Universidade do Estado do Rio de Janeiro
2
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Instituto de Filosofia e Cincias Humanas
Departamento de Filosofia
A influncia do Iluminismo na Secularizao e o papel do
Secularismo na Esfera Pblica
Isaac Viot Serra
Monografia apresentada como requisito parcial para a obteno do
grau de Bacharelne Licenciando em Filosofia pelo Departamento de
Filosofia/ IFCH/ UERJ.Orientador: Prof. Dr. Luiz Bernardo Leite
Araujo
Rio de Janeiro
Novembro/2012Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Instituto de Filosofia e Cincias Humanas
Departamento de FilosofiaA influncia do Iluminismo na
Secularizao e o papel do Secularismo na Esfera Pblica
Isaac Viot Serra
Banca Examinadora:
Prof. Dr. Luiz Bernardo Leite Araujo (orientador)
Prof. Dr. Antonio Augusto Passos VideiraProf. Dr.
------------------------------Rio de Janeiro
Novembro/2012AgradecimentosA Deus, que, semelhantemente ao
daimon socrtico, creio ter ordenado a mim a viver filosofando e
examinando a mim mesmo e aos outros e incutiu em todos os homens o
anseio pela verdade.A toda minha famlia, principalmente aos meus
pais que sempre acreditaram em mim e investiram nos meus estudos.Ao
prof. Dr. Luiz Bernardo Leite Arajo, por sua orientao neste
trabalho monogrfico e suas aulas inspiradoras.Ao prof. Dr. Antonio
Augusto Passos Videira, cujos cursos ministrados de Filosofia da
Natureza e Histria da Filosofia Moderna tiveram grande repercusso
sobre este trabalho.
A todos os professores do departamento de filosofia que de
alguma forma cooperaram para minha formao, seja por meio de suas
excelentes aulas, pelas observaes feitas em provas ou trabalhos ou
pela simples disposio de conversar nos corredores. Esta lista de
agradecimentos seria pequena caso pretendesse detalhar todas as
contribuies.Aos meus colegas de graduao, muitos dos quais se
mostraram verdadeiros amigos. Em especial:A Camila de Oliveira e
Fabiana Amorim, minhas primeiras amizades no curso de filosofia.
Nossos papos, seja na varanda da biblioteca ou na concha acstica,
foram grande estmulo para que eu tomasse gosto pela atividade
filosfica desde o princpio.A Ana Carolina, Armnio Salatial, Clia
Mara, Jocemir Reis, Pedro Ribeiro, Roseli Bonfim, Roselay Barbosa,
alm de outros, que nestes ltimos anos tornaram-se motivos a mais
para estar na faculdade. Obrigado pelo carinho e companheirismo e
tambm por nem sempre concordarem comigo e se disporem ao debate.
Vocs me ensinaram que amizade no tem necessariamente haver com
cultivar os mesmo gostos e opinies que outra pessoa, mas que tambm
envolve a coragem de levantar uma controvrsia e discuti-la
abertamente.Aos meus amigos em geral, que mesmo no compartilhando
do mesmo interesse pela filosofia, se dispuseram a me ouvir e a
refletir juntamente comigo sobre as situaes mais corriqueiras que
se colocavam a nossa frente. Obrigado por me aturarem por se
permitiram embarcar nesta maravilhosa aventura que a
filosofia.Dedico esse trabalho a todos aqueles que se esforam para
expandir a filosofia para alm do ambiente acadmico. Vocs so
corajosos.RESUMO
O presente trabalho parte das reflexes do filsofo canadense
Charles Taylor sobre o advento da secularizao e do surgimento do
secularismo no ocidente. Comeando por uma anlise etimolgica do
termo secular, apresentamos tambm as concepes mais comuns de
secularidade presentes no imaginrio social moderno e introduzimos a
concepo tayloriana como ponto de partida para a discusso acerca do
papel do secularismo nas sociedades democrticas liberais
contemporneas. Em seguida, expomos os aspectos centrais do que
Taylor intitulou de mito do esclarecimento e examinamos como este
permeou a emancipao das cincias naturais do campo da filosofia e
como tambm influenciou o projeto poltico liberal, bem como a formao
de estruturas que lhe so intrnsecas, como o Estado laico e a esfera
pblica. Por fim, investigamos como estas reflexes podem ser teis
para a soluo de algumas controvrsias recorrentes em nossas
sociedades atuais, caracterizadas pelo fato do pluralismo religioso
e cultural.Palavras-chave: Charles Taylor; Secularizao; Iluminismo;
Esfera Pblica; Secularismo.SUMRIO
I.
Introduo..............................................................................................................II.
O [mito do]
Esclarecimento..................................................................................
III. Da filosofia natural ao naturalismo
cientfico.....................................................IV. A
Esfera Pblica e o Estado
Secular...................................................................V.
Uma distino entre razo secular e razo
pblica...............................................VI.
Concluso............................................................................................................Referncias
Bibliogrficas........................................................................................7121626354346
I. Introduo
O processo ao qual denominamos de secularizao faz parte da
histria do ocidente e ao mesmo tempo um fato da contemporaneidade.
A ascenso do estado laico como modelo-padro de governo no ocidente
constituiu o marco histrico desse processo, sendo at hoje
apresentado como a melhor soluo poltica para os conflitos de ordem
cultural cada vez mais comuns em nossas sociedades. Apesar dessa
familiaridade com o tema percebe-se que, de um modo geral, no
sabemos o que realmente depreende da afirmao de que vivemos numa
sociedade secular; naturalmente, nos vem a mente a ideia de uma
ciso definitiva entre o poder poltico e as instituies religiosas
ou, como gostamos de dizer no caso especfico do ocidente, a separao
entre Estado e Igreja. No entanto, o que foi ou o que o processo de
secularizao, em todas as suas nuances e particularidades, ainda no
se tornou um consenso entre os pensadores de nosso tempo. Dentre
estes se destaca o filsofo canadense Charles Taylor, o qual nos
ltimos anos se props a delinear um impensado acerca da secularizao
e do atual papel da religio em nossas sociedades
multiculturais.
Uma questo que se coloca em primeira instncia : porque
utilizamos o termo secular para nomearo afastamento da sociedade
poltica das concepes religiosas? Ironicamente trata-se de um
vocbulo de origem religiosa, mas especificamente como parte de uma
dade desenvolvida na cristandade latina. Neste sentido original, o
secular seria uma categoria do tempo que s poderia ser pensada em
contraposio aquilo que eterno: o tempo secular mensurvel e
passageiro, enquanto a eternidade tem por caracterstica central a
infinitude. Dentro deste panorama, uma instncia secular referia-se
ao que de natureza terrena (o profano), pensado sempre em oposio a
uma instncia superior de natureza espiritual (o sagrado). Essa dade
englobava todos os segmentos da sociedade, de modo que certos
tempos, lugares, pessoas, instituies e aes eram vistos como
intimamente relacionados com o tempo sagrado ou superior, e outros
como pertencendo apenas ao tempo profano. Isto no significava dizer
que havia qualquer espcie de cisma entre esses campos, no sentido
de que competissem por espao, antes sofriam uma interpenetrao
constante - se por um lado a igreja representava uma instncia
superior destinada a cumprir com os propsitos eternos, por outro
desenvolvia funes sociais importantes, principalmente nos setores
da sade e da educao.
Esta relao estvel entre instncias transcendentes e imanentes, no
entanto, foi sendo minada aos poucos e teria atingido seu pice no
sculo XVIII. Em seu artigo O que significa secularismo?, Taylor
denuncia como a partir da surge uma concepo da vida aonde os
aspectos transcendentes so totalmente desconsiderados e a realidade
transfigura-se dentro de uma perspectiva puramente imanente. Se
inicialmente havia uma dade interna e os mundos de ordem superior e
inferior estavam to entrelaados que no se podia falar de um sem
fazer referncia ao outro, no desenrolar da modernidade nos
deparamos com uma dade externa, no sentido de que a ordem inferior
declara sua independncia em relao a seu par, excluindo o mesmo da
dimenso do real. A nova compreenso do secular insurge trazendo
consigo no apenas a primazia do imanente sobre o transcendente, mas
tambm valora um como verdadeiro e outro como falso, um como aquilo
que existe e o outro como o meramente inventado.
Como era de se esperar, uma mudana de paradigma to radical no
ocorreu de forma contnua e linear - e deve-se ressaltar que
principalmente as transformaes no plano poltico e social no se
deram de imediato. Num primeiro momento reconhecemos elites
intelectuais impulsionando discusses efervescentes a respeito da f
e proporcionando assim a circulao de correntes de pensamento
favorveis, em maior ou menor grau, a descrena no transcendente.
Pode-se dizer que as intenes iniciais no incluam, necessariamente,
um combate a crena religiosa, porm medida que concepes de f
alternativas ganham espao no debate, naturalmente uma perspectiva
relativista vai adquirindo fora, ainda que restrita a um crculo
fechado. Como estas que eram alternativas para poucos se
popularizaram e vieram a ser alternativas para muitos se torna,
portanto, a questo bsica das mais diversas teorias da
secularizao.
Uma teoria do processo de secularizao tem por objetivo desvendar
como, por que e por quais meios as sociedades ocidentais assumiram
um formato secular, tomando como pressuposto que, historicamente,
as coisas nem sempre foram assim. Seguindo esta linha de
pensamento, logo somos remetidos a uma idade das trevas aonde uma
religio opressora possua poderes polticos e ditava preceitos morais
que regiam todos os mbitos de uma comunidade e, como esta j no
nossa realidade, devemos admitir - ou no mnimo suspeitar - que algo
se deu para que tal tenebrosa fase da humanidade fosse finalmente
superada. E esse algo deve estar contido no que chamamos de
secularizao. Como tambm no seria razovel acreditar que isto se deu
instantaneamente, geralmente se entende a secularizao como um
processo gradativo que culminou na organizao social vigente apesar
de os caminhos percorridos estarem sujeitos a divergncias.
Um exemplo de percurso da secularizao bastante intuitivo aponta
para o desenvolvimento de meios de comunicao mais eficazes e a
expanso da educao formal padronizada a partir do sculo XVII. Ambos
teriam proporcionado uma maior e mais rpida difuso entre as massas
de informaes que antes estavam restritas aos crculos intelectuais.
O papel crucial destes fatores na secularizao inegvel, porm,
segundo Taylor, eles teriam feito suas maiores contribuies num
tempo bem mais recente do que presumimos. Se olharmos atentamente
para a histria do ocidente veremos que o trajeto da secularizao por
demais acidentado, com variaes drsticas dependendo do povo ou nao,
de modo que aps investigaes minuciosas tornam-se cada vez mais
insustentveis redues a teses simplistas e/ou generalizaes.
A proposta de Charles Taylor no desvelar uma teoria de
secularizao fechada que abarque todas as peculiaridades histricas,
sociolgicas e filosficas desse complexo processo. Na verdade, para
ele, esta tarefa seria praticamente impossvel de ser efetuada. No
entanto, para uma melhor compreenso desta era chamada secular,
principalmente seus efeitos na prtica poltica e social, se faz
necessrio um estudo aprofundado que tanto aponte novas perspectivas
quanto desfaa equvocos e preconceitos.
Um dos passos primordiais para execuo desta tarefa identificar
as diferentes maneiras de autocompreenso construdas pela sociedade
secular ocidental. A questo pode ser formulada nos seguintes
termos: como esta era secular percebe sua secularidade? Esta
pergunta crucial, pois a partir dela todas as teorias da
secularizao sero desenvolvidas. Da mesma forma que no so elaboradas
teses cientficas a partir do nada - antes o ponto de partida
consiste sempre num dado -, uma teoria filosfica, principalmente no
campo da poltica, trar sempre indcios de sua poca: nossa percepo da
realidade em alguma instncia influencia at nosso pensamento mais
formal.
Haveria assim dois tipos de secularidade j muito bem
fundamentados no imaginrio social e um terceiro proposto por Taylor
como complementar e esclarecedor de aspectos importantes que por
vezes passam despercebidos. A primeira noo de secularidade j fora
mencionada rapidamente no incio desta exposio: difundida pelo
binmio estado secular (ou laico) caracterizada pela sociedade cujo
governo funciona totalmente desvencilhado de instituies religiosas.
Trata em ltima ordem da maneira como a religio passa a se portar
nos espaos pblicos, principalmente no que concerne a restrio de sua
influncia sobre a poltica e sobre os costumes de uma dada
comunidade. Uma segunda noo, tambm muito popular, aponta para um
significativo abandono das convices e prticas religiosas,
caracterizado pela descrena em Deus e pelo esvaziamento das
igrejas. Aqui a secularidade diz menos respeito aos aspectos
sociais e d maior enfoque ao modo como, atualmente, as pessoas
parecem ter menor interesse no transcendente do que nossos
antepassados.
Apesar de estes dois primeiros sentidos serem pertinentes e
coerentes com o que observamos no processo de secularizao, Taylor
prope um terceiro sentido que versa sobre uma mudana radical nas
condies de f: a crena em Deus ou em qualquer outra realidade
transcendente no mais axiomtica, mas constitui apenas uma opo
dentre muitas outras, inclusive a descrena. Assim, numa sociedade
secular que lida naturalmente com o fato do pluralismo religioso
cada indivduo est privado de possuir uma crena ingnua, ou seja, sua
experincia com a f admite desde o incio certa relatividade, uma vez
que j no pode ser exclusiva tal como ocorreria em uma sociedade que
se autocompreende como crist, judaica, islmica etc. Assim, essa
terceira secularidade resguarda um vnculo com a primeira e serve de
condio para a segunda, pois a instituio do governo laico seria o
primeiro passo para um desprestgio da religio dominante, da mesma
forma que a pluralidade de alternativas de f abre caminho para a
descrena; uma vez gerada essa atmosfera de incerteza em relao a
verdade ltima, a diminuio do ativismo religioso seria apenas uma
consequncia.
Essa nova concepo de secularidade o ponto de partida das
reflexes de Charles Taylor. A partir dela so elaborados diversos
percursos analticos voltados para as transformaes no pensamento
ocidental que possibilitaram um modo de pensar, agir e sentir
prprios das sociedades liberais contemporneas. Dentre a gama de
possibilidades que surgem neste horizonte, este trabalho pretende
tratar do secularismo. Como definio provisria, entenderemos o
secularismo como uma viso de mundo particular que preza por aquele
modo de vida pautado to somente nos aspectos imanentes da
existncia. Ocorre ento que apesar de as sociedades seculares
aceitarem o pluralismo cultural e defenderem um ambiente pblico
livre para a convivncia de uma ampla variedade de vises de mundo
sem eleger nenhuma como oficial, parece insurgir um estigma de
superioridade sobre uma viso de mundo tipicamente secularista em
detrimento de outras, principalmente aquelas de cunho
religioso.
Uns poderiam dizer ser razovel e at mesmo inevitvel que o
secularismo se sobreponha enquanto doutrina dominante dada a prpria
natureza secular das instituies polticas contemporneas. Em
contrapartida, corre risco a alegao de que a grande vantagem de um
estado laico sua neutralidade no trato com as mais diversas vises
particulares de mundo. Afinal, o estado secular ou secularista? Um
estado secular deve ser efetivamente neutro? Qual deve ser o
objetivo do estado secularizado? A resposta destas e outras questes
envolver uma distino entre o secular e o pblico, bem como definir
se a religio pode ser expressa na arena pblica de um regime secular
e, se pode, dentro de quais parmetros. No entanto, se mostra como
mais sensato retornarmos primeiro aos sculos XVII e XVIII, aonde a
discusso de certas ideias e a criao de novos paradigmas parece ter
sido crucial para todo desenvolvimento ulterior da secularizao e do
secularismo no ocidente.
II. O [mito do] Esclarecimento
Em meados do sculo XVII e ao longo do sculo XVIII aflorou na
Europa um movimento intelectual que tinha por premissa adotar a
razo como critrio basilar para o desenvolvimento de todas as searas
do conhecimento. Na lngua alem foi intitulado Aufklrung, na
francesa como Lumires e traduzido comumente para o portugus como
Iluminismo ou Esclarecimento. Nesta que foi chamada de Era das
Luzes desdobraram-se acontecimentos e discusses filosficas que
repercutiram em toda produo de conhecimento posterior, seja ela
cientfica ou do prprio senso comum, e possuem particular importncia
para compreenso de algumas estruturas do pensamento que compuseram
a secularizao.
Bem sabemos que as sociedades ocidentais pr-modernas eram
religiosas, basicamente crists, e a f era assumida nos espaos
pblicos, bem como entremeava todo tipo de conhecimento. No havia,
portanto, uma linha dividindo o saber cientfico de outros tipos de
saberes a teologia e as cincias naturais, por exemplo,
encontravam-se no mesmo patamar. Com a proclamao da independncia do
imanente em relao ao transcendente, cada vez mais se buscou
fundamentar a veracidade de um conhecimento em bases estritamente
racionais, privilegiando sempre argumentos que no se escorassem
numa dimenso extramundana.
Em seu artigo O que significa secularismo, Taylor destaca a
relevncia das ideias iluministas na difuso de uma nova perspectiva
que no apenas privilegia o princpio da imanncia, como tambm busca
lanar o estigma da irracionalidade a toda e qualquer referncia ao
transcendente. Sua crtica consiste na difundida opinio de que o
iluminismo fora um passo absoluto para frente na histria do
pensamento - com toda carga positivista que a expresso possa
transparecer. Nesta compreenso reside o que ele chama de mito do
Esclarecimento:
Assim, h uma verso do que o Esclarecimento representa que o v
como nossa sada de um domnio em que a Revelao, ou a religio em
geral, contava como uma fonte de insight sobre os assuntos humanos,
para um domnio no qual estes so agora entendidos em termos
puramente deste mundo ou humanos. Evidentemente, que algumas
pessoas tenham feito essa passagem no o que est em disputa. O que
questionvel a ideia de que esse movimento envolva o ganho epistmico
incontestvel de termos deixado de lado consideraes de verdade e
relevncia duvidosas e nos concentrado em questes que podemos
resolver e que so obviamente relevantes.
Afirmar que a supresso da f pela razo nos trouxe um ganho
epistmico incontestvel parece ser o grande mito da modernidade.
Afinal, a grande maioria das pessoas - e isso pode ser independente
de serem religiosas ou no religiosas acredita, em linhas gerais,
que a humanidade progrediu a partir do momento que se submeteu a
uma razo no religiosamente informada. Em outras palavras, samos do
jugo de ignorncia anteriormente imposto pela revelao e nos rendemos
a justeza e legitimidade de uma razo autnoma e autossuficiente.
Assim, o maior legado do iluminismo se configura em termos de uma
simples razo, num sentido similar com aquele proposto por kant com
sua blosse Vernaunft. A propsito, a definio kantiana de Aufklrung
fora outro elemento muito bem absorvido pela posteridade:
Esclarecimento significa a sada do homem de sua minoridade, pela
qual ele prprio responsvel. A minoridade a incapacidade de se
servir de seu prprio entendimento sem a tutela de um outro. a si
prprio que se deve atribuir essa minoridade, uma vez que ela no
resulta da falta de entendimento, mas da falta de resoluo e de
coragem necessrias para utilizar seu entendimento sem a tutela de
outro. Sapere aude! Tenha a coragem de te servir de teu prprio
entendimento, tal , portanto, o lema do Esclarecimento.
O apreo pela autonomia do indivduo e pela autossuficincia do
entendimento humano, tal como expressas acima, integram assim o
novo paradigma que passa a orientar tanto as relaes sociais quanto
a produo de novos conhecimentos. No deve mais ser a religio a ditar
os preceitos morais para a vida em comunidade, uma vez que a prpria
natureza nos dotou de uma faculdade interna que nos capacita a
distinguir certo e errado, independente dos dogmas. O conhecimento
cientfico tambm deve caminhar separado daquele de origem religiosa,
pois uma a seara do pensamento racional e outra da revelao divina
ou para os incrdulos, da especulao e seus objetos de estudo devem
ser de uma vez por todas diferenciados. Um exemplo clssico de ciso,
proposto por pensadores iluministas e outros anteriores, distingue
um campo especfico para a filosofia natural e outro para a
teologia: uma responsvel pela investigao dos fenmenos da natureza e
a outra pelos assuntos de f, a primeira habilitada para falar das
coisas deste mundo enquanto a segunda deve se deter no discurso
sobre as coisas do outro mundo. Obviamente com o desenvolvimento
dos estudos sobre os fenmenos naturais estes abandonaram o domnio
da filosofia e passaram a integrar o que no sculo XIX passou a se
entender por cincia. Da mesma forma aqueles que inseriam neste tipo
de investigao j no recebiam o ttulo de filsofos da natureza, mas
passaram a ser conhecidos como cientistas.
Um ponto importante que a separao acima descrita entre saber
cientfico e assuntos de f nunca fora oficialmente estabelecida por
nenhum tipo de instituio, seja religiosa ou secular. Por parte da
igreja, parece bvio que no era do seu interesse perder sua
autoridade sobre quaisquer uns dos domnios do conhecimento, mas por
parte dos filsofos naturais, cientistas e instituies fundadas no
intuito de promover as pesquisas cientficas havia fatores mais
intrigantes que dificultaram uma ciso definitiva. Para alm dos
interesses polticos, uma questo estritamente terica se sobreps e no
poderia deveras ser ignorada: apesar da necessidade de independncia
da religio para obter certa liberdade numa investigao
filosfico-cientfica, a crena e a especulao ainda fariam parte deste
processo por um longo tempo. Os laos entre fsica e metafsica, por
exemplo, ainda permaneceram estreitos em muitas teorias racionais
sobre a natureza; por mais que seus idealizadores tentassem se
afastar do argumento dogmtico, fundar uma fsica puramente imanente
foi um desafio que atravessou geraes. Um conceito em especial,
completamente abstrato e de matriz transcendente, que permaneceu
como alvo das especulaes da filosofia e de teses cientficas no
podendo de modo algum ser simplesmente abandonado ou desconsiderado
fora a concepo de Deus.
A ideia de um deus que criador da natureza e fundamento da
realidade foi durante muito tempo essencial ao campo da filosofia
natural. Como este fora o primeiro ramo da filosofia a se emancipar
como uma cincia tal como compreendemos o termo hoje ela fora um
grande referencial para os pensadores iluministas de um
conhecimento construdo to somente pelas vias racionais. Admitir a
presena de um ente metafsico atrapalhou um pouco este projeto de
racionalizao do conhecimento, entretanto, por ironia, tambm no
seria considerado racional, dada a poca, exclu-lo por completo ou
mesmo negar-lhe um papel relevante no estudo das cincias da
natureza. Esse ser transcendente, que respaldou durante muito tempo
as constataes cientficas, manteve alguns dos elementos essenciais
do deus judaico-cristo, porm muitos de seus atributos foram
suprimidos ou modificados para se adequar ao contexto das teorias.
E elas no tardaram em progressivamente conferir-lhe uma funo cada
vez mais marginal e complementar.
Esse movimento de mutao da ideia de Deus, antes circunscrito a
uma parcela altamente intelectualizada da sociedade, se expandiu e,
conforme as teses cientficas ganhavam popularidade, uma maior
quantidade de pessoas via sua f ingnua ser confrontada no apenas
por uma religio diferente, mas por um discurso que se
autodenominava superior ao da religio. No toa, Charles Taylor
define seu conceito de secularidade como a a passagem de uma
sociedade em que a f em Deus inquestionvel e, de fato, no
problemtica, para uma na qual a f entendida como uma opo entre
outras e, em geral, a no mais fcil de ser abraada. Sem dvida
alguma, h um amplo espectro de possibilidades de estabelecer uma
conexo entre a secularizao e o iluminismo, porm, como impossvel
abranger todas elas de uma s vez, no prximo captulo iremos
investigar como as metamorfoses do conceito de Deus provocaram um
enfraquecimento de sua importncia na busca humana pelo
conhecimento, resultando numa perspectiva puramente naturalista no
campo das cincias. Para orientar o prximo passo deste estudo,
optou-se por seguir o fio condutor legado por Ernst Cassirer em A
filosofia do Iluminismo, obra audaciosa em que o autor visa
apresentar uma histria das ideias que constituram o cerne das
ambies e contradies do projeto iluminista. Com enfoque no
desenvolvimento da filosofia natural, buscar-se- encontrar em que
pontos a mesma pode ter contribudo para o surgimento das sociedades
seculares a partir do enfraquecimento do conceito de Deus.
III. Da filosofia natural ao naturalismo cientficoPara alm da
perspectiva de seus porta-vozes e protagonistas, o projeto
iluminista no assenta seus propsitos intelectuais mais vigorosos e
seu caracterstico dinamismo espiritual na rejeio da f, mas no novo
ideal de f que ele promove e na nova forma de religio em que ele
encarna. Segundo Cassirer, toda a hostilidade que se evidencia
frente s questes teolgico-metafsicas superficial, pois esses mesmos
problemas continuam a ser o impulso originrio das investigaes
filosficas. A luta que se trava j no gravita somente em torno dos
dogmas e de sua interpretao, mas em torno do modo de certeza da
religio, no apenas em torno do contedo da f, mas das modalidades e
da direo da f como tal. A filosofia sempre careceu de uma certeza
absoluta tal como encontrada na f religiosa, pois de alguma maneira
estava condicionada a circularidade e aos infindveis devaneios.
Esta nova gama de pensadores do sculo XVIII depositavam mais do que
nunca suas esperanas no progresso intelectual, de tal maneira que
mesmo se opondo ao dogmatismo religioso, um progresso como tal
ainda dependeria de um procedimento dogmtico. Apesar de em alguns
aspectos assumirem posies completamente opostas, estes filsofos
preservavam uma f comum no potencial da razo humana e fazem dela
seu alicerce mais valioso na construo do edifcio do saber
cientfico.
No que a preocupao com a formulao de uma religio universal no
estivesse nos planos de alguns crculos filosficos, mas
definitivamente o compromisso com o progresso intelectual se
sobrepunha de maneira mais imponente ao esprito iluminista; e a
razo era chave para esse progresso. Em meio diversidade e a
multiplicidade de saberes, a razo interpretada como uma fora
imutvel que possibilita a unificao; todo conhecimento est de alguma
forma ligado e condicionado ao poder criador da razo. No se pode
desenvolver a cincia tomando por base a boa vontade de uma revelao
divina, da mesma maneira que no se pode mais garantir o acesso a
verdades eternas, antes h de se depositar toda a f na razo e nos
atermos ao que est ao seu alcance.
O descrdito a todo saber que opera no nvel do transcendente no
se deu de maneira repentina, mas remonta ao medievalismo, passa
pela renascena e desgua no iluminismo - de tal maneira, que este
ltimo mais organiza e resignifica o que j havia sido discutido do
que propriamente cria algo novo. Muitos dos problemas filosficos do
sculo XVIII no foram formulados por ele, mas foram herdados do
sculo XVII, que por sua vez permaneciam vinculados ao pensamento
teolgico e as questes tipicamente metafsicas, como as causas e os
por qus. Apesar de as razes serem inegveis, o centro de gravidade
desloca-se gradualmente da figura de Deus e das explicaes
suprassensveis para o domnio da razo e das explicaes encontradas no
plano emprico. Essa mudana se torna clara no campo das investigaes
da natureza. Se no pensamento medieval o mundo encarado na tica de
uma ordem visvel, imutvel, um cosmo fechado cujos traos podem ser
descritos tal como o de qualquer outra criatura, no pensamento
renascentista esse mesmo mundo pouco a pouco ampliado at
ultrapassar o status de reles criatura e participar do ser divino
originrio. A natureza no apenas a criao, mas contm em si o criador
ao ponto de numa investigao de seus elementos individuais nos
depararmos com vestgios da divindade. A investigao, no entanto, no
depende da assistncia do divino, pois a prpria razo capaz de
identificar a lei natural presente em cada objeto, que por sua vez
contem em si uma centelha da divindade. Desta forma, o reino da
natureza no mais visto como incompleto e carente de uma assistncia
sobrenatural para ser desvelado, mas constitui um ser individual e
necessrio cujas leis so acessveis a razo e esto dispostas aos
espritos atentos.
Como j dito, o esprito iluminista alcanou seu auge no sculo
XVIII, mas muitos pensadores anteriores foram determinantes para
todo desenvolvimento ulterior. Figurando entre estes homens que
estavam a frente de seu tempo, encontra-se o fsico, matemtico,
astrnomo e filsofo Galileu Galilei. Pensador de destaque do sculo
XVI e devoto fiel do catolicismo, ele buscou a duras penas
conciliar suas descobertas no campo da cincia da natureza com sua
f, instituindo uma distino entre dois tipos de verdade: as
reveladas e as puramente fsicas. A verdade revelada resguardava
grande importncia, mas a verdade fsica deveria ser tomada como
independente; a primeira encontra-se nas escrituras sagradas,
enquanto a segunda disposta no livro da natureza, escrita em
caracteres matemticos. Obviamente a Igreja Catlica, que a poca
levava a cabo a inquisio, no viu com bons olhos seu empreendimento,
o qual, em ltima instncia, representava uma descentralizao da
autoridade eclesistica. No muito tempo depois, Descartes tambm fora
perseguido por defender uma matematizao da natureza. Sua pretenso
de conhecer os mecanismos que regem o curso do universo condiz com
o esprito iluminista, sendo uma primeva investida contra o carter
misterioso que a dogmtica religiosa impunha aos processos naturais,
entretanto, a histria do pensamento terminou por instituir que o
passo dado pela fsica cartesiana fora mais significativo no mbito
filosfico do que propriamente no cientfico. A estrutura de
pensamento sistemtica e a fixao em desvelar as verdades eternas
teriam atrapalhado Descartes em seu projeto de edificao do
conhecimento da natureza e, apesar de suas teorias terem alcanado
certa popularidade nos crculos intelectuais franceses, com Newton
que a fsica vive sua verdadeira revoluo na modernidade.
A fsica newtoniana vista como um divisor de guas na histria do
pensamento e torna-se o modelo para todo saber cientfico
subsequente. Em contraposio ao mtodo cartesiano que partia dos
axiomas e princpios para chegar aos fatos e aos fenmenos, o mtodo
newtoniano partia dos dados empricos para chegar aos conceitos. Na
teoria da gravitao finalmente ocorreu a concretizao dos ideais
renascentistas: fora formulada uma lei do cosmo - uma lei que as
coisas no recebem do exterior mas que decorre da prpria essncia
delas, que est desde a origem implantada nelas. O pensador ingls
apresentou a prova final de que os conceitos rigorosos do
conhecimento matemtico eram aplicveis ao universo tal como
intentara Galileu. Fora um largo passo para o estabelecimento da
supremacia da razo no conhecimento da natureza; entretanto, ainda
reservado um lugar para os argumentos especulativos da
metafsica.
concedida uma funo importante a Deus nos Princpios Matemticos de
Filosofia: Ele o Criador e Senhor do universo, o qual determinou de
antemo as leis naturais que so observadas pelos homens nos
fenmenos. Apesar de tamanha relevncia, tais ideias so somente
delineadas no esclio geral ao final do livro, totalmente apartadas
das demonstraes matemticas que ocupam a maior parte dessa obra. Num
dado momento, Newton deixa claro que sua teoria somente funciona a
partir destes pilares metafsicos, mas tal separao tambm denota o
fato de que, para compreenso dos fenmenos fsicos, bastam a
observao, a experimentao, a medida e o clculo.
Descobrir as leis naturais no requer investigar os atributos de
Deus e muito menos encontrar uma prova definitiva de sua existncia.
Essa postura tipicamente desta encontrada tambm em Voltaire,
considerado maior divulgador do newtonianismo no territrio francs.
Segundo ele, a filosofia nos mostra bem que h um Deus. Mas ela
impotente para nos ensinar o que ele , o que faz, como e por que
faz. Parece que precisaramos ser ele mesmo pra saber isso.O que
estava subentendido na fsica de Newton era que o conceito de Deus
no era um elemento central, mas apenas um pressuposto essencial.
Esta uma caracterstica que passa a ser cada vez mais comum entre
postulados filosficos com pretenses cientficas. Recorrer a Deus
para provar um princpio, seja terico seja em relao aos fenmenos
naturais, tornara-se uma postura altamente impopular entre os
intelectuais, pois significava diminuir a capacidade do intelecto
humano. As descobertas de Newton ratificam a premissa de
desmistificao da natureza, tendo em vista que o conhecimento de
seus princpios acessvel ao entendimento, e reforam o sentimento de
rejeio a qualquer apelo ao transcendente ou algum tipo de mediao
entre natureza e entendimento. Seria enganoso tambm afirmar que a
grande revoluo cientfica desencadeada por Newton entroniza de uma
vez por todas a razo e o esprito puramente matemtico. Estes tero de
necessariamente dividir o seu reinado com a experimentao. Apenas a
razo no seria suficiente para decifrar como o universo se comporta:
para construir um conhecimento da natureza necessrio o dado
emprico. Da mesma maneira que o divino no se encontra antes ou fora
da natureza, mas imerso e misturado a ela, a razo no anterior ao
fato, como propunha Descartes e os sistemas filosficos
racionalistas em geral do sc. XVII. Ela encontra-se na estrutura
dos prprios fenmenos, de modo que devemos partir dos dados empricos
para chegar aos princpios universais, e no o inverso. O prprio
conceito de princpio renuncia assim, bem entendido, ao carter
absoluto a que tinha pretenses nos grandes sistemas metafsicos do
sculo XVII. Uma vez admitida a necessidade da experincia, novos
dados podero ser colhidos, o que poder resultar numa alterao dos
princpios outrora estabelecidos, havendo neles, portanto, no mximo
uma validade relativa, referente ao estgio da cincia naquele
momento e que, com o progresso intelectual, incorrer sempre na
possibilidade de uma reformulao.
Os princpios que devemos investigar por toda parte, e sem os
quais ser impossvel assegurar um conhecimento em qualquer domnio,
no so tais ou tais pontos de partida arbitrariamente escolhidos
pelo pensamento e impostos experincia concreta para remodel-la. So
condies gerais a que s podemos ser conduzidos por uma anlise
completa do dado.
Enquanto Descartes racionalizava princpios e partia destes para
compreender os fenmenos, para no correr o risco de cair na iluso
advinda das percepes sensoriais, Newton abandona qualquer tipo de
saber que anteceda a experincia e defende que desta mesma que devem
ser extrados os princpios. O enfoque deve estar no fenmeno, para
que por meio deste se chegue ao princpio; simultaneamente
desenvolve-se o pressuposto de que h uma reciprocidade entre estes
domnios, de modo que os dados podem ser racionalmente ordenados e
por fim unificados pela razo, uma vez que esta constitui a prpria
estrutura dos processos naturais. Este pressuposto encontra-se, por
exemplo, na filosofia de DAlambert, cujo desenvolvimento segue
rigorosamente o caminho traado por Newton.Filsofo, matemtico e
fsico do perodo iluminista, DAlembert constava na lista de
renomados pensadores que no apenas aderiram abertamente mtodo
analtico newtoniano, como intentaram aplic-lo a todo campo das
cincias ao longo do sculo XVIII, inclusive a metafsica. No que ele
propusesse estabelecer uma frmula metafsica do cosmo que
desvendasse o em si das coisas: se recusa veementemente a
semelhante empreendimento, antes procura evidenciar um sistema
constitudo to somente pelos fenmenos. Os sistemas ou, melhor, os
sonhos dos filsofos sobre a maioria das questes metafsicas no
merecem ocupar nenhum lugar numa obra unicamente destinada a
consolidar os conhecimentos reais adquiridos pelo esprito humano,
dir DAlembert, para quem a metafsica uma base inicial que aps
investigaes naturais e a interpretao dos dados empricos, pode ser
alterada e adequada a novas descobertas. Para construo de uma
cincia natural se faz presente a necessidade de uma imagem
metafsica da mesma, o que significa para DAlembert que a metafsica
e a fsica natural devem caminhar lado a lado. Neste momento do
iluminismo ainda h espao para uma teologia natural segregada da
teologia tradicional ou vulgar: enquanto nesta so tratados
problemas relacionados f e aos costumes, naquela so investigados os
processos naturais - Deus figura como a causa do mundo, porm aps
sua criao no exerceria mais nenhum tipo de interveno nele. Neste
sentido, DAlembert se aproxima da metfora dos dois livros
apresentada por Galileu, onde o livro da natureza no se confunde
com uma verdade revelada que deva ser obedecida, antes foi deixado
a cargo dos homens para sua anlise e interpretao.
Uma das premissas de DAlembert, compartilhada entre muitos
pensadores do sculo XVIII, a de que a cincia no precisa se deter no
estudo das causas, mas analisar rigorosamente os efeitos, pois
estes sim so observveis e experienciveis. Na fsica, por exemplo, a
anlise do movimento deve ser feita a partir de seus efeitos e no
requer uma compreenso apurada de sua origem, pois uma vez que ele
iniciado ele se torna independente e autnomo. Neste caso, para
racionalizao dos efeitos observados na experincia bastaria o uso de
critrios matemticos, os quais so suficientes para interpretar o
domnio fenomenal. O problema que para provar que o mundo totalmente
acessvel por meio de critrios lgicos e matemticos DAlembert precisa
recorrer ao pressuposto de que o sistema universal dos fenmenos
contem em si unidade e uniformidade. Mas como fundamentar esse
pressuposto sem torn-lo uma crena? O racionalismo clssico, na
pessoa de seus pensadores mais eminentes, Descartes, Spinoza e
Leibniz, j se deparara com esse problema. Ele acreditava resolv-lo
reduzindo a questo da unidade da natureza da unidade de sua origem
divina. A concluso Leibziana, por exemplo, de que no h provas
conclusivas da harmonia e constncia da natureza, a no ser o recurso
da unidade do princpio supremo, que parte do fato de que as leis da
realidade no podem contradizer as leis puramente ideais da lgica e
da matemtica. Dir Leibniz: Tudo se rege pela razo e, se assim no
fosse no existiria cincia nem regra, o que estaria em contradio com
a natureza do princpio soberano. Essa soluo, entretanto, envolve
uma petio de princpio, pois no apenas a uniformidade e unidade da
natureza so justificadas pelos correlatos atributos de Deus, mas
construmos o conceito de um deus uno, desvinculado da teologia, a
partir da perfeita harmonia entre os elementos que observamos na
natureza.
Tal como vimos no captulo anterior, o ideal iluminista de ciso
entre a fsica e a teologia minado a medida que os pensadores se do
conta da impossibilidade de eliminar os elementos metafsicos na
justificao da estrutura da natureza. Visando extirpar a necessidade
do transcendente, aos poucos ser descartada a preocupao com
desvelar um fundamento racional para natureza, radicalizando a
mxima de que basta aos interesses da cincia investigar seus
fenmenos. David Hume dir que a uniformidade da natureza uma crena
no religiosa, no sentido de que ao invs de propor pressupostos
metafsicos ela tem fundamentos psicolgicos.
(...) a teoria humiana do belief, da crena, a continuao e a
soluo irnica de todo um processo intelectual tendente a conferir
prpria cincia experimental um fundamento religioso. A soluo
consiste na inverso dos papis entre a cincia e a religio. No a
religio que permite, graas a sua verdade superior, absoluta, dar um
slido ponto de apoio cincia; pelo contrrio, a relatividade do
conhecimento cientfico que arrasta por sua vez a religio para o seu
terreno movedio.
Neste sentido, vemos mais um passo para a secularizao ocidental:
como a cincia no pode ser absoluta ela relativiza a religio, e por
fim ambas carecem de justificao racional. Para o iluminismo o foco
deve permanecer de uma vez por todas no princpio de imanncia. O
homem parte da natureza e como tal s lhe permitido chegar ao
conhecimento das verdades naturais. Tudo que remeta a uma realidade
suprassensvel incognoscvel para ns e, portanto, inimigo do
esclarecimento. Devemos nos contentar com os resultados obtidos por
meio da racionalizao dos dados sensveis, pois somente assim nos
libertaremos da ignorncia e das supersties.
Todos os processos naturais, incluindo aqueles fatos que temos o
costume de designar como fatos espirituais, toda ordem fsica em seu
conjunto, assim como a ordem moral das coisas em sua totalidade,
reduzem-se inteiramente a matria e movimento e confundem-se com
eles.
Entretanto, impossibilidade do homem de apreender de uma vez a
natureza em toda sua complexidade evidenciava que uma cincia da
mesma precisava ser feita por partes. Para que nossa razo finita
possa compreender o mundo precisa fazer uma seleo, um recorte, para
s ento chegar ao todo. Como no ser arbitrrio? um dilema ainda
enfrentado pelas cincias contemporneas. No iluminismo, num dado
momento chegou-se a uma espcie de consenso de que o conhecimento da
natureza deveria partir do conhecimento de sua parte que nos mais
prxima: o prprio homem. Cassirer remonta que tanto a matemtica
quanto a fsica perdem sua centralidade e cedem espao a biologia e a
fisiologia geral; La Mettrie, Holbach e Diderot so alguns dos
partidrios desta nova postura filosfica definida como materialismo
dogmtico, caracterizado pelo total desinteresse pela essncia
absoluta da matria (Deus ou a alma) e pela exaltao do princpio do
movimento. Postulado o princpio mnimo de movimento, os corpos
animados tero tudo do que necessitam para mover-se, sentir, pensar,
arrepender-se e comportar-se, numa palavra, no fsico e no moral que
dele depende, afirma La Mettrie.
Uma vez que os olhos dos filsofos naturais se voltam para o ser
humano, questes do campo da tica passam a fazer parte da investigao
da natureza e requerer algum tipo de experimentao. Numa perspectiva
orgnica do movimento, por exemplo, no faria sentido distinguir
fenmenos corporais de fenmenos espirituais, uma vez ser impossvel
analisa-los separadamente e no haver qualquer prova emprica da
necessidade de semelhante dicotomia. No Systeme de la nature de
Holbach observamos dentre as implicaes morais uma espcie de
fatalismo: no reino da natureza no h juzos de valores como bem e
mal, justo ou injusto, pois tudo est em ordem na natureza, cujas
partes jamais podem afastar-se das regras certas e necessrias que
decorrem da essncia que receberam. Essa supresso da ideia de
liberdade faz parte do projeto de total de Holbach, o qual coloca
como condio para o progresso cientfico a aniquilao do
espiritualismo teolgico.
necessrio extirpar de uma vez por todas, as ideias de Deus, de
liberdade, de imortalidade, a fim de que parem as intervenes
incessantes do outro mundo que essas ideias simulam construir neste
nosso mundo, cuja ordem racional o espiritualismo ameaa subverter.
(...) O mundo jamais ser feliz enquanto no se decidir ser um ateu.
Junto com a crena de Deus desaparecero tambm todas as querelas
teolgicas e as guerras religiosas.
O radicalismo das premissas e das concluses oferecidas pelo
sistema de Holbach no foram bem recebidas pela maioria dos
pensadores que lhe eram contemporneos. Voltaire considera
contraditrio o determinismo absoluto de Holbach, que tendo erguido
como sua bandeira a luta contra o dogmatismo e a intolerncia, no
tardou em elevar sua doutrina ao status de dogma e em defend-la com
um zelo fantico. Alm da rejeio por parte de comunidades cientficas
e religiosas, Holbach tambm tem de enfrentar a revolta dos artistas
de sua poca, uma vez que na sua teoria, juntamente com os elementos
religiosos, tambm eram eliminados os elementos estticos do reino da
natureza.
Como podemos ver at aqui, o materialismo dogmtico convergia com
o fenomenismo no que tange a importncia da experimentao, mas
divergia com relao a diversos outros aspectos. Com Diderot vir um
materialismo mais moderado, o que se deve a supresso do fator
dogmtico, para dar lugar a uma compreenso mais dinmica da natureza.
Temos de permanecer abertos a toda novidade, no deixar nenhum
modelo, nenhuma prescrio, retraia o horizonte da experincia. Sua
perspectiva refletia em sua prtica filosfica: mudava de posio
sempre que encontrava novos argumentos e, diferente do arqutipo
iluminista, no fez o menor esforo para converter seu pensamento em
frmulas fixas e definidas. Para ele seria intil o esforo de
encerrar a diversidade da natureza nos limites do nosso
entendimento. Tudo muda, tudo passa, apenas o todo permanece. O
mundo comea e acaba sem cessar; ele est a cada instante em seu
comeo e em seu fim.
O rompimento com a viso esttica de mundo pode ser interpretado
como outro prenncio da secularizao mediante a relativizao dos
conhecimentos, tais como anunciara Hume. De fato, a exigncia da
cincia de uma constante reviso requer um modelo malevel, adaptvel,
totalmente passvel de modificao. J no se procuram fundamentos que
amanh no podero ser revogados, porque a estabilidade no mais vista
como uma virtude. O nico dogma aceitvel o progresso. Se aceitarmos
como razovel que esta uma premissa que permanece viva no pensamento
cientfico atual, tambm no ser difcil admitir que, dentre todos os
conceitos metafsico-religiosos que perderam seu prestgio nos campo
das cincias, um dos mais prejudicados foi Deus. Sua necessidade de
imutabilidade atributo que lhe era to caro e peculiar e outrora
ambicionado como fundamento de diversos sistemas naturais vista
agora como inimiga do progresso intelectual e cientfico.
No entanto, os cientistas de nosso tempo, diferentemente dos
filsofos naturais, no se ocupam mais em combater essa ou aquela
ideia de Deus, pois ela parece finalmente estar restrita ao seu
devido lugar: a teologia. Esta, por sua vez, fora deixada to
somente aos cuidados da religio, que totalmente destituda da funo
de despenseira das verdades eternas constitui apenas mais uma das
formas de acesso ao conhecimento, estando longe de ser a mais
confivel. Alm disso, sob o novo paradigma da dinamicidade
cientfica, a teologia passa a configurar gradativamente o tipo de
conhecimento considerado retrgrado, uma vez que seu contedo
independe de qualquer experimentao e almeja a imutabilidade de uma
verdade acabada. Essa exigncia de dinamicidade, no entanto, no quer
dizer que no permanea certo dogmatismo no campo das cincias. A cada
nova descoberta, a cada nova concluso obtida via provas cientficas,
permanece a sensao de que estamos mais prximos de uma verdade
absoluta, a qual no provm de nenhuma espcie de epifania, mas
natural: encontra-se nas coisas mesmas. O mtodo cientfico seria o
nico habilitado a desvelar os mistrios da natureza, inclusive no
que diz respeito ao ser humano, e, se por um obstculo epistmico no
pode se autodenominar como a verdade, no abandona a convico de ser
o mais prximo do que viria a ser um discurso verdadeiro. Essa
crena, apesar de no declarada, pode ser considerada implcita ao que
Taylor chama de mito do esclarecimento, sendo intrnseca ao
dogmatismo cientfico e tendo lugar privilegiado nas sociedades
seculares.
IV. A Esfera Pblica e o Estado Secular
Conforme destrinchado nos captulos anteriores, as novas formas
de pensamento discutidas nos crculos intelectuais europeus dos
sculos XVII e XVIII influenciaram fortemente os rumos tomados pela
secularizao ocidental. Um dos resultados polticos desse processo
foi o estabelecimento do liberalismo como modelo governamental
padro em sociedades democrticas. Semelhantemente ao modo como o
campo das cincias se emancipou da ingerncia religiosa, pode se
afirmar que, principalmente aps a queda dos regimes monrquicos e da
instaurao das primeiras democracias, o Estado foi gradativamente
rompendo os laos que mantinha com instituies eclesisticas. A
concepo de secularidade que preconiza a separao entre Estado e
Igreja vai ganhando forma no imaginrio social moderno e a poltica
liberal parece ser a expresso desse anseio por uma sociedade que se
autodetermina.
Neste contexto, o conceito de liberdade surge primeiramente em
contraposio ao regimento moral eclesistico e, depois, se opondo as
mais diversas convenes impostas pela tradio. No entanto, uma
sociedade liberal no se contenta meramente com uma concepo de
liberdade negativa - que to somente garantiria o direito de fazer o
que se quer sem a interferncia de outrem -, antes requisita uma
conjuntura onde se faa possvel o desenvolvimento pleno do indivduo
enquanto cidado. Charles Taylor enfatiza como a liberdade na tradio
liberal ocidental tem-se baseado em parte no desenvolvimento de
formas sociais em que a sociedade como um todo pode funcionar fora
do mbito do Estado . Essa concepo de liberdade exige uma autonomia
dos indivduos e de suas associaes em relao a prpria superintendncia
estatal, de modo que uma sociedade liberal tem por componente
essencial uma outra sociedade, que distinta dela, mas intrnseca ao
seu pleno funcionamento: a sociedade civil.
A noo de sociedade civil compreende a gama de associaes livres
que no contam com patrocnio oficial e que muitas vezes se dedica a
fins que de modo geral consideramos no polticos. No se pode chamar
de livre nenhuma sociedade em que essas associaes voluntrias no
possam funcionar, e a pulsao da liberdade ser mais fraca onde estas
no so espontaneamente formadas.
Mesmo no ostentando, necessariamente, fins polticos, podemos
dizer que tais associaes exercem, em maior ou menor grau, alguma
influencia sobre as atividades polticas, uma vez que so
inventariados modos de vida e vises de mundo particulares que cedo
ou tarde repercutiro nas relaes sociais, podendo vir a gerar
conflitos, inclusive, de ordem poltica. Para garantir um ambiente
propcio discusso sem a interveno do poder estatal, consolidou-se
como uma das principais formas da sociedade civil contempornea a
esfera pblica.
Adotemos como definio geral tratar-se de um espao comum em que
os cidados discutem sobre questes de interesse comum visando chegar
a uma soluo comum. Para tal empreendimento basilar a compreenso de
que ela se d num lugar no local, num espao comum metatpico. A
esfera pblica considerada metatpica por no possuir um lugar tpico
aonde se desenrola, antes abarca um emaranhado de meios, os quais
podem ser diretos ou indiretos, locais ou virtuais, impressos ou
eletrnicos, todos inter-relacionados numa mesma discusso e
confluindo para a formao de uma ideia que venha a ser compartilhada
pelo maior nmero possvel de cidados: uma opinio pblica.
Apesar de a esfera pblica desempenhar um papel crucial na
autojustificao das sociedades liberais como sendo livres e
autogovernadas, por estarmos hoje to familiarizados com ela
tendemos a deixar passar despercebidas algumas das peculiaridades
que a caracterizam como um arranjo inovador e a demarcam como uma
estrutura prpria das civilizaes modernas. Nesse sentido, Taylor
salienta como
a prpria ideia da possibilidade de existncia de modalidades de
ao extrapoltica ou de manuteno de padres por toda a sociedade
estranha a um grande nmero de civilizaes histricas; por exemplo, a
sociedade chinesa tradicional ou para tomar um exemplo bastante
afastado dela a antiga polis. E se tomarmos outras civilizaes, como
a indiana ou a europeia medieval, em que a sociedade tambm tem
autoridades extrapolticas, a marcante diferena destas com relao ao
Ocidente moderno est no fato de que as formas da sociedade civil
so, neste, puramente seculares.
Neste sentido podemos afirmar que dois componentes essenciais da
esfera pblica moderna so seu carter extrapoltico e sua secularidade
radical. Se por um lado ela precisa estar desvencilhada da esfera
poltica, por outro ela tambm precisa ser neutra para garantir uma
discusso justa e equilibrada entre as diferentes opinies e crenas
que coexistem numa mesma democracia. Examinemos um pouco mais a
fundo essas duas caractersticas.
Essa ideia de um lcus extrapoltico que funciona dentro das
sociedades polticas e imune ao do Estado, remonta novamente aos
crculos intelectuais iluministas formados ao final do sculo de
XVII. A expresso Repblica das letras, por exemplo, tornara-se usual
entre os membros desta comunidade internacional de sbios e
representa bem essa imagem de uma associao que no constituda por
uma estrutura poltica, sendo inclusive indiferente aos limites
territoriais e polticos.
(...) ao projetar uma esfera pblica, nossos precursores
oitocentistas estavam se situando numa associao, esse espao comum
de discusso, que nada devia a estruturas polticas, mas era vista
como formando uma sociedade fora do Estado. Na verdade, essa
sociedade era mais ampla que qualquer Estado; ela se estendia para
alguns propsitos a toda a Europa civilizada.
Em seguida, Charles Taylor nos lembra de que ser uma sociedade
extrapoltica de cunho internacional no consiste em si numa
novidade: a Cosmpolis Estoica e a prpria Igreja Crist so exemplos
que precedem em muito a esfera pblica. Por isso, o grande
diferencial desta est em sua secularidade radical, pois, diferente
dos exemplos supracitados, nela a ao comum no requer nenhum
fundamento de ordem metafsica para ser executada. Conforme
apresentado na introduo, a noo de secular aqui no se contrape
apenas a religio, mas a tudo que opera no mbito do transcendente,
de modo que aquilo que torna a esfera pblica radicalmente secular
que a ao comum nela se d sem requerer nenhum tipo de arcabouo que
precise ser estabelecido em alguma dimenso que transcenda a prpria
ao, tal como um fundamento divino ou uma lei herdada de tempos
imemoriais e transmitida pela tradio; na esfera pblica o agir comum
surge da prpria ao comum e encontra nela mesma seu fundamento.
A distino crucial na base do conceito de secularidade pode assim
ser vinculada com a seguinte interrogao: o que constitui a
associao? Ou, dito de outra maneira, o que faz desse grupo de
pessoas em sua continuidade no tempo um agente comum? Onde se trata
de algo que transcende o domnio das aes comuns que esse agir
envolve, a associao no-secular. Onde o fator constitutivo no seno a
ao comum e se os atos fundadores j ocorreram ou esto ocorrendo
agora, no importa , temos secularidade.
Enquanto um espao comum metatpico que promove um agir comum
extrapoltico assentado to somente em bases seculares, a Repblica
das letras teria sido o primeiro arranjo ocidental a reproduzir uma
esfera pblica. Neste sentido, a prpria noo de secularidade que
pergunta pelo fundamento da ao comum nasce com a modernidade, pois
antes dela era inconcebvel que um agir comum metatpico e duradouro
pudesse ser promovido numa perspectiva puramente imanente. De
certo, sempre houve nas sociedades humanas algum tipo de mobilizao
tpica ou protestos momentneos que no estivessem necessariamente
ligados a ideais transcendentes, mas estes eram eventos isolados
que ofereciam no mximo um desdobramento especfico e local. Estes
tipos de manifestaes eram encarados como perturbaes que deveriam
ser rapidamente superados em nome da paz social. Porm,
(...) o advento da esfera pblica envolve uma ruptura no antigo
ideal de uma ordem social no dividida pelo conflito e pela
diferena. Ele significa, pelo contrrio, que o debate irrompe e
continua, envolvendo em princpio a todos, e sendo tomado como
perfeitamente legtimo. A velha unidade partiu para sempre. Mas h de
se pr em seu lugar uma nova unidade. Porque a controvrsia
sempiterna no pretende ser um exerccio de poder, uma quase guerra
civil travada por meios dialticos. Suas conseqncias potencialmente
divisivas e destrutivas so compensadas pelo fato de ser ela um
debate fora do poder, um debate racional que se empenha, sem parti
pris, em definir o bem comum.
A constante lide com os desacordos e controvrsias dos cidados no
significa que uma sociedade liberal deva abandonar sua busca pelo
bem comum. Na verdade, esta se torna uma das principais funes da
esfera pblica moderna: diferente do arranjo oitocentista que
envolvia apenas um grupo selecionado de pensadores, nela todos se
encontram potencialmente engajados numa discusso que visa chegar a
uma opinio comum acerca das questes mais relevantes no que se
refere ao bem-estar social. Essa opinio comum no pode resultar
simplesmente da soma das opinies da populao; devido a seu lcus
extrapoltico, tambm se espera que o esprito partidrio seja deixado
de lado. O que ento garante a unidade dessa ideia comum? Como vimos
no trecho acima citado, requer-se um debate pblico racional de onde
resulte numa opinio esclarecida.
essa racionalidade que orienta as discusses na esfera pblica e
que a torna consciente de seu papel de sobrevigilncia da esfera
poltica. Se do debate pblico de fato origina-se uma viso reflexiva,
um governo que se diz democrtico est moralmente obrigado a
segui-la, uma vez que sua legitimidade advm do princpio poltico de
que o povo soberano. Assim, percebemos com mais clareza que aquele
status extrapoltico da esfera pblica no se pauta pela falta de
poder, mas por essa ideia de que o poder poltico requer uma
superviso externa a ele. E se desde muito antes o Estado j estava
submetido a autoridades de cunho metafsico (uma vontade divina ou
uma lei natural), agora um Estado secular deve prestar contas,
primordialmente, ao prprio povo.
Eis uma das caractersticas mais marcantes do Estado
secularizado: seu compromisso primeiro passa a ser para com o seu
povo e no para com Deus, uma religio, uma ideologia ou qualquer
tipo de viso de mundo particular. A nova tarefa do Estado gerir a
diversidade de crenas e opinies e, no caso das sociedades
contemporneas, a diversidade de culturas que passam a ocupar um
mesmo territrio nacional. Nesta mudana de paradigma dois equvocos
so comumente cometidos: (A) entender a secularidade do Estado como
avessa ao exerccio religioso e (B) tom-la como uma ideologia prpria
de regimes seculares. Naturalmente isto no ocorre sem motivos, mas
encontra explicaes na prpria histria do processo de secularizao
ocidental.
Por amostragem, tomemos os casos da Frana e dos Estados Unidos.
No artigo O que significa secularismo?, Taylor analisa como a
histria poltica dessas duas naes apresenta diferentes contextos
inaugurais de secularidade, porm, em ambos ela surge com a misso de
remodelar a relao do Estado com a religio. Na revoluo francesa,
vemos como a luta pela deposio da monarquia e o estabelecimento da
repblica teve como fortssimo oponente a Igreja catlica. Seus
poderes polticos eram vistos como inimigos da liberdade, o que
determinou que a laict apregoada pelos revoltosos carregasse um
profundo sentimento antirreligioso e uma prerrogativa de que o
Estado controlasse e gerenciasse a religio, tendo em vista impedir
uma situao inversa. Em contrapartida, a nao norte-americana nasceu
sobre a gide da liberdade religiosa e da separao de instituies
polticas daquelas de natureza religiosa. No entanto, a liberdade
religiosa aqui abrangia apenas as diversas seitas variantes do
protestantismo e a tal separao institucional no foi empecilho para
que o cristianismo gozasse de certa primazia at o final do sculo
XIX. Somente aps 1870, ganha fora na vida pblica americana a
idealizao de um Estado no apenas aberto s demais religiosidades,
como tambm para a irreligio, sendo, portanto, secular num sentido
de no estar vinculado a nenhuma doutrina religiosa.
Nestes dois pases, no obstante, potncias de grande influncia
internacional, vemos que apesar dos diferentes percursos histricos
resguardam em comum o fato de seus Estados secularizados terem
insurgido do conflito entre poder poltico e crena religiosa, bem
como do subsequente afastamento destas duas instncias. Ser ento uma
condio para a secularidade de um governo que este corte
radicalmente suas relaes com doutrinas religiosas? Se as coisas
assim forem, faria sentido classificar tais Estados como
secularistas, no sentido de professarem uma ideologia que exclui
perspectivas religiosas da esfera poltica? Para Charles Taylor, nem
uma coisa nem outra. Antes de fazer tais perguntas importante
compreender que para ele parece no haver uma distino entre
secularidade e secularismo, mas sim uma interpretao equivocada do
que vem a ser uma poltica secularista: ns pensamos que o
secularismo (ou lacit) tem a ver com a relao entre o Estado e a
religio, quando na realidade tem a ver com a resposta (correta) do
Estado democrtico diversidade.No importa se chamamos de secular,
secularizado ou secularista: o cerne da questo est na necessidade
de que o Estado de uma sociedade democrtica lide de maneira neutra
para com as diversas posies bsicas - religiosas e no religiosas -
que surgem em seu mago, garantindo que todas tenham a possibilidade
de falarem e serem ouvidas na esfera pblica. Esta seria a concepo
bsica de um Estado que se entende como secularista. Da mesma forma
que ele no pode estar comprometido oficialmente com nenhuma
confisso religiosa, deve tambm manter certa distncia de qualquer
tipo de ideologia que pregue a no religio, pois, caso contrrio,
jamais poderia atuar como mediador entre as distintas posies.
Se por um lado h um consenso de que a secularizao ocidental se
intensificou com os conflitos religiosos, por outro parece ser
ilgico e injustificvel defender que a poltica secularista atual
esteja fundada na separao entre instituies polticas e instituies
religiosas ou entre Estado e Igreja. Naturalmente isto pode ocorrer
em alguma medida, mas defini-lo como critrio central ignorar a
complexidade imposta pelo fato do pluralismo cultural e minimizar a
amplitude da neutralidade que se espera de um regime secular.
Infelizmente justamente este tipo de atitude que mais comumente
vemos acontecer: a cada embate pblico envolvendo assuntos
religiosos que surge, ouvimos frmulas imperativas do tipo o Estado
laico - no no sentido de que ele est aberto para a discusso de
ideias, mas de que a religio algo privado, devendo ser tratada com
indiferena pelas autoridades estatais e removidas todas as
referencias a ela nos espaos pblicos. Segundo Taylor, tratam-se de
mantras empregados como bloqueadores de argumento, uma espcie de
resposta final decisiva que anula todas as objees. O resultado uma
concepo distorcida do secularismo que nada mais faz seno promover
uma fetichizao do fenmeno religioso em detrimento do vasto nmero de
vises abrangentes no religiosas que tambm habitam a esfera
pblica.
Como j mencionado, a finalidade do Estado democrtico secular
deve ser promover o bem comum; uma tarefa relativamente simples
numa comunidade homognea, mas que tem se tornado um desafio cada
vez mais complexo em nossas sociedades multiculturais. Um caminho
para tal empreendimento pode estar no estabelecimento de metas
comuns que possam ser assumidas por todos os cidados independente
de suas opinies, crenas ou modos de vida particulares, e onde cada
um se veja como provedor e beneficirio. Taylor destaca um conjunto
de trs metas baseadas no lema da revoluo francesa: liberdade,
igualdade e fraternidade. Adaptando para o nosso contexto poderamos
entend-las como:
(1) Ningum deve ser forado no domnio da religio, ou da crena
bsica. Isto o que usualmente definido como liberdade religiosa,
incluindo, naturalmente, a liberdade de no acreditar. (...) (2)
Deve haver igualdade entre pessoas de diferentes credos ou crenas
bsicas; nenhuma perspectiva religiosa ou Weltanschauung (religiosa
ou no religiosa) pode desfrutar de um status privilegiado, muito
menos ser adotada como a viso oficial do Estado. Ento, (3) todas as
famlias espirituais devem ser ouvidas, includas no processo contnuo
de determinao do que a sociedade (sua identidade poltica), e como
ela vai concretizar essas metas (o regime exato de direitos e
privilgios). Isto (esticando um pouco o ponto) o que corresponde
fraternidade.
Estas trs metas so um exemplo de uma prtica poltica secularista
desvinculada do fetiche pela religio. Outras metas semelhantes
podem ser estipuladas e os meios para cumpri-las iro variar de
acordo com o contexto cultural de cada sociedade. No cenrio da
filosofia poltica, esta seria a posio caracterstica de uma
perspectiva comunitarista em contraste com uma linha de pensamento
de cunho universalista.
De uma maneira resumida, explicitemos o cerne de cada uma destas
correntes de pensamento: para o comunitarismo a legitimidade do
Estado democrtico est no constante esforo de formulao e manuteno de
um bem comum, o qual possibilita a construo de uma identidade
poltica prpria e garante uma ambincia de solidariedade entre os
concidados; em contraposio, o universalismo defende que a
legitimidade da ordem social encontra-se na convergncia dos
indivduos em torno de normas que, apesar de coercitivas, podem ser
reconhecidas racionalmente por todos os cidados como justas - o bem
secundrio em relao ao justo e com este e no aquele que o Estado
deve estar comprometido, de maneira que os que advogam essa posio
geralmente se imiscuem na elaborao de princpios universais de
justia que possam ser aderidos por qualquer sociedade democrtica.
Se teoricamente comunitarismo e universalismo representam polos
diametralmente opostos, na prtica muitos de seus representantes
assumem posies moderadas, como o caso de Charles Taylor e John
Rawls, respectivamente.
Apesar disso, Taylor se mostra claramente avesso a ideia de
realizar aquelas metas por meio princpios de justia completamente
imutveis. Ele apresenta pelo menos quatro motivos para sua posio:
(a) no existe um conjunto tal de princpios eternos que pode ser
determinado pela simples razo pura, pelo menos nos pormenores com
que devem s-lo para um determinado sistema poltico; e (b) as
situaes diferem muito, e requerem diferentes tipos de realizao
concreta dos princpios gerais acordados, de modo que certo grau de
elaborao necessrio em cada situao. Segue-se que (c) ditar os
princpios a partir de alguma autoridade supostamente superior alm
da disputa viola (3) acima. Pois priva certas famlias espirituais
de uma voz nessa elaborao. E, portanto, (d) isso nos deixa muitas
vezes com conflitos e dilemas difceis entre as nossas metas
bsicas.
O motivo apresentado em (a) nos remete novamente a problemtica
do mito do esclarecimento e a fora que ele ainda ostenta nas
sociedades ocidentais. Conjecturar que os tais princpios tm por
matriz apenas uma razo pura pode parecer a soluo neutra que a
modernidade tanto almeja, mas em muitos casos pode se apresentar
como uma total desconsiderao para com o enraizamento
histrico-cultural de uma sociedade. Como alerta (b), muitas vezes
podero ser necessrias adaptaes para diferentes contextos sociais;
se esta possibilidade no for ao menos considerada teremos nada
menos que uma ditadura da razo. A concepo de uma razo
autossuficiente totalmente desenraizada culturalmente e
desvinculada de uma viso de mundo, apesar de bem difundida e aceita
ingenuamente por uma grande maioria, apenas mais um ponto de vista
que tanto possui razes culturais como tambm est vinculada a uma
viso racionalizada do mundo. Sua prvia assuno pelo Estado,
independente do consentimento de seus cidados, parece ser
justamente o que (c) expe como inaceitvel: uma autoridade
supostamente superior que rege externamente as relaes sociais.
Neste sentido, a simples razo sustentada como um princpio normativo
a priori do Estado democrtico no apenas descaracteriza este como
neutro - ao privilegiar um ponto de vista especfico -, mas tambm
como secular - pois a ao comum passa a ser orientada por uma
entidade externa a prpria ao comum, o que, como averiguamos no caso
da esfera pblica, equivale a uma no secularidade.
Como ento preservar a neutralidade do Estado democrtico se nem
mesmo a proposio de uma razo autossuficiente consegue atender ao
critrio imposto pela poltica secularista? Certamente trata-se de
uma tarefa complexa, cuja resposta necessita ser tanto mltipla
quanto o o nmero de caminhos que nossas sociedades multiculturais
autogovernadas podem escolher para cumprir as metas bsicas a que se
proporem. No entanto, podemos afirmar que a garantia de uma esfera
pblica que atue de maneira livre e independente um dos meios mais
eficazes para atingir este fim. Pois, se como analisamos
anteriormente, a funo da esfera pblica promover um debate onde
todos os segmentos da sociedade civil podem participar e ter uma
voz e, se desta discusso de fato forma-se uma opinio reflexiva
representativa, ento cabe s autoridades e instituies governamentais
se empenharem no apenas para que este espao funcione livremente,
mas tambm para que esta opinio tenha peso e influncia quando na
tomada de decises ou resoluo de conflitos que recorrentemente
surgem em nossas sociedades contemporneas, marcadas pela
irreversvel condio do convvio entre os diferentes.
V. Uma distino entre razo secular e razo pblicaConstatamos at
aqui que a influencia iluminista sobre o ocidente no se limitou ao
desenvolvimento de um modo imanente de compreender os fenmenos da
natureza (o naturalismo cientfico), mas tambm concebe uma nova
modalidade de ao social (o secularismo poltico), a qual, para sua
plena realizao, depende de algumas estruturas bsicas, dentre as
quais destacamos, no por acaso, a esfera pblica. Isto porque,
enquanto espao metatpico de carter extrapoltico e secular, seu
pleno funcionamento tornou-se um desafio ainda maior em nossas
sociedades marcadas pela diversidade, sendo constantemente palco de
questes polmicas e controversas, muitas das quais envolvendo
aspectos religiosos da vida dos cidados.
Semelhantemente ao caso da formulao das metas bsicas do Estado
secular, h uma ideia bastante difundida no imaginrio social de
nossas sociedades secularizadas de que, se os interlocutores da
esfera pblica se restringirem ao uso da simples razo, os embates e
discordncias sero dissolvidos e certamente haver um consenso. Na
prtica, isso requereria uma privatizao dos posicionamentos
religiosos em favor de uma linguagem neutra, aonde somente
argumentos seculares (imanentes) so vlidos. Nessa soluo
universalista, proposta outrora por pensadores como John Rawls e
Jrgen Habermas, Taylor aponta haver uma superestimao da razo no
religiosamente informada, que envolve (a) pressupor que ela
satisfaz legitimamente qualquer pensador honesto e claro e (b)
discriminar as concluses religiosamente embasadas como duvidosas,
sendo convincentes somente para as pessoas que j tenham aceitado os
dogmas em questo. Ora, segundo ele, algo como (a) + (b) apenas mais
uma das formas que o mito do esclarecimento assume:
Pode ocorrer, no fim das contas, que a religio seja fundada numa
iluso, e, portanto, que aquilo que dela derivado seja menos
credvel. Mas at que realmente cheguemos a esse lugar, no h razo a
priori para dirigir-lhe maior suspeita. A credibilidade dessa
distino depende da viso segundo a qual algum argumento bem deste
mundo basta para estabelecer certas concluses poltico-morais.
No preciso dizer que nenhum indivduo precisa admitir este tipo
de perspectiva imanente para exercer sua cidadania e, por isso,
tampouco o Estado secular pode impor esta condio para os atores da
esfera pblica. At porque no lhe cabe conferir maior credibilidade
racional a nenhum ponto de vista especfico, antes sua tarefa to
somente prover o ambiente ideal para que ocorra o debate livre e
que sejam equacionados os melhores argumentos. Entretanto levar a
cabo esta tarefa pode ser mais difcil do que parece, principalmente
levando em considerao o fato do pluralismo cultural. Afinal, como
conciliar culturas amplamente distintas? Cada vez mais vemos
insurgir ao nosso redor novos mundos com suas lnguas prprias: como
garantir o dilogo em meio a tantas vozes diversas?
Apesar do respeito s diferenas e particularidades, faz-se
necessria uma mnima convergncia dos cidados em torno daquelas metas
bsicas ou de outras similares, as quais em geral mantm como pontos
principais (1) a garantia de direitos e liberdades, (2) a igualdade
entre todos os cidados e (3) o princpio da governabilidade pelo
consentimento. De maneira geral, pode-se dizer que h de se
encontrar - expresso de modos variados - um correspondente para
cada um destas metas bsicas na constituio de toda sociedade dita
democrtica. Elas exprimem o que Charles Taylor chama de filosofia
da civilidade, a qual passa ser a garantia de unidade poltica num
Estado que no pode arquear nem a bandeira de uma religio civil e
tampouco de uma antirreligio civil. Torna-se assim indispensvel que
haja, em cada caso especfico, um consenso sobreposto entre as
diferentes vises de mundo que compe uma filosofia da
civilidade.
O compartilhamento de um mesmo ideal de Estado, sem sombra de
dvida, um grande passo para obteno de bons acordos nas negociaes
feitas na esfera pblica, porm, medida que o processo de
diversificao das democracias contemporneas progride
ininterruptamente, tambm se tornam mais complexos os caminhos para
sanar as dificuldades de comunicao. Uma das polmicas mais
frequentes vem objetar sobre o uso indiscriminado de argumentos de
embasamento religioso, principalmente, no que tange a linguagem com
que so expostos e a dificuldade que isto impe na apreciao dos
mesmos de maneira estritamente poltica.
Ainda que tais crticas possam ser motivadas por um sentimento
antirreligioso, no podemos ignorar de que se trata de um desafio
real, o que nos faz questionar seno seria de fato necessrio exigir
algum nvel de reciprocidade nos argumentos apresentados
publicamente - o que diz respeito no apenas a esfera pblica, mas
tambm ao poder poltico. Para esta etapa de nossa investigao,
verificamos como necessrio nos aprofundar em alguns elementos da
filosofia poltica de John Rawls, os quais podem ser muito
esclarecedores para a presente discusso.
Citado anteriormente como terico pertencente a uma linha
universalista moderada, Rawls destacado como um dos mais notveis
pensadores polticos do sculo XX. Em A ideia de razo pblica
revisitada, um de seus ltimos textos a ser publicado, o pensador
reavalia o papel da razo pblica enquanto fator essencial para o
pleno funcionamento das novas democracias, cuja caracterstica mais
marcante a concorrncia entre doutrinas abrangentes, que, mais do
que diferentes, so em muitos casos irreconciliveis. justamente
nesta conjuntura que surge a querela da adaptao de argumentos de
matriz religiosa para uma linguagem pblica.
Segundo seu liberalismo poltico, um pressuposto essencial a uma
de sociedade democrtica bem ordenada a ideia de razo pblica. A razo
pblica abrange os tipos de razes que podemos razoavelmente oferecer
uns aos outros para chegar a um acordo a respeito de questes
polticas fundamentais. O contedo dessa razo pblica dado por uma
famlia de concepes polticas de justia que satisfazem o critrio de
reciprocidade entre os cidados. Assim, nenhuma doutrina abrangente
pode compor esta famlia, justamente porque a abrangncia que lhe
inerente extrapola o campo dos interesses estritamente polticos
numa democracia, violando o critrio de reciprocidade. Portanto, a
teoria rawlsziana prescreve que o Estado jamais baseie suas aes em
doutrinas abrangentes, antes deve defender concepes polticas de
justia, as quais resguardam valores puramente polticos e, por isso,
esto aptas a serem compartilhadas pelos cidados, independente de
suas vises de mundo particulares.
Esses valores polticos, embora sejam intrinsecamente valores
morais, no devem ser confundidos com doutrinas morais especficas,
pois estas, por mais acessveis que possam ser a razo ou ao senso
comum, ainda esto sujeitas a um desacordo razovel por parte dos
cidados. Isso fica claro quando atentamos para o fato de que
doutrinas morais podem tanto ser fundadas no transcendente quanto
serem exclusivamente imanentes; em outras palavras, a matriz de uma
doutrina moral pode ser tanto religiosa quanto secular. Em
contraposio, os valores polticos so especificados por concepes
polticas de justia, as quais - sustenta Rawls - podem ser
formuladas independentes de doutrinas abrangentes, utilizando-se to
somente de ideias fundamentais implcitas na cultura poltica pblica.
Essas concepes polticas no precisam sequer coadunar com uma simples
razo, pois seu objetivo prtico e no metafsico ou epistemolgico e
apresenta-se como uma base do acordo poltico bem informado e
voluntrio entre cidados considerados como pessoas livres e iguais.
Consequentemente, quando o liberalismo poltico diz aceitar apenas
concepes polticas de justia no debate pblico, ele no rejeita apenas
as razes religiosas, mas tambm as razes ancoradas em uma viso de
mundo secular. Portanto, a razo pblica no corresponde, em primeira
instancia, a uma razo secular, de modo que esta, juntamente com as
razes religiosas, constituem formas de argumentao no pblicas.
Neste sentido, podemos dizer que essa revisitao a ideia de razo
pblica proporciona uma maior convergncia entre o liberalismo
poltico de John Rawls e a concepo de Estado secular de Charles
Taylor, pois em ambos a neutralidade do Estado no fundada na
excluso da religio, mas denunciada como nica resposta razovel ao
fato do pluralismo de vises de mundo que coexistem nas sociedades
democrticas. O prprio Taylor d um bom testemunho a esse
respeito:
Isso tambm mostra o valor da formulao tardia de Rawls para um
Estado secular. Esta se apega muito fortemente a certos princpios
polticos: direitos humanos, igualdade, o Estado de Direito, a
democracia. Estes so a prpria base do Estado, que deve apoi-los.
Mas essa tica poltica pode ser e compartilhada por pessoas de
perspectivas bsicas (o que Rawls chama de vises abrangentes do bem)
muito diferentes. Um kantiano justificar os direitos vida e
liberdade apontando para a dignidade da agncia racional; um
utilitarista falar da necessidade de tratar os seres que podem
experimentar prazer e dor de tal forma que maximize o primeiro e
minimize a segunda. Um cristo falar dos seres humanos como feitos
imagem de Deus. Eles concordam nos princpios, mas diferem nas razes
mais profundas para aderir a essa tica. O Estado deve manter a
tica, mas abster-se de favorecer qualquer uma das razes mais
profundas.
Assim, o carter secular do Estado est em alguma medida
comprometido com o ideal de secularidade que distingue a esfera de
atuao pblica daquela referente a prtica religiosa, em
contrapartida, no consta entre as obrigaes deste mesmo Estado
exercer qualquer ativismo antirreligioso, superestimando doutrinas
abrangentes seculares em detrimento daquelas de natureza religiosa.
inevitvel que as condies de f numa sociedade secular no sejam as
mesmas daquelas encontradas em sociedades governadas por um
imperativo religioso, entretanto, isso no sustenta que o Estado
secular seja partidrio de uma viso de mundo antirreligiosa ou que
conceda maior prestgio a razes seculares no mbito da argumentao
pblica e na aprovao de decretos ou leis.
Evidentemente, o Estado democrtico terminar aprovando leis que
(no melhor dos casos) refletem as convices reais dos seus cidados,
as quais sero ou crists ou muulmanas, e assim por diante, atravs de
toda a gama de vises sustentadas em uma sociedade moderna. Porm, as
decises no podem ser enquadradas de uma forma que d reconhecimento
especial a uma dessas vises.
Eis dois grandes desafios para o empreendimento democrtico
secular: (1) aceitar que em muitos casos prevalecer a vontade da
maioria, ainda que essa contrarie uma pretensa simples razo e,
apesar disso, (2) no permitir que seja dado maior reconhecimento a
uma doutrina abrangente especfica, prejudicando assim as demais. O
primeiro uma decorrncia natural do princpio poltico de que o povo
soberano, porm vemos constantemente alguns segmentos sociais se
mobilizando contra algumas decises majoritrias no campo da moral,
consideradas injustas ou simplesmente retrgradas. Um exemplo disso
ocorre atualmente no Brasil com o embate acerca do casamento entre
pessoas do mesmo sexo. Se por um lado as estatsticas apontam para
um crescimento progressivo da parcela de cidados que se identificam
como homossexuais e que reivindicam o direito a unio civil, por
outro parecem ser ainda maioria os partidrios de uma viso mais
tradicional em relao ao casamento e a manuteno dos bons costumes.
Apesar dos primeiros gozarem do apoio da grande mdia e de
personalidades de grande influncia, novas lideranas polticas e no
polticas tm insurgido para resistir s tentativas de estender o
direito do matrimnio aos homossexuais, contando com grande apoio
popular. Ambas as partes demonizam seus adversrios, de modo que a
discusso parece polarizada entre os homofbicos e a ditadura gay. Um
dos agravantes, no entanto, o uso de verdades de f como
justificativas para negar aos homossexuais o acesso a esse direito.
No obstante, estes tm caracterizado seus adversrios como
fundamentalistas religiosos e exigido que as autoridades
governamentais intervenham a seu favor, tendo em vista preservar a
gide de secularidade do Estado.
Suponhamos que os argumentos religiosos so de fato a causa do
problema acima exposto e que, se todos escutassem a voz da razo, a
questo seria facilmente resolvida. O que fazer ento no caso de uma
maioria que apresentasse uma razo puramente secular para defender
valores tradicionais? Esta mais ou menos a situao da democracia
russa no presente momento. Recentemente a cmara de deputados da
Rssia aprovou, por unanimidade, uma lei que probe cidados russos,
estrangeiros no pas ou empresas de mdia de fazer propaganda de
relaes sexuais no tradicionais voltadas para menores de idade.
Segundo o Centro de Pesquisa de Opinio Pblica da Rssia, 84% da
populao se opem as tais propagandas, o que indica que a deciso
poltica nada mais fez do que expressar a vontade popular. Ainda
assim, a deciso gerou um grande burburinho na comunidade
internacional, que caracteriza a legislao como incompatvel com o
regime de direitos e liberdades de um sistema democrtico. Como
resposta s crticas, o governo afirma que a lei no voltada contra a
comunidade LGBT, mas contra os valores que eles podem difundir
entre crianas, transtornando sua psique ainda fraca e no preparada
para extravagncias.
Deparamos-nos agora com uma argumentao no religiosa, a qual,
muito aqum de se contrapor a unio matrimonial de pessoas do mesmo
sexo, reluta antes contra a progressiva normalizao da
homossexualidade que, nos ltimos tempos, se tornou um consenso
entre naes ocidentais seculares. Um dos meios para isso, inclusive,
fora justamente a credibilidade racional adquirida pelo naturalismo
cientfico, que, geralmente sendo utilizado em prol de naturalizar a
condio de pessoas atradas pelo mesmo sexo, tambm tem sido usado por
opositores em estratgias de fundamentao de uma moral
tradicionalista. No h dvidas de que dentre os que assumem tal
posicionamento esto cidados com fortes crenas religiosas, mas o que
est em jogo aqui no so as convices pessoais, mas a maneira como os
argumentos so apresentados ao pblico, e, neste sentido, o argumento
inegavelmente secular, possuindo inclusive sustentculo cientfico em
correntes da psicologia. O cerne do problema passa a ser definir se
a lei fere ou no as metas bsicas do secularismo que versam sobre a
liberdade e a igualdade entre os cidados, o que inevitavelmente
deixa o governo russo num complexo dilema. Pode tambm ocorrer que,
no futuro, tal lei perca a fora devido s prprias mudanas internas
do pas, o que faz parte da dinmica de constante reformulao a que
esto sujeitas as sociedades democrticas.
Parece no haver, portanto, uma justificativa razovel para
excluir argumentos religiosos da esfera pblica j que percebemos
que, mesmo dispondo to somente de argumentos seculares, as
controvrsias iro impreterivelmente surgir. Ora, ainda assim
persevera o embarao que envolve a lide com a linguagem religiosa
nos espaos pblicos. Concordamos que cada religio possui crenas e
terminologias especficas que podem soar vazias e sem sentido, ou
mesmo repercutir de maneira ofensiva e indesejada entre no crentes
ou pessoas pertencentes a uma religio distinta. Pensando nisso,
Rawls defendeu por um tempo que, mesmo em democracias aonde reina o
imperativo da diversidade (religiosa, filosfica ou cultural) todos
os cidados deveriam deliberar sobre questes polticas por meio de
uma linguagem da simples razo, deixando suas vises religiosas no
vestbulo da esfera pblica. A despeito da natureza tirnica desta
exigncia, muitos acreditam hoje ser esta a melhor opo: padronizar
uma linguagem que poderia ser exercida e entendida por todos os
envolvidos. No entanto, o prprio Rawls voltou atrs a respeito dessa
perspectiva e prope a insero de uma clusula nos critrios que
determinam a validade de uma razo pblica.
Apesar de uma argumentao pblica depender inteiramente de uma
concepo poltica de justia, isso no impede que sejam introduzidos na
discusso poltica argumentos provenientes de uma doutrina
abrangente, seja ela religiosa ou no religiosa. Sendo este o caso,
estabelecida uma condio, a qual visa o atendimento do critrio de
reciprocidade: que, em algum momento, sejam oferecidas razes
adequadamente pblicas para apoiar os princpios e as polticas que se
acreditam estar implcitos na referida doutrina. Com efeito, o que
se pede que, sendo utilizada uma doutrina abrangente no debate
poltico, ela em algum momento seja traduzida para uma linguagem
pblica, o que garantiria a validade do argumento dentro dos
parmetros da razo pblica. Essa condio chamada por Rawls de clusula.
No obstante, ela nos parece a soluo terica mais razovel tanto para
a problemtica da comunicao entre as diferentes perspectivas na
esfera pblica, quanto para a garantia de neutralidade do estado em
relao s diversas doutrinas abrangentes defendidas pelos cidados de
uma mesma comunidade poltica.
A pergunta que no podemos ignorar, no entanto, : como isto se d
na prtica? At que instncias da esfera pblica so vlidos argumentos
no pblicos e quando se faz efetivamente necessria a traduo desses
argumentos para uma linguagem pblica? Para Rawls a resposta a esta
questo no fixa e depender das conjunturas polticas de cada
sociedade, o que deixa o assunto sujeito a controvrsias. Habermas,
por exemplo, dir que a traduo de argumentos de natureza religiosa
deve ser feita a partir do momento que estas adentram no mbito das
instituies pblicas, como parlamentos, tribunais e demais setores
administrativos. J para Taylor, a traduo dos argumentos no pblicos,
tanto os seculares quanto os religiosos, deve ser exigida somente
no mbito da linguagem oficial do estado aquela encontrada em leis,
decretos e decises judiciais no afetando a deliberao dos cidados
nem de seus representantes na esfera pblica formal. Obviamente cada
um oferece motivos distintos e especficos para seus
posicionamentos, os quais requereriam muito mais espao do que
aquele que temos aqui, sendo apenas importante ressaltar que ambos
concordam com Rawls quanto a necessidade de que, em algumas zonas
de um estado secular, seja utilizada uma linguagem neutra.
VI. Concluso
No incio deste trabalho mencionamos que Charles Taylor tem por
pretenso traar um impensado acerca da secularizao e do atual papel
da religio nas sociedades democrticas plurais. Para ele, a
necessidade de seu empreendimento advm do fato de haver muitas
teorias da secularizao concorrentes que, assim como diversos tipos
de credo religioso, podem complicar o debate por estarem
contaminadas com uma espcie de ideologia que julga falsa a religio
e busca promover seu declnio construindo diversos cenrios da morte
de Deus. Como o termo ideologia pode ser mal compreendido, Taylor
prefere usar o conceito foucaultiano impensado para exprimir como
as narrativas da sociologia/histria da secularizao esto sujeitas a
interferncias do ponto de vista pessoal de seus autores, isto , no
simplesmente como uma expresso polmica da viso de algum, mas no
sentido mais sutil de que o prprio quadro de referncia de algum,
suas convices e valores, podem constringir a imaginao terica dessa
pessoa.
Em outras palavras, encaramos na construo da histria da
secularizao o mesmo problema que observamos haver no secularismo
poltico: a dificuldade de garantir estruturas que cumpram sua funo
com neutralidade. No pretendo aqui advogar a possibilidade de uma
narrativa histrica ou sociolgica totalmente neutra apesar de ser
natural esperar um mnimo distanciamento de um historiador ou de um
cientista social , mas alertar para uma forte tendncia que impera
em meio s narrativas da secularizao de difundem uma viso de mundo
antirreligiosa. Como afirma Taylor:
(...) E, de fato, h um poderoso impensado (...) em operao: um
ponto de vista que sustenta que a religio deve declinar seja (a)
porque ela falsa e a cincia mostra que isso assim; seja (b) porque
ela crescentemente irrelevante (...); ou (c) porque a religio est
baseada na autoridade e as sociedades modernas conferem um lugar de
importncia crescente a autonomia individual; ou alguma combinao
dessas trs. Isso to forte no tanto por ser sustentado entre a
populao em geral quo amplamente parece variar de sociedade para
sociedade , mas po