uma vez, sem respostas.
Ao entrar em casa, constatei que ainda estava sozinha. Shiva só chegaria à noite,
quase de certeza. Olhei para o relógio, era uma e meia da tarde. Tinha demorado mais de
uma hora à procura de respostas inexistentes na Cité Universitaire, o que se revelou uma
pura perda de tempo.
Tentei distrair-me a fazer o almoço, enquanto tentava pensar no que teria que fazer
durante a tarde, pois tinha um exame dali a dois dias. Mas a minha mente tinha outras
ideias, outros caminhos que, invariavelmente, sempre iam desembocar nos eventos da
noite anterior. Tinha que me concentrar e tentar libertar-me destas imagens que
ameaçavam permanecer constantemente na minha cabeça.
Uma vez preparado o almoço, acendi a televisão e obriguei-me a ouvir o que o locutor
dizia, enquanto comia calmamente. Tive sucesso durante dez minutos.
Dei por mim a analisar a imagem de David que parecia tinha impressa em todos os
neurónios existentes em mim. A face dele consistia num semblante de mistério, na qual
era quase impossível discernir qualquer sentimento, qualquer emoção. Era, de facto, muito
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pouco expressivo. Contudo, as linhas do rosto não eram muito marcadas, o que significava
que, aparentemente, era novo, sem dúvida entre os vinte e os vinte e cinco anos de idade,
apesar de existir algo nele que emanava antiguidade. O olhar dele era chocante, sem
margem de dúvida, mas era todo o conjunto que o tornava assustador. Outra característica
que não conseguia compreender era aquela constante necessidade de esconder a cara com
o cabelo, marca comum em todos eles.
Sim, definitivamente ele tinha um aspecto doentio. Ninguém de perfeita saúde tinha uma
cor daquelas, aquela palidez certamente esconderia alguma doença que eu não conseguia
diagnosticar neste momento preciso. Explicaria essa doença o seu estranho
comportamento, a sua bizarra… necessidade? De repente não me ocorria nenhuma
situação em que um ser humano pudesse adquirir dentes retrácteis. Estariam eles afectados
por alguma patologia rara que explicasse todas estas características? Mas, quatro pessoas
exactamente com a mesma doença rara era algo altamente improvável. Se bem que não, de
todo, impossível.
E ele estava sempre…frio, com a mesma temperatura horrorosamente gélida, tanto lá fora,
como ontem, no meu quarto. Poder-se-ia explicar como um ser humano saudável pode
admitir uma temperatura cadavérica, sem forçar até ao limite todas as teorias existentes?
Tentei fechar os olhos, tentando desviar a minha linha de pensamento para algo mais
agradável, como por exemplo praias paradisíacas com palmeiras e frutos tropicais. Acenei
negativamente para mim mesma, colocando as pontas dos dedos nas fontes. Mais
perguntas sem respostas.
Terminei de almoçar e, num ápice, arrumei a loiça e a confusão que tinha arranjado para
preparar o almoço. Voltei, sem alento, para o meu quarto. Era imperativo estudar nessa
tarde, mais que não fosse pela pressão da proximidade do exame de sexta-feira. O
problema era que a minha desconcentração estava a atingir níveis que eu pensava não
existirem. Não conseguia estar mais de vinte minutos centrada num tema, pois as imagens
da noite anterior eram uma constante presença mental.
Estava a ficar arreliada com a incapacidade que sentia para levar a cabo tarefas que, há
dois dias atrás, me eram completamente triviais. Só queria conseguir não pensar naquele
assunto durante uma quantidade de tempo considerável. O problema de não querermos
muito uma coisa é exactamente o facto de ela persistir em nós, exactamente com a mesma
magnitude, como por exemplo quando fazemos um grande esforço para não chorar e que o
resultado obtido é exactamente o contrário.
Rendi-me às evidências. Talvez fosse melhor fazer alguma coisa para aniquilar a minha
desconcertante curiosidade.
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Instintivamente, peguei num post-it e escrevi:
Por momentos, senti-me o Dr. House a escrever os sinais e sintomas mais marcantes no
seu famoso quadro, enquanto massacrava sem escrúpulos os seus subalternos. Mas esta
minha tentativa estava longe de se assemelhar aos rocambolescos raciocínios tão
característicos daquele personagem, apesar de estar perante um enigma bastante fora do
vulgar. Olhei para as três palavras e não consegui lembrar-me de nenhuma doença que
conjugasse especificamente estas três características. Conseguia associar “palidez” e
“sangue” a patologias porfíricas, contudo algo me dizia que não iria encontrar “dentes
retrácteis” em nenhum livro de texto, por mais vanguardista que fosse. A minha opção
imediata era a base de dados do Harrison’s Medicina Interna. Quase sem pensar, procurei
o livro e vi que, numa contra-capa, tinha disponível o DVD de instalação, que coloquei
imediatamente no computador portátil que entretanto já tinha ligado.
Enquanto esperava que o computador iniciasse e que o DVD começasse a correr, folheava
pacientemente o glossário, sabendo que não iria encontrar alguma destas palavras de
forma imediata. Uma vez disponível o motor de busca, dei entrada das três palavras que
havia escrito, aguardando os resultados.
Como seria de esperar, da terceira palavra não surtiram resultados e da associação das
duas primeiras remeteram-me aos capítulos de doenças genéticas e do metabolismo.
O primeiro resultado falava das Porfírias, o que não me surpreendeu. Apesar de já ser um
tema que eu havia estudado em algumas disciplinas, e mesmo sabendo do que se tratava
na generalidade, sempre haveria algum pormenor importante que, muito provavelmente,
seria relevante. E, neste caso, os pormenores eram, sem dúvida, fundamentais.
Da minha extensa e atenta leitura no capítulo das Porfírias, concluí que, somente
dominada por uma enorme capacidade imaginativa, teria alguma possibilidade de estar
certa ao considerar que David e os seus semelhantes encaixavam bizarramente no quadro
de Porfiria. Apesar de existirem vários tipos, todas elas consistiam em distúrbios
enzimáticos no qual os pacientes manifestavam desde palidez, a necessidade contínua de
transfusões sanguíneas, eritrodoncia, orelhas afiladas, mãos em forma de garra, sérios
problemas hepáticos, a clara intolerância à luz solar. Uma grande variedade de
Palidez Sangue: vital Dentes retrácteis
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manifestações que não necessariamente surgiam em simultâneo e que, ao fazer uma
selecção conveniente daquelas que mais relevância tinham, não obtinha mais do que uma
conclusão forçada, ou seja, seria uma atitude incorrecta e imprecisa, do ponto de vista
médico e clínico. Se bem que não havia nada de correcto nem de preciso nesta história
toda. Só incoerências e utopias. Literalmente.
Onde estava, agora, a minha racionalidade?
Ainda assim, continuei. À parte dos dentes avermelhados e mãos em forma de garra, que
eu já tinha observado que não possuíam, as orelhas afiladas permaneciam um mistério.
Assim, as únicas características que eu encontrava – de certa forma - a encaixarem com o
semblante deles, eram a palidez e a (eventual) necessidade de sangue. Por outro lado,
coincidência ou não, a verdade é que eu nunca os tinha visto em plena luz do dia, mas
sempre depois do pôr-do-sol.
Olhei vagamente em meu redor, pensando no que poderia isto significar. Sim, era uma
hipótese – remota -, ainda que encontrar quatro pessoas não aparentadas, com a mesma
doença genética, seria uma descoberta quase cósmica, para não mencionar que haveria
certamente métodos mais civilizados para conseguir a quantidade de sangue necessário
para a sua sobrevivência, sem ser necessário cometer assassinatos. Mas e porquê ingerir
sangue e não… transfundir, como se faz hoje em dia, sem dúvida uma forma mais
civilizada de obter o que se necessita?
Acenei a cabeça, semicerrando os olhos, consternada. Obtinha resposta a umas perguntas,
contudo, surgiam outras. Cada uma mais irreal do que a outra. Provavelmente, toda esta
loucura aparente seria justificável pelas manifestações neurológicas que grande parte dos
pacientes porfíricos podem sofrer, mais cedo ou mais tarde. Sim, sem dúvida um
comportamento desviante como assassinar pessoas para depois se alimentar do seu
sangue poderia ser facilmente explicado como um transtorno psiquiátrico de base
orgânica… ou genética. Pelo menos, era bem mais confortável… e com menor capacidade
de gerar controvérsia em qualquer mente minimamente racional.
No entanto, mantinham-se as questões pertinentes, às quais muito provavelmente eu só
conseguiria resposta se lhe perguntasse directamente. Mas para isso era necessário que ele
me quisesse responder e, acima de tudo, eu teria que voltar a vê-lo novamente.
Pensar nestes termos fez-me vacilar imediatamente. Estaria a minha curiosidade a
sobrepor-se ao meu sentido de auto-preservação? Claramente.
Com um suspiro frustrado, repousei a minha fronte nas pontas dos meus dedos, cerrando
os olhos durante o processo. Isto não me iria levar a lado nenhum. Nenhuma teoria, nada
palpável ao meu alcance teria capacidade argumentativa suficiente para que eu
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conseguisse… satisfazer a minha curiosidade. No entanto, teria que ser capaz de abstrair-
me.
Consegui voltar a estudar para o exame de sexta-feira alguns momentos depois de
encerrar o computador e voltar a colocar o Harrison na prateleira, enquanto olhava
fixamente para as palavras escritas no post-it, sabendo que por dois dias, teria de esquecer
que existiam.
E assim foi. Nos dois dias que se seguiram, ocupei propositadamente, de uma forma
exaustiva, a minha mente com os temários em avaliação para sexta-feira. Shiva regressou
nessa mesma noite, também atarefada com as suas avaliações constantes, pelo que não
tinha absolutamente nenhum factor de distracção.
Sexta-feira. O exame estava marcado às dez horas da manhã. Com algum nervosismo,
dirigi-me para a faculdade, desejando que o exame corresse bem e que pudesse descansar
um pouco durante a tarde, pois os dois dias que tinham passado haviam sido
extremamente cansativos. Mal cheguei à universidade, encontrei de imediato Adèle, que
me sorriu, evidenciando também o seu nervosismo. Assim que me aproximei dela, senti
necessidade de tirar o casaco pois estava com um calor invulgar, já que dentro da
faculdade o aquecimento estava quase sempre a uma temperatura tão elevada que quase
parecia estarmos nos trópicos e a espessa camisola que trazia era, decerto, desadequada
para o ambiente que ali se fazia sentir. Tirei o casaco e arregacei as mangas da camisola,
abanando-me com um papel dobrado que tinha à mão, enquanto Adèle se divertia com a
minha súbita reacção.
- Por mais exames que faça, enervo-me sempre de uma forma incrível - afirmei eu,
sorrindo abertamente.
- Compreendo perfeitamente - respondeu Adèle, também com um sorriso na face.
Ouvimos subitamente o professor a chamar-nos para dentro da sala, ao que Adéle me
sussurrou “Boa sorte”, à medida que íamos entrando. Retribuí-lhe as palavras e expirei,
concentrando-me no exame que ia fazer.
A parte escrita correu bem, porém bem pior foi a parte oral. O professor tinha uma
pronúncia cerrada, falava muito depressa e eu tive uma franca dificuldade em perceber as
perguntas que me fazia. Não tive alternativa senão rogar-lhe que falasse um pouco mais
pausadamente, para que eu pudesse compreender o que me dizia.
Saí da sala já passava das duas horas da tarde, completamente consumida e com uma dor
aguda na zona frontal, que parecia que não dormia havia três dias. Para meu espanto
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encontrei Adèle à minha espera, rodeada de mais uns colegas nossos que eu reconhecia
serem da minha turma mas que não sabia como se chamavam.
- Maria, então que tal? - perguntou-me Adèle.
- Bem, eu acho que correu bem…. - retorqui eu, exibindo um leve sorriso.
- Conseguiste fazer bem o exame oral?
- A princípio não. Fiquei com o Dr. Michel, que tem uma pronúncia terrível - esclareci eu,
relembrando os fatídicos momentos em que não compreendia o que o professor dizia.
- Ah! Não te admires. Eu própria tenho dificuldade em compreendê-lo e a minha língua
nativa é o francês! - respondeu-me uma rapariga de tez chocolate, com um sorriso muito
expressivo e olhos escuros.
– Olá, eu sou a Chlöe.
- Maria - apresentei-me eu.
- Julien e Henri - apresentou Adèle os restantes rapazes.
- Vamos almoçar fora, que bem merecemos - afirmou Henri, visivelmente contente por ter
terminado o exame.
Com entusiasmo, juntei-me ao animado grupo que seguia na direcção do Metro, saindo da
universidade. Fomos almoçar a um simpático e familiar restaurante situado em frente à
Catedral de Notre Dame, onde certamente já era comum a realização de almoços pós-
exame, a julgar pelo fantástico tratamento que recebemos. À refeição, falámos
alegremente de animais de estimação, férias em países estrangeiros e praias paradisíacas.
Henri ficou muito entusiasmado com o facto de eu ser portuguesa e residir no Algarve,
garantindo-me que tinha familiares a viver numa cidade ao sul de Portugal mas não
conseguia pronunciar correctamente o nome. Julien estava claramente perdido a elogiar os
abundantes e fortes caracóis de Chlöe, que não parecia dar-lhe muita importância
enquanto Adèle me informava que, abaixo dos Pirinéus, nada lhe era familiar.
Foi um almoço que se prolongou até às quatro da tarde, hora a que decidimos ir comer a
sobremesa a uma Casa de Gauffres que Julien afirmava ser a melhor de Paris.
Com desejos redobrados de bom fim-de-semana e promessas de descanso intensivo,
separámo-nos à entrada do Metro, onde segui, sozinha, em direcção ao meu apartamento.
Quando cheguei a casa ainda era dia e estava francamente exausta. Pelo silêncio que
reinava na casa, Shiva ainda não tinha chegado e, como tal, resolvi aproveitar para
dormitar um pouco. Mal me deitei na cama, senti-me adormecer num sono profundo.
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Acordei um pouco sobressaltada com alguém a tocar à porta do quarto. Só podia
ser Shiva.
- Sim… - afirmei eu.
- Olá! - Cumprimentou-me ela, alegremente. - Então, que tal correu o exame?
É verdade!! O exame. A sensação que tive foi que me perguntavam por um evento
decorrido há dias.
- Bem, bem…acho eu - afirmei, ainda meio adormecida. Foi então que reparei que Shiva
estava à porta do meu quarto e que já estava escuro.
- Entra, entra - convidei eu, acendendo a luz e sentando-me na cama, afastando o pequeno
cobertor que me cobria parcialmente.
- Que horas são? - Perguntei, visivelmente curiosa.
- Oito e meia da noite - respondeu ela, triunfante, enquanto se sentava na beira da cama.
Arregalei os olhos em resposta.
- Aquele exame cansou-me bastante - disse eu, em tom de justificação. - Então e tu, que
tens feito?
- Oh, hoje eu entreguei os projectos e fiz a defesa na aula. Correu tudo muito bem -
concluiu ela, visivelmente contente, olhando-me com um sorriso franco e os olhos
excessivamente abertos, como se estivesse espantada com algo que estava a observar. Não
foi preciso pensar muito para eu concluir que só poderia ser o meu cabelo que, certamente,
estaria com o aspecto de um arbusto selvagem, devido ao meu breve sono vespertino.
- Ah!… Os caracóis são mesmo assim. Um desafio diário - afirmei eu, sorrindo, enquanto
tentava acalmar o volume excessivo do cabelo, penteando-o com os dedos. Shiva
respondia-me com uma aguda gargalhada.
- Vamos jantar? - Adiantou.
- Vamos.
Dirigimo-nos as duas para a cozinha, dispostas a cozinhar uma iguaria digna do final de
uma árdua semana de trabalho e estudo. Contudo, foi Shiva que me convenceu a provar
um prato indiano típico que, segundo ela, era absolutamente delicioso. Chamava-se Thali.
A única exigência que lhe fazia era que não estivesse excessivamente condimentado.
Shiva adorava cozinhar e quando ela decidia dar liberdade aos seus dotes culinários, não
havia ninguém que a convencesse a parar. Conversávamos animadamente enquanto Shiva
preparava os ingredientes para o famoso prato, rejeitando qualquer auxílio que eu lhe
oferecia. A certa altura, Shiva dirigiu-se ao frigorífico, enquanto eu punha a mesa, até que
a ouvi chamar-me.
- Maria…
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- O que foi?
A pasmada face de Shiva estava agora fixa num ponto em concreto, lá fora, a olhar pela
janela da cozinha.
- Vem cá, por favor - disse ela mais uma vez, sem desviar o olhar, mantendo a sua face
séria.
Dirigi-me à janela, sem imaginar o que seria que ela estaria a ver, esperando que fosse
mais uma das suas brincadeiras típicas. Contudo, mal olhei pela janela, percebi
imediatamente a razão pela qual a minha colega de casa estava tão surpreendida. A janela
da cozinha do nosso terceiro andar tinha a mesma vista do meu quarto e podia ver grande
parte da Boulevard Jourdan. No passeio que acompanhava uma das fachadas da Maison
Internacionale, estava um indivíduo que eu reconheci imediatamente, somente pela
postura que admitia. Era David. Só podia ser David.
Estava de pé, entre os candeeiros que intervalavam a rua e mantinha, caracteristicamente,
as mãos nos bolsos. Não olhava para nada em concreto, nem se movia. Parecia
genuinamente uma estátua, como tantas outras que existem pela cidade. Levantei os
sobrolhos, surpresa.
- O que é que ele está a fazer aqui? - Disse eu, baixinho.
- Ia-te perguntar exactamente isso - respondeu Shiva, observando-me com um olhar
malandro.
- Eu não sei! - Afirmei eu, levantando o tom. Sinceramente, aquela insinuação tinha-me
atingido.
- Maria, Maria…- afirmou Shiva, sorrindo maliciosamente, na minha direcção. - O que é
que se anda a passar que não me contaste?
Ela estava delirante e eu estava chocada. Como é que era possível ela idealizar uma
situação destas, conhecendo-me minimamente?
- Shiva, por favor, - sussurrei eu, semicerrando os olhos e afastando-me do seu expressivo
olhar. - Não inventes!
- Maria, combinaste com ele? - Disparou ela, com um entusiasmo exagerado.
- Não!
Shiva olhou para mim de uma forma que me desacreditava completamente. Estava a
prever que ia ser difícil convencê-la do contrário.
- Já te disse que não sei o que é que ele está aqui a fazer - reafirmei eu. - E que eu saiba a
rua é pública, ele pode estar onde quiser.
Seguiu-se um silêncio desconfortável, enquanto ambas olhávamos fixamente aquela
estátua que só sabíamos viva por mero acaso.
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- Quererá ele falar contigo? - Sugeriu Shiva, repentinamente.
- Duvido - respondi quase de imediato. - Se ele quisesse falar comigo, provavelmente
olharia na minha direcção.
Ainda não tinha terminado de proferir a última palavra quando, para minha surpresa,
encontrei o olhar fixo de David em mim. Perguntei-me vagamente se seria possível ele ter
ouvido a minha última afirmação ou se, simplesmente, teria a capacidade de ler os meus
pensamentos.
Neste momento, tinha duas pessoas a olharem para mim. Shiva olhava-me com um sorriso
nos lábios, deslumbrada pelo olhar de David em mim que, segundo ela, valia mais que mil
palavras. De facto, só alguém que não tinha a mínima ideia do que se estava a passar é que
poderia supor tal barbaridade.
David continuava a olhar na minha direcção, tão estátua quanto antes e o olhar era, mais
uma vez, perturbador. Talvez ele quisesse mesmo falar comigo, por qualquer motivo que
eu desconhecia… ou talvez o motivo fosse mais óbvio do que eu pensava, dado o meu
problemático envolvimento na sua obscura realidade. Ainda que este facto me assustasse
consideravelmente, teria agora a hipótese de obter mais algumas respostas às novas
questões que me tinham surgido, pelo que concluí que não podia deixá-lo escapar, mesmo
que ele não tivesse nada para me oferecer.
- É melhor eu ir lá abaixo - constatei eu, afastando-me da janela e dirigindo-me ao meu
quarto, onde fui buscar o telemóvel, chaves de casa e casaco, porque, seguramente, estava
frio. Ao dirigir-me à porta de casa, ouvi Shiva dizer “Até já”, com um sorriso malandro,
enquanto me acenava. Respondi com um completo olhar de censura na direcção dela,
obviamente sem o efeito pretendido.
À medida que descia as escadas até à entrada do prédio, estava a ficar progressivamente
nervosa, hesitando inúmeras vezes. Era impressionante o efeito que este indivíduo tinha
em mim. Ao abrir a porta do prédio observei imediatamente que ele olhava na minha
direcção, o que não me permitia organizar mentalmente as perguntas que lhe queria fazer.
Contudo, à medida que avançava na sua direcção, pude observar como desviava, com
desinteresse, o mesmo olhar que, minutos atrás, era apelativo. Constatar esta realidade foi
suficiente para me bloquear imediatamente o raciocínio e eu não saberia o que lhe dizer
quando me aproximasse dele.
Parei a cerca de um metro, olhando-o com alguma melancolia, pois não conseguia
perceber o porquê da presença dele, aqui e agora, à porta do prédio onde eu vivia. Estava
bastante frio e corria uma brisa cortante, que fazia oscilar levemente os ramos das árvores,
provocando um ruído característico. Agitava também os meus caracóis e o seu
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característico cabelo que, mais uma vez, lhe caía caoticamente pela face e,
ocasionalmente, conseguia discernir-lhe as feições, que já me eram familiares, quando a
brisa mo permitia.
Mais uma vez, vestia calças de ganga, usava uma camisa que me pareceu ser azul clara e o
tão característico casaco escuro, claramente ligeiro para o frio do Inverno que se fazia
sentir.
- Olá - arrisquei eu.
Ele não se moveu, nem disse nada. Inclusive, parecia que nem respirava nem pestanejava.
Era uma figura absolutamente estática. Assim ia ser difícil perguntar-lhe fosse o que fosse.
Mas o que estava ele a fazer aqui? Provavelmente viria confirmar se eu tinha dado com a
língua nos dentes e exposto o seu tão precioso segredo.
- David… - era a primeira vez que verbalizava o nome dele e soava-me de forma estranha,
com a pronúncia que eu lhe dava. - Eu não vou dizer nada do que vi, a ninguém.
Dele obtive mais silêncio. Senti-me claramente a mais – como se isso fosse possível –
numa enorme multidão formada apenas por duas pessoas. Percebi que não ia ser possível
dialogar com ele e decidi ir-me embora, preparando-me para dar meia volta e regressar a
casa. Enquanto efectuava o movimento de retirada, subitamente, ouvi-o falar.
- Não é essa a questão.
- Então qual é a questão? Porque é que estás aqui? - Disparei eu, quase automaticamente.
A feição dele moveu-se na minha direcção e o olhar fixou-se novamente em mim,
emanando uma tristeza e um desconforto que eu não compreendia.
- O que foi? - Insisti eu, sem sucesso, pois não obtive resposta, mais uma vez.
O nosso diálogo ia ser, definitivamente, difícil. Voltei a aproximar-me, dando-lhe mais
uma oportunidade.
- Apetece-te…falar? - Sugeri eu, já sem ideia do que poderia dizer para estimular a
comunicação. Meu Deus! Se ele respondesse que não, provavelmente teria um colapso
nervoso.
- É-me indiferente – respondeu ele, com uma voz fria, enquanto olhava agora numa outra
direcção que eu não consegui precisar.
Bem, pelo menos não era um NÂO redondo, o que me deixou um pouco mais à vontade.
Posicionei-me ao lado dele, como se fosse um colega da faculdade.
- Posso fazer-te uma pergunta?
- Sim - afirmou, secamente.
- Estás doente?
67
A reacção dele foi imediata, olhando na minha direcção com um espanto que quase lhe
conferia uma expressão cómica.
- Não. Porque perguntas?
- Bem, estive a pensar que…
Ele continuava a fitar-me com espanto e curiosidade, esperando que eu terminasse a frase.
Eu estava com uma dificuldade visível em escolher as palavras adequadas.
- …provavelmente… poderias sofrer de uma doença que explica em parte as tuas…
vossas necessidades.
Sentia-me uma completa idiota ao proferir as últimas palavras. Não era nada disto que eu
queria dizer e definitivamente não desta maneira. Como era possível uma teoria que
parecia tão adequada três dias atrás, agora parecer um autêntico disparate?
- Necessidades? - Repetiu ele, com um ténue sorriso nos lábios, visivelmente surpreso
pela minha disparatada afirmação. A sua face parecia quase distinta quando não admitia
aquele semblante sério e grave, a que eu estava acostumada. Sem dúvida alguma, era
possível habituar-me a este David.
- Então… vocês precisam de sangue e… são pálidos. Muito - interrompi eu, tentando
recapitular as principais características que tinha lido três dias atrás. - E só te vejo à noite,
nunca durante o dia.
- E que doença seria essa?
- Porfiria?... - sugeri de imediato, embora duvidando de mim mesma.
- Ah! Claro. Porfiria – afirmou ele, com uma ligeira ironia na voz, enquanto olhava para o
vazio. - Tenho imensa pena, mas não - concluiu ele.
- Tens a certeza? - Experimentei novamente.
- Absoluta – confirmou ele, com bastante segurança na voz. - Aliás, até sou bastante
saudável – adicionou ele, agora com um ligeiro tom de troça.
As minhas hipóteses estavam agora aniquiladas, depois da infeliz demonstração da minha
ignorância e sentia-me, para além de frustrada, bastante envergonhada.
Ele deve ter lido a decepção na minha face, seguramente bastante óbvia e, com uma
rapidez alucinante, colocou-se à minha frente, mais uma vez a olhar-me fixamente, com
tal intensidade que me senti obrigada a desviar o olhar.
- Não te preocupes. Não é fácil - constatou ele, com uma certa conformação na voz.
- Pois - confirmei eu, enquanto olhava, consternada, na direcção dos meus pés.
- Mas posso assegurar-te uma coisa… - afirmou ele, continuando a olhar-me com firmeza,
enquanto se aproximava lentamente de mim, obrigando-me a fitá-lo. Raios, era este o
olhar incapacitante que eu tanto temia.
68
- …estás a procurar nos livros errados - sussurrou-me ele ao ouvido. Portanto, havia livros
que explicavam toda esta situação?
A sua proximidade fez-me arrepiar, não de frio, mas de algo mais que eu não sabia
classificar, relembrando-me imediatamente da noite em que fui puxada para aquele
recanto na Cité Universitaire mas, desta vez, sem sentir aquele terror horrível. E o aroma
que dele emanava era algo único, de tal forma que tive que aplicar todo o meu
discernimento mental para conseguir verbalizar o que pretendia dizer.
- Em… em que livros devo procurar? - Disse eu, com a voz quase a falhar.
O olhar que ele me lançou em seguida foi, no mínimo, estranho. Sem me dizer uma única
palavra, consegui perceber perfeitamente que ele não me iria responder e que se ia
embora. Nada mais. Naqueles intensos olhos verdes havia mais, mas ele bloqueava-me o
acesso. Como era ele capaz de comunicar com o olhar era algo absolutamente inexplicável
para mim.
- Vais-te embora - afirmei eu, quase em tom de pergunta.
- Evita apareceres à noite - afirmou ele mais uma vez, enquanto se afastava de mim, na
direcção da Cité Universitaire para desaparecer, como já era costume, nas sombras que
envolviam a noite.
Permaneci ali parada durante algum tempo, ainda confusa com o nosso recente
diálogo, que continuava a ser enigmático e evasivo, mas ao qual já estava a ficar
acostumada. As respostas que dele tinha obtido não eram mais do que confirmações
ambíguas das minhas incertezas, para não mencionar a sua metafórica sugestão. Procurar
noutros livros, que não nos meus. E como é que ele sabia onde é que eu fazia as minhas
pesquisas? Existiria porventura um livro que me decifrasse esta realidade
incompreensível? Francamente, seria altamente improvável, a não ser que o significado da
sua sugestão estivesse oculto sob aquelas simples palavras. De uma maneira ou de outra,
teria que partir do zero. Outra vez.
Dirigi-me a casa, apressadamente, com as suas estranhas afirmações a dançar na
minha mente, sem lógica aparente. Quando entrei em casa, encontrei uma Shiva bastante
alegre e sorridente, já se estava a adivinhar porquê. Antes que ela começasse a dizer
alguma coisa, antecipei-me.
- Nem penses - afirmei eu, secamente.
- Que tal foi? - Continuou ela, sorrindo, como se eu não lhe tivesse dito nada.
- O costume, - respondi eu. - Nada.
A sua expressão foi a de um autêntico balde de água fria e o sorriso desvaneceu-se por
completo. Ela estava desiludida comigo.
69
- Não acredito, Maria! Porque é que não me contas o que se passa na tua vida? Pensava
que éramos amigas!
- Shiva, se houvesse algo para contar, serias a primeira a saber - disse eu, na direcção dela.
- Então o que é que ele estava aqui a fazer?
- Ele não me respondeu a essa pergunta.
- Então, estiveram a falar este tempo todo sobre o quê?
Ups. Uma pergunta difícil e eu não tinha uma resposta preparada, o que me fez demorar
muito tempo a inventar uma desculpa que fosse minimamente credível.
- Pronto, não respondas - afirmou ela, visivelmente aborrecida. - Só não compreendo
porque é que não admites que se passa algo entre vocês.
- Shiva, por favor, - respondi eu, elevando o tom de voz. - Não sabes o que estás a dizer!
- Elucida-me, então! - Afirmou ela, abrindo exageradamente os olhos, com um ar
desafiador.
Tive uma vontade enorme de lhe dizer tudo o que se estava a passar, todos os pormenores,
todas as preocupações, todas as dúvidas, mas não podia. E agora, o que é que eu lhe dizia
para terminar com esta conversa de uma vez por todas, antes que a nossa amizade ficasse
comprometida?
- Não há absolutamente nada por detrás dos nossos diálogos, garanto-te – esclareci. - E eu
não sei o que é que ele quer de mim. - Afirmei eu, com uma sinceridade que era mais
sentida do que Shiva poderia imaginar.
- Estás a tentar dizer-me que falas com ele constantemente e ainda não percebeste o que
ele quer? - Afirmou ela, olhando para mim como se eu não estivesse a deduzir algo
estupidamente evidente.
- Só falei com ele três vezes, incluindo hoje. E os nossos diálogos não são propriamente
convencionais.
Ela olhou-me com ar inquisidor, sem entender o que queria eu dizer com a minha última
frase.
- Eu não compreendo grande parte do que ele diz - esclareci eu, pronunciando as palavras
de uma forma excessivamente vagarosa.
- Como é que isso é possível? - O tom de Shiva emanava incredulidade.
- Essa é uma excelente pergunta, para a qual eu não tenho resposta. Já podemos ir jantar? -
Perguntei eu, com uma ligeira ironia na voz, dando o assunto por encerrado.
- Muito bem - afirmou Shiva, levantando os braços, em sinal de resignação.
Definitivamente, este assunto estava encerrado.
70
Dirigimo-nos à cozinha, onde já estava o jantar pronto, na mesa. Sentámo-nos e
começámos a comer, com um silêncio incomodativo a pairar sobre nós. Pontualmente,
comentava algo referente às suas habilidades culinárias, tentado dar início a algum
diálogo, mas sem sucesso. Ela estava mesmo triste comigo e com a minha constante
persistência em não me abrir com ela, o que, certamente, considerava injustificável. E
tinha a sua quota de razão. Eu queria, mas não podia, apesar de lamentar bastante esse
facto incontestável.
Extraordinário o modo imperceptível como certas pessoas entram na nossa vida e
ameaçam arruinar tudo o que nos rodeia: amizades, princípios, hábitos.
Não pude evitar sentir-me culpada pelo pesado ambiente que se estava a instalar entre nós.
Ao terminarmos de jantar, arrumámos a cozinha e rumámos aos nossos quartos, sempre
acompanhadas de uma incomodativa ausência de assunto.
- Boa noite.
Foram as únicas palavras que a ouvi proferir antes de encerrar a porta do seu quarto.
- Boa noite - respondi eu, enquanto entrava também para o meu quarto.
Fechei a porta e olhei em meu redor, sem saber o que procurar. De facto, não procurava
nada, estava somente a olhar para tudo e para nada, ao mesmo tempo.
Senti-me frustrada. Era um sentimento que já me tinha invadido vezes de mais para o meu
agrado e, ainda assim, não podia fazer nada para eliminá-lo, por muito que tentasse.
Relembrei-me das palavras de David da primeira vez que conversámos, quando ele
afirmara que era assim que as coisas eram. Inexplicáveis. Incontestáveis.
Como era possível eu conformar-me com esta teoria? Eu recusava-me a aceitar os factos
desta forma. Tinha que haver uma explicação, há sempre uma explicação para tudo, por
muito recôndita e improvável que seja. E eu tinha que conseguir descobrir essa
explicação.
Sem mais demoras, fechei o estore da janela e vesti o pijama, aninhando-me no conforto
que o meu edredão de penas me oferecia e, já deitada, tentava adormecer imaginando uma
realidade onde um David sorridente pudesse existir, longe das macabras e estranhas
necessidades que a minha realidade lhe exigia.
71
CAPÍTULO 6 – LOUVRE
JÁ ERA DEZEMBRO.
Estávamos, oficialmente, a viver todo o fervor Natalício e Paris cobria-se quase
diariamente de um manto branco de neve, para meu deleite. Na universidade, o delírio era
constante, o que me surpreendeu bastante, tendo em conta que os Parisienses estavam já
familiarizados com a neve, principalmente nesta altura do ano. Numa fria manhã de aulas,
Adèle sugeriu-me fazer uma incursão ao segundo andar da torre Eiffel sem utilizar os
elevadores, não só para exercitarmos os nossos preguiçosos músculos, mas especialmente
para usufruirmos da maravilhosa vista que, à medida que subíamos, se ia tornando cada
vez mais extraordinária. A subida poderia ter sido bastante frutífera, não fosse o vento frio
que se fazia sentir e me trazia lágrimas aos olhos, assim como o volumoso casaco que
vestia e me dificultava os movimentos. Os adereços protectores de extremidades eram-me
extremamente necessários para conseguir sobreviver àquele clima bastante rigoroso. Era
sempre possível encontrar um gorro ou um cobre-orelhas original que pareciam divertir os
meus colegas, que constantemente afirmavam que era “um exagero” da minha parte. Só
Adèle se mostrava compreensiva com a minha aparente intolerância ao frio parisiense.
A minha relação com Shiva tinha melhorado ao longo dos dias, o que me levou a concluir
que, ou se tinha esquecido, ou então se tinha conformado com as minhas respostas
evasivas e nunca mais mencionou uma única palavra sobre aquele assunto. Faltava uma
semana para as férias do Natal, o que deixava Shiva absolutamente agitada pois, desta
forma, tinha uma oportunidade obrigatória para fazer algo que ela tanto adorava: compras.
Deixámos uma tarde unicamente dedicada a este propósito, na qual nos lançámos com
ímpeto a todas as lojas adequadas para comprar as tão características lembranças de Natal.
Foi uma tarde bastante alegre e, contrariamente àquela perturbante noite onde o nosso
diálogo estava decididamente comprometido, agora estávamos bastante comunicativas,
comentando e aconselhando-nos mutuamente sobre que lembranças oferecer aos diversos
elementos da família. Acabámos por comprar lembranças semelhantes para os nossos pais
– uma elegante caneta com os respectivos nomes gravados – e para a minha mãe tinha-me
decidido por um elegante par de brincos que estava certa que ela iria adorar. Já Shiva tinha
escolhido uma sofisticada moldura de prata com relevos em estanho. Contudo, o grande
desafio prendia-se à necessária originalidade da lembrança para a minha irmã Catarina,
que tinha um gosto bastante requintado, no pior dos sentidos. Depois de muito ver e
72
pensar, acabei por me restringir aos acessórios, decidindo-me por um alegre conjunto de
cachecol, gorro e luvas que, certamente, ela iria gostar. Pelo menos eu esperava que assim
fosse.
Sem que Shiva se apercebesse, tinha comprado uma original peça de roupa para lhe
oferecer, já que o seu aniversário seria nas férias, mais precisamente no dia vinte de
Dezembro.
Com antecipação, chegámos à última semana de aulas e, tanto eu como Shiva,
mantínhamos uma carga extra de adrenalina no sangue só de pensar que, em breve,
estaríamos novamente em casa, com a nossa família, no nosso país. Nessa semana tive
alguma dificuldade em concentrar-me nas aulas, pois só conseguia imaginar o dia em que
voltaria para casa, dadas as enormes saudades que sentia dos meus pais e irmã, assim
como de alguns amigos da minha cidade natal.
Nunca mais tinha sido visitada pelo meu “obscuro amigo”, expressão pela qual eu
caracterizava David. Aparentemente, parecia que se tinha eclipsado, como se fosse uma
memória, uma recordação passageira que se havia, agora, desvanecido. Por um lado, a sua
prolongada ausência era calmante, deveras favorecedora para a minha sanidade mental e
para a minha adequada concentração nas verdadeiras tarefas do dia-a-dia, especialmente
no que tocava à universidade. Mas, por outro lado, a ausência de respostas era sempre um
motivo, quase constante, para me relembrar da sua existência, das suas actividades, dos
seus estranhos comportamentos. Só este facto me impedia de esquecê-lo
completamente…ou, pelo menos, eu queria acreditar que sim, apesar de não passar um dia
em que eu não recordasse as suas misteriosas palavras, a sua estranha postura, a subtileza
das suas feições e…a intensidade do seu olhar. Ainda que não o fizesse propositadamente,
sempre haveria um momento do dia em que o meu subconsciente insistia em recordar-me
a sua existência, normalmente à noite, quando a minha mente estava mais abstraída dos
eventos diários. Era realmente curioso que, concretamente nos momentos em que poderia
relaxar e descontrair, o principal elemento que me surgia na mente fosse a figura mais
perturbadora de todas.
E, assim, o grande dia chegou. O último dia de aulas. Estava completamente
delirante, nem tinha conseguido dormir decentemente, só de pensar que no dia seguinte
viajaria para a minha cidade natal, Faro. Tal como já tinha ouvido proferir inúmeras vezes,
sente-se uma doentia saudade de casa quando se está obrigatoriamente longe dela, e era
verdade. Mal podia esperar que chegasse a hora de partir.
73
A manhã foi bastante atribulada, em todos os sentidos. Despedi-me calorosamente de
todos os meus colegas, especialmente de Adèle, que tinha um significado especial para
mim, pela incansável amizade que demonstrava, sem pedir nada em troca. Era
verdadeiramente genuína. Assim, entre promessas de almoços comemorativos de entrada
no novo ano e desejos de boas férias e muito descanso, saí da universidade em direcção ao
meu apartamento, para acabar de tratar das minhas bagagens, que eram mínimas em
comparação com as de Shiva, que mais parecia partir definitivamente para o outro lado do
mundo.
- Nunca se sabe do que posso precisar - afirmava ela, como desculpa mais que plausível
para a enorme quantidade de malas que levava que, certamente, ultrapassaria o peso limite
máximo imposto para bagagem.
Almoçámos rapidamente algo pouco elaborado e, depois de arrumar a cozinha,
confirmando que todas as janelas e portas estavam bem fechadas, saímos carregadas de
armas e bagagens, directas ao aeroporto. Shiva tinha sugerido um táxi, pois era
verdadeiramente impossível carregar toda aquela quantidade de bagagens em transportes
públicos. Assim foi, desta forma, que chegámos ao Aeroporto d’ Orly, onde fomos
imediatamente levantar os bilhetes que tínhamos requisitado por Internet. Chegara a hora
da despedida e senti uma enorme nostalgia por ter que deixar, ainda que por um tempo
limitado, a minha distinta colega de casa. No entanto, foi Shiva que me surpreendeu,
lançando-se a mim com um forte abraço, que eu tive dificuldade em retribuir com a
mesma intensidade. Shiva vivia de uma forma demasiado intensa todos os pequenos
detalhes da vida e, nestas alturas, mostrava-se extremamente frágil, o que me comoveu
particularmente.
- Shiva, voltamos daqui a duas semanas! Não fiques assim - acalmei eu.
- Oh! Maria, já estou cheia de saudades tuas… - afirmou ela, com a voz trémula.
- Podemos telefonar uma à outra… ou trocar e-mails - disse eu, tentando salvar o
momento.
- Está bem. Não me vou esquecer, manda-me um e-mail todos os dias, ouviste? - exigiu
ela, visivelmente satisfeita com a solução que eu tinha sugerido.
- Com certeza! - respondi eu, com um sorriso nos lábios, acrescentando, - Aproveita estas
duas semanas em casa!
- Tu também. Boa viagem.
- Boa viagem - desejei eu, reforçando o seu abraço.
Foi com alguma saudade no olhar que a vi dirigir-se ao terminal de onde partiria o
seu voo, enquanto eu permanecia, estática, no local da nossa despedida.
74
Subitamente olhei para o placard electrónico, onde já piscava o aviso “EMBARQUE” e
apressei-me na direcção que me levaria para o conforto da minha casa, no meu país natal.
As férias do Natal passaram num ápice, aliás, como quaisquer férias que sejam.
Passam sempre rápido demais e são sempre demasiado curtas. Voltar a ver os meus pais e
a minha irmã foi simplesmente arrebatador e agora, mais do que nunca, sentia-me em
casa, segura e feliz, imersa em toda a atenção que eles me concediam. Pelo menos estava
longe da fonte de… distúrbio emocional, ainda que eu tivesse a noção de que a minha
sensação de segurança era fictícia, simplesmente por estar a milhares de quilómetros do
local onde se encontrava a verdadeira ameaça à minha estabilidade mental.
O espírito natalício que se vivia na minha casa contribuía grandemente para me abstrair
dos pensamentos menos bons e, por vários dias seguidos, o sobressalto das vivências em
Paris não me acordava a meio da noite, não me incomodava durante o dia, não me
ocupava a mente nos momentos mais introspectivos.
A minha insistente irmã insistia em afirmar diariamente que eu “estava muito estranha” e
que “havia de descobrir o que se estava a passar”. Claro que, apesar da sua inconveniente
bisbilhotice, resolvi muito simplesmente não lhe dar importância, alegando que ela se
comportava como uma pré-adolescente irritante que criava cenários imaginários na sua
mente, com príncipes encantados e unicórnios que surgiam sob o arco-íris. A reacção dela
frente às minhas acusações conseguia ser sempre tão exagerada quanto cómica,
terminando sempre na criação obrigatória de um espaço físico entre nós, durante pelo
menos um par de horas, até os ânimos acalmarem.
A minha mãe insistiu em cozinhar todos os meus pratos favoritos, afirmando
constantemente que, com toda a certeza, eu “me alimentava mal” e que estava com um
aspecto “desgastado”, certamente pela ausência de carinho maternal durante quase três
meses. Já o meu pai mostrava-se totalmente alheado do meu suposto aspecto desgastado e
simplesmente sorria com maior expressividade, pois estava contente por eu estar em casa,
com eles, com a minha família. Momentos perfeitos.
Mas eu sabia que, mais rapidamente do que eu gostaria, o dia do regresso para Paris
chegava e, com ele, a obrigatoriedade de reviver toda a mágoa da partida. Mais uma vez.
75
No início de Janeiro, Paris estava exactamente igual, como seria de esperar.
Por opção própria, resolvi regressar dois dias antes do início das aulas, para organizar a
imensa quantidade de temários das inúmeras disciplinas, às quais seria avaliada em breve.
Para meu espanto, quanto cheguei ao meu apartamento, Shiva já estava em casa, com um
aspecto revigorado e sempre com a sua contagiante boa-disposição, sufocando-me durante
toda a tarde com todos os pormenores e aventuras da sua estadia no seu país natal. A certa
altura, já não ouvia o que ela me dizia, perdida na enorme quantidade de nomes estranhos,
animais exóticos e novas conquistas fugazes que ela insistia em empreender, sempre que a
ocasião o permitia.
De regresso à faculdade, a minha mente estava demasiado ocupada para pensar noutras
questões, nomeadamente a questão que envolvia aquele rapaz que parecia mais ter
assombrado a minha vida durante algumas ocasiões, para depois desaparecer, por
completo. Todos aqueles bizarros eventos pareciam-me agora estranhamente distantes,
como se tivessem ocorrido há muitos anos atrás ou fossem recordações de uma vida
passada, que iam perdendo definição com a passagem do tempo. Claro que eu sabia que a
realidade não era essa, mas a verdade é que as horas passavam, os dias seguiam-se e cada
vez mais ele me parecia mais um ilusão, fruto de um sonho muito vívido.
Já começava a conformar-me com o seu desaparecimento e com a sua ausência
permanente, de tal forma que já era um dado quase adquirido, ainda que as suas constantes
advertências relativamente ao cuidado que eu deveria ter para “evitar aparecer à noite”,
pululassem na minha mente sempre que o pôr-do-sol surgia.
A época oficial de avaliações escritas e orais no final de Janeiro e início de Fevereiro
absorveram-me quase totalmente. Até Shiva se encerrava no quarto a estudar, sem
efectuar as constantes pausas às quais já estava habituada.
O início do segundo semestre era oficializado sensivelmente a meio do mês de
Fevereiro, interrompido por uns escassos dias de férias de Carnaval – ou Mardi Gras,
como era hábito designar o Carnaval em França e que Shiva tão entusiasticamente me
informava. Eu não era uma praticante exímia de fantasias carnavalescas. Aliás, o
Carnaval, tal como o Halloween, não me diziam particularmente nada, apenas o Natal e a
Páscoa tinham um significado concreto para mim. Mas Shiva vivia com sofreguidão todas
as ocasiões em que se pudesse enfiar num disfarce e desfilar pelas ruas com o mesmo
entusiasmo de uma criança de oito anos.
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Hoje era segunda-feira, véspera de Carnaval. Estava sozinha em casa, dormitando
vergonhosamente no sofá da sala, já de pijama vestido e parcialmente coberta com uma
manta polar que Adèle me tinha oferecido no Natal, decorada de forma errática com a
personagem Jack da animação da Disney “Pesadelo antes do Natal”, que ela sabia ser
uma das minhas favoritas. A televisão estava ligada, exibindo um programa que eu não
sabia qual o conteúdo nem o tema que se discutia, pois só ocasionalmente abria
preguiçosamente os olhos e constatava que aquelas senhoras defendiam os seus pontos de
vista de uma forma acérrima. Shiva estava insuportavelmente entusiasmada e ainda não
havia chegado da sua exaustiva tarde de compras, uma verdadeira peripécia em busca do
disfarce adequado, pois ainda não havia decidido qual a sua fantasia para este ano.
Foi com um estrondoso ruído que a ouvi entrar em casa, fazendo-me saltar do sofá,
sobressaltada, sem saber o que se estava a passar.
- Maria, Maria, olha, é lindo! LINDO! - Exclamou Shiva, na minha direcção, ostentando
um cabide na mão, de onde caía um vestido branco que me parecia um vestido de noiva de
cetim de qualidade duvidosa, com um corte absolutamente retrógrado, seguramente do
século passado. Era simplesmente horrível.
- Shiva… vais mascarar-te de noiva? - Declarei eu, tentando não obviar descaradamente a
minha verdadeira opinião em relação ao seu disfarce.
- Hum. Mais ou menos. Mas não uma noiva qualquer.
Olhei-a, atónita.
Às vezes, esta rapariga consegue ser completamente alucinada.
- Vou vestir-me, para veres. Até porque estive a informar-me e hoje à noite há uma festa
na Maison des États Unis que celebra em grande a entrada no Mardi Gras - afirmou ela,
enquanto sorria, absolutamente extasiada, dirigindo-se para o quarto.
Voltei a sentar-me no sofá, olhando novamente para a televisão e tentando concentrar-me
no que diziam, mas era impossível. Eu conseguia ouvir Shiva numa azáfama sem
precedentes. Mais parecia que ela estava a destruir o quarto. Às vezes ela conseguia ser
absolutamente esgotante. Ainda assim, deixei-me estar, esperando que ela eventualmente
me surpreendesse, quando estivesse preparada. E, pelo tempo que estava a demorar, mais
parecia que estava a preparar-se para uma cerimónia a rigor do que propriamente para um
evento carnavalesco.
Quase uma hora depois, ouvi a porta do quarto dela abrir-se, seguido de um ruído que
identifiquei ser de sapatos de salto alto. Sorri ligeiramente ao esperar, com uma ligeira
expectativa, pela figura de Shiva dentro daquele vestido que eu considerava hediondo.
Contudo, à medida que ela se aproximou de mim, revelando a natureza da sua fantasia de
77
Carnaval, não consegui evitar desfazer o sorriso que tinha nos lábios e substituí-lo pela
maior expressão de terror possível. Neste momento, o vestido não era o que prendia a
minha atenção, mas sim a maquilhagem e a forma como ela estava maquiavelicamente
sedutora. Toda a face, pescoço e o peito exposto estavam cobertos de uma maquilhagem
tão branca que a faziam parecer um cadáver; na zona da boca e mandíbula, algo viscoso
de cor vermelha – que pretendia obviamente simular o sangue – dispunha-se de forma
absolutamente errática, dando-lhe um aspecto mais real do que ela poderia alguma vez
imaginar. O cabelo estava pulverizado com cores diferentes da sua cor original e
pintalgado de acessórios brancos, da mesma categoria do vestido. Nos olhos tinha
colocado umas lentes de contacto brancas, que lhe dava um aspecto totalmente…
diabólico.
As recordações daquela noite na Cité Universitaire onde eu tinha visto… aquilo,
reapareceram na minha mente de uma forma excessivamente nítida. E o aspecto de Shiva
parecia-se tanto com o de Nevio, naquela noite, que me senti estremecer de medo somente
por constatar este facto.
- O que foi? Não estou bem? - Questionou ela, com uma expressão igualmente
aterrorizada. Não consegui responder de imediato, pois demorei algum tempo a reunir
coragem para lhe perguntar qual era o nome da fantasia.
- Que raio que é isso? - Disparei eu, com excessiva amargura nas palavras.
- A noiva do Drácula - respondeu Shiva de imediato, como se fosse uma constatação
demasiado óbvia.
- É uma piada de muito mau gosto… - sussurrei eu, fechando os olhos em sinal de
introspecção, sem coragem para explicar o porquê da minha declaração.
- Maria! Que falta de sentido de humor - retorquiu Shiva, dirigindo-se a mim como se eu
fosse uma pessoa realmente entediante. E continuou, como se nada fosse. - E já estou a
ver que não estás com disposição para te divertir.
Não tinha respostas para lhe dar, face ao que me dizia. A realidade era que, de facto, a
disposição já era pouca e agora… tinha desaparecido completamente. Nem acorrentada
me iam tirar de casa.
- É melhor começares a pensar em aproveitar mais a vida, Maria. Se não nos divertirmos,
a vida torna-se um marasmo completo.
A face de Shiva era grave e o seu tom acusatório. De alguma forma, senti que
aquela acusação era para mim, que era eu que não me divertia e que era a minha vida que
era um marasmo e a dela não, porque ela sabia como divertir-se, como aproveitar a vida.
Expirei ruidosamente, tentando controlar a minha indignação, enquanto Shiva agora
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voltava para o quarto, certamente para retocar o seu disfarce. Eu mantinha-me sentada no
sofá, imersa em pensamentos.
Se ela soubesse, calava-se. Se ela tivesse passado por o que eu passei, fugia e escondia-se
como uma verdadeira cobarde. Oh, se ela soubesse…
- Até já. Volto tarde - afirmou Shiva, na minha direcção, com um tom seco, sem sequer
olhar para mim. Ouvi a porta fechar-se firmemente, conseguia até discernir o ruído dos
sapatos no vão do prédio, enquanto ela esperava pelo elevador.
Desliguei a televisão e encaminhei-me para o meu quarto, semi-enrolada na minha manta
polar, desligando as luzes atrás de mim. Os meus pés levaram-me até à janela, sem eu
perceber porquê. Olhei para a rua, que tinha um movimento escasso, mas conseguia
imaginar a animação que já existia na Maison des États Unis. E percebia as razões de
Shiva. Ela queria divertir-se a todo o custo. Mas as minhas razões eram mais fortes. Tão
fortes quanto surreais.
Agora observava-a enquanto ela atravessava a rua e se dirigia para a Cité Universitaire,
escolhendo aquele caminho que eu sabia ser tão perigoso, principalmente à noite, apesar
de ainda não ser muito tarde. Vi-a desaparecer por entre as árvores que rodeavam o
caminho, observando como aquele pitoresco vestido branco ocasionalmente oscilava à
medida que ela avançava. Só esperava que ela chegasse bem, sã e salva àquela maldita
festa, que ia ter lugar num dos edifícios mais recônditos daquele Campus. Só esperava que
ela não tivesse a pouca sorte de encontrar alguém cujo disfarce não era uma ocasional e
simples fantasia de carnaval, mas sim um semblante permanente.
- Maria, tenho uma ideia! - Exclamou Shiva, ainda no pequeno corredor que
separava os nossos quartos. Conseguia ouvir os seus apressados passos na minha direcção,
esperando a qualquer momento que ela abrisse a porta, de rompante.
Mal entrou no meu quarto, aproximou-se de mim. Eu estava pachorrentamente sentada à
secretária, tentando acabar de ler – mas sem sucesso – um parágrafo cuja leitura já tinha
iniciado três vezes. Hoje sentia-me particularmente desconcentrada, mas não sabia porquê.
Olhei para ela com um semblante de aborrecimento.
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- Não consigo estudar - desabafou ela, olhando-me com uma expressão ligeiramente
frustrada.
- Eu… também não. Não sei porquê… - respondi eu, com um desconhecimento genuíno
na voz.
- Podíamos aproveitar a tarde de outra forma - declarou Shiva, com um tom ligeiramente
provocador. Oh! Não. Se ela me fosse sugerir uma tarde de compras, eu não ia conseguir
suportar as verdadeiras maratonas a que ela me sujeitava quando decidia entrar em todas
as lojas dos mais variados centros comerciais. - E se fizéssemos uma tarde cultural?
A sugestão dela apanhou-me de surpresa.
- Tarde cultural?
- Sim, estava a pensar no Museu do Louvre - afirmou Shiva, com um sorriso triunfante a
iluminar-lhe o rosto.
Ora aí estava uma boa sugestão, que me agradava genuinamente. Ainda não tinha visitado
o Museu do Louvre, apesar da - quase diária - insistência de Adèle, que afirmava ser um
autêntico crime eu estar em Paris há tanto tempo e ainda não ter visitado aquele museu,
que era mundialmente famoso, com colecções de pinturas, esculturas, antiguidades e
objectos de arte europeus.
- Eu estou totalmente de acordo. Vamos já? - Declarei eu, levantando-me de imediato da
cadeira e encerrando o livro de texto à minha frente.
- Vamos - concordou Shiva, enquanto saía disparada na direcção do quarto dela, em busca
do casaco e da mala que, miraculosamente, desapareciam quando ela queria dirigir-se a
algum sítio. Ela era extraordinariamente desarrumada.
Aparentemente Shiva sabia como chegar ao Museu do Louvre utilizando os transportes
públicos, pelo que me limitei a segui-la, sem contestar. Shiva tinha-se informado que o
Museu se localizava na zona oeste de Paris, com acesso directo numa das saídas do metro,
sendo esta a entrada correcta para quem não tinha bilhete, que era o nosso caso. De facto,
a entrada através do Caroussel tinha uma fila de espera curta, pelo que rapidamente nos
pusemos a caminho, atingindo a zona da Pirâmide de vidro, objecto simplesmente
colossal, um verdadeiro projecto modernista de enormes dimensões. Na secção das
Informações recolhemos uma planta do museu e resolvemos aventurar-nos pelas galerias,
já que o bilhete era válido para todo o dia.
Estava plenamente consciente de que ia ser impossível ver tudo numa tarde, num museu
tão grande e vasto, pelo que talvez fosse boa ideia simplesmente passear pelo museu, sem
a pressão de ver, ver, ver desenfreadamente. Um aspecto positivo que me alegrou bastante
foi o facto de as galerias estarem claramente assinaladas, cada sala tinha um número, pelo
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que seria difícil perdermo-nos. Começámos, assim, por visitar as Esculturas Francesas
desde a Idade Média até ao século XIX, seguidas das Antiguidades Romanas e Etruscas
que se localizavam também no piso térreo, onde encontrámos duas colegas de Shiva que
debatiam com afinco, opinando sobre algo que eu não compreendia em relação a uma
estátua que lá se encontrava. Ainda que eu não percebesse muito de Arte, nem fosse uma
apreciadora exímia, era simplesmente impossível não ficar deslumbrada com a beleza, o
talento e a maravilha que era contemplar todas aquelas peças que estavam ali expostas,
sala após sala. Ao passar para o primeiro andar, no topo do patamar de uma escadaria,
observávamos agora uma antiga figura da proa de um navio cuja pose se assemelhava
mais à de voo, concluindo que era a famosa escultura Vitória de Samotrácia, datada de
190 aC. Deixámo-nos ficar aí durante algum tempo.
Ainda não tinha passado um par de horas e Shiva começava agora a ficar impaciente,
afirmando que estava “farta de esculturas” e queria ir ver as pinturas, pelo que demos
início a uma nova fase da nossa movimentada tarde cultural.
No primeiro andar, podíamos agora apreciar as pinturas italianas do século XVI ao
XVII, onde demorámos mais de uma hora, vagueando pelos imensos corredores cujas
paredes vermelhas e tectos ornamentados nos faziam desejar que o tempo pudesse esticar,
para que pudéssemos ver melhor e admirar com verdadeira justiça, as maravilhosas obras
de arte que ali estavam. Pessoalmente, as pinturas suscitavam-me mais interesse e, pela
movimentação de Shiva, parecia-me que a ela também. Era neste piso que se encontrava o
famoso Retrato de Mona Lisa, de Leonardo DaVinci, constantemente rodeada de centenas
de pessoas, todas ávidas por uma simples fotografia, por um olhar o mais perto possível.
Foi simplesmente impossível aproximarmo-nos mais de dez metros do referido retrato.
Uma vez no segundo andar, dávamos entrada na zona da Escola Francesa de Pintura, do
século XVIII ao XIX e eu já me estava a sentir cansada. Já tinha dificuldade em andar, e
os meus movimentos já se aproximavam mais do arrastar dos pés, pelo que resolvi sentar-
me nuns sedutores bancos acolchoados, de forma redonda, onde cabiam cerca de oito a
dez pessoas. Ao avistar um assento vago, sentei-me imediatamente, descansando as pernas
e recolocando a planta do museu no local exacto onde me encontrava, projectando a
restante visita. Estava um calor enorme lá dentro e sentia-me quase a sufocar dentro da
espessa roupa de Inverno que trazia.
Olhei à minha volta, tentando aproveitar os momentos em que estava sentava para
observar algumas das pinturas que se localizavam perto de mim. O meu alcance visual
conseguia captar quatro telas, mas só uma delas me prendeu quase totalmente a atenção,
pelo conteúdo que exibia. Era a que se encontrava mais perto de mim e do sítio onde eu
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estava sentada e que ocupava um local mais central. A razão pela qual me prendia a
atenção consistia no facto de um dos elementos que estavam aí retratados se assemelhar
estranhamente a alguém que eu conhecia e que já tinha visto várias vezes.
A tela tinha um tamanho considerável e um fundo escuro que contribuía para destacar –
ainda mais – os elementos que a constituíam. Consistia em duas pessoas, uma delas
certamente um elemento da realeza, pela ostentação das suas vestes, pelo aspecto
soberano que todo ele exibia, de uma forma luxuosa, desde o chapéu que lhe ornamentava
a cabeça, até aos sapatos reluzentes que calçava. Certamente seria um dos reis de França,
embora eu não soubesse concretamente qual era. Tinha bigode e barba clara e apertava a
mão de outro indivíduo que, apesar de parecer humano, eu sabia que não o era. Quem
olhasse inocentemente para aquela pintura pensaria quase de certeza que aquele indivíduo
seria um doente em estado terminal, devido ao aspecto que emanava. Um dos grandes
talentos destes pintores era, sem dúvida, a forma fiel como reproduziam o que pintavam,
fossem pessoas, fossem paisagens. Aquele indivíduo que apertava a mão do rei
apresentava uma silhueta elegante, com roupas mais modestas, em tons de preto e
vermelho, cor que forrava discretamente todas as peças de roupa que vestia, salientando-
se a camisa branca que estava cuidadosamente apertada junto ao pescoço, onde também
exibia um sofisticado lenço de cor negra que fazia sobressair todas as suas características
físicas. A sua palidez era marcante, o olhar emanava um poder que se mantinha, um brilho
intenso que se destacava, mesmo através da pintura, e a sua postura era tão semelhante ao
que eu já havia visto que me desconcertava.
Era um autêntico déja-vu. Aquele homem que ali estava retratado junto do rei não era
novo, nem velho, a sua verdadeira idade não se conseguia discernir, o longo cabelo que
possuía era negro e os olhos claros como a mais límpida água glacial. Fosse aquele
homem o que fosse, não era humano. Fosse aquele homem o que fosse, era o mesmo que
David, o mesmo que Nevio e os outros. Algo mais que humanos.
Levantei-me de rompante, chocada com a minha conclusão, que me levava à óbvia
pergunta - O que eram eles, afinal?
Aproximei-me da pintura, confirmando vezes sem conta o que havia concluído. Aquele
indivíduo com ar sereno e calmo, mais parecia um parente distante de David ou de Nevio,
não pelas semelhança das feições, mas pela afinidade física que os classificava dentro de
algo que era afim, que os fazia pertencer à mesma… espécie?! Como era isso possível?
Não podia ser! Não poderia existir uma outra espécie, semelhante à nossa, mantida em
segredo, no desconhecido!
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A minha indignação e choque elevavam-se a níveis que me toldavam a visão, que me
ocupavam os sentidos, que me faziam sentir sozinha naquele museu, a olhar aquela
pintura, rodeada de um ensurdecedor silêncio, enquanto a criatura daquela pintura me
segredava os mais inóspitos mistérios que guardava.
Subitamente, o meu momento de concentração foi invadido por uma enorme massa
de pessoas que se aproximavam, agora, na direcção onde eu estava, na direcção daquela
perturbante pintura. Era um conjunto de cerca de trinta pessoas, todos eles orientais,
presumivelmente japoneses, pelas formas faciais e oculares características. Com eles, as
mais variadas categorias de máquinas fotográficas que certamente seriam de topo, pelo
aspecto aerodinâmico que apresentavam, enquanto segredavam de forma rápida naquele
incompreensível idioma. Uma mulher com aspecto ocidental ocupava agora um lugar ao
lado da pintura que continuava a captar a minha atenção, pelo que deduzi que seria a guia
do grupo que ali estava. Eu encontrava-me ligeiramente perto da pintura e, devido à
dormência que se tinha apoderado de mim nos minutos prévios, não me mexi de onde
estava. Mais parecia um elemento da decoração do museu. Verdadeiramente, uma estátua.
Subitamente, a guia falou, num tom de voz firme e cativante e num idioma que eu
compreendia perfeitamente.
Inglês.
- Por favor, a vossa atenção - pediu ela, enquanto levantava os braços, na direcção do
animado mas atento grupo de pessoas à sua frente, dispostos estrategicamente em redor do
quadro, envolvendo-me com eles.
- Aqui está a grande atracção para os mais supersticiosos, Le Traité avec les Immortels.
A expectativa daquele enorme grupo revelava-se agora, sob a forma de um discreto
burburinho, acompanhado por rostos repletos de medo e terror, enquanto a guia se
preparava para continuar.
- Nesta pintura temos o Rei Henri IV, o primeiro da dinastia Bourbon, em cujo reinado
pôs fim às guerras religiosas, revelando-se um verdadeiro apologista do diálogo.
Curiosamente foi o único rei que morreu no interior do Louvre, apunhalado nas ruas por
um assassino e arrastado para o interior do museu, para morrer. Dizia-se que o rei Henri
IV havia estabelecido um pacto secreto com “aqueles que caçavam homens”, para pôr fim
ao medo que reinava durante as trevas obrigatórias da noite, onde ocorriam eventos
verdadeiramente barbáricos que eram escondidos do conhecimento da realeza e, muitas
vezes, atribuídos a ataques de animais selvagens.
Aparentemente, alguns desses indivíduos (caçadores de homens) pertenciam à nobreza da
época, que contava com o apoio do rei, apesar de serem constantemente acusados como os
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responsáveis pelos barbáricos eventos. Foi uma época de grande discórdia e tumulto, pois
o medo havia-se apoderado de todos. Relatos de testemunhas afirmavam ver a forma
animalesca como aqueles colhiam a vida dos inocentes, sempre depois do pôr-do-sol,
aguardando na esquina mais escondida, no beco mais escuro e recôndito, pelas suas
vítimas. Chamavam-lhes as Criaturas da Noite ou, como o folclore as descreve, Vampyre,
Aqueles que bebem sangue...
Ouviam-se agora, em meu redor, os sussurros de espanto que aquela última
revelação tinha causado. Após uma pausa mínima, a guia continuou.
- Dizia-se que estas criaturas eram imunes a toda e qualquer doença, não envelheciam,
tinham poderes ocultos que alguns descreviam como mágicos e que a nada eram
susceptíveis, excepto à luz solar. Havia quem afirmasse que os havia visto trepar até aos
pontos mais altos dos edifícios, onde nenhum homem, por mais forte que fosse, conseguia
chegar e que, nas florestas, se transformavam em animais selvagens, mas sem nunca
perder a forma humana, exibindo garras, caninos afiados e olhos cintilantes, cativando as
suas vítimas com os seus poderes.
Para terminar com as constantes histórias e relatos fascinantes, Henri IV convocou uma
reunião com o representante das criaturas que, respeitosamente, deixou desconhecido o
nome pelo qual era conhecido na altura. Ficou então acordado que as actividades dos
Imortais seriam controladas, sujeitas a uma maior discrição, de forma a ser possível a
coexistência.
Hoje em dia, há quem afirme que os tratados eram renovados a cada reinado e que era
sempre o mesmo imortal a presenciar o acordo, apesar de não existir nenhuma prova
concreta de que, de facto, existiram tratados desta natureza. Esta pintura, datada do início
do século XVII, foi encontrada por mero acaso, encerrada num forte estojo de aço,
mergulhada nas fundações de um velho mosteiro que já não existe, situado nos arredores
de Paris, e julga-se ter sido pintada por um jovem artista, desconhecido, que se recolheu
àquele mosteiro para, alguns anos mais tarde, desaparecer sem deixar rasto.
A verdade é que a segunda metade do reinado de Henri IV se revelou bem mais pacífica, o
que corrobora com esta teoria fantástica. Contudo, grande parte dos críticos históricos e
artísticos da actualidade não crê na existência de tais criaturas e atribuem o sucesso do
reinado de Henri IV à simples melhoria na gestão política e social do reino. E, quanto ao
“senhor” da pintura, afirmam que se tratava de alguém muito provavelmente doente, que
era muito próximo do Rei e que este, piedoso, contratara um jovem artista não célebre
para levar a cabo esta pintura como último desejo de um moribundo.
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Voltava-se agora a ouvir o tão característico burburinho que emanava do
abundante grupo em redor da pintura.
- São lendas, meus senhores, pura história ficcional! Sejamos realistas e não alimentemos
teorias imaginárias! – Exclamou a guia, ostentando um sorriso nos lábios, enquanto
tentava captar a atenção do grupo que, agora, parecia totalmente envolto nas histórias que
ela havia descrito.
- Vamos continuar a nossa visita - afirmou ela, com um tom firme, enquanto aquele
volumoso conjunto de pessoas se dirigia exageradamente coeso, atrás dela, seguindo-a
com determinação, enquanto eu observava como desapareciam na imensidão de um
corredor que eu ainda não conhecia.
Voltei a olhar a pintura e a pequena placa por baixo, onde referia o Nome - Le Traité avec
les Immortels (O Tratado com os Imortais) -, e o Artista – Inconnu (Desconhecido).
Estava imóvel, incapaz de proferir qualquer palavra. Estas eram as respostas que eu
procurava e que, agora, eram tão óbvias. De repente, todos os factos eram extremamente
lógicos e encaixavam na perfeição, sem forçar nenhuma das peças. Os acontecimentos
deslizavam na minha mente, como uma curta-metragem, uma recordação muito vívida,
algo muito real. E assim era, um mundo paralelo ao meu, imperceptível, que existia
debaixo dos nossos narizes, passando completamente despercebido.
Bem, não completamente.
- Maria, o que estás a fazer aí? - Shiva parecia ter aparecido do nada, surgindo atrás de
mim, curiosa com o meu propósito.
- Estava a ouvir… - comecei eu, sem saber como terminar a frase que tinha iniciado.
- E então?
- É…interessante - rematei eu, sem desviar o olhar da tela que me havia conferido mais
respostas do que qualquer livro de texto existente à face da Terra. Senti o olhar chocado
de Shiva na minha direcção, surpresa com a minha asseveração.
- Interessante?? - Shiva semicerrava os olhos na direcção da tela, como se a imagem da
pintura ofendesse o seu olhar, pela simplicidade que dela emanava. - Maria, são duas
pessoas num aperto de mão. Como é que isso pode ser minimamente interessante? - O tom
de voz dela era de um espanto que tocava a indignação.
- Sim, realmente… mas está muito bom, sem dúvida. A nível técnico… - balbuciei.
Não tinha a mínima noção do que tinha acabado de dizer, nem do quão deslocada era a
minha ridícula justificação. Constatava agora como era aborrecido o olhar de Shiva,
enquanto observava a pintura sem o mínimo de interesse. O que até seria normal, para ela.
Mas para mim, era a revelação do século.
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- Vamos continuar… ainda há imenso por ver neste corredor. Olha! Ali estão elas! -
afirmava Shiva, acenando na direcção das colegas, enquanto me agarrava o braço,
puxando-me suavemente, como se quisesse certificar-se que me levava com ela.
- Está bem – concordei eu, olhando mais uma vez de soslaio para aquela pintura.
Era inevitável. Não conseguia concentrar-me para apreciar minimamente nenhum dos
quadros que vimos naquele corredor, nem nos outros que se seguiram. Já nem me
importava o que ainda não tinha visto e o que queria ver. Só sentia um nervoso miudinho,
da cabeça aos pés que me afectava os movimentos, do mais complexo ao mais básico. A
minha vontade, naquele momento, consistia somente em retirar todos os pormenores que
pudessem existir naquela pintura extraordinária e gravá-los para sempre na minha mente,
para que eu pudesse confirmar, vezes sem conta, que o que estava a constatar era real, e
não um sonho muito vívido, como tantas vezes pensara.
Contudo, o que mais queria, o que mais desejava agora era voltar a ver David, para lhe
poder dizer que agora compreendia os intricados caminhos do seu mundo. Poderia ele
partilhar comigo a extensão, o funcionamento da sua realidade que parecia, sem dúvida,
reger-se por normas tão diferentes das nossas? Só de pensar no assunto sentia a minha
respiração e o meu ritmo cardíaco afectados. A minha curiosidade estava, sem dúvida, a
sobrepor-se ao meu sentido de auto-preservação.
Mas quando? Eu não tinha forma de saber onde ele estava, nem forma de o contactar.
Restava-me esperar que ele me fizesse uma das suas misteriosas visitas. Mas agora… era
eu que estava em vantagem, as suas enigmáticas afirmações já não guardavam segredos
incompreensíveis e a sua insistente relutância em esconder os factos já não tinha razão de
ser. Pensar nestes termos fazia-me sorrir levemente, enquanto caminhávamos por
corredores que eu já não conseguia identificar de que categoria artística eram. Nem me
importava, sequer. Percebia que ainda continuávamos na secção dos quadros, somente
pela cor e disposição das pinturas nas paredes em meu redor.
Foi necessário um esforço quase sobre-humano para conseguir trocar simples
monossílabos com Shiva e com as suas colegas, enquanto percorríamos as restantes áreas
do Museu. Desejava chegar a casa o mais depressa possível, só de pensar na probabilidade
de poder, ainda hoje, ser visitada, por ele. Olhei discretamente para o relógio. Eram cinco
horas da tarde. Definitivamente, estava na hora de voltar para casa e aguardar.
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CAPÍTULO 7 – ISOFORMA
TINHA OS OLHOS EXAGERADAMENTE ABERTOS, FITANDO A RUA.
Estava praticamente colada ao vidro da janela do meu quarto, aguardando a
aparição daquela estátua com movimentos erráticos, que eu tão bem conhecia. Suspirei
com desalento, enquanto mantinha a testa encostada ao vidro da janela e os olhos fixos
naquela rua onde tinha decorrido o nosso obscuro diálogo, da última vez.
Já eram dez da noite…e começava a sentir-me uma completa idiota. Eu estava,
literalmente, a fazer uma espera a uma criatura que sabia que poderia tornar-se
imprevisível, para o informar que afinal já sabia do que se tratava e que estava ciente dos
seus hábitos nutricionais. Fechei os olhos e acenei a cabeça negativamente: eu só podia
estar louca.
Sem pensar duas vezes, saí da minha fixa posição em frente à janela e dirigi-me à cozinha,
para encontrar uma Shiva bastante alegre, imersa nos seus delírios culinários.
Não estava com muita imaginação para cozinhar fosse o que fosse, pelo que me dirigi,
sem mais demoras, ao frigorífico, mais concretamente à prateleira do congelador,
procurando algo que fosse rápido e saciante. Estive imersa naquele aglomerado de
embalagens que não conseguia distinguir à primeira vista, enquanto a brisa gelada do
congelador, que permaneceu aberto durante pelo menos dois minutos, se estendia já no
sentido de Shiva. Resolvi preparar Bacalhau à Brás, enquanto retirava, agora, os ovos do
frigorífico.
Ao encerrar ambas as portas do frigorífico e do congelador, olhei despreocupadamente
pela janela da cozinha. Com uma subida de adrenalina absolutamente incontrolável,
constatei que, lá fora, estava alguém que mais parecia um elemento extra da decoração da
avenida, absolutamente imóvel. Só podia ser ele.
Senti um nervoso miudinho apoderar-se de mim instantaneamente. Era agora, ou nunca.
Com toda a calma possível que consegui reunir, coloquei a embalagem congelada e os
ovos em cima da bancada e olhei despreocupadamente para Shiva.
- Já volto - comuniquei eu, secamente, evitando o seu olhar.
Como reacção, a face dela mostrou-se espantada mas provavelmente percebeu do que se
tratava, porque não me perguntou sequer onde ia, nem fazer o quê, como era costume
dela. Fui rapidamente ao quarto buscar o casaco, o telemóvel, as chaves de casa, e
encaminhei-me para a porta de casa, saindo silenciosamente.
Sem paciência para ir de elevador, voei praticamente pelas escadas abaixo, sem hesitar um
único momento, contrariamente ao que tinha ocorrido da última vez. Alcancei a porta da
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entrada do prédio, que abri firmemente, e olhei procurando aqueles olhos verdes que eu
tão bem distinguia. Não foi preciso muito para encontrá-los a fitar-me fixamente, com
aquele brilho ameaçador tão característico, ao qual eu já estava acostumada.
Características inerentes da espécie, pensei eu, relembrando as palavras da guia,
enquanto caminhava na sua direcção.
- Olá - afirmei eu, sorrindo levemente ao alcançá-lo, sem nunca deixar o seu olhar. -
Tenho estado à tua espera.
O seu semblante alterou-se de forma quase instantânea e consegui encontrar na sua face e
no olhar um espanto profundo, assim como apreensão, enquanto levantava ligeiramente o
sobrolho, muito provavelmente como reflexo dos seus sentimentos.
- Tens? - Ouvi-o perguntar, quase como um sussurro, enquanto ele fitava, agora, um ponto
perdido no espaço à sua frente.
- Sim - esclareci eu, com um leve sorriso nos lábios.
Agora, eu tinha que ser extremamente exacta no que pretendia dizer. A sua expressão
mantinha-se inalterável, contemplando o vazio.
- Eu sei - afirmei eu, com um regozijo incontrolável na voz.
- Sabes o quê? - Respondeu, quase de imediato.
- Sei… o que te move, porque é que tens que fazer…o que fazes.
Apesar da hesitação, a escolha das palavras que pretendia utilizar estava a fluir de uma
forma quase ideal.
- Importas-te de ser mais específica?
O tom dele continuava a ser seco, sinal de que ele estava visivelmente desinteressado do
nosso murcho diálogo. Pois bem: estava na hora de lhe mostrar o que tinha concluído após
algumas horas de introspecção depois da visita à secção das pinturas do Museu do Louvre.
- Precisas do sangue para viver, obrigatoriamente, tal como o oxigénio o é para nós,
humanos.
Estava, definitivamente, a sair-me melhor que da última vez e, por isso, continuei.
- Tens os sentidos apurados… e os dentes, bem, servem as tuas necessidades nutricionais.
Serem retrácteis é, claramente, uma vantagem para te poderes… misturar sem dar muito
nas vistas.
Respirei fundo, enquanto fazia uma pausa e dirigia o meu discurso na direcção dele, que
parecia continuar – aparentemente – desinteressado.
- O modo como te moves, a rapidez… tens uma clara intolerância à luz solar, o que
explica a cor da pele e… os hábitos nocturnos.
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- Pareces muito bem informada – retorquiu ele, com uma expressão ligeiramente
frustrada, o que me confundiu ligeiramente. Pensava eu que ele ficaria mais expectante
por eu ter descoberto o que ele era.
- Ah, e… tens certas capacidades… hum, especiais. - Terminei eu, com um tom místico na
voz, sem especificar que capacidades eram aquelas. Não porque não quisesse, mas porque,
na realidade, não estava completamente ciente de que capacidades eram.
Foi com espanto que o ouvi rir-se suavemente, sem nunca olhar para mim directamente.
Esperava sinceramente que não fosse um riso sarcástico.
- E então, qual é o diagnóstico? - Continuou ele, sorrindo, o que dificultava a minha
concentração. Era extraordinário como ele parecia quase outra pessoa quando sorria ou
quando não colocava aquela máscara sinistra que parecia acompanhá-lo quase sempre.
- Bem… - comecei eu, sem saber muito bem o que haveria de dizer. - …não tens nenhuma
doença, por isso não posso diagnosticar nada em concreto - concluí eu, relembrando a
parte do discurso da guia em que referia que eles eram imunes a toda e qualquer doença.
- Mas tens um nome? - Perguntou ele, dando um tom declaratório à questão e olhando
agora para mim com uns olhos que revelavam um mar de tristeza e desilusão. E, mais uma
vez, eu não compreendia porquê. Confrontei-me com uma sincera dificuldade em pensar
em algo que fosse capaz de verbalizar.
- Eh… não tenho a certeza…
- Não tens a certeza, ou não queres dizer?
O olhar dele fitava-me agora de uma forma tão intensa que eu pensava que não ia ser
capaz de responder à pergunta. E, definitivamente, eu era muito transparente.
- Não me agrada o nome pelo qual vocês são conhecidos… - confessei eu, sentindo uma
ligeira vergonha por estar a admitir que não gostava de pronunciar um nome que me fazia
surgir na mente criaturas bípedes semelhantes a morcegos, vestidas a rigor, de cartola e
luvas e que atacavam senhoras inocentes com penteados renascentistas e volumosos
vestidos exageradamente decotados.
- Porquê?
O tom de voz que ele empregava parecia sincero, assim como o seu excepcional olhar.
- Não sei… É…- balbuciei eu, evitando o seu olhar. Estava a ter francas dificuldades em
explicar-lhe o porquê da minha relutância em chamar-lhe vampiro.
- Assustador?
Acenei, em sinal de confirmação. Sim, de facto, era mesmo isso. Aquela palavra
assustava-me porque a associava a conceitos lendários puramente animalescos.
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- Vais ter que dizê-lo, mais cedo ou mais tarde - afirmou ele, desviando o olhar e fixando-
se novamente num ponto imaginário algures no solo. - É o que eu sou.
Ouvi-lo confirmar algo era, seguramente, diferente de suspeitar. Ainda que eu não fosse
capaz de o considerar um vampiro, independentemente do significado da palavra.
- Prefiro pensar que és… uma isoforma - declarei eu, olhando na direcção dele, esperando
que a minha asseveração lhe chamasse a atenção. E não me enganei.
- Uma isoforma?! - Repetiu ele, elevando as sobrancelhas e olhando novamente na minha
direcção, como se eu tivesse proferido um disparate monumental.
- Sim, por fora és como um ser humano mas, por dentro… és algo diferente - expliquei eu,
sentindo-me, de alguma forma, triunfante por conseguir encontrar uma alternativa à
terrorífica palavra vampiro. Seguiu-se um pesado silêncio que, finalmente, foi quebrado
pelas suas palavras.
- Bem, tenho que admitir que é… original, - declarou ele, com um sorriso genuíno
embebido no rosto. E eu também tinha que admitir que vê-lo a sorrir era uma imagem à
qual eu me rendia sem pensar duas vezes. - Pelo menos, não te surgiu a típica expressão
“Criatura do Inferno.”
- Passou-me pela cabeça… - sorri eu, esperando que ele nunca deixasse de sorrir, para que
eu continuasse a poder vê-lo, assim. Era tão diferente e tão… cativante, ao mesmo tempo.
Seria possível?
Não pude deixar de sentir compaixão por ele ao imaginar a quantidade de vezes que ele
teria ouvido a ofensa “Criatura do Inferno” sem, efectivamente, o ser… pelo menos, na
minha perspectiva.
- E posso perguntar-te como é que chegaste a essa conclusão? - Perguntou ele, na minha
direcção.
- Apenas… olhei à minha volta. Hoje à tarde estive no Museu do Louvre e vi uma peça de
arte muito esclarecedora.
O modo evasivo como o informava não lhe dificultava minimamente o raciocínio,
pois nem foram necessários dois segundos para que ele me respondesse com a maior
segurança que alguma vez já tinha ouvido.
- Le Traité avec les Immortels - afirmou ele, com um sotaque absolutamente divino.
- Exactamente. Confesso que tive uma pequena ajuda para completar o raciocínio, mas o
que interessa é a conclusão final - afirmei eu, sem rodeios, relembrando os momentos em
que ouvia as incríveis e reveladoras palavras da guia.
- Então… e o que pensas disso?
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Era uma pergunta difícil de responder, não por eu não saber a resposta, que consistia numa
manifesta aceitação dos factos, mas porque desejava transmitir-lhe, com toda a segurança,
que acreditava no que estava a dizer e que as minhas palavras não eram simplesmente uma
forma de ir ao encontro da opinião dele.
- Penso que… é perfeitamente possível coexistirmos. Quero dizer, tal como tantas
espécies no planeta que...
- Sabes? Às vezes… não é assim tão simples - interrompeu-me ele, desviando o seu olhar
do meu, como se eu tivesse dito algo muito grave. Contudo, ele nem sequer me tinha
deixado terminar o que eu queria dizer!
- Porque é que dizes isso? - Perguntei eu, sem perceber genuinamente porque é que ele
dizia que “não era assim tão simples”. Seria assim tão óbvio que eu não estivesse a ver o
que era?
- Não interessa - disparou ele, enquanto começava a afastar-se de mim. Eu tinha que o
parar, pelo menos para lhe perguntar se o iria voltar a ver.
- Espera, eu...
- Evita apareceres à noite.
Novamente era eu interrompida pela sua famosa frase de aviso, que já só faltava surgir
como um letreiro intermitente, com luzes amarelo fluorescente, de cada vez que o via.
Sinceramente, ele, às vezes, conseguia ser muito irritante.
- Mas…
- Ouve bem o que eu te digo. Evita, mesmo, apareceres durante a noite.
O semblante dele era tão sério que parecia estar a proferir uma ordem, mais do que um
eventual conselho, cujas palavras proferia com uma lentidão desnecessária, enfatizando
excessivamente na palavra mesmo. Na face dele só conseguia discernir… severidade.
Tinha a ligeira sensação de que ele não me estava a revelar, completamente, os contornos
de tais exigências. Porque é que ele era tão incisivo em relação à questão de eu aparecer à
noite? Afinal, qual era o problema?
Ainda pensei em perguntar-lhe, mas a sisudez que embebia as suas feições bloqueava-me
toda e qualquer hipótese.
- Espera… vou voltar a ver-te? - Voltei a insistir, esperando que a minha voz não
revelasse um tom desesperadamente óbvio, enquanto ele já estava a começar a virar-se
para se ir embora.
- Para teu bem…espero que não - afirmou ele, por cima do ombro, na minha direcção, sem
um olhar, sem um aceno. Nada.
91
Observei, desalentada, como se afastava com os seus passos firmes, a sua postura
inflexível e as mãos nos bolsos, perfurando a brisa que ia de encontro a ele e que lhe
alvoroçava o cabelo, eriçando algumas melenas.
Definitivamente, dialogar com ele era muito difícil, pois nem sequer me dava hipótese de
lhe perguntar o que queria, de expor as minhas dúvidas restantes. Expirei ruidosamente,
mais uma vez, sem perceber as suas reacções.
E o que é que ele quis dizer com “para meu bem, espera que não o volte a ver”?
A minha mente era um verdadeiro turbilhão, enquanto atravessava a rua e me
encaminhava novamente para o meu prédio. Parecia impossível que, neste preciso
momento, não conseguisse concluir nada do conteúdo da nossa conversa, excepto pelo
facto que sorriu algumas vezes, o que até não estava nada mal, considerando o terrível
humor com que se encontrava sempre.
Voltei para casa visivelmente decepcionada. Pelo olhar que Shiva me lançou, percebi que
ela tinha reparado que o meu semblante era, agora, bem mais pesado que aquele com que
tinha partido, mas não proferiu uma palavra sobre o assunto. Sinceramente, era melhor
assim. Escusava de lhe mentir, coisa que detestava fazer, fosse em que circunstância fosse.
O cheiro que pairava vindo da cozinha relembrou-me que ainda não tinha jantado.
Apressei-me a fazer o jantar, desejando poder estar sozinha na calma e silêncio do meu
quarto para pensar calmamente no que se tinha passado neste dia. Jantei praticamente de
pé na cozinha, junto ao balcão, completamente absorta. Francamente, humano ou não, eu
não podia deixar que ele tivesse este efeito em mim! Ainda que fosse provável que ele
pudesse exercer determinados efeitos em mim que eu não compreendia, dadas a suas…
capacidades!! Sim, ainda estava recente na minha memória a minha estranha perda de
sentidos naquela terrível noite na Cité Universitaire. Logo eu, que não era nada
susceptível a perder os sentidos assim, sem mais nem menos... Aquele desmesurado peso
nas minhas pálpebras e aquele sono desmedido era, no mínimo, suspeito. Sim, muito
provavelmente, teria sido um efeito produzido por ele.
Sem mais demoras, arrumei o que estava por arrumar na cozinha e rumei ao meu
quarto, verificando que Shiva já estava encerrada no quarto dela e, quase de certeza,
aborrecida por se verificar esta situação uma vez mais e por eu insistir em não a incluir
nos acontecimentos da minha vida. Se ela tivesse a mínima ideia da confusão onde eu a
meteria, daria graças ao Deus dela pela minha insistência.
Das imensas características de Shiva, uma delas era a sua enorme capacidade de esquecer
rapidamente estes pequenos episódios, pelo que optei por acatar o conselho que ela me
92
dera uma vez, ainda que face a circunstâncias completamente diferentes: não dramatizar e
deixar a noite passar por este assunto.
Já dentro do meu quarto, estava completamente imersa no pensamento, enquanto olhava
novamente pela janela, para o local onde, há pouco, tinha estado a conversar com David.
Definitivamente, eu não o compreendia, mesmo depois de todas estas revelações. Agora
que entendia tudo e compreendia as características inerentes à espécie dele, ele continuava
a ser um mistério. Que escondia ele por detrás daquele semblante, por detrás daquele
estranho olhar? Não sabia se seria melhor saber…ou não. E a julgar pelas suas últimas
palavras, parecia que não.
Talvez o mundo dele não fosse o que eu idealizava… daí a sua renitência em falar sobre
esse assunto, o que me fez sentir invadida por uma estranha impressão de que não o ia
voltar a ver, muito provavelmente devido à firmeza das suas palavras.
Tudo isto parecia uma piada de mau gosto… para quê dar-se ao trabalho de me salvar,
conversar comigo duas míseras vezes, assegurar-se que eu estava ciente do que ele era e
depois…desaparecer?
Acenei a cabeça, enquanto vestia o pijama e me encostava desajeitadamente em cima da
cama, numa posição no mínimo estranha, olhando para o tecto, mas não fixando nada em
concreto.
Era um estranho mundo, o de David, com estranhos comportamentos e princípios ainda
mais bizarros, difíceis de compreender…difíceis de aceitar, para um humano. Gostava de
poder saber mais, de poder partilhar o conhecimento desse mundo…mas não podia. Eu
sentia-o. Restar-me-ia saber da sua existência e acomodar-me a essa realidade? Saber que
tais estranhos seres coexistem connosco e não poder dizer nada? Saber que David é um
deles e deixar que o seu mundo me seja vedado? Porquê, se agora já sei da sua existência?
Talvez, com as suas últimas metafóricas palavras, ele me estivesse a aconselhar a esquecer
que tudo isto se passou, e voltar, de uma vez por todas, à minha vida rotineira; Livros e
estudar.
Após alguns segundos constatei que talvez não fosse assim tão simples.
Não sei se sou capaz.
E foi com este melancólico pensamento que mergulhei no conforto do meu imenso
edredão, na esperança de encontrar uma fonte quase inesgotável de vontade e esperança
que me desse forças para, uma vez por todas, esquecer este assunto.
Por fim, senti o sono vencer-me, lutando constantemente com as imagens e pensamentos
que insistiam em manter-se vivos, enviando-me para um sono estranhamente repousante.
93
Março estava aí e, com ele, uma enorme expectativa relativamente à chegada de
calor.
Mas qual calor?
Estava mais frio em Paris que num Inverno exageradamente rigoroso em Faro, pelo que
aquela era uma emoção que eu tinha dificuldade em compreender.
As aulas passavam calmamente, sem grandes acontecimentos relevantes, enquanto eu
frequentava assiduamente a componente prática e estudava, agora, com mais
concentração, a componente teórica das diferentes disciplinas que frequentava neste
semestre. Felizmente já conseguia concentrar-me forma mais eficaz, pois já não tinha
aquele factor estranho a perturbar-me. Literalmente, alienígena.
Era inevitável lembrar-me dele. E da sua condição. Não se esquece com facilidade o
momento em que se descobre que, afinal, existe outra espécie racional para além da
humana. Aliás, nem é algo que se possa esquecer assim, de ânimo leve. O truque consistia
em manter-me ocupada, não aliviar demasiado a mente, nem ter demasiados tempos
livres, para evitar que aquelas imagens voltassem a povoar a minha mente como um
maldito bug informático.
Shiva andava muito alegre ultimamente e eu já estava a adivinhar porquê. Era Março, a
Primavera aproximava-se e, a julgar pela tendência geral que os estudantes universitários
têm de organizar eventos para comemorar todo e qualquer acontecimento – por mais
insignificante que seja -, certamente esperar-nos-iam umas sólidas dezenas de
comemorações alusivas à estação do ano que estava prestes a chegar, por toda a Cidade
Universitária.
E não me enganava. Shiva informava-me que, exactamente no dia em que a Primavera ia
fazer a sua silenciosa aparição no mundo europeu, ou seja, na madrugada do dia vinte para
dia vinte e um de Março, ela já havia organizado um pequeno convívio para todos os
alunos de intercâmbio, onde eu me integrava – obrigatoriamente. Desta vez, Shiva havia
dito que a minha ausência num evento organizado por ela era completamente
injustificável.
Ora, não que eu não me importasse de ir com ela e com todos os outros celebrar a chegada
da Primavera. O problema eram as palavras de um certo… vampiro, que me alertava
constantemente para eu evitar sair à noite. Aliás, evitar mostrar-me, relembrava eu, numa
tentativa de ser mais precisa. Como se alguém fosse notar que eu ali estivesse, fosse onde
fosse.
94
Expirei ruidosamente, acenando negativamente a cabeça. Isto era extremamente injusto.
Como é que eu deixava que ele mandasse em mim, na minha vontade? E, ainda por cima,
sem ele me dar uma justificação concreta. Só exigências e nada de cedências.
Estava francamente farta de me comportar como alguém que obedece cegamente às
exigências de um… um… vampiro. Ainda tinha dificuldade em verbalizar aquela palavra,
mesmo que fosse mentalmente. Era muito agressiva e … irreal. Pois.
Não haveria de fazer mal se eu saísse uma simples noite. E ninguém haveria de me ver.
Pois então, com tantas pessoas em Paris – só Paris e subúrbios englobavam tantos
habitantes como Portugal inteiro – logo eu ia ser a estrela da noite, a expor-me? Sem
dúvida, isso seria altamente improvável.
O dia do famoso convívio chegara. Era um sábado e estava um frio que eu
classificava de glaciar, tão desadequado para receber a tão aclamada chegada da
Primavera. Shiva estava no seu quarto a preparar-se para o grande evento, como se fosse
desfilar num concurso de beleza.
Eu, por outro lado, não estava com muita disposição para sair de casa. Apesar de tentar
não pensar muito nos constantes avisos de David e estar completamente ciente que estava
a desobedecer claramente a um pedido que ele me tinha feito – várias vezes – não podia
evitar sentir-me ligeiramente culpada. E, definitivamente, a culpa era dele, da constante
insistência que tinha em não me explicar o porquê das coisas. Se, de facto, existisse algum
problema em eu aparecer à noite, então porque é que ele não me dizia qual era? Porquê a
renitência dele em explicar-me o que se passava, o que estava por trás de tão misteriosas
palavras, agora que eu já sabia de tudo? A única resposta óbvia que eu encontrava era que
não havia razão suficientemente forte que pudesse explicar a atitude dele. Não tinha lógica
nenhuma eu ficar em casa e privar-me de sair – à noite - com os meus amigos somente
para atender um capricho de um… vampiro teimoso e… que não me dava respostas. Era
só o que faltava.
Ia sair, sim. Ou, como ele afirmava, ia mostrar-me, sim. Porque eu queria. E ele não era
meu dono para me exigir fosse o que fosse.
Saí firmemente do meu quarto para encontrar Shiva, já preparada, no corredor que
separava os nossos quartos.
- Vamos? - sorriu ela, com uma expressão de felicidade estampada na face.
Sorri, acenando como resposta. Talvez a noite se revelasse mais divertida do que eu
esperava.
95
O convívio tinha lugar no Hard Rock Café em Paris, que se localizava na Boulevard
Montmartre. Shiva havia comunicado a hora e o local do evento a todos os colegas, mas
só Thomas e Vera haviam respondido, confirmando a sua presença pouco depois das onze
e meia da noite.
Eram vinte e três horas e vinte minutos quando eu e Shiva chegámos ao local, abrandando
o passo à porta do famoso Hard Rock Café, que emanava animação do seu interior.
- Talvez seja melhor esperarmos por eles aqui, à porta, não achas? - sugeriu Shiva,
olhando-me com indecisão.
- Sim, esperamos por eles aqui. Não temos pressa - afirmei eu, enquanto sorria, na
direcção de Shiva, que esboçou um ligeiro sorriso como resposta.
E, de facto, não tínhamos pressa. A noite estava fria, como seria de esperar, mas
havia uma grande quantidade de pessoas na rua, àquela hora. Muitas delas arriscavam já
finas fibras de algodão como se, dessa forma, o calor da primavera fosse chegar mais
depressa. Eu estava francamente agasalhada. Aliás, eu era mais uma personificação do
Inverno que da Primavera, como era suposto ser esta noite. A certa altura, passou por nós
uma concentração de pessoas que, quase seguramente, eram estudantes estrangeiros,
saídos de um autocarro de turismo que havia estacionado alguns metros atrás. Aquela
pequena multidão de cinquenta pessoas entrava agora no Hard Rock Café, absolutamente
ávidos para comprar lembranças na modesta zona de vestuário que rapidamente se
eclipsava frente a tantos pedidos. Não pude evitar sorrir frente ao que observava, enquanto
Shiva enviava, agora, uma mensagem de texto a Thomas, perguntando-lhe onde estavam e
se demoravam muito.
Subitamente fui invadida por uma forte sensação de agonia, que se revelava incomodativa.
Sentia algo estranho, que não conseguia descrever, mas a sensação que tinha parecia-me
ser que… estava a ser observada. Por alguém.
Senti um arrepio na espinha, enquanto procurava a fonte do olhar que me observava
daquela forma sobrenatural e que eu conseguia sentir, à distância.
Isto não é normal.
Não foi preciso muito esforço para encontrar um par de olhos escuros que se encontravam
do lado oposto da rua onde nos encontrávamos. Era Nevio. Podia afirmá-lo mesmo antes
de confirmar que aqueles olhos eram mesmo os dele. E não estava nada contente.
Nevio observava-me, tal como eu relembrava, com uma hostilidade marcada no olhar, à
qual se juntavam espanto e choque, que eram tão óbvios quanto ele. A postura dele era
caracteristicamente a de alguém que se sente surpreendido por encontrar algo que não
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esperava encontrar. Vi-o semicerrar os olhos, mantendo o olhar dele fixo na minha
direcção, como se estivesse a constatar que eu estava de boa saúde.
Hum! Isto não era um bom sinal. Repentinamente, passou um autocarro, que abrandou de
tal forma que se mantinha como uma barreira física entre nós, cortando assim, o fluxo de
informação que corria no olhar que ele me lançava. Nevio assustava-me. Era um facto.
Contudo, naquele momento, não sabia se desejava encontrar novamente o olhar dele, ou
não, sob pena de descortinar lá algo, terrivelmente maquiavélico. Quando o autocarro
avançou novamente, Nevio já não estava no local onde eu pensava que ele se encontrava.
Olhei, assustada, em meu redor. Estaria ele por aqui, mais perto de mim? Quereria ele
fazer-me mal?
Sentia o meu batimento cardíaco alterar-se, à medida que constatava que eu sabia bem a
resposta àquela pergunta. A resposta era um Sim categórico.
Por muito que olhasse, não via Nevio em sítio algum, o que me aliviava
momentaneamente. Mas, agora, já nada havia a fazer. Ele tinha-me visto. Ponto final. Eu
sabia que ele era um vampiro. Mas ele não sabia que eu sabia. E talvez fosse esta a razão
pela qual David me alertava com tanta frequência… e com tal tenacidade, para eu… evitar
mostrar-me à noite.
Expirei ruidosamente. Agora, já não havia nada a fazer e a minha noite de divertimento
estava, definitivamente, arruinada.
- Maria, o que foi? - questionou Shiva, na minha direcção.
- Ah!…Nada. Eh… não me sinto muito bem… - afirmei eu, sentindo a lividez nas minhas
mãos.
- Olá! - A voz de Thomas interrompia agora o nosso pequeno momento, enquanto eu já
ponderava ir-me embora para casa, sob pena de Nevio voltar. E se isso acontecesse, seria
bem pior, pois eu não saberia o que fazer.
- Ela não se sente bem - declarou Shiva, olhando-me com um verdadeiro semblante de
preocupação.
- Sim, de facto, estás ligeiramente pálida… - declarou Thomas, enquanto me observava
atentamente.
- Eu vou para casa. É melhor - declarei eu, enquanto olhava atentamente para Shiva.
- Eu vou contigo… - sugeriu ela, de imediato.
- Nem pensar, Shiva. Esta é a tua festa. Tens que ficar e divertir-te - declarei eu, enquanto
olhava em meu redor, pensando como encontrar um táxi. - Eu fico bem.
Sentia a hesitação em todos eles, face à minha repentina decisão.
97
- Provavelmente foi alguma coisa que eu comi… - menti eu, esperançosa que me
deixassem ir para casa sem mais demoras, sem mais perguntas.
- Está bem - acabou por concordar Shiva. E continuou, - Mas por favor, se te sentires
muito mal, telefona-me!
- Combinado! - Sussurrei eu na direcção dela, para depois lançar um breve sorriso a todos.
- Divirtam-se.
Comecei a andar rapidamente, olhando de soslaio em meu redor, tentando
encontrar as luzes que me poderiam salvar daquele pesadelo e levar-me a casa
rapidamente. Naquele momento, eu não queria saber de mais nada a não ser chegar a casa,
o mais depressa possível. Olhei novamente para a rua e descobri, finalmente, um táxi que
acabava de deixar alguém apeado. Era a minha salvação.
Entrei no táxi, sobressaltada, tentando reunir forças para verbalizar o destino da viagem.
Após um esforço considerável, lá consegui. Olhava nervosamente em meu redor, com
receio de encontrar aqueles olhos sombrios que me atemorizavam verdadeiramente.
Senti uma enorme saudade da presença de David, pois recordava como naquela noite na
Cité Universitaire, ele me havia salvo da perseguição de Nevio e dos outros. Meu Deus,
como eu precisava dele, aqui e agora.
Mal dei conta de chegar a casa, trancar portas e janelas e enfiar-me na cama, escondida
dos olhos de todos, rezando para que tudo isto não fosse mais do que um grande susto.
98
CAPÍTULO 8 – ESTRASBURGO
PARECEU-ME ESTAR A SONHAR profundamente, sem noção de qual era o conteúdo
do sonho. Todavia, fosse o que fosse, tinha-me acordado do pesado sono em que estava
imersa e sentia as pálpebras exageradamente pesadas. Quanto tempo tinha passado desde
que me deitei? Horas, minutos? Aconcheguei-me novamente, confortável no quente que
emanava do meu extraordinário edredão e fechei os olhos, preparando-me para adormecer
novamente.
Foi então que ouvi um ruído em forma de três suaves batidas. Abri imediatamente os
olhos, todo o peso das pálpebras desaparecera e, exageradamente alerta, tentava discernir
o que era o ruído e de onde vinha. Mantive-me imóvel, durante alguns segundos que mais
pareceram horas, a olhar para o escuro que me rodeava. Contudo, esta tarefa estava a
revelar-se muito difícil, uma vez que o meu batimento cardíaco parecia ecoar no silêncio
da noite como um trovão. Ainda assim, esperei.
As três suaves batidas repetiram-se, agora com mais firmeza. Levantei-me de rompante,
com um arrepio na espinha, sentando-me na cama e sentindo de imediato o frio da
madrugada em meu redor, apesar de a janela estar completamente fechada. Olhei para o
meu relógio despertador. Eram exactamente cinco da manhã. Acendi a luz, sem perceber
muito bem o que tinha ouvido, se era real ou não e mantive-me sentada, aguardando e
olhando em redor.
Mais uma vez, as três batidas repetiram-se e eu percebi donde vinha o ruído: exactamente
da minha janela. Mas… como poderia alguém bater à minha janela, num 3º andar? Ou
estariam a lançar algo à janela para chamar a minha atenção? Mas… às cinco horas da
manhã? Ah! Por favor! Se fosse mais uma das brincadeiras de Shiva, ela ia ouvi-las pela
manhã! Afastei rapidamente o meu pesado conjunto de cama e, sem paciência para calçar
as pantufas, dirigi-me à janela, puxando calmamente o estore, pensando nas ofensas que
iria proferir quando encontrasse, quase seguramente, um divertido grupo de estudantes a
troçar de mim, lá em baixo, na rua. Contudo, mal abri o estore por completo, o que vi foi
algo bem diferente: alguém estava agilmente agachado no parapeito da minha janela, com
um dos antebraços a repousar descontraidamente num dos joelhos, enquanto o outro se
apoiava na parte superior da janela com o outro braço. Olhava-me com o maior ar de
censura que eu alguma vez tinha recebido.
Não acredito nisto. David?
99
Fiquei a olhá-lo, espantada. A sua postura assemelhava-se ao de um autêntico malabarista
que exibia o seu número mais perigoso ao ar livre, apesar de parecer mais uma cena saída
de um filme de terror. O vento que corria lá fora fazia com que o seu cabelo parecesse
mais fluido, marcando também a escassa roupa que trazia, demasiado fresca para uma fria
madrugada do primeiro dia de primavera. O luar marcava-lhe as feições, destacando-lhe o
olhar e dando-lhe uma aparência, sem dúvida, sobrenatural. Se eu ainda tivesse alguma
dúvida de que este rapaz não era humano, agora teria a confirmação.
Definitivamente, de todas as reacções que o tinha visto ter, esta era a mais extrema de
todas: a estas horas? Subir ao parapeito da minha janela? Como? Porquê? E para quê?
Tinha que ser algo mesmo sério. E provavelmente quereria falar comigo.
Maria, recompõe-te e abre a janela de uma vez.
À medida que abria a janela, senti imediatamente a fria brisa da Primavera que acabara de
começar, arrepiando-me.
- O que é que-
Não consegui terminar a frase. Senti-me rapidamente puxada para o exterior, saindo pela
janela, como se estivesse a ser sugada, para então colidir com uma verdadeira muralha
com forma humana, absolutamente hirta e forte, aprisionando-me em seu redor. O que se
passou de seguida decorreu a uma velocidade que os meus olhos não conseguiam
acompanhar mas, pelo movimento e pela direcção do vento que parecia enregelar-me.
Fiquei com a sensação que estava a subir… o instinto dizia-me para me agarrar ao que
conseguia ter acesso e, foi assim que encontrei algo que se assemelhava a uma fina fibra
de algodão, percebendo que era o que cobria aquele ser que agilmente trepava vários
andares com uma facilidade estonteante.
Como é que ele não tinha frio?
Repentinamente, todo aquele fugaz e nauseante movimento cessou e, ao abrir os olhos,
pude perceber onde estava: no tecto do prédio onde vivia. Tão depressa como me puxou
da minha janela, depositou-me a uns consistentes três metros de distância dele, enquanto
se mantinha de costas para mim, como se ofendido com alguma coisa que eu tivesse dito –
mas eu nem sequer tinha proferido uma palavra. Ainda se mantinha em mim aquela ligeira
sensação de náusea, quase certamente devido aos movimentos acelerados que tinha
sofrido.
Malditas capacidades vampíricas.
Foi então que eu me apercebi do estado lamentável em que me encontrava: de pijama, o
cabelo parecia um arbusto selvagem, a cara e olhos inchados de ter sido acordada
repentinamente e… descalça, já estava a sentir o frio a atingir os meus pés de forma
100
intensa. No tecto, onde estava, ainda sentia mais frio, o que me fez colocar os braços em
redor de mim mesma, para evitar que enregelasse.
David estava imóvel, sem proferir uma única palavra e eu dei por mim a desejar que ele
dissesse alguma coisa rapidamente, sob risco de eu entrar em hipotermia.
- Eu disse-te para não apareceres à noite - falou ele finalmente, com um tom seco,
enquanto se virava até ficar de perfil, olhando na minha direcção. Aquela expressão
reflectia claramente um elevado grau de impaciência e irritação.
- Disseste-me para eu evitar aparecer à noite… já há algum tempo.
- Isto é sério - disparou ele, agora virando-se completamente, de frente para mim e
mantendo a distância, agora com uma expressão absolutamente irredutível na face.
- Sério? – Repeti eu, sem conseguir atingir onde é que ele queria chegar… e, por outro
lado, sentia que estava a ficar gelada.
- Eles viram-te… e agora eu tenho que te tirar daqui.
- Eles? Eles quem?
- Nevio e… os outros.
- Mas o que é que isso significa?
O meu desconhecimento era genuíno.
- Significa… problemas.
Pela primeira vez, via-o hesitar, certamente em busca da palavra mais adequada. E, para
um alguém audaz como ele, isso não era muito bom sinal.
- Mas, porquê? Eu não fiz nada de mal…
Seguiu-se um pesado silêncio, interrompido somente pelo ruído do vento que passava
ocasionalmente por nós, enquanto ele olhava, sério e impaciente, para algo que eu não
sabia o que era, nem onde estava, mas seguramente seria muito longe do tecto onde nós
nos encontrávamos.
- Vamos voltar para o quarto.
E com isto, vi-o dirigir-se a mim com passos firmes, como um leão se lança a uma zebra,
e só tive tempo de sentir o meu batimento cardíaco acelerar. Assustada, fechei os olhos.
Só desejava que ele não me fizesse mal, porque, muito sinceramente, eu não sabia o que
tinha feito de errado. Os movimentos que eu senti eram estranhos…e, claramente, a
descer. Ele agarrou-me firmemente mas sem me magoar e, mais uma vez, agarrei-me ao
que tinha acesso. Desta vez foi ao casaco, presumia eu, pela diferença na textura da fibra.
A sua agilidade e facilidade em transportar-me fez-me considerar por momentos, se seria
comum transportar humanos para telhados e de telhados, como se fossem coletes salva-
101
vidas. Para não mencionar que, para além das demais características, desafiar a gravidade
era mais uma das vantagens da sua espécie.
Repentinamente, o frio que se fazia sentir cessou e eu senti-me colocada, mais uma vez,
em chão firme. Estava de regresso ao meu quarto. Abri os olhos e vi-o, agora, a uns
sólidos dois metros de mim, como se eu fosse portadora de alguma doença altamente
contagiosa. Tive a sensação que não se afastava mais de mim porque o tamanho do quarto
não o permitia. Qual era o problema dele? Claramente, evitava qualquer tipo de contacto.
Seria por causa da alimentação? Credo, não me tinha lembrado desse pormenor; Nós
éramos a sua fonte de alimentação.
Tentei afastar esse nefasto pensamento e reflectir sobre o que o traria aqui,
verdadeiramente, relembrando a nossa conversa no telhado e mantendo um tom de voz
baixo, mas audível. Não podia arriscar-me a acordar Shiva, apesar de não saber se ela
estava em casa ou não.
- Mas… o que é que se passa? - Perguntei eu, exasperada.
- Já te disse. Foste imprudente e expuseste-te. Agora tenho que te tirar daqui.
A sua voz não podia ser mais seca.
- Imprudente? Mas…
- Não temos tempo para isto.
Ele estava a ficar visivelmente impaciente.
- Não me podes tirar daqui. Não assim... – sussurei eu, exasperada, face às suas palavras.
Era o único raciocínio que conseguia efectuar, até que ele me interrompeu subitamente.
- Tens que sair de Paris, já.
Olhei-o com reprovação. “Já.”!?
A sua exigência estava a enervar-me particularmente, porque ele insistia em não me
oferecer uma explicação minimamente credível para eu perceber o que se estava a passar.
- Sinceramente, David. Apareces à minha janela às cinco da manhã, raptas-me para o
telhado e exiges que eu me vá embora de Paris, sem uma única explicação?
- É necessário.
- É essa a única explicação que tens para me dar? - “É necessário?”
Olhei-o, questionando-o com o olhar. Sinceramente, ele não poderia esperar que eu
acatasse as suas ordens como se eu fosse um vegetal? Ele retribuía-me o olhar, sem dizer
nada. Talvez não fosse má ideia ser mais explícita.
- Esperas que eu aceite tudo o que me dizes sem contestar nada?
- Não… mas desta vez preciso que seja assim.
- As coisas não funcionam assim...
102
Apesar da sinceridade da sua resposta, não podia simplesmente aceitar as suas imposições.
Por amor de Deus, eu mal o conheço.
Estava numa situação extrema, imersa na minha insegurança, ainda que sentisse algo
dentro de mim, algo semelhante à certeza que senti quando tinha visto Nadine naquela
ruela, a certeza de que sabia o que se tinha passado. Agora, essa mesma certeza dizia-me
para confiar nele.
Confiar nele? Valha-me Deus, onde é que tens a cabeça?
Foi a intervenção de David que interrompeu a minha linha de pensamento.
- Por favor…
A expressão dele era dolorosa. Dolorosa e frustrada. Raios! Ele sabia como influenciar-
me, sabia utilizar as palavras certas. Seria esta expressão genuína, ou seria somente um
truque para persuadir humanos? Mais uma capacidade vampírica vantajosa? Procurei
respostas no seu olhar, que era de um intensidade simultaneamente sincera e triste, o que
me fez procurar um ponto longínquo onde me fixar para, consequentemente, conseguir
pensar. Com alguma dificuldade, fui capaz de elaborar uma débil frase.
- Porquê?
- Tu não estás a salvo…
- Não estou a salvo do quê? - Questionei eu, quase instantaneamente, ao ouvir as suas
secas palavras. Raios, ele sabia mesmo ser evasivo e desagradável.
- Eu explico-te mais tarde, mas agora tens mesmo de sair de Paris.
Claro, muito típico. Explicações mais tarde, como?… nunca?
- Eu não posso ir-me embora assim, eu tenho aulas e…
- É temporário. Uma semana, no máximo - interrompeu-me ele, mais uma vez.
Olhei-o desesperada, constatando que ele não me ia dar escolha ou alternativa.
- Isto não está a acontecer… - sussurrei eu, cruzando os braços, enquanto acenava a
cabeça negativamente e olhava fixamente para um ponto aleatório no quarto, mais em tom
de desabafo que de constatação. Estava a ficar sem forças, sem desculpas mas, por outro
lado, também estava a ficar sem razões para duvidar dele. Que razões tinha eu para não
confiar nele? Está bem, ele não era humano, eu não o conhecia – a nenhum nível –,
testemunhei um momento de refeição… aliás, dois. Mas nunca me fez mal, pelo menos
fisicamente. Sim, porque emocionalmente, tinha que admitir que ele exercia em mim um
efeito totalmente… sobrenatural!
- Por favor, Maria…
Ouvi-lo afirmar repentinamente, como se adivinhando o dilema interno em que eu me
encontrava, era algo que me transtornava de uma forma tão incomodativa quanto…
103
extraordinária. Tinha que decidir – com alguma rapidez - o que fazer, se bem que cada vez
mais estava com a sensação de que ele não me daria nenhuma hipótese a não ser aceitar as
suas exigências. Raios! Eu não tinha mesmo escolha. Como sempre.
- Muito bem… para onde é suposto eu ir?
- Já foi tudo tratado. Faz a mala, rápido.
- Agora? - Perguntei eu, com espanto. Olhei para o relógio, eram cinco horas e vinte
minutos. Ele estava mesmo com muita pressa!
- Sim.
- E o que devo levar? - Questionei eu, enquanto me dirigia ao armário, onde tinha a roupa.
- Vai estar frio.
- Para onde é que eu vou?
- As explicações ficam para depois.
Evasivo como sempre. E o que mais me arreliava era que eu sabia que não valia a
pena contrariá-lo, pois se ele não quisesse responder a uma pergunta, não respondia. Ponto
final. Comecei a colocar roupa no saco de viagem, sem a mínima noção da quantidade que
precisaria. Uma semana no máximo. As palavras dele ecoavam na minha mente.
Instintivamente, lembrei-me que estava de pijama. Não poderia sair de casa assim. Peguei
na roupa que tinha à mão, nomeadamente a que tinha vestido no dia anterior e dirigi-me à
porta do quarto, enquanto o informava para onde ia.
- É só um momento, eu vou vestir-me.
Ao sair do quarto, lembrei-me de Shiva. Não sabia se estava em casa ou não. Pelo sim,
pelo não, seria prudente não fazer barulho, para evitar situações embaraçosas. Se ela
encontrasse David no meu quarto, a esta hora, estando eu de pijama, então nunca mais ia
ter descanso. Uma vez na casa-de-banho, vesti-me num ápice e arranjei-me minimamente,
em especial o cabelo, que estava particularmente indisciplinado. Olhei-me ao espelho. A
minha cara consistia num todo desconcertante: os olhos inchados, o nariz vermelho do frio
que tinha passado. Peguei em tudo o que necessitava da casa-de-banho para poder
sobreviver uma semana num sítio onde iria estar frio – Talvez um iglo?, pensei
ironicamente – e rumei silenciosamente para o quarto, onde David me esperava,
exactamente no mesmo sítio onde o tinha deixado. A sua figura imóvel relembrava-me as
estátuas gregas que tinha observado naquela extraordinária tarde cultural, em grupo, no
Museu do Louvre.
Tentei resumir mentalmente se teria tudo o que precisava para a minha semana de
introspecção no desconhecido. Literalmente.
104
- Podemos ir. Vou só deixar uma nota a Shiva - disse eu, enquanto me dirigia à minha
secretária, pensando no que haveria de escrever, ou seja, na desculpa mais esfarrapada que
teria que inventar. - Não posso desaparecer assim sem mais nem menos.
Subitamente, senti a presença de David perto de mim.
- Não lhe podes dizer.
- Como é que eu lhe posso dizer onde estou se eu própria não sei para onde vou? -
Afirmei eu, com uma pitada de escárnio na voz, enquanto o fitava com reprovação, como
que relembrando-o que estava a ser injusto por não me dar nenhuma explicação. Após
pensar alguns segundos, escrevi firmemente:
Shiva:
- Então, satisfeito? - Disse, apontando com a mão para a minha recente nota, com ar
desafiador, enquanto pousava a caneta na secretária.
- Não sejas difícil - afirmou ele, com um tom firme, dando por terminado o tópico de
conversação.
- Podemos ir… - tentei eu afirmar com o tom mais seco possível, enquanto agarrava o
meu saco de viagem. Olhei para o relógio despertador. Eram cinco e quarenta da manhã.
Repentinamente, vi David aproximar-se de mim com uma determinação que me fez
retroceder alguns passos para trás. Mas eu não era suficientemente rápida e não tinha a
capacidade de me deslocar à sua velocidade e, quando dei conta, ele estava exactamente à
minha frente, a escassos centímetros de mim, com um olhar apreensivo, que eu não
compreendia – mais uma vez, como tantas outras vezes.
Subitamente, senti a mão dele na minha, o que me fez arrepiar. Ele estava gelado. Sim, eu
já sabia disso, mas ainda assim, o toque dele era algo… indescritível. E, mais uma vez,
devo ter admitido a expressão facial mais idiota à face da terra. Sem dúvida, estes eram
momentos em que a minha transparência não era claramente favorecedora para manter a
pouca dignidade que ainda me restava. Suavemente, senti-o retirar a mala de viagem das
minhas mãos.
Vou passar esta semana a casa dos meus tios. Desculpa não ter avisado mais cedo.
Beijinhos, diverte-te.
105
- Eu levo-te a mala. É o mínimo que posso fazer - afirmou, enquanto se afastava de mim.
Claro, o típico cavalheiro, ainda que teimoso, subtil e… persuasivo.
- Por favor, podemos usar a porta? - Sussurrei eu, enquanto seguia atrás dele, saindo do
meu quarto. Com delicadeza, fechei a porta e deixei o post-it firmemente colocado na
porta do meu quarto, para que Shiva o visse mal acordasse. E, esperava eu, que não se
lembrasse de fazer muitas perguntas. Nem inventar histórias.
- Com certeza - sussurrou ele, enquanto se dirigia agora à porta principal, no escuro, como
se tivesse memorizado o caminho exacto até à saída.
Eu própria já estava perdida na escuridão do meu reduzido apartamento, com receio de
derrubar algum elemento da escassa decoração e acordar Shiva. Ao olhar em frente, só via
o brilho dos olhos de David, que mais parecia um felino em posição de ataque,
observando cuidadosamente o percurso da presa.
Credo, definitivamente ele não é humano.
Os olhos dele seguiam-me, observando-me enquanto me aproximava dele, enquanto eu
tentava remover da minha mente qualquer semelhança com o momento National
Geographic que se identificava, em tudo, ao que eu estava a sentir naquele instante. Eu,
verdadeiramente como uma presa oprimida.
Ao chegar à porta, destranquei-a o mais silenciosamente possível e saímos discretamente
de casa. No prédio já me sentia mais à-vontade e a minha reacção instantânea foi ligar a
luz, que iluminou intensamente todo o hall. Senti-me de imediato mais aliviada, agora
acompanhada por alguma claridade. Por esta altura, David já estava à minha espera no
elevador, mantendo a porta semi-aberta, esperando que eu entrasse. Como ele se movia
sem eu me aperceber era algo incompreensível. Entrei e carreguei no botão para descer. A
viagem até ao rés-do-chão foi breve, mas o silêncio dele perturbava-me. Tinha uma
vontade imperiosa de lhe fazer perguntas, mas já sabia que não valia a pena, porque ele
não me ia dar respostas. Melhor suportava eu um silêncio incomodativo que tentar
inúmeras vezes questioná-lo sem sucesso. Eu também tinha o meu orgulho.
Ao sair do prédio, reparei que já estava um carro à nossa espera e não demorei muito a
perceber que era um táxi. David dirigiu-se à bagageira, colocou lá a minha mala e trocou
breves palavras com o motorista, que se apressou a voltar ao lugar do condutor, enquanto
David fechava a porta da bagageira e se dirigia à porta mais perto de mim, abrindo-a e
fazendo-me sinal para entrar.
- Se fazes favor.
106
Contrariada, entrei e ele entrou depois de mim, fechando a porta suavemente. O motorista
olhou para nós pelo espelho retrovisor e arrancou, mergulhando na madrugada escura de
Paris.
O silêncio mantinha-se como uma verdadeira barreira impenetrável e eu estava a sentir-
me cada vez mais desesperada e cada vez mais consciente do que se estava a passar. O
que iria ser de mim? Tinha que tentar, mais uma vez, obter respostas.
- Para onde é que vamos? - Questionei eu, discretamente, enquanto olhava, absorta, para
as minhas mãos.
- Para a estação de comboios.
- Porquê?
- É movimentado.
Pronto, limitava-se a informar-me para onde ia, mas já o porquê, não o revelava. Isto era
frustrante… era absolutamente intolerável.
Como é que eu me fui meter nisto?
Às vezes ele conseguia ser muito irritante. E o que quereria ele dizer com Movimentado?
Definitivamente, eu não me conseguia habituar às suas rebuscadas expressões e, muito
menos, decifrá-las.
A viagem até à estação de comboios durou cerca de vinte minutos, tempo durante o qual
atravessámos inúmeras zonas de Paris que me eram totalmente desconhecidas. Tentei
abstrair-me e retirar o melhor da viagem, observando atenciosamente cada detalhe, cada
pormenor do mistério e da beleza da cidade durante a noite. Ninguém pronunciou uma
única palavra durante o tempo que durou o resto da viagem.
Ao chegar ao destino, David saiu e eu fiz o mesmo, seguindo-o para onde ele se
encaminhava, com o meu saco de viagem firmemente seguro na sua mão. Estava com
alguma dificuldade em acompanhar o passo dele, mas também não me queixei. A estação
de comboios consistia num edifício majestoso, de percursos labirínticos que David parecia
conhecer de cor. Nem uma vez o vi hesitar durante o trajecto que fizemos até encontrar a
plataforma que, provavelmente, seria a que ele procurava, pois foi lá que o vi abrandar o
passo e, finalmente, parar. Precisei ainda de alguns segundos para chegar ao pé dele e,
agora sim, tinha tempo para observar um pouco o que me rodeava. Facilmente constatei
que me perderia se tentasse voltar para trás, pois não conseguia de forma alguma
reconstituir o caminho que tinha acabado de percorrer. Senti-me, pela enésima vez esta
noite, extremamente frustrada.
Onde estávamos havia pelo menos quatro plataformas, mas percebi que havia mais umas
quantas dezenas que eu não fazia ideia como chegar até lá. A imensidão das linhas de
107
comboios era comparável à das linhas do metro, ou seja, uma confusão na qual eu me
sentiria completamente perdida, sem a menor sombra de dúvida. Estavam duas pessoas
sentadas num banco a cerca de dez metros de nós, aparentemente absortas em algo longe
da estação de comboios. Fazia muito frio, eu sentia a respiração ofegante da minha recente
corrida, na tentativa inútil de acompanhar o passo veloz de David e o meu nariz estava a
enregelar. Perguntei-me, mais uma vez, para onde iria e olhei-o desesperadamente,
assustada com o que ele me pudesse dizer. Ao encontrar o meu olhar, vi-o pôr a mão
dentro do casaco e retirar de lá um espesso envelope, que me entregou.
- Aí tens tudo o que precisas para uma semana.
Curiosa, abri o envelope e encontrei uma quantidade exagerada de dinheiro em notas de
vinte Euros, reserva para uma semana num hotel cujo nome não consegui pronunciar e um
bilhete de comboio, que referia como destino uma cidade francesa que eu ainda não
conhecia.
- Estrasburgo? - Perguntei eu, ingenuamente.
- Lá estarás em segurança.
Quase que cedia à tentação de lhe perguntar porquê, mas eu já sabia que ele não me iria
responder. Eu sentia a determinação no seu olhar.
- Em segurança… É muito elucidativo - afirmei eu, com um tom irónico, enquanto
acenava como se concordasse cegamente com o que ele me estava a dizer.
- Não comeces. Acredita que é necessário.
O tom dele era de firmeza, sinal de que a conversa iria terminar ali.
- Sim, eu acredito em ti, hoje já disseste isso duas vezes - retorqui eu, recusando-me a
deixá-lo com a última palavra. E ainda me acusava de eu ser difícil. Eu? Sinceramente!
Ele era mil vezes mais difícil do que eu.
O silêncio voltara-se a instalar entre nós. Ele não queria falar e eu, muito sinceramente,
também não. Olhei para o relógio, eram seis horas e cinco minutos. Ainda faltavam dez
minutos para o comboio chegar, conforme avisava o placard electrónico.
Que maravilha! Mais dez minutos de silêncio na companhia do vampiro mais teimoso à
face da terra.
A minha irritação transformava-se agora em indignação. Não conseguia deixar de pensar
no que é que poderia ter despoletado toda esta situação. Eu tinha que ter feito qualquer
coisa, porque David tinha mencionado que os outros me tinham visto, mas eu não me
lembrava de nada em concreto. Repentinamente, fez-se luz.
Foi hoje, há umas horas atrás, quando eu saí do Hard Rock Café.
108
Parecia que estava a reviver aquele momento outra vez, aquele instante em que os meus
olhos encontraram os do italiano, cujo olhar consistia num misto de espanto e raiva.
Definitivamente, só podia ser essa a causa, ainda que fosse difícil para mim acreditar
nessa hipótese.
- Foi por eu ter aparecido na rua hoje à noite que…
- Não foi só por isso. Na realidade, tudo remonta a alguns meses atrás - Interrompeu-me
ele novamente, como se adivinhando o que eu iria dizer. Eu seria assim tão previsível? E,
mais uma vez, não me tinha respondido directamente à pergunta. Agora era eu que não
compreendia a minha idiota insistência em continuar a fazer-lhe perguntas, se já sabia que
ele não me iria responder.
- Espero que haja uma boa justificação para tudo isto - sussurrei, com um tom irritado.
- Eu hei-de contactar-te. Até lá, peço-te que não digas a ninguém onde estás - afirmou ele,
desviando claramente o assunto.
- Está bem… – respondi eu, secamente, mais como um sussurro, sentindo o olhar dele em
mim, enquanto eu, propositadamente, desviava o olhar na direcção exactamente oposta.
A minha estratégia consistia agora em concordar fosse com o que fosse que ele me
dissesse. Eu já me sentia desesperada o suficiente com a situação e, com sinceridade,
preferia não falar mais com ele, simplesmente porque não o considerava merecedor da
minha atenção. Ele estava a ser injusto e desagradável. Estava eu a tentar fixar-me num
ponto aleatório algures no sombrio horizonte, que agora já começava a aclarar, admitindo
uma tonalidade de azul celeste, deixando adivinhar a proximidade do amanhecer, quando
senti uma presença exageradamente perto de mim, exactamente à minha frente. A minha
reacção imediata foi de surpresa, afastando-me ligeiramente para trás, como resposta à
investida de David, que continuava a olhar fixamente para mim, pedindo-me atenção mas,
desta vez, eu recusava-me a devolver-lhe o olhar.
Pois, eu também tenho o meu orgulho. E agora, sou eu que não quero saber do que tens
para me dizer.
Foi no meio da minha inflexível linha de pensamento que eu senti os seus gélidos dedos
tocarem na minha face. Senti-me imediatamente a fraquejar. Inflexível? Pois claro.
Com humanos, sem dúvida; com vampiros…bem, continua a tentar.
Como é que era possível estar tão segura de mim própria e bastar um simples toque para
destruir tudo? Eu era, sem dúvida, uma humana muito patética.
David estava a tentar colocar-me frente a ele, movimentando-se com uma suavidade
extraordinária, objectivo facilmente concretizado em alguns segundos. Certamente era
algo mesmo muito importante que ele tinha para me dizer. Os seus dedos já tinham parado
109
mas continuavam imóveis encostados à minha face, enquanto eu olhava, agora, para a
pálida pele que lhe cobria a garganta, o pescoço, uma pequena parte do peito que estava
descoberta pelos dois botões desabotoados da camisa que, conseguia ver agora, era clara e
mais parecia uma extensão da sua imensa palidez. Senti os seus dedos moverem-se na
direcção do meu queixo, mais como uma carícia que como uma advertência.
O que é. que ele. está. a fazer?
Foi instantâneo. O meu batimento cardíaco, a minha respiração, bem como outras funções
vegetativas, alteraram-se de uma forma vergonhosamente incontrolável, enquanto David
me elevava o queixo na sua direcção, até que o meu olhar encontrou o dele. O olhar dele
era um mar de emoções, uma mistura caótica de uma intensidade indescritível, que me
deixava, literalmente, sem palavras. Foi então que o ouvi falar.
- Terás as tuas respostas. Dou-te a minha palavra.
A referência dele às “respostas” abstraiu-me ligeiramente do seu fixo olhar (em que eu me
encontrava, de algum modo, perdida) mas deu-me senso suficiente para conseguir elaborar
uma resposta que, desta vez, sentia estar à altura.
- Dá-me uma boa razão para eu confiar em ti.
- Estás viva - respondeu ele sem hesitar, como se previsse a minha última pergunta,
enquanto ele se afastava calmamente e se fixava agora, num ponto inexistente, algures no
horizonte.
Senti um arrepio ao ouvi-lo proferir aquelas duas últimas palavras. Pela primeira vez,
nesta noite e por alguma razão que me era alheia, não quis contestar nem questionar os
porquês dessa realidade, porque algo dentro de mim me dizia que a verdade seria bem
mais terrível do que eu imaginava. Afinal, talvez houvesse uma razão bem forte detrás de
toda a sua renitência em responder às minhas insistentes perguntas.
Os olhos dele reflectiam, agora, tristeza e desapontamento, enquanto olhavam o início da
linha do comboio, como se esperassem a qualquer momento que o comboio aparecesse.
Mais uma vez, sentia-me completamente perdida e…desesperada, sem saber o que dizer
nem o que fazer.
- Vem aí - disparou ele na minha direcção, interrompendo o meu atribulado pensamento.
Olhei. Não vi nem ouvi nada. Vampiro exibicionista.
Por instantes desejei que o tempo parasse ali e agora, só eu e ele, para que eu pudesse
receber imediatamente todas as minhas respostas e perguntar-lhe tudo o que queria, sem
restrições nem entraves, sem metáforas nem evasivas. Era o mínimo que eu poderia exigir.
O barulho do comboio a aproximar-se arrancou-me da minha pequena bolha pensativa e
foi aí que eu encontrei novamente o olhar fixo de David que, por momentos me assustou,
110
mas não pelas razões usuais. No olhar dele não encontrei nada do que estava à espera,
nem sequer nada do que já tinha visto, mas sim algo novo, uma enorme expressão
de…receio, o que era completamente novo para mim. David, com receio…de quê? Senti-
me desconfortável e atemorizada por vê-lo a sentir-se assim, o que me levou a concluir
que, sem sombra de dúvida, devia tratar-se de algo muito grave…e sério. E eu estava no
meio. Senti novamente o meu batimento cardíaco a acelerar.
- Calma. Eu hei-de contactar-te - reafirmou ele, como se tivesse ouvido as alterações do
meu ritmo cardíaco.
- E se-
- Garanto-te que o farei – interrompeu-me ele, com uma segurança na voz e no olhar que
me retirou qualquer réstia de dúvida que eu pudesse ter.
- Estarei à espera.
- Cuida-te.
- Tu também.
- Vai.
Foi a última palavra que o ouvi proferir, enquanto o comboio parava, por momentos, para
permitir que as pessoas subissem para as carruagens. Éramos três, eu e os recatados
indivíduos que estavam sentados naquele longínquo banco há cerca de dez minutos atrás.
Subi apressadamente, procurando um lugar perto da janela, os meus predilectos neste tipo
de viagem, enquanto olhava para a plataforma, de onde David me fitava como uma estátua
viva, como um guardião de pedra cuja única prioridade era garantir a minha segurança, a
minha integridade. Às vezes era-me muito fácil perceber o que ele pretendia transmitir,
sem ser necessário proferir uma única palavra, bastava simplesmente um olhar, uma
expressão, um contacto. Definitivamente, quando ele queria, conseguia ser muito
transparente. Mas só quando ele queria. E, infelizmente, essa realidade resumia-se a uma
quantidade muito reduzida de ocasiões.
Desviei momentaneamente o olhar para me sentar no lugar que havia encontrado, à janela,
tal como pretendia. Quando voltei a olhar para a plataforma, ele já se tinha desvanecido.
Senti-me estranhamente desprotegida, agora sem a sua presença perto de mim.
O comboio iniciou o seu percurso, acelerando à medida que percorríamos algumas zonas
periféricas da cidade. Ainda era noite, mas já se adivinhavam os vários tons que
precediam o amanhecer. Lembrei-me subitamente da necessidade de David em proteger-
se da luz solar, claramente um agente nocivo para aqueles da sua espécie. Talvez o receio
que lhe vi no olhar fosse exactamente o medo da luz solar, certamente ele sentiria o chegar
do amanhecer como algo ameaçador da sua integridade. Dei por mim a desejar que ele
111
tivesse chegado a tempo a algum sítio, para se proteger. Ele teria casa, certo? Algum sítio
para viver, provavelmente com os outros? Meu Deus, havia tanta coisa no mundo dele que
eu desconhecia… e quanto mais eu pensava, mais dúvidas me surgiam e mais queria
saber. Cada vez mais. E não devia, porque o mundo dele já me tinha trazido problemas
suficientes.
Voltei a abrir discretamente o envelope. Que quantidade de dinheiro estupidamente
exagerada!! Ali estariam, seguramente, perto de seiscentos euros… como se eu
conseguisse gastar todo este dinheiro numa semana. Nem que eu fosse às compras todos
os dias!! Shiva haveria de gostar dessa opção, sem dúvida, já a estava a imaginar a
programar tardes intensivas de loucura consumista, procurando as lojas mais excêntricas e
de renome. Pensar em Shiva fez-me sentir nostálgica, revendo mentalmente todos os
acontecimentos da minha atribulada madrugada. Sentia-me cansada e assustada, ainda não
estava em mim. Eu ia para uma cidade a cerca de seiscentos quilómetros de Paris e a única
pessoa que sabia onde eu estava nem sequer era humana. Era um vampiro sedento,
teimoso e misterioso, que se recusava a dar-me explicações e me tinha praticamente
exigido que me afastasse de Paris durante uma semana. Sozinha, sem ninguém saber do
meu paradeiro. Definitivamente, eu devia estar louca.
Mas que raio é que eu estou a fazer?
Eu já não me conhecia a mim própria. A Maria que eu conhecia não corria riscos desta
maneira. A Maria que eu conhecia era obstinada, realista e não se deixava levar pelas
convicções de outras pessoas. Se bem que ele não se poderia considerar outra pessoa, de
facto, nem sequer era uma pessoa. Seria esse facto uma justificação razoável para o meu
comportamento imprudente? Porquê? O que é que tinha mudado?
Tudo.
Foi entre perguntas e constatações imersas em dúvida e desconhecimento que me senti
adormecer, suavemente embalada pelo movimento do comboio e confortavelmente
apoiada no encosto do lugar onde me encontrava, absorta nos caóticos eventos decorridos
há cerca de uma hora atrás.
Seis horas depois chegava a Estrasburgo, após um sono intermitente interrompido pelos
mais variados ruídos, que me sobressaltavam exageradamente, de cada vez que acordava.
112
Sentia-me esgotada, sem forças para nada. Só tinha vontade de chorar, mas não podia, sob
pena de me abordarem, de me perguntarem o que se passava e, aí, eu não poderia
responder com a verdade dos factos. Portanto, pensariam que eu era louca.
Ao sair do comboio, tentei orientar-me e pensar em encontrar num táxi, que seria a única
forma viável de eu chegar ao hotel. Neste momento, não conseguia arriscar-me a utilizar
transportes públicos, estando eu numa cidade que desconhecia completamente.
Encontrei facilmente um táxi, dando as instruções do hotel da melhor forma possível, para
que eu me fizesse entender. Para meu espanto, a corrida até ao hotel não demorou muito,
tendo em conta que o hotel se localizava no centro da cidade. Rapidamente dei entrada,
debaixo do olhar curioso da recepcionista que, certamente, se perguntaria se eu teria com
algum problema, dado o aspecto miserável que eu deveria ter. Só agora reparava que, no
envelope que David me havia entregue, estava um comprovativo de reserva de quarto,
pelo que eu só tinha que mostrar o documento para receber a chave electrónica que
permitia a entrada na habitação.
Rapidamente, subi até ao quarto andar do edifício, procurando pelo quarto 411.
Felizmente não precisei andar muito para o encontrar pois estava somente a alguns metros
da saída do elevador. Ao entrar no quarto, constatei que era exageradamente grande para
mim. Tinha duas camas, uma bancada de apoio com uma cadeira, uma televisão
estrategicamente colocada no canto próximo da janela e uma ampla casa de banho que era
mais que suficiente para mim. Sentei-me à beira de uma das camas, deixando-me cair
lentamente para trás. Estava exausta e precisava urgentemente de dormir.
Sem pensar duas vezes, saltei para o duche e deixei os músculos relaxarem com o
contacto da água quente que saía, em jorro, do chuveiro. Já satisfeita e bem mais calma,
vesti o pijama e aninhei-me num dos enormes edredões que cobriam as camas, onde me
deixei estar até perder a consciência por completo.
Mais uma vez acordei sobressaltada, sem noção do local onde estava. Foi preciso
um esforço quase sobre-humano para constatar que era verdade. Sim, estava em
Estrasburgo. E eu era uma fugitiva sem razão aparente. Ainda era dia, pois a luminosidade
que emanava da janela era caracteristicamente solar e não proveniente do luar.
Sentei-me de rompante, procurando o telemóvel para poder ver que horas eram. Sim, de
facto era dia, meio-dia em ponto e hoje era segunda-feira. Arregalei os olhos, espantada.
Eu tinha dormido praticamente um dia e uma noite. Levantei-me e rumei à casa-de-banho,
113
considerando meter-me no duche novamente, enquanto relembrava, mais uma vez, os
acontecimentos da noite passada. Sinceramente já não sabia o que tinha sido pior, se o
olhar perturbante de Nevio, se a avalanche de emoções a que David me tinha sujeitado, se
a violência de seis horas de viagem a repercutir-se no meu corpo.
Por outro lado, sentia fome, pois já não comia há pelo menos vinte e quatro horas. Mas
antes, tinha algo bem mais importante para fazer – manter a farsa para esconder a minha
verdadeira localização. Sentia-me uma autêntica criminosa, como se tivesse cometido um
delito grave e agora mantinha-me escondida de tudo e de todos, excepto do meu comparsa
vampiro.
Assim, depois do duche, decidi enviar mensagens. Adèle foi a primeira, que me respondeu
de imediato a referir que não ficasse preocupada com as aulas e que aproveitasse para me
divertir com a minha família. Shiva já me tinha enviado uma mensagem, a perguntar-me
se eu estava melhor e a informar-me que a noite de convívio no Hard Rock Café tinha sido
genial, pois tinha travado inúmeras amizades novas. Aquela rapariga era impressionante,
simplesmente incansável.
E deixei ficar a farsa por ali pois tinha a sensação que, à noitinha, quando conversasse
com os meus pais ao telefone, iria ser bem pior.
Era hora de almoço e resolvi ir explorar as minhas opções alimentares.
Independentemente do que encontrasse, tinha dinheiro suficiente para almoçar e jantar
fora, todos os dias, no restaurante mais caro da cidade, pelo que não estava minimamente
preocupada. Ao chegar ao hall de entrada do hotel, constatei que era um espaço bastante
agradável. Na recepção, a simpática senhora que lá se encontrava informou-me que no
hotel tinham um sistema de refeições pré-pagas – com senhas – e que, como tal, podia
fazer ali todas as refeições diárias, sem ser necessário sair, obrigatoriamente, do hotel. De
facto, era bastante confortável.
Depois do almoço, que consistiu num saboroso e consistente prato típico francês
Andouille, voltava agora ao quarto, sem saber muito bem o que fazer. Sentei-me na cama
e liguei o televisor. Após dez fastidiosos minutos, constatei que estava aborrecida. O que é
que eu ia fazer com tanto tempo livre?
Devia estar nas aulas.
Era um pensamento que me fazia sentir culpada. Faltar às aulas, por razões que me eram
alheias. Eu só sabia o que ele me permitia saber - o que tinha que ser grave o suficiente
para ele me manter escondida a seiscentos quilómetros de Paris.
Sim, provavelmente seria mesmo grave. E sério.
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O meu pensamento não me levava para muito longe de Paris e das tarefas que deveria
fazer, nos sítios onde precisava de estar e não estava. Não. Precisava de alterar a minha
estratégia. Eu não podia sair de Estrasburgo, era uma espécie de segredo de estado, que só
eu e David partilhávamos. Relembrava-me muito nitidamente das palavras dele, referindo
que eu, aqui, estaria em segurança. Não tinha hipótese a não ser confiar nele.
E já agora que estava numa cidade que desconhecia, mais valia aproveitar, enquanto aqui
estava, para levar a cabo visitas culturais. Ia ser uma semana em cheio.
Nessa mesma tarde comprei um mapa de Estrasburgo, onde também podia
encontrar as mais variadas sugestões de locais para visitar. Comecei por sair do hotel, para
desembocar a quinze minutos dali na Place de la Catédral onde se situava um
extraordinário edifício que se denominava Le grand ange rose de Strasbourg. Era uma
elegante catedral gótica com uma fachada absolutamente maravilhosa. Toda a restante
tarde foi passada no interior da catedral, onde pude acompanhar algumas visitas guiadas
que revelavam todos os segredos e pormenores extraordinários que se escondiam em cada
estátua, em cada vitral, em cada pilar. Apesar de qualquer componente do interior da
catedral ter uma complexa história por detrás, o que mais me chamava a atenção era, sem
dúvida, o Relógio Astronómico – L’horloge astronomique – que consistia num misto de
ciência, tecnologia e arte e, segundo um dos guias, a peça de arte que melhor reencarnava
o espírito renascentista.
Já o sol se estava a pôr quando finalmente regressei ao hotel, preparando-me para o jantar.
Ainda que não estivesse particularmente ensonada, queria dormir descansada para
aproveitar o dia seguinte que iria ser dedicado inteiramente a passear por Estrasburgo.
Eram perto das onze horas da noite quando me decidi deitar, após ter conversado com os
meus pais ao telefone e de ter sido particularmente difícil mentir-lhes tão descaradamente.
Nessa noite praticamente não preguei olho. Era horrível estar deitada e não conseguir
dormir, principalmente à noite, quando o silêncio e a escuridão nos prega as maiores
partidas e os piores – e mais improváveis - cenários se tornam autênticas tragédias.
Desesperada, contava os minutos a passarem, olhava inúmeras vezes pela janela do quarto
à procura de nada nem ninguém em particular, confirmava várias vezes as horas, assim
como a chegada de zero mensagens no telemóvel… era simplesmente esgotante, não
conseguir dormir.
Quando finalmente começava a amanhecer, resolvi preparar-me para ir tomar o pequeno-
almoço e dar início à minha pequena odisseia pela cidade. Mal saí do hotel, pude constatar
que fazia um frio de rachar, excessivamente rigoroso para uma manhã de Março. Voltei a
115
desembocar na Place de la Catédral, mas hoje iria explorar outras zonas, pelo que
comecei por observar, mesmo junto à Catedral, a Maison Kammerzell, uma moradia
mercantil que se destacava pela sua construção massiva em madeira, com inúmeras
janelas minuciosamente esculpidas com as variadas figuras do Zodíaco, heróis da
Antiguidade Clássica e das lendas medievais, entre outras. Inclusivamente, foi numa
pequena loja de recordações onde entrei para pedir indicações que me informaram que
aquela sumptuosa moradia tinha uma quantidade tão elevada de janelas simplesmente para
ostentar riqueza, pois na altura em que havia sido construída, pagava-se imposto por cada
janela existente.
O meu dia na cosmopolita cidade de Estrasburgo estava agora a começar e foi passado em
locais como La Place du Marche-aux-Cochons-de-Lait, à qual se chegava facilmente
aproveitando uma das ruelas que saíam da Place de la Catédral; mais tarde, um passeio
pelo enorme Chateau Rohan, pela Place Gutenberg e, para terminar o dia em cheio, um
extraordinário passeio de barco pelo rio Ill, uma viagem que se revelou lindíssima.
Cheguei ao hotel já de noite, cansadíssima de toda a minha actividade cultural, em
formato intensivo. Estava verdadeiramente convencida que nessa noite fosse dormir
profundamente, mas estava enganada. Adormeci cedo, para acordar absolutamente
eléctrica às três horas da madrugada, sem forças para me obrigar a dormir novamente. A
carga de adrenalina que tinha a circular dentro de mim deveria estar a atingir níveis
absolutamente invulgares.
Mais uma vez, fiquei acordada até ao amanhecer, momento em que dava início a mais um
dia dedicado a explorar a cidade. Hoje, estava decidida a visitar uma zona que me parecia
bastante interessante pois já a tinha observado várias vezes nos postais que se
encontravam à venda no hotel. Era La Petite France e as suas pontes cobertas - Ponts
Couverts.
Foi fácil perceber quando me encontrava na Petite France, pois era, sem sombra de
dúvida, o espaço que mais beleza emanava, de tudo o que já tinha contemplado em
Estrasburgo. Percorri lentamente toda a área, sempre junto ao rio Ill, até atingir Le
Quartier des Tanneurs, onde existiam uns confortáveis bancos de jardim, num dos quais
me sentei por momentos, apreciando a vista que aquele recanto me proporcionava. Era
uma zona verdadeiramente mágica e, por momentos, desejei não ter que abandonar a
cidade nunca mais, onde certamente me perderia vezes sem conta.
116
CAPÍTULO 9 - LAÇOS
ESTAVA A CONTAR OS DIAS…E AS NOITES.
Hoje já era quinta-feira. De David, nem uma palavra. Nada.
Mais uma vez acordei para a minha rotina, nas pequenas férias que fui – literalmente –
obrigada a aceitar. Com a quantidade de desculpas e intrujices que já tinha proferido
durante os últimos dias, mais umas semaninhas e tornar-me-ia numa verdadeira mestre da
mentira. Era lamentável estar a mentir desta maneira por alguém e por algo que eu não
sabia o que era. Ainda. Eu não estava esquecida, ele tinha-me prometido respostas.
Só esperava que ele fosse fiel à sua palavra.
Todos os dias – e hoje não era excepção – a minha primeira acção matinal consistia em
ver se tinha alguma mensagem no telemóvel, que estava sempre com som, não fosse eu
deixar passar algum aviso durante o leve sono que dormia. Após constatar o óbvio :
0 mensagens novas – dava início à minha rotina: um duche rápido, vestir algo
confortavelmente quente, compor o cabelo e tentar esconder as marcas físicas de alguém
que tem dificuldade em dormir, que sente saudades de casa e que está desesperadamente
ansiosa. Ainda tinha uma quantidade enorme de dinheiro e certamente não o iria gastar
todo, pelo que, mais uma vez, retirei uma pequena parte para comprar as senhas das
refeições diárias.
Saí do quarto e dirigi-me ao elevador, pensando no que iria escolher para o pequeno-
almoço. Havia uma reduzida fila de pessoas na área das refeições, todas elas consistiam
em turistas, pequenas famílias com crianças ainda impertinentes do recente despertar.
Afinal, eram nove e meia da manhã. Sentia os olhos cansados, mas tinha uma séria
dificuldade em adormecer, principalmente à noite; como resultado de um sono nocturno
intermitente, durante o dia sentia um cansaço imenso, em especial depois das refeições,
quando regressava para o quarto e me deparava com um imenso nada para fazer.
E hoje não era excepção. Após um pequeno-almoço composto de lait au chocolat
acompanhado de croissant com doce de morango, regressava vagarosamente para o
quarto, lutando contra o sono que teimava em apoderar-se de mim. A sensação que tinha
era que não dormia há vários dias, – o que não era, de todo, incorrecto. Talvez hoje
devesse render-me ao descanso que o corpo me pedia. Ao chegar ao quarto, optei por
recostar-me na cama, descansar durante umas horinhas, para depois aproveitar a tarde e
visitar um pouco mais de Estrasburgo. Foi numa imensidão de planos e guiões de visitas
117
turísticas que adormeci profundamente, embalada pelos ruídos diurnos da calma cidade de
Estrasburgo.
Acordei por mim própria, para encontrar o quarto já coberto de uma luminosidade
branco-azulada, sinal de que já estava a anoitecer. Quantas horas teria eu dormido? Nove,
dez? Não sabia, mas sentia-me bem mais revigorada. Estirei-me preguiçosamente e
deixei-me estar, mantendo ainda os olhos fechados, deixando fluir o adormecimento que
ainda se ocupava de mim e pensando em que horas seriam. Faltaria muito para a hora do
jantar? Na verdade, já sentia um ligeiro apetite.
Como reflexo, procurei o telemóvel para ver que horas eram. Mal o encontrei, vi algo que
quase me fez parar o coração: 1 mensagem nova. Trémula, respirei fundo um par de
vezes até conseguir a concentração – e coragem – suficiente para clicar na tecla correcta e
ver a mensagem, que muito provavelmente seria de David.
E no visor o que aparecia era o seguinte:
Detalhes na Recepção.
David.
Típico. Pensei eu, com algum sarcasmo.
Era impressionante. Provavelmente ele já estaria em Estrasburgo, já tinha estado no hotel
e mantinha-me numa irritante ignorância. Dei por mim a sair do quarto e a dirigir-me ao
elevador, a caminho da recepção, pensando na forma mais adequada de abordar quem lá
estivesse. Ao sair do elevador, constatei que, de facto, subtileza e descontracção eram
duas características que eu tinha dificuldade em combinar.
- Eh… alguma mensagem para o quarto 411?
- Nome, por favor.
- Maria Aires Brito.
- Aqui tem.
- Obrigado.
A mensagem consistia num envelope igual ao que David me tinha entregue na estação de
comboios em Paris, pelo que era mais uma confirmação de que a mensagem era mesmo
dele e estava endereçada a alguém com o meu nome - Maria. Com um nervoso miudinho a
apoderar-se de mim, apressei-me a voltar para o quarto, optando agora pelas escadas, pois
estava demasiado impaciente para esperar pelo elevador.
118
Entrei no quarto e sentei-me na beira da cama, constatando que estava bastante ansiosa e
trémula com a expectativa de ler o que escondia o interior do envelope. Pelo aspecto, o
conteúdo deveria consistir somente numa folha de papel. Decidida, abri-o, para encontrar
uma breve mensagem:
Às 21.30 h . Place de la Catédral.
David.
De facto, um simples detalhe. Um encontro.
Finalmente ia ter as minhas respostas, pensamento que me fez esboçar um leve sorriso.
Reli a mensagem. Place de la Catédral. Sim, eu já sabia onde era, tinha passeado por lá
todos os dias, enquanto visitava a cidade. Durante quatro longos e penosos dias.
Não pude evitar reparar na frieza da mensagem. Nem olá, nem estás bem, somente uma
comunicação, o dito “detalhe”, sem mais. Constatar esta realidade entristecia-me
inexplicavelmente, embora não me surpreendesse. Então, ele é um vampiro, não poderia
imaginar mensagens inundadas de adjectivos calorosos, como eram as de Shiva, ou as de
Adéle, ou até de quaisquer outros colegas… humanos. Não me podia esquecer que ele não
era humano e que, portanto, nunca poderia agir como um deles. Ainda assim, depois de
tantos episódios com David, parecia impossível que ainda me deixasse surpreender com a
sua frieza e o seu mistério. Mas ainda assim, esquecia-me. Constantemente.
Olhei para as horas. Eram vinte horas e trinta minutos. Talvez fosse melhor ir jantar,
preparar bem o estômago para o célebre encontro – ou, melhor caracterizado, como sessão
de esclarecimentos – na tão famosa Place de la Catédral. Na verdade, a última coisa que
me apetecia fazer neste momento era comer.
Praticamente piquei o jantar e às nove horas da noite já estava de volta ao quarto. Tinha
algo a constrangir-me o corpo e a alma, chamava-se David e era um vampiro. Não sabia o
que esperar deste “encontro” e estava a sentir-me estupidamente ansiosa. Alguns minutos
mais tarde sentia-me ridícula, por estar a deixar que a simples presença dele me afectasse
tanto. Talvez fosse pelo facto de ele ser um vampiro, ou talvez fosse a expectativa das
revelações que ele me tinha prometido. Sim, provavelmente era isso.
119
Aproximei-me da janela do quarto e abri-a lentamente para verificar como estava a noite.
Excepcionalmente fria. Corria uma brisa leve mas cortante e, como tal, eu teria que sair
bem agasalhada. Encerrando novamente a janela, dirigi-me à casa-de-banho e observei
com algum detalhe a minha imagem reflectida no espelho. Transbordava agitação. Não
era típico de mim lidar desta forma com as situações. Quão diferente eu era agora?! O que
eu daria para ser um pouco da Maria que eu conhecia, calma e serena, capaz de lidar com
o maior sangue-frio com qualquer situação que se apresentasse!! Mas esta “situação” não
era comum, longe disso. E essa invulgaridade tinha-me modificado, exigindo de mim
outras atitudes, outros sentimentos, outras emoções.
Tentei pentear-me, dando uma forma aceitável ao cabelo, enquanto colocava uma espuma
controladora de volume que ainda não tinha experimentado (aconselhada por Shiva),
apesar de o cabelo dela ser excepcionalmente liso e sem volume, exactamente o oposto do
meu. Se queria conselhos de cosmética, seguramente seria ela a fonte mais actualizada
sobre o assunto.
Olhei para o que trazia vestido: camisola de lã rosa claro, calças de ganga e confortáveis
botas a condizer, um todo aconchegante. Só faltavam agora os meus indispensáveis
acessórios para poder sair e não congelar, ou seja, o volumoso cachecol dos mesmos tons
e as luvas que o acompanhavam. Preparei-me para sair, procurando não me esquecer de
nada enquanto vestia o casaco – o telemóvel, as chaves e…o envelope com a
“mensagem”, ainda que duvidasse que fosse precisar dela. Ainda olhei mais uma vez para
a minha imagem ao espelho. Estava na hora de receber as minhas respostas.
Saí do hotel e encaminhei-me, calmamente, pelas ruas de Estrasburgo, pelo
caminho que eu já conhecia, que já tinha repetido durante quatro dias. Não encontrei
ninguém na rua, à excepção de um senhor idoso que passou por mim com uma expressão
desejosa de chegar ao conforto do lar, claramente visível na sua face engelhada. A cidade
estava calma, imersa num silêncio imponente, ouvindo-se somente a leve brisa que,
ocasionalmente, fazia mover as árvores e quebrava o silêncio da noite. Alguns momentos
depois fui invadida pelos discretos ruídos do rio Ille, que fluía tranquilo, chamando-me a
atenção. O luar reflectia na superfície da água, dando-lhe um aspecto quase celestial, de
uma beleza extraordinária. Senti uma vontade quase inexplicável de ficar ali, a contemplar
o rio e a sua perfeição, como se nada mais importasse.
Olhei para as horas, eram nove horas e vinte minutos. Eu ia chegar antes da hora.
120
As ruas por onde passava agora estavam completamente vazias, a única companhia que
tinha era a luz proveniente dos candeeiros e das inúmeras lojas que ia encontrando ao
longo do caminho. Estava a aproximar-me da praça e hesitei levemente quando vi que
tinha que percorrer a rua lateral da Catedral, que estava muito pouco iluminada. Ocorreu-
me, naquele momento, a possibilidade de a mensagem não ser de David.
E se for uma armadilha?
Pensar nesses termos fez-me hesitar e abrandei o passo até parar completamente, mesmo
antes de cruzar a esquina que me levaria à rua lateral. Será que algum dos outros
descobriu onde eu estava e está aqui para me apanhar? E David? E… eu?
Por um lado, senti-me a fraquejar e considerei, por breves instantes, voltar para trás, mas
por outro, tinha a completa noção de que estava a ser extraordinariamente cobarde e a
desconfiar das certezas absolutas que David me tinha prometido. Teria que arriscar.
Agora sentia, novamente, aquela segurança, aquela convicção que me dizia para ir em
frente, para confiar nas palavras dele, como já o tinha feito outras vezes.
Inspirando fundo, encaminhei-me firmemente para a Praça da Catedral, já conseguia ver a
Maison Kamerzell e os inúmeros cafés que animavam aquela pequena área.
Ao chegar à Praça, constatei que não estava sozinha, o que me acalmou parcialmente.
Estavam várias pessoas sentadas alegremente a conversar nos vários restaurantes e cafés,
enquanto outros passeavam sem pressa, sem se encaminharem numa direcção concreta.
Olhei em meu redor e novamente para o meu relógio. Eram exactamente vinte e uma
horas e vinte e cinco minutos e não via sinal dele em sítio algum.
Estava exactamente no centro da Praça, com a Catedral por trás de mim, sentia-me algo
exposta. E agora? Bem, teria que esperar. Olhei novamente em meu redor, tentando
encontrar um sítio recatado e discreto onde me pudesse sentar.
Não tive tempo para chegar a uma conclusão, porque repentinamente ouvi uma voz
exactamente atrás de mim.
- Chegaste mais cedo.
Aquele sotaque inconfundível. David. Instantaneamente senti o meu ritmo cardíaco
acelerar. Virei-me repentinamente, para encontrar a sua misteriosa face, que escondia uma
ligeira satisfação sob a forma de um discreto sorriso. Restava, agora, saber porquê. Não
pude evitar ficar algo surpreendida.
- Tu também.
- Já cá estou há algum tempo - informou ele.
- Ah…
Já calculava.
121
Olhei-o com alguma surpresa. Ele estava diferente; menos sombrio, menos frio, mais
expressivo, mais… leve, como se tivesse sido aliviado de um fardo pesado e prolongado.
Ainda que mantivesse as marcas físicas tão características da sua espécie, hoje ele parecia
alguém bem mais alegre, alguém que, finalmente, podia ser ele próprio. Definitivamente,
nem parecia o mesmo. Até a voz dele admitia um timbre bem mais afável.
Como sempre, vestia as suas escassas e escuras peças de roupa, como se estivéssemos
numa amena noite de Primavera de um país tropical.
- Vamos? - Sugeriu ele.
- Onde?
- Caminhar. Tenho uma promessa a cumprir, não me esqueci - referiu ele, como se fosse
uma constatação muito óbvia. Por um lado, estava grata que tivesse sido ele a relembrar-
se da sua própria promessa. Sem dúvida, facilitava-me a vida.
Começámos a caminhar lentamente lado a lado, na direcção de La Petite France.
Estávamos a aproximar-nos do rio, pois já conseguia ouvir o barulho da ondulação a
embater no passeio. Não pude deixar de comentar a leveza que dele emanava.
- Estás… bem disposto.
- É esta cidade. Tem este efeito em mim - afirmou ele, mais como um desabafo.
- O que tem de especial?
- É uma cidade muito controlada. Nós só podemos entrar aqui com permissão.
- Vocês?...
- Sim. É a única cidade no país onde os humanos não são… caçados.
Não pude evitar sentir-me aliviada com a sua constatação, embora não fizesse ideia do
porquê dessa realidade.
- Porquê?
- Aqui é a residência de um… indivíduo importante da nossa espécie, o chefe de estado
francês. É a nossa autoridade máxima. É muito exigente e não permite a alimentação em
humanos na cidade.
- Por isso é que me trouxeste para aqui?
- Sim.
Ainda que não compreendesse totalmente toda esta realidade, estava a tornar-se mais
esclarecedora e, agora sim, era o momento de colocar as perguntas correctas, enquanto
caminhávamos pelos calmos passeios à beira-rio.
- Mas…o que é que se passou?
122
- A realidade é muito complexa, Maria - afirmou ele, enquanto olhava para nada em
concreto. Mais uma vez, a sua afirmação mais parecia um desabafo e admitia um tom
triste que não me era estranho de todo.
- Eu… imagino que seja.
- Eu não sou companhia para ti…nem o que me rodeia - disse ele, enquanto me olhava
com a tão característica intensidade no seu olhar, deixando-me sem palavras. O tom de
voz dele era sério, o que deixava adivinhar a austeridade das palavras que ele pretendia
empregar.
- A tua vida tem estado em risco desde que testemunhaste actividades da minha espécie.
Nós, vampiros, vivemos como uma sociedade, tal como a vossa e… entre vocês. Desde o
pôr-do-sol até ao amanhecer, partilhamos o mundo com os humanos, mantendo um
equilíbrio delicado. Contudo, há regras e leis que têm que ser obrigatoriamente cumpridas
para que o sistema funcione. E aqueles que querem fazer parte dele são obrigados a aceitar
e a cumprir as regras.
Eu, Nevio, Pierre e Gustave somos responsáveis por vigiar uma das zonas periféricas de
Paris, que inclui Montmartre, Sacré-Coeur, até à Boulevard Clichy. Basicamente nós
controlamos qualquer actividade inadequada ou reveladora da nossa espécie. Outros como
eu são responsáveis por controlar outras áreas e, desta forma, Paris está constantemente
vigiada e o segredo da nossa espécie salvaguardado. Este sistema funciona e existe em
todas as cidades e países da Europa. Desta forma, a nossa existência é manejável e não
arriscamos exposição, deixando o conhecimento da nossa espécie a um número de
humanos muito restrito e controlado.
- Então e… quando alguém vê o que não deve? - Arrisquei eu, embora já imaginasse que a
resposta não iria ser, de todo, optimista. David olhava-me de soslaio, numa tentativa de
encontrar a forma mais suave de me comunicar algo desagradável.
- Quando um humano testemunha qualquer tipo de actividades da minha espécie, deverá
ser obrigatoriamente silenciado. É esse o meu dever, assim como o dos meus colegas.
- Ah!!
Não pude evitar sentir um arrepio na espinha ao adivinhar o fatal destino a que t inha
escapado. Por agora.
- A primeira vez, em Montmartre, percebi que não foi significativo, mas depois…
começaste a fazer perguntas – esclareceu ele.
- Como é que soubeste?
123
- Eu sei de tudo o que se passa com as minhas vítimas – explicou ele, enquanto olhava na
minha direcção, como se fosse uma constatação muito óbvia. Talvez eu tivesse razão e ele
fosse mesmo omnipresente. Ou então, muito bem informado. E continuou.
- Mas as coisas complicaram-se naquela noite na Cité Universitaire quando viste mais…
explicitamente o que estávamos a fazer. E aí, nós tínhamos o nosso dever para cumprir,
independentemente do acaso que te levou àquele sítio, naquele exacto momento.
O olhar dele era, agora, sério e vi-o respirar fundo antes de continuar.
- Foi a partir daí que começaram, efectivamente, os problemas. Eu responsabilizei-me por
tratar do assunto, mas a tarefa revelou-se bem mais… complexa do que eu estava à
espera. Eu…
Eu olhava-o perplexa enquanto ele hesitava, procurando claramente as palavras
correctas para pronunciar. David contemplava, agora, a superfície da água que corria,
calma, ao nosso lado.
- Eu… simplesmente não consegui fazê-lo. Não me parecia correcto, porque tudo não
passava de uma casualidade. Por isso… levei-te para casa.
- Sim, eu lembro-me muito bem desse momento - afirmei eu, enquanto relembrava as
imagens daquele terrível episódio.
- Estavas francamente assustada, se bem me lembro - sorriu ele, levemente.
- Tinha boas razões para estar assustada.
- Seja como for, na semana passada quando cheguei a casa, tinha uma massa muito
revoltada à minha espera. Nevio viu-te e ficou muito encolerizado, porque obviamente
pensava que eu já tivesse tratado do assunto. De ti. Foi uma confusão. Nevio censurava-
me em italiano e os outros…bem, o olhar deles era de óbvia reprovação.
- E então?
- Então, fomos pedir aconselhamento ao nosso superior e tutor, Lothaire La Croix. É ele o
responsável pela vigia da nossa área em Paris, é ele que autoriza e monitoriza todas as
nossas actividades, contacta com os responsáveis pelas outras zonas e, desta forma,
funcionamos como um todo, praticamente sem falhas. Lothaire é um vampiro bastante
ancião e muito inteligente, tem as suas capacidades refinadíssimas. Graças à sua enorme
compreensão, ele disponibilizou-se a ouvir-me, apesar do escândalo que Nevio incitou.
- E o que é que lhe disseste?
- Primeiro expliquei-lhe como se tinham passado as coisas na Cité, incluindo que os meus
colegas tinham sido bastante irresponsáveis em alimentar-se daquela forma. Procurar
presas e expor-se daquela maneira é um erro infantil para vampiros da nossa idade.
124
Depois, argumentei que um humano não deveria ter que pagar com a vida pela
irresponsabilidade deles.
Apesar de tudo, já esperava que a reacção dele não fosse a melhor. Ficou muito sério,
irritado e…claramente desiludido comigo, connosco. Em vinte anos de ensinamentos,
nunca algo assim tinha ocorrido. Nem uma falha, nem um engano, nem uma hesitação.
Por fim, ele comunicou-me o que eu já sabia: teria que obedecer às regras,
independentemente das circunstâncias. Teria que silenciar-te.
Seguiu-se um silêncio desagradável, enquanto David olhava com seriedade para
um ponto perdido algures à sua frente, antes de continuar.
- Eu tentei, várias vezes. Eu tentei...
A sua face era agora um espelho de dor e frustração, contemplando o vazio com
uma expressão de culpabilização que me surpreendia.
- …Mas…não conseguia.
- Era por isso que aparecias à porta do meu prédio? Para…
- Sim… – sussurrou ele.
Perceber agora as verdadeiras intenções das suas esporádicas visitas chocava-me
ainda mais, embora não me surpreendesse de todo. Suspeitar de algo estranho era
claramente diferente de confirmar os factos e, agora, tudo fazia sentido. A sua postura, as
suas expressões, a sua antipatia, o seu evasivo discurso e o mistério que o rodeava, tudo
não era mais do que um estranho conjunto de circunstâncias cujo objectivo
era…aniquilar-me. Agora, relembrava-me do quão ignorante e imprudente tinha sido
naquelas noites em que decidira ir “conversar” com ele.
- Como é que conseguiste… não o fazer?
- Não sei. Provavelmente pensavas que eu era louco.
- Talvez mais…estranho, assustador…e arrepiante.
- Seja como for, ou era eu a tratar do assunto ou…eram eles. Isso, então, seria impensável.
Eu não podia deixar que eles tratassem de ti. Seria… cruel. E foi por isso que eu apareci à
tua janela àquela hora da madrugada. O resto… bem, já sabes como foi.
Cruel. Era uma palavra que pressupunha muitos significados, que eu nem queria
imaginar o que poderiam, realmente, implicar. Contudo, muito provavelmente relacionar-
se-iam com algo semelhante ao que tinha ocorrido àquele rapaz, naquela fatídica noite na
Cité Universitaire.
- E nestes dias, o que é que se tem passado?
- Depois de te deixar na estação de comboios, assegurando-me de que já estavas segura, a
caminho de Estrasburgo, voltei para casa e fui falar com Lothaire. Claro, praticamente
125
nem foi necessário falar porque foi suficiente o olhar dele para adivinhar o que eu tinha
feito.
- Ele consegue fazer isso?
- Sim, quanto mais velhos são os vampiros mais… perspicazes são. Ele limitou-se a olhar-
me, apesar de eu ainda ter começado explicar-lhe o porquê da minha atitude e as minhas
razões.
- E…?
- E ele avisou-me acerca das consequências de desobedecer directamente às regras.
- Consequências?
- Sim, por desobedecer a uma ordem expressa eu tenho que responder a instâncias acima
do meu tutor. É algo semelhante aos julgamentos, na vossa sociedade.
- E o que é que isso significa, concretamente?
- É… uma espécie de pró-forma, nada de especial.
- Claro, “nada de especial” - referi eu, com algum sarcasmo. Como se eu acreditasse que,
no mundo dele, algo fosse assim tão simples. - E não há hipótese de…
- Maria, tudo isto já atingiu um nível do qual não é possível retroceder - interrompeu-me
ele, com seriedade na voz e no olhar. - Mas… eu tenho estado a tentar pensar numa
solução que provavelmente vai funcionar.
- Que provavelmente vai funcionar?
- Maria, tens que compreender que, no meu mundo, certezas é algo que não existe.
Pois, e no meu também não.
- E que solução é essa?
- Eu pedi uma audiência para o nosso chefe de estado, Philippe Vignet. Ele é o chefe-
máximo, é ele que detém toda a autoridade em França e, felizmente, acedeu em ouvir-me
– declarou, firmemente.
Uma audiência com o chefe de estado vampiro. Ele estava, seguramente, louco e eu…
estava metida numa linda confusão.
- E o que é que lhe vais dizer? - Disparei eu, com óbvia preocupação e ansiedade na voz,
sentindo-me claramente oprimida, de tal modo que parei de caminhar para encontrar o seu
olhar.
- Não precisas de te preocupar com isso, já tenho tudo pensado.
- Não preciso de me preocupar? Como é que podes dizer uma coisa dessas?
- Maria, ouve! - Interrompeu-me ele, novamente, enquanto me fitava fixamente e me
segurava o meu braço esquerdo, como se quisesse assegurar-se que eu não fugia. - Se há
alguém que pode alterar esta realidade, é ele. Pode poupar-te a ti e absolver-me a mim.
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- Mas e se…
- Não podes pensar assim.
- Não consigo pensar de outra maneira! - Exclamei eu, visivelmente descontrolada,
enquanto me tentava libertar dele. Estava assustada. E tudo isto era demasiada informação
para eu conseguir gerir assim tão… repentinamente. Olhei em meu redor. A noite
continuava calma, sem um único ruído; o luar reflectia na superfície do rio Îll que, agora,
se encontrava a escassos metros. David permanecia estático, sem se mover, dando-me
espaço para me movimentar e olhava-me com óbvia curiosidade. Olhei-o por alguns
momentos. As roupas escuras que trazia, junto com o seu negro cabelo salientavam a
palidez das suas feições, assim como a intensidade do seu olhar, que era…ofuscante. Este
era um daqueles momentos em que a sua transparência era incomodativa, mas agora, não
pelas piores razões, pois dele emanavam preocupação e … afecto.
- Preciso de me sentar - sussurrei eu, enquanto me dirigia a um banco de madeira próximo
de nós, à beira-rio. Ao sentar-me, verifiquei que David já se encontrava sentado ao meu
lado, com uma expressão pesada na face.
- Eu sou o responsável por te ter envolvido nesta situação. O mínimo que posso fazer é
tirar-te dela.
Viva, de preferência, pensei eu, de forma imediata, ao processar as suas palavras.
Estava demasiado atónita para elaborar qualquer tipo de raciocínio, por muito elementar
que fosse. Foi David que interrompeu o pesado silêncio que nos rodeava.
- Se tens perguntas, agora é a altura certa para as fazer.
- Estou… assustada.
Não era uma pergunta. Simplesmente verbalizava o que sentia naquele momento,
enquanto olhava fixamente para a mínima ondulação que se formava ocasionalmente à
superfície do rio.
- Não te vou dizer para não te sentires assim. Só te posso garantir que não estás sozinha
nesta… situação.
- Obrigado… acho eu - sussurrei, enquanto olhava na direcção dele, à minha esquerda.
Seguiu-se um silêncio de alguns momentos, necessário para me consciencializar do que
ele me tinha informado. David não me interrompeu, nem proferiu nenhuma palavra,
simplesmente se limitou a esperar que eu o abordasse novamente.
- Há algo que eu não compreendo – desabafei eu, repentinamente, captando a sua atenção.
- O que é?
- Porque é que me envolveste nesta situação? Porque é que não conseguiste… tratar de
mim?
127
- É uma pergunta difícil… - expirou ele, com uma expressão frustrada na face.
- É?
- É…
Senti-o a hesitar. E eu já sabia o que isso significava.
- Se não quiseres responder, não respondas - afirmei eu, secamente.
- Não é que eu não queira. O problema é que… eu não sei a resposta.
Fiquei chocada. Não acreditava no que estava a ouvir.
- Estás a tentar dizer-me que não sabes porque é que me meteste a mim… e a ti nesta
situação? Desculpa, mas tenho muita dificuldade em acreditar nisso.
- Não estou a mentir. Eu, simplesmente, não sei.
Era muito difícil acreditar que ele não soubesse a razão que o movia. Não, era
mesmo impossível. O que estaria ele a esconder? O que seria assim de tão desconhecido
que levasse um vampiro a desobedecer tão cegamente às ordens rígidas e inflexíveis às
quais era obrigado a aceder, sabendo as consequências que o esperavam? Olhei-o e,
surpreendentemente, vi na sua face, um reflexo límpido da sua alma, que não escondia
absolutamente nada. E, pude constatar que, de facto, ele não sabia mesmo as razões que
estavam por detrás da sua recente rebelião. O amargurado olhar que dele emanava,
encontrava agora o meu.
- Maria… eu guio-me pelos meus instintos. Mas não sei a razão pela qual eles me
impedem de te aniquilar.
- Mas não te impediram de aniquilar outras vidas.
- É… diferente.
- Não estou a ver como é que pode ser diferente…
- Maria… - interrompeu-me ele, mais uma vez, olhando-me fixamente. - …alguma vez
sentiste um impulso súbito e estranho que conduzisse a tua força de vontade de uma
forma… incontrolável?
Ora aí estava algo que eu não conseguia explicar… e ao qual também não
conseguia reagir. Palavras subjectivas e graciosas, entrelaçadas num discurso elegante,
debitado por uma criatura capaz de aprisionar qualquer olhar humano de uma
forma…extraordinária. Obviamente, não fui capaz de concluir nada acerca do tal impulso
incontrolável capaz de aprisionar intenções. Mesmo que quisesse. Com muita força.
- Vocês são criaturas muito estranhas - concluí eu, em tom de desabafo, sem coragem para
admitir que não fazia ideia do que ele falava. - Já te tinha acontecido antes?
- Não…
- Vês? É isso que eu não entendo – desabafei eu, novamente consternada.
128
- Eu também não…e acredita que é tão frustrante para ti como para mim - disparou ele na
minha direcção, como se constatar essa realidade o enfurecesse. O olhar dele agora
centrava-se num ponto distante, algures na superfície do vasto rio Îll.
- Não tens perguntas mais fáceis? - Brincou ele, enquanto esboçava um leve sorriso na
minha direcção.
Perguntas!! Nem sequer fazia ideia por onde começar. Fiz um esforço para me relembrar
das minhas pesquisas há alguns meses atrás, das dúvidas que me surgiram, assim como da
mais recente informação que David me tinha proporcionado. Foi com alguma dificuldade
que consegui elaborar uma pergunta que seria, sem dúvida, fácil para ele responder, pois
relacionava-se com as estranhas capacidades da sua espécie.
- Quando te referes à perspicácia dos vampiros, o que é que isso significa…
concretamente?
- A perspicácia é proporcional à idade, como já te tinha referido. Ser perspicaz consiste
em ter a capacidade de perceber o estado de espírito dos outros, tanto vampiros como
humanos. Claro que é muito mais fácil em humanos…
- Estado de espírito?
- Sim, determinadas sensações facilmente exteriorizáveis. Por exemplo, culpa, raiva,
alegria, medo, nervosismo…
- E tu, consegues…?
- Alguns… aqueles mais óbvios, mais… explícitos. Mas também depende da pessoa, se é
mais expressiva, é-me mais fácil interpretá-la; se é mais reservada é mais complicado
discernir o que sente.
Ao ouvi-lo, dei por mim a pensar se ele conseguiria ser assim tão perspicaz em relação aos
meus variados estados de espírito, não só agora mas também das inúmeras vezes que
experimentava variados sentimentos… especialmente quando estava com ele. Dada a
minha inerente transparência, não era muito difícil concluir que sim. Hum…
Seguramente.
- Além do mais, é uma capacidade que se refina com a idade e eu... ainda sou muito
jovem.
- És?
- Sim, sou um vampiro bastante jovem. Nasci em 1944. Mas só sou… assim, há quarenta
e dois anos – asseverou ele, referindo-se a si mesmo como se fosse portador de uma
característica vergonhosa.
- Então, foi…
- Aos vinte e cinco anos de idade. Foi nessa altura que fui…transformado.
129
- Como é que… aconteceu?
- Bem… eu era o filho mais velho de uma família modesta. O meu pai tinha uma livraria
familiar onde eu trabalhava. Londres não era uma cidade muito segura nos finais dos anos
sessenta e, uma noite, eu tive que ir ao armazém tratar de umas encomendas e…fui
apanhado.
- Apanhado?
- Assaltantes. Viviam-se tempos difíceis e certamente pensavam que eu teria dinheiro
comigo. Como não tinha… esfaquearam-me algumas vezes e deixaram-me ali para
morrer. Até que fui encontrado por aquele que me transformou.
A sua face era um espelho de sofrimento, o que revelava, sem dúvida, o quão lhe custava
relembrar aqueles acontecimentos.
- E, aqui estou eu - concluiu ele, com um ligeiro sorriso.
- O que te trouxe a França?
- Cumprir uma sentença.
Não pude evitar mostrar-me espantada com a sua afirmação, até que o ouvi continuar.
- Nos meus primeiros tempos como vampiro, o meu comportamento não era o melhor.
Eram muitas regras para cumprir, pouca liberdade e muita falta de controlo, a todos os
níveis… a dieta, a limitação horária, as novas capacidades… era tudo muito difícil de
gerir. O meu criador deu-me ensinamentos básicos para a sobrevivência, mas as
limitações sociais eram as mais difíceis de suportar. Quando ele me informou que eu
estava proibido de voltar a ver a minha família, tive muita dificuldade em aceitá-lo, por
isso…alguns meses após ter sido transformado, quebrei essa regra.
Encontrei os meus pais, irmão e irmã, ainda a chorarem a minha perda. Mas a dor da
minha mãe…eu senti a dor dela de tal modo que pensei que me incapacitaria para sempre.
E…não tive coragem de me revelar, eles não entenderiam o que eu era nem no que me
tinha tornado. Mas… ainda visitei outra pessoa nessa mesma noite.
- Quem?
- A minha noiva. Nós estávamos noivos quando eu “desapareci”. Ela era…ainda é
enfermeira. Encontrei-a já casada e grávida. Presumo que tivesse recuperado rapidamente
da minha perda. - O seu tom era agora irónico e simultaneamente triste.
- Nessa noite ela estava sozinha e…eu não resisti e mostrei-me. Apareci do nada e
perguntei-lhe se ela era feliz.
- E ela?
- Ela perdeu os sentidos - revelou ele, com um sorriso amarelo. - Acabei por deitá-la no
chão e fui-me embora. Nessa noite ainda fiz uma última visita ao cemitério para visitar a
130
minha própria sepultura… onde fiquei, basicamente a culpabilizar-me até que… fui
encontrado.
- Pelo teu criador – alvitrei eu.
- Sim. Ele… tratou de decidir qual seria a minha sentença. Honestamente, estava tão
chocado com os acontecimentos dessa noite que estava completamente indiferente ao que
se iria passar. Só nessa noite percebi o porquê da necessidade de cumprir as regras que eu
tão obstinadamente quebrei.
- E qual foi a sentença?
- Fui banido do meu país e condenado a um mês de circulação sem alimentação sob a
supervisão do governo Francês. Foi aí que conheci o meu tutor, Lothaire e a instância
acima, Läis.
- Circulação? – Repeti eu, sem compreender ao que se referia.
- Consiste em vaguear entre os humanos durante a noite. Sem alimentação – esclareceu
ele, com uma expressão dolorosa no rosto.
- Isso…deve ser muito…difícil de suportar – balbuciei eu.
- É, bastante.
- E… Läis, conhece-la?
- Sim. Mas só a vi algumas vezes.
- Como é que ela é?
- Bem, ela é…bastante rígida.
- Rígida?
- Extremamente inflexível. É a vampira mais antiga que eu conheço e a autoridade
máxima em Paris. Todos respondem perante ela, incluindo Lothaire e os seus semelhantes,
por isso… imagina o poder dela.
- Ela sabe o que se está a passar?
- Não precisamente. Ela não sabe concretamente o que se está a passar mas pressente a
agitação em que nós nos encontramos, por isso toda esta situação não lhe é completamente
alheia.
- Ainda ninguém lhe disse?
- Ela não precisa que alguém lhe diga porque, como uma verdadeira anciã, ela capta
qualquer alteração mínima na nossa estabilidade individual, revelando-nos facilmente.
Mas Lothaire é obrigado, por lei, a informá-la das ocorrências assim que ela chegue da sua
viagem.
- Ah, ela tem estado ausente… Tenho a sensação que ela, quando voltar, não vai ficar
muito contente com os últimos acontecimentos.
131
- Sem dúvida nenhuma, vai ficar bastante enfurecida. Ela não gosta de ser contrariada.
- Então e…os teus colegas?
- Bem… Nevio… conheci-o quando fui banido do meu país, porque ele estava
exactamente nas mesmas circunstâncias. Ele foi banido de Itália por ter quebrado as
regras…duas vezes. Aparentemente, os italianos são mais brandos no julgamento por
desobediência.
- O que é que ele fez?
- O “nascimento” de Nevio não foi muito agradável, pelo que me constou. Ele não gosta
de falar disso. Aparentemente, o seu criador não o “educou” adequadamente e ele não
conseguia lidar com as suas novas necessidades… e acabou por cometer dois erros graves.
Um deles foi…alimentar-se de alguém à vista de todos; o outro…bem, foi semelhante ao
meu. Então, o governo italiano baniu-o e enviou-o para França, onde foi novamente
julgado e sentenciado por Läis a um mês de exposição durante o dia, sem alimentação.
- Exposição durante o dia? Mas eu pensava que…
- Pois, por isso deve ter sido extremamente agonizante - interrompeu-me ele, com um
semblante sério e continuou. - Cerca de uma hora antes do amanhecer, nós começamos a
sentir a temperatura a aumentar e, à medida que o amanhecer se aproxima, torna-se…
sufocante. Por isso, não consigo sequer imaginar como terá sido para Nevio cumprir a
sentença, encerrado num cubículo perdido em Paris, num terceiro andar, com janelas e
portas não estanques. Foi certamente um mês bastante penoso.
- Mas não serão essas sentenças um pouco… excessivas?
- Não fiques tão surpresa. Läis tem razão, até certo ponto. Têm que haver regras estritas
para que possamos funcionar como uma sociedade civilizada e alguém tem que assegurar
que nós não pisamos o risco. Se assim não fosse, o nosso comportamento seria caótico,
grotesto e extremamente perigoso para a vossa espécie. Não seríamos mais do que grupos
desorganizados de criaturas, aterrorizando a existência dos seres humanos durante a noite,
um pouco como o folclore nos descreve.
O tom dele revelava uma enorme amargura por detrás das palavras que tinha
acabado de proferir, enquanto pausava o seu discurso, momentaneamente. Foi a minha
intervenção que interrompeu o silêncio que se abatia sobre nós.
- Deve ser muito difícil para vocês lidar com… tudo.
- É, especialmente no início. Contudo, à medida que amadurecemos começamos a
acostumar-nos e, eventualmente, acabamos por aceitar a nossa condição, com tudo o que
ela envolve. Não que tenhamos muitas mais alternativas…
- E os outros?
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- Pierre e Gustave? Eles são os vampiros bem-comportados, trabalham comigo. Ou, por
outras palavras, asseguram-se que nós não pisamos a linha. Afinal, eu e Nevio já temos
cadastro - afirmou ele, com alguma tristeza. - Nós os dois somos… os proscritos.
O semblante dele reflectia uma marcada melancolia e algum pesar. Não deveria ser nada
fácil, um britânico e um italiano, com um historial conhecido de insubordinação, banidos
do seu próprio país, vigiados pela própria espécie como se fossem animais.
- O que é mais difícil para ti? Como vampiro…
- O que mais me custa na minha condição é não poder ver nem saber nada da minha
família. Emocionalmente, é… penoso, embora já tenha aprendido a lidar com essa dor. A
aproximação do amanhecer também é, fisicamente, bastante dolorosa…e a alimentação, às
vezes… é difícil.
O semblante de David era, agora, bastante sério.
- Mas não há alternativas a… nós?
- Infelizmente… não. Já experimentámos várias alternativas…substitutos, animais, sangue
clonado. Mas nada é tão saciante como o sangue humano. Presumo eu que talvez seja dos
variados elementos que existem na vossa circulação, cuja presença é inexplicavelmente
irreproduzível de forma artificial. Por isso, restam-nos os bancos de sangue e a
alimentação… da forma que já viste.
- Mas… e o sangue que obtêm dos referidos bancos? Provêm de dadores humanos!
Deveria ser… suficiente.
- Pensava-se que sim, mas infelizmente… não. A alimentação em humanos é…
indispensável mas, felizmente, ocasional.
- Ocasional?
- Grande parte das nossas necessidades pode ser satisfeita através do sangue proveniente
de dadores. Só quando nos sentimos ansiosos, irrequietos… é sinal de que necessitamos
de sangue humano… fresco. E, tal como eu te disse, isso acontece esporadicamente.
- E o que é esporadicamente…para ti?
- Para mim… uma, duas vezes por mês. Para outros, a frequência pode variar…duas a três
vezes por mês para vampiros imaturos e até dois, três meses para aqueles que já têm uma
idade considerável. Contudo, a idade nem sempre é o factor determinante. Há aqueles que
mantêm sempre um apetite verdadeiramente voraz… mas felizmente esse tipo de
vampiros está bastante controlado…e existe num número bastante reduzido.
- Conheceste algum… assim?
133
- Não, felizmente. Mas ouvi relatos de situações bastante desagradáveis que ocorreram há
alguns anos. Lothaire insiste em manter-nos bem informados, especialmente no que toca a
consequências de desobediências.
- Tu…Vocês…como é que escolhem a…vítima?
- Nós optamos por não… escolher, por assim dizer. É uma das nossas regras. A vítima é
que nos escolhe, ao aproximar-se de nós, ao tentar cativar-nos, ao sentir-se atraída, ao ser
insistente.
- Estás a querer dizer-me que a Nadine é que te escolheu? Sinceramente, mais parece uma
forma de te sentires menos culpado por-
- Nadine estava doente - interrompeu-me ele, subitamente. - Eu conseguia cheirar o cancro
que a consumia. Por isso, sim, eu acredito que ela me tenha escolhido porque, de algum
modo, sentia que eu era a forma de a libertar do sofrimento que a corroía. Não me sinto
culpado por isso.
- Ela… sofreu?
- Não. De todo.
- Posso perguntar-te uma coisa?
- Força.
- Quando me “apanhaste” na Cité Universitaire, eu… perdi mesmo os sentidos ou foste tu
que fizeste alguma coisa? Quero dizer, para além da perspicácia, da rapidez…e da óbvia
habilidade que vocês têm de desafiar a gravidade.
- Bem… sim, fui eu - afirmou ele, sorrindo levemente. - É uma capacidade que nós
temos… enfim, é uma espécie de persuasão não verbal. Basta eu…concentrar-me no que
pretendo e… já está. Torna-se mais fácil conseguir o que quero.
- E funciona… – afirmei eu, mais como uma confirmação que como uma pergunta,
relembrando a forma eficaz como eu tinha “apagado”, resultado da influência dele em
mim.
- Por enquanto, só em humanos – adicionou ele, com um leve sorriso, olhando na minha
direcção.
- Utilizaste essa capacidade na Nadine?
- Sim, mas só quando chegou o momento… crítico - explicou David, visivelmente
incomodado. - Não para ela me escolher.
- Pensar nisso é-te desconfortável?
- É. Se eu pudesse, não me alimentaria em humanos… mas, para meu próprio bem, tenho
que fazê-lo.
- É mesmo necessário?
134
- Se eu… nós não nos alimentarmos de sangue humano fresco, perdemos o controlo dos
nossos instintos e tornamo-nos… selvagens. Por isso, optamos por fazê-lo de forma
esporádica e… monitorizada.
David olhava-me agora de forma leve, mas curiosa, como esperando que eu
continuasse.
- Não tens mais perguntas?
- Hum…Bem…não, de momento.
- Muito bem.
Vi-o levantar-se firmemente do banco onde estávamos sentados há algum tempo, o que
me fez olhá-lo de forma espantada. Onde quereria ele ir agora?
- O que foi? - Perguntou ele.
- Vamos a algum sítio?
A minha ignorância era genuína, enquanto ele me respondia com um sorriso aberto, que
eu nunca lhe tinha visto, visivelmente divertido com a minha pergunta.
- Tu vais para o hotel - explicou ele, olhando-me com firmeza.
- Agora?
- Agora. Sabes que horas são?
As horas. Nem sequer tinha reparado no tempo a passar.
- Já passa da uma da manhã - aclarou ele. Naquele momento senti-me como uma criança a
ser repreendida pelos pais por ainda estar a pé a uma hora tão tardia.
- Não tenho sono… - esclareci eu, com um tom firme.
David semicerrou os olhos, fixando-me com um olhar de reprovação, ainda que mantendo
um leve sorriso na face.
- Não sejas teimosa. Precisas de descansar.
Com isto, estendeu-me a mão, pedindo-me claramente para o acompanhar. Estendi a mão,
tocando na dele. Parecia uma pedra de gelo, pois a sua temperatura era muito semelhante à
temperatura ambiente que se fazia sentir. E o frio dele era-me familiar, um frio que eu
recordava de tantas outras ocasiões em que a minha pele quente tocava a dele, gélida,
como se de um cadáver andante se tratasse. Uma estátua viva, animada por algo
desconhecido, misterioso. Por vezes ele olhava-me estranhamente, de uma forma que eu
não conseguia definir, nem o que significava, nem o seu conteúdo. Tentar compreender
um vampiro era, sem dúvida, complexo. David era alguém misterioso, enigmático,
contudo sabia-o agora um ser extraordinário, com valores e com um elevado apreço pela
espécie humana. Ainda que um pouco esquivo, tinha que admitir que a sua rebeldia o
tornava ainda mais único e, até algo… interessante. O seu intenso olhar esmeralda
135
mantinha-se em mim enquanto eu estava perdida nos meus calorosos pensamentos,
quando me relembrei que, seguramente, ele estaria a depreender o meu estado de espírito
e, portanto, sabia que eu estava… contente, o que me fez sentir uma forte onda de
constrangimento, por estar a expor-me de uma forma tão evidente.
- Não há problema nenhum em te sentires… bem - sussurrou ele, enquanto mantinha o seu
olhar em mim, hesitando claramente em relação à palavra que haveria de utilizar. “Bem”
estava perto, ainda que não fosse exactamente esse o meu estado de espírito. Por
momentos, dei graças a Deus por ele ser um vampiro jovem e de a sua perspicácia ainda
ser algo limitada – por enquanto.
- Vamos? - Sugeriu ele.
- Sim… - respondi eu, repentinamente, libertando-me do seu olhar e retirando a minha
mão da sua, para colocar ambas as mãos nos bolsos do casaco que vestia.
- Então e tu? Não tens um sítio para onde voltar? - Perguntei eu, na direcção dele,
enquanto andávamos, lentamente, pelas ruas desertas.
- Sim, tenho. Mas hoje ainda tenho tarefas para cumprir.
Olhei-o com ar inquisidor, atónita. Tarefas em Estrasburgo?
- Hábitos alimentares… - esclareceu ele, em resposta ao meu olhar.
- Ah…
- Como cheguei há pouco, ainda tenho que encontrar a fonte adequada de alimentação. E
não inclui humanos, fica descansada - explicitou ele, com um sorriso nos lábios, face à
minha expressão de espanto. - Não te preocupes comigo, preocupa-te sim em dormir e
descansar porque amanhã é a noite da audiência.
A referência dele à audiência teve um efeito quase imediato em mim e senti-me
automaticamente com os nervos à flor da pele, o ritmo cardíaco claramente acelerado.
- Às onze da noite, no hemiciclo do Parlamento Europeu - informou ele. Vi-o agarrar-me
o braço suavemente, como se sentisse a minha inquietação, olhando-me fixamente,
enquanto eu, por outro lado, evitava encontrar o seu olhar. - Calma… - sussurrou ele.
- Desculpa, mas não consigo evitar… - balbuciei, nervosa.
- Tens que acreditar em mim. Quando quero, consigo ser muito argumentativo - reforçou
ele, enquanto mantinha o olhar fixo em mim, como se assim se assegurasse que eu
compreendia melhor o que ele estava a tentar transmitir-me.
Não tinha sequer alternativa senão acreditar nele. Tal como tantas outras vezes, tinha
mesmo que acreditar e confiar nele, esperando que os argumentos dele fossem fortes o
suficiente para convencer o supremo vampiro chefe de estado.
136
Caminhámos lentamente e em silêncio até ao hotel onde eu me encontrava, sem proferir
uma única palavra. À porta do hotel, fui eu quem quebrou o silêncio.
- Tu dormes?
- Não à noite.
- Sim, eu sei, mas…onde?
Percebia pela sua postura e olhar, assim como pelo tom e conteúdo – evasivo - das
respostas, que ele não queria avançar no assunto. Arrependi-me quase instantaneamente
de o ter abordado.
- É melhor para ti que não saibas onde eu fico, por uma questão de… segurança.
- O.k. - respondi eu, com intenção de finalizar o frio diálogo que decorria entre nós.
- Mas… sim, eu durmo durante o dia. Num local… seguro.
A sua súbita resposta fez-me olhá-lo, como que surpreendida pela sua intervenção. Era
uma faceta recente nele, a de cedência. Normalmente, ele era muito decidido nas suas
atitudes – se não queria responder-me, não respondia. Ponto. Mas hesitar em responder e
logo ponderar uma justificação era algo absolutamente novo nele.
Ele devolvia-me o olhar, absolutamente sobrenatural. Fora do vulgar. Impressionante.
Como era possível um olhar conter tanto e, ao mesmo tempo, nada? Nada definível, nada
concreto, mas simultaneamente, tudo o que é necessário para que eu me perdesse nele.
- Bem… eu vou… - disparei eu, subitamente.
- Sim, claro… - concordou ele, com um ligeiro sorriso na face, sem nunca deixar o meu
olhar.
- Então…boa noite e… - a minha hesitação surpreendeu-o. Vi-o levantar uma das
sobrancelhas, claramente curioso em relação ao que eu iria dizer em seguida. - …uma boa
refeição.
Que modo ridículo de desejar a alguém “bom apetite”. Sentia-me, agora, verdadeiramente
patética. Libertei-me do seu olhar e aproximava-me, agora, da entrada do hotel.
- Boa noite.
Ainda o ouvi dizer, olhando mais uma vez para o seu semblante, para o leve sorriso que
ostentava e para o extraordinário olhar que dele emanava, enquanto eu desaparecia para o
interior do edifício.
Olhei para o relógio que se encontrava no hall da recepção. Eram exactamente duas horas
da manhã.
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CAPÍTULO 10 – HEMICICLO
O SONO QUE DORMI NESSA NOITE ESTEVE MARCADO POR VÁRIOS SONHOS.
Eram sonhos bizarros, uma mistura caótica idealizada pelo meu subconsciente, repleta de
episódios que David me tinha relatado. Inúmeras vezes acordei, sobressaltada, com o teor
macabro concebido pela minha mente, tão sobrelotada de informação.
Uma dessas vezes acordei perturbada por um sonho particularmente penoso – cujo
conteúdo envolvia David e a sua noiva, alguém que eu não conhecia mas a quem a minha
mente já tinha conferido rosto, tronco e membros…e até a feição. No sonho, ela tinha-lhe
sido retirada, de uma forma totalmente impiedosa, o seu mundo tinha-lhe sido proibido e
ele observava-a, desesperado, através de uma barreira invisível, como se algo de concreto
os separasse, algo irremovível, algo incontestavelmente poderoso. Até aqui, conseguia
compreender donde provinha o conteúdo do sonho, pois tratava-se das situações que
David me tinha relatado na noite anterior; contudo, a novidade que o meu subconsciente
tinha adicionado era particularmente requintado: eu mantinha-me como observadora,
presa entre os dois mundos – o dele e o dela – e conseguia sentir o que ele sentia naquele
momento, enquanto ele a observava como se fosse a última vez, como se ela se tratasse de
uma peça valiosa, uma obra-prima, a qual só podia observar uma única vez. Como se
aquela fosse a última vez. Dele emanava uma tristeza atroz, de uma intensidade que me
atingia com uma magnitude incapacitante. Sentia-o agora como se fosse eu própria a
interveniente. A sua face era mais expressiva, mais coerente e nele eram marcantes os
sinais de descontrolo emocional - este era o David mais jovem, mais imaturo, incapaz de
lidar com a sua nova vida. Já não era humano e tudo nele tinha sido…destruído.
A sua dor oprimia-me o peito e fazia-me brotar lágrimas, de forma totalmente
inconsciente, sem hipótese de lutar contra elas, acabando por ser a dificuldade em respirar
a responsável por me retirar da revolução emocional que a minha mente tinha construído,
e que eu estava a viver… para finalmente acordar com a respiração ofegante.
Já acordada, sentei-me momentaneamente na cama, tentando recompor a frequência
respiratória, com as imagens do meu sonho ainda muito vívidas, muito recentes.
Conseguia recordar perfeitamente as sensações que tinha experimentado, as imagens que
tinha observado. Só podia concluir que era difícil, assim como injusto… e árduo ter que
passar por algo assim e não poder fazer absolutamente nada para modificá-lo. Ter
obrigatoriamente que conformar-se. E sofrer. Muito.
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Agora conseguia compreender um pouco do porquê do mistério e aspereza de David. Os
seus quarenta e dois anos como vampiro tinham-no tornado assim, sem hipóteses de poder
voltar atrás e retirando-lhe tudo o que, para ele, tinha significado. Sem dó nem piedade.
Sentia, agora, uma enorme compaixão por ele. Tantas situações, gestos e atitudes eram,
sem dúvida, totalmente justificáveis…e compreensíveis.
Levantei-me e dirigi-me à janela, afastando ligeiramente a cortina. Ainda era noite. Olhei
para as ruas que estavam completamente vazias. Era difícil evitar de pensar onde estaria
David. Teria ele encontrado…alimento? E para onde iria ele dormir? Como seria dormir
para ele? Seria igual ao sono dos humanos ou algo completamente diferente, típico de
outra espécie cujo funcionamento era totalmente desconhecido? Sonharia, ele?
A minha curiosidade, assim como a minha preocupação, eram genuínas, mas tinha a
perfeita noção de que só teria acesso à informação que ele me permitia. Para minha
segurança. As suas palavras ecoavam na minha mente.
Dirigi-me novamente para a cama, aninhando-me confortavelmente nos lençóis,
esforçando-me para voltar a dormir. Precisava de descansar, era um facto. Tal como
David previra, eu estava… sentia-me cansada. E amanhã era um dia importante.
Inquestionavelmente decisivo. - A minha salvação e a absolvição dele.
Era difícil não pensar nas implicações dos acontecimentos prévios… e nos vindouros.
Imersa em dúvidas e questões, acabei por deixar-me vencer pelo cansaço, mergulhando
num sono profundo e calmo.
Foi a luminosidade que inundava o meu quarto de hotel a responsável por acordar-
me do sono que eu só podia classificar de revitalizante. Preguiçosamente, coloquei a
almofada em cima da cabeça, ainda sem vontade de me levantar. Que horas seriam? Argh,
já era tarde, de certeza…e, muito seguramente, muito para lá da hora de almoço.
Sacudi firmemente a almofada, seguida dos lençóis e olhei, procurando o telemóvel.
Encontrei-o no bolso do casaco, onde o tinha deixado ontem, antes de partir para o meu
“encontro” com David, para constatar que eram duas horas da tarde… e 0 mensagens
novas.
O meu pensamento fluiu quase instantaneamente para o evento que iria decorrer esta noite
e para a minha ignorância quase total relativamente a esse mesmo evento, assim como as
circunstâncias que o rodeavam. Era difícil não ficar ansiosa com a perspectiva de ir
conhecer o vampiro chefe de estado, a autoridade máxima da espécie análoga à humana.
Quantos humanos teriam tido a honra…ou a pouca sorte? E quantos deles ainda estariam
139
vivos? Toda esta situação era completamente excepcional e eu só esperava conseguir sair
dela ilesa.
Tentado sacudir os pensamentos menos bons, resolvi concentrar-me nas tarefas que ainda
tinha que fazer durante a tarde de hoje, ainda que não fossem de todo significativas. Só
serviam para passar o tempo.
Após proceder a um relaxante duche, comecei a ponderar no que vestir, nomeadamente no
que seria mais adequado para vestir numa ocasião destas. Haveria alguma etiqueta
específica? Não sabia, – mas, pelo sim, pelo não, talvez fosse melhor optar por algo
semelhante ao que David vestia: escuro e elementar. Observava agora as minhas opções,
avaliando o conteúdo da minha mala de viagem. A maior parte das minhas peças eram
excessivamente coloridas, mas consegui encontrar uma camisola de um tom escuro que
me parecia ser a mais adequada para o evento. Vesti-me e procedi à fase seguinte, que
consistia, como sempre, na tentativa quase herculiana de pentear o cabelo, sempre
auxiliada por uma excessiva quantidade de ganchos. Enquanto procurava – na minha
interminável colecção – uns ganchos discretos, encontrei ocasionalmente um par deles que
tinham a forma de morcegos. Não consegui evitar esboçar um leve sorriso ao imaginar
entrar no hemiciclo do Parlamento Europeu, com o cabelo decorado de acessórios desta
estirpe que, para eles, seria certamente uma piada de muito mau gosto. E, dada a natureza
da audiência, talvez fosse prudente não abusar da minha sorte.
Assim que terminei, dirigi-me à porta e desci para a zona da recepção, onde pretendia
saber as opções que teria no refeitório, pois já eram quatro da tarde. A senhora que lá se
encontrava era a mesma dos dias anteriores, tinha-o sido durante toda a minha estadia no
hotel e, agora, informava-me alegremente que o refeitório estava disponível fora das horas
de expediente para pequenas refeições.
Para minha surpresa, a restante tarde foi passada de forma animada no refeitório onde,
para além de mim, se encontrava um pequeno grupo de escoceses que, ao ver-me sozinha,
trataram de encetar uma acesa conversação. Eram dois rapazes e duas raparigas, todos eles
com uma tez extraordinariamente clara e a cor dos cabelos oscilava entre o louro e o
ruivo, o que os fazia parecer todos da mesma família, apesar de obviamente, não o serem.
Fiquei então a saber que se chamavam John, Ian, Helen e Sarah e pertenciam ao colectivo
de uma escola de dança em Edimburgo. Informaram-me que eram uns ocupantes assíduos
do hotel onde nos encontrávamos e que adoravam França, apesar de “Estrasburgo ocupar
sempre um lugar especial no nosso coração”, tal como referia Ian, com uma certa
nostalgia. Apesar de o nosso diálogo nem sempre ser compreensível, devido à minha
notória dificuldade em descortinar o que diziam por detrás daquele marcante sotaque, -
140
facto que os divertia bastante – mostraram-se bastante surpreendidos quando eu referi que
estava “sozinha” em Estrasburgo, já que nos encontrávamos a meio de um semestre
académico. Com alguma dificuldade em fabricar uma desculpa credível, consegui
convencê-los de que a minha presença em Estrasburgo se devia essencialmente a motivos
pessoais inadiáveis, sem avançar muitos pormenores. De facto, eu já estava a conseguir
confeccionar desculpas tão evasivas como as de David, ainda que não fossem tão
elaboradas. Afinal eu ainda era uma principiante e ele já praticava a sua arte de evasão
linguística havia, pelo menos, quatro décadas.
Já era noite quando voltei para o quarto, após prometer ao animado grupo que não
iria faltar ao espectáculo que eles tinham agendado na sala do hotel reservada para tal, às
nove horas da noite, ainda que não estivesse segura de que o conseguiria realmente pois,
esta noite, eu já tinha compromissos. E bastante sérios.
Dentro do quarto procurei, mais uma vez, o telemóvel. Observei que eram oito horas da
noite, e… 1 mensagem nova. A minha tarde tinha sido excepcionalmente relaxante, mas
agora, todos os meus sentidos estavam alerta. Seguramente que a mensagem era de David.
Sem remetente, datava de há dez minutos atrás e consistia no seguinte:
Às vinte e duas horas em ponto na recepção. David.
Às dez horas da noite. Assim sendo, talvez ainda conseguisse ver um pouco do tão
publicitado espectáculo dos alunos escoceses.
As nove horas chegaram rapidamente, sem dar conta do tempo a passar. Sem mais
delongas, desci para o hall de entrada, onde encontrei um aglomerado de pessoas que, a
julgar pelo sotaque e aspecto, só podiam ser os alunos da escola de Dança. Estavam todos
vestidos da mesma forma, com trajes típicos do seu país de origem, o que tornava fácil
distingui-los entre os restantes residentes do hotel. Todos vestiam a tão característica saia
escocesa, camisa branca e ténis o que de certa forma lhes conferia um aspecto bastante
original. Alguns deles, onde se incluía Ian, traziam boinas e gaitas de foles. Não foi
preciso muito para eu encontrar Sarah e Helen, divertidíssimas, vindas da sala de
espectáculos.
- Que bom! Vieste! - Exclamou Sarah, na minha direcção.
- Eu disse-te que vinha! - Sorri eu, na direcção dela.
- Vamos começar dentro de dez, quinze minutos - informou Helen. - Tenta ficar numa
zona onde consigas ver melhor o espectáculo.
141
- Vai ser muito divertido - reforçou Sarah. - Até já! - Continuou ela, piscando-me o olho,
enquanto se afastava, juntamente com Helen, novamente na direcção da sala de
espectáculos.
Sorri como resposta às suas acesas informações. E eu… ia ter que sair a meio do
espectáculo. Era previsível. O melhor seria tentar encontrar um local na sala de
espectáculos que me permitisse sair discretamente, sem me fazer notar, para que ainda
conseguisse apreciar algo durante o tempo que iria lá estar.
A sala de espectáculos era semelhante aos anfiteatros da universidade, ainda que de um
tamanho mais reduzido e já se encontrava parcialmente cheia. Ao entrar, conseguia ver a
agitação que se apoderava dos alunos que se encontravam por detrás da cortina que cobria
o palco. Sentei-me num local que me permitiria sair sem dar muito nas vistas, mas donde
conseguia ver aceitavelmente o palco onde iria decorrer o espectáculo e, mais uma vez,
olhei para as horas – eram vinte e uma horas e dez minutos.
O espectáculo começou dez minutos depois, já com a sala de espectáculos a abarrotar de
pessoas que incluíam não só os residentes do hotel mas também os responsáveis da
organização, administração e convidados. Aparentemente, era comum esta escola fazer
espectáculos desta magnitude neste hotel. A actuação dos vinte alunos consistia numa
harmoniosa dança que se processava ao som característico da gaita-de-foles, misturado
com as tendências musicais mais actuais. Sarah e Helen, assim como as outras raparigas,
moviam-se graciosamente e até os rapazes mostravam ser uns dançarinos exímios. Pude
constatar que Ian era um dos poucos que tocava instrumentos, sendo menos participativo
na dança. Os alunos eram aplaudidos estrondosamente por várias vezes, em especial
quando algum deles procedia a alguma técnica mais rebuscada, o que fazia com que o
espectáculo se tornasse bastante dinâmico.
Repentinamente, senti o telemóvel vibrar, – eram exactamente dez horas da noite. Nem
tinha dado pelo tempo passar. Estava na hora de me retirar.
Levantei-me sorrateiramente, aproveitando um momento de aplausos e a agitação que se
produzia de cada vez que o elenco se retirava do palco para preparar a seguinte dança.
Avançava agora a passos ligeiros, passando pelo bar, pela sala de convívio, até chegar à
recepção.
Não foi preciso esforçar-me muito para avistar uma imagem que quase me perfura a
retina. David mantinha-se estático, perto da zona do balcão da recepção, a olhar
firmemente na minha direcção, como se adivinhasse de onde eu vinha. E, como sempre,
de mãos nos bolsos. À medida que me aproximava dele, observava que hoje, ele vestia de
uma forma mais… elegante: trazia uma camisa e calças pretas, com uns ténis também
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pretos animados por umas riscas brancas laterais. O conjunto ajustava-se a ele como uma
luva, fazendo-o parecer mais esguio e distinto. Afinal, eu tinha razão – sempre havia uma
certa etiqueta quando o assunto envolvia uma audiência com o vampiro chefe de estado.
Até o cabelo não se encontrava com aquela disposição caótica e desalinhada, mas agora,
sim, mais arranjado, expondo mais da sua pálida face e, por momentos, consegui
distinguir traços que nunca nele tinha observado. Hoje os seus olhos estavam
particularmente expressivos, embora eu não soubesse nem percebesse o porquê. Foi ele
que o primeiro a falar, ainda que mantendo sempre o seu característico tom seco.
- Olá.
- Olá.
- Estás pronta?
Ia responder-lhe que não, quando a voz de Sarah interrompeu o nosso recente diálogo,
enquanto caminhava, vinda da sala de espectáculos, na nossa direcção.
- Maria! Então, foste embora?
O tom dela era de pesar e, simultaneamente, de indignação. Ao aproximar-se de nós,
observei o olhar dela saltar de mim para David, visivelmente admirada. Só agora me
apercebia da tamanha inconveniência que a desculpa “motivos pessoais inadiáveis” que
eu havia dito, poderia agora admitir.
- É… o David - apresentei eu, olhando na direcção dele.
- Muito prazer - afirmou ele, com um aceno.
- Sarah - apresentou-se ela própria.
Sarah observava-o com uma curiosidade genuína e até com um certo atrevimento,
provocando um ligeiro desconforto entre nós. O olhar dela continuava fixo nele,
analisando-o descaradamente.
- És britânico… - afirmou ela, na direcção dele, mais como uma constatação que como
uma pergunta. Ela queria iniciar conversa com ele. Era óbvio.
- Sim - respondeu ele, secamente, sem olhar para ela. - Estás pronta? - Perguntou ele,
subitamente, olhando na minha direcção, como se Sarah não estivesse fisicamente ali,
junto de nós. Estava a gerar-se um silêncio desconfortável.
- Pensava que estavas cá sozinha… - disparou Sarah, agora na minha direcção, com um
tom acusatório e um sorriso malandro, questionando-me com o olhar.
- E estou… – respondi de imediato. - Eh… tenho que ir buscar o casaco ao quarto –
acrescentei eu, por fim, com a voz a fraquejar.
- Eu vou contigo - declarou ele, apanhando-me de surpresa. A minha expressão facial,
naquele momento, reflectia certamente a admiração que eu sentia face à sugestão dele,
143
enquanto o observava, boquiaberta. – Se … não te importares - adicionou ele, hesitante,
face à minha reacção.
Sarah limitava-se a olhar-nos com pasmo, como se estivesse a assistir a um diálogo sem
nexo, visivelmente sem compreender a misteriosa comunicação entre eu e David.
- Não… Claro que não.
Foi a única frase que eu consegui elaborar, como resposta.
- Até já - emitiu ele, sem olhar para Sarah, enquanto de dirigia na minha direcção.
- Até já… - respondeu ela, com um tom manifestamente lascivo.
Encaminhávamo-nos agora, lado a lado, na direcção dos elevadores, sem proferir uma
única palavra. Sarah ainda nos observava, certamente, porque eu sentia o olhar dela em
nós, vigiando-nos de longe. Subitamente senti a mão de David no meu braço, o que me fez
olhá-lo quase instantaneamente, questionando-o com o olhar. Como resposta obtive um
breve olhar e um sussurro célere.
- Criança inconsciente… - o tom dele reflectia uma censura absoluta, referindo-se ao
discurso intrusivo de Sarah. E adicionou, - Vamos pelas escadas.
Não questionei a sua opção, nem trocámos uma única palavra até ao quarto, onde entrei.
Já me encontrava no interior do quarto quando reparei que David ainda se encontrava do
lado de fora da porta de entrada. Olhei-o, espantada.
- Podes entrar, se quiseres.
- Obrigado - respondeu ele, entrando lentamente e fechando a porta atrás de si.
- Não demoro, é só mesmo ir buscar o casaco.
A resposta dele consistiu num aceno, em sinal de aprovação. Enquanto me dirigia à minha
mala de viagem para retirar o casaco, observei-o algumas vezes, encontrando sempre o
seu intenso olhar.
- Não tens frio?
- Não.
O tom com que me respondia dava por encerrada a temática, ainda que tivesse consistido
somente numa pergunta, com uma resposta seca. Vesti o casaco e dirigi-me à porta do
quarto, seguida pela presença dele. Novamente optámos pelas escadas, por onde
descemos, sem trocar uma única palavra, até que, por fim, saímos do hotel. Na rua, onde
nos encontrávamos agora, corria, tal como no dia anterior, uma leve brisa que me atingia,
fazendo-me arrepiar. David nem sequer vacilava e podia agora observar como a sua face
estava então mais descoberta e a sua palidez tão marcada que contrastava intensamente
com o seu escuro tom de cabelo, assim como as suas escuras roupas, fazendo-o parecer
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mais uma criatura angelical do que propriamente humano - o que não era, de todo,
mentira.
Seguia-o, agora, ao longo do passeio, sem perceber para onde nos dirigíamos, até que o vi
dirigir-se a um automóvel estacionado não muito longe de nós - era um Toyota Auris
negro, novinho em folha.
- É teu? - Não podia evitar perguntar-lhe, algo surpresa.
- Não, - respondeu ele, com firmeza. - Mas eu tenho bons contactos aqui em Estrasburgo.
E, além do mais, seria impensável irmos a pé até ao Parlamento - acrescentou ele, com um
discreto sorriso, enquanto entrava para o carro - Entra.
Assim o fiz. Alguns segundos depois, já estávamos a caminho, por ruas e avenidas que eu
desconhecia, mas que David parecia conhecer perfeitamente. A cidade estava pouco
iluminada, em comparação com Paris, mas ainda assim tinha um encanto difícil de
descrever. Dei por mim a pensar como gostaria de visitar, poder explorar melhor a cidade
e todos os seus segredos, noutras circunstâncias que não estas; estar em Estrasburgo com
ele sem ter que, para isso, temer pela minha própria vida e, simplesmente, aproveitar tudo
o que a cidade teria para me oferecer, aproveitando a companhia dele. David tinha muitas
facetas, mas agora eu já conhecia aquela em que ele conseguia ser agradável e…normal,
capaz de conversar comigo sem mistérios, nem segredos. O quanto eu lamentava não o ter
conhecido noutras circunstâncias e de não o poder conhecer melhor, ainda que, na
realidade, nenhuma dessas hipóteses fosse possível, pois o meu mundo e o dele eram
inconciliáveis. Proibidos pelas altas instâncias. Constatar esta dolorosa realidade
entristecia-me, pois estava totalmente ciente de que nada poderia fazer para a alterar.
Afinal, eu era uma simples humana, que confraternizava sorrateiramente com um vampiro
e, como consequência, estava metida numa linda alhada. Olhei-o momentaneamente. A
fraca luz que emanava do interior do carro, juntamente com a esporádica iluminação que
provinha dos intermitentes candeeiros que decoravam a cidade, destacava-lhe as feições,
de tal forma que quase parecia resplandecer, tal como o brilho no olhar que já lhe tinha
visto algumas vezes, noutras circunstâncias. Que estranha espécie era esta? O que os
movia? Como suportavam eles o fardo da imortalidade, limitados a vaguear durante a
noite, escondidos entre os humanos?
Foi a voz dele que interrompeu o lamentoso pensamento em que me encontrava perdida.
- O que tens? - Perguntou ele, em desviar o olhar da estrada. Certamente teria sentido
alguma alteração no meu estado de espírito durante a nossa silenciosa viagem.
- Nada… - respondi eu, com um tom de voz que denunciava a minha incerteza.
- Estás triste - constatou ele.
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- Não importa... - respondi eu, com alguma amargura na voz, enquanto olhava para as ruas
praticamente desertas, por onde passávamos naquele momento.
- Não? - Contrapôs David.
- Há-de passar-me - concluí eu, consternada. E, de facto, não tinha hipótese, a não ser
conformar-me com a dura realidade. Uma realidade que eu não podia partilhar com
ninguém – humano – pois envolvia seres de outra espécie que não estavam
particularmente alegres com as minhas involuntárias descobertas. Era frustrante.
David não proferiu nem mais uma palavra durante o resto da viagem, mantendo-se
visivelmente concentrado na condução, - ou, pelo menos, assim parecia - enquanto eu
olhava, distraída, para a paisagem citadina que nos envolvia, tentando abstrair-me do que
me esperava quando a viagem terminasse. A certa altura comecei a distinguir um enorme
edifício, forrado de espelhos e com uma forma que se aproximava à elíptica, pelo menos
da perspectiva que eu estava a ter. Era aquele o edifício do Parlamento Europeu,
certamente. Não precisei de perguntar a David se estava correcta porque, ao vê-lo
estacionar em frente do magnânime edifício, acabava de confirmar a minha suspeita.
Sentia-me algo tensa à medida que o observava a desligar o carro, calmamente, sem
proferir uma única palavra. Foi ele quem quebrou o silêncio que ameaçava esmagar
qualquer hipótese de diálogo entre nós.
- São vinte e duas horas e quarenta. Temos tempo - Afirmou ele, com ar informativo,
enquanto dirigia o olhar na minha direcção. - Preciso que me faças um favor.
- Diz - respondi, mais como um sussurro.
- Tenta… controlar as tuas emoções quando estivermos na audiência. - O olhar dele era,
agora, bastante austero, fixo firmemente em mim. - Ninguém te vai fazer mal, por isso
tenta manter-te sóbria.
- Está bem - afirmei eu, começando a sentir-me assustada com as suas afirmações.
- Não ajuda se vais amedrontada, nervosa e ansiosa para um espaço fechado com
vampiros mais velhos que os monumentos desta cidade - esclareceu ele, com nítida
apreensão na voz, enquanto continuava a observar-me fixamente, com um olhar
absolutamente extraordinário. Apesar de não possuir o tão característico brilho, estava
dotado de uma enorme expressividade e dele emanavam as mais variadas formas de algo
que eu não sabia o que era, mas que, com toda a certeza, afectava o meu ritmo cardíaco,
assim como a frequência respiratória, de uma forma incontrolável. Tal era, para mim e
sem dúvida, ridiculamente embaraçoso.
- Isso… também é de evitar - assegurou ele, sem nunca deixar de fitar-me, agora com um
tom de voz mais leve.
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- Peço desculpa… - disse eu, desviando o olhar e tentando aclarar a garganta, numa
tentativa de abstrair-me do seu intenso olhar, cujo efeito ainda se mantinha em mim. -
Não… voltará a acontecer - esclareci eu, firmemente.
- Muito bem. Vamos - afirmava ele, enquanto saía do carro. Fiz o mesmo e segui-o na
direcção da entrada do Parlamento Europeu.
Caminhámos por umas longas passagens até encontrarmos o edifício propriamente
dito, que reflectia intensamente a luz do luar que preenchia a noite. Havia um monumento
de forma circular disposto de forma exacta no centro do pequeno átrio exterior que
precedia a entrada oficial do edifício. Ao entrarmos pelas portas que se mimetizavam com
as restantes portadas e janelas em nosso redor, percebi que não estávamos sozinhos.
O espaçoso hall de entrada do edifício estava todo forrado a mármore, com vários sofás
dispostos estrategicamente, aproveitando todas as saliências arquitectónicas; à nossa
esquerda, encontrava-se um indivíduo esguio, alto e… pálido, tal como David. Aliás,
como todos eles. Não foi preciso esforçar-me muito para perceber que era um vampiro. As
roupas que trazia eram predominantemente escuras, mas de um género diferente do que
estava habituada a ver em David e nos seus colegas. Ainda que discretas, eram
esteticamente mais requintadas, tornando-os mais elegantes. As feições deste estavam
bastante expostas, contrariamente a David, e podia observar nele um cabelo curto e claro,
claramente tipificado, ornamentado por um gélido olhar azul que lhe dava um aspecto
caracteristicamente germânico.
O distinto indivíduo olhava atentamente para David, que se encontrava estrategicamente à
minha esquerda, cobrindo-me parcialmente. O olhar que ambos trocavam era austero e
desafiador, embora eu não atingisse o porquê, mas a intensidade que deles emanava era
suficiente para perceber que eles estavam a comunicar, de uma forma absolutamente
sobrenatural… e agressiva. Foi o indivíduo quem quebrou aquele estranho momento.
- David Henshaw - afirmou ele, com um tom firme e ousadia na voz.
- Albert Legrand - cumprimentou David com um tom semelhante.
- É essa a tua humana? - O tom dele era desafiador e, simultaneamente, sarcástico. Nesse
momento, senti-me como um perfeito ruminante negociado num mercado de gado.
- É esta a humana - corrigiu David, sem desviar o olhar de Albert.
- Agora dedicas-te a poupar humanos? Não te conhecia assim tão… misericordioso… - O
seu tom continuava a ser provocador, enquanto ostentava um sorriso absolutamente
maquiavélico.
- Então e tu, agora és cão de guarda du Monsieur Vignet?
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A resposta de David à provocação incitada por Albert fez com que o seu sorriso
desaparecesse quase automaticamente da sua face lívida, visivelmente desagradado com o
comentário de David. Algo se estava ali a passar que eu não sabia o que era mas, pelo tom
e teor das amargas palavras trocadas entre eles, tinha sido certamente algo bastante grave,
muito provavelmente uma querela do passado.
- Cuidado, David - avisou Albert. - Eu não sou tão tolerante como Lothaire.
- Não me desafies - sussurrou David, visivelmente alerta.
Os dois olhavam-se como dois felinos prestes a iniciar uma luta. A a postura de ambos
estava alterada, inundada de agressividade. Olhei para David. Por momentos vi aquele
David que encurralava vítimas em ruelas, com um brilho hostil no olhar e uma atitude que
eu só conseguia definir como animalesca. Os seus afilados caninos já estavam expostos,
ostentados como uma arma letal, assim como Albert, que exibia a sua pontiaguda dentição
retráctil com um sorriso cruel nos lábios. Estava a ficar amedrontada, pois este não era
seguramente o momento mais adequado para resolver intrigas do passado.
- David… - arrisquei eu, com um tom de voz sumido, tocando-lhe no braço, receosa. Nem
sei como tinha reunido coragem para me dirigir a ele neste estado de “animal-selvagem-
pronto-a-atacar”. Ele olhou-me subitamente, surpreso com a minha intervenção. Vi-o
retrair os seus caninos, retomar a sua postura prévia – bem mais civilizada – e,
progressivamente, as suas feições voltaram a admitir um aspecto mais… humano.
- Ele está à tua espera - retorquiu Albert, claramente desiludido pela sua provocação não
ter surtido o efeito que esperava e também admitia, agora, uma postura menos agressiva,
como se fossem…tréguas de algo inevitável, que é adiado, mas não esquecido. Nunca.
Senti um arrepio na espinha quando passava por Albert, juntamente com David, para nos
dirigíamos, agora, aos extensos corredores que nos levariam ao hemiciclo.
- O que é que se passou ali atrás? - sussurrei eu.
- É uma longa história… - desabafou David, enquanto caminhava, a meu lado, com um
semblante aflitivo.
- Ele é… malvado - afirmei eu, após alguns momentos de silêncio, como se estivesse a
constatar uma realidade difícil.
- Nem imaginas... - concluiu David, com o seu característico tom seco que dava por
encerrado o diálogo. E eu tinha razão. Algo de mesmo muito sério tinha ocorrido entre
David e Albert. E a magnitude desse acontecimento justificava, certamente, o silêncio de
David, que agora caminhava firmemente pelos espaçosos corredores que decoravam o
interior do Parlamento Europeu. Só agora conseguia observar que caminhávamos por uma
espécie de plataformas, que descobriam um mar de xisto disposto sob nós, para além da
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frondosa vegetação suspensa que animava as “ruas” que constituíam o enorme edifício,
que mais parecia uma cidade, ornamentada por ténues luzes interiores.
David encaminhava-se agora por uma das “ruas” que dava acesso a uma escada de
forma helicoidal, com dois lances de escadas opostos. Abrandei o passo
involuntariamente, enquanto olhava atónita para aquela obra arquitectónica que
aparentemente parecia perfeita mas que tinha a particularidade de parecer inacabada.
Além do mais, enquanto subia as escadas, reparava que quem subia não se encontrava
com quem eventualmente descesse. Era algo extraordinário.
Agora no primeiro andar, podia observar com mais detalhe como as inúmeras placas de
xisto estavam dispostas na base do edifício, dando a sensação de simular a ondulação da
água a correr, como se de um rio se tratasse. Foi a intervenção de David que interrompeu a
minha atenta observação.
- Lembra-te do que combinámos.
Acenei em sinal de confirmação. Claro que me lembrava que tinha que tentar manter-me
como uma estátua emocional, evitando revelar os meus transbordantes estados de espírito,
fossem eles de que natureza fossem. David parou em frente a uma imensa porta, igual a
tantas outras por onde passámos e sussurrou, na minha direcção.
- Vamos.
Ao entrar na extensa sala que consistia no hemiciclo do Parlamento Europeu, limitei-me a
seguir David, tentando manter-me “sóbria” emocionalmente, tal como ele me havia
pedido. À medida que descíamos pela escadaria, ouvi uma voz forte, que se destacava,
vinda da zona central da sala.
- Senhor Henshaw.
Aquela poderosa voz provinha de um homem já grisalho que era, muito provavelmente, o
chefe de estado, Philippe Vignet.
- Excelência - proferiu David, com um tom de voz respeitável.
- Aproxime-se, Sr. Henshaw. E a humana, por favor.
Descemos pela escadaria o mais rápido que ela nos permitia, até nos encontrarmos em
frente à imponente mesa que se destacava na zona central do hemiciclo. Nessa mesa
encontravam-se dois indivíduos, dos quais se salientava Philippe. Observei-o
discretamente. Era um vampiro extremamente charmoso, apesar da sua idade aparente,
que eu classificaria meia-idade; a sua tez pálida reflectia uma sabedoria imensa, como de
alguém que já havia percorrido séculos na Terra e dos seus calorosos olhos escuros
emanava um excepcional olhar, absolutamente distinto. Ao seu lado direito encontrava-se
um vampiro que, em comparação, era extraordinariamente comum, de olhos e cabelo
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escuro, de aspecto mais jovem e que fazia um esforço notório para se igualar ao seu
superior. Ambos vestiam roupas escuras, em tudo semelhantes às que David vestia hoje,
tal como Albert, exhibindo um toque de requinte que, junto com as particulares
características da espécie, lhes dava um aspecto quase divino. Ambos nos olhavam com
nítida curiosidade e foi David quem iniciou o diálogo.
- Ex.cia, queria começar por pedir desculpa por…
- Poupe-me as suas escusadas desculpas, jovem - interrompeu Philippe. - Ambos sabemos
que esta situação é altamente irregular. Para que saiba, eu só acedi em ouvi-lo dada a
ausência de Läis em Paris. E, devo confessar, que o seu pedido despertou a minha
curiosidade.
Philippe olhava na minha direcção, com um semblante de absoluta indignação.
Segundos depois, Philippe fitava, agora, David como se ele fosse um criminoso a abater,
com uma austeridade marcante.
- Então, pode explicar-me porque considera que esta humana é digna de se sobrepor às
nossas leis?
David demorou uma fracção de segundo a elaborar uma resposta.
- Esta humana tem estudos, Ex.cia, pelo que nos pode ser muito útil.
- E que estudos são esses?
- Medicina, Excelência. Para além de que possui nacionalidade portuguesa, local onde
tenho conhecimento de que escasseiam mensageiros.
A postura de Philippe era, agora, pensativa.
- Só isso?
- Não compreendo, Ex.cia.
- Conhecimento médico numa zona praticamente desprovida de mensageiros não é uma
justificação suficientemente forte, Sr. Henshaw. Você sabe disso.
- Mas, Ex.cia…
- A humana tem mais alguma capacidade que nos interesse? - Interrompeu novamente
Philippe. - Algo que nos possa ser vantajoso?
David mantinha-se em silêncio, visivelmente desarmado. Naquele momento, só
desejava ser capaz de ler mentes ou de predizer o futuro, para que pudesse salvar-nos
daquele constrangimento.
- Francamente, Sr. Henshaw. Não acredito que me tenha feito perder o meu precioso
tempo com uma anedota desta magnitude - afirmou Philippe, com um nítido tom de troça
e despeito. Definitivamente, a audiência estava a correr muito mal. Olhei, discretamente,
para David. Estava desesperada quando, finalmente, o seu olhar encontrou o meu, mas
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nele não encontrei respostas concretas, antes somente o olhar de alguém que estava tão
oprimido quanto eu.
- Ela é… - começou ele, enquanto desviava o olhar agora na direcção de Philippe, que
continuava a fitá-lo curiosamente.
- Sim?
David hesitava, olhando o vazio e eu já sabia que isso era muito mau sinal, pois
significava que ele não tinha argumentos válidos para lançar.
- …especial.
A sua última afirmação valeu-lhe a atenção redobrada de todas as pessoas naquela sala, eu
inclusive. Que raio de comentário era aquele?
- Importa-se de se explicar, Sr. Henshaw?
O olhar de Philippe em David era, agora, intenso e eu tive a sensação de que ele
estava a tentar confirmar a veracidade das palavras que David tentava proferir. Tal como a
mim me acontecia tantas vezes quando David me olhava daquela forma, mas agora era ele
quem estava a ser analisado e testado.
- Ex.cia, há que considerar a situação, estrategicamente. A utilidade desta humana a nível
geográfico é incontestável. E, para além disso, há que considerar as suas enormes
capacidades cognitivas, que são absolutamente fora do comum.
- Continue.
- O intelecto desta humana é excepcional, o seu raciocínio extremamente veloz e as suas
aptidões profissionais são absolutamente marcantes.
Agora sim, eu estava a ficar preocupada. Ele estava a mentir descaradamente e eu
sentia-me bastante constrangida, enquanto David continuava, imparável.
- Seria, sem dúvida, uma pena desperdiçar um espécime como este. Pense nas vantagens e
na conveniência desta humana uma vez utilizada em nosso benefício, ajudando a encobrir
os vestígios dos nossos hábitos alimentares e a dispersar a atenção que, eventualmente, se
colocaria sobre nós.
- E como faria ela isso?
A curiosidade que Philippe manifestava era, agora, genuína. Podia afirmá-lo pela
expressividade manifesta no seu rosto.
- Ao trabalhar num hospital, este tipo de actividade é extraordinariamente facilitada. Para
não mencionar a dificuldade inerente à infiltração de mensageiros neste tipo de
instituições, como V. Ex.cia bem sabe.
Philippe mantinha-se agora em silêncio, analisando a excessiva argumentação de
David. Excessiva, exagerada, implacável…e completamente falsa. Eu, com capacidades
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fora do comum? Intelecto excepcional? Aptidões marcantes? Considerar-me-ia ele um
espécime, tal como tinha referido tão friamente? Agora, sim, apercebia-me
verdadeiramente do papel que os humanos tinham no mundo dos vampiros. Éramos como
gado. Úteis, com um objectivo. Nada mais do que simples acessórios vantajosos.
Descartáveis. E eu não conseguia evitar sentir-me… mal. Foram as palavras de David que
me alertaram para a ocasião e para o local onde estávamos.
- Pára… - sussurrou David, olhando na minha direcção. - Não estás a ajudar.
Não respondi, apesar de saber perfeitamente ao que se referia. Tentei controlar-me, como
conseguia, tanto quanto a minha fraca capacidade humana me permitia, enquanto Philippe
nos observava atentamente, como que tentando discernir algo oculto, para além das
palavras amargas de David, porque obviamente ele sabia, ele sentia perfeitamente o
tumulto entre nós.
Só desejava que aquele momento terminasse rapidamente.
- São… essas as suas razões, Sr. Henshaw?
Só me apercebi que David respondia positivamente sob a forma de um leve aceno, preso
no olhar centenário de Philippe.
- Muito bem, já ouvi… e vi o suficiente – elucidou Philippe, subitamente.
- Mas, Ex.cia,…
- Silêncio! - Interrompeu Philippe. - Não pretendo continuar a discutir este assunto. Já
compreendi onde queria chegar, Sr. Henshaw. É suficiente.
David limitava-se a acenar, olhando-o, estupefacto.
- Vou considerar todos os seus argumentos e, em breve, comunicarei a minha decisão aos
seus superiores. Podem retirar-se.
David olhou-me momentaneamente, fazendo-me sinal para o seguir. Começámos a subir a
enorme escadaria, no sentido da saída, quando ouvimos Philippe lançar uma pequena
declaração, com um tom ligeiramente sarcástico.
- E… boa sorte, Sr. Henshaw.
David abrandou momentaneamente o passo, enquanto olhava, por cima do ombro,
encontrando novamente o olhar de Philippe. Ao voltar a olhar em frente, mantinha uma
expressão sofredora na face, à medida que nos aproximávamos da enorme escadaria, cada
vez mais próximo da saída.
- “Boa sorte?” - arrisquei eu, atónita, na direcção de David, sem compreender a razão
daquele comentário.
- É uma piadinha para mim… quando Läis souber que passei por cima da autoridade
dela... bem vou precisar de sorte.
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Tinha uma vontade imperiosa de lhe fazer mais perguntas, embora tivesse a plena noção
de que agora não era o momento ideal para o fazer. Ele seguia veloz, a passos que eu só
conseguia acompanhar se corresse ocasionalmente, pelas escadas helicoidais, pelos longos
corredores do edifício do Parlamento Europeu, pelo hall onde já não havia sinal de Albert
e, finalmente, pela saída do Edifício, até atingirmos o Toyota Auris estacionado
pacificamente a uns sólidos cem metros do Parlamento Europeu, onde David, finalmente
parou.
Ainda demorei alguns segundos a aproximar-me dele e, quando o fiz, encontrei na sua
face uma expressão ilegível, donde emanava um profundo desespero, enquanto ele se
fixava num ponto bem longe dali, como se tentasse aí encontrar forças.
- David…
- Agora não, por favor… - interrompeu-me ele, firmemente, afastando-se de mim. Não
sabia o que fazer, nem o que pensar. Sentia-me absolutamente inútil, um empecilho. Em
suma, uma humana patética. Afastei-me dele, dando-lhe espaço… tempo e o que quer que
fosse que ele necessitasse. Sentei-me à beira do passeio, deixando uns consistentes dez
metros de distância entre nós. Não conseguia pensar no que se tinha passado, nem analisar
se a audiência tinha corrido bem, ou mal. Eu não tinha proferido nem uma palavra, ele
tinha mentido sem escrúpulos ao supremo chefe de estado e… parecia impossível, mas eu
sentia-me à beira da ruptura.
- Ele sabe - afirmou repentinamente David, de onde estava.
- Ele sabe o quê? - Respondi-lhe eu, sem força na voz.
- Tudo.
Não lhe respondi. Claro que Philippe sabia tudo, era previsível que assim fosse. Ele era
um vampiro ancião, com uma perspicácia muito acima da média, capaz de nos descobrir
facilmente, sem ser necessário esforçar-se muito. A minha mente estava vazia, não
conseguia pensar em nada concreto. Naquele momento, estava demasiado desesperada no
conforto do silêncio que me rodeava.
Subitamente, senti uma presença conhecida à minha frente, observando-me atentamente.
- Ele sabe… que eu exagerei em relação a ti. E sabe das minhas… incertezas.
O tom dele era acusador, o que me fazia sentir cada vez pior, ao ouvi-lo proferir estas
palavras. Não sabia o que dizer, nem o que responder face às suas afirmações.
- E o que é que queres que eu faça? - Disparei eu, levantando-me subitamente, de forma a
ficar frente a frente. Ele olhou-me surpreso, como que espantado com a minha pequena
explosão. Não me admirava, pois eu própria também estava surpreendida com a audácia
que, subitamente, se tinha apoderado de mim.
153
- Não me olhes assim. Eu não tenho culpa de nada disto! - Continuei eu, sentindo a voz a
falhar-me. - Tenho imensa pena que não consiga estar à tua altura, nem que consiga
manter-me como um bloco de gelo emocional quando é necessário e que seja uma humana
idiota que se afeiçoa a seres de outras espécies.
Nem sequer tinha noção do que tinha dito – as palavras simplesmente tinham
saído, de forma involuntária.
Um silêncio pesado abatia-se sobre nós, enquanto David continuava a olhar-me fixamente.
O silêncio dele era o mais difícil de suportar, especialmente após a minha pequena
explosão emocional e eu…também não sabia o que dizer.
- Ouve, eu… - ia ele começar.
- Esquece.
Agora era a minha vez de o interromper, enquanto desviava o olhar e fixava um ponto
inexistente longe dali. E, definitivamente, não queria voltar a falar deste assunto outra vez.
Não desta forma.
Ele, mais uma vez, remetia-se ao silêncio, mantendo-se estático, à minha frente.
Conseguia observá-lo, pelo canto do olho, enquanto tentava acalmar-me o suficiente para
combater o desespero que ameaçava destruir toda a minha dignidade.
- Maria.
Ele estava a chamar-me pelo meu nome. Era estranho ouvi-lo pronunciar o meu nome
para me chamar a atenção; normalmente bastava um olhar, um toque. Mas agora, não
conseguia sequer olhá-lo, estava demasiado amargurada para o fazer. Aliás, neste
momento, nem sabia se queria ouvir o que ele tinha para me dizer.
Voltei a sentar-me, expirando ruidosamente. Sentia-me idiota, enquanto observava
desatentamente o que me rodeava. David aproximava-se de mim, lentamente, até que o vi
sentar-se ao meu lado, mantendo-se silencioso.
- Maria... - pediu ele, olhando-me propositadamente.
- Sim? - Respondi eu, secamente, sem o fitar.
- Não correu… mal. Philippe vai ter em conta os meus argumentos, o que já é muito bom -
explicou ele. – Agora, temos que esperar pela decisão dele.
- Está bem.
Ouvi-lo falar da audiência era doloroso. Relembrava-me da forma como ele se referia a
mim e à minha espécie, às minhas características “úteis” para a espécie dele, como se eu
fosse mercadoria para negociar. Um extraordinário espécime multiusos, vantajoso e útil.
- Eu sei que não foi fácil para ti ouvir o que foi dito ali dentro - afirmou ele, como se
tivesse adivinhado o que eu estava a pensar há segundos atrás.
154
- Tens razão, não foi. - Confirmei eu, com um tom seco. - Mas não te preocupes, já estou a
ficar habituada… - acrescentei eu, sarcasticamente. Não conseguia evitar pensar nas
palavras que ele tinha utilizado, no que eu era para a espécie dele e, em consequência, o
que eu era para ele. Era uma realidade cruel e … triste.
Levantei-me, sem aviso, para me aproximar do carro, com o propósito de lhe dar a
entender que me queria ir embora daquele sítio, rapidamente. Contudo, ainda estava a
iniciar o movimento de retirada, quando o encontrei exactamente à minha frente, como
uma parede móvel, uma estátua viva, como tantas vezes o classificava.
- Maria.
Agora era impossível evitar o seu intenso olhar, que se fixava no meu. Dele emanava algo
que me enfureceu instantaneamente.
- Pára com isso. Eu não preciso da tua misericórdia! - Lancei palavras encolerizadas. A
última coisa que eu precisava era de um vampiro com acessos de arrependimento
inexplicáveis, com pena dos seres humanos. Era deplorável.
- Não é misericórdia - retorquiu ele.
- Então, o que é? - Afirmei eu, quase automaticamente, enquanto o fixava, vendo-o
claramente a hesitar, à medida que procurava as palavras adequadas.
- É…apreensão.
- Apreensão? Porquê? Para quê? – Questionava eu agora, com dificuldade em manter a
voz firme. - O que é que eu sou para ti, afinal?
A minha última afirmação quase me leva às lágrimas, não fosse uma força extraordinária
que eu não sabia existir e que se conservava dentro de mim, mantendo-me íntegra, sem
vacilar – exteriormente, porque por dentro, sentia-me arruinada. E ele sentia-a, essa ruína
que ameaçava levar-me ao ponto de ruptura. Eu conseguia vê-la reflectida nos seus olhos.
Sinceramente, não sabia se queria ouvir a verdadeira resposta dele à minha pergunta. Não.
Definitivamente não queria. Agora sim, a ausência de palavras, personificada pelo silêncio
dele, era-me, pela primeira vez, reconfortante.
- Não… respondas. Simplesmente… esquece - balbuciei, evitando o seu olhar. - Tudo isto
tem sido demasiado para mim, ultimamente.
Ele continuava a observar-me, eu conseguia sentir o peso do seu olhar em mim. Quando
percebi que, afinal, ele ia responder-me, quase que senti o meu batimento cardíaco parar.
- Eu… responder-te-ia, se eu soubesse qual era a resposta. Já falámos sobre isto-
- Podemos ir? - Interrompi eu, desejosa de regressar ao quarto de hotel. De facto, desejava
estar em qualquer sítio, excepto aqui.
155
- Claro - respondeu ele, automaticamente, dirigindo-se ao Toyota Auris que se mantinha a
poucos metros de nós. Entrei dentro do carro enquanto o seguia, silenciosamente e,
poucos segundos depois, David dava início à viagem que me levaria de volta ao hotel.
Foi dos trajectos mais penosos que já tinha realizado, não só pelo pesado silêncio
que nos separava, mas especialmente porque eu estava a começar a descomprimir – e a
descompressão vinha normalmente acompanhada de lágrimas. Era mais uma questão
fisiológica que emocional.
Mas, eu tinha o meu orgulho, a minha dignidade – ou o que restava dela, que era
seguramente muito pouco, mas ainda era algo. E era exactamente esse pequeno algo que
me impedia de esvair-me em lágrimas naquele preciso momento. Certamente David
sentia-o, conseguia quase de certeza sentir a minha mágoa, a pressão que se acumulava
dentro de mim, oprimindo-me. Contudo, não proferia nem uma palavra, nem me dirigia
um único olhar. Eu, intimamente, agradecia. Neste momento, proibia-me
determinantemente de pensar fosse no que fosse, em especial nos acontecimentos desta
noite.
Durante os longos vinte minutos de viagem, mantive-me aparentemente interessada na
paisagem que passava veloz, apesar de não a observar verdadeiramente, pois estava
demasiado concentrada em chegar ao hotel, o mais depressa possível. Quando finalmente
senti David abrandar, percebi que estávamos a chegar ao destino. Era altura de lhe fazer
algumas perguntas, obviamente relacionadas com assuntos menos difíceis.
- Quando é que posso ir para Paris?
- Quando quiseres - respondeu ele, de forma tão seca que quase me fez perder a
compostura naquele preciso momento.
- Muito bem - retorqui eu, tentando manter um tom de voz firme, mascarando a dor que
sentia ao ouvir as suas amargas palavras.
Tinha que sair daquele carro o mais depressa possível, antes que a minha ridícula máscara
implacável se desmoronasse. Já sentia a voz desaparecer e a garganta constrangida. Estava
na hora.
Apressei-me a procurar o manípulo da porta, para poder sair, quando o ouvi chamar pelo
meu nome.
- Maria…
A voz dele era afável, ainda que firme, como de costume, mas agora…eu não podia. Não
podia olhar para ele, porque já sabia que não ia conseguir resistir àquele olhar que parecia
exercer poder sobre mim. Agora, não o poderia suportar e, como tal, tinha que sair
daquele carro o mais depressa possível.
156
- Boa noite… - respondi eu, interrompendo-o, sentindo a voz a fraquejar.
Saí do carro a passos largos, na direcção do hotel. Já não olhei para trás. Limitei-me a
concentrar-me no meu objectivo que, naquele momento, consistia em chegar ao meu
quarto de hotel, para poder chorar, sozinha, como verdadeira infeliz que era e que me
sentia.
157
CAPÍTULO 11 – REGRESSO
NEM DEI CONTA DE PERCORRER O CAMINHO ATÉ AO QUARTO DE HOTEL.
Sentia dificuldade em adquirir a concentração necessária para colocar o cartão magnético
na ranhura e abrir a porta do quarto, os meus olhos já não conseguiam focar nem discernir
os pormenores necessários, pois estavam absolutamente inundados de lágrimas. Só
conseguia pensar na idiota que era e no quão estúpida me sentia por estar neste… estado.
Mais uma vez, eu não me conhecia a mim própria. O que mais lamentava era não
conseguir lidar com esta situação de uma forma mais fria e… madura, de deixar que isto
me afectasse desta forma. Talvez um dia eu fosse capaz de aceitar os factos com mais
naturalidade, mas agora… não era capaz. Tinha que me render às evidências.
Finalmente, entrei no quarto – Não tinha forças para dar nem mais um passo e, como tal,
encostei-me à porta e deixei-me estar, deixei-me escorregar até o meu corpo encontrar o
chão, onde me sentei. As lágrimas já corriam copiosamente, sem eu ter hipótese de as
travar, sem me dar tempo sequer para soluçar. Era a primeira fase da descompressão:
libertar lágrimas sem saber aparentemente porquê, mas o simples facto de as deixar sair
aliviava-me um pouco a tensão em que me encontrava. Não tinha forças para nada, nem
para me levantar, nem para limpar as lágrimas, nem para orientar os músculos oculares
numa outra direcção. Nada.
Ali fiquei, durante algum tempo – Minutos, horas? Não sabia. A minha mente começou a
passar à fase seguinte – a de consciencialização. Esta sim, era bem mais dolorosa. Eu
queria bloqueá-la, ou até adormecer antes que ela chegasse, mas no fundo, sabia-o ser
impossível. Inadiável.
Involuntariamente, apareciam imagens na minha mente – David, na audiência, a proferir
aquelas dolorosas expressões… “a humana de utilidade incontestável”…”o espécime
vantajoso e conveniente”. Não sabia qual delas me magoava mais, nem qual delas era
mais fria e cruel. Ouvi-las verbalizadas por ele era francamente doloroso, pois
contrapunha-se totalmente à imagem que tinha dele, exactamente da noite anterior. Agora,
as imagens que inundavam a minha mente eram exactamente aquelas à beira do rio Îll,
quando David parecia outro, mais sensível, mais… humano. A imagem dele naquela noite
era-me particularmente dolorosa e trazia-me novas lágrimas, que não paravam de correr.
Quão diferente era ele, sob o luar que nos inundava naquela noite, onde havia partilhado
comigo tantos episódios da sua vida! Aquele olhar enérgico, firme … amável, que agora
tinha desaparecido, para dar lugar a um olhar hostil e a palavras repletas de crueldade.
Seria possível?
158
Sentia-me sem forças. O poder daquelas imagens na minha mente era incapacitante.
Quase…insuportável.
Não dei conta do tempo a passar.
Sentia agora os olhos a fecharem-se. Eu estava a ceder, esgotada, cansada da minha
tristeza, da minha mágoa. E estava sozinha. Completamente sozinha.
Concentrei-me arduamente, tentando encontrar forças para chegar à cama. Quando
finalmente consegui lá chegar, nem sequer me incomodei em tirar a roupa e mergulhei nos
lençóis tal qual como me encontrava, vestida e calçada. Só tive tempo de colocar as mãos
na face, cobrindo-a, pois sentia vergonha de mim mesma, por estar a chorar desta forma
por alguém que me tinha envolvido na sua perversa realidade, na qual eu não era mais do
que um peão descartável.
Acordei, sobressaltada, com a luz ainda acesa, inundando todo o quarto em meu
redor. A luz feria-me os olhos, e a minha acção automática foi colocar o braço em redor
da vista, protegendo-a da luz que ameaçava cegar-me. A dor de cabeça extraordinária que
eu sentia impedia-me de voltar a dormir, exigindo-me claramente um analgésico.
Levantei-me vagarosamente, encaminhando-me na direcção da minha mala de viagem,
onde tinha os medicamentos algures perdidos na imensidão de roupas e acessórios, a
maior parte deles não utilizados. As recordações que apareciam repentinamente na minha
mente teimavam em massacrar-me durante todos os minutos e segundos em que estava
acordada. Sem perceber porquê, a recordação que agora ocupava a minha mente
remontava à noite em que David praticamente me havia raptado do meu quarto em Paris,
recordação essa responsável por trazer-me lágrimas novinhas em folha, quando eu
pensava que já não existiam mais líquidos em mim para verter pelos canais lacrimais. Isto
ia ser complicado, no mínimo. Se as recordações dele me afectavam desta maneira, só
poderia significar que estava a afeiçoar-me a ele, em demasia. De forma exagerada.
Desequilibrada. E tudo isto em dois dias? Meu Deus, o que aconteceria se eu estivesse
com ele mais vezes?
Exactamente. Por isso é que tinha que parar com isto.
Pelo amor de Deus, ele nem sequer é humano.
Inspirei fundo e iniciei uma meticulosa procura pelo analgésico forte o suficiente para me
retirar a dor – já que era impossível eliminar a verdadeira causa – que martelava sem
159
piedade nos meus ouvidos, na minha mente. Toda esta situação era fisicamente
desgastante.
Quando finalmente o encontrei, tomei-o, juntamente com um consistente meio litro de
água. Tinha que me deitar, tentar dormir, para descansar minimamente, recuperar destes
últimos dias absolutamente catastróficos, a todos os níveis. Para isso, talvez fosse melhor
vestir o pijama, pois era bem mais confortável que dormir vestida, sem sombra de dúvida.
Dirigi-me à casa-de-banho com o intuito de me preparar para dormir – novamente –,
quando encontrei o meu reflexo no espelho da mesma. Era uma imagem desconcertante e,
por momentos, amaldiçoei o momento em que resolvi olhar para o reflexo que o espelho
me devolvia. Do todo absolutamente miserável que era a minha face, o que mais me
incomodava eram os olhos, que estavam quase irreconhecíveis, de tal modo que quase
parecia que tinha sido agredida por alguém. Olhei com mais pormenor, ainda tinha as
marcas da almofada na face, de ter acordado sobressaltada…e vestida.
Subitamente ouvi um ruído que me aguçou a audição. Olhei instantaneamente na direcção
da porta do quarto e aguardei. Após três longos segundos, voltava-se a repetir e agora
conseguia discernir que eram três discretas batidas na porta. Mas quem seria, a uma hora
destas? Não que eu soubesse que horas eram, mas já era, certamente, tarde. De
madrugada, seguramente.
Aproximei-me da porta, encostando o ouvido e esperando ouvir novamente as três
batidas, ainda com esperança que fosse engano. Foi com pasmo que, ao ouvir novamente
as três batidas, me apercebi que não eram da porta, mas sim… da janela. Imediatamente
senti uma opressão inexplicável no peito. Já sabia que era ele. Só podia ser ele. Mas o que
é que ele queria de mim? Já não era suficiente fazer da minha vida um inferno, ainda tinha
que fazer visitas importunas a meio da noite? E logo depois de uma noite como esta?
Ainda dei alguns passos na direcção da janela, mas agora hesitava, estática a meio
caminho, considerando não abrir a janela. Não podia evitar relembrar-me das alturas em
que eu queria (muito) vê-lo para o questionar com as minhas insistentes perguntas – às
quais ele, amavelmente, não respondia – assim como o episódio em Paris que envolveu
janelas… e um passeio ao telhado, ida e volta… agarrada a ele como uma camisa-de-
forças.
Valeria a pena ouvir o que ele tinha para me dizer? Se é que ele tinha algo para me dizer.
Haveria novidades da audiência? Saberia ele de algo que fosse… importante? Assim
sendo, talvez fosse melhor abrir a janela e deixá-lo… falar. Fechei os olhos, acenando
involuntariamente a cabeça. Era impressionante a quantidade de desculpas que eu era
160
capaz de elaborar, só para não admitir que gostaria de o ver outra vez, mesmo estando
sentida com ele e com as suas amargas palavras.
Ao atingir a janela, afastei as cortinas lentamente, trémula, até que encontrei o seu
olhar, aparentemente neutro. Abri a janela o suficiente para lhe dar espaço para entrar,
enquanto me afastava no sentido oposto.
Quase automaticamente, senti a fria brisa que corria lá fora, antes de o ouvir fechar sem
ruído a janela. A sua presença era silenciosa, mas marcante – novamente conseguia sentir
o peso do olhar dele em mim, questionando-me. Da posição em que me encontrava,
conseguia vê-lo, mas não tinha coragem de encontrar – ainda – o seu olhar, contudo podia
perceber que mantinha uma postura tensa. E vestia exactamente as mesmas roupas, pois a
escuridão que o perfil dele emanava, denunciava-o. Ainda demorei alguns segundos a
recolher a coragem suficiente para me dirigir a ele.
- O que se passa? - Questionei eu, com a voz mais firme possível.
- Isso pergunto eu – respondeu ele, automaticamente, como se tivesse a resposta na ponta
da língua.
- Perdão?
- Ouviste perfeitamente.
O tom dele era de uma firmeza incrível.
- Está tudo bem – retorqui, com insegurança na voz. Era muito difícil afirmar algo que não
era, de todo, verdade. Era, também, evidente que as recordações dos acontecimentos de há
algumas horas atrás me afectavam profundamente, efeito que, seguramente, se reflectia na
minha face e… no meu estado de espírito. David olhava-me com atenção, como se me
estivesse a analisar.
- És péssima a mentir - declarou ele, com um tom mais leve.
Apesar de não abonar a meu favor, tinha que admitir que ele tinha razão e eu… não tinha
uma resposta concreta para lhe oferecer, pelo que decidi que mais valia perguntar-lhe o
que queria de mim.
- Pois então, o que queres que te diga?
Vi-o avançar na minha direcção, lentamente mas com passos largos, sem nunca
deixar o meu olhar, até que parou a menos de um metro de mim. A presença dele era, de
facto, algo absolutamente absorvente, capaz de prender todos os meus sentidos – enquanto
ele estava ali, à minha frente, tão perto de mim, só ele existia. Como é que ele fazia isto?
- Diz-me porque é que te estás a sentir assim.
- Assim, como?
161
- Maria… - começou ele, olhando-me de forma impetuosa e aproximando-se mais um
pouco. Sem dúvida, ele conseguia ser muito persuasivo, quando queria. - …assim, da
forma que consigo ouvir o teu batimento cardíaco a quatro quarteirões de distância…-
via-o agora hesitar, enquanto me observava atentamente. - …sinto claramente a tua
tristeza e a tua… mágoa.
Estava estupefacta pelas suas sábias palavras, que me tinham desarmado,
completamente. Ele sabia do que falava. Ele sabia o que eu sentia. E agora, queria as
minhas razões.
Sentia a voz falhar, ao recordar as amargas palavras que havia pronunciado na audiência e
ao recordar a imagem dele, com aquele olhar absolutamente implacável.
- David… - comecei eu. Eu tinha bastante dificuldade em mencionar o assunto. Era-me
muito difícil explicar o quão inferiorizada me sentia face às suas cruéis afirmações. - Tu
não entenderias… - desabafei eu, afastando o meu olhar do dele.
- Maria…
- Não importa. A sério.
- Para mim, importa.
Agora, sentia-me a hesitar. Valeria a pena confessar-lhe as minhas reservas? As razões
pelas quais sentia aquela mágoa imensa?
- É que… ouvir-te a chamar-me humana útil e espécime vantajoso é… cruel. Entristece-
me… - declarei eu, sem coragem para o olhar directamente. - Mas eu entendo que tu não
compreendas as minhas razões, porque afinal tu és…
- Um vampiro - interrompeu ele, com um tom de voz consternado.
- Sim, - respondii eu, apesar de não concordar totalmente com a sua afirmação – para
mim, ele não era apenas um vampiro. E continuei. - E eu, sou simplesmente…
Uma humana. Patética e ridícula. Um ser que, definitivamente, não compreende a sua
posição na cadeia alimentar. Doía-me pensar nesta cruel realidade, ainda que não tivesse
hipótese a não ser aceitá-la.
- Maria… – ouvi-o dizer, subitamente, quando o senti aproximar-se novamente de mim,
de tal forma que senti a sua gélida respiração atingir-me, sinal de que ele estava –
excessivamente – perto. Eu já sabia o que ele queria. Ele queria que eu o olhasse – nos
olhos – e isso fazia-me recear… as consequências. A essência dele preenchia-me os
sentidos de uma forma incontrolável. Ele era… asfixiante.
- …Tu não és menos do que eu por seres humana – declarou ele, com um tom
desconsolado. - E a minha espécie não é superior à tua. Muito pelo contrário, até temos
bastantes limitações – adicionou ele.
162
- Mas também muitas vantagens… – sussurrei eu, com um tom amargo.
- Não há espécies perfeitas – certificou ele, firmemente. - O que me ouviste dizer e
afirmar na audiência está longe de ser a minha verdadeira opinião. Pensava que já sabias
disso.
- Na audiência foste muito… seguro nas tuas palavras e eu… acreditei – balbuciei eu, em
tom de justificação.
- Mesmo depois da nossa conversa na noite anterior? - O olhar dele reflectia, agora,
tristeza e desapontamento. - Maria, eu tinha que ser muito convincente naquela audiência,
para o bem de ambos. Era necessário.
- Eu sei...
Era impressionante o quão idiota eu me estava a sentir naquele momento. O olhar dele
encontrava-me com alguma indignação, embora não me julgasse por eu me ter sentido
daquela maneira na audiência. E era verdade. Apesar de, no fundo, eu conhecer as
intrincadas implicações na nossa situação, era-me difícil ouvir aquelas palavras.
- Maria… - chamou ele, agora com enternecimento na voz. Limitei-me a olhá-lo, surpresa
e curiosa com o que ele me queria dizer. - …se essa fosse a minha verdadeira opinião,
achas que eu teria passado por cima de todas as leis e regras para te poupar?
Não tinha palavras para lhe responder. Aliás, não conseguia pensar em nada em
concreto. Estava demasiado surpreendida com as suas últimas palavras para conseguir
verbalizar mais do que simples monossílabos. Era um elogio? Se fosse, seria muito subtil
aliás, como tudo em David, imperceptível e misterioso.
Sentia agora uma enorme vontade de o abraçar, ao recordar as compassivas palavras que
ele havia proferido. Afinal, ele respeitava-me. A mim, à minha espécie, aquela que se
comove com o mínimo comentário desagradável, aquela que não consegue manter-se
emocionalmente estável quando a ocasião o pede, aquela que, estranhamente, se afeiçoa à
espécie que os preda e aquela que não tem a mínima noção da situação (grave) em que
está, insistindo em relacionar-se com as míticas criaturas da noite.
Ouvi-o rir-se suavemente, enquanto me olhava com atenção. Era um som que eu nunca
tinha ouvido, mas contagiava-me, fazendo-me também esboçar um leve sorriso.
- O que foi? - Perguntei eu.
- É… – David hesitou, claramente à procura das palavras correctas para empregar. – Estás
a sentir-te melhor.
Não pude evitar semicerrar os olhos, em sinal de consternação relativamente à facilidade
com que eu expunha os meus sentimentos e o meu estado de espírito.
- A minha transparência consegue ser muito inconveniente, a maior parte das vezes.
163
- Não tem mal nenhum – respondeu ele, quase de imediato.
- Na audiência teve… – disparei eu, relembrando-me do episódio infeliz durante a
audiência, que quase deitava tudo a perder se não fosse a súbita intervenção de David.
- Não te culpo.
- Mas é verdade.
- Não te culpes assim – certificou ele, admitindo um semblante sério. - Tu já te reprimes
demasiado. Constantemente.
Olhei-o, boquiaberta. Eu, reprimo-me? Em que se baseava ele para afirmar algo assim, e
de uma forma tão segura?
- Porque é que dizes isso?
- Tu és muito…perceptível, na maior parte das vezes. Embora faças um grande esforço
para dissimular o que sentes – afirmou ele, olhando-me de uma forma séria mas, ao
mesmo tempo, graciosa com a sua última asseveração.
Sentia-me novamente sem palavras. Como tantas outras vezes. Era vergonhoso para mim
que ele me conhecesse assim, desta forma tão aberta e óbvia, quando eu conhecia tão
pouco dele.
E dizia ele que a sua espécie tinha muitas limitações! Ainda que ser capaz de discriminar
os sentimentos de outrem seja uma pequena grande vantagem, pensei eu, com ironia.
Olhei-o. Estava completamente desarmada, frente às suas verídicas palavras. Verdades
incontestáveis. E agora, dizia-lhe o quê? Não que eu conseguisse proferir uma frase com
sentido, neste momento. A sua proximidade afectava-me, tinha que admiti-lo, apesar de
ser o olhar dele que mais me prendia, pois os seus olhos esmeralda pareciam, literalmente,
falar. Era estranha esta forma de comunicar, que consistia mais numa linguagem
alienígena que eu não compreendia, mas conseguia sentir o que significava. Dele emanava
algo que eu não sabia como descrever, apesar de estar envolto em intensidade,
despoletando uma série de reacções estranhas em mim. Seria um efeito característico da
espécie dele, ou era algo que ele fazia propositadamente? Fosse o que fosse, não era algo
novo, pois eu relembrava-me da ocasião em que o mesmo tinha ocorrido, numa noite
distante em que ele me tinha visitado, à porta do meu prédio, em Paris, onde eu tinha
percebido, pelo seu olhar, a despedida.
- Bem, eu… – começou ele, afastando-se de mim lentamente. - …tenho que ir.
Ora, eu não queria que ele se fosse embora. Não agora, que conseguíamos falar, não
agora, que nos tínhamos aproximado novamente. Tinha que o impedir.
- Não, espera! - Disparei eu, captando-lhe a atenção. Ele, agora, olhava-me com
curiosidade. - Tens alguma coisa… urgente para fazer?
164
- Não propriamente – respondeu ele, com a sua face curiosa.
- Então, podes ficar. Podemos…falar, – justifiquei eu, apercebendo-me da urgência que se
reflectia na minha voz. Talvez eu estivesse a exagerar. Mesmo. - A menos que tenhas
mesmo que ir.
- Falar?
O tom dele era de uma profunda surpresa. Seria assim um pedido tão invulgar?
- Se… não te importares… – respondi eu, com alguma reserva. Não haveria problema
nenhum em falar, pois não? O olhar dele prendia-se no meu atenciosamente e foi então
que eu percebi que ele estava a certificar-se de que o que eu dizia era mesmo autêntico.
Sempre desconfiado.
- Não, não me importo – declarou ele, aproximando-se novamente e encostando-se ao
pequeno móvel que decorava o quarto em que me encontrava. - Então, diz-me, o que
queres saber?
Eu sentei-me à beira da cama, de forma a que estava frente a ele, ainda que desnivelados.
A sua face estava séria, enquanto me observava, expectante.
- Honestamente, como é que correu a audiência?
- Tal como eu te disse, não correu mal. Apesar da desconfiança de Philippe.
- Desconfiança?
- Ele viu-me… hesitar e sentiu-te... tu sabes como – A sua face era, agora, um semblante
de amargura. Senti-me instantaneamente invadida por um enorme sentimento de culpa. Só
me restava tentar justificar-me, mais uma vez.
- Pois. Desculpa por não ter conseguido… controlar-me, mas foi mais forte do que eu.
- Já te disse que não te culpo. Eu também não estive no meu melhor.
- Eu sei, mas... podia ter-me esforçado mais…
- Fizeste o melhor que podias. E eu também não tinha o direito de te pressionar tanto –
declarou ele. - Já me tinha esquecido de como lidar com humanos.
O seu tom era, agora, de desolação. Claro que ele não se lembrava de como lidar
connosco. Quarenta anos de existência em que as únicas situações em que contactava com
humanos eram com o intuito de se alimentar – e isso não incluía obrigatoriamente diálogo.
E muito menos algo que se parecesse com amizade.
- Mas estás a conseguir… – retorqui eu. Ainda que do seu modo estranho e alienígena,
muito à sua maneira, éramos capazes de comunicar.
- Não devia. Não é permitido. Legalmente, sabes? - Confessou ele, com um tom sério. -
Vou pagar bem cara esta minha pequena rebeldia.
165
Mais uma vez, sentia-me culpada por saber que ele ia ser castigado pelas altas
instâncias do seu mundo, essencialmente por minha causa, por não ser capaz de me tratar
como mais um humano bisbilhoteiro, por teimar em manter-me viva, por alguma razão
desconhecida. No fundo, não o compreendia, mas agradecia-lhe.
- Na audiência falaste em mensageiros. O que são?
- São humanos que fazem serviços para vampiros.
- Ah…
E o que quereria isso dizer, concretamente?
- É a tua alternativa, - reafirmou ele, mais uma vez, com segurança na voz, olhando-me de
forma séria. - Só espero que Philippe ta conceda.
A voz dele, apesar de triste, era esperançosa, o que me fez sentir automaticamente
mais confiante. Não queria pensar na outra alternativa. Aliás, não queria falar mais sobre
o assunto da audiência.
- E agora, vais voltar para Paris - era uma constatação em forma de pergunta.
- Amanhã, sim, - respondeu ele. - E tu também devias regressar, o mais depressa possível.
Tens muitas aulas para recuperar - afirmou ele, com um sorriso nos lábios.
- É verdade… - constatei eu, relembrando-me da faculdade. Uma semana de aulas
perdidas, para recuperar. Esperava-me, certamente, muito trabalho pela frente. - Então e
tu? Também estás a faltar a aulas.
- O meu método é diferente do teu. Em Belas Artes não temos horário fixo - sorriu ele,
olhando-me, divertido.
- Afinal, sempre és artista - sorri eu, em resposta, relembrando-me das palavras curiosas
de Shiva. - Porque é que te matriculas na universidade? Não tens obrigatoriamente que o
fazer, pois não?
- Desde que estou em França, sim. Lothaire insiste em que nos actualizemos.
A minha face reflectia, sem sombra de dúvida, um enorme espanto.
- Actualizar? Quer isso dizer… que já te inscreveste várias vezes?
- Quatro - respondeu ele, com um sorriso mais aberto. E continuou, - História, Filologia
Germânica, Filologia Românica e, agora, Belas Artes.
Estava atónita, boquiaberta. Sentia-me absolutamente banal. Eu ainda não tinha
terminado a minha e ele… quatro licenciaturas? Ele tinha que ser muito culto. E
inteligente.
- Gosto de ler. Bastante. Era um hábito de família, - afirmou ele, com alguma nostalgia. -
Mas agora, senti necessidade de mudar - declarou ele, em tom de justificação.
- Impressionante… - sussurrei.
166
- Devias descansar - anunciou ele, mudando claramente o assunto. - Já é tarde.
Os olhos dele reflectiam, agora, preocupação e afecto. Genuinamente. Mas ele queria ir-se
embora e eu sentia-o. Pela urgência em dar por terminada a conversa, pelo incómodo que
ele sentia em relacionar-se com uma humana, pois era algo proibido, algo interdito por lei.
Mas, ainda assim, só esperava poder vê-lo outra vez. Não resisti a perguntar-lhe
directamente se seria possível o tão ousado desejo que sentia.
- Vou voltar a ver-te em Paris?
Ao ouvir as minhas palavras, o semblante dele mudava completamente e David mostrava-
se, agora, visivelmente incomodado. E eu calculava porquê. Como sempre, a minha
inconveniente transparência que não sabia controlar-se, que não era capaz de ser mais
discreta. E ainda dizia ele que eu me reprimia? Pois agora, o modo como me sentia era a
mais pura antítese de repressão.
- Eventualmente… terei que informar-te do resultado da audiência - afirmou ele, com a
postura tensa. O modo subtil com que me informava de que só contactaria comigo nas
ocasiões absolutamente necessárias era-me involuntariamente doloroso. Não o conseguia
evitar. A sua recente frieza não me surpreendia, apesar de me afectar de uma forma que eu
só podia classificar de idiota e…desproporcionada. Eu não podia ser amiga dele, eu não
podia relacionar-me com ele, indirectamente ele já mo tinha dito e o porquê. Mas eu
insistia. Só podia concluir mais uma vez que, de facto, eu era um ser humano patético.
Não lhe consegui responder. O que é que lhe ia dizer?
Encontra-te comigo todas as sextas-feiras, da uma às cinco da manhã, para pormos a
conversa em dia?
Era ridículo.
Subitamente vi-o mover-se, na direcção da janela. Ele ia-se embora. Levantei-me
rapidamente, como se, com este gesto, fosse evitar o inevitável. A agilidade dele era algo
incomparável, visivelmente sobrenatural para os movimentos humanos a que estava
habituada. Encaminhei-me na direcção dele, para o encontrar já em posição de retirada, na
janela, fitando-me secamente, com o olhar vazio.
- Encontro-te em Paris - foram as suas últimas palavras, antes de eu o ver desaparecer
veloz, numa direcção incerta, mergulhando na escuridão da noite. Nem sequer pude
despedir-me, nem dizer fosse o que fosse. Ele não me dava hipótese. Talvez fosse essa a
estratégia dele, evitar as ocasiões onde eu poderia dizer algo que nos aproximasse, evitar
criar laços. Seria assim tão mau? Seria assim tão inevitável, para ele desaparecer desta
forma?
167
Ele lá teria as suas razões, certamente seriam várias, – as que eu conhecia, as que ele me
ocultava e aquelas que nenhum de nós sabia. Ou, pelo menos, ele assim o afirmava.
Fiquei ali alguns momentos, parada, olhando a janela semi-aberta que deixava passar uma
leve brisa, que me arrefecia a face e afastava dela os meus caóticos caracóis. Fechei a
janela, puxando novamente a cortina. Procurei o telemóvel, para constatar que eram
exactamente quatro e trinta da manhã. - Talvez fosse melhor ir dormir.
Rapidamente, retirei as minhas roupas enrugadas da longa noite que tinha passado, para
entrar no conforto que o pijama me oferecia. Rapidamente mergulhei num sono profundo
e calmo, envolta em aconchego.
Tinha que regressar a Paris, rapidamente. Não só pela imensa quantidade de aulas
que teria que recuperar, nem pela saudade que tinha dos meus colegas, de Shiva, de Adèle,
– que não era de todo significativa, - mas porque sentia uma vontade imensa de regressar à
cidade onde tudo havia começado e desencadeado o turbilhão que invadiu a minha vida,
que impulsionou aqueles estranhos seres na minha direcção, absorvendo a minha
existência de uma forma incontrolável. Uma absorção que era, de todo, interdita. E talvez
por isso fosse tão… irresistível.
Às vezes sentia-me impelida a partilhar com alguém tudo o que sabia, tudo o que conhecia
daquele mundo paralelo ao meu. Era uma vontade quase imperiosa, mas logo de imediato,
bloqueada pela dura realidade dos acontecimentos. Ainda assim, era um grande fardo,
difícil de suportar, de controlar. Agora sim eu entendia porque é que as relações entre
humanos e vampiros eram tão complexas de manter e, consequentemente, proibidas, para
o bem de ambas as espécies. Era possível a coexistência, mas interdita a amizade – tal
como outras espécies na Natureza, o predador e o predado coabitam na mesma área, mas
não se relacionam. Nunca havia visto um leão conviver com a zebra, nem uma raposa com
o coelho, – salvo quando o predador está satisfeito, nutricionalmente. Nessa situação, a
presa é implacavelmente ignorada – porque não é necessária. No final de contas, tudo se
resumia a uma questão de instinto, de auto-preservação, em suma, as leis da Natureza. E
assim também o era nesta distorcida realidade, onde humanos e vampiros existiam, uns
entre os outros, silenciosamente.
Hoje sentia-me especialmente alheada de tudo o que me rodeava. Após enviar uma
mensagem de texto a Shiva informando-a que iria chegar à noitinha, tentei concentrar-me
na arrumação das bagagens, afastando as inevitáveis recordações das noites anteriores,
que ameaçavam, como de costume, ocupar grande parte da minha mente de uma forma
168
irritantemente persistente. Tentei, por outro lado, pensar na quantidade de matéria que
teria que estudar, os apontamentos para organizar e a marcação de exames finais que,
como sempre, consistia no grande acontecimento do semestre – em termos académicos,
obviamente.
Assim que terminei a minha monótona missão, saí do quarto e dirigi-me à recepção com o
objectivo de pedir informações de como chegar ao terminal de comboios, assim como as
horas de partida e chegada a Paris. Encostei-me preguiçosamente ao espelho que forrava
toda a parte superior do elevador do hotel e fechei os olhos, deixando-me embalar com o
movimento que me levaria ao rés-do-chão. Mal as portas se abriram, qualquer resquício de
preguiça que eu pudesse sentir desapareceu no momento em que os meus olhos
encontraram os de Sarah, que destilava espanto e surpresa de uma forma massiva.
Era só o que me faltava.
- Maria! - Exclamou ela.
- Olá, Sarah… - respondi eu, com uma falsa alegria que se reflectia de forma demasiado
óbvia. Ao recordar o seu semblante sedutor da noite anterior, constatei que, seguramente,
não tardaria dois segundos a perguntar-me por David. Paralelamente, o meu aspecto
ensonado e cansado também era um factor que não ajudava a dissipar as fantasias que
muito provavelmente já teria concebido na sua mente imaginativa, a julgar pelo olhar que
me lançava neste preciso momento.
- Tiveste uma noite animada, estou a ver… - declarou ela, com um sorriso malandro.
Pois claro. Já era de esperar. Respirei fundo enquanto tentava não lhe responder com um
apropriado mas inadequado “Não tens nada a ver com isso.”, à medida que saía do
elevador.
- Por acaso até tive uma noite bastante calma - respondi eu, no mesmo tom de Sarah.
- A sério? - Perguntou ela, genuinamente surpreendida. - Então, onde está o teu amigo?
Não pude evitar sorrir face à urgência que Sarah demonstrava em perguntar por David.
- Não está, como podes constatar - respondi eu, surpresa com a descontracção e rapidez
com que acabava de formular uma resposta extraordinariamente evasiva. Tal como David.
- Ah…
O seu rosto evidenciava, agora, derrota, certamente por não conseguir saber tudo o que
queria. Por outro lado, percebia que estava imersa em pensamento, provavelmente a tentar
encontrar uma forma de me fazer mais perguntas sobre ele.
- E o resto do espectáculo, como foi? - Interrompi eu, propositadamente, aproveitando
para desviar o assunto anterior.
- Bem… - respondeu ela, com um tom seco.
169
- Óptimo. - declarei eu. Era altura de evitar mais perguntas desconfortáveis. - Desculpa,
Sarah, tenho que ir tratar de uns assuntos na recepção. Até já.
- Até já…
O tom dela era, mais uma vez, de surpresa.
Na recepção, onde se encontrava agora uma pequena multidão, senti-me a salvo da
curiosidade de Sarah. Ela conseguia ser muito insistente, quando queria. Era uma
característica dela que saltava à vista, apesar de eu a conhecer há menos de vinte e quatro
horas. Aquela pequena investida a David na noite anterior tinha-me feito sentir claramente
sobressalente, apesar de ser visível o desprezo dele face a ela. Tinha que admitir que senti
um certo regozijo ao vê-lo a afastar-se do sorriso malicioso e das curvas lascivas de Sarah,
como se ela fosse um móvel enfadonho que não lhe suscitava nenhum interesse, em
nenhum aspecto. Recordar aquele momento fazia-me rir, mas, por outro lado, fazia-me
pensar no que lhe suscitaria interesse, para além do gosto pela leitura, não em termos
materiais, mas em termos pessoais. Como seria sua noiva, aquela que superou, quase à
velocidade da luz, a tristeza e o luto do seu desaparecimento, como ele referia nas suas
pesarosas palavras? Nem um ano tinha passado e ele já havia sido substituído, como um
mero acessório, como um brinquedo desaparecido que as crianças esquecem. Sentir-se-ia
ele triste, amargurado? Lembrar-se-ia dela? Já a havia esquecido?
Uns minutos depois, dei por mim a pensar como consolá-lo. Era um pensamento audaz, no
mínimo, que até a mim me surpreendia, no silêncio da minha mente. O que teria eu para
lhe oferecer como consolação, eu que não poderia competir com a sua sabedoria, com a
sua vivência, com o seu sofrimento, ao longo de quarenta penosos anos. Rapidamente o
meu audaz pensamento se desvanecia, face às minhas óbvias limitações, como ser humano
que era.
Estava imersa em pensamentos, naquela recepção onde, finalmente, aquela pequena
multidão começava agora a dispersar, dando-me hipótese de questionar a simpática
recepcionista sobre as minhas dúvidas. Foi com alegria que fiquei a saber que, no hotel,
tinham disponível os horários dos comboios para toda a França, para conforto dos clientes.
Informou-me então que o próximo comboio para Paris partia às catorze horas em ponto.
Olhei para o relógio que se encontrava na recepção. Era meio-dia. Pedi gentilmente à
recepcionista para chamar um táxi que me levasse à estação de comboios, enquanto
regressava rapidamente ao meu quarto, para ir buscar a reduzida bagagem que possuía. Saí
do hotel com alguma nostalgia, recordando todos os momentos que lá tinha passado – os
bons e os… menos bons.
170
O táxi demorou dez minutos a aparecer e rapidamente chegámos à estação dos comboios.
Ainda tinha comigo bastante dinheiro que David me tinha dado naquela fatídica noite,
pelo que era mais que suficiente para comprar o bilhete de volta para Paris e comer
alguma coisa, entretanto.
Sentei-me num banco cinzento e monótono, na plataforma onde esperava a hora do
comboio. Mordiscava sem apetite uma baguete mista que tinha comprado havia dez
minutos atrás, perdida numa imensidão de pensamentos que me invadiam a mente, onde o
protagonista era claramente aquele vampiro que, agora, fazia parte da minha existência.
Inquestionavelmente.
Só o ruído do comboio, cuja chegada se avizinhava, me despertou do aparente transe em
que me encontrava.
Dormi de forma intermitente a maior parte da viagem até Paris.
O comboio estava repleto, o que se revelava algo incomodativo ao fim de uma hora de
viagem, especialmente quando estava rodeada de pessoas que tagarelavam sem piedade,
sem uma única pausa. Era impressionante como o assunto nunca se esgotava e conseguia
envolver bordados em linho e produção vinícola de uma forma constante. Eu conhecia-me
o suficiente para saber que era uma pessoa introspectiva e tímida, mas tinha que admitir
que aquele típico par de senhoras que se sentara exactamente à minha esquerda, era
excessivamente comunicativo. Sentia-me aborrecida e, mais uma vez, lamentava
profundamente não ter trazido o meu leitor de Mp4 para me salvar daquela tagarelice
estrangeira. Claro que as razões para o esquecimento do leitor de IPod se deviam, como
seria de esperar, à presença de um certo… ser, que aparecera, a horas menos próprias, à
janela do meu apartamento em Paris, a exigir a minha partida. Se não fosse pelas
circunstâncias, atrever-me-ia a afirmar que toda a situação era extremamente arrebatadora.
Acenei a cabeça negativamente, ao pensar – novamente – naquele cenário, nele… Era
inevitável.
Argh.
Tinha que parar com isto e controlar-me, porque de todos os improváveis caminhos que os
acontecimentos pudessem tomar, este não era, certamente, uma opção viável. A realidade
era bem diferente. Ele ofuscava-me (sem sombra de dúvida), mas eu não tinha esse efeito
nele… e nem nunca teria. Afinal, eu era só uma simples humana que tinha, por alguma
razão cósmica, levado um vampiro admirável a rebelar-se. Quão estranha poderia ser esta
realidade?
171
Acenei novamente a cabeça, tentando sacudir os pensamentos que teimavam em levar-me
(constantemente) para as recordações da imagem dele, as suas compassivas palavras e…
para aquele magnífico olhar esmeralda.
Quando finalmente cheguei a Paris, já o sol começava a desaparecer no horizonte.
Por um lado, estava contente por me sentir – finalmente – liberta do esconderijo que a
cidade de Estrasburgo me tinha proporcionado, ainda que não me sentisse totalmente em
segurança. Tentei lembrar-me das palavras de David: “Esperar o resultado da audiência.”
Para mim, o “entretanto” significava imunidade, pelo menos enquanto o resultado não
fosse oficial. Por isso, talvez não houvesse problema em circular por Paris à noite, mesmo
que fosse de táxi, ou nos circuitos que habitualmente fazia da universidade para os
hospitais e destes para casa. Respirei fundo, compenetrando-me que tinha que ser
optimista e tentar fazer a minha vida de estudante como se nada se tivesse passado. Como
se eu tivesse uma vida monotonamente normal, envolta em livros e desejos de progressão
na carreira, como tantos colegas meus. O comboio parava, agora, lentamente, enquanto os
passageiros – onde eu me incluía – retiravam as bagagens, preparando-se para sair.
Recordava a estação de comboios, tal como naquela madrugada, enquanto percorria
aqueles longos corredores que não me eram totalmente desconhecidos, mas que,
felizmente, estavam bem sinalizados. Rapidamente encontrei a saída e procurei um táxi,
para me levar ao meu pequeno apartamento, do qual já tinha saudades.
Demorei cerca de vinte minutos a chegar à frontaria do cinzento prédio onde residia. Já
era noite cerrada e mal podia esperar por entrar em casa e falar com Shiva - a animosidade
dela fazia-me falta, tinha que confessar. Mal entrei em casa, senti imediatamente o
alvoroço da cozinha correr na minha direcção, animado por uma face e uns olhos
extremamente expressivos.
- Maria! Que saudades! - Exclamou Shiva, abraçando-me com força. - Então, que tal as
tuas pequenas férias?
- Boas, - afirmei, enquanto lhe piscava o olho. - Os meus tios foram… incansáveis -
menti eu, descaradamente. Pela reacção de Shiva, pude deduzir que ela não desconfiava
de nada. Aparentemente eu não era assim tão péssima a mentir… com outrem que
não…ele.
- Tens fome? Estava a preparar o jantar para nós - sorriu ela, encaminhando-se na direcção
da cozinha.
Olhei para as horas, eram oito e meia da noite. Mais do que horas para jantar e colocar a
conversa em dia.
172
- Vou pôr a bagagem no quarto e já venho ajudar-te - informei eu, enquanto me dirigia ao
meu pequeno espaço parisiense.
Ao entrar, liguei a luz e senti-me obrigada a parar, contemplando aquele pequeno vórtice
de recordações que era o meu próprio quarto. Meu Deus. Assim, ia ser muito difícil.
Complicado, no mínimo. Tentei, mais uma vez, concentrar-me, inspirando fundo um par
de vezes, onde até me parecia conseguir discernir a essência dele no ar que ali permanecia,
desde a última vez que ali estive… com ele. Avancei, determinada, abrindo a janela e
deixando o ar de fora invadir o meu quarto e – esperava eu – renovar rapidamente o
ambiente que ali se encontrava. Deixei as bagagens à beira da cama e olhei para a
secretária, onde se encontrava uma massa consistente de papéis minuciosamente
arrumados.
Hum! Eu não deixei aquilo ali.
Sobre aquele molho encontrava-se um post-it preenchido por uma caligrafia que eu
conseguia reconhecer até de olhos fechados: Adèle.
Naquela pequena porção de papel, Adèle informava-me que tinha tomado a liberdade de
fotocopiar todas as suas aulas durante a semana para eu não perder tempo durante o fim-
de-semana e começar a pôr a matéria em dia. Despedia-se com um caloroso “Bisous”,
seguido da sua ilegível assinatura. Sorri para mim própria, concluindo que, sem dúvida,
Adèle era uma amiga. Uma verdadeira amiga.
Voltei rapidamente para a cozinha, onde encontrei a enérgica face de Shiva, que me
olhava com interesse. No mínimo. E isso era sinal de que iam começar as perguntas.
- Aquela tua colega veio cá a casa deixar-te uns apontamentos, acho eu - informou ela,
enquanto mergulhava vigorosamente a alface que se encontrava no lava-loiças.
- Já vi. Obrigado.
- Ah! De nada. Tive uma semana bastante solitária, sabes? - Brincou ela, olhando-me de
soslaio.
- Desculpa, mas tive mesmo que ir, os meus tios insistiram tanto…não podia recusar… -
menti eu, mais uma vez, mantendo a compostura sem nenhuma dificuldade.
- Não te preocupes, mantive-me entretida. Saí quase todas as noites com o Thomas e com
a Vera. Eles perguntaram por ti.
Limitei-me a acenar, em sinal de confirmação.
- Esta semana foi extraordinária, especialmente em Montmartre. Vi imensos colegas… até
os de Arte, vê bem. Eles, que nunca se deixam ver! - Brincou ela, olhando-me com um ar
indignado, enquanto cortava a alface.
173
Não pude evitar ficar séria. Mas ela não os conhecia, como eu. Ela só tinha visto Nevio e
David. Teria acontecido alguma coisa que eu não sabia?
- Viste-os? Mas… foram sair? O que faziam?
A urgência com que proferia as palavras denunciava o meu interesse e a curiosidade,
ainda que não pelas razões que Shiva certamente pensaria. Pelo menos não… totalmente.
- Calma, Maria… - afirmava ela, com um tom malandro e um olhar ainda mais sugestivo,
antes de continuar. - Não vi o teu “amigo”, só o antipático do italiano com mais dois que
eu nunca tinha visto. Mas pelo aspecto eram, de certeza, colegas - informou ela,
alegremente.
Eram Pierre e Gustave com Nevio, tinha a certeza absoluta. E David não estava com eles,
porque… estava comigo. Em Estrasburgo.
- E eles estavam em Montmartre? - O meu tom era, agora, mais casual.
- Sim, nas noites que lá estive - Informou ela. - Mas também os vi aqui nas redondezas no
domingo à noite, depois de teres ido ter com os teus tios.
Quase que senti o coração parar ao ouvi-la referir-se à presença deles perto do
apartamento onde eu estava, exactamente um dia depois de eu ter sido praticamente
“raptada” para Estrasburgo. Mais uma vez tinha a confirmação da gravidade da situação,
tal como David me havia referido, inúmeras vezes. E eu… que não tinha a mínima noção
do perigo que corria naqueles momentos, se não tivesse a presença dele para me proteger
do fim cruel que, sem dúvida, me esperaria. Afinal, eles iam fazer justiça com as próprias
mãos, tal como David me tinha alertado. Uma questão de cumprir a lei, cegamente… sem
dó nem piedade… nem escrúpulos.
- Maria, o que foi? - Shiva olhava-me, com a sua face preocupada.
- Nada… só estou um bocadinho cansada - menti eu, tentando dissimular o terror que
seguramente inundava a minha face, após ter ouvido as fatídicas palavras de Shiva. Algo
me dizia que, desta vez, não tinha conseguido ser tão convincente com a pequena mentira
que havia proferido.
- De certeza? - Perguntava Shiva, limpando as mãos ao avental, enquanto me observava,
com um semblante curioso.
- Sim, - afirmei eu. Tinha que mudar de assunto rapidamente. - Precisas de ajuda?
- Não.
Shiva acabou de preparar o jantar em menos de dez minutos. Não houve mais menção aos
esquisitos alunos de arte que estiveram estranhamente omnipresentes na semana anterior e
Shiva não me perguntou nada acerca de David, embora eu sentisse a vontade dela de se
referir ao assunto, enquanto jantávamos. Em vez disso, deixei-a falar sobre as suas noites
174
de divertimento, nomeadamente as pessoas que havia conhecido, os novos bares que havia
experimentado e, para meu espanto, o novo clima de cumplicidade que havia surgido entre
ela e Thomas. Shiva informava-me, bastante entusiasmada, que havia alimentado o
interesse de Thomas com as suas extraordinárias armas de sedução (que eu não conseguia
imaginar quais eram, mas também não estava interessada em descobrir a sua natureza…) e
que, inclusivamente, Vera tinha exibido um pouquinho de ciúme face ao clima que Shiva
havia organizado. Não podia evitar comentar a atitude de Shiva.
- Shiva! Foste terrível… - brinquei eu, dando um tom de exagero à situação.
- Ora! Thomas agrada-me. Ele é interessante - referia ela, com um sorriso aberto,
enquanto olhava para o prato, misturando os alimentos de forma caótica. Definitivamente,
parecia nervosa.
-A sério?
Era algo difícil de imaginar. Shiva verdadeiramente interessada por alguém. Pelo menos
por mais de uma semana.
- Sim, mas sejamos realistas. Somos do programa de intercâmbio, ele é alemão, eu sou
indiana, não há futuro - retorquiu ela, sem aparentar tristeza nem remorso. - Mas…
digamos que eu também não procuro algo definitivo. Pelo menos, por enquanto -
adicionou ela, sorrindo.
- Pois… - respondi eu, espantada com a descontracção dela, ao referir-se a alguém como
uma simples forma de distracção. Eu não conseguia ser assim. E talvez fosse por isso que
estava sozinha.
- Então e tu, Maria? - perguntou ela, repentinamente, apanhando-me de surpresa.
- Eu, o quê?
- Novidades do foro emocional… - esclareceu Shiva, olhando-me como se a constatação
dela fosse algo muito óbvio.
- Ah, não. Nada… de novo - menti eu, embora não fosse completamente errada a minha
última asseveração.
- Tens que fazer alguma coisa para mudar isso, Maria! - Shiva olhava-me com uma
preocupação genuína no olhar. - É demasiado entediante, sem a adrenalina, sem a emoção
do romance.
Oh! Se ela soubesse só uma mínima parte das ocorrências na minha monótona e
desinteressante vidinha que, aparentemente, só envolvia livros e carreira; Se ela soubesse
que a minha vida tinha estado em jogo praticamente desde a minha primeira semana em
Paris; Se ela soubesse que, na verdade, os bizarros alunos de arte me vigiavam de longe,
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que existia um mundo à parte do nosso mesmo ali ao lado. Semelhante à quinta dimensão,
mas real.
- Pois, é verdade… - afirmava eu, com um tom aborrecido, na direcção dela, enquanto
olhava para o prato, desejando que aquele assunto terminasse ali e que, a ela, não lhe
ocorresse perguntar por…
- Então e o David?
Claro. Já se estava mesmo a ver. Era bom demais para ser verdade.
- Não sei, - respondi eu, esforçando-me para manter um tom de desinteresse. Subitamente,
olhei para ela, para encontrar um intenso olhar de reprovação. - É verdade! - Reforcei eu,
embora já soubesse que de nada serviria a minha insistência em reforçar algo que ela
simplesmente não aceitava como resposta.
- Maria, tens que arriscar. É óbvio que existe algo entre vocês.
Olhei-a, indignada. Sim, de facto era óbvio que existia algo. Algo terrível, que nos unia.
Uma ligação extremamente perigosa, proibida pelas altas instâncias. Algo que ameaçava a
minha integridade física e emocional e, em suma, a minha existência. E agora, como é que
eu lhe ia explicar que a realidade que ela conhece não é mais do que uma trégua entre
duas espécies, cujo equilíbrio delicado estava comprometido e que eu tinha contribuído
para arruinar esse equilíbrio, ainda que de uma forma totalmente involuntária. Como
explicar-lhe que David nem sequer era humano e estava a arriscar-se de uma forma
estupidamente heróica, por mim.
Meu Deus. Afinal, em que mundo irracional vivo eu?
- Shiva… - comecei eu, pensando cuidadosamente nas palavras que iria utilizar. – Eu e
ele… Nós somos muito diferentes. - Inclusivamente ao nível da espécie. - Do pouco que
conheço dele, já percebi que ele… - Pertence a outra categoria. A todos os níveis. -
…vive num mundo distinto do meu, de tal forma que é, simplesmente… incompatível.
Shiva olhou-me, perplexa. Ela não fazia ideia da veracidade das minhas palavras, apesar
de ela as interpretar de uma forma totalmente paralela à real. Só esperava que ela pudesse
compreender e deixar de insistir nele como uma opção viável para mim.
- Ora. Melhores tempos virão - afirmou Shiva, com um sorriso aberto. - Tens que ter
esperança.
Acenei, como se concordasse com o que havia proferido, enquanto olhava para o prato
ainda parcialmente coberto de alimentos, considerando as suas palavras. Esperança.
Se havia algo onde eu me pudesse agarrar seria, definitivamente, à esperança... Esperança
de conseguir sair de tudo isto… viva. Esperava, com muita força, que assim fosse.
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CAPÍTULO 12 – ÓPERA GARNIER
AS SEMANAS QUE SE SEGUIRAM FORAM PARTICULARMENTE TRABALHOSAS.
Após a minha chegada de Estrasburgo, nem tinha tido tempo para respirar, considerando a
quantidade extraordinária de temas para estudar, para além das aulas que tinha perdido
pelas razões que eu tão adequadamente classificava de força maior. Adèle ajudou-me
durante a primeira semana a lidar com a bibliografia que envolvia como língua
predominante o francês, enquanto aproveitávamos para estudar a matéria. Era uma boa
forma de me abstrair das imagens da semana anterior em Estrasburgo, da presença
constante de David na minha mente, da saudade que sentia – tinha que admitir. Apesar de
não o referir a ninguém, por vezes o meu semblante denunciava-me e, face às questões
que Adèle ou Shiva me colocavam, eu acabava por mentir, referindo a saudade de casa e
do meu país. Não que não fosse verdade, mas não era essa a verdadeira razão pela qual
ocasionalmente, eu expirava ruidosamente, ou mantinha um olhar vazio, revelando a
minha clara ausência do local onde me encontrava. Mentalmente, pelo menos.
A Primavera estava a chegar a Paris e, com ela, um extraordinário preenchimento
da cidade com a mais frondosa vegetação que havia visto. Das nuas árvores que
povoavam a Cité Universitaire já conseguia ver como brotavam as pequenas folhas dos
ramos que mantinham, ainda, uma aparência grosseira e gasta do rigor do Inverno. Do
meu quarto podia contemplar como a Primavera, a pouco e pouco, discretamente, ia
ocupando os mais inóspitos recantos da cidade.
Com esta estação do ano, não surgiam somente as flores e o regresso das andorinhas, mas
também se observava a tão característica elevação dos níveis hormonais da maior parte
dos seres humanos em meu redor. Shiva estava perto do que eu considerava insuportável;
a sua pequena fixação por Thomas havia terminado rapidamente para dar lugar a uma
paixoneta desproporcionada por um colega de turma, segundo ela, um francês de aspecto
admirável com uns olhos hipnotizantes. Se não fosse pelo facto de ele ser claramente um
ser diurno, com hábitos característicos de seres humanos, atrever-me-ia a suspeitar que se
tratasse de um vampiro. Mas, como não era o caso, deixei a minha suspeita claramente
infundada dissipar-se na minha mente. Agora Thomas relacionava-se abertamente com
Vera, mas somente porque já não se encontrava debaixo do feitiço que era o mundo de
Shiva e as suas irresistíveis armas de sedução. Pelo menos, era esta a versão dela – que
conseguia ser tudo, excepto imparcial. E realista. E… modesta, na minha opinião. Mas
177
Shiva era mesmo assim, muito centrada nela própria e, pelo menos, já tinha desistido de
me questionar acerca de David e das imensas alternativas masculinas que existiam na
cidade, às quais eu tinha obrigação de me agarrar, segundo ela, com unhas e dentes. Após
algum tempo a ignorar as suas repetidas tentativas de bisbilhotar a minha vida pessoal,
Shiva optava então por me informar das suas fugazes conquistas e do quão previsíveis
eram os milhentos rapazes que já conhecia, razão pela qual continuava a procurar -
avidamente – o seu príncipe encantado. Eu ouvia-a atentamente, pelo menos durante os
primeiros cinco minutos, para depois me limitar a acenar, enquanto ela falava e eu me
transportava mentalmente para os mais variados locais longe dali.
Como estava muito ocupada, para mim as semanas passavam sem eu me aperceber da
velocidade estrondosa a que se aproximava a fatídica época de exames. O mês de Abril
chegava e, com ele, as férias da Páscoa, que consistiram numa miserável semana em que
eu nem sequer pude viajar para Portugal matar saudades dos meus pais e da minha irmã.
Como compensação, fui brindada pela presença deles durante um fim-de-semana que
envolveu também os meus tios, aqueles que eu tinha – supostamente – visitado durante
uma semaninha de férias. Para além disso, simplesmente aproveitei para dormir um pouco
mais do que o dia-a-dia académico me permitia, pois grande parte dos meus dias estavam
ocupados por estudo e mais estudo, alternados com momentos ocasionais de convívio com
Shiva.
Maio chegou veloz e com ele o infalível stress que precedia as avaliações, exames
escritos e orais. Até Shiva estava mais calma, mais concentrada nos seus afazeres e o
tempo que reservávamos para confraternizar estava claramente reduzido a um par de
vezes durante o dia, que normalmente coincidia com a hora das refeições.
Foram dois meses de árduo trabalho e pouco divertimento, que me ocuparam a mente e o
corpo de uma forma absolutamente absorvente, não me deixando tempo para pensar na
ausência de David desde que tinha regressado de Estrasburgo. Ele, sim, parecia que se
tinha evaporado, literalmente. Nas escassas ocasiões em que a faculdade não me permitia
chegar a casa mais cedo, ou quando estudava com Adèle até mais tarde e regressava de
metro ou de eléctrico para casa, não fui surpreendida com a presença de nenhum dos
vampiros cujas feições já conhecia. Ainda que a inexistência deles fosse só aparente, – eu
bem sabia que eles continuavam a circular por ali, pois era o dever deles – o facto de os
dias se estarem a tornar progressivamente mais longos corroborava a meu favor. Cada vez
anoitecia mais tarde e, consequentemente, mais segura me sentia ao percorrer a cidade nas
horas vespertinas mais tardias.
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O calor começava a sentir-se cada vez mais explicitamente, dando lugar às roupas leves,
ténis coloridos e aos acessórios alusivos às estações mais quentes, ainda que o calor em
Paris não se parecesse – nem de longe – com o calor a que eu estava habituada na minha
cidade natal, pelo que, para mim, Maio em Paris não era mais do que uma amostra de uma
primavera fresca, acabada de chegar, quando os meus colegas consideravam que vinte
graus centígrados já era, caracteristicamente, temperatura de Verão.
Era inevitável relembrar-me do encurtamento obrigatório que os hábitos nocturnos de
David teriam sofrido. Seria penoso passar agora mais tempo escondido da luminosidade,
fosse lá onde fosse que ele – e os seus “amigos” – se resguardavam? Far-lhes-ia diferença
menos duas ou três horas de escuridão? Não fazia a mínima ideia. O máximo que poderia
fazer era especular. Deduzir, ou supor. Nunca o poderia confirmar. Porque – eu já sabia, -
ele nunca mo diria. Para minha segurança.
Tal como referia o famoso provérbio “Longe da vista, longe do coração”, o facto de eu
não o ver – fisicamente – ajudava-me a abstrair-me, mas era de todo impossível, esquecer
que ele existia. Era simplesmente impraticável, por muito que eu quisesse, que eu
desejasse que assim fosse. Por muito que eu tentasse.
Por isso, o provérbio estava parcialmente errado. Era essa a única conclusão óbvia a que
poderia chegar. A menos que o provérbio se referisse somente a situações que
envolvessem seres da mesma espécie. E não podia fazer nada para modificar a minha
realidade, por muito incomodativa que fosse. Como tantas outras vezes, já tinha chegado a
esta miserável conclusão, mas continuava a insistir em pensar no assunto, em questionar a
sua ausência, a indagar o que estaria ele a fazer, em variadas horas do dia… e da noite.
Sentia-me estúpida, por me deixar influenciar pela presença de um vampiro ausente. Se
bem que ele era um vampiro e fosse, de certo modo, “natural” que ele tivesse um efeito…
envolvente na maior parte dos humanos – onde eu (claramente!) me incluía -, nada
justificava a sensação de vazio que eu sentia há mais de dois meses, sem ter notícias dele.
Nem uma mensagem, nem uma visita. Nada.
Nas primeiras semanas após regressar de Estrasburgo ainda observei discretamente pela
janela do meu quarto, ou de soslaio pela janela da cozinha, logo após anoitecer,
esperançosa que aquela estátua viva aparecesse, mas sem sucesso. À medida que os dias
passavam, apercebia-me de quão fiel ele era à sua palavra e percebi que ele só viria
quando soubesse o resultado da audiência. Ponto final. E, por muito que me custasse,
tinha que me conformar com esta realidade, tinha que aceitá-la, porque eu sentia que ela
não ia mudar.
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A Época de Exames chegava no final de Maio, um mês de implacáveis avaliações
que ameaçavam destruir toda a nossa capacidade de encaixe.
Shiva estava destemida, insuportavelmente impaciente, sinal de que se sentia stressada;
Adèle, como minha companheira de estudo, com quem desabafava a minha aparente
incapacidade de pronunciar correctamente uma frase complexa em francês, mostrava-se
extremamente compreensiva com a minha elevada irritabilidade quando se aproximavam
os exames orais. Só nestas alturas me arrependia amargamente de ter escolhido um país
com língua oficial francesa como destino do programa de Intercâmbio. Ainda assim,
éramos das poucas alunas que podiam afirmar que os exames estavam a correr bem, sem
percalços relevantes, sinal de que todo o trabalho desenvolvido nos últimos meses estava,
sem dúvida, a dar frutos.
O final de Junho aproximou-se, assim como o meu último exame - o último,
finalmente. Nos quatro dias que antecediam a data do último exame, eu encontrava-me
francamente ansiosa. Não pela expectativa de ir realizar o último exame, nem por me
encontrar com um cansaço extremo, mas porque ainda não tinha tido notícias de David,
relativamente à audiência. Não saber de nada em relação à audiência começava, agora, a
preocupar-me, pois assim que os exames acabassem, eu tinha uma viagem marcada para
Portugal… Era o regresso definitivo, ainda que, com toda a segurança, conseguisse adiar o
meu regresso um par de dias, sem evitar perguntas desconfortáveis dos meus pais. Mais
do que isso, seria impensável.
Todos dias, ao anoitecer, a minha figura fixava-se na janela do quarto, esperando,
confiante que ele pudesse aparecer para me dizer algo, fosse o que fosse. Mas as horas
passavam e tudo à minha volta permanecia igual, com a ausência dele a assombrar-me as
noites…e os dias. Pela minha mente já tinham passado as mais variadas justificações, os
mais elaborados cenários, do mais realista ao mais ridículo.
Nas vésperas do último exame, a minha mente não tinha espaço livre para relembrar a
dura realidade da ausência de David, pois estava demasiado ocupada com o conteúdo
académico que ia ser avaliado no dia seguinte, pelo que nessas horas, essa foi
exclusivamente a minha única preocupação.
No dia seguinte o exame realizava-se nas primeiras horas da manhã e, nervosamente,
encaminhei-me para o local, onde já se encontrava Adèle. Só desejava terminar o exame
rapidamente. Sentia-me cansada e a precisar de férias.
Mas antes disso ainda tinha um pequeno – grande – problema para resolver.
180
O exame não me correu da melhor maneira mas, sinceramente, pouco me
importava. Só queria que chegasse o anoitecer e que David aparecesse, para que eu
pudesse saber o que fazer. O restante da manhã e a tarde que se avizinhava enorme –
demasiado longa – enervavam-me. Eu estava demasiado impaciente.
Almocei com Adèle que se mostrava excessivamente desgostosa por ter chegado a hora de
eu me ir embora. Apesar de ser algo inevitável, como eu lhe referi. O almoço prolongou-
se por toda a tarde e foi com promessas de e-mails semanais obrigatórios e telefonemas
nas datas mais relevantes que consegui convencer Adèle a deixar-me voltar para Portugal
sem uma data concreta para regressar a Paris, para a visitar.
Cheguei a casa pouco antes da hora do jantar, ainda era dia. Um nervoso miudinho parecia
apoderar-se de mim de uma forma incontrolável, como que alertando-me que algo se iria
passar. Seria hoje que David apareceria? Lá em baixo, na rua, ou talvez à janela? E a que
horas? Expirei ruidosamente, enquanto entrava em casa, esperando encontrar Shiva, muito
provavelmente extasiada por já estar de férias. Contudo, o que encontrei foi um silêncio
massivo. E, alguns metros mais adiante, decorando a porta do quarto de Shiva, um post-it
cor-de-rosa, em forma de flor, onde me informava que ia jantar fora e que voltava (muito)
tarde. O modo como terminava a mensagem, rodeada de pequenos coraçõezinhos pintados
a vermelho, revelava o teor romântico do jantar, assim como a companhia. Não pude
evitar sentir-me desamparada, pois naquele momento sentia-me seriamente necessitada da
boa disposição de Shiva, para me retirar do nervosismo em que me encontrava.
Assim sendo, não tinha hipótese, a não ser… esperar. Esperar que ele, hoje, aparecesse.
Entretive-me durante cerca de duas horas: arrumei uma quantidade considerável de livros
e material académico, organizei toda a roupa que tinha, preparando-a para a colocar na
mala de viagem, enquanto observava discretamente o sol a descer no horizonte, a
esconder-se por detrás das nuvens, a desaparecer lentamente, enquanto Paris mergulhava
na sombra da noite.
Já era noite quando decidi ir preparar o jantar, que consistiria certamente em algo rápido e
leve, pois não sentia muita fome.
Olhava, estática, para a janela, observando como a noite estava hoje particularmente
escura. Como não estava especialmente esfomeada, optei por fazer uma sanduíche
simples, com o sumo que ainda restava do dia anterior. Comi encostada ao balcão da
cozinha, sem paciência para me sentar, pois as minhas pernas não me deixavam relaxar,
estava demasiado agitada. Definitivamente, ia-se passar qualquer coisa. Eu sentia algo em
meu redor, mas não sabia o que era, nem no que consistia… mas seguramente envolvia-o,
a ele.
181
O barulho da campainha sobressaltou-me, fazendo-me olhar no sentido da porta.
Mas eu não estou à espera de ninguém.
Mantive-me a olhar na direcção da porta, à espera de… nada em concreto. Até que ouvi,
novamente, o ruído da campainha. Avancei, em bicos de pés, sem fazer barulho, até à
porta, preparando-me para olhar pelo visor. Ainda o meu pensamento terminava de ser
verbalizado na minha mente, quando ouvi uma voz firme do outro lado da porta.
- Sou eu, David.
Senti imediatamente o meu batimento cardíaco disparar, ao ouvir a sua voz.
Instintivamente, abri a porta, para encontrar o olhar aquele extraordinário vampiro,
ligeiramente encostado à ombreira da porta. O semblante dele estava envolto em
misticismo, o cabelo descobria parcialmente a sua face e as roupas que vestia eram as
habituais – uma t-shirt e calças de ganga – escuras, como de costume, mas agora sem a
etiqueta que relembrava a audiência em Estrasburgo.
David, por outro lado, observava-me com curiosidade e expectativa.
- Entra - afirmei eu, enquanto abria completamente a porta, permitindo-lhe a entrada. Ele
moveu-se rapidamente, entrando no meu apartamento e mantendo-se, estático, no hall de
entrada, olhando-me discretamente.
- Estás sozinha - afirmou ele, secamente, como se estivesse a constatar algo.
- Sim, - respondi eu, de imediato. - E ainda bem, porque se Shiva te encontrasse aqui,
nunca mais ia ter descanso - informei eu, esperançosa que, desta forma, o ambiente entre
nós se tornasse mais leve.
- Sim, ela tem uma mente muito imaginativa - afirmou ele.
- Como é que sabes isso?
- Ela é muito óbvia. Especialmente no que toca às suas intenções - informou ele, com um
ligeiro sorriso nos lábios. Definitivamente, quando sorria, ele era… enfim.
Não pude evitar sorrir face à sua última afirmação, que estava, como seria de esperar,
correctíssima. Ele era, sem sombra de dúvida, bastante capaz no capítulo da perspicácia. E
ainda era um vampiro jovem. Mais uma centena de anos e ele seria um verdadeiro perigo
para qualquer humana em seu redor. Absolutamente insuperável.
- Já sabes o resultado da audiência?
Era uma pergunta idiota, mas ainda assim não encontrava melhor forma de o questionar.
- Sim - respondeu ele, automaticamente.
- E?
182
A minha expectativa estava a aumentar de uma forma incontrolável, à medida que
ponderava as minhas possibilidades e as poucas alternativas que tinha. A face dele
mantinha-se ilegível, dificultando a minha procura de respostas no seu semblante.
- Foi aceite - afirmou ele, emanando alívio nas suas palavras.
Não consegui controlar a minha respiração, a agitação, a expectativa que sentia ao ouvir e
processar as suas palavras na minha mente. Estava tão contente e feliz que tinha
dificuldade em verbalizar os mais simples pensamentos, em controlar os meus impulsos
de alegria.
Dei por mim a caminhar na direcção dele, sem pensar no que iria fazer, até que o meu
rosto encontrou o frio que inundava o algodão da t-shirt que ele trazia. Depois, os meus
braços, as minhas mãos, descansaram na fria fibra que o rodeava. Só agora me apercebia
que ele era mais alto do que parecia. Dele emanava uma brisa fresca que parecia quase
perfumada, que me arrefecia automaticamente, quase a um nível anestésico, que
contrastava bastante com a minha temperatura corporal. Apercebi-me então que o estava a
envolver num abraço, pela rigidez que ele manifestava, semelhante a uma verdadeira
figura de mármore, tal como as que existiam no museu do Louvre. A sensação de o
abraçar era algo completamente diferente… fora do natural. Extraordinário. Era capaz de
me habituar a isto.
- Obrigado… - sussurrei eu, enquanto me mantinha apoiada nele, sentindo o quão tenso
ele se encontrava por estar tão próximo de mim, quase seguramente. Ele não se movia e,
pela ausência de movimentos, seguramente não respirava e quase se certeza que se sentia
desconfortável, pela forma como NÃO se manifestava. O que era uma pena, porque eu
sentia-me bastante confortável. Até demais.
Olhei discretamente para os seus pálidos braços, que pendiam, imóveis, como se eu não
estivesse ali. Eu conseguia sentir a sua indiferença. Dei por mim a desejar que ele
retribuísse o abraço, mas ao mesmo tempo tinha a perfeita noção de que estava a querer
algo que já tocava o limite da fronteira entre espécies. Acabei por ser eu a dar por
terminado aquele momento, afastando-me rapidamente dele uns sólidos dois metros.
Quando voltei a olhar para ele, o olhar surpreso dele reflectia, para meu espanto, choque.
Era algo absolutamente novo, que eu nunca tinha visto nele, o que só poderia significar
que tinha feito asneira…ou, na melhor das hipóteses, que o tinha surpreendido.
- Não devias fazer isso - declarou ele, com um tom de voz seco.
Claro que não. Abraçar um vampiro é mais do que perigoso. É, claramente, estupidez. Só
me restava desculpar-me, ainda que não estivesse minimamente arrependida do que tinha
feito. Muito pelo contrário.
183
- Desculpa. Só te queria agradecer por…
- Eu sei, - interrompeu ele, observando-me curiosamente. - Mas deves evitar a…
proximidade. Podemos ser bastante imprevisíveis.
Pelo tom que ele admitia, começava a compreender o que ele queria fazer. Ele
queria assustar-me, queria relembrar-me do quão perigoso era aproximar-me da sua
espécie, aproximar-me dele. Pois bem, eu não era assim tão inconsciente, não ia abraçar
qualquer vampiro que me aparecesse à frente. Ele era diferente e eu já sabia que ele não
me ia fazer mal. Era algo que eu não conseguia explicar, mas eu sentia que ele não me
faria mal. Em nenhuma circunstância.
- Muito bem, - afirmei eu, olhando-o, determinada. - Não voltará a acontecer.
Era uma das maiores mentiras que eu estava a afirmar naquele preciso momento, pois o
que eu sentia era exactamente o oposto. Tinha uma enorme vontade de repetir a proeza,
como uma criança birrenta que faz exactamente o que os pais não querem, apenas para os
contrariar, ainda que as minhas razões não fossem propriamente a vontade de o contrariar,
mas sim a necessidade viciante de lhe tocar, de estar perto dele. Ainda havia menos de um
minuto estava abraçada a ele e já desejava abraçá-lo novamente.
Pára de pensar em abraçá-lo.
O olhar dele mantinha-se no meu, enquanto o via semicerrar ligeiramente os olhos,
claramente sentindo a minha contenda interna, tentando compreendê-la, tentando
descobrir no que consistia. Ora, eu não poderia deixar isso acontecer e, como tal, comecei
rapidamente a ponderar que talvez fosse melhor eu criar alguma manobra de distracção…
e depressa. Com a máxima agilidade que consegui reunir, desviei o meu olhar do dele e
dirigi-me na direcção da cozinha.
- Então e agora? Estou fora de perigo? - Perguntei eu, enquanto procurava em meu redor
por algo que me distraísse o olhar e me ocupasse o pensamento.
- Sim, mas ainda há que formalizar o resultado - declarou ele, claramente por detrás de
mim, o que me sobressaltou. Não o havia ouvido mover-se na minha direcção, não o
esperava tão perto de mim. Olhei-o, surpresa.
- Formalizar?
- Sim - afirmou ele, olhando-me fixamente.
- E consiste em quê? - Perguntei eu, genuinamente curiosa.
David desviava o olhar de mim, como que incomodado com a minha pergunta. A sua
hesitação sempre me suscitava suspeitas.
- É uma… cerimónia. Conduzida por Läis e testemunhada por vários…vampiros.
184
O olhar dele fixava-se novamente em mim, emanando, agora, receio. Ao olhá-lo, percebi
que a cerimónia de que falava não deveria ser algo muito agradável, pelo menos para
mim. Mas eu sabia que não podia evitar esse momento. Estava encurralada. Ainda assim,
com toda a incerteza e pânico que aquela desconhecida cerimónia me suscitava, havia
algo que eu desejava muito: a presença dele.
- Vais lá estar? - Perguntei eu, sentindo a voz a falhar-me. Era algo que me acontecia
(quase sempre) quando estava assustada.
A minha pergunta pareceu confundi-lo. A sua face, mais uma vez, reflectia surpresa e
espanto, enquanto se aproximava lentamente, mantendo o seu intenso olhar fixo em mim.
- A minha presença é assim tão importante para ti?
A sua pergunta evidenciava um genuíno tom curioso.
- Sem dúvida… - retorqui eu, sem pensar. A sua proximidade fazia-me comportar de uma
forma mais emotiva, o que não era, de todo apropriado, sabendo eu que ele sentia a minha
agitação. Apesar de tudo, por vezes, as atitudes dele confundiam-me. Tão rapidamente se
aproximava de mim de forma envolvente, como se desejasse compreender-me, como
repentinamente se afastava e me alertava dos supostos perigos da proximidade física entre
humanos e vampiros. Claro que o predador e a presa não podiam conviver… – Leis da
Natureza. E dos vampiros. E eu… teimava em circundá-las. Só poderia estar louca,
definitivamente.
Ainda assim, continuava com uma enorme vontade de o abraçar, de lhe dizer que tinha
sentido a sua falta. Muito. Durante cerca de dois penosos meses. Mas, desta vez,
compenetrei-me o suficiente para não o fazer. Subitamente ouvi-o falar.
- Sim, eu vou lá estar. Juntamente com todos os outros.
- Outros?
- Nevio, Pierre, Gustave, assim como Lothaire e… a corte de Läis.
- A corte de Läis? - Questionei eu, com curiosidade. - Não me parece… amigável.
- São os seus apoiantes, - elucidou David, com um tom mordaz. - Um conjunto
absolutamente adorável de lambe-botas - sorriu ele, claramente divertido com a sua
última asseveração.
- É seguro? - Desabafei eu.
- Sim - respondeu ele, sem hesitar, mantendo o seu olhar em mim.
Sentia-me incapacitada de o deixar, de prescindir daquele olhar que me prendia. Por
momentos desejei que não tivesse que regressar a Portugal, desejei ficar para sempre presa
naquele momento, naquele olhar…
185
Após alguns segundos, vi-o reagir de uma forma tão repentina quanto estranha.
David praticamente materializava-se na outra ponta da cozinha, agindo como se eu fosse
uma leprosa. Claro que não se tratava de uma verdadeira materialização – porque isso
seria impossível –, eram simplesmente as suas extraordinárias capacidades de se mover a
uma velocidade que os meus olhos não conseguiam acompanhar. A postura dele era tensa,
enquanto se mantinha de perfil, concentrado em algo ao nível do solo. Alguns momentos
foram suficientes para eu deduzir que ele estava aborrecido.
- Tens que aprender a controlar-te - disparou ele, olhando-me de soslaio, condenando-me
com um breve olhar. - Se te mostras tão óbvia com Läis, ela não vai ser complacente.
A sua última asseveração assustava-me verdadeiramente até que o ouvi, então, expirar
ruidosamente. E, tal como da última vez, só me restava desculpar-me por ser tão
transparente.
- Desc-
- Não te desculpes! Age! - Interrompeu ele, enquanto me fitava de uma forma quase
ameaçadora. - Läis não é como Philippe. A cerimónia não é como a audiência.
O modo como ele me informava era, no mínimo intimidante, enquanto se encaminhava na
minha direcção, lentamente. E continuou, - Este é o território dela, as regras são aplicadas
por ela. Se Läis sente a tua… empatia, garanto-te que ela vai esforçar-se para te fazer
sofrer.
O modo como ele hesitava ao tentar descrever o que eu sentia quanto estava com ele
fazia-me sentir vergonha de mim própria. Em definitivo, eu não devia nem podia ser tão
óbvia, para meu próprio bem. Estava a sentir-me irresponsável, imprudente. Mas era tão
difícil reprimir o que sentia, ou evitar manifestar-me mentalmente, quando a situação o
sugeria! Agora, nem sequer na minha mente eu tinha paz. Tinha que transformar-me numa
pedra, um ser insensível com braços e pernas. Pelo menos hoje, tinha que conseguir, para
não dar ideias à vampira “soberana”.
- Vamos.
Ouvi-o dizer, com a voz firme.
- J-Já?
- Sim. Quanto mais depressa formos, mais depressa voltas, sã e salva.
A passagem subtil da referência inicial ao “nós” para o “tu” não me passou despercebida.
Ainda que “sã e salva”, como ele garantia, eu não queria regressar daquela maldita
cerimónia sozinha. Nem pensar. Mas controlei-me e não lhe mencionei a minha
expectativa. Só esperava que eventualmente ele mudasse de ideias.
186
Olhei rapidamente para o que eu tinha vestido: uma t-shirt, calças de ganga e ténis.
Completamente desadequado para uma cerimónia, fosse ela de que natureza fosse…
Discretamente, observei-o. As vestimentas dele eram bastante elementares e ele não tinha
feito referência à etiqueta, nem directa nem indirectamente (como eu relembrava de
Estrasburgo), pelo que me senti mais descansada.
Certamente seria só uma simples cerimónia e somente teria que me concentrar a anular a
minha excepcional capacidade emotiva.
“Tarefa fácil!”, pensei eu, ironicamente, enquanto me dirigia no sentido da porta, pronta
para sair de casa, a caminho do desconhecido que me aguardava. David já se encontrava
perto dos elevadores.
Não sabia onde a cerimónia ia ter lugar, mas também não lhe perguntei. Talvez o
local onde estas formalidades se realizassem fosse confidencial, razão pela qual pairava
todo aquele secretismo. Ao chegar à porta do meu prédio, concluí que o meio de
transporte ia ser, novamente, um táxi. Mais uma vez, observei David a sussurrar ao
motorista o destino da corrida.
A viagem demorou cerca de quinze minutos, até que o táxi abrandou junto à frontaria de
um magnífico edifício que eu conhecia, não por frequentá-lo, mas por fazer parte do
património cultural da cidade: a Ópera de Palais Garnier. Estávamos agora numa das
zonas mais movimentadas da cidade. Surpresa, procurei o olhar de David, para o
encontrar a dar-me sinal para sair.
O exterior do edifício que consistia na Ópera Garnier, como era mais comummente
conhecida, mas parecia um bolo de noiva talhado à mão. O design era exuberante e, pelo
aspecto, a extravagância que ostentava por fora certamente se prolongava para o interior.
Perto da entrada encontravam-se uma quantidade absurda de pessoas, vestidas a rigor,
muito provavelmente prontas para assistir ao espectáculo que ia ter lugar naquele edifício.
Olhei em meu redor e senti-me alvo dos maiores olhares de desdém, seguramente por
estar vestida de uma forma tão ocasional. Mas, eu não estava ali para assistir ao
espectáculo. E aquelas pessoas não sabiam disso.
Eu estava ali para ser o espectáculo.
Senti a mão fria de David no meu braço, alertando-me para onde teríamos que nos dirigir.
Para meu alívio, não era para a zona de entrada do Edifício, mas sim para uma área bem
mais recatada numa das ruelas perpendiculares que ali se encontravam. Não andámos mais
de vinte metros, até que David parou ao encontrar uma porta que, apesar de discreta, era
finamente ornamentada. Não havia números, nem placas, nem nada que identificasse onde
187
nos encontrávamos. David abriu a porta e fez-me sinal para entrar, seguindo-me
imediatamente.
Mal a porta se fechou atrás de nós, fui invadida por um mar de escuridão. Não havia luz,
de nenhum tipo. Mas estava ali mais alguém para além de mim e David. Eu sentia a
presença de mais… vampiros. Eu sabia-o, pelo aroma sobrenatural que ali se encontrava,
pelo brilho fugaz que ocasionalmente encontrava em pontos incertos na escuridão.
- Nevio, as luzes - disparou David, com um tom rígido.
Ouviu-se um pequeno rugido, que admitia um tom de consternação óbvio, para segundos
depois surgirem – finalmente - as luzes. Nevio encontrava-se ainda com a mão por cima
do interruptor, olhando David com ar de reprovação, certamente por lhe ter arruinado o
seu momento de diversão. Os outros dois, reconhecia-os da fatídica noite na Cité
Universitaire. Eram Pierre e Gustave, que mantinham um semblante de diversão, como
que divertidos por verem Nevio e David discordarem tão efusivamente. Pelo olhar que nos
lançavam, conseguia presumir que os momentos de discórdia entre eles eram habituais.
Não consegui concluir se isso era bom ou mau, dadas as circunstâncias actuais em que nos
encontrávamos.
Só agora conseguia observar Pierre e Gustave com algum detalhe, graças à luminosidade
que nos rodeava. Eram tipicamente franceses, com umas feições finas, muito
características, ainda que Gustave apresentasse, no geral, um aspecto mais grosseiro,
vulgar, até. Ambos tinham cabelo curto, claro e tinham olhos igualmente claros -
provavelmente azuis -, e a forma como se vestiam era um pouco mais cuidada, menos
elementar que a de David, mas sempre fiéis às cores escuras. Era evidente que eles se
consideravam outra estirpe, diferente da de David e de Nevio. Superior, até. Mas eu já
sabia as razões por detrás daquele comportamento, pois David já me as havia explicado
naquela noite em Estrasburgo.
Mas, ainda assim, o olhar deles, assim como a sua postura, aproximavam-se da
neutralidade. Contrariamente, Nevio olhava-me com uma força absolutamente hostil.
Calculei qual fosse o problema dele, ainda que não tivesse a coragem de o verbalizar – ele
estava com fome. O modo como ele se colocava a uns meros três metros de mim fazia-me
querer fugir daquele local, para longe do seu apetite voraz. Dos seus frios olhos,
parcialmente descobertos por melenas de cabelo negro desalinhado, emanava uma
crueldade que me fazia tremer de medo, que me fazia temê-lo. Instintivamente, olhei para
David, procurando apoio no seu olhar, nas suas atitudes que já me tinham salvo noutras
ocasiões semelhantes.
Nele, só encontrei a forma fixa como fitava Nevio.
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- Nevio… agora não - declarou David, entredentes.
O semblante de Nevio reflectia desilusão. Conformado, movia-se agora no sentido oposto
ao meu, seguido por Pierre e Gustave, desaparecendo na escuridão. Só agora conseguia
reparar que estávamos num corredor de longas paredes brancas. Aquela ornamentada
porta por onde tinha entrado dava acesso a um longo corredor, do qual eu não conseguia
ver o fim, mesmo que me esforçasse. Subitamente, ouvi David falar, mais semelhante a
um sussurro firme.
- Nevio…
Foi instantâneo. Todo o corredor se iluminou, exibindo a sua enorme extensão. Olhei
discretamente para David, que pareceu sentir a minha apreensão.
- Ele é muito teimoso… - informou David, na minha direcção, à medida que
avançávamos. - Mas é controlável - elucidou, por fim.
Sem dúvida, era uma asseveração que me acalmava, pelo menos momentaneamente. E a
presença dele era, sem dúvida, fundamental para que me sentisse minimamente segura
num verdadeiro antro de vampiros.
Andámos até encontrar um elevador, localizado no fim do corredor. Já não vi nenhum dos
outros nas redondezas. Certamente, já estariam no local onde a cerimónia iria decorrer.
David carregou no único botão, que reluzia, agora, vermelho, passando rapidamente a
verde à medida que a porta se abria, revelando o vazio que lá se encontrava.
- Entra - disparou David, avançando imediatamente por detrás de mim.
No interior do elevador, pude observar que não existiam botões, nem nada que pudesse ser
indicativo de nos levar a algum sítio. Era, simplesmente, uma caixa de aço vazia,
desprovida de designações, com uma simples porta de saída ou entrada e uma ténue luz
que ameaçava desvanecer-se a qualquer momento.
- Sub-cave - ouvi David proferir, como se estivesse a informar alguém do destino que
desejava. E, de facto, assim era.
De imediato, o elevador começou a mover-se no sentido descendente, durante uns longos
e penosos segundos. Estava a começar a ficar assustada. O que iria ser de mim? Não. Não
podia começar a assustar-me agora, não agora. Com calma, tentei compenetrar-me em
esvaziar a minha mente.
Uma rocha. Uma pedra, sem sentimentos.
O movimento cessou e a porta abriu-se, revelando, mais uma vez, uma ampla extensão de
espaço onde conseguia discernir algumas figuras que deambulavam em pequenos
agrupamentos, tão rapidamente que mais pareciam correr de um lado para outro.
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- David, finalmente… - proferiu uma voz masculina que rapidamente nos atingiu com a
sua presença. Pela forma carinhosa como observava David, deduzi que só poderia ser
Lothaire.
Lothaire era um vampiro com uma aparência adulta, mas revelava uma enorme sabedoria
em cada traço que formava a sua elegante face. Ele olhava para David como um pai olha
para um filho, preocupado com o que lhe vai suceder, temendo as suas atitudes
inconscientes. Lothaire evidenciava uns expressivos olhos castanhos e um cabelo também
castanho rigorosamente alinhado, estava vestido a rigor, de tal forma que se assemelhava a
um empresário.
- Está tudo bem, - afirmou David. - Como podes constatar.
Lothaire olhava, agora, na minha direcção, estudando-me. Analisando-me. O olhar dele
era bastante cativante, sem réstia de hostilidade, sem manifestar crueldade ou desprezo
por mim. Pela minha espécie. Relembrava-me agora das palavras de David ao referirem a
elevada idade, assim como as extraordinárias capacidades de Lothaire. Agora, podia
constatar, sem dúvida absolutamente nenhuma, que Lothaire era um vampiro subtil,
delicado e que, sem muito esforço, seria capaz de conseguir tudo o que queria. Com um
simples olhar.
- David, deixaste a situação arrastar-se a níveis… arriscados - informou Lothaire, com um
semblante apreensivo, na direcção de David, que não lhe respondeu. E continuou, - Sê
cuidadoso.
Lothaire afastava-se agora para se juntar a Nevio, Pierre e Gustave, que se
mantinham claramente à parte dos restantes vampiros que ali se encontravam e que
suspeitei ser a tão aclamada corte de Läis, pela forma como rodeavam um dos elementos
que ali estava. Comportavam-se como fanáticos, em redor de uma peça de arte valiosa,
protegendo-a do olhar curioso dos restantes mortais. Só podia ser ela, a vampira
“soberana”, como eu tão adequadamente a considerava.
Aquele enorme salão, que certamente fazia parte das fundações da Ópera Garnier, pela
arquitectura que apresentava, estava completamente desprovido de peças de mobiliário, à
excepção de uma sumptuosa poltrona, que mais parecia um trono, adornado com quatro
degraus que pareciam esculpidos na estrutura em si. Foi com rapidez que vi aquele
aninhado conjunto dirigir-se à poltrona, sem nunca deixar entrever um único vestígio de
Läis, assemelhando-se a uma colmeia, onde a abelha rainha é protegida pelas obreiras.
Subitamente, toda a corte de Läis se afastou, permitindo-nos olhá-la. Ela fitou-nos e fez-
nos sinal para avançarmos - todos nós -, acenando com a mão.
190
À medida que avançava podia observar que as paredes daquele salão tinham uma cor
morta, esbatida, sem adornos de qualquer tipo. Somente os cristalinos candelabros que
decoravam o tecto e de onde emanava uma ténue luminosidade, revelavam a utilização
ocasional daqueles salões, que estariam certamente reservados para… cerimónias.
Conseguia agora observar também que os vampiros que formavam a corte não tinham a
cara exposta, mas sim escondida por detrás de máscaras, também elas finamente
ornamentadas com as mais diversas peças, assemelhando-se ao pormenor das máscaras
venezianas, cobrindo-lhes metade da face. Todos eles vestiam roupas negras, cobertos por
capas negras, forradas a azul celeste, cor que sobressaía do conjunto que traziam. Não
conseguia discernir se eram homens ou mulheres, só conseguia perceber que estavam
todos em sintonia uns com os outros, pelas atitudes que mantinham em redor da rainha da
colmeia.
Ao sinal de David, parámos a cerca de cinco metros de Läis, distância que compreendi ser
“a distância de segurança”. À nossa esquerda, ligeiramente para trás, mantinham-se
Lothaire e os restantes colegas de David. O silêncio que nos preenchia conseguia ser
absolutamente devastador. Finalmente, Läis falou.
- David.
A voz dela era melodiosa, ligeiramente sedutora. Olhei-a discretamente, enquanto ela
fitava David, que agora mantinha um semblante algo desconfortável.
- Parece-me que tens algo para me dizer.
O tom dela era, agora, marcadamente irónico, enquanto exibia um ligeiro sorriso. Era bem
visível que ela não estava, de todo, contente.
Por momentos, temi por David, ao aperceber-me que ela era bastante poderosa, pois eu
quase conseguia sentir o poder emanar dela, atingindo David de forma implacável. Ele
não tinha hipótese. Ambos o sabíamos.
Olhei-a momentaneamente, procurando vestígios de complacência na face dela. Foi então
que reparei que ela era, sem dúvida, uma vampira bastante graciosa, com um cabelo liso
de tons arruivados que lhe caía muito abaixo dos ombros, adornando a face mais bela que
eu já tinha alguma vez observado. As linhas que compunham o seu rosto pareciam ter sido
desenhadas por seres angelicais, dando-lhe um aspecto quase de divindade. Os olhos dela
eram castanho-claro e neles havia um brilho tão ameaçador quanto hipnotizante,
claramente persuasivo. Ela vestia um extraordinário vestido azul celeste, de um tecido que
me parecia ser veludo e que lhe deixava adivinhar todas as suas formas, mesmo estando
sentada na poltrona. Até os movimentos que fazia eram de uma graciosidade prodigiosa,
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desde o mais simples aceno à mais complexa expressão facial. A sua tez,
maravilhosamente pálida, seria certamente a perdição de muitos homens. Muitas vítimas.
- Peço desculpa pela minha irreverência, senhora - declarou David, fitando-a.
- Pedes desculpa? - Repetiu Läis, surrurrando. - Criança insolente! - Grunhiu ela, na
direcção de David, visivelmente irritada. - Como te atreves a sobrepor-te à minha
autoridade? Tu respondes a mim. A MIM! - Rugiu ela mais uma vez, com um brilho
absolutamente feroz no olhar. Por momentos, pensei que tudo descambasse em alguns
segundos.
- Lothaire, - continuou ela, mudando de direcção. - Desiludiste-me. Pensei que tinhas
rédeas nos teus pupilos, mas aparentemente enganei-me redondamente.
- Eu não consultei Lothaire - informou David, interrompendo o momento em que Läis se
dirigia a Lothaire.
Todos fitaram David, com uma gravidade intensa no olhar. Ele estava claramente a pisar o
risco, atrevendo-se a interromper Läis, a meio do seu discurso enfurecido.
- David…
- Não, eu somente informei Lothaire do que pretendia fazer. - David interrompia, agora,
Lothaire e dirigia-se novamente a Läis, com uma postura de subjugação. - E como a
senhora se encontrava de viagem, actuei sozinho. Ninguém mais esteve envolvido nas
minhas actividades.
Läis fitava-o, agora, com curiosidade.
- E porquê, meu caro David?
- Agi segundo o meu instinto, - retorquiu David, quase instantaneamente. - Bem sei que
não foi o mais correcto, mas…
- Não foi o mais correcto? - Interrompeu ela, surpresa, citando-o com um tom sarcástico. -
Eu diria mais desobediência clara às leis. Insubordinação manifesta. Desrespeito pelos
teus semelhantes. E o que é absolutamente degradante… essa tua compaixão por…
humanos.
O olhar dela fixava-se, agora, em mim, finalizando a frase com um tom enojado. Evitei o
seu intenso olhar, relembrando-me constantemente da necessidade de não me tornar
emotiva.
- É esta a humana? - Perguntou ela, como se já soubesse a resposta à sua própria pergunta.
- A humana por detrás de toda esta irregularidade?
David não lhe respondeu e manteve-se estático, enquanto Läis me observava. Eu sentia o
peso do olhar dela, de tal forma que quase me retirava as forças, o que me dificultava a
respiração.
192
- Francamente, David! - Exclamou ela, com ironia. - Ela é tão… simples. E podias ter sido
bem mais criativo, divertir-te um pouco com a tua vítima, tal como é costume de Nevio -
concluiu ela, mantendo um ligeiro sorriso nos lábios, enquanto mantinha o olhar dela em
mim.
- Ela não era minha vítima - Disparou David, com um tom firme e seco, o que pareceu
enfurecê-la ligeiramente.
- Porque tu não quiseste. Seria bem mais fácil e cómodo. Para todos - afirmou Läis,
enquanto o fitava novamente. – Ter-nos-ia poupado este incidente desproporcionado.
Läis pausava agora, momentaneamente, enquanto dirigia o olhar a todos os presentes.
- Como é do vosso conhecimento, decidi viajar por questões logísticas e estratégicas, a
tempo de me reunir com os meus semelhantes na longínqua Smolensk. Julguei manter a
cidade controlada e a salvo nas mãos dos meus fiéis.
O modo como ela falava reflectia um claro desapontamento, enquanto os
elementos da sua corte, localizados em ambos os lados, acenavam discretamente em sinal
de confirmação. Subitamente, uma voz serena fez-se ouvir.
- Mas, minha senhora, nunca algo assim tinha sucedido, em duas centenas de anos de
domínio e posse na cidade de Paris - informou Lothaire, com um tom neutro e respeitoso,
que lhe valeu a atenção de Läis. - Mesmo das restantes vezes que vossa senhoria decidiu
retirar-se, sempre foi garantida a ordem e a harmonia entre nós e os humanos. Certamente,
esta foi uma vez sem exemplo, minha senhora.
- Veremos, meu caro Lothaire, mas espero que assim seja - afirmava Läis, acenando
positivamente na direcção de Lothaire e concordando com a sua última asseveração de
uma forma que eu considerei excessivamente fácil e imediata.
- Garanto-lhe que sim, minha senhora - elucidou Lothaire, olhando David de soslaio, que
se mantinha impávido e sereno, fitando o intenso olhar de Läis.
- Ainda assim haverá consequências, Lothaire. Como podes compreender, não posso
permitir que me desautorizem desta forma - Läis olhava David, avidamente. - Mas… de ti,
David, trato eu mais tarde. Agora, temos assuntos mais pertinentes para tratar.
Dito isto, Läis olhou-me de uma forma que me fez tremer de medo. Não conseguia evitar.
Vi-a levantar-se da sua sumptuosa poltrona, como se de um trono se tratasse, do qual
desceu lenta e graciosamente, como se estivesse a exibir toda a sua magnificência a todos
os que ali se encontravam. Definitivamente, ela gostava de se fazer notar.
Läis dirigiu-se a mim, o que me surpreendeu, pois manteve-se perto, a cerca de um metro,
enquanto me analisava com aqueles olhos cor de mel que mais pareciam trespassar-me.
193
Ela saboreava o medo que eu sentia, intimidada pela presença dela. O que teria ela
reservado para mim?
- Vamos? - Sussurrou ela, subitamente, ao alternar o olhar entre mim e David.
Limitei-me a acenar e segui-a, enquanto David caminhava ligeiramente atrás de mim,
assim como toda a corte de Läis e Lothaire, Nevio, Pierre e Gustave. Dirigíamo-nos agora
para uma pequena sala que se localizava exactamente ao lado do enorme salão de onde
tínhamos acabado de sair. Essa pequena sala tinha uma discreta porta de madeira, por
onde entrou Läis, seguida por mim e, logo após, por David. Subitamente, vi Läis rodopiar
e dirigir a palavra aos que estavam mais atrás.
- Nicolas, Sabine. É suficiente - ordenou Läis, olhando de soslaio todos os outros
elementos da sua corte, que se mantiveram estáticos, embora eu conseguisse sentir a
desilusão que experimentavam por não terem sido os escolhidos.
- Lothaire, não é necessária a tua presença - adicionou ela, enquanto olhava na direcção
dos restantes, fazendo-lhes sinal para se afastarem. Olhei para David e fiquei ligeiramente
surpreendida por lhe encontrar neutralidade no olhar. Os olhos dele estavam praticamente
vazios, a sua face ilegível e não proferia nem uma palavra. Era estranho vê-lo tão…
extinto. Tinha quase a certeza que aquela apatia que ele mantinha era efeito de Läis.
Repentinamente a porta fechou-se e aqueles que eu identificava como Nicolas e Sabine
começaram a preparar algo que eu não conseguia perceber no que consistia. Mexiam em
peças de mobiliário que eu não conseguia identificar o que eram, pois estavam cobertas
por peças de tecido esbranquiçado. Foi Läis que interrompeu a minha observação,
dirigindo-me as suas palavras.
- Parabéns. A mais alta instância considerou-te merecedora de vários privilégios. Vais
ficar sob a minha tutela, é a mim que vais obedecer. Compreendes? - Informou Läis,
enquanto me fixava intensamente. Limitei-me a acenar. - Terás tarefas para cumprir.
Quando fores necessária, os teus serviços serão convocados, estejas onde estiveres. Não
há recusa. Não tentes fugir ou desaparecer, pois garanto-te que te encontraremos.
Após uma ligeira pausa, continuou.
- Este estatuto dá-te imunidade à nossa espécie, desde que te mantenhas fiel às nossas
regras e às tuas obrigações. Alguma dúvida?
- Não… - afirmei eu, quase de imediato, apesar de não ser, de todo, verdade. Eu não sabia
em que consistiam as minhas “novas” obrigações, nem que tarefas eram aquelas que me
esperavam, mas não tive coragem para lhe perguntar fosse o que fosse. A presença dela
era simplesmente intimidante.
194
- Que adorável! - disparou Läis, enquanto me fitava. - Consigo cheirar o medo que a
consome, ainda assim mantém-se sóbria.
A aspereza das suas palavras revelava uma crueldade enorme. Senti-a dar um
passo na minha direcção, aproximando-se de mim o suficiente para eu sentir o meu ritmo
cardíaco alterar-se. Ainda que com os avisos de David, eu não conseguia esconder tudo o
que sentia agora que me enfrentava uma vampira secular. Era inevitável.
- Não compreendo porquê. Tu és fastidiosamente normal. Uma humana como tantas
outras. Porque é que o instinto dele não o deixou… - Läis interrompeu o seu próprio
discurso com ligeiros traços de espanto na sua face, enquanto semicerrava os olhos,
continuando a observar-me. O olhar dela viajava dentro de mim de uma forma
avassaladora, captando a forma, a intensidade, a natureza de cada instante, cada
sentimento, cada momento vivido por mim. Sentia-me exposta, ao aperceber-me que nada
podia fazer para evitar que Läis continuasse a invadir as minhas emoções desta forma.
Subitamente o olhar dela mudou, para fitar David, que se mantinha tão apagado como um
brinquedo sem pilhas. A penetrância do olhar dela fê-lo mover-se um pouco, como que
lutando para sair daquele transe, mas ele estava longe de ser o David que eu conhecia,
pois deixava-se claramente manipular por ela. Talvez porque ele quisesse e deixasse… ou
porque, muito simplesmente, não tinha hipótese senão deixá-la invadi-lo.
Subitamente, ouviu-se um grunhido de uma exuberância bizarra, seguido de um ruído
agudo que me sobressaltou, ao qual se seguiu um silêncio terrível que inundava agora,
aquele pequeno espaço. Foram necessários alguns segundos para eu perceber que Läis
tinha aplicado uma aparatosa bofetada em David, que se mantinha agora observando um
ponto imaginário no solo. Subtilmente, Läis afastava-se de David e fitava-nos agora,
alternadamente, com raiva expressa no olhar. David, chocado com a atitude de Läis,
respirava com dificuldade, como se estivesse estado em esforço há algum tempo e eu…
não sabia o que pensar, pois não compreendia o que se estava a passar. Vê-la admitir uma
atitude tão extrema era algo que me assustava.
- Idiota! Não sei qual dos dois é o mais patético - grunhiu ela, enquanto nos observava
com um óbvio desdém no olhar e no tom de voz. E continuou, - Mais tarde conversamos,
Sr. Henshaw.
Abruptamente senti o olhar de Läis outra vez em mim, a observar-me, claramente.
- Então, já está tudo pronto?
Foi então que percebi que a pergunta não era para mim, mas sim para os dois elementos
da corte que pareciam agora ter terminado a sua tarefa. Ao olhar na direcção deles, vi que
se encontravam os dois lateralmente a uma pesada mesa de madeira ornamentada com
195
várias peças que pareciam sobressair do tampo. Não percebi o que era, até que senti a
gélida mão de Läis no meu antebraço, como uma algema humana, firme mas ao mesmo
tempo delicada - como se isso fosse possível. A pele dela assemelhava-se ao toque da seda
e dela exalava um aroma desconhecido que eu classificava de atordoante, no mínimo.
Senti-a puxar-me, até atingir a beira da mesa, onde Läis me ordenou para eu me sentar.
Ainda hesitei, enquanto olhava de soslaio para David, que parecia ainda não estar
recomposto.
- Não olhes para ele. Ele não te vai salvar.
A severidade do tom dela assustou-me por momentos, quando observei que Läis exibia
agora os seus magníficos caninos que, apesar de sinistros, conseguiam ser tão elegantes
quanto ela.
Olhei em meu redor. Nicolas e Sabine também expunham a sua dentição extra de forma
orgulhosa, retribuindo-me o olhar de uma forma ameaçadora. O que me iriam fazer?
Velozes como antílopes, agarraram-me os braços e as pernas, obrigando-me a estirar-me
em cima da mesa, com os pulsos e os tornozelos encostados às saliências que a mesma
oferecia. Como reflexo, tentei resistir, mas sem sucesso. Neste momento, já estava
apavorada, enquanto sentia aquelas mãos frias e robustas a acorrentarem-me à mesa.
Comecei a respirar de uma forma mais ofegante, enquanto tentava encontrar o olhar de
David, procurando nele resposta ao que iria ocorrer. Saberia ele o que se iria passar a
seguir? Com dificuldade, devido à posição em que me encontrava, consegui encontrar o
olhar dele, que se mantinha praticamente escondido pelo cabelo que lhe caía na face. Nele
encontrei um enorme vazio. Absolutamente nada.
Seria possível?
- O que me vão fazer? - Inquiri eu, sentindo a voz a falhar-me e imaginando que, no
mínimo, iriam esventrar-me. Ou retalhar-me viva.
Läis encontrava-se à minha esquerda, enquanto os dois elementos da sua corte se haviam
agora retirado, após confirmarem que eu não tinha hipótese de escapatória. Não consegui
perceber nem onde estavam nem para onde iam. Foi a voz de Läis que me desviou a
atenção.
- Uma pequena marca, para que os outros saibam a quem pertences - sorriu Läis, enquanto
me observava, visivelmente deleitada pelo terror que eu sentia naquele momento.
- Marca? - Retorqui eu, sem compreender ao que se referia ela e a razão pela qual estava
eu presa a uma mesa, como se fosse uma criminosa.
Subitamente vi um dos elementos da corte de Läis aproximar-se de mim, pelo meu lado
direito, empunhando algo que me fez quase chorar de pânico e de medo. Era um ferro em
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brasa, com uma forma que se aproximava da triangular, apesar de não a conseguir
discernir em concreto, pois a cor alaranjada, o calor que emanava, a expectativa do que
me iam fazer, eram demasiado paralisantes para eu conseguir juntar forças para gritar,
para falar, para fazer fosse o que fosse.
- Não, por favor… - sussurrei eu, enquanto olhava em meu redor, olhando para aqueles
três vampiros que pareciam alimentar-se do medo e do terror de outrem, sedentos.
- Pretende atordoá-la? - Sugeriu um deles, na direcção de Läis. Apesar do terror que
sentia, ainda tinha o discernimento para perceber que se referiam a utilizar as capacidades
para que eu não sofresse tanto. Só desejava que ela respondesse que sim, para meu bem,
para que eu não sentisse a horrível dor que certamente seria ser marcada com um ferro em
brasa. Como gado.
- Não, - respondeu ela, sorrindo. - A esta, não.
Só tive tempo para fechar os olhos, com força, de contrair todos os músculos existentes
em mim e desejar que fosse rápido, que conseguisse suportar a dor do fogo quando
atingisse a minha pele. Senti umas mãos frias e velozes desapertarem-me as calças,
afastarem a t-shirt que tinha vestida, enquanto eu me agarrava com força às correntes que
me prendiam os pulsos. Cada segundo parecia uma verdadeira eternidade, enquanto
esperava, com um desespero atroz a apoderar-se de mim, que aquele ferro em brasa me
atingisse.
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CAPÍTULO 13 – MARCA
ACORDEI DEITADA NA MINHA CAMA, NO MEU APARTAMENTO, EM PARIS.
Algo gelado inundava a base das minhas costas, sensivelmente do lado direito. Não sabia
o que era, mas era confortável. Estava deitada de lado, virada para a janela do meu quarto
e estava escuro. E eu não estava sozinha. Até de olhos fechados eu reconhecia aquela
presença que estava sentada junto a mim, mantendo-me naquela posição. Aquela postura
rígida, aquela temperatura fria, aquela respiração irregular, aquela essência única… só
podia ser David.
Tive dificuldade em relembrar o que se tinha passado. Ainda mantinha os olhos fechados,
era-me difícil abri-los, embora eu não percebesse porquê. O que se teria passado? Porque
estaria eu aqui, com ele, no meu quarto?
Subitamente, lembrei-me da razão e do porquê de estar aqui, desta maneira. As
imagens e a memória da dor que senti quando aquele ferro se aproximou da minha pele e
como o calor em brasa se introduzia na minha pele, cravando-se em mim sem dó nem
piedade pairavam na minha mente. Relembrava-me também que tinha gritado. Senti de
imediato vergonha por o ter feito, apesar de não ter conseguido suportar aquela dor que
era, de longe, a pior que já tinha sofrido. As recordações que me surgiam eram terríveis, a
face irónica e satisfeita de Läis, a obediência cega dos elementos da sua corte e a…
indiferença de David. Era esta última a que mais me magoava, em particular. Não a dor,
não a invasão de privacidade mental, não os insultos à minha espécie, mas sim uma
simples atitude que, muito provavelmente, ele não tinha podido evitar porque certamente
estaria sob a influência dela. Todos estavam, assim como eu. Excepto para me poupar às
dores de me marcar como um ruminante, aparentemente. Ela era cruel, sem sombra de
dúvidas, tal como David me tinha alertado.
Todas estas lembranças e a elevada carga emotiva que carregavam repercutiam-se, mais
uma vez, na minha frequência respiratória e no meu batimento cardíaco, que se tornaram
irregulares. Lentamente, consegui abrir os olhos e encontrar a face de David, olhando-me
com um semblante de preocupação e… pena. O pior sentimento que se pode nutrir por
alguém.
À medida que pestanejava, tudo à minha volta se tornava mais nítido, mais brilhante, sob
a luz do luar que banhava o meu quarto, pois a persiana estava totalmente elevada,
permitindo a entrada da límpida luz que parecia tornar todos os elementos à minha volta
absolutamente etéreos. David estava sentado perto de mim, contactando ligeiramente com
198
o meu abdómen, o que me fez estranhar de imediato a sua reacção. Ele estava sempre a
alertar-me para o facto de evitar a proximidade, porque ele podia não se controlar – e…
atacar-me? Pois claro… – e agora era ele que estava, propositadamente, a aproximar-se de
mim, sabendo ele que eu estava acordada e que tinha conhecimento de todos estes avisos
que ele nunca se cansava de afirmar.
Subitamente, uma dor aguda e forte, ainda que de uma intensidade moderada – suportável,
sem dúvida, - despertou-me do adormecimento nauseante que me aprisionava e levou-me,
instintivamente, a explorar a zona de onde parecia irradiar a dor. Provinha da zona da base
das costas, onde havia sentido o frio, há pouco, ligeiramente para o meu lado direito. Ao
colocar aí a mão, percebi que tinha um penso no local e… encontrei a fonte de frio que
sentia desde que tinha acordado: a mão dele. Toquei-lhe, sem pensar duas vezes,
agarrando-a com força. Não queria que ele retirasse de lá a mão. Não queria que ele me
deixasse.
- Não mexas. É pior - ouvi-o sussurrar, na minha direcção.
- Mas…não me lembro de… - comecei eu.
- Perdeste os sentidos. É normal, dadas as circunstâncias - explicou ele, com um tom de
voz censurante. – Marcar-te a sangue frio foi perfeitamente desnecessário - adicionou ele,
com firmeza.
Não fui capaz de dizer nada, enquanto tentava mexer-me, mas infelizmente constatei que
me doía o corpo todo, provavelmente reflexo do esforço que tinha feito e da fonte de dor
que possuía. A sensação que tinha era que fora espancada por um grupo de delinquentes e
abandonada no local. Com alguma dificuldade, tentei sentar-me enquanto David
procurava ajudar-me a posicionar-me na cama. De imediato, senti falta do confortável frio
que emanava da sua mão, na minha ferida.
- Cuidado… - avisou ele, enquanto me fitava com um olhar absolutamente extraordinário.
Era incrível como eu gostava tanto da presença dele ao pé de mim, como ele era alguém
tão importante para mim.
Olhei inadvertidamente para a zona onde tinha a marca escondida pelo vulto de um
espesso penso, elaboradamente confeccionado de forma manual.
- Fui eu que fiz o penso. E dei-te analgésicos, pelas razões óbvias.
- Está muito… bom - afirmei eu, olhando novamente para ele. - Obrigado. Por tudo…
Os meus agradecimentos eram genuínos, embora não houvesse palavras nem acções que
pudessem explicar o quão agradecida eu estava por tudo o que ele tinha feito por mim,
independentemente das consequências. Afinal, ele tinha-me salvo a vida. De uma forma
estranhamente bizarra, mas tinha.
199
- Era o mínimo que podia fazer - informou ele, com um tom de voz seco e a sua face séria.
Olhei novamente para o penso e reparei que tinha as calças desapertadas e a t-shirt
ligeiramente subida, tal como relembrava dos últimos momentos antes de me marcarem.
Tentei, em vão, abotoar todos os botões das calças, mas só consegui abotoar um, pois o
volume do penso e a pressão das calças apertava-me a ferida, e as dores que me
provocavam eram mais do que eu conseguia suportar.
Voltei a procurar o olhar dele, que me olhava de forma séria, como se estivesse
preparando um discurso desagradável. Pela primeira vez em algum tempo, o olhar dele
perturbou-me e eu senti receio de ouvir o que ele teria para me dizer. Por alguma razão
que eu desconhecia, conseguia pressentir que as palavras dele seriam impiedosas.
- O que aconteceu depois de…
- Eu trouxe-te para casa. Não te ia deixar desmaiada nas fundações da Ópera. Ou
abandonada na rua… - informou ele, enquanto desviava o olhar do meu, visivelmente
incomodado ao enumerar as alternativas que, a meu ver, eram as de prática comum.
Engoli em seco, só de imaginar o quão terrível seria acordar na rua após ter sido marcada
com um ferro em brasa.
- Então e… agora? - Perguntei eu. A minha curiosidade era genuína.
- Agora, é simples: voltas para casa e esperas que Läis te contacte e que te informe das
tarefas que tens que levar a cabo.
A frieza e a simplicidade com que acabava de proferir as últimas palavras afectavam-me
de uma forma horrível e tive que fazer um esforço considerável para não chorar. Não
estava a perceber o porquê de tanta amargura, de tanta indiferença. Não obstante, consegui
juntar discernimento para elaborar uma frase com nexo.
- As tarefas…consistem no quê, concretamente?
- Depende. Normalmente são entregas de documentação, ou de determinados artefactos -
elucidou ele, enquanto se levantava da sua posição prévia, já que estava sentado junto de
mim, à beira da cama. Quase instantaneamente, tentei sentar-me à beira da cama,
movimento que via enormemente dificultado pela ferida da marca. Os pequenos
movimentos que tentava fazer repuxavam-me a pele que estava extremamente dorida,
fazendo-me gemer de dor. Ainda assim, consegui sentar-me, de tal forma que o conseguia
observar, enquanto ele se mantinha de pé, observando algo para lá da janela, no exterior.
Algo se passava. Ele estava a evitar-me, estava a ser demasiado amargo comigo, mesmo
para o que eu conhecia dele. Repentinamente, ouvi-o falar, outra vez.
200
- Seja como for, só terás que garantir que o destinatário receba o que é suposto tu
entregares. É para isso que os mensageiros servem, para garantir a entrega a tempo e
horas.
- E as entregas são feitas a quem?
- Normalmente a outros vampiros. Mas, ocasionalmente, também podem ser a humanos.
A referência dele a “outros vampiros” assustava-me particularmente. E se alguns desses
vampiros não fossem civilizados, ou se estivessem simplesmente com fome? A alusão à
nutrição relembrava-me Nevio e a forma hostil como me tinha observado naquele
corredor, há algumas horas atrás. E do que provavelmente aconteceria se David não
estivesse próximo de mim.
- Mas e se…
- Isso não vai acontecer - interrompeu-me ele, firmemente, sem olhar na minha direcção. -
Tu estás imune, ninguém te pode fazer mal. Läis garante a tua integridade física.
- Garante? - Perguntei eu, em tom de dúvida. Pelo que tinha observado de Läis, ela era
bastante cruel e, sem dúvida nenhuma, não simpatizava comigo. Mas mesmo nada.
- Claro que sim, - declarou ele, olhando-me de forma céptica, como se eu estivesse a
duvidar de algo muito evidente. - Tu tens a marca dela. Se algum de nós tentar fazer-te
mal, responderá a ela. Maltratar um mensageiro tem consequências bastante sérias e,
como já pudeste constatar, os métodos de Läis são bastante requintados.
Sim, eu já sabia desse facto, em primeira-mão. Ainda que fosse humana, já tinha
sofrido a ira da vampira soberana, sem dó, sem piedade. Sem escrúpulos.
Relembrava com mágoa e terror a particular opção dela de não me atordoar, assim como
os seus grunhidos enraivecidos ao persuadir-me a mim e a David.
- Ela… está zangada contigo… - arrisquei eu, enquanto tentava encontrar o seu olhar,
que, por várias vezes, se afastava do meu. Decididamente, esta era uma atitude de David
que eu desconhecia e que não estava a compreender.
- Sim - declarou ele, sem adiantar as razões da ira de Läis para com ele. Eu sabia que ele
escondia algo, pela forma como expirava profundamente e olhava para o vazio que nos
rodeava, como se estivesse relembrando algo que lhe fosse extremamente doloroso. A sua
face era, na verdade, um espelho de impaciência.
- Mas, David…
- Ouve, esquece. Não interessa - interrompeu ele, olhando agora na minha direcção com
uma agressividade marcada nas palavras que acabava de proferir. - Tu vais para Portugal e
eu vou ficar cá.
- Sim, mas…
201
- Não há mas. Tu vais para Portugal, continuar com a tua vida e vais pôr este ano atrás das
costas, entendes?
Olhei-o, incrédula. Como se isso fosse possível. Esquecer que existe um mundo para além
do meu? Esquecer que há uma outra espécie por aí que nos preda? Esquecer o vampiro
que me salvou a vida? Esquecer que ele mudou a minha vida para sempre? Como é que se
esquece algo assim? Ele só poderia estar a brincar!
- Eu não consigo fazer isso! Não posso simplesmente esquecer que…
- Podes. Podes e vais fazer - declarou ele, aproximando-se de mim, como se me estivesse
a ameaçar. A face dele exibia um semblante absolutamente irredutível, com uma seriedade
na voz que me entristecia a um ponto estupidamente insuportável.
Eu sentia-me chocada, ao ouvi-lo falar assim. Das imensas facetas dele, esta era uma que
eu nunca tinha visto. Podia agora constatar que era uma das piores, bastante pior do que
todas as outras que ele exibia. Neste momento, tinha a sensação que não o conhecia.
- Sinceramente, não pensavas que íamos ficar amigos? - O tom de voz que a sua pergunta
continha era um misto de ironia e de desdém, combinado com uma face de todo
inexpressiva. E continuou. - Já sabias que isto ia acontecer. Vampiro ou não, já sabias que
chegaria este momento. Não percebo porque é que estás tão surpreendida.
Subitamente, levantei-me, ignorando a dor que sentia enquanto tentava manter-me de pé,
frente a frente ao vampiro que eu pensava que conhecia.
- Não é isso, eu… não queria deixar de contactar contigo - informei eu, enquanto o olhava,
tentando explicar-me da forma mais elucidativa que conseguia.
- Contactar?
- Sim…quero dizer…
- Queres sugerir que combinemos conversar alegremente por telefone? Ou quem sabe,
pela internet? - O tom dele era absolutamente irónico e cruel. Só desejava que ele parasse
de me fazer sentir uma verdadeira idiota. Mas ele estava longe de terminar. – E…
conversamos sobre o quê? Tu, o que estudaste durante o dia e eu, o que comi durante a
noite? É isso?
- Não, eu só… - Estava com dificuldade em proferir as palavras que tinha para dizer, face
ao desprezo que ele revelava por mim e pelos meus sentimentos, naquele momento. Após
inspirar profundamente um par de vezes, evitando o seu olhar cruel, lá consegui formular
a frase que pretendia. - Eu só queria que me ajudasses a lidar com a minha nova vida. Não
te peço mais nada.
- Sozinha lidas perfeitamente com a tua nova vida. Não precisas de mim para nada -
assegurou ele, na minha direcção. Oh, como ele se enganava em relação ao que eu
202
precisava. Eu precisava mais dele do que ele imaginava, mesmo revelando-se um vampiro
temperamental e cruel. Ainda assim, não conseguia deixar de sentir afecto por ele, mesmo
quando ele me feria, sem eu perceber porquê. E eu… já não conseguia proferir nem mais
uma palavra, sob pena das lágrimas começarem a cair.
- Por favor, não sejas ridícula - afirmou ele, mais uma vez, enquanto me observava. - Não
posso acreditar que pensavas que toda esta situação ia continuar, como se eu me quisesse
continuar a misturar com humanos. Contigo. Vocês são absolutamente patéticos. Sem
razão para tal, começam imediatamente a criar cenários de amizade eterna e afectos
infundados. Francamente!
A sua face exibia, agora, uma expressão de espanto, como se ele se sentisse
insultado simplesmente por partilhar o mesmo espaço físico que eu. Ainda fiz uma
pequena tentativa de lhe tentar perguntar o que é que realmente se passava para ele estar a
ser tão desagradável comigo.
- David, o que…
- Nem sequer profiras o meu nome. Não quero que o faças, nunca mais - disparou ele,
elevando o tom de voz, na minha direcção, enquanto se afastava no sentido oposto ao
meu, para o canto mais recatado do meu quarto onde eu, praticamente, nem o via. - Eu sou
um vampiro. Não me misturo com vocês, contigo. Vocês, humanos, são seres repulsivos,
degradantes. Só servem para comer.
Não conseguia acreditar naquilo que ele estava a dizer. Era tão triste e tão cruel
que eu já não era capaz de suster as lágrimas que, inadvertidamente, tinham começado a
correr pela minha face.
- És patética - declarou ele, observando a minha reacção e reforçando o que tinha dito há
pouco.
Eu sei que sou.
- Olha para ti, não és digna de nada que o meu mundo te possa oferecer. És fraca e
cobarde. Só servirias para alimento, nada mais. Nem sequer para divertimento.
A tristeza que se apoderava de mim estava, agora, a admitir traços de raiva e fúria,
ao ouvir as palavras dele que, na minha opinião, eram injustas e infundadas.
- Se sou assim um ser tão deplorável, porque te sujeitaste a tanto por mim?
Sentia a voz falhar-me, ao tentar localizar o ponto onde sabia que ele estava,
naquele recanto escuro do meu quarto. Neste momento, só recordava as ternas palavras
que ele me havia dirigido naquela madrugada em Estrasburgo, no quarto de hotel. As
lágrimas que continuavam a cair impediam-me a correcta focagem e a dor que sentia
emanar da recente ferida que tinha, teimava em dificultar-me a coerência de discurso.
203
- Porque é que não trataste logo de mim como um verdadeiro vampiro?
A minha última frase não teve o impacto que eu esperava, pelo menos nos dois primeiros
segundos em que, daquele sombrio recanto onde eu sabia que ele se encontrava, não
obtive reacção, nem resposta. Somente silêncio. Até que, subitamente, algo mudou. Senti
uma leve brisa a circular no quarto, dirigindo-se a mim, sob a forma de alguém que eu
desconhecia, quase completamente. David parou a escassos centímetros de mim, com
aquele brilho hostil no olhar e, podia agora observar, os seus imponentes caninos, afilados
e ameaçadores, tão perto de mim, como se desejasse atacar-me, aniquilar-me, tal como um
animal a abater. Pela expressão que ostentava, parecia-me genuinamente enraivecido e,
desta forma, limitei-me a olhá-lo, como quem nada teme, como quem já não tem nada a
perder, pois tudo em que acreditava acabava de se desmoronar. E era verdade.
- Não… me provoques. Sais sempre a perder. Já sabes disso - sussurrou ele,
assemelhando-se a um grunhido. A hesitação que ouvi no seu discurso foi suficiente para
reunir coragem para contra-atacar.
- Não me respondeste - proferi eu, desafiando-o, apesar de não ter a mínima noção do
perigo que estava a correr ao admitir esta atitude.
- Eu não tenho que te responder a nada! Não tenho que me justificar perante um ser
insalubre como tu!
Olhei-o, incrédula, pensando para mim mesma como era possível ele dizer-me o que
estava, de facto, a dizer. Falaria ele a sério? Acreditaria ele no que acabava de referir? Era
essa a sua verdadeira opinião sobre mim? Instantaneamente remontei aos momentos da
audiência em Estrasburgo, em que o ouvira referir-se a mim como a humana vantajosa e o
espécime útil, relembrando-me o quanto essas palavras me haviam ferido. Pois agora
podia constatar que essas palavras mais pareciam elogios, face ao que ele me havia dito,
em comparação com os nomes e os adjectivos que ele tinha recentemente utilizado de uma
forma tão precisa e mesquinha. As ofensas que havia proferido doíam-me mais do que a
maldita ferida que remoía constantemente na base das minhas costas, da qual eu já nem
sequer me lembrava, pois a minha mágoa sobrepunha-se à dor física, que eu já não sentia.
Emocionalmente, estava completamente destruída, graças a ele.
Maldito vampiro, maldita a hora em que surgiste na minha vida. Odeio-te.
- É essa a tua verdadeira opinião? - A minha curiosidade era autêntica. E esta seria a
primeira e a última vez que eu lhe faria esta pergunta.
- Parece-te que eu esteja a brincar?
Só o tom dele revelava a natureza depreciativa da sua opinião. Já não precisava de mais
confirmações, nem de mais palavras. Já tinha, finalmente a confirmação de que
204
necessitava. Afinal, ele era um vampiro falso e manipulador. Em quantas mentiras terei eu
acreditado? Quão crédula tinha eu sido, caindo ingenuamente nos seus suaves engodos,
interiorizando as suas melodiosas palavras, que me toldavam a mente e me seduziam o
espírito.
- Sai - declarei eu, na sua direcção, mantendo o meu olhar desafiador no dele, tentando
mostrar-lhe que não tinha medo.
Pareceu-me ver algum espanto na sua face, enquanto ele mantinha o seu olhar dele preso
no meu, como que tentando captar se a minha afirmação tinha um fundo genuíno. Mas,
agora, eu não lhe permitiria o acesso ao caos emocional que ele tinha provocado dentro de
mim. Não agora, que as suas palavras me tinham enfurecido de tal forma que eu desejava
– mesmo – que ele saísse da minha frente, do meu quarto, sob pena de me descontrolar.
- Não ouviste? - Questionei eu, na direcção dele, sentindo os olhos encherem-se de
lágrimas, novamente. Ah, como eu desejava conseguir controlar-me mais. – Desaparece!
A última palavra saiu-me quase como um sussurro, pois tive que reprimir um soluço que
ameaçava surgir, destruindo a minha já frágil compostura.
Pela primeira vez, fui eu quem se afastou dele, retrocedi dois passos enquanto colocava,
trémula, os dedos da minha mão direita junto da boca, como que evitando a saída de
alguma asneira, ou de algum desabafo menos próprio. Mantinha o meu olhar no dele, com
esperança de poder encontrar aí algo, algum resquício que reflectisse arrependimento ou
alguma razão oculta que justificasse todas as atrocidades que ele me havia dirigido. Mas
lá, só encontrei, momentaneamente, uma pitada de tristeza, o que eu não consegui
compreender. Tristeza? Como é que ele se pode sentir triste, se fui eu a que foi insultada,
se fui eu que fui maltratada por ele?
Não, ele não tem o direito de se sentir triste.
Em contrapartida, eu…eu tinha mais do que razões para me sentir arruinada.
- Sai. De uma vez. Desaparece e nunca mais me surjas à frente. És… - sentia dificuldade
em verbalizar o que sentia, principalmente porque neste momento, não encontrava
palavras para o descrever. Monstro? Cruel? Desumano? Nenhuma delas era
suficientemente forte, suficientemente correcta para o qualificar.
- Continua… - sussurrou ele, enquanto se aproximava de mim, novamente, como se
estivesse a sentir o meu conflito interno, no fundo a minha dificuldade em aceitar no que
ele se tinha tornado e concluir que este era o verdadeiro David que tinha estado escondido,
todo este tempo. A postura dele era ligeiramente provocatória, desafiadora, incitando-me a
terminar a frase, a dizer o que queria dizer, de uma vez por todas.
Se eu tivesse coragem para isso.
205
Não era capaz de o olhar directamente quando ele se posicionava assim tão perto. Ele
estava já a escassos centímetros de mim, pois já conseguia cheirar a essência que dele
emanava, que me toldava parcialmente os sentidos, atenuando quase instantaneamente a
minha raiva, a minha fúria.
Não vás.
Sentia-me perdida, confusa. Eu não podia estar bem. Estaria eu sob o efeito da persuasão
dele? Quem é que ele se julgava? E eu, porque é que eu não conseguia manter-me firme às
minhas decisões? Ainda há pouco sentia-me capaz de o esbofetear e agora, nem sequer
conseguia odiá-lo devidamente. Ele tinha razão, eu era fraca e patética.
E ele continuava, aproximava-se cada vez mais. Parecia que me ia abraçar, mas sem nunca
o fazer completamente. Eu limitava-me a tentar olhar para algum local que me permitisse
abstrair do efeito que a proximidade dele tinha em mim. Mas era totalmente em vão. Já
conseguia sentir o efeito anestesiante da respiração dele na minha testa, na minha fonte.
Fica.
Esbugalhei os olhos de espanto, ao ouvir a voz da minha mente a proferir tamanha
barbaridade. Como é que era possível eu desejar isto? Depois de tudo o que ele me disse?
Tinha que fazer alguma coisa. Tinha que me afastar. Não podia deixar que ele me fosse
fazer… sabe-se lá o quê. Ele era tão imprevisível. Se fosse um rapaz normal, eu já sabia o
que ele queria. Mas ele, não. Nunca. Talvez fosse por isso que ele era tão desejável.
Consegui reagir, ainda que com pouca firmeza, movendo a minha cabeça na direcção
oposta à dele, tentando afastar-me da sua atordoante presença. Contudo, a reacção dele
ainda foi mais surpreendente. Foi com o maior espanto que alguma vez senti na minha
vida – inteira – que o senti colocar a sua mão esquerda no penso que cobria a minha ferida
física, na base das costas, experimentando de imediato o alívio que a sua temperatura
gélida conferia, enquanto que a sua mão direita se posicionava discretamente na base
posterior do meu pescoço, despoletando de imediato um arrepio que me percorreu desde a
fonte até à ponta dos pés.
Que sensação extraordinária.
Presumia eu que esta elaborada atitude era o mais parecido com um abraço, no mundo dos
vampiros. Não obstante, não compreendia as atitudes dele. Não sabia o que fazer.
Não me deixes.
Definitivamente, a minha mente não me estava a ajudar. Pensar que há um minuto atrás eu
sentia uma raiva quase visceral por ele e agora… estava completamente rendida. Estúpida.
Ele movia-se lentamente, com movimentos estranhos, pelo menos para a maior parte dos
humanos. Não se assemelhava a nada do que eu já conhecia, – do pouco que conhecia. Até
206
que, inesperadamente, me pareceu identificar aqueles movimentos com algo que já
conhecia do reino animal: ele estava a farejar-me. A cheirar-me o cabelo, a face, a testa, o
pescoço. Conseguia sentir, ocasionalmente, o contacto da sua gélida respiração, a
extremidade do seu nariz, a frieza dos seus lábios. Mas porquê? Para quê? Ir-me ia
morder? Finalizar, assim, este infeliz episódio?
Não conseguia concentrar-me em mais nada a não ser ele e eu, ali, naquele momento. Já
não existiam tristezas, nem ofensas, nem insultos – pelo menos por agora. E ele sabia
disso. Ele sabia o efeito que tinha em mim. Sempre o havia sabido. Por isso ele se
aproveitava dessa minha fraqueza, para me… farejar? Isto era ridículo, no mínimo. Eu
tinha que fazer alguma coisa.
- David…- balbuciei eu, com notória dificuldade.
Senti-o parar ao nível do meu ouvido, como se eu tivesse quebrado o feitiço em que –
ambos – nos encontrávamos. Ele mantinha-se estático, nem sequer respirava. Eu sentia-
me literalmente presa a uma estátua de mármore, daquelas que existem nas caves dos
museus mais famosos e que não se encontram em exposição. Uma estátua só minha. Uma
obra de arte privada.
Subitamente ouvi-o respirar e pressenti também que tentava dizer algo, apesar de ainda
não o ter verbalizado.
- Desculpa… - ouvi-o suspirar, com o tom de voz mais suave que alguma vez tinha
ouvido.
Fiquei boquiaberta, atónita. Ele só podia estar a brincar comigo, com os meus
sentimentos. Senti a minha respiração acelerar, expectante. Embora toda a minha vontade
estivesse empenhada em desculpá-lo sem sequer pensar duas vezes. Não, não o podia
fazer. Estava na hora de reagir, de eu ser forte, apesar de todas as células que faziam parte
do meu corpo o desejarem, ansiarem avidamente pelo seu toque.
- Não, David… - afirmei eu, com um tom de voz seco.
Sim, eu desculpo.
Ele olhou-me surpreendido, enquanto eu me afastava do seu extraordinário toque,
deixando-o sem palavras. Eu própria não sabia onde tinha recolhido forças, não só para
afirmar aquelas secas palavras, mas também para me afastar dele, sentindo eu o que
sentia… por ele.
- …O que foi dito não tem desculpa - acrescentei eu, enquanto observava atentamente a
sua reacção, desejando por um lado que ele se fosse embora e, por outro, que ele não me
deixasse.
Eu desculpo-te.
207
- Eu sei… - declarou ele, como se estivesse a concordar com algo incontestável, do qual
ele já tinha conhecimento. Como se ele conseguisse ouvir a voz da minha mente, que tinha
acabado de contradizer a minha amarga declaração. Por momentos, fiquei confusa, sem
perceber a qual das afirmações ele tinha concretamente respondido.
- Eu sei - murmurou ele, novamente, enquanto se afastava e se movia na direcção da
janela, sem hesitar uma única vez, um único passo.
Não.
Vi-o empoleirar-se agilmente, a preparar-se para se ir embora, quando senti pânico. O
meu batimento cardíaco aumentou a um nível que me pareceu claramente audível,
enquanto eu desejava vê-lo, encontrar o seu olhar mais uma vez, só mais uma vez, porque
já sabia que ia ser a última.
Não, por favor, não vás.
David parou, por momentos, virando-se de modo a encontrar o meu olhar, como se tivesse
ouvido o meu pedido. O olhar esmeralda que dele emanava estava marcado por uma
intensidade desconhecida, ainda assim tão… única. Senti uma vontade enorme de me
dirigir a ele, pedir-lhe para me explicar o porquê das palavras tão amargas e a razão das
suas atitudes incoerentes e incompreensíveis que me confundiam e me faziam perguntar-
me o que era, afinal, aquilo que ele sentia. Aquilo que tinha rasteirado o seu instinto e o
tinha levado a rebelar-se contra as leis e regras do seu mundo. Desejava ouvi-lo dizer que
todas aquelas palavras tinham sido encomendadas por alguém que pretendia separá-lo de
mim e que as suas verdadeiras emoções eram, na realidade, outras, bem diferentes das
barbaridades que havia proferido. Mas algo me dizia que isso não ia acontecer, porque,
afinal, ele tinha um dever para cumprir, uma vida na qual eu não tinha lugar, nem espaço
para existir. Ele… ia-se embora.
E, num piscar de olhos, ele desvaneceu-se. Desapareceu da ombreira da janela como se de
uma miragem se tratasse. Involuntariamente, avancei na direcção da janela, olhei para
baixo, para a rua, para cima, na direcção do telhado. Nada, ninguém. Ele tinha-se ido
embora. Eu sabia-o. Eu sentia-o.
Olhava para o vazio, sentada perto da janela, contemplando a noite luminosa,
acompanhada por uma leve brisa que passava, lentamente, refrescando as noites de verão
em Paris. Sentia-me inerte, incapaz de me movimentar, fosse em que direcção fosse.
Por um lado, porque me sentia dorida. A dor da ferida física parecia estar mais aguçada
agora, muito provavelmente devido aos analgésicos, cujo efeito já deveria estar a terminar.
A outra dor… não tinha palavras. Já as tinha utilizado todas. Limitava-me a deixar as
208
lágrimas correrem, até já não ter mais e o corpo fabricar novas lágrimas. De vez em
quando deixava sair um soluço, para não acumular tanta tensão no meu corpo e na minha
mente. Já havia recordado inúmeras vezes os acontecimentos que tinham decorrido e já
tinha chegado à conclusão que nada era lógico, nada tinha nexo. Não sabia o que mais me
magoava: as palavras desproporcionadas dele, ou aquela aproximação alienígena de
abraço. Talvez não fosse suposto eu compreender o mundo deles, talvez eu tivesse
somente que aceitar que é assim. Ponto final.
Ainda assim, não conseguia conformar-me. Não conseguia pensar em avançar, esquecer
este dia e viver a minha vida como se nada tivesse acontecido. Como é que eu podia fazer
isso, se este dia tinha mudado a minha vida para sempre? Uma vida onde eu estava
obrigatoriamente conectada a um mundo que permanecia desconhecido para grande parte
da humanidade. Um mundo aonde pertence aquele que prende todo o meu afecto, aquele
que eu não vou ver nunca mais.
Sentia, também, saudade misturada com tristeza. Era uma combinação quase insuportável.
Não conseguia evitar pensar sempre no mesmo, ainda que eu me esforçasse para não o
fazer. Tinha que parar com isto, ser forte. Mas como?
Levantei-me de rompante, ainda com dificuldade, tentando saber que horas eram.
Com os movimentos entorpecidos, procurei lentamente por algum aparelho electrónico
que me pudesse informar das horas. Encontrei um relógio algures na mala de viagem, que
se encontrava no chão do quarto, mas não conseguia ver que horas eram, porque estava
escuro. Eu mantinha-me no escuro, deambulando como uma lunática paranóica. Respirei
fundo, enquanto me dirigia à parede onde se encontrava o interruptor, cliquei acendendo a
luz e iluminando o quarto com uma luminosidade que quase me cegava, obrigando-me a
semicerrar os olhos. Voltei à mala de viagem, onde já conseguia ver que afinal, eram duas
da manhã. Avizinhava-se uma longa noite.
Não era capaz de dormir, embora o corpo acusasse um cansaço devastador. Só conseguia
chorar, surpreendida com a minha capacidade de fabricar tantas lágrimas. Eu própria não
sabia que o ser humano era capaz de chorar tantas horas seguidas, desta forma tão
contínua. Aparentemente, o ser humano era capaz de muitas coisas que eu desconhecia.
Decidi-me a arrumar tudo o que tinha que levar para casa, para Portugal, enquanto
tentava não pensar na minha situação. Nele. Uma hora depois já tinha tudo preparado.
Duas malas com bagagem resumiam o conteúdo de um ano da minha vida em Paris. Um
ano que eu havia projectado de maravilhoso e extraordinário, revelava-se agora
insuportavelmente horrífico, terrível.
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Tinha que sair daqui, antes que a minha dor se tornasse ainda mais intolerável. Sem
pensar, peguei no telefone e contactei a linha de apoio a clientes da companhia aérea que
costumava utilizar. Felizmente, uma senhora atendeu-me, apesar da hora tardia a que os
contactava. Com o melhor francês que consegui elaborar no lamentável estado em que me
encontrava, perguntei quais eram os voos directos para Portugal, concretamente para Faro
e a que horas eram. Enquanto a senhora confirmava as horas dos voos, só rezava para que
houvesse, pelo menos um voo ainda durante a madrugada, para que eu pudesse ir-me
embora, definitivamente. Alguns minutos de espera foram suficientes para me informarem
que efectivamente existia um voo às cinco e quarenta e cinco da manhã, directo Paris-
Faro. Amavelmente pedi à senhora que me reservasse o bilhete de avião, pois iria de
imediato para o Aeroporto d’ Orly.
Desliguei o telefone e voltei a fazer uma chamada, desta vez para a central de táxis. Olhei,
mais uma vez, para o meu quarto. Era altura de me despedir.
Subitamente lembrei-me de Shiva. Ela não estava em casa. Ainda tinha os meus post-it em
cima da secretária, pelo que resolvi escrever-lhe um breve comentário, desculpando-me
exageradamente pela minha apressada ida para casa. Acabei por escrever três, que colei na
porta do quarto dela.
Retirei as malas do quarto e coloquei-as no hall de entrada, olhando mais uma vez para o
meu quarto. Ainda fui à casa-de-banho, confirmar se tinha recolhido todos os meus
produtos e se não me tinha esquecido de nada. Mal o fiz, arrependi-me amargamente.
Ao entrar na casa-de-banho, vi o meu reflexo no espelho. Era uma imagem deplorável,
com o semblante mais infeliz que eu já tinha visto em mim própria. Os olhos estavam
inchados e, na face, tinha as marcas de rios de lágrimas que já tinham secado. Nem
quando a minha querida avó materna havia falecido eu tinha admitido uma aparência tão
miserável.
Saí rapidamente da casa-de-banho, fechando a porta ruidosamente e deixando escapar
mais umas lágrimas, não de tristeza mas de raiva, por me sentir tão frágil e destruída por
alguém – algo – que me tinha deixado desamparada. Nunca alguém me tinha deixado
assim, como um farrapo humano.
Maldito sejas, David. Odeio-te.
Agora sim, era mais fácil odiá-lo, sem a presença dele, sem o efeito dele, ainda que isso
não me impedisse de sentir afecto por ele. Definitivamente, eu só podia ser muito
estúpida. Como é que eu me deixei levar pelos seus encantos? Ele, que aparentemente era
tão desinteressante, se tornou tão… desejável.
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Saí de casa, sem pensar duas vezes, esperando que o táxi já estivesse à porta do prédio,
para que eu pudesse estar em movimento. Ficar parada em algum sítio era sinal de pensar
em quem não devia. E isso significava mais lágrimas, pelo que era de evitar.
Mal saí do elevador, encontrei o táxi já à minha espera, que rapidamente se pôs a caminho
do Aeroporto de Orly, tal como eu havia pedido. Passear por Paris, num táxi à noite, não
ajudava à minha paz de espírito. Cada rua, cada esquina, cada candeeiro traziam à tona
recordações dolorosas, que me faziam um nó na garganta. Era inevitável deixar escapar
uma lágrima, de vez em quando, debaixo do olhar curioso do motorista que, amiúde, me
observava pelo espelho retrovisor. Certamente perguntar-se-ia qual era o meu problema,
ou se estava a fugir de alguém, por serem três e trinta da manhã e eu pedir com a maior
das urgências um táxi, com destino ao Aeroporto.
A corrida durou cerca de vinte penosos minutos, rodeados de edifícios e monumentos que
sussurravam o nome dele ao meu ouvido. Felizmente a chegada ao Aeroporto fazia-se
acompanhar de um burburinho característico, personificado pelo movimento que existia
sempre num Aeroporto de cariz internacional, o que atenuava os constantes murmúrios
que se faziam audíveis na minha mente, no movimentado silêncio da noite.
Com uma rapidez invulgar para alguém que se sentia esgotada e sem forças quase
para respirar e manter-me em pé, atravessei o aeroporto até à zona onde levantei o bilhete
que tinha requisitado, debaixo do olhar surpreendido das escassas pessoas que passavam
por mim e que me olhavam com espanto e curiosidade, observando de soslaio o vulto que
sobressaía da parte inferior traseira da minha t-shirt, que ocasionalmente revelava o
volumoso penso que aí tinha. Calculava eu que a minha aparência não ajudasse a dar uma
imagem decente, de alguém sério e saudável. Provavelmente pensariam que eu teria saído
de um buraco qualquer em Paris, que praticaria drogas duras e que estaria com uma
potente ressaca, fugida do traficante que tinha deixado com uma dívida suficientemente
grande para justificar um aviso em forma de pancada.
Não queria saber qual era a opinião deles, nem o que pensavam de mim. Só queria fazer o
check-in e meter-me no avião que me levaria à calma e à paz da minha casa. Lar, doce lar.
Para meu júbilo, as duas horas que passei no aeroporto revelaram-se bastante
movimentadas, entre confirmações das horas de voo, o check-in e breves passeios pelas
lojas do aeroporto, onde me decidi a comprar algumas recordações para a minha mãe e
para a minha irmã.
A minha família. Eles iam ficar assustados, confusos, preocupados com a minha abrupta
decisão de regresso, sem os avisar. Eventualmente teria que lhes telefonar, informá-los de
211
que iria chegar a Faro pouco depois do amanhecer. E teria que pensar que desculpa iria
inventar para justificar o meu aspecto, a minha decisão. Ainda tinha alguns minutos para
fazer o telefonema, antes de embarcar.
Olhei em meu redor, confirmando pela enésima vez a porta do embarque e o voo que lhe
correspondia, se era mesmo aquele, se se mantinha, se eu estava no local correcto. Sim,
estava, e agora podia fazer o telefonema. Para isso, sentei-me vagarosamente nas malas
que tinha ao pé de mim. Ao retirar o telefone, comecei a pensar em quem deveria
telefonar: se à minha mãe ou se ao meu pai? A qual deles daria eu um menor susto, por
telefonar de madrugada, a informar que me ia embora? Não precisei de pensar muito para
concluir que seria melhor telefonar ao meu pai.
Estabeleci a chamada, conseguia ouvir como o som de “chamar” se mantinha com a sua
intermitência tão característica. Pelo menos o telemóvel está ligado. Após alguns
segundos, ouvi uma voz que parecia claramente confusa e ensonada.
- Maria…?
Quase que perco a compostura ao ouvir a voz do meu pai do outro lado da linha.
- Sim, pai, sou eu. Está tudo bem - adiantei eu, evitando perguntas que eu já sabia que ia
ouvir várias vezes. Engoli em seco várias vezes, tentando aclarar a garganta, para que o
meu pai não percebesse que eu estava à beira das lágrimas. - Vou para casa, pai. Vou
agora apanhar o avião para Faro.
- Mas, a estas horas? O que é que se passou?
Tudo.
Perguntas difíceis e não as mais adequadas para o momento. Senti escapar uma lágrima,
enquanto pensava numa forma evasiva de me justificar rapidamente, sem adiantar nada
em concreto.
- Eh… nada, pai. Está tudo bem, eu só quero ir para casa. Já estou em Paris há muito
tempo, tenho saudades de casa…
- De certeza? Não pareces muito contente…
Era nestas alturas que o sexto sentido paternal era extremamente inconveniente, se bem
que era provável que fosse a minha voz que denunciava o meu infeliz estado de espírito.
Já estava a prever que ia ser difícil esconder fosse o que fosse da minha família e, em
especial da minha obstinada irmã, que parecia farejar as razões por detrás das minhas
variações de humor.
- Está tudo óptimo! - Afirmei eu, fingindo um tom exageradamente feliz, demasiado
esforçado para ser real.
- A que horas chegas?
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- Por volta das sete da manhã. Mais coisa menos coisa… - informei eu, tentando manter
uma voz íntegra.
- Está bem, então telefona-me quando chegares.
- Sim.
- Até já, filha.
- Até já, pai.
A ligação terminava e eu mantinha o meu olhar fixo no placard que agora parecia
vivo, com a palavra “EMBARQUE” a piscar rapidamente na linha que correspondia ao meu
voo. Estava na hora de me ir embora, de me despedir definitivamente de Paris.
Para sempre.
Sem saber de onde apareciam as forças que me inundavam de energia, levantei-me de
rompante e caminhei a uma velocidade que eu não sabia conseguir, na direcção que me
levaria para longe desta cidade, para longe dele, para locais onde – esperava eu que - a
presença dele se atenuaria com o tempo, onde a ausência dele já não seria incomodativa,
onde as recordações de Estrasburgo se tornariam esbatidas, como uma pintura vívida que
sofre as intempéries inevitáveis do tempo e se torna baça, apagada, desvanecida, até
desaparecer completamente, onde as memórias vividas em Paris se atenuariam, mas onde
a lembrança do seu olhar esmeralda, a disposição das suas feições, a frieza da sua pele e a
incoerência das suas atitudes iriam sempre permanecer, assombrando-me enquanto eu
vivesse. Como uma sombra escura que, com toda a convicção, me acompanharia,
relembrando-me da sua existência, do seu efeito em mim.
Conseguia senti-la, a certeza de que eu seria para sempre perseguida por essa sombra,
durante toda a minha existência. E eu… nada poderia fazer para a combater, pois ela era a
essência que me prendia a um mundo desconhecido.