Invencível Uma história de sobrevivência, resistência e redenção vivida durante a II Guerra Mundial Laura Hillenbrand Tradução de Maria João Camacho
Invencível
Uma história de sobrevivência, resistência
e redenção vivida durante a II Guerra Mundial
Laura Hillenbrand
Tradução de Maria João Camacho
O que ficou em ti mais vivo e mais intenso? Os pânicos estranhos,As batalhas mais disputadas ou os tremendos cercos, o que recordas
mais intensamente?Walt Whitman, “O Enfermeiro”1
1. Walt Whitman, As Folhas de Erva. Tradução de Maria de Lourdes Guimarães. Relógio d’Água, 2002.
11INVENCÍVEL : : LAURA HILLENBRAND
Índice
Prefácio :: 13
Parte I1. A Rebeldia Personificada :: 17
2. Correr como um Louco :: 30
3. O Tornado de Torrance :: 38
4. Pilhando a Alemanha :: 50
5. A Caminho da Guerra :: 63
Parte II6. O Caixão Voador :: 78
7. “Chegou a Hora, Rapazes!” :: 97
8. “Só a Minha Roupa Foi Testemunha do Meu Medo” :: 111
9. Quinhentos e Noventa e Quatro Buracos :: 128
10. Os Seis Malditos :: 145
11. “Ninguém Vai Sobreviver a Isto” :: 156
Parte III12. À Deriva :: 166
13. Perdidos no Mar :: 173
14. Sede :: 186
15. Entre Balas e Tubarões :: 201
16. Cantando nas Nuvens :: 210
17. Tufão :: 221
12
Parte IV18. Um Cadáver Que Respira :: 232
19. Duzentos Homens Silenciosos :: 245
20. Flatos para Hirohito :: 259
21. Fé :: 275
22. Elaborando Planos :: 285
23. Monstro :: 297
24. Perseguido :: 308
25. B -29 :: 320
26. Insanidade :: 334
27. Caindo :: 348
28. Escravizados :: 354
29. Duzentos e Vinte Murros :: 367
30. Uma Cidade em Ebulição :: 376
31. Homens Nus em Debandada :: 385
32. Cascatas de Pêssegos Cor -de -rosa :: 394
33. Dia da Mãe :: 406
Parte V34. A Rapariga Incandescente :: 423
35. Desmoronando :: 437
36. O Corpo na Montanha :: 448
37. Cordas Retorcidas :: 457
38. Um Sinal de Esperança :: 464
39. Amanhecer :: 475
Epílogo :: 479
Agradecimentos :: 501
13INVENCÍVEL : : LAURA HILLENBRAND
Prefácio
Para onde quer que olhasse, só via água.
Corria o dia 23 de junho de 1943. Algures, na infindável exten-
são do Oceano Pacífico, o tripulante de um bombardeiro da Força
Aérea norte -americana e atleta olímpico Louie Zamperini estava dei-
tado num salva -vidas que se deslocava para ocidente. Tombado ao seu
lado, encontrava -se um sargento, um dos artilheiros do avião. Numa
outra balsa, amarrada à primeira, achava -se outro elemento da tripu-
lação, que exibia um corte profundo e irregular que lhe cruzava a testa
em zigue zague. Os seus corpos, tostados pelo sol e tingidos de ama-
relo pela tinta das balsas, estavam praticamente reduzidos a esquele-
tos. Tubarões deslizavam à sua volta, em círculos preguiçosos, fazendo
roçar o dorso pelas balsas, aguardando.
Os homens andavam à deriva havia vinte e sete dias. Arrastados
por uma corrente equatorial, tinham percorrido cerca de mil milhas
e penetrado nas águas controladas pelos japoneses. As balsas tinham
começado a deteriorar -se numa massa gelatinosa que libertava um odor
acre e intenso. Os corpos dos homens estavam marcados por queima-
duras provocadas pelo sal e os seus lábios estavam tão intumescidos
que lhes pressionavam o nariz e tombavam sobre o queixo. Passavam os
dias de olhos fixos no céu, cantando “White Christmas”, balbuciando
sobre comida. Já ninguém estaria a fazer esforços para encontrá -los.
Achavam -se sozinhos no meio de 56 milhões de milhas marítimas qua-
dradas de oceano.
Um mês antes, Zamperini, de 26 anos, tinha -se revelado um dos
maiores corredores de velocidade do mundo, aquele que muitos espera-
vam viesse a ser o primeiro a percorrer uma milha (1,6 km) em menos
de quatro minutos, um dos recordes desportivos mais marcantes.
Agora, o seu corpo atlético estava reduzido a menos de quarenta e cinco
14
quilos e as suas famosas pernas já não conseguiam sustê -lo de pé.
À exceção da família, quase todos o davam como morto.
Naquela manhã do vigésimo sétimo dia, os homens começaram a
ouvir uma espécie de tamborilar distante e profundo. Estando todos
ligados à aviação, conheciam bem aquele som: pistões. Os seus olhos
captaram um brilho no céu – um avião, bem lá no alto. Zamperini acen-
deu dois foguetes de sinalização e espalhou tinta em pó na água, envol-
vendo as balsas num círculo cor de laranja forte. O avião manteve a sua
rota, desaparecendo lentamente. Os homens deixaram -se cair para trás.
Eis, porém, que o som voltou a fazer -se ouvir, e o avião surgiu de novo.
A tripulação tinha -os detetado.
Com braços mirrados, que pouco mais eram que osso e pele amare-
lada, os náufragos acenaram e gritaram numa voz debilitada pela sede.
O avião desceu e passou ao lado das balsas. Zamperini viu o perfil dos
tripulantes, recortado contra o azul intenso.
Ouviu -se um rugir terrível. A água, e as próprias balsas, parece-
ram entrar em ebulição. Era fogo de metralhadora. Não se tratava de
um avião de resgate norte -americano, mas de um bombardeiro japonês.
Os homens lançaram -se à água e apertaram -se debaixo das balsas,
estremecendo a cada bala que furava a borracha e cortava uma linha efer-
vescente na água, junto à sua cara. O tiroteio continuou intenso, depois
abrandou, quando o avião passou por cima deles. Os homens içaram-
-se para dentro da única balsa que ainda se mantinha razoavelmente
insuflada. O bombardeiro inclinou -se de lado, descreveu um círculo e
lançou -se de novo na direção deles. Como não se elevou no ar, Zam-
perini conseguiu ver que as miras das metralhadoras estavam aponta-
das diretamente a eles.
Zamperini olhou para os companheiros. Encontravam -se demasiado
fracos para voltarem a mergulhar. Enquanto se deitavam no fundo da
balsa, de mãos sobre a cabeça, Zamperini lançou -se borda fora, sozinho.
Algures por baixo dele, os tubarões tinham -se cansado de esperar.
Arquearam o corpo na água e começaram a nadar na direção do homem
que se encontrava debaixo da balsa.
17INVENCÍVEL : : LAURA HILLENBRAND
UM
A Rebeldia Personificada
Na escuridão que antecedeu a alvorada do dia 26 de agosto de 1929,
no quarto das traseiras de uma pequena casa de Torrance, na Califór-
nia, um rapaz de doze anos estava sentado na cama, à escuta. Do exte-
rior, chegava -lhe um som que estava a ficar cada vez mais intenso. Era
um ímpeto que sugeria imensidão, uma força que cortava o ar. E a sua
origem encontrava -se precisamente por cima da casa. O rapaz saltou
da cama, desceu as escadas apressadamente, abriu a porta das trasei-
ras e correu pelo relvado. O quintal parecia pertencer a outro mundo,
envolto numa escuridão invulgar e estremecendo com o som. O rapaz
ficou parado na relva, ao lado do irmão mais velho, a cabeça caída para
trás, fascinado.
O céu tinha desaparecido. Um objeto de que apenas conseguia
distinguir a silhueta, e que se estendia ao longo de um imenso arco de
espaço, estava suspenso no ar, sobranceiro à casa. Era mais extenso do
que dois campos de futebol, tão alto como uma cidade e estava a ocul-
tar as estrelas.
Aquilo que o rapaz estava a presenciar era o dirigível Graf Zeppe-lin. Com perto de duzentos e quarenta metros de comprimento e cerca
de trinta e três metros de altura, foi a maior máquina voadora alguma
vez fabricada. Mais luxuoso do que o melhor dos aviões, deslizando
sem esforço através de longas distâncias e construído a uma escala que
deixava os espectadores boquiabertos, tinha sido, no verão de 1929, a
maravilha do mundo.
O dirigível estava a três dias de completar uma sensacional proeza
aeronáutica: a circum -navegação do globo. A viagem tivera início no dia
7 de agosto, quando o Zeppelin largara as suas amarras em Lakehurst,
Nova Jérsia, se elevara, com um longo e lento suspiro, e se encaminhara
para Manhattan. Naquele verão, na 5.ª Avenida, a demolição do Hotel
18
Waldorf -Astoria estava em vias de começar, abrindo espaço para um
arranha -céus de proporções sem precedentes, o Empire State Building.
No Yankee Stadium, no Bronx, os jogadores estavam a estrear equipa-
mentos numerados: Lou Gehrig vestia o número 4; Babe Ruth, em vés-
peras de atingir o seu quingentésimo home run, envergava o número 3.
Em Wall Street, os preços das ações estavam a disparar e a atingir os
valores mais altos de todos os tempos.
Depois de contornar lentamente a estátua da Liberdade, o Zeppe-lin apontou para norte, depois virou para o Atlântico. Passado algum
tempo, a terra voltou a surgir lá em baixo: França, Suíça, Alemanha.
A nave sobrevoou Nuremberga, onde um político insignificante Adolf
Hitler, cujo partido nazi havia sido esmagadoramente derrotado nas
eleições de 1928, tinha acabado de proferir um discurso de incitamento
ao infanticídio seletivo. Em seguida, rumou para ocidente de Frank-
furt, onde uma mulher judia de nome Edith Frank estava a tratar do
seu bebé recém -nascido, uma menina chamada Anne. Navegando para
nordeste, o Zeppelin sobrevoou a Rússia. Aldeões siberianos, tão iso-
lados que nem mesmo um comboio haviam visto, caíram de joelhos
perante aquela aparição.
No dia 19 de agosto, o Zeppelin circulou sobre Tóquio e aterrou
num aeródromo perante cerca de quatro milhões de japoneses que agi-
tavam lenços e gritavam “Banzai!”. Quatro dias mais tarde, ao som dos
hinos da Alemanha e do Japão, a nave elevou -se e foi engolida por um
tufão que a empurrou, através do Pacífico e a uma velocidade vertigi-
nosa, na direção dos Estados Unidos. Os passageiros, olhando fixamente
pelas janelas, divisavam apenas a sombra do dirigível, seguindo -o ao
longo das nuvens, “como um tubarão gigante que nadasse ao seu lado”.
Quando as nuvens se abriam, os passageiros avistavam criaturas gigan-
tes, deslocando -se no mar, que pareciam monstros.
A 25 de agosto, o Zeppelin chegava a São Francisco. Depois de ter
sido aplaudido ao longo da costa californiana, deslizou pelo crepúsculo,
penetrou na escuridão e no silêncio e transpôs a meia -noite. Lento como
uma brisa, sobrevoou Torrance, tendo apenas por testemunhas algu-
mas almas dispersas e sonolentas, entre as quais o rapaz de pijama, no
quintal da casa de Gramercy Avenue.
19INVENCÍVEL : : LAURA HILLENBRAND
De pé, descalço na relva, sob o dirigível, o rapaz estava paralisado.
Aquilo era, diria ele mais tarde, “assustadoramente belo”. Conseguia
sentir o rugir dos motores da nave a revolverem o ar, mas não conse-
guia distinguir a sua pele prateada, as costelas arredondadas, a cauda
em forma de barbatana. Apenas via a escuridão do espaço que ela ocu-
pava. Não era uma grande presença, mas sim uma grande ausência,
um oceano geométrico de escuridão que parecia engolir o próprio céu.
:::::
O nome do rapaz era Louis Silvie Zamperini. Filho de imigrantes
italianos, tinha vindo ao mundo em Olean, Nova Iorque, no dia 26 de
janeiro de 1917, com cinco quilos e vinte gramas e uma cabeleira negra
mais crespa que arame farpado. O pai, Anthony, tornara -se indepen-
dente aos catorze anos, trabalhando, primeiro, como mineiro e pugilista,
depois, na construção civil. A mãe, Louise, era uma mulher pequenina,
de uma beleza cheia de vida, que casara aos dezasseis anos e tivera Louie
aos dezoito. No apartamento em que viviam, e onde apenas se falava
italiano, Louise e Anthony tratavam o filho por Toots1.
A partir do momento em que começou a andar, Louie deixou de
suportar sentir -se limitado nos seus movimentos. Os irmãos recordavam-
-se de o ver cirandar de um lado para o outro, saltando por cima de
plantas, animais e mobília. Assim que Louise o sentava numa cadeira
e lhe dizia que ficasse quieto, ele desaparecia. Se ela não mantinha o
seu irrequieto filho bem seguro pela mão, era frequente não saber por
onde ele andava.
Em 1919, quando Louie, então com dois anos, ficou doente com uma
pneumonia, trepou para a janela do quarto, desceu do primeiro andar
e fugiu, rua abaixo, completamente nu, com um polícia no seu encalço
e uma multidão a observar, incrédula. Pouco depois, e por aconselha-
mento de um pediatra, Louise e Anthony decidiram mudar -se com os
filhos para o clima mais ameno da Califórnia. Assim que o comboio
1. Bebé ou queridinho. (N. da T.)
20
em que viajavam saiu da Grand Central Station, Louie desatou a correr
até ao fim do comboio e saltou da carruagem do guarda -freio. Quando
o comboio rolava em marcha -atrás, à procura do rapazinho perdido,
Pete, o irmão mais velho de Louie, que estava de pé, ao lado da ansiosa
mãe, avistou o irmão a passear pelos carris numa total descontração.
Quando a mãe o tomou nos braços, Louis sorriu. “Sabia que virias atrás
de mim”, disse, em italiano.
Na Califórnia, Anthony conseguiu arranjar emprego como eletri-
cista ferroviário e comprou um terreno com cerca de dois mil metros
quadrados no extremo de Torrance, uma cidade com 1800 habitantes.
Anthony e Louise improvisaram uma cabana de uma só divisão, sem
água corrente, com uma latrina exterior nas traseiras e um telhado que
deixava entrar tanta água que tinham de colocar baldes em cima das
camas. Tendo apenas trincos nas portas, à laia de fechaduras, Louise
começou a sentar -se numa caixa de maçãs, encostada à porta da casa,
com um rolo da massa na mão, disposta a esmagar o crânio a qualquer
meliante que se atrevesse a ameaçar os seus filhos.
Ali, e na casa de Gramercy Avenue, onde se instalaram um ano
mais tarde, Louise manteve os gatunos longe de casa, mas não conse-
guiu manter Louie por perto. Participando numa corrida disputada
através de uma movimentada autoestrada, por pouco não foi colhido
por uma carrinha. Aos cinco anos, começou a fumar, apanhando bea-
tas de cigarro que encontrava a caminho do jardim -escola. Certa noite,
quando tinha oito anos, começou a beber: escondera -se debaixo da mesa
de jantar, surripiando copos de vinho que bebeu a seco, depois camba-
leara até ao exterior e caíra em cima de uma roseira.
Um dia, Louise descobriu que Louie tinha espetado a perna numa
cana de bambu; noutro dia, teve de pedir a um vizinho para coser o
dedo de Louie que tinha sido quase arrancado. Quando Louie chegou
a casa encharcado em petróleo, depois de ter estado a escalar uma torre
de sondagem, ter mergulhado num poço de drenagem e de quase se ter
afogado, foram necessários quatro litros de terebintina e muita esfrega-
dela para que Anthony conseguisse reconhecer o filho.
Fascinado pelo derrubar de fronteiras, Louie era indomável.
À medida que foi crescendo e adquirindo uma inteligência invulgar, as
21INVENCÍVEL : : LAURA HILLENBRAND
pequenas proezas audaciosas deixaram de o satisfazer. Nascia, em Tor-
rance, a rebeldia personificada.
:::::
Tudo o que era comestível, Louie roubava. Sorrateiro, percorria becos
com um rolo de arame no bolso, para abrir fechaduras. Donas de casa
que se ausentassem da cozinha, descobriam, ao regressar, que o seu jan-
tar tinha desaparecido. Pessoas que acaso estivessem a espreitar por uma
janela das traseiras, eram capazes de vislumbrar um rapaz de pernas com-
pridas fugindo com um bolo inteiro nas mãos. Quando uma família da
zona excluiu Louie da lista de convidados para um jantar, o rapaz forçou
a entrada na casa, subornando o Grand Danois da família com um osso,
e roubou tudo que encontrou no frigorífico. Numa outra festa, saiu às
escondidas, levando um barril cheio de cerveja. Quando descobriu que
as mesas de arrefecimento da Padaria Meinzer ficavam à distância de
um braço, entrando pela porta das traseiras, começou a abrir a fechadura
com o arame, a surripiar tartes, a comer até fartar e a reservar o resto para
usar como munições em emboscadas. Quando ladrões rivais começaram
a copiar o crime, ele suspendeu a atividade até os culpados serem apanha-
dos e os donos da padaria baixarem as guardas. Nessa altura, deu indica-
ções aos amigos para assaltarem, de novo, a Padaria Meinzer.
Era certo e sabido que todas as histórias que Louie contava sobre
a sua infância, acabavam invariavelmente com “… e, então, eu desatei a
correr como um louco”. Era frequente ser perseguido por pessoas a quem
tinha roubado, tendo pelo menos duas delas ameaçado que disparariam
sobre ele. Para reduzir o número de provas que a polícia pudesse encon-
trar na sua posse, quando, como era habitual, acabasse por encontrá-
-lo, construiu esconderijos para albergarem o fruto dos seus saques em
diferentes pontos da cidade, incluindo um buraco com três compar-
timentos, que escavou numa floresta das redondezas. Certa vez, Pete
encontrou, sob as bancadas do campo de jogos do liceu de Torrance,
um jarro de vinho roubado que Louie aí tinha escondido. Estava repleto
de formigas embriagadas.