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PUBLICAÇÃO TRIMESTRAL ASSINATURA ANUAL: Individual ... 30,00 / Institucional ... 40,00 SUMÁRIO Nota de Abertura: Número de Homenagem a Carla Machado ................................................... 3 Marlene Matos / Rui Abrunhosa Gonçalves Testemunhos Internacionais ......................................................................................................... 5 Carla Machado: An Appreciation Sandra Walklate Carla Machado: A Testimony Basia Spalek A Psicologia da Justa em Portugal: Uma viagem partilhada com Carla Machado ............... 7 Rui Abrunhosa Gonçalves A Psicologia Forense em Portugal: Novos rumos na consolidação da relação com o sitema de justa ....................................... 15 Celina Manita / Carla Machado Criminalidade feminina e construção do género: Emergência e consolidação das perspectivas feministas na Criminologia .......................... 33 Raquel Matos / Carla Machado O problema da droga: Sua construção, desconstrução e reconstrução ............................... 49 Olga Sousa / Carla Machado / Luís Fernandes Abuso sexual na infância e adolescência: Resiliência, competência e coping .................... 63 Carla Antunes / Carla Machado Intervenção em grupo com timas de violência doméstica: Uma revisão da sua eficácia .... 79 Marlene Matos / Andreia Machado / Anita Santos / Carla Machado Violência nas relações íntimas ocasionais de uma amostra estudantil ................................. 93 Joana Antunes / Carla Machado Violência nas relações de namoro entre adolescentes: Avaliação do impacto de um programa de sensibilização e informação em contexto escolar ........................................... 109 Rosa Saavedra / Carla Machado Práticas de prevenção da violência nas relações de intimidade juvenil: Orientações gerais ..................................................................................................................... 131 Sónia Caridade / Rosa Saavedra / Carla Machado XXX (1-2) – Janeiro - Junho 2012 ISSN 0870-8231
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Intervenção em grupo com vítimas de violência doméstica: Uma revisão da sua eficácia

Mar 28, 2023

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Filomena Louro
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SUMÁRIO

Nota de Abertura: Número de Homenagem a Carla Machado ................................................... 3

Marlene Matos / Rui Abrunhosa Gonçalves

Testemunhos Internacionais ......................................................................................................... 5

Carla Machado: An Appreciation

Sandra Walklate

Carla Machado: A Testimony

Basia Spalek

A Psicologia da Justiça em Portugal: Uma viagem partilhada com Carla Machado ............... 7

Rui Abrunhosa Gonçalves

A Psicologia Forense em Portugal: Novos rumos na consolidação da relação com o sitema de justiça ....................................... 15

Celina Manita / Carla Machado

Criminalidade feminina e construção do género: Emergência e consolidação das perspectivas feministas na Criminologia .......................... 33

Raquel Matos / Carla Machado

O problema da droga: Sua construção, desconstrução e reconstrução ............................... 49

Olga Sousa / Carla Machado / Luís Fernandes

Abuso sexual na infância e adolescência: Resiliência, competência e coping .................... 63

Carla Antunes / Carla Machado

Intervenção em grupo com vítimas de violência doméstica: Uma revisão da sua eficácia .... 79

Marlene Matos / Andreia Machado / Anita Santos / Carla Machado

Violência nas relações íntimas ocasionais de uma amostra estudantil ................................. 93

Joana Antunes / Carla Machado

Violência nas relações de namoro entre adolescentes: Avaliação do impacto de umprograma de sensibilização e informação em contexto escolar ........................................... 109

Rosa Saavedra / Carla Machado

Práticas de prevenção da violência nas relações de intimidade juvenil: Orientações gerais ..................................................................................................................... 131

Sónia Caridade / Rosa Saavedra / Carla Machado

XXX (1-2) – Janeiro - Junho 2012 ISSN 0870-8231

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Repertórios interpretativos sobre o amor e as relações de intimidade de mulheres vítimas de violência: Amar e ser amado violentamente? ................................. 143

Ana Rita Dias / Carla Machado / Rui Abrunhosa Gonçalves / Celina Manita

Vitimação por stalking: Preditores do medo ............................................................................ 161

Marlene Matos / Helena Grangeia / Célia Ferreira / Vanessa Azevedo

Escala de Crenças sobre Violência Sexual (ECVS) ................................................................. 177

Sónia Martins / Carla Machado / Rui Abrunhosa / Celina Manita

O envolvimento na luta armada política em Portugal: A perspectiva dos seus actores ..... 193

Raquel Beleza Pereira da Silva / Carla Machado

Discursos sociais sobre a violência de Estado: Um estudo qualitativo ............................... 215

Mariana Barbosa / Carla Machado / Raquel Matos / Ana Barbeiro

A construção mediática do tráfico de seres humanos na imprensa escrita portuguesa .... 231

Dulce Couto / Carla Machado / Carla Martins / Rui Abrunhosa Gonçalves

REVISTAS RECEBIDAS ............................................................................................................... 251

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Análise Psicológica (2012), XXX (1-2): 3

Nota de Abertura: Número de Homenagem a Carla Machado

Através deste número especial, pretendemos homenagear Carla Machado, uma autora de referênciaincontornável na sua área de conhecimento, a Psicologia da Justiça. Fortemente empenhada com aciência nacional, a Carla marcou a agenda académica e científica dos últimos 20 anos e os seuscontributos permanecerão no trabalho de todos aqueles que se dedicam a esta área do saber. É da suaautoria um conjunto de publicações nacionais pioneiras no domínio da Vitimologia (“Novas formasde vitimação criminal”) e na Psicologia Forense (“Manual de Psicologia Forense”).

Este número oferece um retrato do seu percurso científico mais recente, da diversidade dosobjectos de que se ocupava e nos métodos em que se apoiava para “olhar” a realidade que tanto ainquietava, desde os métodos etnográficos aos quantitativos. Conferiu um olhar científico a realidadestão diferentes e complexas como a violência na intimidade, o abuso sexual ou o tráfico de sereshumanos. A Carla problematizou os discursos sociais e culturais sobre o crime e as vítimas, ajudoua desocultar realidades “antigas” (ex., violência sexual, stalking), inaugurou em Portugal novosdomínios de estudo (ex., violência de estado, crimes corporativos) e promoveu, ainda, a investigaçãoaplicada no domínio da psicologia forense e da psicoterapia com vítimas de crime. Não raras vezes,dedicou-se a esclarecer e a procurar respostas científicas para quem trabalha “no terreno”. Éigualmente notável o seu contributo ao nível da avaliação psicológica, traduzido num esforço deconstrução e validação de instrumentos numa área ainda tão deficitária como é a psicologia da justiça.Este número da Análise Psicológica reflecte todo o seu perfil enquanto profissional e investigadora:plural, inovadora, coerente e muito rigorosa. Constituíam, ainda, elementos característicos da suaidentidade científica a busca da excelência, a exigência, a sofisticação e a inventividade.

Outra qualidade admirável era o seu estímulo ao trabalho em equipa, que ela sabiamenteorquestrava e que este número também ilustra através dos inúmeros trabalhos em co-autoria.

Este número especial comporta um conjunto de trabalhos em que a Carla tanto investiu mas nãoteve oportunidade de terminar. Inscritos em teses de doutoramento ou em projectos institucionais, queorientou até ao fim, eram documentos em preparação, trabalhos desenvolvidos por ela e com ela,quando nos deixou.

Possuidora de múltiplos saberes e competências, os depoimentos de investigadores de renomeinternacional que quisemos também partilhar neste número, certificam que a Carla dava os primeirospassos numa trajectória internacional onde certamente viria a ocupar um lugar de destaque.

Autora de uma escrita científica elegante, a Carla ajudou a afirmar, de forma peremptória, o papelda psicologia da justiça junto da sociedade em geral.

Por tudo isto, encorajou e inspirou muitos dos que com ela trabalharam. Este número resulta poisda nossa imensa admiração e profunda gratidão que irão para sempre perdurar pela partilha de umtrajecto tão distinto que a amizade cimentou. Muito obrigada Carla!

MARLENE MATOS

RUI ABRUNHOSA GONÇALVES

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Análise Psicológica (2012), XXX (1-2): 5-6

Testemunhos Internacionais

CARLA MACHADO: AN APPRECIATION

In many ways I should make clear that I did not know Carla at all. We never actually met face toface. Yet her enthusiasm, commitment and joyfulness were as infectious electronically as I imaginethey were face to face.

She approached me by email during 2010 asking if I would come and ‘present’ to her graduatestudents and advise them on the work they were doing. For my part it was an unexpected invitationand whilst it took us a little time to agree date, I subsequently visited the University of Minho in January2011. Carla and I communicated regularly in preparation for my visit, learning a little about each otherand focusing on the work that was developing at Minho. My visit was a delightful affair only marredby the fact that Carla was unwell. However, to make amends, she sent me her photograph (which I stillhave). It was apparent that she had worked hard with her students to ensure that both they and I goas much out of my short time with them as possible. For me, this was further of her commitment to thesearch for excellence both for her students and her own work despite not being well.

I learned much about Carla from that visit. She was clearly loved by her colleagues and studentsalike. However, in addition to being a very warm and caring human being she also had a formidableintellect; evidenced by the sophistication of her student’s presentations but also in her own publishedwork. Unfortunately she and I were never afforded the opportunity to explore how our differingacademic agendas might have borne fruit in the development of collaborative work and my personalsadness about this is profound.

Yet I ‘know’ Carla would not want sadness from me but celebration. It is in that spirit that Icommend this special journal edition as a mark of serious and joyful respect for all she achieved asa scholar, teacher, and friend.

SANDRA WALKLATE

Eleanor Rathbone Chair of Sociology, University of Liverpool, U.K.

Autora do Handbook of Victims and Victimology (2007), Willian Publishing

CARLA MACHADO: A TESTIMONY

In the brief time that I liaised and worked with Carla, I was very impressed by her commitment andher energy, not only towards her students but also in relation to wide-ranging social issues andacademic research. Carla was a true inspiration to me as I witnessed the enthusiasm that she generatedin others. I was also impressed by Carla’s commitment to research in relation to issues of social justice– white collar crime, victimisation, terrorism and so forth. Carla’s death is a great loss to many.

BASIA SPALEK

Reader in Communities & Justice, School of Social Policy, University of Birmingham

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CARLA MACHADO: TESTIMONIO

Desafortunadamente no llegué a conocer a Carla en su faceta personal más que ligeramente. Sinembargo, su cara científica y académica me resulta muy familiar. Aún tengo en mi retina la imagenmental de la primera vez que la vi en persona. Estaba en su despacho, se la veía inquieta, ávida detrabajar, de dar todo de sí misma. Posteriormente, pude observar cómo ese espíritu era una seña deidentidad. Era feliz como científica y, por lo que pude intuir, como académica. En suma, ha vividouna vida profesional plenamente feliz. Ahora cuando ya no está físicamente con nosotros, vuelvo lamemoria atrás y veo que ha dejado una huella indeleble de memoria científica y académica. Sucuerpo nos ha dejado, pero su huella no. Vive en nuestra huella de memoria, en sus aportaciones ala ciencia y academia. Gracias Carla por haber vivido, por lo que nos ha dejado. Velaremos poravivar la huella que nos has legado.

RAMÓN ARCE

Catedrático de Psicología Forense, Universidad de Santiago de Compostela

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Análise Psicológica (2012), XXX (1-2): 7-13

A Psicologia da Justiça em Portugal: Uma viagem partilhada com Carla Machado

Rui Abrunhosa Gonçalves*

*Escola de Psicologia da Universidade do Minho

Este texto reflecte o envolvimento de Carla Machado em três áreas distintas de investigação dentroda Psicologia da Justiça em Portugal, correspondentes a diferentes etapas do seu percurso enquantoinvestigadora: a Psicologia do Comportamento Desviante, a Criminologia/Vitimologia e a PsicologiaForense. Deste modo, procura-se ilustrar o enorme contributo dado por esta investigadora em temasfundamentais relacionados com a insegurança e o medo do crime, a violência nas relações íntimas ea avaliação psicológica forense, entre outros.

Palavras-chave: Criminologia/Vitimologia, Psicologia do Comportamento Desviante, PsicologiaForense, Psicologia da Justiça.

Em dois textos recentes (e.g., Gonçalves, 2010; Gonçalves & Machado, 2011) consubstanciámosos principais avanços da Psicologia da Justiça em Portugal sem esquecer alguns contributoshistóricos, mais remotos e mais recentes, que permitem hoje dizer que se trata de um campo de saberde indiscutível pujança e afirmação científica entre nós. Esta relevância actual apoia-se num conjuntode nomes e respectivas publicações que surgem como marcas indeléveis da evolução de um domínioque ainda há 25 anos atrás não era mais que uma miragem no horizonte científico português.

Em 1996 definimos a Psicologia da Justiça como a aplicação da psicologia nos vários camposque a justiça lhe franqueia (e.g., Gonçalves, 1996) pelo que a partir desta concepção alargada épossível encontrar referências ao trabalho dos psicólogos em áreas tão distintas como a justiça demenores (cível e penal), a vitimologia, a psicologia forense, a psicologia criminal, a psicologiapenitenciária e a criminologia em geral, entre outras. Os contributos de Carla Machado para aPsicologia da Justiça são mais evidentes nos âmbitos da Vitimologia e da Psicologia Forense, comalgumas incursões pela Criminologia. O presente texto pretende ilustrar essa contribuição e nãosendo uma análise profunda e exaustiva do seu pensamento científico ensaia, ainda assim, ahomenagem possível de quem com ela partilhou alguns desses contributos e a saudade do muitoque ainda haveria para partilhar, no trabalho e na vida quotidiana1.

PSICOLOGIA DO COMPORTAMENTO DESVIANTE

Os anos oitenta do século passado marcaram uma profunda viragem nos contributos nacionaisda Psicologia para os contextos de Justiça, sendo de realçar que este movimento foi feito nos dois

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A correspondência relativa a este artigo deverá ser enviada para: Rui Abrunhosa Gonçalves, Escola dePsicologia, Campus de Gualtar, 4710-Braga. E-mail: [email protected] Por tudo isto, as referências bibliográficas apresentadas apenas constituem um mero indicador daquilo que

constitui a produção científica de Carla Machado, procurando-se apenas que as mesmas reflictam os seuscontributos no âmbito das temáticas consideradas.

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sentidos, isto é, a Psicologia procurou a Justiça mas esta também foi ao encontro daquela. Nocontexto académico, por impulso do Prof. Cândido da Agra, assiste-se à institucionalização noquadro da Licenciatura em Psicologia da Universidade do Porto, de uma área de formação pré-graduada e pós-graduada denominada “Psicologia do Comportamento Desviante” em que a tónicaé claramente colocada sobre os fenómenos da anti-socialidade em geral e da toxicodependênciaem particular (cf., Agra, 1986). Foi nesse “caldo de cultura” que se iniciou a formação académicade Carla Machado que culminaria com a defesa da sua tese de doutoramento sobre a temática dainsegurança e do medo do crime (e.g., Machado, 2004)2. Este objecto de estudo, emborainicialmente relevante para a investigadora, cedeu entretanto passo a outros, como adianteveremos. Contudo, não deixou de representar um dos seus gostos peculiares de investigaçãoretomado aliás em texto recente (e.g., Machado & Manita, 2009).

Um percurso de investigador científico, sobretudo num domínio aplicado da ciência psicológicacomo é o da Psicologia da Justiça, beneficia claramente de um contacto directo com os objectosde estudo. Assim, é muito pouco provável que se possa discorrer ou teorizar sobre delinquentesou vítimas de crimes, sem ter um contacto frequente com os mesmos. Talvez também por isso,Carla Machado nunca foi unicamente uma académica, sendo que só abraçou em pleno essa carreiradepois de ter sido durante alguns anos – logo após a licenciatura concluída em 1990 – Técnica noentão Instituto de Reinserção Social. E é na entrada para a carreira académica na Universidade doMinho, em meados dos anos noventa, que se vão cruzar anteriores experiências profissionais comnovos pólos de interesses de investigação3.

CRIMINOLOGIA E VITIMOLOGIA

No início dos anos noventa e novamente pela mão do Prof. Cândido da Agra, surge a primeiraPós-Graduação em Criminologia na Faculdade de Psicologia do Porto (e.g., Agra, 1992) que setransforma no embrião que irá vingar mais tarde na Faculdade de Direito da mesma Universidade,mas já travestida de licenciatura. Também nesta etapa, Carla Machado produz um trabalho dereflexão teórica sobre o conceito de perigosidade (e.g., Machado, 1994a). Em boa verdade, o sabercriminológico sempre será objecto das suas preocupações, quer como pano de fundo para oenquadramento teórico geral de algumas das suas investigações (e.g., Machado, 2004; Machado& Gonçalves, 2003c) quer enquanto interesse na área da docência académica, nomeadamente emdisciplinas que versam conteúdos directamente ligados às teorias criminológicas ou à Vitimologia,que, de alguma forma, representa uma área de saber que se autonomizou progressivamente daCriminologia4 (e.g., Machado & Gonçalves, 2003c).

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2 Esta referência corresponde ao livro editado em 2004 que é um sucedâneo da tese de doutoramento defendidaanos antes na Universidade do Minho (e.g., Machado, 2000).

3 Esta circunstância constitui, aliás, um dos primeiros pontos de união entre o meu percurso profissional e o deCarla Machado já que, tal como ela, eu também me “iniciei” na temática da violência e da justiça num contextoprático – como Técnico nos Serviços Prisionais – que, ao cabo de alguns anos, abandonei para integrar a vidaacadémica.

4 Enquanto docente na Universidade do Minho, Carla Machado assegurou as disciplinas de “Vitimologia” e de“Psicossociologia do Crime I e II”, a par de outras constantes dos actuais ou anteriores planos curriculares daLicenciatura em Psicologia, Mestrado em Psicologia da Justiça, Mestrado Integrado em Psicologia e Cursode Doutoramento em Psicologia da Justiça.

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De facto, será na Vitimologia que centrará os seus principais esforços, quer na candidatura bemsucedida a projectos de investigação nacionais5 e mesmo na parceria em projectos internacionais,quer na orientação de teses de mestrado e doutoramento. Em ambos os casos, é visível uma extensaprodução científica, aliás materializada nalguns dos artigos constantes deste número temático, masque começou desde logo na investigação sobre a violência doméstica em parceria com MarleneMatos (e.g., Machado & Matos, 2001; Matos & Machado, 1997, 1999). Será todavia imprescindíveldestacar os livros “Violência e Vítimas de Crimes, volumes I e II”, que foram objecto de mais doque uma edição (e.g., Machado & Gonçalves, 2002a,b, 2003a,b, 2008)6 e, sobretudo, as obras maisrecentes editadas já com a chancela da Psiquilíbrios (e.g., Machado, 2010a,b). Tais obras constituemmarcos incontornáveis dos estudos vitimológicos nacionais, as primeiras porque reúnem textos dosprincipais autores nacionais neste domínio do saber, funcionando assim como porta de entrada parao estudo desta ciência entre nós e as segundas porque já reflectem o empenho daautora/coordenadora na reflexão sobre novas realidades dentro da Vitimologia ou apresentam dadosconsolidados do seu estudo em Portugal, contemplando actores e contextos distintos. De facto, enão obstante o desenvolvimento científico que se verificou neste domínio a partir do começo dosanos noventa, inicialmente cingido aos inquéritos de vitimação a nível nacional (e.g., Almeida,1993; Almeida & Alão, 1995) ou local (e.g., Carvalho, 1991) e mais tarde expandido para outrasobjectos de estudo mais específicos (e.g., violência conjugal, abuso sexual infantil, maus tratosinfantis,...), era imperioso produzir e compilar entre nós reflexão teórica robusta, semelhante à quejá existia noutros países. E nesse sentido, as obras acima referidas (e.g., Machado, 2010a,b;Machado & Gonçalves, 2002a,b, 2003a,b, 2008) cumprem esse destino.

O percurso de Carla Machado no domínio da Vitimologia segue assim a evolução e as contra -dições da própria disciplina (e.g., Goodey, 2005), deslocando o foco da vitimação criminal paraum conjunto mais alargado de situações lesivas dos direitos humanos ou ainda “abandonando” oobjecto mais tradicional da vitimação dos sujeitos individuais (e.g., a criança maltratada, a mulherbatida), para se alargar às preocupações com os fenómenos de vitimação colectiva (e.g., terrorismo,genocídio, violência institucional e de Estado). Os livros que acabámos de referenciar são a provainequívoca dessa capacidade de transcendência científica que Carla Machado sempre revelou.

PSICOLOGIA FORENSE

A Psicologia Forense tem como objecto a avaliação de sujeitos directamente envolvidos emprocessos judiciais, sejam eles do foro cível ou penal, sobretudo em fases pré-sentenciais,funcionando como elemento de ajuda à tomada de decisão judicial. Neste sentido, o seu objectoesgota-se no campo da sua aplicação. Dito de outro modo, a Psicologia Forense responde aproblemas práticos suscitados por entidades (e.g., polícias, tribunais, comissões de protecção decrianças e jovens) ou por sujeitos particulares, e consubstancia-se em aplicações e produtosconcretos (e.g., avaliações, depoimentos, pareceres, relatórios). Não obstante, ela necessita ebeneficia dos desenvolvimentos operados em vários quadrantes da Psicologia (e.g., Avaliação

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5 No âmbito dos financiamentos concedidos pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, Carla Machado obteveuma série de projectos aprovados: “Enquadramento cultural da violência contra mulheres e crianças”(POCTI/PSI/37770/2001); “Violência nas relações juvenis de intimidade” (PTDC/PSI/65852/2006);“Vitimação múltipla de mulheres socialmente excluídas: intersecção de significados e trajectórias para amudança” (PTDC/PSI-APL/113885/2009).

6 O desaparecimento da Editora Quarteto em 2009 fez com que estas obras sejam hoje de difícil acesso, paraalém de impossibilitar legalmente a sua reprodução, enquanto tal.

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Psicológica, Psicopatologia, Psicologia do Desenvolvimento,...) no sentido de optimizar os seusprocedimentos em ordem à produção de resultados mais robustos.

Como tivemos oportunidade de referir detalhadamente em dois textos recentes (e.g., Gonçalves,2010; Gonçalves & Machado, 2011), a Psicologia Forense é um dos domínios que mais se temexpandido em Portugal e que mais visibilidade tem dado aos psicólogos nacionais. E, sem dúvida,que foi este o domínio em que mais trabalhei em conjunto com Carla Machado. De um lado, noarranque e consolidação da Unidade de Consulta de Psicologia da Justiça da Universidade do Minhoque, desde 1998, se tem dedicado de forma consistente à avaliação pericial forense e à intervençãosobre vítimas e agressores (e.g., Caridade, Machado, & Gonçalves, 2006). Do outro, na sistema -tização de protocolos de avaliação forense, bem como na reflexão sobre o papel do psicólogo emtribunal e as questões técnicas e éticas que devem nortear o trabalho do perito de psicologia forense(e.g., Gonçalves & Machado, 2005; Machado et al., 1994; Matos, Gonçalves, & Machado, 2011).

Adicionalmente, deve-se a Carla Machado, a preocupação em desenvolver e validarinstrumentos específicos de avaliação forense de vítimas de violência familiar e conjugal (e.g.,Machado, Gonçalves, & Matos, 2000a,b; Machado, Gonçalves, & Matos, 2008; Machado, Matos,& Gonçalves, 2008; Martins & Machado, 2008), que hoje constituem marcos incontornáveis daprática pericial dos psicólogos forenses nacionais. Ainda na mesma linha de reflexão e teorizaçãosobre a prática pericial forense, podemos encontrar vários textos que reflectem o seu pensamentoesclarecido, desde sempre, sobre estas temáticas (e.g., Machado, 1993, 2005, 2006).

De facto, se há área em que Carla Machado investiu profundamente foi a da avaliação psicológicae especificamente a da avaliação psicológica forense. Já num dos seus primeiros escritos, aindaenquanto técnica do Instituto de Reinserção Social, essa preocupação está presente (e.g., Machado,1994b). Também data dessa altura a sua participação num grupo de trabalho da então Associaçãodos Psicólogos Portugueses envolvido na produção de um protótipo de um código ético edeontológico para os psicólogos ligados aos contextos jurídico-penais (e.g., Machado et al., 1994).

Numa outra vertente mais geral, destaca-se a sua participação na organização de várioscongressos de avaliação psicológica7 e em obras colectivas sobre os instrumentos de avaliaçãopsicológica entretanto aferidos, adaptados ou especificamente produzidos em contexto nacional8,para além daqueles que concebeu no contexto dos vários projectos de investigação que conduziu(e.g., Machado, Gonçalves, & Matos, 2000a,b, 2008; Machado, Matos, & Gonçalves, 2008;Martins & Machado, 2008). Por tudo isto, é muito difícil encontrar hoje, em Portugal, um trabalhocientífico na área da psicologia forense, sobretudo quando envolve procedimentos de avaliação devítimas, que não cite contributos teóricos ou de investigação autorados por Carla Machado.

CONCLUSÃO

Este texto evocativo de uma viagem partilhada pela Psicologia da Justiça não devia terminaraqui. Ou então só deveria ser escrito daqui a muitos anos. Ou mesmo nunca ser escrito. Deviacontinuar por tudo aquilo que dele se adivinha. De facto, em 2010 e já em 2011, Carla Machado

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7 Referimo-nos à série de congressos “Avaliação psicológica – Formas e contextos”, iniciados em 1993 sob abatuta de Leandro Almeida e onde Carla Machado participou activamente na respectiva organização, sobretudoa partir da edição de 1995.

8 Os primeiros livros desta série foram editados pela Editora Quarteto sendo que o último, em que CarlaMachado é a primeira autora, surge já sob a chancela da Editora Almedina (e.g., Machado, Gonçalves,Almeida, & Simões, 2011).

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foi (co)autora de quatro livros (e.g., Machado, 2010a,b; Machado et al., 2011; Matos, Gonçalves,& Machado, 2011). Desenhava igualmente um perfil de colaborações internacionais em áreaspouco exploradas por investigadores nacionais da Psicologia, como a violência de estado, aviolência institucional, o tráfico de seres humanos ou o terrorismo (e.g., Machado, 2010a;Machado, Matos, & Barbosa, 2009) como, aliás, fica patente em algumas contribuições destenúmero especial. E também dera o seu contributo num projecto relacionado com a criminalidadefeminina (e.g., Matos & Machado, 2007) de onde ainda se esperavam algumas publicaçõesconjuntas. Continuava a perseguir “paixões antigas” como a violência sexual nas relações íntimas(e.g., Caridade & Machado, 2011) ou as questões culturais em torno da violência (e.g., Barbeiro& Machado, 2011). Estava, portanto, tudo em aberto para esta investigadora extraordinária daPsicologia da Justiça. E talvez por isso me pareça tão adequado reproduzir aqui excertos do poema“Saudação a Walt Whitman” de Álvaro de Campos:

...Abram-me todas as janelas!Arranquem-me todas as portas!Puxem a casa toda para cima de mim!Quero viver em liberdade no ar,Quero ter gestos fora do meu corpo,Quero correr como a chuva pelas paredes abaixo,Não quero fechos nas portas!Não quero fechaduras nos cofres!Quero intercalar-me, imiscuir-me, ser levado,Só para não estar sempre aqui sentado e quieto...

“Sentada e quieta” foi algo que nunca fez parte da natureza de Carla Machado. Ainda bem paraa Psicologia da Justiça portuguesa. Ainda bem para todos aqueles que, no futuro, queiram dedicar--se a esta área do saber psicológico. Para aprender com o seu exemplo de rigor, competência ededicação. Ainda bem, para mim.

REFERÊNCIAS

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This paper reflects the contributions of Carla Machado as a researcher in three different areas ofPsychology and Law in Portugal: Psychology of Deviant Behaviour, Criminology/Victimology andForensic Psychology. In this sense, attention is given to her seminal work in fundamental issues suchas insecurity and fear of crime, intimate partnership violence and forensic psychological evaluation,among others.

Key-words: Criminology/Victimology, Forensic Psychology, Psychology and Law, Psychology ofDeviant Behaviour.

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Análise Psicológica (2012), XXX (1-2): 15-32

A Psicologia Forense em Portugal – novos rumos na consolidação da relação

com o sistema de justiça

Celina Manita* / Carla Machado**

**FPCE, Universidade do Porto; **Escola de Psicologia da Universidade do Minho

Neste artigo refletimos sobre os mais recentes desenvolvimentos da psicologia forense em Portugal,numa das mais importantes áreas de interface entre a psicologia e o sistema de justiça – a avaliaçãopsicológica forense e o contributo da psicologia para a tomada de decisão judicial. Ao mesmo tempoque se faz um levantamento dos principais contributos do trabalho de Carla Machado para esta área,são apontados caminhos a percorrer na consolidação da relação entre a psicologia e o direito.

Palavras-chave: Abuso sexual de crianças, Avaliação Psicológica Forense, Psicologia Forense, Regula -ção do exercício das responsabilidades parentais, Testemunho da criança, Tomada de decisão judicial.

“É curioso, mas viver consiste em construir memórias futuras.”Ernesto Sabato, em El Túnel

Permitam-me que inicie, de forma aparentemente paradoxal, um texto em co-autoria com umaintrodução na primeira pessoa e um texto de carácter científico com uma citação literária. Paramim, as co-autorias são momentos privilegiados de construção partilhada. Partilha do que foidebatido, analisado, pensado, planificado, realizado a duas ou mais mãos, partilha do que apenasfoi antecipado em conjunto, partilha do que foi um dia a construção de uma memória futura.Partilha de conhecimentos, mas também de afectos.

Tive, felizmente, ao longo de 26 anos, a oportunidade de realizar inúmeras co-autorias com aCarla Machado, quer as que ficaram escritas ou foram tornadas públicas no quadro de projectosde investigação e que, por isso, podem ser lidas, analisadas e apropriadas por qualquerleitor/observador dos nossos trabalhos conjuntos, quer as que não foram registadas em papel ouem qualquer outro suporte, mas foram sendo entusiasticamente construídas ao longo de anos departilha, de reflexão conjunta, de análise e discussão aprofundada dos mais variados temas, decontraponto de opiniões, de sugestões recíprocas, de profundo respeito pelas nossas diferençaspessoais e, acima de tudo, de uma especial e inabalável amizade. Subjacente a estes diálogosconstantes, uma elevada sintonia de pensamento e de visão da sociedade e da acção humana e demuitos dos seus fenómenos, designadamente dos fenómenos relacionados com o crime, a violênciae a vitimação e, genericamente, com a área da psicologia forense.

Por tudo isto, o desafio de escrever este texto com a Carla parecia, à partida, uma tarefa fácil.Ambas reflectimos e escrevemos várias vezes sobre a evolução da psicologia forense em Portugal

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A correspondência relativa a este artigo deverá ser enviada para: Celina Manita, Faculdade de Psicologia e deCiências da Educação da Universidade do Porto. Rua Alfredo Allen. 4200-135 Porto. E-mail: [email protected]

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e os seus novos rumos e desafios, ambas investigamos e intervimos nesta área há já muitos anos,ambas participamos activamente na construção dos diálogos actualmente existentes entrepsicólogos e os diferentes actores judiciais nacionais, ambas procuramos regularmente opiniõese sugestões uma da outra em diferentes fases do nosso envolvimento neste percurso. Rapidamentepercebi, porém, que, sendo as co-autorias especiais momentos de crescimento conjunto, de criaçãoe complexificação do pensamento, elas se tornam também dolorosos momentos deconsciencialização da insustentável falta, do irremediável vazio, quando foram iniciadas eactivamente prolongadas no tempo a duas vozes e, de repente, se vêem concluídas apenas a umamão, ainda que a traduzir ecos internos vivos de diálogos outrora, e ainda agora, mantidos.

Este texto, feito com a Carla, não poderia, por isso, deixar de ser também um texto sobre epara a Carla, não só pelas partilhas continuadas, mas porque não é possível escrever sobre aevolução da psicologia forense em Portugal, as suas práticas e quadros teóricos, as suaspotencialidades e limitações, os seus obstáculos e desafios, sem citar a vasta obra que CarlaMachado produziu nas últimas duas décadas, sem destacar o contributo fundamental eincontornável que deu para o desenvolvimento desta área no nosso país (e.g., Gonçalves &Machado, 2005, 2011; Machado, 1993, 1994b, 2005a,b, 2006; Machado & Gonçalves, 2002a,b,2005a,b, 2008; Matos, Gonçalves, & Machado, 2011). Não exageraríamos sequer se disséssemosque tudo o que é feito, hoje em dia, nesta área, em Portugal, é directa ou indirectamente afectadopelo seu pensamento e acção, recorre aos seus produtos teóricos e empíricos, aplica osinstrumentos que nos legou, segue as reflexões e alertas que nos deixou.

Na sua extensa produção científica e na sua diversificada e produtiva intervenção, a CarlaMachado teve oportunidade de abordar todas as questões centrais da psicologia forense, sejam astransformações históricas e epistemológicas que esta sofreu, sejam as análises conceptuaisindispensáveis neste domínio, sejam questões relacionadas com as potencialidades, desafios elimitações da psicologia forense e com as comunicações e descomunicações entre a psicologia eo direito (Gonçalves & Machado, 2005, 2011; Machado, 1993, 1994a, 2005a, 2006, no prelo;Machado & Gonçalves, 2005a,b), sejam elaborações em torno das teorias ou quadros teóricos,práticas, metodologias e instrumentos que suportam e enformam a prática do psicólogo forense e,em particular, a prática pericial (Gonçalves & Machado, 2005; Machado, 2005a,b; Machado &Gonçalves, 2005a; Matos, Gonçalves, & Machado, 2011), sejam as questões conexas davitimologia e da criminologia, a compreensão das dinâmicas da vitimação, a vitimação primáriae secundária, a protecção das vítimas mais vulneráveis no contacto com o sistema de justiça(Machado, 1996, 2004b, 2005c, 2010a,b; Machado & Gonçalves, 1999; Machado & Gonçalves,2002a,b; Machado & Matos, 2001; Machado, Gonçalves, Matos, & Dias, 2007). Trabalhou,também, a forma com os actores judiciais concebem a vitimação e a vítima, concebem o ofensor,concebem a dinâmica relacional entre ambos, concebem a psicologia, concebem a práticapsicológica forense e o seu contributo para a realização da justiça e tinha iniciado, recentemente,uma colaboração com Manita e Matos num estudo de largo espectro sobre a tomada de decisãojudicial e o papel das perícias, do testemunho do psicólogo e das variáveis psicológicas, entreoutras variáveis extra-judiciais, na tomada de decisão, sobre o qual nos iremos debruçar um poucomais neste artigo. Por fim, e provavelmente uma das vertentes mais conhecidas e utilizadas da suaprodução, reflectiu sobre as grelhas e metodologias de avaliação e produziu, individualmente e emcolaboração com outros investigadores, protocolos e instrumentos de avaliação psicológica forenseamplamente utilizados no nosso país, designadamente no que diz respeito à avaliação da violênciadoméstica, dos maus tratos a crianças e da violência sexual (e.g., Caridade, Machado, &Gonçalves, 2006; Machado, 2005b; Machado & Gonçalves, 2005a; Machado, Gonçalves, &Matos, 2000a,b, 2008a,b; Matos, Gonçalves, & Machado, 2011).

Já em fases anteriores do seu percurso científico a Carla se preocupara com a forma como ocrime é representado em Portugal, as relações entre o consumo de drogas e a violência e o crime,

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o sentimento de insegurança e o medo que gera e a forma como isso condiciona a relação doscidadãos com a justiça (e.g., Machado, 2004a; Machado & Manita, 1991, 1997, 2000, 2009;Manita & Machado, 1999). Da mesma forma, estudou dimensões menos conhecidas da violênciae da vitimação e suas relações com o género, a política e a justiça, como a violência de estado, aviolência estrutural, as invisibilidades das violências perpetradas nas relações íntimas entre pessoasdo mesmo sexo ou a violência perpetrada pelas mulheres (e.g., Barbosa, Machado, Matos, &Barbeiro, no prelo; Dias & Machado, 2008, no prelo; Machado, 2010a,b; Machado, Dias, &Coelho, 2010; Machado, Matos, & Barbosa, 2009; Sousela, Machado, & Manita, 2007).

Não haveria, portanto, espaço num único artigo para retomar todas as questões relativas àpsicologia forense que por nós foram abordadas noutros contextos. Por isso, a opção aqui será ade, mais do que definir e analisar as evoluções, potencialidades e dificuldades da psicologia forenseno nosso país, temática já abordada em textos anteriores e que aqui iremos apenas aflorar, apontarum dos caminhos que pensamos ser fundamental para a promoção de um diálogo mais eficaz e paraa consolidação das relações entre a psicologia e o sistema de justiça nos próximos anos: ocontributo da psicologia para a tomada de decisão judicial e para a prevenção da vitimaçãosecundária de testemunhas particularmente vulneráveis, em particular, das crianças.

DEFINIÇÕES E CAMPO DE ACÇÃO DA PSICOLOGIA FORENSE: REDUZIDOS CONSENSOS

A definição de psicologia forense e a sua distinção de áreas afins, como a psicologia da justiça,a psicologia jurídica, a psicologia legal, a psicologia criminal ou a psicologia do comportamentodesviante, entre outras, não é simples nem consensual. Para alguns autores a psicologia docomportamento desviante será o conceito mais abrangente de todos, pois está para além dasdimensões criminais ou judiciais, embora as englobe também. Este é um construto que traduzuma vasta gama de teorias e práticas centradas em objectos que partilham entre si uma dada formade desvio: desvio da norma legal, da norma social, desvio dos padrões culturais, desviodesenvolvimental, etc., podendo este desvio ser patológico ou normativo, anterógrado ouretrógrado, criminal e não criminal (aqui se integrando fenómenos como os do crime e dadelinquência juvenil, antissocialidade, subculturas juvenis, sentimento de insegurança, abuso dedrogas e álcool, relações entre crime e droga, prostituição, entre muitos outros, mas também apobreza e a exclusão social, a marginalidade, o estigma, ou até certos tipos de doença mental oude deficiências). Não sendo, contudo, tão especificamente orientado para o interface psicologia--justiça, acaba por ser preterido pela maior parte dos autores que intervêm ou investigam nestedomínio e que preferem designações como as de psicologia da justiça, legal, forense ou criminal.

Elas não são, contudo, equivalentes entre si. De entre estas, a psicologia da justiça será, para amaioria dos autores, a área disciplinar mais ampla, na medida em que englobará todo o conjuntode saberes oriundos da psicologia aplicados à compreensão, avaliação ou intervenção nos diversosfenómenos definidos pela aplicação da Justiça. Esta definição de psicologia da justiça aproxima-ado que outros autores, designadamente os de origem francófona, consideram ser a psicologia legal– conceito que incluiria todos os potenciais domínios de trabalho que ocorrem no interface entrea psicologia e a lei (Ogloff & Finkelman, 1999; Viaux, 2003) – ou a psicologia jurídica, enquantoárea da psicologia aplicada que fornece contributos para um melhor exercício do Direito (Arce,2005), concepção usada sobretudo em países de língua espanhola.

Por sua vez, a psicologia forense, embora encontre em alguns autores uma definição de maisamplo espectro – como Viaux (2003) que considera que o objecto da psicologia forense são todasas circunstâncias que ligam o sujeito e a lei –, é definida pela maioria dos autores como uma

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subdisciplina da psicologia da justiça que se ocupa da aplicação do conhecimento psicológico aoserviço da tomada de decisão judicial, sendo, nisso, fundamentalmente, uma actividade pericial(Blackburn, 2006; Gonçalves, 1996, 2010; Gonçalves & Machado, 2005, 2011). Ou, nas palavrasde Haward (1981), é um ramo da psicologia aplicada que diz respeito à recolha, exame eapresentação da prova para fins judiciais e, nesse sentido, é sempre uma aplicação a um caso legalespecífico.

Já a psicologia criminal parece ser mais fácil de definir e delimitar, dada a sua centração noestudo do crime e do criminoso, suas causas, dinâmicas, processos e consequências, modalidadesde prevenção e intervenção. Ao contrário da psicologia forense, que alarga o seu raio de acção aquestões do direito civil, familiar, laboral, etc, a psicologia criminal apenas abarca as questõesdirectamente relacionadas com fenómenos criminais (Hollin, 1989).

A área de intervenção do psicólogo forense abarca, portanto, domínios tão variados como os daavaliação forense de vítimas e arguidos em processos crime, de pais e filhos envolvidos emprocessos de regulação do exercício das responsabilidades parentais ou de adopção, na avaliaçãodo dano pós-traumático, na avaliação no âmbito da promoção e protecção de crianças e no âmbitotutelar educativo, entre outros; assim como a psicologia do testemunho, a investigação policial, oacompanhamento de testemunhas particularmente vulneráveis em tribunal, o apoio a decisõesrelacionadas com a reinserção social, a execução de penas, entre outros.

O que encontramos é, no fundo, uma terminologia variada usada para definir uma ampla área deinterfaces entre a Psicologia e o Direito/Justiça, não sendo nosso objectivo neste texto discutir quala terminologia mais correcta, mas sim, analisar alguns dos seus domínios de interface e apontarcaminhos de consolidação da relação entre a psicologia e o direito e, mais globalmente, entre apsicologia e o sistema de justiça. Uma relação que, no nosso país, depois de ultrapassadas diversasdificuldades e resistências, conhece, actualmente, um franco desenvolvimento, com melhoriassignificativas ao nível da formação, da investigação e das práticas aplicadas em contexto judicial.

PARA SUPERAR AS DESCOMUNICAÇÕES ENTRE PSICOLOGIA E DIREITO

Desde os finais do século XIX que os saberes e práticas da psicologia se vêm cruzando com osdo direito e com diferentes problemas associados à administração da Justiça, a começar pelaavaliação da personalidade criminal e da perigosidade, evoluindo para a intervenção junto dedelinquentes e criminosos e a reinserção social, as questões relativas ao testemunho, memória,capacidade de testemunhar, credibilidade e veracidade do testemunho, o apoio à investigaçãocriminal, o apoio a vítimas, a compreensão das dimensões psicológicas que afectam a tomada dedecisão judicial, entre outros (Gonçalves & Machado, 2005, 2011; Machado, 1994a, 2005a,b;Manita, 1996, 1998, 1999, 2001).

Entre as duas Guerras Mundiais, a psicologia forense, como a psicologia aplicada em geral,experienciou uma quebra, só recuperando em meados dos anos 40 e 50, época em que os psicólogoscomeçam a ser aceites como peritos na avaliação do estado mental e na avaliação da competência eresponsabilidade criminal. Na década de 60 os psicólogos começam a ser chamados a pronunciar-se sobre a credibilidade das testemunhas e, já nos anos 70, a psicologia forense ganha maiorreconhecimento e estatuto, assistindo-se a um aumento da literatura e da formação nesta área,incluindo, hoje em dia, duas grandes áreas: o estudo de aspectos do comportamento humanodirectamente relacionados com o processo legal (e.g., memória e testemunho das testemunhas,tomada de decisão do juiz e dos júris, comportamento criminal) e a prática profissional do psicólogono sistema legal, sendo desenvolvidos diversos guias de boas práticas e de conduta ética nestecontexto.

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Apesar de se terem iniciado há mais de 100 anos, as inter-relações entre a Psicologia e o Direitonão estão ainda totalmente consolidadas. Os contributos da psicologia forense para o exercício dajustiça são reconhecidos, mas nem sempre adequadamente compreendidos ou integrados por este,existindo tensões e descomunicações que resultam de diferentes questões, entre as quais, o factode estas áreas do saber assentarem em pressupostos filosóficos e terem objectivos diferentes, asdiferentes concepções sobre a acção humana e sobre as causas do comportamento que possuem,as diferentes linguagens que usam, os diferentes métodos e teorias em que assentam ou com basenos quais intervêm, assim como a existência de concepções diferentes sobre o próprio conceito deLei (Manita, 1998; Rua, 2006).

Mesmo que persistam algumas dificuldades, a crescente procura da psicologia forense pelostribunais, indicia, pelo menos, que esta tem servido com alguma eficácia os interesses enecessidades do sistema de justiça. Esta inter-relação tem vindo a ser melhorada nos últimos anos,através do apelo mútuo à partilha de conhecimentos, nomeadamente, no contexto da investigaçãoe da formação dos profissionais de ambas as áreas.

Já em momentos anteriores analisamos as diferenças paradigmáticas e conceptuais entre aPsicologia e o Direito, designadamente ao nível da concepção de verdade e de causalidade, dalinguagem utilizada e da construção que cada disciplina faz do que é a “natureza humana”(Gonçalves & Machado, 2011; Machado, 1993, 2005a, 2006; Manita, 1998, 1999, 2001), peloque não iremos repeti-lo aqui. Salientaremos apenas o facto de o psicólogo forense actuar numcampo pleno de constrangimentos jurídicos e conceptuais, o que lhe limita a liberdade decisória,e, paralelamente, impõe a necessidade de melhorar as linguagens de interface entre as duas árease de aprofundar o conhecimento que os actores de cada uma têm da outra.

Uma das áreas em que se têm desenvolvido mais esforços nesse sentido é a da avaliação dotestemunho, muito associada à avaliação da veracidade e da simulação em contexto judicial e, emparticular, a da avaliação do testemunho de crianças vítimas de abuso sexual, tendo surgido, a estenível, diversas recomendações sobre a forma de melhor conduzir uma entrevista com uma criança,de forma a maximizar a informação recolhida e a minimizar a sugestionabilidade (e.g., Bull, 1994;Bull & Carson, 1999; Cashmore, 2002; Machado, 2005b).

Apesar de serem diversos os protocolos e metodologias usados e elevada a discordância entrediferentes investigadores, há alguns aspectos que recolhem já algum consenso, como referimosanteriormente, numa análise integradora e crítica dos consensos e controvérsias em matéria deavaliação psicológica forense do abuso sexual (Machado, 2005b, 2006, no prelo; Manita, 2003,2005), designadamente, no que diz respeito às dinâmicas e consequências do abuso sexual, aosindicadores de veracidade, aos indicadores comportamentais de mentira, aos factores que podemcontribuir para a produção de falsos testemunhos, à detecção da simulação através de instrumentosde avaliação psicológica.

Também a este nível começam a surgir já alguns resultados práticos da investigação desenvolvidano nosso país nos últimos anos, ao nível dos protocolos, metodologias e instrumentos de avaliaçãopsicológica (Fonseca, 2009; Fonseca, Simões, Simões, & Pinho, 2006; Gonçalves & Machado, 2005;Machado, 2005a,b; Machado & Gonçalves, 2005a; Machado, Gonçalves, & Matos, 2000a,b, 2008;Machado, Matos, & Gonçalves, 2008; Magalhães & Ribeiro, 2007; Peixoto, 2011; Peixoto, Ribeiro,& Lamb, 2011; Peixoto, Ribeiro, & Manita, 2008), assim como ao nível do desenvolvimento denovos procedimentos que protejam a criança durante a sua participação no processo judicial, comoacontece nas “declarações para memória futura” (Caridade, Ferreira, & Carmo, 2011).

A evolução do conhecimento nesta área permitiu, efectivamente, o aperfeiçoamento das técnicasde entrevista, assim como dos procedimentos judiciais envolvidos na recolha do testemunho dacriança. Para além do desenvolvimento de novos protocolos de entrevista e guias de boas práticas,já em curso, talvez seja de testar, num futuro breve, a utilização em Portugal de tecnologias deapoio ao testemunho da criança vítima, como acontece já no Brasil, com o recurso ao circuito de

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vídeo fechado nos tribunais que aderiram ao projecto do “depoimento sem dano” (Ratke, 2009) –procedimento que permite ao juiz analisar as interacções entre o entrevistador e a criança sem asujeitar a um testemunho presencial em sede de julgamento e a um eventual confronto com oabusador (Connolly, Price, & Read, 2006; Snow, Helm, & Martin, 2004; Vandervort, 2006). Deacordo com dados da pesquisa científica, a utilização desta metodologia diminui asugestionabilidade, facilita o testemunho e promove a recolha de informações com maiorqualidade. Contudo, parece existir uma desvalorização do valor probatório do testemunho quandorealizado nestas condições (Oliveira, 2011).

Em Portugal, ainda não se avançou para a utilização do circuito interno de vídeo, mas avançou-sejá significativamente no esforço de optimização do testemunho da criança em tribunal e dediminuição do risco de vitimação secundária que, em muitos casos, resulta de um incorrectocontacto com o contexto judicial e do subsequente desconforto e desequilíbrio emocional(Caridade, Ferreira, & Carmo, 2011). No entanto, a sua aplicação não permitiu ainda colmatartodas as falhas, designadamente, as que se relacionam com a realização de outras inquirições nodecurso do inquérito judicial, com o autor e os procedimentos de inquirição, com as característicasdo local onde se realiza a audição e com alguma indeterminação ao nível das funções dosintervenientes neste procedimento (Caridade, Ferreira, & Carmo, 2011; Oliveira, 2011; Peixoto,2011; Ribeiro, 2009). A psicologia forense terá, aqui, entendemos, um papel fundamental.

NOVOS RUMOS NA CONSOLIDAÇÃO DA RELAÇÃO COM O SISTEMA DE JUSTIÇA: CONTRIBUTOS DA PSICOLOGIA PARA A DECISÃO JUDICIAL

E PARA A PREVENÇÃO DA VITIMAÇÃO SECUNDÁRIA

Apesar de ser um dos assuntos mais trabalhados pela psicologia forense europeia e norte--americana, não é muita, nem recente, a literatura sobre o modo como se processa a tomada dedecisão judicial. Pensar que os juízes são decisores puramente racionais e que apenas decidemdepois de analisarem cuidadosamente todos os dados apurados durante o processo, é, no fundo,acreditar na “mitologia da tomada de decisão legal” (Kunin, Ebbesen, & Konecni, 1992), pois amente humana não reproduz a realidade com a qual contacta, produz interpretações sobre a mesma,com base nas suas experiências pessoais e culturais, no sistema de crenças e valores de cadamagistrado, da política, da religião, entre outros factores. Concordamos, por isso, com Drobak eNorth (2008) quando defendem que a tomada de decisão judicial não ocorre no “vazio”, derivando,antes, da conjugação de diversos factores (e.g., normas judiciais, leis constitucionais, ética,deontologia, política, educação, sociedade, características pessoais do juiz). Cada juiz possui a suafilosofia judicial que deriva da conjugação do sistema formal/normativo judicial com o seu sistemapessoal de crenças e percepções únicas sobre a realidade de cada processo que tem em mãos.

Fariña, Arce e Novo (2005) corroboram as conclusões acima mencionadas ao defenderem quea ancoragem1 é um factor determinante na tomada de decisão judicial. Além disso, os autoresmostram-se preocupados com indícios de que os juízes não estão conscientes das suas atitudespreconceituosas e dos seus comportamentos discriminatórios, sustentados por estereótipos de

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1 É um dos processos de formação das representações sociais. Através da classificação e interpretação doselementos da realidade social permite construir “uma rede de significações” sobre esses elementos que seráintegrada cognitivamente no sistema de pensamento pré-existente, transformando-o. I.e., a ancoragem gerea articulação entre três funções-base da representação, a saber, a função de orientação das condutas e dasrelações sociais, função de interpretação da realidade e função cognitiva de integração da novidade (Neto,1998).

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género, entre outros. Essa preocupação ganha particular relevo na sequência das investigaçõesdesenvolvidas no âmbito da sociologia que demonstraram que os juízes de ambos os sexos tendema recorrer aos sistemas de crenças e valores sobre a natureza e o papel socialmente atribuído àsmulheres e aos homens na esfera familiar e na sociedade (estereótipos de género) para proferir asua decisão (Salinas, 2003).

Outros estudos revelam que, perante um elevado número de informações, os decisores as usam“muito mais a partir do facto de elas serem conformes à sua filosofia do que em função da naturezadessas informações”. Estes tentarão encontrar, antes de mais, aquilo a que Simon chamou uma“solução satisfatória”, perante uma enorme diversidade de constrangimentos, “num contextocomplexo, em que múltiplas racionalidades individuais, de alguma maneira, fazem repercutir osefeitos das suas decisões sobre outras múltiplas racionalidades” (Pais, 2004, p. 92). Gigerenzer,Todd e The ABC Research Group (1999) reportam-se também ao conceito de “one-reason decisionmaking”, ou decisões fundadas em apenas um motivo que, segundo alguns autores, são maisfrequentes quando os Magistrados se debatem com a escassez de tempo (Parente, 2009; Parente& Manita, 2010).

Verifica-se, assim, que o processo de tomada de decisão judicial, além da análise factual e daaplicação da Lei e dos princípios legais, implica a interpretação e a aplicação subjectiva dessa Leie dos cânones do Direito, por seres humanos que, como qualquer outro decisor, não deixam de serafectadas por dimensões subjectivas, não só pessoais, sociais, culturais e contextuais, comoprocessuais. A tomada de decisão judicial, não é, portanto, um processo mecânico de aplicação dalei e, para ser mais adequado e justo, deve ser apoiado em procedimentos sistemáticos eestandardizados, nos conhecimentos científicos e nos dados da investigação sobre as dimensões“extra-judiciais” a valorar, assim como na individualização da avaliação dos casos e noconhecimento específico e detalhado da vítima (Alisson, Kebbel, & Lewis, 2006).

E, como defende Braman (2010), se o juiz tem a responsabilidade de tentar diminuir o erro natomada de decisão, as ciências sociais, em particular a Psicologia, têm a responsabilidade deestudar as características, dinâmicas e limitações da tomada de decisão legal e de ajudar osmagistrados a proceder a tomadas de decisão mais sustentadas. Uma das vertentes em que estacolaboração mais se tem vindo a desenvolver no nosso país é a da avaliação psicológica forensee do seu contributo para a decisão judicial.

No ordenamento judicial português, quando é tomada uma decisão judicial, tem de ser elaboradauma sentença/acórdão onde, resumidamente, “deve o tribunal procurar explicar qual a razão por queconsiderou provada uma dada factualidade com base em algumas das provas produzidas e nãonoutras, dando visibilidade e tornando pública a forma como, em concreto, valorou as provasproduzidas” (Latas, 2006, p. 89). Entre as provas que são analisadas e valoradas pelo julgador,estão as perícias psicológicas, cada vez mais solicitadas em diferentes situações, designadamenteem casos de abuso sexual de menores, regulação do exercício das responsabilidades parentais,algumas áreas criminais e processos de promoção e protecção. As perícias são, à luz do Código deProcesso Penal português, meios de prova cujo recurso se justifica quando, para a compreensão ouanálise dos factos, são necessários conhecimentos técnicos e científicos que o decisor não possua.

A valoração da perícia psicológica é, assim, parte integrante da acção do julgador, que, duranteo seu processo decisório vai ter de lhe atribuir um peso probatório maior ou menor, com base nosseus conhecimentos e convicções, mesmo que essa valoração possa exigir, na maior parte doscasos, conhecimentos científicos que transcendem a formação que é dada aos juízes. Os poucosestudos desenvolvidos no nosso país a este nível revelam, que, durante este processo de análise evaloração subjacente à tomada de decisão judicial, um mesmo relatório pericial pode conduzir adiferentes interpretações por parte de diferentes profissionais envolvidos no sistema judicial que,muitas vezes, não partilham uma linguagem comum. Pais (2004, p. 353), por exemplo, concluiuna sua investigação que “... apesar das repercussões dos relatórios nas decisões dos Juízes, parece

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que ela [a perícia] não é assumida (ou compreendida) por quem, de facto, intervém directamentena produção de um discurso acerca do sujeito criminoso”. Urge, portanto, o desenvolvimento degrelhas e linguagens de interface que permitam melhorar esta partilha e torná-la maiscompreensível para todas as partes envolvidas no processo judicial. Essa é uma das vias deinvestimento futuro, ao nível da formação e da investigação em Portugal.

Tendo em conta esta realidade e a sua complexidade, começaram a surgir, nos últimos anos, osprimeiros estudos nacionais sobre a tomada de decisão judicial e o contributo da psicologia e daactividade pericial psicológica forense e médico-legal para essa tomada de decisão judicial emdiferentes áreas do Direito (e.g., Braga & Matos, 2007; Carvalho, 2007; Castro, Martins, Machado,& Gonçalves, 2006; Faria, 2010; Henriques & Pais, 2006; Machado, 2008; Oliveira, 2011; Pais,2004; Parente, 2009; Parente & Manita, 2010; Ribeiro, 2008; Sacau, Jòlluskin, Sani, Rodrigues,& Gonçalves, 2009; Silva, 2008), com destaque para os trabalhos já desenvolvidos naUniversidade do Porto e na Universidade do Minho e para o projecto de largo espectro que estáem curso, actualmente, sob orientação de Celina Manita e Marlene Matos, na definição inicial doqual teve um importante contributo a Carla Machado.

No panorama internacional existem já inúmeras publicações científicas sobre as influênciasjudiciais e extra-judiciais no processo de tomada de decisão. A compreensão de cada uma destasinfluências implica um aprofundamento do estudo das características do julgador, da vítima e doofensor, das características do crime, das perícias forenses e perícias médico-legais e dascaracterísticas do contexto em que são tomadas estas decisões. Por exemplo, Wright (1995),examinando sentenças produzidas em casos de abuso sexual de menores, através do recurso ametodologias quantitativas e qualitativas, demonstrou que a interpretação da lei está dependente deconstruções sociais em torno do abuso sexual de menores existentes na mente dos decisores judiciais.

Os dados desta investigação são reforçados pelos de outras, por exemplo, vários autoresconcluíram que a idade da vítima influencia o julgamento porque as pessoas têm maiorprobabilidade de acreditar em crianças mais novas do que nos testemunhos de crianças maisvelhas, tal como confiam mais em crianças com deficiência mental do que em crianças com umainteligência média, porque as primeiras são consideradas mais verdadeiras e honestas e, ao mesmotempo, como não tendo a competência cognitiva necessária para elaborar ou sustentar falsasacusações. Os autores referem, também, a existência de diferenças em função do sexo do juiz,designadamente no que respeita ao julgamento de crianças vítimas de abuso sexual, tendendo asjuízas a decidir mais frequentemente em benefício das vítimas do que dos agressores. Ao nívelainda do abuso sexual de menores, a literatura indica a idade (desenvolvimento das competênciasmentais), o nível de envolvimento, a qualidade e o detalhe do relato, os aspectos emocionais (e.g.,sentimentos de culpa, vergonha, desconforto) e a sugestionabilidade como os factores maisinfluentes nas percepções dos juízes e na valoração que é feita do testemunho da criança vítimade abuso sexual (Holcomb & Jacquin, 2007; Leander, Christianson, Svedin, & Granhag, 2007;Warren & McGough, 1996).

Ao nível da decisão judicial em casos de regulação do exercício das responsabilidades parentais,Lowery (1981) realizou um estudo quantitativo para analisar a importância atribuída por 57 juízese por 23 magistrados do MP aos dez factores considerados por Bratt2 no processo de tomada dedecisão judicial a este nível. Os resultados indicam que os juízes relevam sobretudo a maturidade

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2 Factores essenciais na determinação do Superior Interesse do Menor: (1) A vontade da criança; (2) a vontadedos pais; (3) relacionamento entre a criança e os restantes membros da família; (4) desenvolvimentopsicológico da criança; (5) saúde física e mental da criança e do progenitor que irá residir habitualmente coma criança; (6) evidências sobre a responsabilidade parental; (7) valores morais dos progenitores; (8) condiçõeseconómico-financeiras dos progenitores; (9) condições habitacionais de ambos os pais; e (10) opinião deoutros profissionais (Bratt, 1997, in Lowery, 1981).

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e a responsabilidade parental (e.g., estabilidade psicoemocional dos progenitores; sentido daresponsabilidade percepcionado pelas figuras parentais; estabilidade e estatuto financeiro;capacidade de manter o contacto da criança com a sua comunidade de origem). Na mesma linha,Felner, Primavera, Terra, Farber e Bishop (1985) utilizaram duas amostras, uma constituída por350 magistrados e outra por 158 juízes do supremo tribunal, e verificaram que a maioria dosactores judiciários defende a atribuição da guarda, unilateralmente, à mãe (42% dos juízes e 30%dos procuradores). Contudo, se a relação entre os progenitores se pautar pela cooperação, pelacomunicação positiva, pela motivação para a co-parentalidade e pela proximidade geográfica, aguarda partilhada é percepcionada pela maioria como a solução ideal para a criança. Além disso,os participantes relevam dois factores decisivos na tomada de decisão: as características dosprogenitores (e.g., estabilidade emocional e competências parentais) e os factores situacionais(e.g., recursos financeiros, disponibilidade de tempo para cuidar da criança, estabilidade dasituação de vida, estratégias parentais).

Weinberg (1998) explorou o efeito da presença de duas variáveis da personalidade nas atitudese no acto decisório de 396 juízes, no âmbito da regulação do exercício das responsabilidadesparentais. O autor verificou que as atitudes, a história e a personalidade do magistrado influenciama tomada de decisão neste tipo de jurisdição, evidenciando a presença de estereótipos de géneronas decisões dos participantes (e.g., as juízas tendem a privilegiar a progenitora feminina, poisconsideram-na mais competente do que a figura paterna no cuidado aos filhos; 75% defende queas crianças de tenra idade devem estar junto das mães; e 65% afirma que os rapazes mais velhosdevem ficar com os pais). A totalidade da amostra receia que a informação de que dispõe sejainsuficiente para tomar decisões consistentes com o superior interesse do menor. Por último, oautor propõe a sensibilização dos juízes para o efeito do seu quadro de referências pessoais natomada de decisão nesta área, por vezes, em detrimento do benefício do menor.

Diferentes estudos (e.g., Arce, Fariña, & Ceijo, 2005; Wallace & Koerner, 2003) revelam queos juízes não consideram que as suas crenças, valores e experiências de vida influenciem as suasdecisões relativamente à regulação do exercício das responsabilidades parentais. Contudo, nessesestudos detectaram-se influências de estereótipos de género nos acórdãos. Esta discrepância entreas percepções dos magistrados e as suas atitudes e práticas judiciais é preocupante, uma vez queo não reconhecimento da influência dos quadros de referência pessoais dificulta o seu controlodurante o processo de tomada de decisão.

Em Israel, Hacker (2005) entrevistou 27 profissionais (juízes, legisladores e terapeutas) e 40progenitores divorciados com o intuito de analisar a percepção destes relativamente àconceptualização de maternidade e de paternidade e à sua negociação durante o processo dedivórcio, e constatou que a maioria dos participantes concordava com a ideia de que a maternidadeé, inevitavelmente, diferente e melhor do que a paternidade no que respeita às competênciasinerentes ao cuidado diário dos filhos, devido à predisposição biológica materna (“instintomaternal”). Este estereótipo restringe, obviamente, o direito à igualdade de género na parentalidadee influencia directamente a tomada de decisão relativamente à regulação do exercício dasresponsabilidades parentais, apesar de os entrevistados terem, simultaneamente, consciência de queo conceito de maternidade se encontra em mudança. Curiosamente, a totalidade dos sujeitosentrevistados defendeu a manutenção do contacto entre o pai e a criança, embora os benefíciosdesse contacto não fossem claramente identificados.

Em Portugal, Parente (2009) e Parente e Manita (2010) concluíram, através de um estudoqualitativo, que as percepções sobre a maternidade e a paternidade de um grupo de magistradosentrevistados espelhavam padrões comportamentais e sistemas de valores culturais tradicionais,ainda hoje amplamente difundidos na nossa sociedade (e.g., a mulher, na maior parte dos casos,continua a ser considerada uma melhor cuidadora e a figura principal de referência das crianças,obtendo, em consonância, após o divórcio, a guarda ou a residência habitual das mesmas), não

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obstante terem consciência de que alguns progenitores masculinos têm, actualmente, uma atitudemais participativa no cuidado diário dos filhos e que, após o divórcio, se apresentam maisreivindicativos na disputa da guarda/residência habitual dos filhos. Concluem, ainda, que, apesarde o ordenamento jurídico português impor o superior interesse do menor, a igualdade de géneroentre os progenitores e a motivação destes para cooperarem no exercício das responsabilidadesparentais como critérios fundamentais na determinação da atribuição da guarda ou da residênciahabitual da criança, durante o processo decisional os estereótipos de género acabavam por ter umpeso mais determinante, pondo em causa estes critérios de igualdade.

O estudo de A. Machado (2008) permite-nos também conhecer o impacto das períciaspsicológicas nas sentenças/decisão judicial neste âmbito, tendo a autora concluído que a períciapsicológica se assume como um importante instrumento no auxílio à decisão dos magistrados erevelando também a influência de algumas concepções tradicionais na determinação da guarda dascrianças e do regime de visitas.

No que diz respeito à tomada de decisão em casos de crimes sexuais, o estudo de Braga e Matos(2007) dá-nos algumas pistas sobre que factores se revelam como agravantes e atenuantes nadeterminação da medida da pena nos crimes sexuais. Como factores agravantes, destacam-se osrelacionados com as características da vítima, como a idade (quanto mais jovem, mais grave),características individuais (por exemplo, quando exibe défices cognitivos), situação sócio-familiar,impacto físico e social do crime, resistência (ou impossibilidade de resistir) da vítima ao actoviolento e relação com o ofensor (a existência de relação próxima entre esta e o ofensor e a quebradessa relação). A idade da vítima foi, por outro lado, considerada como factor atenuante quandoesta era mais velha. O impacto psicológico causado à vítima foi também referido como factoragravante e a sua ausência como factor atenuante.

Ao nível do abuso sexual de menores, os vários estudos já realizados (Carvalho, 2007; Faria,2010; Oliveira, 2011; Ribeiro, 2008; Silva, 2008) no nosso país têm vindo a revelar que as períciaspsicológicas forenses são, quase unanimemente, reconhecidas como fundamentais para a tomadade decisão judicial, seja pelos actores judiciários, seja pelos psicólogos forense, seja, ainda, pelosprofissionais da medicina legal, mais não seja, porque nestes casos o testemunho dos menores é,não raras vezes, o único meio de prova, para além do relatório pericial.

Através da análise de relatórios de perícias de sexologia forense e de relatórios de avaliaçãopsicológica forense de casos de abuso sexual intra-familiar, analisando não só a forma como otestemunho da criança era valorado, mas também o processo de encaminhamento dos casos daclínica médico-legal para a avaliação psicológica, Carvalho (2007) concluiu que o testemunho dacriança é valorado positivamente pela maioria dos profissionais de ambas as áreas. Quer nosrelatórios da sexologia forense quer nos da psicologia forense, o testemunho da criança foi relevadoe valorizado, embora de forma diferente, dada a natureza distinta dos dois tipos de peritagem e dosseus instrumentos e metodologias. Existe alguma variabilidade inter-peritos quanto à decisão deencaminhar as crianças abusadas para avaliação psicológica forense – a tendência dominante é paraesse envio ser concretizado, ainda que algumas excepções tenham sido referidas (crianças commenos de 3 anos ou que ainda não adquiriram as competências verbais mínimas, deficientesmentais, casos em que a história de abuso não merece credibilidade ou de relações sexuaisconsentidas entre namorados). Estes dados são corroborados pelos do estudo de Silva (2008).

Nos relatórios de perícia psicológica, a produção de um testemunho relativo ao abuso, pelacriança, foi sempre valorada, independentemente de essa valoração ocorrer no sentido daconfirmação ou infirmação da sua veracidade, tendo-se constatado, porém, que na maioria doscasos em que a criança fez o relato do alegado abuso, o perito identificou no seu relato vários dosindicadores de veracidade descritos na literatura. Mais de metade das crianças avaliadasdemonstrou capacidade para distinguir a verdade da mentira e a fantasia da realidade, factorrelevante para a avaliação do testemunho da criança durante o processo de avaliação, quando este

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é produzido. A revelação foi mais frequente nas crianças mais velhas e a revelação de abusoperpetrado pelo pai e pelo irmão foi menos frequente do que a relativa a outros familiares, o quepoderá estar relacionado com a existência de uma relação afectiva mais próxima e consequentemaior ambivalência emocional da criança, com uma maior preocupação com a reacção da restantefamília e do próprio agressor face à revelação do abuso, ou um maior receio das consequênciasque possam decorrer da revelação, tal como demonstram outros estudos (Carvalho, 2007).

Ribeiro (2008) e Faria (2010), em estudos qualitativos realizados com base na análise deconteúdo de sentenças/acórdãos e na realização de entrevistas a magistrados e psicólogos forenses,constataram, por seu turno, que as perícias psicológicas às vítimas, em processos de abuso sexualde crianças, são valoradas pelos decisores judiciais no processo de tomada de decisão. Em geral,as decisões judiciais são concordantes com as conclusões das perícias psicológicas, no que os seusresultados são concordantes com os de Castro, Martins, Machado e Gonçalves (2006), mas aquelasautoras constataram que nem sempre o modo de valoração é devidamente clarificado e que estevaria em função dos decisores, envolvendo forte variabilidade e subjectividade. Constataram-se,ainda, algumas diferenças na posição de psicólogos forenses e magistrados, designadamentequanto aos elementos que mais são valorados nos relatórios de avaliação psicológica forense, à fasedo processo judicial tida como privilegiada para a solicitação da perícia e à eventual influência devariáveis extralegais na tomada de decisão judicial (Faria, 2010; Ribeiro, 2008).

Paralelamente, as perícias médico-legais continuam a ser tidas como mais objectivas eimportantes para a decisão (Ribeiro, 2008; Silva, 2008). Atendendo a que, na maior parte doscasos, os resultados das perícias médico-legais não são conclusivas, devido à ausência de sequelasfísicas ou à existência de alguns indícios não patognómicos, o testemunho da criança acaba porse transformar no meio de prova central, apoiado, por vezes, pela perícia psicológica forense. Poressa razão, a recolha e a compreensão do testemunho da criança, assim como a sua protecção mcontexto judicial, deverão constituir algumas das preocupações centrais da psicologia forense e doDireito.

São hoje reconhecidas algumas questões que os magistrados devem considerar quandointeragem com a criança e avaliam a qualidade do seu testemunho. As crianças percebem,organizam e pensam sobre o mundo e sobre as suas experiências de modo diferente do dos adultos;apresentam, inevitavelmente, um nível de desenvolvimento cognitivo, emocional, linguísticoinferior ao dos adultos; identificam, armazenam, recordam, evocam e narram eventos de umaforma diferente; são, em termos gerais, mais facilmente sugestionadas por questões malformuladas; diferem do adulto na compreensão das terminologias jurídicas e das construçõeslinguísticas complexas; não reagem bem a registos comunicacionais hostis. Logo, a sua percepçãodo processo judicial, do que ocorre numa sala de audiência, do que é suposto fazer e acontecer, asua reacção e a sua colaboração, entre muitas outras coisas, é muito diferente da dos adultos,designadamente da dos juízes, magistrados do ministério público e advogados. E é aos adultosenvolvidos no processo judicial, incluindo o psicólogo forense, que compete ajustar os seusprocedimentos e estratégias comunicacionais às características da criança, não o oposto.

Recentemente, Oliveira (2011) analisou a abordagem que a justiça portuguesa faz dotestemunho das crianças vítimas de abuso sexual, através de entrevistas a actores judiciários epsicólogos forenses. A investigação e as percepções dos técnicos descrevem a vivência processualdas crianças como traumatizante, mas não concretizam o papel dos profissionais de justiça nestasdinâmicas, lacuna que a autora tentou colmatar. Concluiu, entre outras coisas, que, não obstanteos esforços de adaptação dos procedimentos às características das crianças e de redução do riscode vitimação secundária, persistem estratégias vitimizadoras, designadamente a inadequação dealguns procedimentos e a tendência para obrigar a criança a testemunhar diversas vezes. Odepoimento para memória futura, que pretendia contribuir para que a criança testemunhasse apenasuma vez, não tem estado a ser concretizado adequadamente, existindo uma grande discrepância

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ao nível das diligências processuais e da condução da entrevista da criança durante o depoimento(e.g., papel do psicólogo que acompanha a criança, estilo da inquirição e das questões colocadas,espaço onde é feito o depoimento, gravação ou não do mesmo), dados consonantes com os queobteve Peixoto (2011).

Se conduzida inadequadamente, a participação da criança no Sistema de Justiça pode resultarnuma experiência traumática, insecurizante e desestruturante, mas a vitimação secundária não éinevitável. Se bem conduzida, essa experiência podem ser vividas de forma positiva e,inclusivamente, ajudar a criança vítima a superar os sentimentos de incapacidade eresponsabilidade/culpabilidade tão frequentemente associados às experiências abusivas e a retomaro sentido de re-autoria da sua história desenvolvimental (Ribeiro, 2009; Ribeiro & Manita, 2007).Torna-se, assim, essencial conciliar a avaliação dos factos, o processo de obtenção deinformação/prova e as exigências do sistema legal com o bem-estar e a protecção da criança eevitar a vitimação secundária da criança vítima e testemunha (Alberto, 2004; Carmo, 2010; Pace& Precey, 2002; Ribeiro, 2009).

A investigação tem revelado a existência de algumas variáveis moderadoras do potencialimpacto traumático, com destaque para o grau de conhecimento que a criança tem sobre osprocedimentos e o funcionamento judicial e sobre a importância e as razões de ser chamada atestemunhar, o seu nível de preparação para aquele acto, a possibilidade de esclarecer dúvidas ecolocar questões sobre as suas percepções, os seus receios e expectativas, a qualidade da interacçãoentre a criança e os profissionais envolvidos, designadamente a disponibilidade, a atitude departilha, a dinâmica de co-autoria e a contextualização da colaboração (Melton, 1992; Quas,Wallin, Horwitz, Davis, & Lyon, 2009; Ribeiro, 2009). Os actores judiciários envolvidos nocontacto com crianças vítimas e testemunhas devem ser capazes de compreender a necessidade dedesenvolver protocolos de entrevista flexíveis (e.g., evitando as questões focalizadas, evoluindode questões gerais para específicas e de questões abertas para fechadas, evitando as questõesdirectivas e sugestivas), a importância da formação especializada (e.g., sobre o desenvolvimentoinfantil, as dinâmicas e consequências do abuso, as características da memória e do testemunhoem crianças) e as implicações da repetição do testemunho para a criança (Arnold & Fields, 2009;DeVoe & Taller, 2002; Magalhães & Ribeiro, 2007; Ribeiro, 2009).

Esta é, também, uma das vias abertas para o desenvolvimento futuro da psicologia forense epara a consolidação das relações entre a psicologia e o sistema de justiça. Esse caminho seráseguramente percorrido se todos os que trabalham nesta área fizerem o que a Carla Machado nãodeixou de fazer até ao último dia da sua vida, mesmo quando as forças falhavam – trabalhar, ler,escrever, reflectir, investigar, ter uma intervenção activa, de cidadania, lutar pelo crescimento,reconhecimento e autonomização da área da justiça e/ou forense como área com objectivos,metodologias, teorias, preocupações sociais e éticas, especificidades, que a distinguem de outrosramos da psicologia, como a clínica. Esse foi um legado e um imperativo ético que ela nos deixoue que nos cumpre prosseguir.

Comecemos pelas lacunas que ela própria, oportunamente, elencou: o investimento na formaçãoespecializada nesta área; a construção ou validação para Portugal de instrumentos de avaliaçãoespecificamente forenses; a definição e divulgação dos roteiros de avaliação usados por cadainstituição; a comparação dos métodos e técnicas utilizadas por diferentes instituições, com vistaà melhoria dos procedimentos de cada uma e, se possível, à sua maior uniformização; odesenvolvimento de melhores estruturas e conteúdos para os relatórios de perícia psicológicaforense; a promoção da celeridade nas avaliações, sem prejuízo da sua qualidade; a ligação daprática forense à investigação; o desenvolvimento do conhecimento sobre a utilização judicial dospareceres psicológicos (e.g., o que é valorado pelo Tribunal, porquê, que dimensões do parecerinterferem nessa valoração) e as condições que podem afectar a conclusão formulada, assim comoo reconhecimento dos limites da avaliação produzida (Machado, 2006).

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This article reflects on the latest developments of Forensic Psychology in Portugal, particularly in oneof the most important areas of interface between psychology and the justice system – the forensicpsychological assessment and the contribution of psychology to judicial decision making. Whilehighlighting the major contributions of Carla Machado to the development of this area, we point outpaths to achieve the consolidation of the relationship between psychology and law.

Key-words: Child custody, Child sexual abuse, Child testimony, Forensic Expertises, ForensicPsychology, Judicial Decision Making, Psychological Forensic Assessment.

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Análise Psicológica (2012), XXX (1-2): 33-47

Criminalidade feminina e construção do género: Emergência e consolidação

das perspectivas feministas na Criminologia 1

Raquel Matos* / Carla Machado**

*Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica; **Escola de Psicologia,Universidade do Minho

Neste artigo, são analisadas as perspectivas feministas na criminologia, em particular, os discursossobre criminalidade feminina e construção do género. Parte-se de uma visão ampla sobre feminismose construção de conhecimento e apresenta-se uma revisão histórica da emergência e da consolidaçãodas perspectivas feministas na criminologia. Discute-se em particular o argumento feminista de quea construção social do género pauta os percursos de vida das mulheres que transgridem, e se reflectena resposta formal e informal a essas transgressões. São analisadas as principais críticas tecidas pelasautoras feministas ao que designam de ‘discursos tradicionais’ sobre mulher e crime e as propostas queapresentam de reconstrução desses discursos.

Palavras-chave: Criminalidade feminina, Género, Perspectivas feministas.

FEMINISMO(S) E CONSTRUÇÃO DE CONHECIMENTO

A emergência de estudos científicos que conceptualizam a variável género e lhe conferem umpapel de destaque, quer na criminologia quer noutras áreas de conhecimento, é indissociável domovimento feminista. Após uma primeira vaga, cujo início é geralmente situado na segundadécada do século XX, o feminismo ressurge nos anos sessenta associado a movimentossociopolíticos de libertação (Messerschmidt, 1995)2. É nesse contexto que jovens mulheres seindignam ao perceber que os seus companheiros de ‘luta libertária’ as vêm apenas como assessoras,quer de trabalho quer de prazer sexual. Essa indignação, associada às ideias de Simone deBeauvoir, que analisa no seu livro Le Deuxième Sexe (1952) o tratamento generalizado da Mulher

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1 Este texto resulta da adaptação de um capítulo de uma obra já publicada [Matos, R. (2008), Vidas Raras deMulheres Comuns. Percursos de vida, significações do crime e construção da identidade em jovens reclusas.Coimbra: Editora Almedina]. A criação do texto original enquadra-se no desenvolvimento de uma tese dedoutoramento (com apoio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia – SFRH/BD/8664/2002). Para prestarhomenagem à Doutora Carla Machado não poderia deixar de seleccionar um texto construído em estreitacolaboração entre nós, naquela que foi a sua primeira orientação de doutoramento. Ao recordar a suaorientação, deixo o testemunho de uma grande lição e de um exemplo a seguir.

2 Embora a segunda década do século XX reúna maior consenso enquanto data da primeira vaga do movimentofeminista, sugere-se que esta vaga tem início na década de trinta do século XIX com o movimentoabolicionista no contexto norte-americano (Messerschmidt, 1995).

A correspondência relativa a este artigo deverá ser enviada para: Raquel Matos, Professora Auxiliar, Faculdadede Educação e Psicologia da Universidade Católica Portuguesa, Rua Diogo Botelho, 1327, 4169-005 Porto. E-mail: [email protected]

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como sendo o Outro, servem de inspiração para o (re)florescer do movimento feminista (Rafter& Heidensohn, 1995).

Perante a opressão exercida sobre a mulher na sociedade e a negligência das questões de géneronas mais diversas áreas de conhecimento, o feminismo rapidamente se torna um movimento comfortes preocupações epistemológicas e políticas que se propõe, de forma genérica, terminar coma hegemonia masculina. Progressivamente, o significado de ‘feminismo’ começa a expandir-se,deixando de corresponder apenas à luta das mulheres pela igualdade. Como explicam Rafter eHeidensohn, “aquilo que começou por ser um movimento igualitário de ‘libertação da mulher’expandiu para a inclusão do reconhecimento do género como elemento básico das estruturassociais por todo o mundo” (1995, p. 4).

O movimento com preocupações epistemológicas e políticas acaba por dar lugar a umamultiplicidade de perspectivas que, se por um lado apresentam ideias centrais comuns, cujoexemplo fulcral é a postura crítica, de marcada oposição à subjugação das mulheres e outros menospoderosos nas sociedades patriarcais, por outro lado se posicionam de forma divergenterelativamente a questões particulares, como a própria conceptualização da opressão da mulher oua posição epistemológica assumida. Não será por acaso que nas inúmeras referências da literaturaao feminismo predominam designações como perspectivas feministas ou feminismos emdetrimento do termo feminismo.

PERSPECTIVAS FEMINISTAS NA CRIMINOLOGIA

As perspectivas feministas na criminologia emergem da contestação face à ausência da mulhernos estudos da linha tradicional e face ao claro reducionismo biológico e psicológico patente nasprimeiras tentativas de estudar a mulher que comete crimes. Ainda numa fase em que o termo‘feminismo’ está ausente dos textos da criminologia, diversas autoras (e.g., Heidensohn, 1968,Klein, 1976, citados por Heidensohn, 1985) tocam já os pontos-chave da crítica feminista àdisciplina, tecendo duras críticas aos erros fundamentais cometidos em relação à mulher. Por umlado, a sua quase ausência dos estudos criminológicos, onde é praticamente invisível comoagressora, como vítima ou em qualquer outro tipo de relação com o sistema de justiça criminal.Por outro lado, a sua presença desajustada nos estudos da criminologia, através da distorção dassuas experiências transgressivas de modo a enquadrá-la nos estereótipos dominantes.

É na segunda metade da década de setenta do século XX que, partindo das duas críticasfundamentais anteriormente descritas, se assiste a uma emergência gradual das abordagensfeministas na criminologia. Progressivamente, cria-se na disciplina espaço para a realização deestudos que não só consideram a variável género como a conceptualizam, na perspectiva feminista,de forma mais adequada.

EMERGÊNCIA E CONSOLIDAÇÃO DAS ABORDAGENS FEMINISTAS NA CRIMINOLOGIA

Segundo Heidensohn (1997), a abordagem à emergência dos estudos de género na criminologiaimplica recuar na história da disciplina até ao período da “pré-história do género e crime” (p. 762).Este período corresponde aos momentos em que se realizaram por um lado “ensaios vitorianossobre a vulnerabilidade da mulher para cometer crimes face à sua posição social e moral” (idem)

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e, por outro lado, ensaios teóricos marcados pelo reducionismo psicológico e biológico, bemilustrado nos trabalhos positivistas de Lombroso e Ferrero.

Após o período pré-histórico dos estudos de género na criminologia, o seu desenvolvimentomoderno tem início nos anos sessenta do século XX como um dos produtos da segunda vagafeminista. É nessa altura que surgem os estudos feministas que Heidensohn (1997) designa poriniciais ou pioneiros e que consistem essencialmente na crítica aos objectos e métodos dacriminologia tradicional ou ‘malestream’3 e na definição de um programa de trabalhos para osestudos de género na disciplina.

As incursões feministas são facilitadas por mudanças fundamentais na criminologia,correspondentes à emergência do que podemos designar de ‘discursos de transição’ (Matos, 2008).Se a criminologia designada de tradicional, muito centrada na etiologia do crime e nos mecanismosde controlo, sempre marginalizou a teoria e a investigação feministas, assiste-se, a partir dos anossessenta, a mudanças paradigmáticas correspondentes à emergência de novas perspectivascriminológicas, mais receptivas aos trabalhos feministas e suas influências. Trata-se de um“conjunto de movimentos teóricos críticos em relação à criminologia positivista”, incluídos nadesignação lata de criminologia crítica (Machado, 2000, p. 121). Cria-se assim um cenário maisfavorável às incursões feministas na criminologia, apesar de, segundo Gelsthorpe (1997), só nocontexto da criminologia dos anos noventa, mais aberto e diversificado do que o contexto dosanos setenta, se tornarem possíveis ligações mais sérias da criminologia ao feminismo.

Criado um contexto mais favorável para a emergência das perspectivas feministas no âmbitoda criminologia, as suas contestações, interesses e movimentos iniciais acontecem sobretudorelativamente à vitimação, em particular sexual, da mulher4. E é na área da vitimação que asabordagens feministas alcançam os maiores feitos na criminologia, com um reconhecimento dasnecessidades das vítimas (ou dos menos poderosos), impensável na criminologia tradicional.

Importa, contudo, referir que na fase pioneira dos estudos feministas sobre o crime, algumasabordagens se centram já na mulher transgressora, na tentativa de desconstruir o argumentoprevalecente na criminologia tradicional de que as mulheres, absoluta e incontestavelmente,cometem menos crimes do que os homens. A preocupação feminista de desconstrução desteargumento deve-se ao facto de se considerar que ele está na base da negligência em relação àsmulheres na criminologia, um dos aspectos mais criticados pelas feministas nos estudosconvencionais sobre o crime. Surgem assim diversas formas de chamada de atenção para os crimescometidos pelas mulheres, com base no argumento de que a criminalidade feminina estaria aaumentar muito mais rapidamente do que a masculina. Nos anos setenta do século XX, os meiosde comunicação social apresentam inúmeras histórias sobre uma nova realidade social, a ‘newfemale criminal’, associando a criminalidade feminina aos esforços para melhorar a posiçãopolítica e económica da mulher. Presumivelmente inspirada pelo movimento feminista, a ofensorafeminina procuraria igualdade (social, económica e política) no ‘submundo do crime’, tal comoas mulheres mais convencionais perseguiriam os seus direitos em campos mais aceitáveis(Chesney-Lind, 1997)5. Ao longo da década de setenta, figuras associadas às instâncias formaisde controlo reforçam a ideia de que o movimento de emancipação da mulher teria provocado uma

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3 Designação proposta por autoras feministas para enfatizar o carácter masculino da criminologia tradicional(mainstream).

4 Tal deve-se, em parte, ao facto de o desenvolvimento das perspectivas feministas na criminologia incluir,para além dos contributos de académicos, contributos de não académicos, em particular grupos de combateà violência contra as mulheres, exemplo importante do activismo impulsionador do movimento feminista(Rafter & Heidensohn, 1995).

5 Estas ideias não constituiriam uma novidade após a primeira tentativa de relacionar a emancipação da mulhercom a criminalidade feminina, já na primeira vaga do movimento feminista, na segunda década do século XX.

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onda de criminalidade feminina nunca antes vista e que, ao pretender emergir em camposdominados anteriormente pelo género masculino, as mulheres também se aproximariam doshomens na área da criminalidade. A relação estabelecida entre os movimentos de libertação damulher e o aumento da criminalidade feminina é igualmente explorada por académicos, incluindoautoras feministas. Exemplos incontornáveis são os trabalhos de Freda Adler e Rita Simon,publicados em 1975, que exploram, numa perspectiva feminista, a ideia do efeito criminógeno dalibertação da mulher. Ao relançarem este debate controverso, ambas Adler e Simon acabam porser contestadas pelas próprias feministas, pelo risco que as suas ideias constituíam para ocompromisso político do movimento.

As contribuições iniciais do feminismo na criminologia abrem caminho para uma explosão deestudos posteriores, numa fase que Heidensohn refere ser “de consolidação” (1997, p. 774). Apósa publicação, em 1976, da obra de Carol Smart “Women, crime and criminology: A feministcritique”6, ao longo de vinte e cinco anos são realizadas inúmeras investigações em diversas áreasde intersecção entre género e crime, alargando o foco da mulher vítima para a inclusão da mulherque comete crimes, e também com a realização de estudos sobre a participação da mulher – comoagente activo – nas instâncias formais de controlo. Estes novos estudos sobre a mulher nacriminologia, realizados nas décadas de oitenta e noventa do século XX, podem ser categorizadosem dois grandes tópicos: estudos sobre mulher e crime e estudos sobre mulher e justiça(Heidensohn, 1997). Os primeiros dizem respeito à investigação realizada sobre o género e aactividade criminal apresentando a perspectiva das mulheres sobre o seu envolvimento, quer nocrime de um modo geral7 (e.g, Carlen, 1988), quer em formas específicas de desviância8: no tráficoe consumos de drogas (e.g., Mahler, 1997), na prática de violência em gangs (e.g., Campbell,1984, Chesney-Lind, 1993, citados por Miller, 2001), ou na prostituição (e.g., Phoenix, 2000).Surgem também, nesta fase, estudos sobre criminalidade mais violenta por parte das mulheres,particularmente sobre terrorismo (e.g., MacDonald, 1998) ou sobre homicídio (e.g., Wilczynski,1997). O outro tópico de investigação – mulher e justiça – refere-se à experiência da mulher nossistemas de justiça criminal e penal. Estes estudos incidem sobretudo no modo como a mulher quecomete crimes é percepcionada e tratada pelos agentes da justiça (e.g., Horn & Hollin, 1997), naexperiência feminina no sistema prisional (e.g., Carlen, 1983, 1987) e, embora de forma menosrepresentativa, na mulher enquanto agente de controlo social (e.g., Holdaway & Parker, 1998).

Os estudos feministas marcam também a criminologia a nível metodológico. Apesar de, no seuâmbito, se utilizarem múltiplas metodologias de investigação, privilegiam-se aquelas quepossibilitam às participantes dar voz às suas experiências, sem determinar a priori o significadodessas experiências ou a forma de as categorizar para posterior análise (McDermott, 2002). Nessesentido, nos estudos enquadrados pelas perspectivas feministas utilizam-se sobretudo asetnometodologias, com destaque para a observação e para as entrevistas em profundidade enquantoestratégias de recolha de dados. Exemplos incontornáveis são os trabalhos de Pat Carlen, em quenão só é dada voz a mulheres que cometem crimes, como é estabelecida uma relação nãohierárquica entre elas e a investigadora, por vezes co-autoras de trabalhos científicos (e.g., Carlen,Hicks, O’Dwyer, Christina, & Tchaikovsky, 1985). A questão central reclamada pelas feministasrelativamente aos métodos da criminologia consiste na focalização nas experiências das mulheres,

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6 A publicação desta obra de Carol Smart é considerada um marco fundamental no reconhecimento dos desafiosfeministas à criminologia.

7 Estes estudos decorrem frequentemente no contexto prisional, ou quando há já um contacto das mulheres como sistema de justiça criminal.

8 Os estudos focalizados em formas específicas de desviância tendem a decorrer nos contextos espacio--temporais da própria actividade criminal.

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permitindo a sua visibilidade. As feministas propõem ainda que, no âmbito da criminologia, osinvestigadores sejam mais reflexivos e questionem mais as bases epistemológicas do conhecimento(Cain, 1990/1996).

DISCURSOS FEMINISTAS SOBRE CRIMINALIDADE FEMININA

FEMINISMOS E DESCONSTRUÇÃO DOS DISCURSOS SOBRE A MULHER E O CRIME

Nos discursos tradicionais da criminologia, a mulher foi genericamente ignorada ou analisadacom base nos estereótipos de género inerentes ao discurso social dominante. Especificamente nocaso da mulher ofensora, as feministas têm criticado a conceptualização da criminalidade femininacom base, por exemplo, em factores biológicos ou em estereótipos de género (Brown, 1998).Diversas características que nos discursos convencionais são atribuídas à mulher que transgride (e.g.,irracionalidade) e aos seus crimes (e.g., especificidade) têm sido criticadas pelas feministas, quepropõem a desconstrução e reconstrução desses discursos. Analisemos algumas dessas características.

DUPLA DESVIÂNCIA

A mulher que comete crimes tem sido considerada duplamente desviante, por transgredirsimultaneamente a lei e os papéis de género convencionais. Como refere Cunha (1994), a dupladesviância atribuída às mulheres deve-se ao facto de “a transgressão da legalidade que as conduziuà prisão ser de uma forma ou de outra concomitante com a negação das normas que definem aconduta feminina apropriada” (p. 24). Também Chesney-Lind (1997), numa revisão histórica sobrea mulher ofensora e o sistema de justiça norte-americano, revela que inicialmente as mulheresdetidas eram consideradas mais ‘perversas’ do que os homens, por agirem em contradição com asexpectativas sociais de género. A essas detenções estaria subjacente o princípio de que a mulherque transgride deve ser detida mais por necessitar de formação moral e protecção do que porconstituir risco público (Rafter, 1990, citado por Chesney-Lind, 1997). Associadas a papéisdomésticos e construídas simultânea e paradoxalmente como dependentes e responsáveis pelo seuambiente familiar, as mulheres que cometem crimes tendem por um lado a ser protegidas mas, poroutro lado, a ser mais punidas pelo sistema legal (Heidensohn, 1997). Subjacente à construçãodupla da mulher desviante estará uma “visão dicotómica do feminino”, constituída por dois pólos:o da mulher “recatada, casta, doméstica e maternal” e o da mulher “frequentadora da esferapública, devassa, descurando as responsabilidades familiares e domésticas” (Cunha, 1994, p. 24).Esta concepção dualista do género feminino é ilustrada pela descrição que Manuela Ivone Cunhafaz do contexto da reclusão feminina no Estado Novo: “se por um lado as exigências que regulama sua conduta o configuram moralmente superior ao [género] masculino, as mulheres tornam-se,uma vez caídas no mundo desviante, quase irredimíveis” (idem).

As autoras feministas são particularmente críticas face à construção de uma mulher duplamentedesviante, chamando a atenção para as suas implicações na experiência feminina no sistema dejustiça criminal. Ao serem consideradas e tratadas como duplamente desviantes, as mulheresacabam por ser também duplamente punidas e por sofrer particularmente pelo estigma associadoà desviância (Heidensohn, 1985). As implicações da concepção de mulher duplamente desviante

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devem ser consideradas em duas vertentes fundamentais: por um lado, é socialmente menosesperado que uma mulher cometa crimes, o que poderá ter como consequência a maior puniçãode uma mulher que comete o mesmo tipo de crime que um homem. Por outro lado, se uma mulhertransgride a lei, mas assegura os papéis de género que lhe são convencionalmente exigidos, comoa maternidade, pode ser menos punida do que uma mulher que não o faça. Os estudos da linhafeminista têm confirmado estas implicações dos estereótipos de género no tratamento da mulherpelo sistema legal, mostrando que a adesão das mulheres aos papéis familiares convencionais écrucial na sua experiência no sistema judicial (e.g., Carlen, 1983). Especificamente em relação àmaternidade, um dos papéis fundamentais exigidos socialmente à mulher, estudos feministasmostram que a punição tende a ser maior quando a mulher que transgride a lei é percebida comomá mãe (e.g., Carlen, 1983). Como argumenta Heidensohn, as mulheres podem ser tratadas pelosistema de justiça criminal de forma mais dura por serem “mulheres desviantes que são desviantescomo mulheres” (1987, p. 20).

ESPECIFICIDADES DOS ‘CRIMES FEMININOS’

Nas abordagens da criminologia tradicional, a criminalidade feminina tem sido reduzida a tiposespecíficos de crime, com base em estereótipos dominantes. A caracterização estereotipada doscrimes cometidos pelas mulheres contrasta assim com uma criminalidade masculina consideradanão apenas mais frequente e violenta mas também muito mais diversificada. Este pressuposto temlevado a que os estudos tradicionais sobre a mulher foquem apenas determinados tipos de crime,cujas especificidades são associadas à figura feminina. Por exemplo Pollak, argumentando sobreuma significativa criminalidade feminina escondida, atribui à mulher sobretudo crimes como oaborto ilegal, os furtos em lojas, os furtos no domicílio por empregadas domésticas ou aprostituição (1961, citado por Heidensohn, 1985). Subjacentes a esta ideia da especificidade doscrimes cometidos pelas mulheres estão os argumentos das teorias positivistas da criminologia,que enfatizam os determinantes biológicos do comportamento feminino e os estereótiposassociados ao género. A associação da mulher a tipos específicos de crimes contribui para amanutenção dos discursos sobre o carácter individual da transgressão feminina, negando a suaenvolvente social.

Este argumento favorável à existência de uma ‘criminalidade tipicamente feminina’, delimitadade forma clara nos tipos de crime e motivações para a sua ocorrência, tem sido criticado pelasautoras feministas. Podemos referir, por exemplo, Carol Smart, que destaca a distorção no estudoda criminalidade feminina desde que lançou a primeira crítica à criminologia. Na sua opinião,essa distorção resulta da visão estereotipada da mulher e da rejeição de factores como a exclusãosocioeconómica na análise do desvio feminino, que tende a ser atribuído a factores de ordemindividual e não social (Smart, 1990/1996). A perspectiva distorcida sobre a suposta criminalidade‘tipicamente feminina’ acarreta implicações negativas para a mulher, nomeadamente na formacomo esta é tratada nas diversas instâncias formais de controlo quando comete crimes. As autorasfeministas descrevem com preocupação a forma como a visão estereotipada da mulher desvianteconduz a práticas de tratamento inadequadas no sistema de justiça criminal, reforçadoras decomportamentos estereotipados, principalmente nas jovens reclusas (e.g., Carlen, 1983, 1987).

O argumento da especificidade da criminalidade feminina tem sido desconstruído com baseem estudos que permitem concluir acerca da heterogeneidade nas formas de transgressão da lei porparte da mulher (e.g., Matos, 2008) e estudos que mostram o envolvimento das mulheres emactividades desviantes tradicionalmente associadas aos homens, como por exemplo actosterroristas (e.g., Iles, 1985) ou violência em gangs (e.g., Campbell, 1984, citado por Heidensohn,

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1987). Sugere-se, nestas abordagens, que as diferenças entre homens e mulheres residemessencialmente na frequência e severidade e não tanto no tipo de crimes cometidos. Autorasfeministas têm também argumentado que, se as estatísticas mostram que as mulheres tendemmenos a reincidir e a cometer crimes considerados graves ou violentos, é mais correcto atribuiressas diferenças a uma estrutura diferencial de oportunidades (com a restrição no acesso da mulhera patamares hierárquicos superiores), a diferentes formas de socialização e a um controlo socialgenderizado, do que a características inatas do(a) ofensor(a) (Heidensohn, 1987).

IRRACIONALIDADE E HETERODETERMINAÇÃO

A construção de uma mulher transgressora que não escolhe racionalmente cometer crimes surgenos discursos tradicionais da criminologia assente em duas ideias fundamentais: a irracionalidadeda mulher que comete crimes, inerente às suas características bio-psicológicas, e a ausência deautodeterminação na criminalidade feminina, associada a uma suposta coacção sobre a mulherpara a desviância.

Segundo as autoras feministas, a mulher que comete crimes tem sido representada e tratadacomo “instável e irracional” nas diversas abordagens da criminologia tradicional, que justificama criminalidade feminina pela própria natureza biológica da mulher (Heidensohn, 1987).Relembremos as primeiras abordagens positivistas, com a proposta da mulher criminal atávicacuja natureza biológica justifica por si só os crimes cometidos (e.g., Lombroso & Ferrero,1895/1996), e abordagens mais recentes, igualmente justificativas do crime das mulheres combase em argumentos biológicos, como por exemplo os efeitos da menstruação (e.g., Dalton, 1980,citado por Heidensohn, 1997). Estas tentativas de explicação da desviância feminina têm emcomum a ideia da irracionalidade, excluindo qualquer hipótese de escolha racional pelo desvio porparte da mulher. Frequentemente, estas abordagens resultam num paradoxo, evidente quando, porum lado se justifica o desvio na mulher com base em características biológicas ou psicológicas quelhe são intrínsecas, mas, por outro lado, se considera pouco feminina a mulher que comete crimes.As abordagens centradas na patologização da criminalidade feminina, que excluem o desvio namulher na ausência de patologia, escapam a este paradoxo mas não deixam de ser um exemplo dediscurso constitutivo da mulher que não comete crimes de forma racional.

O argumento da heterodeterminação do comportamento criminal feminino tem também sidocentral nos discursos convencionais sobre a mulher ofensora. Considera-se nesta perspectiva quea mulher comete crimes não por escolha sua, mas coagida por outras figuras, sobretudo masculinas,que exercem poder sobre si. Este discurso tem emergido particularmente em relação aos crimessexuais, através do argumento de que a mulher tende a cometê-los com um parceiro e porinfluência dele (cf., Motz, 2001); relativamente ao tráfico e consumos de drogas, através danegação de qualquer agencialidade das mulheres (cf., Maher, 1997); e também no caso daprostituição, através do argumento de que as mulheres são coagidas por figuras masculinas queexercem violência sobre elas (cf., Phoenix, 2000).

Face aos discursos sobre a mulher que comete crimes de forma irracional e heterodeterminada,as autoras feministas têm sido particularmente críticas, insistindo na importância de entender adesviância feminina como um fenómeno social e não individual. A sua preocupação estende-se atéàs implicações que esta concepção de desvio feminino tem no modo como a mulher que transgridea lei tende a ser tratada no sistema de justiça. A postura de Smart a este respeito é evidente, quandorefere que os responsáveis pelas políticas criminais, “tal como muitos criminologistas, percebema criminalidade feminina como um comportamento irracional, irresponsável e não intencional,como um desajustamento individual a uma sociedade consensual e bem-ordenada” (1977, citado

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por Heidensohn, 1985, p. 151). Outras autoras criticam também as teorias tradicionais porrestringirem a compreensão da criminalidade feminina a aspectos biológicos e psicológicos,ignorando a realidade económica, social e política das mulheres que cometem crimes (e.g.,Barcinsky, 2005). As feministas procuram então desconstruir os discursos da irracionalidade dadesviância feminina através da exploração de factores de ordem social, como por exemplo amarginalização social e económica das mulheres, o poder patriarcal e os dispositivos informais decontrolo do comportamento feminino.

FEMINISMOS E RECONSTRUÇÃO DOS DISCURSOS SOBRE A MULHER E O CRIME

Para além da crítica e desconstrução dos discursos tradicionais sobre a criminalidade feminina,as abordagens feministas na criminologia propõem a sua reconstrução através de discursos que têmorigem em práticas metodológicas e posições epistemológicas distintas. Os novos discursosemergem a partir de estudos em que “as mulheres encontraram a sua própria voz, ou observadoresapresentaram as perspectivas de mulheres que assassinaram os maridos, que se prostituem, que sãomembros de gangs violentos, que consomem cocaína ou que se envolvem em formas graves decriminalidade” (Heidensohn, 1997, p. 776). Trata-se de abordagens empíricas que, como referimosanteriormente, conferem à variável género um estatuto nuclear, e procuram dar à mulher quecomete crimes um protagonismo impensável nos estudos da linha tradicional da criminologia.Para além das questões de género serem nucleares, outras variáveis como a classe ou a etnia sãotambém consideradas neste tipo de abordagem (e.g., Mack & Leiber, 2005; Worcester, 2002).

Quanto às metodologias, tendo por objecto os processos de construção de identidades de género,nestes estudos assume um papel relevante a análise dos discursos construídos pelas mulherestransgressoras, olhando para o modo como os discursos dominantes são utilizados por elas parase auto-identificarem. Para tal, recorre-se com frequência às entrevistas em profundidade, erealizam-se observações participantes. Por vezes os trabalhos desenvolvidos combinam asobservações e as entrevistas em profundidade com a análise de dados provenientes de outras fontes(e.g., documentos jurídicos). Importa ainda ressalvar que também se recorre à complementaridadeentre dados recolhidos na comunidade e dados recolhidos em meio institucional. Alguns estudos,por exemplo sobre tráfico e consumos de drogas, incluem simultaneamente amostras de mulheresque estão na comunidade e institucionalizadas (e.g., Sommers & Baskin, 1997). Outra questãopertinente diz respeito ao facto de a esmagadora maioria das abordagens sobre criminalidadefeminina e construção da identidade se centrarem em amostras reduzidas. Em síntese, embora asmetodologias utilizadas sejam diversas, a maioria dos estudos mantém características essenciaiscomuns, das quais destacamos a ênfase nos discursos construídos, sobretudo pelas mulheres quetransgridem, a componente etnográfica e a utilização de amostras pequenas.

(RE)CONTEXTUALIZAÇÃO DA CRIMINALIDADE FEMININA

Os diversos estudos enquadrados pelas perspectivas feministas possibilitam a recontextuali -zação da criminalidade feminina nos discursos da criminologia. Percebe-se, desde logo, que oscrimes cometidos por mulheres se relacionam na maioria das vezes com tráfico ou consumos dedrogas (e.g., Almeda, 2003), e que estas mulheres, independentemente da idade, tendem aapresentar trajectórias de vida marcadas pela reclusão ou por outro tipo de institucionalizações(e.g., Carlen, 1987; Maher, 1997). Os contextos de origem das mulheres estudadas tendem a

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caracterizar-se por um nível socioeconómico desfavorecido e elas tendem a apresentar um nívelreduzido de escolaridade (e.g., Maher, 1997). Outro dado emergente neste tipo de estudos dizrespeito às diversas mudanças que, com frequência, ocorrem na estrutura familiar das mulherestransgressoras. Estas mudanças resultam, por exemplo, de saídas de casa por parte de prestadoresde cuidados, ou de outro tipo de perdas de figuras significativas (e.g., Batchelor, 2005). Nestasabordagens constatam-se com frequência padrões de violência nos contextos familiares de ondeas mulheres provêm, sendo comuns as histórias prévias de abuso, directo ou indirecto (e.g.,Batchelor, 2005; Maher, 1997). Finalmente, os estudos revelam o frequente envolvimento criminalde familiares das mulheres desviantes, que apresentam também diversas ocorrências jurídicas epenais (e.g., Cunha, 2002; Maher, 1997; Matos, 2008; Matos & Machado, 2007).

(RE)SIGNIFICAÇÕES DA CRIMINALIDADE FEMININA

Não obstante a pertinência da caracterização anterior, as asserções sobre transgressão femininae construção de identidades de género, emergentes da análise de discursos de mulheres quecometem crimes, constituem o grande contributo dos estudos de inspiração feminista para areconstrução dos discursos sobre trangsressão feminina. Estas asserções emergem dassignificações que as protagonistas do crime lhes atribuem quando constroem discursivamente oseu próprio desvio.

Constrangimentos de género na transgressão feminina

Quando as mulheres dão significado às suas experiências transgressivas, emerge um significadocomum que diz respeito a constrangimentos associados ao género feminino (e.g., Burman, Brown,& Batchelor, 2003). As circunstâncias genderizadas, que na perspectiva destas mulheresconstrangem os seus percursos, actuam em diferentes contextos de vida. Dificuldades a nívellaboral, de conciliação entre vida familiar e laboral, ou diversas formas de vitimação no âmbitode relações desiguais em termos de poder, são exemplos de circunstâncias que as mulheresassociam simultaneamente à sua condição feminina e ao seu envolvimento no crime (e.g., Almeda,2003; Burman, Brown, & Batchelor, 2003; Carlen, 1987). Estudos recentes realizados em contextoportuguês revelam que há constrangimentos de género ligados à criminalidade feminina, mas naperspectiva de apenas algumas mulheres. Por exemplo, um estudo sobre trajectórias de jovensreclusas revela que, de entre quatro significações do crime distintas, em apenas uma delas asjovens associam os crimes que cometem ao facto de serem mulheres (Matos, 2008).

Racionalidade na opção pelo crime

Contrastando com as teses da irracionalidade, estudos com o novo enquadramento reclamadopelas feministas vêm chamar a atenção para o facto de, as mulheres poderem cometer crimesintencional e racionalmente. Na base das escolhas racionais da mulher pela desviância estarãoconstrangimentos quer a nível económico, quer a nível da complexa interacção entre padrões dedinâmica familiar, estruturas sociais patriarcais e factores culturais. Como exemplo podemosreferir os estudos de Pat Carlen, no Reino Unido, que apontam no sentido de as mulheres,independentemente dos vários constrangimentos com que se deparam nos seus percursos de vida,optarem racionalmente e após ponderação pela via do crime (e.g., Carlen, 1983, 1987; Carlen etal., 1985). A escolha racional da mulher transgressora tem também sido evidenciada em estudos

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que se centram em tipos específicos de desviância, como tráfico e consumos de drogas (e.g.,Maher, 1997), prostituição (e.g., Oliveira, 2002; Phoenix, 2001) e crimes violentos (e.g., Batchelor,2005), ou em estudos sobre jovens reclusas (e.g., Matos, 2008). A racionalidade da criminalidadefeminina assentará na ideia de que a mulher escolhe a via do crime de entre outras opções que selhe afiguram menos razoáveis.

Em termos de perspectivação moral sobre o crime e o desvio e de auto-apresentação dasmulheres, os discursos dividem-se entre o das mulheres que referem estar comprometidas comactividades desviantes, assumindo uma identidade criminal (e.g., Batchelor, 2005; Carlen et al.,1985) e o discurso da condenação moral do crime, que as mulheres asseguram cometer apenas pornão haver outras opções possíveis (e.g., Almeda, 2003; Carlen, 1987, 1988). De assinalar que,situações específicas estarão na base da emergência de discursos particulares sobre o crime. Porexemplo, quando os crimes que as mulheres cometem têm como vítima um perpetrador de abuso,o significado associado ao crime é de justiça e de não arrependimento. Do ponto de vista dasmulheres, através desse tipo de actos criminais adquirem o respeito e o controlo de que foram atéaí privadas (e.g., Batchelor, 2005).

Globalmente, podemos considerar que os discursos emergentes em abordagens recentes àtransgressão feminina, de enquadramento feminista, revelam racionalidade das mulheres quecometem crimes. Os seus discursos contrastam, contudo, com as narrativas tradicionais que aindaprevalecem sobre o fenómeno e também com a resposta típica ao desvio feminino. Como sugerePat Carlen (2002), a resposta à transgressão feminina parece continuar a situar o fenómeno nairracionalidade da mulher, mais do que nas circunstâncias sociais que a rodeiam, não considerandoque a mulher pode actuar de forma racional e activa face ao enquadramento social do seu percursode vida, que lhe é desfavorável.

Entre a vitimação e o ‘empreendedorismo’

Finalmente, um outro argumento das abordagens feministas que contribui para a reconstruçãodos discursos sobre a criminalidade feminina, diz respeito à apresentação das mulheres comoempreendedoras ou como vítimas no desempenho de actividades criminais.

Comecemos pela vitimação, que tem sido um conceito fulcral nos discursos feministas sobre amulher transgressora, muitas vezes construída como uma vítima que necessita de apoio eprotecção. O discurso da vitimação acaba por ser amplamente utilizado nas perspectivasfeministas, através da conceptualização do desvio da mulher como, pelo menos em parte, resultadode experiências prévias de vitimação (e.g., Carlen, 1983; Chesney-Lind, 1997), e dos sentimentosnegativos que delas resultam (e.g., Batchelor, 2005). Nas perspectivas feministas, a construçãodiscursiva da ‘mulher ofensora vítima’ é também sustentada por dados empíricos que sugeremque a maioria das mulheres a cumprir sanções penais, sobretudo por crimes cometidos na esferadoméstica, são, também elas, vítimas de abuso (e.g., Henning, Jones & Holdford, 2003; Swan &Snow, 2002). Estes argumentos são, no entanto, alvo de críticas e objecto de debate dentro dopróprio movimento feminista. Snider (2003), ao estabelecer uma relação entre a conceptualizaçãoda desviância feminina e o contexto da punição da mulher desviante, conclui que o discurso davitimação prévia tem um efeito triplo: patologiza, individualiza e retira poder à mulher. Tambémoutras autoras criticam o discurso da transgressora vítima por este contribuir para a ideia, próximadas perspectivas positivistas, de que as mulheres que cometem crimes são de algum modo bizarrasou ‘anormais’ (e.g., Batchelor, 2005). Através desse discurso nega-se qualquer tipo de iniciativae escolha por parte das mulheres que cometem crimes.

No que respeita a conceptualização da mulher como empreendedora na actividade criminal,após as primeiras propostas de Freda Adler e Rita Simon, em 1975, e de um renascido interessepela ‘new female criminal’ nos anos noventa do século XX, surge posteriormente, entre as

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propostas feministas, um novo olhar para a mulher, que passa a ter mais poder e capacidade paraautonomamente escolher a via do crime entre outras alternativas possíveis. Esta é uma mulherresistente, com capacidade para contornar, particularmente através do crime as adversidades comque se depara. Segundo Chesney-Lind (1997) estamos perante uma nova versão da ‘hipótese daemancipação da mulher’, específica dos “guetos desindustrializados dos anos 90”, em que não éa etnia ou o género mas sim a posição socioeconómica que conduz a mulher a alternativas quepassam pelo crime. Na sua opinião, a desindustrialização contribui para a ‘desgenderização’ dasrelações e torna as mulheres mais capazes de cometer crimes violentos, tradicionalmenteassociados aos homens (Chesney-Lind, 1997). Também para outros autores, são mudanças sociaisque permitem que as mulheres tenham oportunidades semelhantes às dos seus pares masculinospara se envolverem em determinados tipos de crime (e.g., Baskin et al., 1993, citado por Chesney-Lind, 1997). Ainda em relação à tese do empreendedorismo, a transgressão feminina é por vezesconstruída pela mulher como um desafio aos papéis de género tradicionais, através da procura depoder, violência e transgressão, normalmente considerados desajustados à vivência feminina (e.g.,Carlen et al., 1985).

Considerando tipos específicos de crime, e começando pelo tráfico de droga, que representauma grande fatia dos crimes que conduzem as mulheres às prisões portuguesas, sugere-se quemudanças na própria dinâmica do crime facilitam a maior abertura à participação das mulheres(e.g., Maher, 1997). Para além do tráfico, abordagens a outros crimes específicos sustentam aideia do empreendedorismo da mulher na actividade criminal. Sobre o envolvimento em gangs temsido referida a inadequação da representação típica da mulher que se envolve em actos de violênciacomo inadaptada ou maltratada. Efectivamente, dados recentes reforçam a ideia da racionalidadee da iniciativa subjacente ao envolvimento das mulheres em gangs, que “constroem e negoceiama sua vida diária” (Miller, 2001, p. 2). Estudos sobre transgressoras mais jovens, têm reveladoque estas rejeitam o rótulo de vítimas, representando-se como pessoas que se apropriam dasnormas e valores sub-culturais para, através da violência, adquirirem respeito (e.g., Batchelor,2005).

Apesar da aparente incompatibilidade de conceitos, alguns autores propõem a conciliação davitimação e do empreendedorismo na análise da transgressão feminina, sugerindo que oenvolvimento da mulher na delinquência constitui em si mesmo uma estratégia para lidar com aviolência de que é vítima. Batchelor (2005), partindo de narrativas construídas por jovens quecometem crimes violentos, refere que estas podem ser simultaneamente consideradas vítimas, namedida em que o seu percurso é contextualizado por circunstâncias sociais adversas, eempreendedoras, pois a sua violência emerge como uma resposta racional a essas circunstâncias.

A par dos discursos constitutivos da mulher transgressora surgem discursos constitutivos dasua punição, ou seja, o modo como a mulher que transgride a lei é construída discursivamentetem implicações no modo como se pensa que ela deve ser punida (Snider, 2003). Nos discursosfeministas, a construção da mulher que comete crimes de forma empreendedora revela-separadoxal face aos objectivos das perspectivas feministas na criminologia. Ao contribuírem paraa construção de uma mulher forte, resistente, consciente de si mesma e auto determinada, asperspectivas feministas parecem contribuir para a criação de regimes mais punitivos. Mas estanão é uma questão pacífica para as suas autoras, que pretendem ter um papel activo ao nível daspolíticas de justiça criminal em relação à mulher. Por outro lado, construir a mulher transgressoracomo vítima é representá-la e tratá-la como necessitando mais de protecção do que de punição. Epodemos considerar que reclamar como principal benefício para as mulheres protecção e não tantojustiça se afasta dos discursos e ideologias feministas.

Entre as tentativas de dar resposta a este paradoxo, surgem propostas que apelam à rejeição deuma noção única da mulher que comete crimes, ultrapassando a dicotomia vítima inocente//criminosa resistente (Britton, 2000). Os diferentes estudos empíricos realizados junto de mulheres

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que transgridem a lei têm mostrado que os contextos dessa transgressão tendem a ser complexos. Porexemplo, a mulher que comete crimes pode apresentar uma trajectória de vida marcada por diversasformas de discriminação de género, e nesse sentido enquadrar-se no conceito de ‘mulher vítima’, masoptar com auto-determinação pela via do crime correspondendo à representação da ‘mulherempreendedora’. Como refere Britton (2000), ambos os conceitos estão interligados, pelo que sórompendo com a dicotomia vítima/resistente se poderá compreender a forma dessa interligação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após as primeiras abordagens sobre criminalidade feminina, no contexto da criminologia‘tradicional’, e após um longo percurso de transições epistemológicas e metodológicas no estudodo crime e das suas protagonistas, surgem na criminologia os discursos científicos sobre a trans -gressão feminina que atendem ao género e que o conceptualizam como fundamental na abordagema este fenómeno. A emergência desta nova conceptualização da criminalidade feminina coincidecom as perspectivas feministas sobre a transgressão da mulher, sendo indissociável do movimentofeminista em sentido lato. Como vimos, estas abordagens permitem a desconstrução dos discursostradicionais sobre feminilidade e transgressão, nomeadamente do modo estereotipado como amulher e o seu desvio têm vindo a ser representados. Possibilitam também a reconstrução dessesdiscursos, abrindo caminho para que a mulher que transgride a lei deixe de ser consideradaduplamente desviante e associada a crimes ‘tipicamente femininos’, resultantes da heterodetermi -nação e irracionalidade da mulher. Do ponto de vista metodológico, há também um contributofundamental das perspectivas feministas, na medida em que se dá voz (e poder) às mulheres nareconstrução dos discursos sobre a sua transgressão. Não podemos, contudo, terminar sem olhar deforma crítica para alguns aspectos das abordagens feministas, nomeadamente a por vezes excessivacentração no género, em detrimento de outras dimensões, como a etnia ou a classe social, quepoderão ser igualmente importantes na compreensão da transgressão feminina. Ou o facto de sedirigir o foco apenas para as mulheres, excluindo as experiências masculinas do mesmo modo quesão excluídas as femininas nas abordagens tradicionais da criminologia. Finalmente, pensamos queo compromisso político subjacente às abordagens feministas, quando excessivo, pode conduzir auma compreensão enviesada da transgressão da mulher. Paralelamente às críticas às perspectivasfeministas, salientamos a função dos outros discursos científicos construídos sobre a mulher e ocrime, criticados pelas autoras feministas. Mesmo os ‘tradicionais’ ou positivistas, que assumimoscomo os discursos que mais se afastam da nossa própria leitura do fenómeno, são fundamentais nopercurso até aos discursos feministas, que se afirmam e desenvolvem através das críticas quedirigem aos primeiros. Entre ambos, há “discursos de transição” (Matos, 2008), que constituemuma importante contribuição na abordagem científica da transgressão da mulher, pois é através dassuas propostas de novas leituras do crime e dos seus actores (nomeadamente a passagem para umavisão do crime como normal ou ideal, ou a mudança de enfoque do crime para a reacção social) quese cria espaço na criminologia para a emergência das perspectivas mais críticas, em particular asfeministas. Estas perspectivas de transição contribuem também com novas propostas metodológicas,nomeadamente as de cariz mais qualitativo e naturalista, que se desenvolvem e vêm a revelarfundamentais nas abordagens mais críticas da criminalidade da mulher.

Apesar do significativo percurso das perspectivas feministas na criminologia, ainda hoje, algunsolhares sobre a transgressão, feminina e masculina, a associam a factores individuais, de ordembiológica ou psicológica, insistindo numa leitura determinista do comportamento criminal. Nocaso feminino, esses olhares são ainda reforçadores dos estereótipos de género, razão pela qual ahistória das perspectivas feministas na criminologia se continua a escrever.

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In this paper, we analyze the feminist perspectives in criminology, particularly, the discourses onwomen, crime and gender. It starts with a broad view of the feminist contributes to the construction ofknowledge and then a historical review of the emergence and consolidation of feminist perspectives

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in criminology is presented. It discusses in particular the feminist argument that the social constructionof gender has an impact on the life trajectories of women who commit crimes, and is reflected in theformal and informal response to such transgressions. Finally, it analyzes the main criticisms of feministauthors towards the traditional criminology discourses about women and crime as well as the feministproposals for the reconstruction of such discourses.

Key-words: Feminist perspectives, Gender, Women and crime.

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Análise Psicológica (2012), XXX (1-2): 49-61

O ‘problema da droga’: Sua construção, desconstrução e reconstrução

Olga Souza Cruz* / Carla Machado** / Luís Fernandes***

*Instituto Superior da Maia; **Escola de Psicologia, Universidade do Minho; ***FPCE, Univer -sidade do Porto

Representações negativas sobre a utilização de substâncias psicoactivas predominam desde há muito,em grande medida, pelo facto de esta prática continuar a ser analisada a partir de uma perspectivaproblemática. Manifestações alternativas persistem, portanto, votadas a uma relativa ignorância,continuando a evitar-se o debate acerca das suas dimensões hedonísticas e dos padrões de consumoque são eficazmente conciliados com a vida convencional. Nos últimos anos tem-se assistido, todavia,a um aumento dos trabalhos académicos (sobretudo antropológicos e sociológicos) centrados emexperiências que não se enquadram em padrões ‘problemáticos’ e que promovem um entendimentomais adequado sobre esta prática e os seus protagonistas. Tais trabalhos têm mostrado que, tal comofoi construído como um problema, este fenómeno pode ser desconstruído e reconstruído em moldesalternativos, desafiando, assim, os discursos dominantes. É a este exercício de construção edesconstrução do ‘problema da droga’, assim como de reconstrução do fenómeno em moldesalternativos, que dedicamos o presente artigo.

Palavras-chave: Consumos ‘não problemáticos’, Consumos ‘problemáticos’, Utilização de drogasilícitas.

A CONSTRUÇÃO DO ‘PROBLEMA DA DROGA’

Compreender o processo de construção social da droga como um problema (de delinquênciaou de doença) implica recuar ao século XIX para rever a emergência, na América do Norte, dosprimeiros modelos de entendimento e controlo do seu uso, o político-jurídico e o médico--psicológico, que a partir daí se estenderam à globalidade do mundo ocidental (Barbosa, 2006;Romaní, 2003). De facto, até à segunda metade do século XIX o uso de substâncias psicoactivasera tido apenas como uma das muitas práticas sociais/culturais, não sendo encarado como umproblema nem como um alvo de preocupação ou mediatização sociais e não sendo controladopelos governos (Escohotado, 1996/2004; Ribeiro, 1995; Romaní, 2008; Szasz, 1992).

Apesar das suas particularidades, os referidos entendimentos evidenciam vários pontos decontacto, desde logo pelos seus intentos de erradicar as drogas/promover a abstinência e de operarcomo meios de controlo social (Barbosa, 2006; Romaní, 2003). Estes são, aliás, frequentementecriticados, por se considerar que resultam de uma construção social operada por grupos sociaispoderosos, associados sobretudo à religião, à política e à indústria, em especial a que produzsubstitutos legais para as substâncias ilícitas (Becker, 1963/1973; Szasz, 1992; Thornton &Bowmaker, s/d). A ênfase, comum aos dois modelos, das limitações dos sujeitos, em detrimento defactores externos, para explicar o ‘problema das drogas’ (Humphreys & Rappaport, 1993) tem

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A correspondência relativa a este artigo deverá ser enviada para: Olga Sousa Cruz, ISMAI, Av. Carlos OliveiraCampos, Castelo da Maia, 4475-690 Avioso, S. Pedro. E-mail: [email protected] / [email protected]

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permitido identificar ‘bodes expiatórios’, nos quais se depositam temores e problemas sociais, e quelegitimam o aumento do controlo estatal, social e médico. Ambos os entendimentos encaram oconsumo como um afastamento em relação a uma norma (criminal, patológica ou uma combinaçãode ambas) e, apesar de usarem argumentos envoltos numa linguagem científica, são perpassados porconceptualizações morais (Romaní, 2003). Além disso, é frequente o cruzamento dos modelospolitico-jurídico e medico-psicológico, quer pela sua alternância quer pela sua combinação, enquantoexplicação dominante para as drogas (Barbosa, 2006; Szasz, 1992; Thornton & Bowmaker, s/d).

Discursos ‘tradicionais’: Modelo político-jurídico

O modelo politico-jurídico foi amplamente impulsionado pelo movimento social de ‘cruzada’contra as drogas, dinamizado na América do Norte em finais do século XIX, onde, sensivelmentena mesma altura, se inaugurou a implementação de estratégias proibicionistas, a criminalizaçãodos consumidores e a aprovação de diversas legislações que vieram alterar o seu perfil, passandoa representá-lo como delinquente (Barbosa, 2006; Escohotado, 1996/2004; Romaní, 2003; Szasz,1992). Norteada por uma apologia do puritanismo e da temperança, e por uma propensão para oetnocentrismo, a América do Norte impulsionou várias discussões sobre as drogas entre acomunidade internacional, para persuadir da necessidade de políticas proibicionistas (Fernandes,2009; Romaní, 2003; Szasz, 1992; Thornton & Bowmaker, s/d).

A partir destes esforços, o entendimento político-jurídico, que enfatiza o binómio droga-delin -quência e a relevância de medidas proibicionistas e de controlo e repressão sociais, manteve-sehegemónico, no mundo ocidental, durante todo o século XX (Barbosa, 2006; Romaní, 2003; Szasz,1992; Thornton & Bowmaker, s/d).

Em Portugal o ‘problema da droga’ conta com cerca de trinta anos, não havendo, até então,preocupações de aniquilar as drogas, de diminuir o seu uso ou de intervir nas suas consequênciassociais e sanitárias. Até por volta de 1980 as poucas legislações que existiam a este nível,decorrentes das convenções internacionais, visavam regular e inspeccionar o uso destassubstâncias, e só com o Decreto-Lei nº 420/70 é que se inaugurou uma política criminalizadora(Barbosa, 2006). As duas primeiras campanhas públicas contra as drogas exemplificam oalarmismo social fomentado pelo governo português na ausência de dados justificativos. Autilização de tais campanhas pelo poder político pode, assim, ser entendida como uma forma deconstruir estas substâncias enquanto ameaça externa para, desse modo, condicionar os indivíduosem função dos interesses a defender e afastar responsabilidades pelo problema.

De facto, a preocupação social e o medo sobre as drogas, fomentado por certos grupos com poder,inclusive pela sua mediatização e pela potenciação de um sentimento de pânico moral, tem vindo adesempenhar um papel central na construção do ‘problema da droga’. Em períodos de poder políticoconservador, e em particular de tensão social, estas substâncias tendem a ser reprovadas e encaradascomo um problema individual motivado por defeitos dos sujeitos (Humphreys & Rappaport, 1993).Todavia, é de notar que os mesmos grupos com poder que em certas ocasiões protagonizam acérrimasapologias do proibicionismo, noutras alturas promovem o consumo, como ocorreu em diversassituações de guerra nas quais os governos forneciam drogas aos soldados.

Globalmente, o espírito proibicionista de que temos vindo a dar conta persiste em todo oocidente, sendo revitalizado mesmo depois de fases de perda de influência a favor de outrosentendimentos.

Discursos ‘tradicionais’: Modelo médico-psicológico

As origens do modelo médico remontam ao final do século XIX, quando médicos ingleses eamericanos principiaram o debate sobre a “‘doença’ da adição de droga” (Wilbanks, 1989, p. 409).

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Este entendimento encara o consumo como um problema médico, o consumidor como um doentenecessitado de ajuda externa e o recurso a estratégias terapêuticas, implementadas por profissionaisde saúde especializados e destinadas a promover a abstinência, como a intervenção adequada.Esta explicação contribuiu para que, por volta de 1910, surgisse um modelo amadurecido da‘doença da adição’ (Wilbanks, 1989) acompanhado de uma linguagem própria, com noções comodependência, craving, síndroma de abstinência e tolerância (Keene, 2001). Tais conceitos, aindahoje amplamente usados, apontam para uma compulsão (psicológica e fisiológica) de consumoirrefreável, que ultrapassa a força de vontade do sujeito (Wilbanks, 1989). Adopta-se, assim, umavisão incapacitante dos consumidores, que são patologizados (Barbosa, 2006; Romaní, 2003),desresponsabilizados pelo seu consumo, tidos como pouco esclarecidos sobre o mesmo, comoincapazes de o resolver sozinhos (Wilbanks, 1989) e como pouco aptos para tomar decisões, oque permite legitimar os tratamentos coercivos (Fernandes, 2009; Romaní, 2003).

A relevância deste modelo consagrou-se sobretudo a partir de 1956, quando a AssociaçãoMédica Americana começou a equiparar o alcoolismo à doença (Wilbanks, 1989), e o seu augeocorreu durante a epidemia do VIH/SIDA, quando se constatou a ineficácia do modelo político--jurídico para lidar com tal problema (Romaní, 2003; Stevens, 2007). No âmbito destaconceptualização médico-psicológica e tradicional das drogas é possível englobar váriasabordagens que, genericamente, agrupamos em neurofisiológicas e em psicopatológicas epsicológicas.

Neurofisiologicamente crê-se que as várias substâncias psicoactivas interferem com a troca deneurotransmissores, como a serotonina e a dopamina, largamente responsáveis pela regulação doprazer e dos estados de humor, sendo capazes de potenciar um estado reforçador de euforia eprazer, de um modo relativamente independente das circunstâncias psicológicas e sociais em queo consumo ocorre (Weinberg, 2002). Considera-se, assim, que um uso continuado pode provocaruma adaptação neurofisiológica reforçadora, que contribui para a tolerância das drogas e,consequentemente, para estados de anedonia e de sintomas de abstinência na sua ausência(ibidem).

Quanto às abordagens psicopatológicas e psicológicas, a psicanálise é comummentereconhecida como o berço das conceptualizações sobre a dependência, remontando ao final doséculo XIX as primeiras formulações sobre a mesma (Ribeiro, 1995). Apesar dos diferentesquadros de referência integrados nesta corrente, há certas dimensões que as perpassam, como avalorização de modelos compreensivos, que enfatizam o papel dos significados, das noções deregressão e identificação, e de aspectos relacionados com a biografia do consumidor (Agra &Fernandes, 1993). A perspectiva dos quadros clínicos destaca-se pelas suas preocupaçõesnosográficas, procurando classificar os consumos em função de desordens psíquicas. Atoxicodependência é, neste sentido, equiparada a perturbação mental, associada a quadrospsicopatológicos e compreendida através de noções como dependência e escalada (Agra &Fernandes, 1993). Outra abordagem é a que procura reconhecer personalidades que predispõepara o uso de substâncias psicoactivas, e que se desdobra em três grandes vertentes: a daspersonalidades toxicofílicas (que tenta identificar uma estrutura da personalidade típica doconsumidor e responsável pelo seu uso/abuso das drogas), a dos perfis border-line (que inauguraa valorização de diferentes perfis de personalidade, concretamente os dos estados-limite, e dacompreensão do funcionamento dinâmico do sujeito e das suas especificidades psicológicas), e ada “investigação descritiva da personalidade” (que enceta o recurso a noções como autoconceito,auto-estima, autocontrolo e resistência à frustração para explicar o consumo e a dependência)(Agra & Fernandes, 1993, p. 59). A perspectiva comportamental, por sua vez, atribui o uso dedrogas a um hábito do sujeito, que se tende a manter por ser mais reforçador do que outros(Wilbanks, 1989), tanto de forma positiva (e.g., para usufruir do prazer) como negativa (e.g., paraterminar os sintomas de abstinência) (Skinner, 1953/1981). Por fim, as explicações cognitivistas

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enfatizam o papel das cognições, sobretudo das crenças irracionais dos consumidores que facilitamo uso de drogas, como a da baixa tolerância à frustração e a da dependência como forma deafastamento face aos problemas (Ellis, McInerney, DiGiuseppe, & Yeager, 1988).

A DESCONSTRUÇÃO DO ‘PROBLEMA DA DROGA’

Além dos discursos ‘tradicionais’, anteriormente analisados, têm vindo a ser desenvolvidosentendimentos alternativos que permitem um olhar mais abrangente sobre o consumo e adesconstrução do ‘problema da droga’, e que organizamos em dois grandes grupos, o dos discursos‘alternativos’ e o dos discursos ‘críticos’.

Discursos ‘alternativos’: Antropologia e sociologia

Sob a designação de ‘alternativos’ agrupamos entendimentos sobre as drogas, provenientes daantropologia e da sociologia desenvolvida a partir da segunda metade do século XX, que realçamas limitações dos modelos politico-jurídico e medico-psicológico e que se afastam deles, querpelos objectos e métodos de estudo que privilegiam quer pela sua tentativa de ‘normalizar’ ocomportamento transgressivo.

Estas conceptualizações introduzem novidades para a compreensão das drogas, desde logo, aoconsiderarem que os seus usos e abusos não resultam directamente das dimensões farmacológicasdas substâncias nem de características dos consumidores, dependendo de diversoscondicionalismos, inclusive sociais, culturais, e pessoais, como os significados que lhe sãooutorgados e que são socialmente influenciados (Pallarés, 1995/1996; Romaní, 2008; Tinoco,1999). Realçam, também, que os consumos se revestem de múltiplos significados e que têm deser compreendidos no contexto temporal, espacial e social em que emergem (Young, 1971).Recusam, assim, explicações que o reduzem a um problema de delinquência ou de doença,encarando-o a partir da tríade substância-sujeito-meio. Deste modo, ao invés de uma posturareducionista, que olha somente para as dimensões negativas, tais abordagens admitem a existênciade múltiplos tipos de utilizações e utilizadores, e consideram que o percurso do consumo éamplamente influenciado pela reacção social, que, por seu turno, é condicionada pelo pânico moralque sobre ele se foi construindo. O desvio é tido, portanto, como o produto de um processo deinteracção social, e não como um atributo inerente ao comportamento, e, ao invés do foco causale correlacional, privilegia-se a compreensão das especificidades do sujeito que usa as drogas,assim como um interesse naturalista, contextualizado, participante, descritivo e centrado nossignificados que os próprios atribuem às suas acções (Agra & Fernandes, 1993; Moore, 2002).

Englobamos os contributos antropológicos nos discursos ‘alternativos’, desde logo, pela suapreocupação de partir das perspectivas dos próprios actores, mas sem descurar a análise dasdimensões simbólicas das sociedades e culturas, recorrendo amplamente à comparação e aométodo etnográfico. Estes ensinamentos removem o pendor problemático outorgado às drogas(Agra & Fernandes, 1993), inclusive ao mostrar que, do ponto de vista histórico, admitir-se aexistência de consumos ‘não problemáticos’ não constitui grande novidade. Alertam, também,para a transversalidade do uso de várias substâncias psicoactivas ao longo da história dahumanidade numa busca de estados alterados de consciência, assim como para os inúmerossignificados e funcionalidades que o caracterizam, desde as mais instrumentais (e.g., auto-cuidado)às mais expressivas (e.g., práticas religiosas, prazer) (Escohotado, 1996/2004; Pallarés, 1995/1996;Ribeiro, 1995; Romaní, 2008). Outro contributo antropológico relevante prende-se com a

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conceptualização do consumo como fruto de um processo de aprendizagem que ao focar, entreoutros, a sua perigosidade e necessidade de ponderação, potencia o seu carácter funcional e evitaa sua disrupção. É, portanto, enfatizado o controlo informal, exercido tanto pela colectividadecomo pelos utilizadores, embora muitas vezes de forma inconsciente (Pallarés, 1995/1996; Ribeiro,1995; Romaní, 2008).

Quanto aos ensinamentos sociológicos que ajudam a desconstruir o ‘problema da droga’ é desublinhar, desde logo, o interaccionismo simbólico, por considerar que a sociedade é constituídapor agentes sociais activos, o que exige atender ao nível micro, dos significados, símbolos einteracções (Blumer, 1969/1982). De salientar, também, o carácter significante que reconhecemao comportamento humano e à vida social, assim como a valorização de metodologias que dãovoz aos próprios actores e que permitem perceber o enquadramento situacional em que se inserem(ibidem). Neste sentido, considera-se que o consumo depende do sentido que este faz para osujeito, dos significados que este lhe atribui e do modo como tal experiência é integrada na suahistória (ibidem).

Realça-se, também, a new deviance theory, pela relevância que assaca aos modelos processuaisda desviância, ao interaccionismo simbólico e à teoria da rotulagem, caracterizando o sujeito comoactivo, com capacidade reflexiva e responsável pelas suas escolhas, e a sociedade como fruto deuma pluralidade de valores, por integrar vários grupos com interesses distintos, que por vezesconcordam e cooperam e por outras discordam e entram em conflito (Becker, 1963/1973; Young,1971). Igualmente relevantes são as suas noções de que os consumos podem ocorrer por prazer ede que a desviância não é uma característica intrínseca ao comportamento (Becker, 1963/1973;Matza, 1969; Young, 1971). É, portanto, reconhecido o papel determinante da rotulagem, por secrer que uma conduta só é definida como desviante quando alguém, com certos valores, actua decerta forma e esta acção é rotulada como tal por grupos com valores distintos, poderosos e capazesde impor os seus valores, inclusive pelo controlo que detêm sobre mecanismos ideológicos erepressivos (Becker, 1963/1973; Young, 1971). A teoria da rotulagem afigura-se-nos igualmentecentral ao alertar para a possibilidade de a rotulação social actuar como uma profecia que se auto-cumpre, por constranger as possíveis escolhas futuras do sujeito. Isto porque o rótulo tende areunir a atenção de terceiros no estatuto que promove e a dificultar a apreciação de outros estatutose papéis sociais, facilitando a interiorização da ideia de incapacidade para se desvincular de taletiqueta e da percepção de que a única opção é manter o comportamento, assim como a alteraçãona auto-percepção da desviância, pela sobrevalorização desta característica em detrimento deoutras (Lemert, 1972, citado por Moore, 2002; Young, 1971). De acordo com a teoria da rotulagem,as imagens veiculadas sobre as drogas são distorcidas nos seus conteúdos e amplitude, em grandemedida pela função amplificadora da comunicação social, promotora do pânico moral que, porseu turno, contribui para o incremento das estatísticas sobre o fenómeno (Becker, 1963/1973;Young, 1971).

No âmbito destes discursos ‘alternativos’ valorizamos particularmente as obras de Becker(1963/1973), Matza (1964, 1969) e Goffman (1963/1975), desde logo, por proporem modosalternativos aos tradicionais para analisar a conduta de indivíduos etiquetados como desviantes,tanto em termos conceptuais (ao alertar para o carácter construído da norma e do desvio), comometodológicos (pelo recurso à investigação etnográfica). Igualmente central parece-nos ser a suaperspectiva de que sujeitos normais e estigmatizados partilham valores idênticos, o que apontapara a ausência de uma ruptura abrupta entre eles, bem como de que o consumo tem de serentendido como um processo, com fases distintas nas quais operam condicionalismos específicos(Becker, 1963/1973; Goffman, 1963/1975; Matza, 1964, 1969). Propõe, portanto, teoriasprocessuais, que afastam preocupações causalistas e realçam as aprendizagens que o sujeito realizana interacção com outros grupos (ibidem). Defendem, também, só haver uma carreira nas drogasquando o indivíduo progride nas várias fases do processo, realiza as aprendizagens necessárias e

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modifica a sua auto-imagem, interiorizando uma significação das substâncias como partefundamental da sua vida, assim como uma identidade desviante (ibidem). Igualmente centraisparecem-nos ser os contributos de Matza (1964), ao enfatizar que o processo de se tornar desvianteenvolve algum determinismo e influência externa mas também a agência e capacidade de tomadade decisão dos indivíduos, e que a conduta transgressiva se reveste de alguma racionalidade, quecapacita os indivíduos a adaptarem os seus valores convencionais para justificar a acção desviantee para facilitar o envolvimento na mesma.

Discursos ‘críticos’: Consumidores e outros defensores do direito ao consumo

Designamos de ‘crítico’ um discurso actual sobre as drogas que nos parece mais arrojado faceao estado da arte, tanto pelas ideias que veicula como pelos apoiantes que envolve. Trata-se, emgeral, de colectividades constituídas por consumidores e não consumidores (inclusive pessoas quetrabalham na área das drogas), que têm ganho algum poder e relevo social nos últimos anos, eque defendem que o consumo não é necessariamente problemático e que se inscreve no direito aoprazer, quando não acarreta prejuízos significativos (Fernandes, 2009; Stevens, 2007). Apoiam,portanto, a adopção de políticas de redução de riscos, o fim do proibicionismo, a descriminalizaçãodo consumo (sobretudo de canabinóides) e a sua regulação (ENCOD, 2010; Farr; 1990; Fernandes,2009; Transform Drug Policy Foundation, 2009). Igualmente relevantes são os movimentos deapoio a populações indígenas, que reclamam o seu direito de liberdade religiosa, no qualenquadram o uso imemorial de certas substâncias alucinogéneas, considerando que as políticasproibicionistas o violam (Farr, 1990).

A RECONSTRUÇÃO DO FENÓMENO DA DROGA

Vários trabalhos recentes sobre as drogas, desenvolvidos quer pela comunidade científica (emespecial nas áreas da psicologia e sociologia) quer por organismos oficiais (tratando-se, sobretudo,de estudos epidemiológicos), permitem reconstruir este fenómeno em moldes alternativos e maisadequados. Isto porque, desde logo, criticam a tendência generalizada de sobrevalorização dosaspectos problemáticos das drogas e de negligência das suas dimensões hedonísticas e do prazerenquanto motivo para o consumo (Agra & Fernandes, 1993; Fernandes & Carvalho, 2003; Rovira& Hidalgo, 2003; Smith & Smith, 2005; Stevens, 2007). Reconhecem, portanto, dimensõespositivas nesta prática, mas não negam os riscos de todas as drogas, lícitas ou ilícitas (Carvalho,2007; Gamella & Roldán, 1999; Pallarés, 1995/1996; Romaní, 2008; Rovira & Hidalgo, 2003;Szasz, 1992). Globalmente, estes trabalhos sublinham a necessidade de uma compreensão holísticae multidisciplinar do uso e abuso das drogas, que atenda a todos os seus condicionantes, inclusivefarmacológicos, biológicos, psicológicos, socioeconómicos, culturais e relacionados com o tipode consumo (e.g., substâncias usadas, quantidade, regularidade e modo de ingestão) (Agra &Fernandes, 1993; Figueiredo, 2002; Pallarés, 1995/1996; Torres, Lito, Sousa, & Maciel, 2008).Declinam-se, assim, concepções reducionistas, como as que atribuem os problemas com as drogasàs suas propriedades farmacológicas (Gamella & Roldán, 1999; Romaní, 2008; San Julián &Valenzuela, 2009), ou as que veiculam uma ideia de escalada inevitável, tanto nas drogas usadascomo no carácter problemático do consumo (Agra & Fernandes, 1993; Figueiredo, 2002; Pallarés,1995/1996).

Tais trabalhos alertam para a existência de vários tipos de consumos e consumidores, inclusiveos que não se enquadram nas tradicionais representações problemáticas (Calado, 2006; Galhardo,

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Cardoso, & Marques, 2006; Gourley, 2004; Hser, Longshore, & Anglin, 2007; Keene, 2001;OEDT, 2009; Pallarés, 1995/1996; Pilkington, 2006; Stevens, 2007; Taylor, 2008). Nesta lógica,os consumos costumam ser diferenciados a partir da sua regularidade (e perigosidade associada)– nomeadamente em experimentais, esporádicos, habituais, abusivos e dependentes –, embora sedefenda que não há uma progressão inevitável (rejeitando-se a ideia de escalada) e que é possívelpermanecer num qualquer nível precoce e nunca experienciar dependência nem prejuízossignificativos (Figueiredo, 2002; Pallarés, 1995/1996). Alguns estudos destacam que grande partedos consumidores nunca desenvolve usos abusivos ou dependentes (Figueiredo, 2002; Frisher &Beckett, 2006; Keene, 2001; Pallarés, 1995/1996; Pilkington, 2006; Taylor, 2008), e que, para asua maioria, esta prática não se mantém perenemente, caracterizando somente uma fase deexperimentação ou de uso circunscrito à juventude (Hartnoll, 2002; Soellner, 2005). O fim dosconsumos tende a ser associado à evolução do ciclo vital, nomeadamente a motivos laborais efamiliares (Hartnoll, 2002), e o uso de cannabis emerge como o que mais costuma persistir até àidade adulta (Wadsworth, Moss, Simpson, & Smith, 2006). Além disso, vários trabalhos apontampara um número relativamente reduzido de utilizações regulares ou intensivas, que tendem a serfacilitadas por circunstâncias sociais como a oportunidade e a acessibilidade das drogas (Calafat,Fernández, Juan, & Becoña, 2005; Hartnoll, 2002; Pallarés, 1995/1996). Os usos juvenis,experimentais ou descontínuos são, também, frequentemente atribuídos à curiosidade sobre asdrogas e a motivações lúdicas, sobretudo pelo prazer que proporcionam (Balsa, Farinha, Urbano,& Francisco, 2004; Becker, 1963/1973; Calafat et al., 2005; Pallarés, 1995/1996).

Portugal é o país europeu que mantém as mais baixas prevalências de consumo, excepto deheroína (IDT, 2010) e, à semelhança do que se verifica internacionalmente, são amplamentedocumentados padrões de policonsumo (Galhardo et al., 2006; Levy, O’Grady, Wish, & Arria,2005; OEDT, 2009; Parker, Williams, & Aldridge, 2002).

Padrões de consumo ‘problemáticos’

‘Toxicodependente’ ou ‘junkie’ são algumas das denominações que se costuma aplicar aconsumidores com uma falha na autonomia individual (Frisher & Beckett, 2006), que não semostram capazes de controlar e gerir os consumos (Fernandes & Ribeiro, 2002; Quintas, 2006),tornando-se dependentes e experienciando prejuízos diversos (Pallarés, 1995/1996). Este padrãoé tipicamente associado ao uso prolongado de heroína e ao consumo injectado, sendo outrassubstâncias, sobretudo cannabis e crack, relegadas para segundo plano (Fernandes & Carvalho,2003; Keene, 2001; Pallarés, 1995/1996). O traficante é, em geral, a principal fonte de acesso àsdrogas (Balsa et al., 2004; Carvalho, 2007), e os consumos tendem a ocorrer em zonas urbanasdegradadas e marginalizadas (Pallarés, 1995/1996).

Um relatório recente do IDT (2010) aponta para taxas de utilizações problemáticas, napopulação portuguesa em geral dos 15 aos 64 anos, entre 6,2-7,4 por mil habitantes, para umamaior procura de apoio formal pelos consumidores de opiáceos e para um intervalo deaproximadamente oito anos entre o início de tal consumo e o primeiro contacto com o tratamento(OEDT, 2009).

Este tipo de utilizações surge intimamente associado a recaídas (Figueiredo, 2002; Hser et al.,2007; Keene, 2001; Pallarés, 1995/1996), cuja compreensão se considera implicar a atenção afactores dos sujeitos e a outros externos, como os estímulos relacionados com as drogas (Torreset al., 2008). Os consumidores com experiências de tratamento tendem a justificar o fracasso dastentativas de deixar os consumos pela sua falta de motivação e pelo prazer que estes proporcionam,assim como a atribuir o seu sucesso à vontade pessoal e ao suporte familiar e terapêutico (Pallarés,1995/1996; Torres et al., 2008). Além disso, usos mais intensivos ou problemáticos costumam ser

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associados a circunstâncias socioeconómicas desfavoráveis e a dificuldades pessoais, familiarese profissionais (Torres et al., 2008).

O consumo problemático é conceptualizado, em vários estudos, como um processo longo, queenvolve várias fases, factores condicionantes e mudanças, e cujo auge se atinge com a consolidaçãode uma identidade e/ou de um estilo de vida em que a droga é o elemento central (Pallarés,1995/1996; Romaní, 2008; Tinoco, 1999). As referidas mudanças verificam-se, entre outros, nossignificados dos consumidores (sendo comum a atribuição de uma crescente centralidade àssubstâncias e ao papel de dependente), na sua percepção e gestão do tempo (que costumam tornar-se dependentes do uso das drogas), nas suas interacções com os outros e com os próprios espaços(sendo habitual o seu progressivo estreitamento), na auto-gestão da saúde e nas suas relaçõeslaborais e condições económicas (em geral, cada vez mais deterioradas), nos relacionamentos comos sistemas de controlo formal (pois, habitualmente, aumenta a probabilidade de entrarem emcontacto com sistemas terapêuticos e/ou legais) e na regularidade do consumo e quantidadesusadas (que tendem a aumentar) (Pallarés, 1995/1996; Romaní, 2008).

Padrões de consumo alternativos aos ‘problemáticos’

Consumos alternativos aos ‘problemáticos’ são cada vez mais documentados, nacional einternacionalmente (Percy, 2008; Pilkington, 2006), sendo inclusive realçado o aumento da suaprevalência (Parker et al., 2002). A caracterização destes consumidores costuma realçar a suacapacidade de conciliar o uso das drogas com um estilo de vida convencional e de manter oajustamento global, sendo frequentemente descritos como estudantes universitários ou comosujeitos inseridos no mercado de trabalho (Frone, 2006; Galhardo et al., 2006; Gourley, 2004;Parker et al., 2002; Smith & Smith, 2005). Vários trabalhos debruçam-se, ainda, sobrefrequentadores de contextos de recreação nocturna, realçando a sua prevalência de consumoparticularmente expressiva (Calafat et al., 2005; Deehan & Saville, 2003; OEDT, 2009; Parker etal., 2002).

Nestes padrões são comuns policonsumos, que tendem a envolver um uso regular de cannabisesporadicamente acompanhado pelo de outras substâncias, sobretudo cocaína inalada (Galhardoet al., 2006; Levy et al., 2005).

O autocontrolo dos consumidores é amplamente valorizado para a manutenção de consumos‘não problemáticos’ (Carvalho, 2007; Kelly, 2005; Parker et al., 2002; Percy, 2008; Quintas, 2006;Rovira & Hidalgo, 2003; Whiteacre & Pepinsky, 2002), uma vez que estas regras e condutas auto-impostas, destinadas a regular várias dimensões do consumo (e.g., contextos, quantidades),promovem a minimização e gestão dos seus riscos (Cohen, 1999). Segundo alguns trabalhos, amaioria dos consumidores impõe diversos autocontrolos a esta sua prática, para a manterconciliada com as actividades convencionais, como se manifesta pelos ajustamentos que lhe vãofazendo em função da qualidade das suas experiências de consumo (Carvalho, 2007; Cohen, 1999),assim como pelos casos de remissões espontâneas (Soellner, 2005).

Igualmente valorizadas são as concepções de risco dos sujeitos, pelo seu papel central naminimização e evitamento dos potenciais prejuízos das drogas, e por orientarem as decisões sobreo consumo (Kelly, 2005; Parker et al., 2002). Em investigações recentes é comummente destacadaa consciência dos utilizadores destas substâncias quanto aos riscos e danos que estas podemenvolver (Deehan & Saville, 2003; Kelly, 2005; Levy et al., 2005; Parker et al., 2002; Romaní,2008; San Julián & Valenzuela, 2009), assim como a dimensão social e cultural de tais concepções,cuja construção depende largamente de processos sociais que são condicionados pelos ambientesculturais (Gamella & Roldán, 1999; Kelly, 2005). Alguns estudos sugerem que são vários ossujeitos que, apesar de conscientes dos seus riscos, optam por usar drogas, o que aponta para a

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importância dos benefícios que lhes atribuem e para a probabilidade de estes serem maisvalorizados do que os prejuízos antecipados (Kelly, 2005; San Julián & Valenzuela, 2009).

Para a manutenção de consumos ‘não problemáticos’ costumam ser, também, valorizados oscuidados de gestão desta prática, adoptados pelos indivíduos que, ponderando os riscos ebenefícios das drogas, optam por as utilizar (Carvalho, 2007; Deehan & Saville, 2003; Fernandes& Ribeiro, 2002; Kelly, 2005; Parker et al., 2002; San Julián & Valenzuela, 2009; Whiteacre &Pepinsky, 2002). Um desses cuidados prende-se com a diferenciação das drogas que osconsumidores tendem a estabelecer em função da distinta perigosidade que lhes associam e queos leva a optar pelas que consideram mais conciliáveis com a manutenção de uma vidaconvencional (sobretudo os canabinóides) e a rejeitar as que julgam ser mais danosas (em especiala heroína e o crack) (Calado, 2006; Carvalho, 2007; Figueiredo, 2002; Parker et al., 2002).Igualmente enfatizada é a importância de adquirir conhecimentos sobre as drogas, inclusive paradesenvolver concepções de risco e para gerir estrategicamente o consumo, de modo a governaros seus potenciais perigos (Deehan & Saville, 2003; Kelly, 2005). As experiências com outrosconsumidores são também valorizadas, já que os sujeitos tendem a decidir sobre a experimentaçãodestas substâncias e sobre o modo de as usar com base nos mecanismos de controlo social e nassuas aprendizagens em grupos de consumidores, onde se difundem normas que ajudam a gerir osconsumos e a evitar más experiências (Becker, 1963/1973; Gourley, 2004; San Julián &Valenzuela, 2009). Salientam-se, do mesmo modo, cuidados de gestão da aquisição das drogas ea preferência, da maioria dos consumidores, de o fazer através das suas redes deinterconhecimento, para tentar assegurar a sua qualidade (já que acreditam haver uma maioradulteração das substâncias quando são compradas a desconhecidos) e evitar problemas legais(pois consideram que, deste modo, se conseguem manter afastados de vendedores e locais detransacção que julgam mais propícios à ocorrência de problemas) (Carvalho, 2007; Deehan &Saville, 2003; Parker et al., 2002). Igualmente comuns são as referências a cuidados com aregularidade do consumo (Gourley, 2004; Parker et al., 2002; Pilkington, 2006), sendo enfatizadaa relevância de ir interrompendo os usos regulares das substâncias quando se antecipam problemasa eles associados (Carvalho, 2007; Kelly, 2005). São também descritos cuidados referentes àsquantidades usadas, realçando-se a necessidade de as moderar (Cohen, 1999; Gourley, 2004; Kelly,2005; Parker et al., 2002) e de aprender quais as dosagens mais adequadas para o próprio(Carvalho, 2007; Figueiredo, 2002; Pilkington, 2006). As circunstâncias e os contextos doconsumo são outras dimensões usualmente cuidadas pelos consumidores, que valorizam aimportância de só usar as drogas (sobretudo outras além dos canabinóides) quando estão numestado psicológico favorável, acompanhados por pessoas de confiança e em locais apropriados(Calado, 2006; Carvalho, 2007; Cohen, 1999; Gourley, 2004). Espaços de recreação nocturna(Galhardo et al., 2006; OEDT, 2009; Parker et al., 2002) e residências privadas (Balsa et al., 2004)surgem, assim, como relevantes contextos de consumo. Por fim, encontram-se algumas referênciasa cuidados de ocultação do uso das drogas (Fernandes & Carvalho, 2003; Goffman, 1963/1975;Smith & Smith, 2005), o que ajuda a compreender a caracterização destes sujeitos como‘populações ocultas’ (Calado, 2006).

REFLEXÕES FINAIS

Com este artigo procurou argumentar-se que o uso de substâncias psicoactivas não é umproblema per si, mas uma prática transversal à história da humanidade, que assume diversasmanifestações e funcionalidades. Defendemos que o consumo nem sempre foi encarado como umproblema e que, da mesma forma como foi construído enquanto tal, pode ser desconstruído e

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reconstruído em moldes alternativos, se for encarado de um modo mais amplo, que não se detenhanas suas dimensões negativas.

Cremos, também, que o uso e o abuso de drogas dependem de vários condicionalismos, nãoresultando directamente das propriedades químicas das substâncias, e que a sua compreensãoexige a análise do indivíduo e sua agência, da sociedade e sua estrutura, e das várias formas pelasquais se inter-influenciam. Acreditamos que um entendimento adequado implica, ainda, que oconsumo seja encarado como um processo, e como um contínuo entre um pólo ‘não problemático’e outro ‘problemático’, reconhecendo-se a multiplicidade de utilizações e utilizadores. O padrão‘problemático’ costuma ser associado a prejuízos no ajustamento geral dos sujeitos decorrentesdo consumo e, consequentemente, a mais pedidos de apoio formal. Tende, do mesmo modo, a serrelacionado com a falta de autocontrolo dos sujeitos e com situações em que as substâncias e opapel de consumidor se tornam hegemónicos, dificultando a conciliação do consumo com asactividades normativas. No extremo ‘não problemático’ encontram-se consumidores conscientesdos riscos das drogas e capazes de conciliar o seu uso com a preservação de um estilo de vidaconvencional, sobretudo pela adopção de cuidados de gestão dos consumos (ainda que muitasvezes de forma não consciente nem reflexiva).

Para terminar, interessa ressalvar que, na nossa opinião, o extremo que apelidámos de ‘nãoproblemático’ deve ser entendido, mais precisamente, como ‘praticamente não problemático’, porcrermos que o uso de qualquer substância psicoactiva, legal ou ilegal, acarreta sempre algumprejuízo, pelo menos para a saúde dos consumidores. Consideramos, ainda, que se se avançar aolongo do contínuo dos consumos proposto neste artigo, desde o pólo ‘praticamente nãoproblemático’ para o ‘problemático’, vão aumentando os danos desta prática.

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Negative representations regarding the use of psychoactive substances have long been prevailing,because this practice continues to be analyzed from a problematic standpoint. Alternative forms ofillicit drug use persist, therefore, doomed to relative ignorance. It continues to be avoided the debateabout the hedonistic dimensions of illicit drug use and about the patterns of illicit drug use that areeffectively conciliated with the ‘conventional’ life. However, in the last years there has been an increaseof academic work (mainly anthropological and sociological) that focus on experiences of illicit druguse that do not fit in ‘problematic’ patterns and that provide a more proper understanding about thispractice and about its protagonists. Such studies have shown that the use of illicit drugs, just as it wasconstructed as a problem, can be deconstructed and reconstructed in alternative ways, thus defyingthe dominant discourses. This exercise of constructing and deconstructing the ‘drug problem’, as wellas reconstructing this phenomenon in alternative ways is the main purpose of the present article.

Key-words: Illicit drug use, ‘Non problematic’ use of illicit drugs, ‘Problematic’ use of illicit drugs.

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Análise Psicológica (2012), XXX (1-2): 63-77

Abuso sexual na infância e adolescência: Resiliência, competência e copingCarla Antunes* / Carla Machado*

*Escola de Psicologia, Universidade do Minho

O presente trabalho reporta uma revisão crítica da literatura ao nível da resiliência no domínio doabuso sexual na infância e adolescência. Esta é uma área que tem sido pouco explorada, em certamedida, devido a problemas metodológicos e de conceptualização do constructo. Não obstante adiversidade e controvérsia de propostas conceptuais, é relativamente consensual que a resiliência nãoé sinónimo de invulnerabilidade mas que significa uma maior capacidade da criança/jovem paramanter o curso desenvolvimental normativo face a uma situação de stress ou adversidade. Assim, nopresente artigo é discutido o conceito de resiliência enquanto resultado desenvolvimental adaptativona sequência de uma experiência adversa. Neste âmbito, são exploradas as principais linhas deinvestigação nas últimas décadas, e sistematizadas conclusões centrais neste domínio. Do mesmomodo, são ainda definidos desafios e direcções futuras em termos de investigação. As conclusões dapresente revisão advertem para o papel interactivo e generativo da criança/jovem vítima e dos seuscontextos de vida no percurso de mudança desenvolvimental. Neste sentido, a adaptação positiva nãoé uma tarefa individual da vítima mas de todos os intervenientes envolvidos, nomeadamente em termosde disponibilidade de condições e redes de suporte favoráveis a uma recuperação adaptativa.

Palavras-chave: Abuso sexual, Coping, Recuperação, Resiliência.

INTRODUÇÃO

A literatura no domínio do abuso sexual na infância e/ou adolescência tem-se centrado ao longodas últimas décadas fundamentalmente no impacto negativo da experiência abusiva, sendo quesão menos os trabalhos que se dedicam a investigar a ausência ou a reduzida sintomatologiamanifestada pelas vítimas (McGloin & Widom, 2001). Na verdade, apesar do consensorelativamente ao impacto negativo do abuso, não existe evidência de que todas as vítimasdesenvolvam respostas pós-traumáticas a esta experiência, sinalizando que algumas destasconseguem ultrapassar adaptativamente o seu potencial traumático. Algumas revisões de estudosempíricos indicam que um número substancial de crianças vítimas de abuso sexual não manifestadificuldades significativas de ajustamento psicológico (Fergusson & Mullen, 1999; Kendall-Tackett, Williams, & Finkelhor, 1993; Saywitz, Mannarino, Berliner, & Cohen, 2000). Nageneralidade, os estudos parecem indicar que estas crianças assintomáticas tendem a permanecerde tal forma, a curto e a longo prazo. Dados da investigação demonstram que, do grupo de criançasque inicialmente se apresentavam como assintomáticas, apenas 30% vieram a desenvolversintomatologia mais tarde (Kendall-Tackett et al., 1993), apresentando uma reacção retardadadesignada na literatura por “sleeper effect”, em que os sintomas mais significativos apenas semanifestam aproximadamente um ano após a revelação (Saywitz et al., 2000). Outros estudos,

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A correspondência relativa a este artigo deverá ser enviada para: Carla Antunes, Serviço de Psicologia, Escolade Psicologia, Campus de Gualtar, 4710 Braga. E-mail: [email protected]

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estes efectuados na idade adulta, sugerem que cerca de 40% das pessoas que relatam ter sidovítimas de experiências sexuais abusivas na infância não apresentam qualquer disfuncionamentopsicológico associado ao abuso (Finkelhor, 1990).

Assim, decorrente da cada vez maior necessidade de compreender percursos e comportamentosadaptativos de quem passou por experiências traumáticas, surgiu o conceito de resiliência nestedomínio, que inclui a capacidade de a criança responder de forma adequada face a uma situaçãode elevado risco, conseguindo restabelecer-se perante a adversidade (Heller, Larrieu, D’Imperio,& Boris, 1999; Rutter, 2007). Este conceito de “ser bem-sucedido” inclui, não somente acapacidade de recuperar da situação abusiva mas implica também a competência para lidar comos problemas decorrentes da revelação do abuso (Masten et al., 1990, citados por Dufour, Nadeau,& Bertrand, 2000; McGloin & Widom, 2001).

Assim, ao longo deste artigo, é nosso objectivo apresentar as principais directrizes quenortearam o estudo da resiliência nas últimas décadas, sistematizar as principais conclusões dainvestigação no domínio do abuso sexual, identificando as suas contribuições e lacunas e, por fim,apontar pistas para o futuro desenvolvimento deste tipo de investigação. Neste sentido, foiefectuada uma pesquisa exaustiva sobre este tema nas revistas científicas, disponíveis nas basesde dados PsycARTICLES, PsycINFO, MEDLINE, SAGE Full-Text Collection, EBSCO-HOST:Research Data Base, Science Direct (Elsevier), SCOPUS – Database of Research Literature, bemcomo na análise de livros e monografias publicadas entre 1985 e 2010.

UM NOVO PARADIGMA: DA VULNERABILIDADE À ADAPTAÇÃO NO CONTEXTO DA ADVERSIDADE

O interesse científico pela resiliência na investigação no domínio da adversidade na infânciaemergiu no contexto da psicopatologia do desenvolvimento, na sequência da detecção de um grupode crianças que não demonstrava sinais de desajustamento psicológico, apesar da exposição acondições de elevado risco (Masten, 2001, citado por Wright & Masten, 2005; Soares, 2000).Efectivamente, de acordo com a abordagem da psicopatologia do desenvolvimento apesar dascrianças vítimas terem menos probabilidade de resultados desenvolvimentais adaptativos, apresença de factores protectores poderá contribuir para aquisições desenvolvimentais ajustadas(Cicchetti & Lynch, 1995). Assim, o estudo deste fenómeno marcou a transição do foco dainvestigação no contexto da adversidade, tradicionalmente centrado na análise das variáveis derisco, para a exploração dos factores e mecanismos protectores subjacentes a percursosdesenvolvimentais positivos (Soares, 2000; Wright & Masten, 2005).

Definir resiliência tem-se mostrado uma tarefa complexa para os investigadores desta área,emergindo uma diversidade de propostas a partir dos diferentes estudos. De facto, não é claro oque constituem objectivamente resultados resilientes nestas crianças, e por isso o seu estudocientífico fica comprometido (Cicchetti & Lynch, 1995). Não obstante a controvérsia conceptual,na generalidade, a resiliência tem sido referenciada à presença de um padrão de adaptação positivanum contexto de adversidade (Rutter, 2007; Wright & Masten, 2005). Adicionalmente, outrasnoções inerentes à definição têm alcançado consenso entre os investigadores. Desde logo, éunânime que a resiliência não é sinónimo de invulnerabilidade, significando apenas uma maiorcapacidade de resistência ou a capacidade para manter o curso desenvolvimental normativo facea uma situação de stress ou adversidade (Masten, 2004, citado por Stein, 2008; Soares, 2000).Assim, ser resiliente não implica ausência de sintomas ou de sofrimento mas sim a capacidade derecuperar ou manter um nível de funcionamento globalmente normativo, análogo ao anterior aoevento traumático (Masten et al., 1990, citados por Dufour, Nadeau, & Bertrand, 2000). Por outro

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lado, a resiliência não é uma condição estática, pressupondo a interacção dinâmica de diferentesfactores (de vulnerabilidade e de protecção) sendo que estes vão mudando ao longo dos diferentesestádios desenvolvimentais (Grotberg, 2005; Heller, Larrieu, D’Imperio, & Boria, 1999; Wright& Masten, 2005). Efectivamente, as situações potencialmente geradoras de stress não são estáticase, por esse motivo, também é esperado que o comportamento resiliente se adapte às mudançasnas condições de desafio.

Mediante uma análise da investigação neste domínio, é possível identificar três gerações deestudos nesta área (Infante, 2005; Wright & Masten, 2005). Inicialmente, o estudo deste fenómenocentrou-se numa abordagem individual, que foi progressivamente evoluindo para uma perspectivacompreensiva ecológica. Paralelamente, surgiu uma terceira geração de estudos, direccionada paraa exploração de modelos intervenção e de promoção da resiliência.

Numa primeira abordagem da resiliência, as questões de investigação prenderam-seessencialmente com as características que tornavam as crianças e/ou jovens resilientes “diferentes”daquelas que apresentavam mais dificuldades. Neste sentido, a literatura sugeriu algumasqualidades individuais e contextuais (e.g., a cognição e a auto-regulação, a relação de vinculaçãoentre pais e filhos), tipicamente associadas a um melhor funcionamento psicossocial e a melhorescompetências para superar uma determinada experiência adversa (Masten & Coastsworth, 1998).Efectivamente, há crianças que possuem recursos para lidar com o impacto negativo da experiênciaabusiva sem que seja necessário recorrer a um serviço especializado (Manita, 2003).

O estudo da resiliência, a este nível, tem apontado três modelos explicativos fundamentais:compensatório, protector e de desafio (Fergus & Zimmerman, 2005). O primeiro refere-se aoefeito directo de um factor protector num determinado resultado potencialmente negativo (e.g., ainteligência superior da criança/jovem pode compensar o efeito desestruturante a nível cognitivode experiências de negligência severa). O modelo protector distingue-se pelo efeito moderadorde um factor protector na relação entre um factor de risco e o resultado desenvolvimental (e.g.,uma criança integrada num contexto familiar desestruturado apresenta um risco considerável decomportamentos desadequados, mas a presença de suporte de um adulto significativo poderáfuncionar como elemento moderador do risco). O modelo de desafio é curvilinear, na medida emque a exposição a um reduzido ou elevado nível de risco estão do mesmo modo associados aresultados negativos, sendo que a exposição a risco moderado tende a estar associada a menorimpacto negativo (e.g., níveis moderados de stress estão associados a melhores capacidades decoping perante a adversidade do que a exposição prévia a muito baixos ou muitos altos níveis destress de vida) (Lurigio & Resick, 1990). Neste modelo, o princípio explicativo é o de que ascrianças que estão expostas a um nível moderado de risco adquirem competências de coping paralidar com situações problemáticas, o que não acontece no caso de risco reduzido (Fergus &Zimmerman, 2005). Por sua vez, a exposição a elevados níveis de stress prévio tem um efeitodesorganizador das capacidades de coping da criança, tornando-as indisponíveis para seremmobilizadas perante a experiência traumática (Lurigio & Resick, 1990).

Não obstante este enquadramento conceptual, a resiliência é muitas vezes confundida comoutros conceitos como, por exemplo, o ajustamento psicológico, o coping ou as competênciasindividuais. No entanto, se por um lado o ajustamento psicológico é um resultado positivo doprocesso de resiliência, por outro lado, as estratégias de coping e as competências individuais sãomecanismos importantes neste mesmo processo (sendo que também a influência de variáveiscontextuais também deve ser considerada na compreensão da resiliência) (Fergus & Zimmerman,2005).

Assim, a análise dos factores protectores associados à resiliência, nomeadamente os factoresprotectores na infância e juventude, podem ser analisados em quatro níveis (Masten &Coastsworth, 1998; Wright & Masten, 2005): individual, familiar, comunitário/social e cultural.Do ponto de vista das características individuais das crianças e/ou jovens, os estudos indicam o

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temperamento social e adaptável, a competência intelectual, a capacidade de auto-regulaçãoemocional e comportamental, a auto-percepção positiva, como estando associados a umatrajectória desenvolvimental positiva perante a adversidade (Heller, Larrieu, D’Imperio, & Boris,1999; Masten & Coatsworth; 1998; Soares, 2000; Wright & Masten, 2005). No que concerne àsvariáveis familiares, a presença de um adulto de suporte e cuidador privilegiado (Dufour, Nadeau,& Bertrand, 2000; Wright & Masten, 2005), bem como outras variáveis de estabilidade familiar(e.g., nível reduzido de discórdia, relações positivas com os irmãos, bom relacionamento com afamília alargada), de envolvimento parental, de estabilidade socio-económica e de afiliaçãoreligiosa (Wright & Masten, 2005) parecem estar significativamente relacionados com aresiliência. Ao nível social, um contexto que proporcione um desenvolvimento estruturado (e.g.,envolvimento da criança em actividades extra-curriculares, relações adequadas com os pares;satisfação com o papel social e sentido positivo de comunidade), assim como característicasrelacionadas com a qualidade do contexto onde a criança/jovem vive (e.g., bairro), asoportunidades de emprego dos pais e o acesso aos recursos da comunidade surgem também naliteratura como variáveis relevantes (Banyard & Williams, 2007; Dufour, Nadeau, & Bertrand,2000; Heller, Larrieu, D’Imperio, & Boris, 1999; Wright & Masten, 2005). Por fim, característicasmais abrangentes do contexto sociocultural, designadamente as políticas de protecção da infância,recursos educativos de qualidade e reduzida legitimação da violência física também constituemvariáveis que aumentam a resistência ao risco (Machado, 1996; Wright & Masten, 2005).

A segunda geração de estudos assinalou uma mudança no paradigma da investigação nestedomínio, de uma abordagem individualizada e estática aos factores protectores (exposta noparágrafo acima) para uma abordagem ecológica e dinâmica. Trata-se de uma perspectivainfluenciada pelo modelo ecológico de desenvolvimento humano proposto por Bronfenbrenner(1994), conceptualizando a resiliência como um processo dinâmico, interactivo e recíproco entreas influências do ambiente e do indivíduo. Neste sentido, importa compreender os processos emecanismos que influenciam positivamente a adaptação após a adversidade e de que forma é queos subsistemas do desenvolvimento humano contribuem para uma maior resistência na trajectóriadesenvolvimental perante o risco (Infante, 2005; Wright & Masten, 2005).

De acordo com esta perspectiva transaccional, o impacto do contexto social na criança e/oujovem é, em parte, mediado pela sua interpretação da experiência, que também se vai alterandoao longo do tempo (Boyce et al., 1998). Por exemplo, as crianças em idade pré-escolar, vítimasde abuso sexual, manifestam dificuldades em compreender o significado dosactos/comportamentos do perpetrador, mas à medida que vão crescendo, as dimensões da vergonhae da estigmatização podem intensificar-se e influenciar o impacto da experiência abusiva (Kendall-Tackett, Williams, & Finkelhor, 1993; Wright & Masten, 2005). Concomitantemente, a mesmaexperiência adversa pode assumir significados distintos para cada criança e/ou jovem. A títuloilustrativo, a experiência de divórcio dos pais pode ser experienciado como um evento negativopara algumas crianças/jovens mas, para outros, pode assumir uma dimensão positiva na medidaem que diminui o conflito e/ou a disrupção no ambiente familiar (Fergus & Zimmerman, 2005).

Os resultados obtidos no âmbito desta segunda linha de investigação têm sugerido umaespecificidade contextual dos processos protectores (Fergus & Zimmerman, 2005; Wright &Masten, 2005). Isto é, alguns factores protectores podem relacionar-se com resultados resilientesnas trajectórias de algumas crianças e/ou jovens e noutras não exercerem a mesma função. Peseembora alguns factores sejam referenciados na literatura como importantes e consistentespreditores de resultados mais favoráveis, alguns estudos demonstraram que esta relação não é, detodo, linear. Por exemplo, alguns trabalhos junto de crianças que cresceram em contextos deadversidade (Wyman, 2003; Wyman, Cowen, Work, & Kerley, 1993) constataram que a percepçãode competência pessoal e expectativas positivas relativamente ao futuro apenas resultam em efeitospositivos quando estas percepções e expectativas têm um carácter realista.

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O estudo da resiliência como um processo ecológico e dinâmico tem também vindo ademonstrar que as crianças e/ou jovens podem experienciar vulnerabilidades e factores protectoresdistintos em diferentes pontos do seu desenvolvimento. Por consequência, diferentes agentescontribuem para a resiliência ao longo do percurso de vida da criança/jovem (Wright & Masten,2005). Nesta sequência, a adaptação resiliente é susceptível de mudanças ao longo do tempo,sendo que uma criança pode demonstrar resiliência numa determinada fase desenvolvimental enão noutra, numa dimensão do funcionamento e não noutra, num contexto e não noutro (Fergus& Zimmerman, 2005; Soares, 2000; Wright & Masten, 2005).

Alguns autores têm ainda salientado que os pontos críticos de mudança (“turning points”) natrajectória de desenvolvimento (e.g., integração escolar, transição para a puberdade, transição paraa idade adulta) das crianças expostas à adversidade se constituem como desafios particulares aoseu percurso de adaptação (Banyard & Williams, 2007; Hawkins et al., 2003, citados por Wright& Masten, 2005; Sampson & Laub, 1993) e, por isso, devem ser considerados neste tipo deinvestigação.

De acordo com esta leitura, o contexto sociocultural é um factor essencial na compreensão dosprocessos envolvidos na resiliência. As tradições culturais, ideológicas, religiosas e adisponibilização de recursos da comunidade assumem uma variedade de funções (protectoras ounão) que influenciam o percurso da adaptação (Wright & Masten, 2005).

ABUSO SEXUAL E RESILIÊNCIA

Um reduzido número de estudos tem investigado especificamente a resiliência no contexto doabuso sexual. Não obstante, alguns estudos realizados com vítimas de abuso na infância eadolescência têm salientado um conjunto de recursos, designadamente individuais, familiares econtextuais/sociais que contribuem para resultados adaptativos na sequência desta experiênciatraumática.

Recursos/competências individuais

Ao nível individual, um locus de controlo interno, auto-controlo, auto-estima, maturidadeprecoce e competências de comunicação (e.g., Barros, & Sani, 2010; Collishaw, Pickles, Messer,Shearer, & Maugham, 2007; Dufour, Nadeau, & Bertrand, 2000; Heller, Larrieu, D’Imperio, &Boris, 1999) e a atribuição externa da vergonha (Heller, Larrieu, D’Imperio, & Boris, 1999) estãoassociados a percursos resilientes por parte das crianças/jovens vítimas.

As capacidades cognitivas, designadamente a inteligência, têm sido também frequentementereferidas na literatura da área como preditoras da resiliência (Barros & Sani, 2010; Dufour,Nadeau, & Bertrand, 2000) Contudo, esta é ainda uma relação controversa, sendo que algunsestudos longitudinais realizados recentemente não corroboram esta associação (e.g., Collishaw,Pickles, Messer, Shearer, & Maugham, 2007; DuMont, Widom, & Czaja, 2007; Jaffee, Caspi,Moffitt, Polo-Tomas, & Taylor, 2007).

Ainda no domínio individual, a investigação tem-se centrado na exploração das competênciasde coping das crianças e/ou jovens face à situação abusiva, considerados mecanismos mediadoresrelevantes na trajectória resiliente. Assim, diversas estratégias têm sido identificadas, permitindocompreender os processos de adaptação e recuperação do trauma por parte das crianças/jovensvítimas. Uma revisão recente de estudos centrados no coping face ao abuso sexual (Walsh, Fortier,

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& Dillilo, 2010) revela que as vítimas tendem a utilizar um variado conjunto de estratégiascognitivas e comportamentais para lidar com a experiência abusiva:

Evitamento

O evitamento enquanto estratégia que visa minimizar o impacto emocional de umacontecimento tem sido apontado como uma estratégia de coping frequente face ao abuso sexual(Barros & Sani, 2010; Dufour, Nadeau, & Bertrand, 2000). Esta estratégia inclui comportamentostais como evitar pensar, lembrar ou falar sobre o problema, sendo que esta abordagem, apesar deproteger a criança no imediato de sentimentos de ansiedade e afectos desorganizadores associadosao abuso (Tremblay, Hebert, & Piché, 1999) tende a aumentar a sua sintomatologia clínica, querna adolescência quer na idade adulta (Barros & Sani, 2010; Dufour, Nadeau, & Bertrand, 2000;Steel, Sanna, Hammond, Whipple, & Cross, 2004; Wright, Crawford, & Sebastian, 2007).

Do mesmo modo, a dissociação e a supressão emocional (Brand et al., 1999, DiPalma, 1994,citados por Walsh et al., 2010) surgem na literatura como estratégias de coping utilizadas pelasvítimas. A severidade do abuso surge como preditor significativo do recurso a estas estratégias deevitamento. Contudo, e na linha do acima sugerido para as crianças que recorrem ao evitamento,esta estratégia prediz a presença de sintomas de pós stress traumático (Bonnano, Noll, Putman,O’Neill, & Trikett, 2003; Fortier et al., 2009, citados por Walsh et al., 2010; Gibson & Leitenberg,2000). Este efeito tem sido explicado pelo não processamento, cognitivo e afectivo, da experiênciatraumática, que assim reaparece sob a forma de pensamentos e afectos intrusivos e perturbadores(Finkelhor, 1990; Kendall-Tacket, Williams, & Finkelhor, 1993; Wolfe & Birt, 1997).

Procura de suporte, revelação e denúncia judicial

Estas duas formas activas de coping têm sido identificadas pela investigação como tendo umefeito protector face ao abuso, na medida em que as crianças/jovens que as usam revelamautonomia e habilidade na procura de suporte junto de adultos, de que poderão fazer uso sempreque sintam necessidade, nomeadamente através da procura de apoio externo à família (Perrott,Morris, Martin, & Romans, 1998; Werner & Smith, 1982, citados por Dufour, Nadeau, & Bertrand,2000). Efectivamente, a procura activa de suporte parece estar associada a uma diminuição dasintomatologia na infância e na idade adulta (Bal, Crombez, Van Oost, & Debourdeaudhuij, 2003;Filipas & Ullman, 2001), a maior auto-confiança percebida pelas crianças/jovens (Tremblay,Hebert, & Piché, 1999) e a menor probabilidade de revitimação sexual na idade adulta (Walsh,Blaustein, Knight, Spinazzola, & Van der Kolk, 2007). A investigação neste domínio tem reveladoque os esforços cognitivos e comportamentais das vítimas e o nível de suporte social percebidodesempenham um papel crucial na forma como as crianças/jovens vivenciam a experiênciaabusiva, sendo que as características do abuso (e.g., frequência, severidade, duração) parecemexercer um papel relativamente menos importante na determinação do impacto nas vítimas(Tremblay, Hebert, & Piché, 1999).

Do mesmo modo, a revelação surge como uma estratégia adaptativa a longo-prazo, apesar deser potenciadora de ansiedade e sintomatologia a curto-prazo (Furniss, 1993; Himelein &McElrath, 1996). De facto, uma etapa importante no processo de recuperação passa pelacapacidade de a criança/jovem se libertar da culpabilização, responsabilização, estigmatização eisolamento decorrentes do abuso (Schatzow & Herman, 1989, citados por Dufour, Nadeau, &Bertrand, 2000), que a revelação poderá permitir. A criança/jovem que tem oportunidade pararevelar o abuso poderá experienciar sentimentos de auto-controlo e empowerment, variáveis queactuam favoravelmente perante o risco (Hanson, Resnick, Saunders, Kilpatrick, & Best, 1999).É, contudo, de ressalvar que o efeito positivo da revelação depende em larga medida da forma

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como esta é recebida pelo meio da criança (em particular pelas suas pessoas significativas), sendoque o impacto favorável da revelação é potenciado pela credibilização e apoio da redefamiliar/social. Pelo contrário, respostas de incredulidade, banalização do evento ou respostas devergonha, culpabilização ou hostilidade perante a vítima, podem minar o potencial efeito positivoda revelação (Furniss, 1993).

Da mesma forma, a investigação tem encontrado que a denúncia e participação no processojudicial pode aumentar o sentimento de competência e empowerment das vítimas. Contudo, amorosidade na resolução do processo e a abordagem à criança e/ou jovem no âmbito do processojudicial (e.g., pelos advogados, polícias, juízes, peritos) pode condicionar e pôr em causa essepotencial efeito positivo (Calam, Horne, Glasgow, & Cox, 1998; Finkelhor, Cross, & Cantor,2005; Kendall-Tackett, Williams, & Finkelhor, 1993; Lurigio & Resick, 1990; Ribeiro, 2006).

Reestruturação cognitivaEsta é uma estratégia cognitiva que permite à vítima alterar a compreensão do “episódio

stressante” e redefinir as suas consequências (Spaccareli, 1994, citado por Dufour, Nadeau, &Bertrand, 2000). A reestruturação cognitiva pode ser conceptualizada como uma tentativa deresponder à questão fundamental: “porquê a mim”. Esta estratégia pode assumir várias formas,nomeadamente a minimização do abuso sexual ou dos seus efeitos (Himelein, & McElrath, 1996;Perrott, Morris, Martin, & Romans, 1998) e/ou a centração nos aspectos positivos, benefíciospercebidos da situação traumática (Dufour, Nadeau, & Bertrand, 2000). De facto, por um lado, oabuso pode ser considerado pelas vítimas como um veículo para o crescimento pessoal, e poroutro, como uma experiência que promove maior prudência e protecção pessoal nas relaçõesíntimas futuras (Himelein & McElrath, 1996; Plasha, 2009). Esta percepção de efeitos positivosdecorrentes da situação abusiva está associada a melhor adaptação na adolescência e na idadeadulta (Himelein & McElrath, 1996; McMillen et al., 1995, citados por Dufour, Nadeau, &Bertrand, 2000; Plasha, 2009).

Os estudos sugerem que as estratégias de coping cognitivas são fundamentais numa perspectivade longo prazo, na medida em que estas permitem a efectiva integração do abuso (Walsh et al.,2010). De facto, a procura/construção de significado para a experiência abusiva parece estarassociada a melhor funcionamento global e menos problemas psicológicos (Leathy, Pretty, &Tenenbaum. 2003; Plasha, 2009; Wright, Crawford, & Sebastian, 2007; Silver, Boon, & Stones,1983, citados por Walsh et al., 2010). Aliás, há autores que relacionam este facto com o efeitoprotector da inteligência da vítima, hipotetizando que crianças/jovens mais inteligentes seenvolvem mais no processamento cognitivo e emocional das experiências adversas, sendo queinicialmente podem experimentar maior desorganização, no entanto, a médio e/ou longo prazobeneficiam do efeito positivo da real integração da experiência (Leifer, Shapiro, Mortone, &Kassem, 1991).

Estilos atribucionaisA teoria da resignação (Abramson, Seligman, & Teasdale, 1978, citados por Dufour, Nadeau,

& Bertrand, 2000) permite avaliar as potenciais consequências da auto-culpabilização pelo abusosexual ou, pelo contrário, da atribuição da responsabilidade ao agressor. Esta teoria postula que aatribuição externa da culpa é uma estratégia de resposta adaptativa. Pelo contrário, um estilo deatribuição interna constitui um factor de risco para a emergência de sintomatologia. Não obstante,estes pressupostos são ainda controversos, na medida em que a atribuição de toda aresponsabilidade ao agressor poderá diminuir na vítima a percepção de controlo e eficácia,aumentando a percepção do mundo como ameaçador e imprevisível (Dufour, Nadeau, & Bertrand,2000). Além disso, a culpabilização exclusiva do agressor é incompatível com estratégias quevisem promover nas vítimas o sentido de controlo. Por outro lado, quando a criança assume alguma

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responsabilidade pelo abuso, sobretudo se essa atribuição interna for moderada e localizada emfactores comportamentais (e.g., ter aceite a boleia do abusador) e não atribucionais (e.g., serestúpida, ser imoral) (Lurigio & Resick, 1990), a culpa é direccionada para uma fonte controlávele modificável, o que aumenta a sua percepção de controlo perante uma futura revitimação (Jannoff-Bulmau, 1979, citado por Dufour, Nadeau, & Bertrand, 2000).

Apesar destas reservas, os estudos empíricos acerca da relação entre estilos atribucionais eimpacto revelam que as vítimas que apresentam uma atribuição interna pelo abuso demonstrammais dificuldades psicológicas, uma auto-estima mais reduzida e mais depressão, estigmatizaçãoe culpa (Barker-Collo, 2001; Chaffin, Wherry, & Dykman, 1997; Steel, Sanna, Hammond,Whipple, & Cross, 2004).

Recursos do contexto familiar e/ou socialNo que se refere aos factores do meio, os estudos realizados neste âmbito convergem para a

indicação de que o suporte familiar e, mais especificamente, o suporte parental, pré e pósrevelação, são variáveis determinantes do reajustamento após o trauma (Dufour, Nadeau, &Bertrand, 2000; Fleming, Mullen, Sibthorpe, & Bammer, 1999). Lynskey e Fergusson (1997),num estudo que avaliou prospectivamente uma amostra da comunidade, verificaram que o maiorpreditor da resiliência face ao abuso era a qualidade do cuidado e suporte parentais. Por sua vez,Collishaw, Pickles, Messer, Shearer e Maugham (2007), num estudo longitudinal que acompanhouvítimas de maus tratos físicos e abuso sexual, verificaram que as relações interpessoais positivas(e.g., com os pais, pares e parceiros), desde a infância até à meia-idade, se constituíam como fortespreditores da resiliência.

Os dados demonstram que uma relação próxima e afectuosa com uma figura parental e a auto-estima global da criança/jovem se constituem como preditores do ajustamento das vítimas(Houshyar & Kaufman, 2005; Rosenthal, Feiring, & Taska, 2003; Tremblay, Hebert, & Piché,1999). Outro mecanismo explicativo do papel protector do suporte parental poderá ser o facto dea qualidade das relações de vinculação precoces com os cuidadores e outros significativosinfluenciar a capacidade da vítima para desenvolver, manter e beneficiar de relações interpessoaisde suporte, pré e pós abuso (Collishaw, Pickles, Messer, Shearer, & Maugham, 2007; Perrot,Morris, Martin, & Romans, 1998; Rockville, 1996), assim potenciando o seu processo deresiliência.

Concomitantemente, o suporte social mais alargado (e.g., relações interpessoais positivas eestáveis, suporte na escola e rede comunitária, suporte dos profissionais envolvidos) é tambémum elemento significativo no processo de restabelecimento das vítimas e facilitador da resiliênciaao longo do ciclo de vida (Collishaw, Pickles, Messer, Shearer, & Maugham, 2007; Dufour,Nadeau, & Bertrand, 2000; Dumont, Widom, & Czaja, 2007; Leathy, Pretty, & Tenenbaum, 2003;Plasha, 2009; Rosenthal, Feiring, & Taska, 2003). Constata-se, por exemplo, um nível deadaptação mais elevado nas crianças/jovens que usufruem de suporte dos seus pares e que nãosão estigmatizadas por estes (Dufour, Nadeau, & Bertrand, 2000). Similarmente, um estudoqualitativo junto de mulheres adultas vítimas de abuso (Banyard & Williams, 2007) constatou quevariáveis como a satisfação com o papel social e um sentido positivo de comunidade estavamrelacionadas com um funcionamento adaptativo.

No entanto, torna-se necessária uma compreensão mais circunstanciada da influência específicado suporte social (e das relações de suporte específicas) nos percursos resilientes. O desempenhodesta variável na trajectória bem-sucedida é, em parte, influenciado pelas respostas à revelaçãodo abuso (Jonzon & Lindblad, 2004, Ulman, 2003, citados por Wright, Crawford, & Sebastian,2007). Efectivamente, o suporte social e/ou parental apenas se constitui como um factor positivopara o ajustamento da criança se se traduzir em comportamentos de securização, normalização evalidação da experiência abusiva. Se, pelo contrário, apesar de haver suporte, a criança vítima

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estiver integrada num contexto próximo onde os elementos mais significativos (e.g., cuidadores)experienciem eles próprios significativa desorganização emocional (e.g., sentimentos de vergonha,estigmatização, humor deprimido, impotência, hostilidade), o suporte não se traduzirá embenefícios para a criança e/ou jovem. Nestes casos, é possível que a criança evidencie até umaagudização da sintomatologia, nomeadamente culpabilização pelo sofrimento parental e pelaestigmatização familiar (Jonzon & Lindblad, 2004, Ulman, 2003, citados por Wright, Crawford,& Sebastian, 2007).

Por outro lado, o suporte social parece assumir uma influência distinta ao longo dodesenvolvimento, sendo que o suporte parental assume particular importância na infância e osuporte dos pares na adolescência. Alguns estudos corroboram este pressuposto teórico,verificando-se que as relações com os pares na adolescência assumem uma forte influência nodesenvolvimento da resiliência nas vítimas (Collishaw, Pickles, Messer, Shearer, & Maugham,2007; Rosenthal, Feiring, & Taska, 2003).

Por fim, algumas variáveis referentes aos contextos de vida destas crianças e/ou jovens (e.g.,características do bairro onde vivem) também têm surgido como associadas à resiliência, namedida em que têm impacto na estabilidade familiar (e consequente qualidade do suporte familiardisponível, assim como do stress familiar experienciado), na qualidade do suporte comunitário einfluenciam a exposição da criança a situações adversas (assim aumentando o seu nível de stress,cuja influência na resiliência já foi anteriormente abordada) (e.g., Collishaw, Pickles, Messer,Shearer, & Maugham, 2007; Jaffee, Caspi, Moffitt, Polo-Tomas, & Taylor, 2007).

DISCUSSÃO DOS ESTUDOS REVISTOS: CONCLUSÕES, LIMITAÇÕES E POTENCIALIDADES DA INVESTIGAÇÃO SOBRE A RESILIÊNCIA

A investigação no âmbito da resiliência tem-se revelado fundamental na mudança deparadigmas no âmbito da psicologia do desenvolvimento, de uma abordagem centrada no riscopara uma nova perspectiva, centrada nas potencialidades do ser humano (Infante, 2005). Nocontexto do abuso sexual, esta perspectiva contraria a crença na inevitabilidade do trauma e arepresentação social da “criança danificada”, atribuindo à criança/jovem vítima e aos seuscontextos de vida um papel interactivo e generativo no percurso da mudança desenvolvimentalfutura.

Na sua generalidade, os estudos que investigaram a resiliência aqui revistos permitem retiraralgumas conclusões gerais, com relativa fiabilidade. Desde logo, é possível concluir que umnúmero substancial de vítimas crianças e jovens de abuso sexual demonstram um funcionamentoadaptativo após a experiência traumática (Rutter, 2007). Esta resiliência tende a permanecer naidade adulta, mas é susceptível de mudanças ao longo do processo de desenvolvimento, sendoparticularmente desafiada nos pontos críticos (“turning points”) de cada percurso de vida(DuMont, Widom, & Czaja, 2007; Rutter, 2007).

A investigação tem identificado determinadas qualidades individuais que parecem estarassociadas a resultados adaptativos. Consensualmente, destacam-se o locus de controlo interno,o auto-controlo, a auto-estima, a maturidade precoce e as competências de comunicação (e.g.,Barros & Sani, 2010; Collishaw, Pickles, Messer, Shearer, & Maugham, 2007; Dufour, Nadeau,& Bertrand, 2000; Heller, Larrieu, D’Imperio, & Boris, 1999).

Esta abordagem, centrada na resiliência, dedica sua atenção à promoção dos recursos do serhumano, considerando-o o agente principal da sua própria adaptação à situação adversa. Nestesentido, o estudo das estratégias de coping utilizadas pelas vítimas tem também vindo a assumircada vez maior relevância ao nível da investigação internacional, sendo que os resultados revelam

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que, se algumas destas cumprem apenas uma função protectora no imediato (e.g., evitamento),outras parecem assumir um papel adaptativo a longo-prazo (e.g., auto-controlo, reestruturaçãocognitiva, atribuição externa da vergonha e da culpa) (Heller, Larrieu, D’Imperio, & Boris, 1999;Walsh et al., 2010). O papel do suporte familiar e social na promoção destas estratégias positivasde coping tem também vindo a ser destacado pela investigação.

Na verdade, os dados empíricos obtidos têm sugerido uma relativização do contributo dasvariáveis individuais, por si só, no processo de resiliência, validando a importânciacomparativamente maior das influências contextuais (e.g., familiares, interpessoais, sócio-culturais) na adopção de estratégias de coping adaptativas e como mediadoras do processo derecuperação (Rutter, 2007).

Neste sentido, os recursos disponíveis nos diferentes contextos onde a criança se integraparecem assumir particular relevância no processo de resiliência. Os estudos neste domínioconvergem no sentido de que o suporte social quer providenciado pelos pares, quer pelosprofissionais, é uma variável determinante no restabelecimento das vítimas (Dufour, Nadeau, &Bertrand, 2000). De igual modo, a investigação indica que uma relação próxima e afectuosa compelo menos um dos cuidadores (Goldstein & Brooks, 2005; Houshyar & Kaufman, 2005;Rosenthal, Feiring, & Taska, 2003; Tremblay, Hebert, & Piché, 1999) e o suporte parental(nomeadamente providenciado após a revelação do abuso) têm um efeito determinante narecuperação das vítimas (Dufour, Nadeau, & Bertrand, 2000).

Não obstante estes resultados constituírem importantes indicadores acerca dos processos deresiliência, a literatura tem vindo a apontar importantes limitações metodológicas dos estudosrealizados, nomeadamente ao nível da definição de resiliência e de abuso, da selecção dasamostras, dos procedimentos de recolha de dados adoptados e do próprio tipo de dados obtidos(Heller, Larrieu, D’Imperio, & Boris, 1999). De facto, a terminologia utilizada para definirresiliência nem sempre é consensual; se por um lado, esta é conceptualizada como umacaracterística individual da criança (Tarter & Vanyukov, 1999, citados por Fergus & Zimmerman,2005), por outro, é definida enquanto resultado do contexto, do risco e da protecção (Fergus &Zimmerman, 2005).

Por outro lado, o facto de um determinado acontecimento de vida poder constituir um factordesestruturador para determinadas crianças, mas não o ser necessariamente para outras, é emmuitos casos um factor interferente na análise dos resultados. Com efeito, determinadasexperiências poderem ser enviesadamente consideradas como sendo de risco para o percursoadaptativo das vítimas (e.g., o divórcio pode surgir como um factor potencialmente de risco, pelasdinâmicas que lhe estão associadas, mas poderá também revelar-se uma experiência positivaquando está associado a uma melhoria do funcionamento familiar e da qualidade das relações edo suporte pais-criança). Além disso, o facto de a investigação na resiliência se ter vindo a centrar,na maioria dos estudos, em apenas um factor de risco e/ou num factor protector limita a análisedos resultados, uma vez que a evidência sugere a necessidade de uma análise multidimensional ea importância de considerar a interacção de diferentes factores na trajectória desenvolvimentalresiliente (Fergus & Zimmerman, 2005).

Finalmente, é de salientar que o recurso a estudos retrospectivos como metodologia dominantede avaliação do impacto e da resiliência poderá ter associado algum viés do relato, influenciandoos dados recolhidos e a sua análise.

Em suma, a investigação ao nível dos recursos e potencialidades do ser humano assumeparticular relevância, quer teórica, quer prática. A este último nível, poderá produzir potenciaisindicadores relevantes para a prática clínica, nomeadamente ao nível das estratégias de copingadaptativas e que importa favorecer (e.g., reestruturação cognitiva ou o treino de competênciasde auto-regulação) (Walsh et al., 2010), bem como ao nível do tipo de suporte que interessafomentar e das características do meio que podem promover trajectórias desenvolvimentais

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adaptativas. Concomitantemente, no plano mais teórico/conceptual, a perspectiva da resiliênciacomo uma interacção multifactorial e dinâmica enfatiza que a adaptação positiva não é uma tarefaindividual da vítima mas de todos os intervenientes envolvidos (e.g., família, escola, comunidade,sociedade), ao longo de todo o percurso de desenvolvimento da criança/jovem. O modelo de riscodá, assim, lugar a um modelo de promoção e protecção, que enfatiza uma responsabilidadecolectiva (familiar, social e política) na promoção de condições e redes de suporte favoráveis auma recuperação adaptativa. Esta perspectiva salienta ainda a necessidade de um trabalhomultidisciplinar no âmbito da intervenção e prevenção no abuso sexual (Furniss, 1993).

RESILIÊNCIA FACE AO ABUSO: IMPLICAÇÕES PARA A INVESTIGAÇÃO FUTURA

Pese embora o maior investimento actual no estudo da resiliência e a proliferação de trabalhosem vários domínios da adversidade, o estudo deste processo no abuso sexual é ainda circunscritoe insuficiente, como podemos constatar após a revisão sistemática apresentada neste artigo. EmPortugal, em particular, este estudo parece inexistente tanto o quanto nos foi possível pesquisar.Nacional ou internacionalmente, é de particular relevância a necessidade de mais estudos quepermitam compreender as especificidades das trajectórias de resiliência após a experiência deabuso sexual, de forma a compreender o impacto desta experiência nas vítimas e a implementarformas de intervenção com estas e a sua rede social que sejam mais eficazes e eficientes.

Apesar do seu número limitado, a realização de estudos longitudinais tem permitido uma maiorcompreensão dos processos subjacentes à resiliência e tem sugerido importantes implicações paraa investigação nesta área. A resiliência tem, no âmbito destas investigações, sido conceptualizadacomo um processo dinâmico e interactivo, de acordo com os princípios da equifinalidade emultifinalidade (Soares, 2000; Wright & Masten, 2005). Neste sentido, as vítimas podemexperienciar vulnerabilidades distintas ao longo do processo de recuperação e os factores e/oumecanismos de protecção podem variar na sua influência ao longo desta trajectória (Wright &Masten, 2005). Alguns estudos que assumem estes pressupostos têm obtido dados interessantesno que se refere ao papel de determinadas variáveis no processo de resiliência no abuso. Porexemplo, contrariamente ao sugerido por outras investigações revistas, Dumont, Widom e Czaja(2007) constataram que o índice de outros acontecimentos de vida adversos não diferenciava osparticipantes, durante a infância, ao nível da resiliência. No entanto, quando considerado o períododesde a adolescência até ao início da idade adulta, o número de acontecimentos de vida adversosmostrava-se preditor da resiliência. Concomitantemente, Rosenthal, Feiring e Taska (2003), numestudo prospectivo com crianças e jovens vítimas de abuso, verificaram que o suporte socialassume uma influência diferente, dependendo da fase desenvolvimental em que estas seencontram, sugerindo que o suporte parental é um forte preditor da resiliência na infância e osuporte dos pares um poderoso factor de protecção na adolescência.

Concomitantemente, a investigação no âmbito das estratégias de coping, tem-se centradoessencialmente no estudo de recursos cognitivos (e.g., reestruturação cognitiva, estilosatribucionais) em detrimento dos comportamentais. Efectivamente, há autores que sugerem quea procura de actividades favorecedoras de emoções positivas se constitui como uma estratégia decoping adaptativa (Morrow & Smith, 1995). No nosso entender, estas estratégias parecem assumirmaior relevância se atendermos às características desenvolvimentais das vítimas (crianças eadolescentes).

Nesta sequência, ao nível do design das investigações, consideramos fundamental oinvestimento continuado em estudos de natureza longitudinal e também qualitativa, que permitam

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não só compreender os processos subjacentes à resiliência, como também a sua estabilidade,

especificidade desenvolvimental e idiossincrasias individuais. Na investigação realizada, nota-se também, como referimos atrás, alguma confusão

metodológica que deriva da diversidade de definições de resiliência e da falta de operacionalizaçãoconceptual na avaliação de alguns factores protectores intervenientes (e.g., por vezes os estudosreferem-se ao suporte social mas não especificam que dimensões concretas estão a ser avaliadasa este nível). Deste modo, torna-se também fundamental, em futuros estudos, operacionalizar umadefinição de resiliência bem como dos factores protectores a avaliar. Concomitantemente, o estudoda resiliência exige, no plano dos métodos de recolha de dados, uma abordagem multidimensionalem vários domínios do funcionamento individual, com recurso a múltiplos métodos de avaliaçãoe a fontes de informação representativas dos distintos contextos em que a vítima está integrada.

A perspectiva conceptual mais recente acerca da resiliência tem salientado, como vimos, opapel do contexto sociocultural da vítima na compreensão dos processos envolvidos na resiliência.Neste sentido, consideramos também pertinente a realização de estudos que avaliem a influênciada cultura e, mais especificamente, das crenças e dos discursos (e.g., familiares, culturais) acercada vitimação sexual infantil no processo de resiliência.

Alguns estudos têm ainda constatado que variáveis como o género (e.g., DuMont, Widom, &Czaja, 2007; McGloin & Widom, 2001) e a etnia (DuMont, Widom, & Czaja, 2007) influenciamo processo de adaptação, sugerindo que as vítimas de sexo feminino e de ascendência africanademonstram mais recursos para o processo de resiliência. Assim, parece-nos ser interessante, nainvestigação futura, analisar de forma mais sistemática e consistente o contributo destas variáveisno desenvolvimento resiliente e os mecanismos pelos quais se opera a sua contribuição.

Finalmente, constatámos que, embora ao longo das últimas décadas tenham sido delineadosalguns modelos explicativos complexos do processo de resiliência, a generalidade dos mesmoscentram-se numa abordagem individual à vítima, relativamente estática e focalizada em factoresde risco ou protecção individualizados. Torna-se, a nosso ver, fundamental, a partir dos contributosdas investigações a realizar neste domínio, construir modelos teóricos explicativos, que nospermitam compreender como é que os diferentes factores, pessoais, familiares, sociais e culturais,interagem dinamicamente na ecologia dos indivíduos, permitindo um processo de adaptaçãoresiliente.

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This manuscript reports a critical review on resilience in the field of sexual abuse in childhood andadolescence. This is an area that has been little explored, to some extent, due to methodologicalproblems and conceptualization of the construct. Despite the diversity and controversy of conceptualproposals, it is relatively consensual that resilience does not mean invulnerability, but it means a greaterability of the child/youth to maintain the normative developmental course in a situation of stress oradversity. In the present article it is discussed the concept of resilience as adaptive developmentaloutcome following an adverse experience. In this context, are explored the main lines of research inrecent decades and systematized central conclusions in this area. Likewise, are still defined challengesand set future directions in research. The conclusions of this review warn for the role of interactiveand generative child/youth victims and their life contexts on the course of developmental change. Inthis sense, the positive adaptation is not an individual task of the victim but of all those involved,particularly in terms of conditions and availability of support networks favorable to an adaptiverecovery.

Key-words: Coping, Recovery, Resilience, Sexual abuse.

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Análise Psicológica (2012), XXX (1-2): 79-91

Intervenção em grupo com vítimas de violência doméstica:

Uma revisão da sua eficácia

Marlene Matos* / Andreia Machado** / Anita Santos*** / Carla Machado****

*Escola de Psicologia, Universidade do Minho; **Bolseira de Investigação, Escola de Psicologia,Universidade do Minho; ***Escola de Psicologia, Universidade do Minho e ISMAI – InstitutoSuperior da Maia; ****Escola de Psicologia, Universidade do Minho

Após o reconhecimento social, a violência doméstica tem adquirido progressivamente uma expressãosignificativa nas estatísticas criminais no nosso país. Paralelamente, atendendo aos elevados custosque habitualmente estão associados a esta experiência (e.g., saúde física e psicológica), a actuação deprofissionais especializados nesta área foi assumindo cada vez mais relevância, constituindo-se amulher vítima como um dos principais alvos da intervenção. Nesse contexto, assistiu-se nos últimosanos ao desenvolvimento de diferentes modalidades psicoterapêuticas dirigidas a essa população,entre as quais a intervenção em grupo. O objectivo deste trabalho consiste, pois, em sistematizar oconhecimento actual sobre a eficácia da intervenção em grupo com mulheres vítimas desse tipo deviolência, reflectindo criticamente sobre as suas potencialidades. Após uma revisão da literaturainternacional (e.g., Cox & Stolberg, 1991; McBride, 2001; Rinfret-Raynor & Cantin, 1997; Tutty,Bidgood, & Rothery, 1993), constata-se que essa é uma das mais comuns modalidades de intervençãofacultadas às vítimas, revelando-se útil e com grande impacto junto dessas mulheres (e.g., Trimpey,1989, citado por McBride, 2001; Tutty et al., 1993). Finalmente, a partir dos estudos disponíveis,apontamos os principais desafios no desenvolvimento de estudos empíricos neste contexto, bem comoalgumas implicações práticas para a implementação de intervenções em grupo com esta população.

Palavras-chave: Estudos de eficácia, Intervenção em grupo, Mulheres vítimas, Violência doméstica.

INTRODUÇÃO

A violência doméstica, durante muitos anos, permaneceu oculta na privacidade das famílias.No entanto, desde a década de setenta, diversos olhares têm sido lançados sobre o fenómeno,transformando-o num problema à escala mundial. Desde então, passou a ser objecto deinvestigação científica e motivou a definição de políticas públicas para a combater.

No nosso país, foram vários os factores que concorreram para esse crescente reconhecimentosocial do fenómeno e para que este assumisse progressivamente um lugar de relevo na sociedadeem geral. Em 2007, um inquérito à população revelou uma prevalência de 38.1% de violênciacontra as mulheres (Lisboa, 2008). Além disso, tal como no inquérito análogo de 1995, osresultados de 2007 revelaram que a violência mais prevalente é a psicológica (53.9%), seguida daviolência física (22.6%) e da violência sexual (19.1%). O local de maior risco para a ocorrênciade violência persiste em ser a própria habitação e o marido continua a ser maioritariamente o

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A correspondência relativa a este artigo deverá ser enviada para: Marlene Matos, Escola de Psicologia (EPsi),Universidade do Minho, Campus de Gualtar, 4710-057 Braga. E-mail: [email protected]

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agressor (72.7%) (Lisboa, 2008). Mais recentemente, em 2010, nas estatísticas nacionais, aviolência doméstica constituiu-se como o terceiro crime mais participado (N=31235),representando 7.3% do total das denúncias às forças de segurança. A violência psicológica dominaas participações (76%), seguida da violência física (74%) (DGAI, 2010). De modo complementar,no mesmo ano, os indicadores ainda provisórios do homicídio conjugal informavam que forammortas 43 mulheres de acordo com a União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR, 2010).

Vários estudos têm documentado os elevados custos que habitualmente estão associados a estaproblemática (e.g., familiares, sociais), condicionando a saúde física e psicológica da mulher (e.g.,Koss, Ingram, & Pepper, 2001; Stark, 2001; Stark & Flitcraft, 1996). As mulheres que estãoexpostas à violência doméstica reportam altos níveis de utilização dos cuidados de saúde e estãoem risco de desenvolver perturbação psicológica e psiquiátrica (Campbell, 1998). A par disso,apresentam dificuldades comportamentais, emocionais e relacionais, para além do potencialcarácter incapacitante e destrutivo dos maus-tratos (e.g., homicídio e suicídio).

Assim sendo, a elevada prevalência, o impacto significativo da violência doméstica a curto e alongo prazo, bem como os custos financeiros que lhe estão associados vieram reforçar odesenvolvimento de uma intervenção apropriada dirigida ao agressor e à vítima e também da suaavaliação (Constantino, Kim, & Crane, 2005).

No que respeita à vítima, e atendendo ao número crescente de pedidos de ajuda, tornou-senecessário desenvolver modalidades1 de intervenção inovadoras e eficazes dirigidas à mulher.Ainda que de modo insuficiente, nos últimos anos têm sido documentadas diferentes modalidadespsicoterapêuticas de intervenção nesta problemática. Internacionalmente, a literatura reportaintervenções de carácter individual, em grupo e, ainda, a terapia de casal (cf. Lundy & Grossman,2001).

Em Portugal, tem assumido lugar de destaque a intervenção em crise (Matos & Machado, 1999),a intervenção de inspiração feminista (Neves & Nogueira, 2004) e a psicoterapia narrativa noformato individual (Matos & Gonçalves, 2002, 2005) e de grupo (Machado & Matos, 2001).

No plano científico, os estudos nacionais têm-se dirigido principalmente para a caracterizaçãodo fenómeno, sobretudo a nível da sua prevalência e do impacto causado às vítimas. Há estudosrecentes sobre o processo de mudança da mulher (Matos, 2006; Santos, 2008) mas continuamausentes investigações acerca da eficácia das intervenções preconizadas. Aliás, embora aintervenção nesta área assuma cada vez mais relevância e expressão, a literatura é consensualquanto à insuficiência de estudos que reportem a eficácia da maioria das intervenções disponíveispara as vítimas (Lundy & Grossman, 2001).

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: INTERVENÇÃO EM GRUPO COM MULHERES VÍTIMAS

Uma parte significativa do que conhecemos sobre a intervenção com mulheres vitimadas pelosseus parceiros deriva dos poucos estudos publicados sobre a eficácia das intervenções em grupo.Apesar desta modalidade poder assumir diferentes filosofias (e.g., grupos de suporte ou de auto-ajuda), neste espaço reflectiremos sobretudo acerca dos grupos terapêuticos.

O surgimento da intervenção em grupo dirigida a mulheres maltratadas deve-se, em grandeparte, aos movimentos feministas dos anos sessenta e setenta (Wilson, 1997). Este tipo de

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1 A este respeito, importa ressalvar que não existe uma intervenção única dirigida a todas as situações, nemtão pouco uma forma de ajuda considerada mais eficaz a partir de uma componente singular (Walker, Logan,Jordan, & Campbell, 2004).

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intervenção começou por ser implementado nas casas abrigo, uma vez que as mulheres viviamem comunidade, surgindo a necessidade de intervir num formato grupal (Tutty & Rothery, 2002).Refira-se, aliás, que a experiência de intervenção psicoterapêutica em grupo decorre da intenção,habitualmente manifestada pela vítima, de partilhar a sua experiência com outras mulheres comtrajectos de vida semelhantes.

Segundo Tutty e colaboradores (1993), no plano internacional, o trabalho em grupo é a formade intervenção mais comum junto de mulheres que viveram experiências de abuso. Uma dasprincipais vantagens desta modalidade de intervenção reside no facto de quebrar o isolamento aque estas mulheres estão, muitas vezes, sujeitas. O contexto do grupo permite-lhes ainda validara sua experiência, receber informação, dar e receber suporte (e.g., emocional), bem como perceberque o seu problema não é único e que existem formas alternativas de lidar com a situação. Assim,o grupo pode ajudar a mulher “a perceber que não está só e que os seus sentimentos de confusão,medo e desespero são reais e partilhados por outras mulheres” (Webb, 1992, p. 209). Nalgunscasos, o grupo fornece também o suporte social necessário para a tomada de decisões.

Muitos autores recomendam que a intervenção em grupo assuma uma perspectiva feminista,na medida em que esta condena a violência, retira a responsabilidade da vítima situando-a noagressor, reconhece a forma como a sociedade perpetua essa violência e foca-se na violência emdetrimento das interacções do casal (Hartman, 1983, citado por Tutty & Rothery, 2002; Pressman,1984, citado por Tutty et al., 1993).

Em 1984, Pressman (citado por Tutty et al., 1993) procurou definir as linhas orientadoras paraa intervenção nesta problemática. Estas acabaram por se assumir como temas comuns aos gruposde intervenção entretanto documentados na literatura sobre o tema. Nesse contexto, a negaçãoe/ou minimização da violência necessitam de ser identificadas, reconhecidas e trabalhadas deforma apoiante, através da educação acerca das dinâmicas violentas. A par disso, a mulher precisatambém de explorar as razões que a levaram a permanecer numa relação violenta, de forma areduzir o seu sentimento de culpa. Nesse sentido, muitos grupos abordam a forma como as crençasrelativas aos papéis tradicionais masculino e feminino legitimam a violência na intimidade.Concomitantemente, apoiar as mulheres a identificar formas de resistir ao abuso, a protegerem-se asi e aos seus filhos são outros objectivos. Daí que a segurança da mulher (e dos filhos) sejaprioritária na intervenção e, por isso, é muitas vezes necessário traçar um plano de segurançadesde o início do grupo. Igualmente, é importante permitir à mulher sentir e expressar raiva porter sido vitimizada, bem como proporcionar um espaço para esta lidar a perda da esperança quetinha na relação e, nalguns casos, ajudá-la a fazer o luto da relação que terminou. Finalmente, osentimento de isolamento é atenuado se a mulher desenvolver laços fortes que possam evoluirpara redes de suporte informais que sobrevivam ao grupo (Tutty & Rothery, 2002). McBride(2001) destaca ainda como principal vantagem da terapia em grupo o empoderamento que estaconcede à mulher ao dotá-la de competências para tomar as suas próprias decisões e fazer escolhas.Em síntese, espera-se que estas linhas orientadoras potenciem o impacto positivo do grupo naauto-estima e sentido de eficácia da mulher.

Estão descritos na literatura alguns exemplos que demonstram que a intervenção em grupo setem multiplicado. Estão documentadas, por exemplo, experiências desenvolvidas junto demulheres com Perturbação de Stress Pós-Traumático (e.g., Schlee, Heyman, & O’Leary, 1998) ejunto de mulheres idosas abusadas (e.g., Brandl, Hebbert, Rozwadowski, & Spangler, 2003).Contudo, e como já afirmámos antes, tem sido conduzida pouca investigação acerca da eficáciadas intervenções com vítimas de violência doméstica (Tutty, Bidgood, & Rothery, 1996). Deseguida, reflectimos sobre os estudos existentes nesta área, de modo a fornecer ao leitor uma visãogeral sobre a eficácia da intervenção em grupo.

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INTERVENÇÃO EM GRUPO COM MULHERES VÍTIMAS: QUAL A SUA EFICÁCIA?

Em 1991, Holiman e Schilit conduziram uma intervenção em grupo psico-educacional commulheres vítimas de violência na intimidade (n=12), cujo objectivo era ajudar as participantes aaprender a centrar-se em si. Recorreram sobretudo a técnicas cognitivas, expressivas e de suportesocial. A intervenção envolveu dez sessões de grupo, cada uma com duas horas de duração. Asessão inicial consistia numa orientação geral às participantes. Da segunda à quinta sessãoincluíram uma parte inicial de cariz psico-educacional, seguida de uma hora de actividades degrupo. As últimas quatro sessões centravam-se no trabalho emocional (Abel, 2000). O designutilizado foi quase-experimental, com pré e pós-teste. No que se refere aos resultados, foramencontradas melhorias significativas no que se refere à raiva e à satisfação geral. No entanto, esteestudo enfrentou algumas limitações, tais como a amostra reduzida, medidas insuficientes e aausência de grupo de controlo (Abel, 2000).

Cox e Stoltenberg publicaram, também em 1991, a avaliação de um programa de intervençãoem grupo dirigido a mulheres vítimas de violência na intimidade. Recorrendo a uma amostra maior(n=21) e a uma metodologia experimental. Os autores desenharam uma investigação com osseguintes objectivos: (a) avaliar as condições necessárias para aumentar as oportunidades dasmulheres saírem da relação abusiva; e (b) identificar intervenções que possam ajudar as mulheresa lidar com problemáticas como o desenvolvimento pessoal, o ajustamento social e a orientaçãovocacional (Abel, 2000). A intervenção levada a cabo assumiu um cariz psico-educacional,decorria três vezes por semana, num total de doze horas e era conduzida por duas facilitadoras. Aintervenção continha cinco módulos integrando várias técnicas: (1) terapia cognitiva, orientadapara melhorar o auto-conceito da mulher, as suas competências relacionais e a sua preparaçãopara o mundo do trabalho; (2) assertividade e competências de comunicação, com o objectivo deconhecer os seus direitos e praticar competências orientadas para a sua defesa. Uma vez queaumentar a assertividade da vítima encerra o risco de agressão, este módulo poderia incluir tambémcompetências de segurança (e.g., identificar pistas do abuso, desenvolver planos de fuga, treinaro auto-controlo emocional); (3) resolução de problemas, envolvendo questões como a definiçãodo problema, a geração de alternativas de resposta, a tomada de decisões e a verificação daadequação destas; (4) aconselhamento vocacional, incluindo o despiste de áreas de interesse ecompetência, a identificação de recursos de formação profissional e o treino de procura de empregoe, finalmente, (5) a tomada de consciência de si e do seu corpo, momento em que se encorajava amulher a discutir aspectos relacionados com a auto-imagem, nomeadamente em termos corporais.Na implementação deste programa foi utilizada uma multiplicidade de estratégias, incluindodiscussões de grupo, estratégias mais didácticas e técnicas de disputa cognitiva. No que toca aosresultados, os autores concluíram que não havia diferenças significativas entre o grupo terapêuticoe o grupo de controlo e que em ambos houve uma melhoria na auto-estima. Apesar de tudo, numdos dois grupos terapêuticos registou-se adicionalmente melhorias ao nível da ansiedade edepressão. O reduzido grupo de participantes (menos de dez participantes em cada grupo), bemcomo a ausência de avaliação de follow-up são as principais limitações apontadas a este estudo.

Por sua vez, Tutty, Bidgood e Rothery (1993) levaram a cabo doze grupos de suporte, cujoobjectivo era colocar um fim à violência, através da (1) educação das participantes acerca do papelfeminino e masculino, (2) (re)construção da sua auto-estima e (3) ajuda no desenvolvimento deplanos concretos. As sessões de grupo estendiam-se ao longo de dez a doze semanas. Cada sessãode grupo durava de duas a três horas. As facilitadoras eram mulheres provenientes das várias áreasdo trabalho social (Abel, 2000). O estudo de eficácia revelou, com uma amostra total de 76participantes, com design quase-experimental e com pré e pós-teste, ganhos substanciais,nomeadamente ao nível do aumento do sentimento de inclusão/suporte emocional, da auto-estima,do locus de controlo interno e da diminuição do stress percebido, bem como das atitudes

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tradicionais em relação ao casamento e à família. Verificaram-se, ainda, alterações ao nível dofuncionamento marital (e.g., maior expressão de afecto, menos comportamentos de controlo) euma diminuição (embora não cessação) dos comportamentos abusivos. Os autores não deixam,contudo, de fazer referência a um conjunto variáveis de processo que podem condicionar osresultados num formato de intervenção em grupo: o tamanho do grupo, os níveis de participação,a circunstância da mulher completar ou não todo o processo, a influência dos facilitadores (e.g.,tipo de orientação e de formação – psicólogos, assistentes sociais), a experiência de participaçãoda mulher em grupos anteriores, a idade da mulher, o facto de coabitar ou não com o parceiro.Em geral, estas condições não tinham um efeito significativo nos resultados, mas existiam algumasdiferenças no follow-up após seis meses.

Um outro estudo quase-experimental foi desenvolvido por Rinfret-Raynor e Cantin (1997) como objectivo de comparar o efeito de diferentes filosofias de intervenção, entre três grupos,envolvendo um total de sessenta mulheres vitimadas pelos parceiros. Um grupo foi conduzido deacordo com a orientação feminista, o segundo baseou-se na teoria feminista individual e o terceirogrupo recebeu uma intervenção standard (aquela que normalmente as instituições estataisfornecem). Embora inicialmente com o intuito de utilizar um design experimental, os autorestiveram muitas dificuldades no recrutamento das participantes. Os dados foram recolhidos atravésde entrevistas em quatro momentos diferentes: um primeiro momento no pré-teste; um segundomomento no pós-teste um mês depois da intervenção; no follow-up após 6 meses e, finalmente,no follow-up após um ano. As variáveis estudadas foram o tipo de terapia, o tipo de violência, aauto-estima, as estratégias de coping, a assertividade, o ajustamento social, o ajustamento docasamento e o ajustamento da díade. Este estudo demonstrou a eficácia das abordagens estudadasno trabalho com mulheres vítimas de violência na intimidade. Curiosamente, os autores nãoencontraram diferenças entre as diferentes orientações: as mulheres mudaram, por norma, nos trêstipos de intervenção. Estes resultados são encorajadores, na medida em que se percebeu que, dandoajuda adequada às vítimas, estas são capazes de descobrir recursos pessoais e sociais, de forma aeliminar ou diminuir a violência que experienciam. Igualmente, são capazes de reconstruir a suavida pessoal e social, à medida que experienciam melhores condições sócio-económicas,aumentam a sua auto-estima, melhoram a assertividade e o ajustamento social e promovem a suacondição geral de saúde (Rinfret-Raynor & Cantin, 1997). De referir que as mudanças queocorreram nas participantes foram significativas, principalmente em duas áreas: na diminuiçãoda violência e nas variáveis psicológicas afectadas pela violência (Rinfret-Raynor & Cantin, 1997).

Já o estudo desenvolvido por McBride (2001) teve como objectivo determinar os resultados deum programa de intervenção psico-educacional de duas fases que tinha sido oferecido, ao longode muitos anos, a mulheres que estavam a ser ou tinham sido abusadas pelo parceiro. Cada grupoera altamente estruturado e baseava-se em técnicas feministas e cognitivo-comportamentais. Aprimeira fase era desenhada para introduzir as dinâmicas do abuso, bem como para avaliar o seuimpacto nas participantes. A segunda fase, mais centrada em problemáticas consequentes ao abuso,abordava a culpa, a vergonha, as dinâmicas da família de origem e a comunicação não saudável.A autora utilizou um design quase-experimental, com pré e pós-teste e avaliou três grupos, comuma amostra total de 189 participantes. As variáveis estudadas foram: a auto-estima, a depressão,o impacto do abuso em termos de sintomas intrusivos relacionados com essa experiência abusiva(tais como sentimentos, ideias ou pesadelos) e o impacto do abuso quanto a evitar pensamentos,sentimentos ou situações associadas ao evento traumático. Foram encontradas melhoriasestatisticamente significativas em todas as variáveis estudadas. Neste sentido, na primeira faseverificou-se uma redução de sintomas intrusivos, enquanto na segunda fase foi encontrada umamaior redução nos sintomas depressivos. As mulheres que obtiveram resultados mais baixostinham em comum o facto de não ter emprego, não ter escolaridade, ter história psiquiátrica, játer tido acompanhamento psicológico e não ter suporte social. Relativamente às limitações desteestudo, salienta-se a ausência de grupo de controlo e a selecção não aleatória das participantes,

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bem como a utilização de medidas de auto-relato e ainda a discrepante ecologia dos grupos (e.g.,diferentes facilitadores em diferentes fases; diferentes estilos dos facilitadores; ruído da sala ondese realizavam os grupos; assiduidade dos membros do grupo; disponibilização ou não de comidae água às participantes; compreensibilidade dos materiais distribuídos). Os autores também nãoestudaram a importância do suporte social, admitindo no entanto que o deveriam ter feito.

Em 2004, foi desenhada por Schwartz, Magee, Griffin e Dupuis uma intervenção em grupopara prevenir os factores de risco e aumentar os factores protectores associados à violência nonamoro e à violência doméstica. O grupo recorreu a uma intervenção psico-educacionalmanualizada para abordar as questões de género, papéis sociais e conflitos, bem como atitudessaudáveis (e não saudáveis), competências de comunicação e gestão de raiva, ou seja, factoreshabitualmente relacionados com o envolvimento em relações violentas na intimidade. A amostraera constituída por vinte e oito participantes (seis grupos) que participaram em quatro sessões degrupo, cada uma de hora e meia. O grupo experimental (n=30) foi comparado com o grupo decontrolo (n=30) que recebeu intervenção standard. Os resultados obtidos suportam a eficácia daintervenção preconizada já que permitiu modificar os factores que facilitam o envolvimento nestetipo de relações não saudáveis. Nesse sentido, o grupo experimental, quando comparados osresultados do pré e do pós-teste, registou uma diminuição na aceitação dos estereótipos tradicionaisdos papéis de género e, ainda, no uso de estratégias de redução de escalada do conflito e deatribuições negativas acerca do alvo da raiva. Além disso, o grupo experimental tambémdemonstrou um aumento significativo na capacidade de expressão emocional, de gestão da raivae na adopção de atitudes saudáveis. No que se refere a limitações, destacam-se: o tamanho reduzidoda amostra; a utilização de instrumentos de auto-relato; a variação das características do facilitadore da composição do grupo; a especificidade da população (i.e., estudantes de uma universidade)e a ausência de follow-up.

Mais recentemente, o estudo piloto de Constantino, Kim e Crane (2005) testou a eficácia deuma intervenção em grupo, a nível do suporte social, com vítimas de violência na intimidade queresidiam numa casa abrigo (n=24). A intervenção foi desenhada em oito sessões semanais, sendocada sessão de noventa minutos. O principal objectivo era fornecer recursos e informação acercados recursos disponíveis na comunidade. No que se refere ao design, recorreu-se a instrumentospara avaliar a saúde geral, que foram examinados no pré e pós teste, utilizando-se ainda um grupode controlo. Os autores concluíram que as intervenções no suporte social, com mulheres vítimasde violência na intimidade que se encontrem em casas abrigo, são eficazes no que respeita amelhorar a sua saúde geral e resultam numa menor utilização dos serviços de saúde (Constantinoet al., 2005). As participantes melhoraram quanto aos sintomas de stress, quanto à percepção desuporte social e reportaram ainda uma menor utilização dos serviços de saúde.

Na Tabela 1 sistematizamos um conjunto de dimensões que caracterizam, de modo mais amplo,os estudos de eficácia descritos.

Em síntese, a partir da Tabela 1, constata-se que a maioria dos estudos internacionais docu -mentam o sucesso da modalidade de intervenção em grupo, anunciando-a como útil para este tipode população, nomeadamente ajudando a recuperar o controlo sobre a sua vida e a diminuir aviolência que experienciam (e.g., Rinfret-Raynor & Cantin, 1997). Muitos dos estudos publicados(cf. Cox & Stoltenberg, 1991; Holiman & Schilt, 1991; Rinfret-Raynor & Cantin, 1997; Tutty etal., 1993) encontraram ainda melhorias estatisticamente significativas noutras áreas, como porexemplo aumento da auto-estima, das competências pessoais e sociais, diminuição da raiva e dadepressão, alterações positivas de atitudes face ao casamento e à família, diminuição da tolerânciaao abuso a que estão expostas. Alguns autores (e.g., Machado & Matos, 2001) afirmam, emcomplementaridade, que a terapia de grupo revela um grande pragmatismo na abordagem dosproblemas trazidos por este tipo de clientes e uma significativa eficácia na consolidação dosresultados construídos a nível individual.

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Page 87: Intervenção em grupo com vítimas de violência doméstica: Uma revisão da sua eficácia

De acordo com Rinfret-Raynor e Cantin (1997) há factores comuns a estas intervenções queexplicam o seu sucesso, tais como: (1) uma perspectiva feminista sobre o problema; (2) o trabalhocentrado na mulher, em detrimento do casal ou da família; (3) a ênfase em (re)contruir a auto--estima, o desenvolvimento pessoal e a autonomia e, por fim, (4) o trabalho emocional.

No que se refere aos objectivos de intervenção, ainda que se encontrem algumas diferençasentre os estudos, percebe-se que estes vão de encontro às metas habitualmente traçadas no trabalhotécnico com esta população. Estes incluem, entre outros, a redução do isolamento, o aumento daauto-estima e do auto-conceito, a planificação da segurança pessoal, a educação acerca do cicloda violência, a promoção da tomada de decisão, a resolução de problemas, a consciencializaçãoacerca do papel feminino e masculino na sociedade, o treino da assertividade e o empoderamento.

Quanto à filosofia de intervenção, conclui-se que predominam as intervenções de cariz psico--educacional (Cox & Stoltenberg, 1991; Holiman & Schilit, 1991; McBride, 2001; Schwartz etal., 2004), com orientação cognitivo-comportamental e feminista (Cox & Stoltenberg, 1991;Holiman & Schilit, 1991; McBride, 2001; Rinfret-Raynor & Cantin, 1997).

Em termos de formato, em média, os grupos decorrem ao longo de oito a dez sessões(Constantino et al., 2005; Holiman & Schilit, 1991; McBride, 2001; Tutty et al., 1993), tal comorecomendado pela literatura sobre a intervenção em grupo (e.g., Yalom, 1995). Relativamente àestrutura dos programas de intervenção e às técnicas utilizadas, assistimos a alguma homogenidadeentre as propostas. Assim, tal como Fleming (1979, citado por Margolin, Sibner, & Gleberman,1988) recomenda, assiste-se ao uso simultâneo de técnicas didácticas (e.g., exposição de temas,biblioterapia), treino de competências (e.g., role-playing, relaxamento, gestão da raiva) e, ainda,a modalidades de intervenção menos estruturadas, tais como as discussões de grupo.

Contudo, apesar das múltiplas recomendações à intervenção em grupo, esta modalidade nãoestá imune a críticas. Desde logo, um dos problemas identificados é a escassez dos estudospublicados até ao momento acerca da eficácia destas intervenções. Além disso, como se constataatravés da Tabela 1, os estudos disponíveis sobre os resultados da terapia de grupo com mulheresvítimas conhecem um conjunto de limitações, nomeadamente metodológicas. As amostrasenvolvidas nos estudos são normalmente pequenas, como se pode verificar nos estudos de Cox eStoltenberg (1991, n=21), e de Holiman e Schilits’s (1991, n=12), a título de exemplo. Outroconstrangimento importante tem sido o facto de raramente serem contemplados grupos de controlo– apenas três dos estudos incluídos nesta revisão tinham grupo de controlo – nem avaliações defollow-up – relatados apenas em duas investigações. Os problemas relacionados com aconfidencialidade, a centralização das sessões em determinados temas e o facto deste formatonem sempre responder às necessidades individuais dos seus membros são outras críticasfrequentemente apontadas (Hamby, 1998).

Contudo, e não obstante essas lacunas, os resultados encontrados até ao momento podem serinterpretados como fornecendo evidência inicial da eficácia da intervenção em grupo commulheres vítimas de violência na intimidade (Tutty & Rothery, 2002), a qual carece ser maiscomprovada. Nesse contexto, persistem muitos desafios para a investigação da intervenção emgrupo nesta problemática, nomeadamente:

1) Selecção aleatória das participantes: A violência na intimidade traça um percurso que nema própria vítima consegue controlar (Davies, Lyon, & Monti-Cantania, 1998, citado porZink & Putman, 2005). A vítima quebra o segredo acerca desta problemática selectivamentee escolhe onde quer pedir ajuda e que tipo de ajuda precisa, fazendo estas escolhas combase na sua capacidade para lidar com o abuso e para procurar apoio (Zink, Elder, &Jacobson, 2004, citado por Zink & Putman, 2005). Dessa forma, uma selecção aleatóriade participantes torna-se uma tarefa complexa. Adicionalmente, pode ser difícil seleccionaras vítimas para os diferentes tipos de intervenção (grupo, individual). O mais importante é

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Page 88: Intervenção em grupo com vítimas de violência doméstica: Uma revisão da sua eficácia

ir de encontro às necessidades individuais da vítima e aos seus desejos que dependem,muitas vezes, da forma como elas estão a lidar com a violência.

2) Utilização de grupo de controlo: Constituir uma amostra de controlo (nomeadamentealeatório) é um dos maiores desafios. A utilização da lista de espera nesta problemática,enquanto grupo de controlo, coloca também questões éticas importantes, como a de nãoprovidenciar apoio numa situação em que pode estar em causa a vida de uma vítima.

3) Avaliação de seguimento (follow-up): Monitorizar os resultados de uma intervenção aolongo do tempo é um outro dos grandes desafios devido à mobilidade das vítimas pormotivos de segurança. Como consequência, os estudos longitudinais, além de muitodispendiosos, implicam um grande esforço e um trabalho muito exigente por parte dosinvestigadores.

4) Selecção criteriosa dos instrumentos utilizados: Os estudos nesta área são habitualmentecriticados porque os resultados são obtidos através de medidas de auto-relato (Wathen &McInerney, 2003, citado por Zink & Putman, 2005). Para além disso, a análise dosinstrumentos utilizados demonstrou a ausência de consenso acerca deste aspecto já queraramente o mesmo instrumento é utilizado nos vários estudos (cf. Tabela 1). A acrescentar,medidas para avaliar a qualidade de vida e o estado de saúde normalmente não sãoutilizadas (Ramsay et al., 2002, citado por Zink & Putman, 2005) e são poucos osinstrumentos disponíveis criados especificamente para esta população maltratada.

Ainda assim, com base nos estudos disponíveis, é possível reunir um conjunto de implicaçõespráticas, que poderão aumentar a qualidade das intervenções em grupo implementadas para queestas sejam efectivamente facilitadoras de mudanças qualitativas na vida das participantes. Assim,inicialmente, importa fazer uma avaliação eficaz para determinar se as participantes possuemrecursos, estratégias de coping e resistência emocional para ingressar num grupo. Outras variáveisque, igualmente, se recomendam avaliar são: (1) perceber se a mulher possui os recursos básicosde vida, tais como condições habitacionais, alimentação, acesso a transportes; (2) avaliar osconstrangimentos externos que possam facilitar a desistência do grupo (e.g., não ter com quemdeixar os filhos; viver numa situação de alto risco de violência, na qual o parceiro restringe osmovimentos da mulher); (3) avaliar se stressores actuais presentes na vida das participantes estãoa diminuir as suas capacidades de coping ou os recursos de que dispõe; e iv) determinar se amulher está emocionalmente pronta para uma experiência em grupo (McBride, 2001). Todas estassugestões2 visam assegurar que as participantes estão prontas para integrar a intervenção em grupoe para garantir/aumentar a permanência destas no grupo. Para além disso, essa informaçãopermitirá adequar os procedimentos a adoptar às respectivas participantes.

Além disso, com vista ao desenvolvimento de estratégias de intervenção empiricamentevalidadas, seria igualmente importante estudar as variáveis que contribuem para uma intervençãoem grupo com sucesso (McBride, 2001). Tutty e colaboradores deram o mote nesse campo aoanalisar vários grupos e dinâmicas situacionais utilizadas no seu estudo de 1993, como porexemplo o tamanho do grupo e a sua assiduidade, o número de facilitadores do grupo, bem comoas características individuais das participantes (e.g., idade, situação actual da relação).

Por outro lado, torna-se relevante conduzir investigações no sentido de comparar/contrastarestudos nas diferentes modalidades disponíveis de intervenções em grupo para ajudar a identificarquais permitem uma melhoria significativa do bem-estar da vítima. Por exemplo, está pordocumentar se existem diferenças nas intervenções em grupo que (1) são abertas ou fechadas; (2)

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2 Outras boas práticas estão documentadas em Matos e Machado (2011). Violência Doméstica: Intervençãoem grupo com mulheres vítimas. Manual para profissionais. Lisboa: CIG.

Page 89: Intervenção em grupo com vítimas de violência doméstica: Uma revisão da sua eficácia

são compostas por mulheres que estão na relação ou que saíram da relação; (3) são psico--educacionais ou não estruturadas.

Tornou-se também claro, ao longo desta análise, a indispensabilidade da avaliação dosresultados terapêuticos da intervenção em grupo. Além de perceber “quanto” mudou com aintervenção, através do estudo da mudança do ponto de vista estatístico, seria ainda imperativoconduzir estudos acerca dos processos psicoterapêuticos. Assim, teríamos acesso ao “como” asmulheres empreenderam mudanças realmente significativas na sua vida. Para este efeito seriamnecessários designs de análise do processo terapêutico, com recurso a metodologias qualitativas.Paralelamente, outra área de interesse seria dar voz às mulheres acerca das intervenções em grupoem que participaram, através de entrevistas que captassem a sua narrativa após o término do grupo.

Estas orientações para o estudo da intervenção em grupo com mulheres vítimas de violênciana intimidade têm como objectivo último promover o conhecimento sobre a mudança das mesmas,de modo a informar os psicólogos que actuam nesta área acerca da(s) forma(s) mais adequada(s)de intervir nestas situações.

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Webb, W. (1992). Treatment issues and cognitive behavior techniques with battered women. Journal of FamilyViolence, 7, 205-217.

Wilson, K. J. (1997). When violence begins at home. CA: Hunter House Publishers.

Yalom, I. (1995). The theory and practice of group psychotherapy. New York: Basic Books.

Zink, T., & Putnam, F. (2005). Intimate partner violence research in the health care setting: What are appropriateand feasible methodological standards? Journal of interpersonal violence, 20(4), 365-372.

After being socially recognized, domestic violence has been having a significant expression inPortuguese surveys. Moreover, due to the high costs associated with this problem (e.g., physical andmental health), the intervention by specialized professionals in this area is now more relevant, beingthe woman victim the main target. Within the last years, several psychotherapeutic modalitiesaddressing women victims were developed, being group intervention one of those. The aim of thepresent work is to give a clear picture of the state of the art concerning research on efficacy of groupintervention with women victim of domestic violence, as well as critically reflect on its’ potential.After reviewing international literature (e.g., Cox & Stolberg, 1991; McBride, 2001; Rinfret-Raynor& Cantin, 1997; Tutty, Bidgood, & Rothery, 1993), it is possible to recognize group intervention asone of the most common intervention with victims, often assessed as being useful and with a positiveimpact (e.g., Trimpey, 1989, as cited in McBride, 2001; Tutty et al., 1993). Finally, major challengeson the development of empirical studies on this intervention are pointed out, as well as implicationsfor practitioners in order to develop group intervention with women victim of domestic violence.

Key-words: Domestic violence, Efficacy research, Group intervention, Women victim.

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Análise Psicológica (2012), XXX (1-2): 93-107

Violência nas relações íntimas ocasionais de uma amostra estudantil

Joana Antunes* / Carla Machado*

*Escola de Psicologia, Universidade do Minho

Este artigo apresenta os resultados de uma investigação sobre a prevalência da violência nas relaçõesafectivas ocasionais de uma amostra de estudantes, composta por 600 alunos do ensino secundário esuperior. 72.3% dos elementos desta amostra relataram já ter estado envolvidos em relações afectivasocasionais. Nas suas respostas a um inventário de violência (IVC-4, Antunes & Machado, 2007),43.2% dos participantes admitem ter perpetrado pelo menos um acto abusivo contra um parceiro(a)ocasional ao longo das suas vidas (30.1% de natureza física) e 37.3% reconhecem ter sido alvo deviolência por um parceiro ocasional ao longo da vida (20.4% de agressão física). Esta violência apareceessencialmente associada aos sujeitos mais novos, que frequentam anos inferiores de escolaridade edo ensino secundário. Ocorre também mais frequentemente entre os jovens com um maior númerode envolvimentos ocasionais. Estes resultados corroboram a relevância do problema da violência naintimidade juvenil e, sendo bastante superiores aos níveis de prevalência da violência nas relações denamoro (Machado, Caridade, & Martins, 2009), sugerem que poderá haver dinâmicas relacionaisespecíficas das relações ocasionais que aumentam o risco nestes envolvimentos e que a investigaçãofutura deverá aprofundar.

Palavras-chave: Estudantes, Intimidade, Relações ocasionais, Violência.

A década de 60 ficou marcada pelo desenvolvimento de inúmeros estudos no âmbito daviolência conjugal (Heritage, Carlton, & West, 1996), sendo, contudo, hoje evidente que aviolência na intimidade não se restringe a este contexto relacional. São várias as evidências deque a violência também ocorre e não é menos prevalente nas uniões de facto, nos períodos pós--separação, nas relações homossexuais e também nas relações de namoro juvenis (e.g., Machado,Caridade, & Martins, 2009; Nunan, 2004).

No que diz respeito especificamente à violência na intimidade juvenil, os estudos iniciaram-seem 1981, com a investigação de Makepeace (citado por Lewis & Fremouw, 2001), que veioapresentar indícios de violência em uma de cada cinco relações amorosas estabelecidas porestudantes universitários. Mais recentemente, uma revisão de três estudos de grande dimensão,conduzida por Magdol, Moffit, Caspi, Newman, Fagan e Silva (1997), indicou dados deprevalência na população jovem adulta situados entre os 21.8% e os 55.8%. Sublinhando avariabilidade mas também a elevada dimensão deste problema, um estudo intercultural conduzidopor Straus (2004) em dezasseis países e em trinta e um contextos universitários, encontrou taxasde violência física nas relações de namoro que variavam entre os 17% e os 45% nos 12 mesesprévios à investigação.

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Este texto foi elaborado no âmbito do Projecto “Violência nas Relações Juvenis de Intimidade”(PTDC/PSI/65852/2006), financiado pela FCT e coordenado por Carla Machado.

A correspondência relativa a este artigo deverá ser enviada para: Joana Antunes, Serviço de Psicologia, Escolade Psicologia, Universidade do Minho, Campus de Gualtar. 4710-057 Braga. E-mail: [email protected]

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Por sua vez, os estudos conduzidos em Portugal também sugerem indicadores preocupantes deviolência nas relações juvenis de intimidade. Paiva e Figueiredo (2005), numa amostra deestudantes universitários, encontraram 53.5% dos participantes que admitiram actos de violênciaverbal, 18.9% de coerção sexual e 16.7% de violência física de gravidade moderada a baixa. Maisrecentemente, Machado, Caridade e Martins (2009), num estudo a nível nacional, com umaamostra em larga escala e que envolvia jovens de diferentes níveis de ensino, verificaram que30.6% dos participantes envolvidos numa relação amorosa (N=2,642) admitiam ter perpetradoactos abusivos contra os seus parceiros durante o último ano, 22.4% a nível emocional e 18.1%de agressão física. A perpetração de ambas as formas de violência era reconhecida por 10.6% dosparticipantes e a comissão de agressões físicas severas era admitida por 7.3%.

Apesar de ser, assim, claro que a intimidade juvenil é um contexto propício para a violência,uma das questões usualmente omissas na investigação relatada diz respeito ao contexto afectivoespecífico em que tal violência se desenrola. São, por exemplo, raros os estudos que referem aduração da relação afectiva em causa, o grau de compromisso entre os parceiros ou se a relaçãoera hetero ou homossexual. Por outro lado, nem sempre alguns conceitos utilizados nestes estudospara descrever o contexto relacional em causa têm correspondência directa com conceitos evivências da população portuguesa. Um exemplo óbvio desta falta de tradução é o conceito de“dating”, sendo pouco claro se este se deve entender como sinónimo de “namoro” ou se abarcatambém quadros relacionais que envolvem menor comprometimento emocional ou menorestabilidade.

O estudo empírico que aqui apresentamos surgiu, assim, pelo reconhecimento da necessidadede explorar de forma mais pormenorizada o contexto afectivo em que a violência na intimidadejuvenil se desenrola, bem como pela evidência de que a intimidade juvenil assume hoje múltiplasconfigurações, que frequentemente não se conformam ao padrão “tradicional” do namoro,caracterizado por um certo grau de compromisso, vínculo emocional e expectativa de continuidadetemporal.

Efectivamente, hoje em dia, as relações amorosas dos jovens (e não só) assumem diversospadrões interactivos, que podem ir desde um comprometimento emocional absoluto até ao nãoenvolvimento afectivo. É neste contexto que surgem as relações afectivas ocasionais, que secaracterizam por relacionamentos ausentes ou mínimos em termos de vinculação afectiva (Matos,Féres-Carneiro, & Jablonski, 2005). Mais concretamente, são relações de curta duração que,embora impliquem um envolvimento físico e/ou sexual, não envolvem um comprometimentoemocional entre os dois parceiros, nem assumem que haverá continuidade nesse envolvimento.Este tipo de relacionamento é denominado, na gíria juvenil, por “amizade colorida”, “casoamoroso”, “andamento”, “curtição” ou “flirt”, entre outros termos.

Este recente modo de manter uma relação tem-se tornado cada vez mais comum entre os jovens,caracterizando-se pelo estabelecimento de regras próprias que as distinguem das relações íntimasconvencionais (e.g., quanto à fidelidade, independência, desejo, entre outros), conferindo umamaior liberdade e autonomia aos parceiros. É uma experiência relacional fugaz, que se encontraintimamente associada ao prazer momentâneo, não exigindo, por isso, sequer conhecimento préviodos parceiros envolvidos. Podem ser várias as motivações para o envolvimento nestas relações,como sejam a obtenção de prazer, a carência afectiva, o desejo de consolidação de uma amizade(cf. Matos, Féres-Carneiro, & Jablonski, 2005), evitar o afastamento entre ex-namorados ouprocurar a proximidade de alguém de quem se gosta, tentando construir uma ponte para um futurorelacionamento (Manning, Giordano, & Longmore, 2006). Desta forma, as investigações queenvolvem os jovens e a sua sexualidade centram-se, cada vez mais, nas relações afectivasocasionais (ibidem), associando-as a encontros sexuais e, por vezes, à existência de violênciasexual (Brown & Amatea, 2000).

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Contudo, a literatura disponível sobre a questão mais lata da violência nestas relações é escassa,diríamos mesmo quase inexistente, além de que a variedade dos termos que definem este tipo derelações íntimas juvenis na literatura (casual date, spontaneous date, one-night-stand, hookingup, friends with benefits, hanging out) e, mais uma vez, a inexistência de uma tradução clara destesconceitos para o português e para a nossa realidade relacional, torna difícil estabelecer uma corres -pondência directa entre o que a literatura documenta e o fenómeno que procuramos estudar. Arelevância deste projecto de investigação prende-se, pois, com a sua novidade, procurandodesocultar a realidade da violência em relações menos tradicionais e muito menos investigadasdo que o namoro, sendo – ao que é do nosso conhecimento – o primeiro estudo nacional que incidesobre a violência neste contexto relacional específico, mas de crescente relevo nas vivênciasamorosas juvenis.

OBJECTIVOS

O objectivo geral desta investigação consistiu em avaliar a prevalência da violência nas relaçõesafectivas ocasionais dos jovens. A partir deste tema geral, este projecto de investigação integrouos seguintes objectivos específicos:

a) analisar os indicadores de prevalência da violência física, emocional e sexual, em termosde vitimação e perpetração nas relações ocasionais, abrangendo estudantes do ensinosecundário e universitário;

b) identificar associações entre os vários tipos de violência recebidos e sofridos, como tambémse existe uma associação entre vitimação e perpetração de diferentes actos abusivos;

c) encontrar associações entre características sociodemográficas (e.g., género, idade, grauacadémico, nível socioeconómico) e os vários tipos de violência perpetrada ou recebida.

MÉTODO

Amostra e procedimentos

As universidades constituem o contexto de excelência para o estudo da violência nas relaçõesíntimas juvenis (Hickman, Jaycox, & Aronoff, 2004), não só porque o “pico” da violência ocorreno início da idade adulta (por volta dos 24 anos) (Paiva & Figueiredo, 2005), mas também porqueeste contexto apresenta inúmeras vantagens para a prossecução de um estudo empírico (e.g.,facilidade na distribuição dos instrumentos de avaliação) (Straus, 2004). Urge, contudo,contemplar outros grupos etários dentro da população juvenil. O estudo da violência nas relaçõesíntimas de jovens mais novos, por exemplo frequentando o ensino secundário tem sido, de certomodo, descurado, apesar de a evidência empírica demonstrar também níveis elevados de violênciapor parte destes estudantes (Connolly & Josephson, 2007).

A partir desta preocupação, a amostra deste projecto de investigação englobou tanto alunos doensino universitário, como do ensino secundário. Os dados do ensino universitário foram recolhidosna Universidade do Minho, em aulas ou em locais que reunissem diversos estudantes (e.g.,biblioteca e salas de estudo) e os referentes ao ensino secundário foram recolhidos em duas escolasdo distrito de Braga. Pelo tipo de acordo obtido com cada instituição escolar, numa destas escolasos instrumentos foram administrados na sala de aula, enquanto na outra se procedeu à sua adminis -tração em espaços que aglomeram vários alunos (e.g., o bar, a sala do aluno, espaços exteriores).

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O consentimento informado foi obtido individualmente junto dos alunos de maior idade, bemcomo junto do Conselho Executivo de cada escola e dos professores (no caso da recolha nas salasde aula), para os alunos do ensino secundário. Somente cerca de 2% dos indivíduos se recusarama colaborar no estudo. Todos os questionários foram respondidos de forma anónima e confidencial.Foram distribuídos durante o ano lectivo de 2007/2008, sendo a amostra constituída por 600participantes (cf. Tabela 1).

Instrumentos

O abuso nas relações afectivas ocasionais foi avaliado a partir de um questionário de auto-relato que incidia sobre a dimensão comportamental da violência, ou seja, avaliava a frequênciados comportamentos violentos sofridos e perpetrados pelo sujeito. Este instrumento foi adaptadoa partir de um outro questionário utilizado numa investigação sobre prevalência da violênciaconjugal: IVC – Inventário de Violência Conjugal (Matos, Machado, & Gonçalves, 2000), tambémjá alvo de uma adaptação prévia para a identificação da violência no contexto do namoro(Machado, Caridade, & Martins, 2009).

O IVC-4 (Antunes & Machado, 2007, adaptado de Matos, Machado, & Gonçalves, 2000)avalia, assim, os comportamentos violentos nas relações afectivas ocasionais. Para minimizar asubjectividade deste conceito, este instrumento inclui no cabeçalho uma definição deste tipo derelacionamento: “relação de curta duração que, embora implique um envolvimento físico e/ousexual, não envolve um comprometimento emocional entre os dois parceiros, nem assume quehaverá continuidade da relação. Na gíria dos jovens é denominada por amizade colorida/casoamoroso/curtir/ flirt”. De modo a contemplar os três tipos de violência (física, emocional e sexual),este questionário inclui vinte e uma questões sobre diversos comportamentos violentospotencialmente ocorridos numa relação afectiva ocasional ao longo da vida dos sujeitos. Em cadaitem, o participante responde em termos de perpetração e/ou vitimação. Assim, tem a possibilidadede responder: “Nunca fiz a um parceiro(a) ocasional” ou “Já fiz a um parceiro(a) ocasional” (paraa vitimação “Um meu parceiro(a) ocasional nunca me fez” ou “Um meu parceiro(a) ocasional jáme fez”), especificando, no caso de resposta afirmativa, a frequência com que estescomportamentos ocorreram (“Uma única vez” ou “Mais do que uma vez”).

RESULTADOS

Todas as análises foram realizadas usando o SPSS para o Windows (versão 16). No tratamentoestatístico dos dados recorreu-se à estatística descritiva e aos testes de associação e diferenças.Apesar de as variáveis referentes aos valores totais e parciais de vitimação e perpetração seremintervalares, não foi cumprido o critério da normalidade, implicando que a análise estatística destesdados fosse realizada, quando necessário, através de testes não paramétricos.

Caracterização da sub-amostra com envolvimentos afectivos ocasionais

Da amostra total de 600 sujeitos, 442 indivíduos, ou seja, 72.3% da amostra, relataram já terestado envolvidos em relações afectivas ocasionais. Apenas estes sujeitos foram consideradospara as análises estatísticas que apresentaremos de seguida. Sendo assim, torna-se pertinentecaracterizar esta sub-amostra (cf. Tabela 1).

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TABELA 1

Caracterização sociodemográfica da amostra geral e da sub-amostraSub-amostra daqueles

que já tiveram umaAmostra geral relação ocasional

N=600 N=442

N % N %

Sexo Masculino 286 47.7 228 51.6Feminino 311 51.8 212 48

Nível socioeconómico Alto 12 2 7 1.6Médio alto 73 12.2 65 14.7Médio 338 56.3 246 55.7Médio baixo 127 21.2 93 21Baixo 45 7.5 27 6.1

Tipo de ensino Secundário 292 48.6 234 52.9Universitário 301 50.1 204 46.2

Relação afectiva ocasional Sim 434 72.3 434 98.2Não 158 26.3

Situação amorosa actual Sem relação 301 50.2 218 49.3Relação afectiva ocasional 55 9.2 53 12Namoro 221 36.8 155 35.1Coabitação 8 1.3 7 1.6Casamento 12 2 7 1.6

Os participantes do estudo tinham idades compreendidas entre os 14 e 39 anos, sendo a médiade idades de 18.6 anos (DP=3.06). A sua formação académica ia desde o 10º ano até à frequênciade Mestrado, situando-se a média nos 12.4 anos escolares.

Os participantes da amostra admitiram já se ter envolvido entre 1 a 9 relações afectivasocasionais, apresentando uma média de 2.9 relações por sujeito. As relações ocasionais tendem adurar cerca de um mês (13.3%) ou mesmo períodos inferiores, até uma semana (7.7%). 6.8% dosparticipantes relataram que a relação se manteve durante 6 meses, enquanto outros 5.7% seenvolveram durante apenas um dia. Somente uma pequena percentagem (1.1%) de sujeitos referiuter mantido esse relacionamento durante mais de 6 meses. Salienta-se, no entanto, que apesar dealgumas destas relações envolverem alguma extensão temporal, continuam a ser percebidas pelosparticipantes como tendo uma natureza ocasional, isto é, sem compromisso e vivida (mesmoquando dura algum tempo) de forma intermitente.

Um número significativo de participantes que se envolveu numa relação ocasional relatou quesentia atracção pelo parceiro(a) (18.8%), seguindo-se a paixão (7.2%) e o amor (6.3%). Apenas2% dos indivíduos admitiram não nutrir qualquer sentimento pelo parceiro, enquanto 1.4%relataram sentimentos de amizade.

Prevalência da violência nas relações afectivas ocasionais

Os dados resultantes do IVC-4 (Antunes & Machado, 2007) revelam que 43.2% dos sujeitosrelataram ter cometido pelo menos um acto violento numa relação afectiva ocasional ao longo dasua vida. Por sua vez, 37.3% dos indivíduos referiram ter sido vítimas de pelo menos um actoabusivo durante uma relação afectiva ocasional ocorrida em dada altura das suas vidas.

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TABELA 2

Prevalência dos vários tipos de violência nas relações ocasionaisViolência n Frequência %

Perpetração Global 412 191 43.2Física 413 133 30.1Emocional 417 121 27.4Sexual 412 055 12.4

Vitimação Global 352 165 37.3Física 339 090 20.4Emocional 349 102 23.1Sexual 349 073 16.5

Prevalência da perpetração de violênciaA violência física no contexto de uma relação ocasional foi relatada por 30.1% dos indivíduos.

Por sua vez, 27.4% dos sujeitos da amostra revelou ter já perpetrado ao longo da sua vida pelomenos um acto emocionalmente violento em relação a um parceiro ocasional. No que concerne àviolência sexual, 12.4% dos estudantes indicaram ter violentado sexualmente um seu parceiroocasional. A tabela 3 apresenta uma descrição detalhada dos diferentes comportamentos violentosperpetrados pelos sujeitos da amostra e respectiva percentagem.

TABELA 3

Descrição dos actos de violência perpetradosJá fiz a um Já fiz a um

Nunca fiz a um parceiro ocasional, parceiro ocasional,parceiro ocasional uma única vez mais do que uma vez

Perpetração N % N % N %Violência físicaPuxar cabelos com força 384 86.9 23 5.2 22 5Dar uma bofetada 362 81.9 50 11.3 20 4.5Apertar o pescoço 413 93.4 12 2.7 8 1.8Ameaçar com armas 416 94.1 9 2 1 .2Dar um murro 404 91.4 17 3.8 7 1.6Atirar com objectos 385 87.1 30 6.8 13 2.9Dar uma sova 411 93 13 2.9 7 1.6Dar pontapés ou cabeçadas 404 91.4 15 3.4 11 2.5Dar empurrões violentos 394 89.1 18 4.1 9 2Bater com a cabeça contra a parede 405 91.6 13 2.9 2 .5Causar ferimentos que não precisaram de assistência médica 401 90.7 8 1.8 9 2Causar ferimentos que precisaram de assistência médica 410 92.8 6 1.4 1 .2Violência emocionalGritar ou ameaçar, para meter medo 386 87.3 25 5.7 12 2.7Insultar, difamar e humilhar 347 78.5 50 11.3 29 6.6Perseguir a outra pessoa 375 84.8 35 7.9 21 4.8Violência sexualForçar a realizar o acto sexual sem preservativo 407 92.1 8 1.8 6 1.4Fazer com que o outro consuma substâncias para obter actos sexuais 415 93.9 10 2.3 5 1.1Forçar beijos, carícias ou toques íntimos 389 88 22 5 11 2.5Forçar a prática de actos sexuais indesejados 412 93.2 9 2 3 .7Forçar a outra pessoa a manter relações sexuais contra a sua vontade 417 94.3 7 1.6Outros actos 175 39.6 3 .7

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A tabela demonstra que os actos mais frequentes são insultar, difamar e humilhar (17.9%), daruma bofetada (15.8%), perseguir a outra pessoa (12.7%), puxar os cabelos com força (10.2%),atirar com objectos (9.7%) e gritar ou ameaçar para meter medo (8.4%).

Prevalência da vitimaçãoContrariamente ao que ocorre quanto à perpetração, a vitimação emocional surge como o tipo

de violência mais sofrido nas relações ocasionais, já que 23.1% dos sujeitos relatou ter sido vítimade pelo menos um acto desta natureza ao longo das relações ocasionais em que esteve envolvido.Por sua vez, 20.4% dos indivíduos relataram ter sido vítimas de pelo menos um comportamentofisicamente violento por parte de um parceiro ocasional. A vitimação sexual foi revelada por 16.5%dos estudantes. A tabela 4 apresenta, de forma mais detalhada, os diferentes tipos de violênciarecebida e a percentagem de sujeitos que os sofreu.

TABELA 4

Descrição dos actos de violência sofridosUm parceiro Um parceiro Um parceiro

ocasional ocasional já me fez, ocasional já me fez,nunca me fez uma única vez mais do que uma vez

Vitimação N % N % N %Violência físicaPuxar cabelos com força 320 72.4 18 4.1 20 4.5Dar uma bofetada 323 73.1 22 5 14 3.2Apertar o pescoço 337 76.2 12 2.7 9 2Ameaçar com armas 353 79.9 9 2 3 .7Dar um murro 345 78.1 12 2.7 7 1.6Atirar com objectos 332 75.1 20 4.5 8 1.8Dar uma sova 351 79.4 6 1.4 4 .9Dar pontapés ou cabeçadas 343 77.6 9 2 10 2.3Dar empurrões violentos 332 75.1 12 2.7 9 2Bater com a cabeça contra a parede 341 77.1 10 2.3 2 .5Causar ferimentos que não precisaram de assistência médica 337 76.2 4 .9 7 1.6Causar ferimentos que precisaram de assistência médica 345 78.1 4 .9 1 .2Violência emocionalInsultar, difamar e humilhar 294 66.5 36 8.1 27 6.1Perseguir a outra pessoa 323 73.1 14 3.2 20 4.5Gritar ou ameaçar, para meter medo 322 72.9 24 5.4 10 2.3Violência sexualForçar a realizar o acto sexual sem preservativo 339 76.7 7 1.6 4 .9Forçar a outra pessoa a manter relações sexuais contra a sua vontade 340 76.9 12 2.7 3 .7Fazer com que o outro consuma substâncias para conseguir actos sexuais 346 78.3 6 1.4 10 2.3Forçar beijos, carícias ou toques íntimos 310 70.1 33 7.5 13 2.9Forçar a prática de actos sexuais indesejados 339 76.7 10 2.3 4 .9Outros actos 142 32.1 2 .5

Através da tabela, podemos constatar que entre os actos mais frequentemente relatados destaca--se o ter sido insultado, difamado e humilhado (14.2%). De seguida, os actos: forçar beijos, caríciase toques íntimos (10.4%), puxar os cabelos com força (8.6%), dar uma bofetada (8.2%) e gritarou ameaçar para meter medo (7.7%) foram os mais relatados pelas vítimas.

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Associação entre diferentes formas de violência

Associação entre as várias formas de perpetração de violênciaExiste uma associação estatisticamente significativa entre as várias formas de violência

praticadas pelos participantes. Esta associação verifica-se entre a perpetração física e a perpetraçãoemocional [χ2(1)=72.093; p<.001], constatando-se que 31.5% dos sujeitos relata ter perpetradosimultaneamente comportamentos física e emocionalmente violentos. Quando a violência físicafoi associada com a violência sexual, encontra-se também uma associação estatisticamentesignificativa [χ2(1)=34.577; p<.001], verificando-se que 12.8% da população adoptou actos físicose sexualmente abusivos contra um parceiro ocasional. Ocorre também uma associaçãoestatisticamente significativa entre a perpetração emocional e a perpetração sexual [χ2(1)=44.694;p<.001], sendo que 13.1% dos indivíduos relataram ter perpetrado ambos tipos de violência nocontexto de uma relação afectiva ocasional.

Associação entre as várias formas de vitimaçãoExiste, igualmente, uma associação estatisticamente significativa entre as várias formas de

vitimação. Não só se encontra uma associação significativa entre a vitimação física e a vitimaçãoemocional [χ2(1)=67.958; p<.001], como também entre a vitimação física e a vitimação sexual[χ2(1)=33.788; p<.001]. Deste modo, 27.6% da população da amostra referiu ter sido vítima tantode violência física, como emocional por um parceiro ocasional, enquanto 19.8% relatou ter sofridotanto violência física, como sexual num relacionamento íntimo. Por último, regista-se, igualmente,uma associação significativa entre a violência emocional e a violência sexual [χ2(1)=55.146;p<.001], verificando-se que 19% dos indivíduos relatou ter sofrido ambos tipos de violência numarelação ocasional.

Associação entre a perpetração e a vitimação das várias formas de violênciaQuando associada a perpetração global com a vitimação global, encontra-se uma forte

associação entre ambas as variáveis [χ2(1)=1.635; p<.001], verificando-se que 45.9% dos sujeitosda amostra referiu ter experienciado ambas as situações num relacionamento ocasional.

Numa análise mais detalhada, verifica-se uma associação estatisticamente significativa entre aperpetração e a vitimação física [χ2(1)=1.239; p<.001], observando-se, igualmente, uma associaçãoestatisticamente significativa entre a perpetração e a vitimação emocional [χ2(1)=1.673; p<.001].Deste modo, 29.1% dos sujeitos revelou envolvimento na violência física, quer enquanto vítima,quer enquanto ofensor; por outro lado, 28.3% dos participantes reportaram tanto ter cometido,como ter sofrido violência emocional numa relação ocasional. Por fim, verifica-se uma associaçãoestatisticamente significativa entre a perpetração e vitimação sexual [χ2(1)=1.153; p<.001], tendo19.4% da amostra relatado ter cometido mas também sofrido este tipo de abuso.

Diferenças nos comportamentos violentos em função de variáveis socio-demográficas

Género Não foram encontradas associações significativas entre género e perpetração [χ2(1)=2.653; n.s.]

ou vitimação geral [χ2(1)=3.616; n.s.]. Porém, na análise específica dos vários tipos de violência,encontraram-se associações significativas entre o género e a vitimação física [χ2(1)=16.621;p<.001], perpetração emocional [χ2(1)=4.036; p<.05] e a perpetração sexual [χ2(1)=13.001;p<.001]. Os rapazes tendem a relatar mais frequentemente vitimação física (66.3%), perpetraçãoemocional (58.3%) e perpetração sexual (74.1%), comparativamente com as raparigas. Emoposição, não encontramos associação entre género e perpetração de violência física [χ2(1)=.457;

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n.s.], nem entre género e vitimação emocional [χ2(1)=2.167; n.s.] ou vitimação sexual [χ2(1)=.066;n.s.].

IdadeQuando comparamos perpetradores e não perpetradores, encontram-se diferenças etárias

significativas (Z=-2.898; p<.01), o mesmo sucedendo ao nível da vitimação (Z=-2.580; p<.05),sendo que tanto ofensores como vítimas se inserem em grupos etários mais novos. Numa análisemais pormenorizada, encontram-se diferenças etárias ao nível da vitimação física (Z=-2.315;p<.05) e também da perpetração física (Z=-4.215; p<.001): quanto mais novos são os sujeitos,maior tendência apresentam para perpetrar e ser vítimas de actos fisicamente violentos. Contudo,não há diferenças etárias ao nível da perpetração (Z=-1.095; n.s.) e vitimação (Z=-1.126; n.s.)emocional, nem no que concerne à perpetração (Z=-.016; n.s.) e vitimação sexual (Z=-1.352; n.s.).

Ano escolarQuando comparamos perpetradores com não perpetradores, verificamos que os perpetradores

tendem a frequentar anos escolares inferiores (Z=-5.580; p<.001), o mesmo sucedendo ao nívelda vitimação (Z=-4.216; p<.001). Quando analisada especificamente a violência física, constatam-se diferenças no mesmo sentido, com os perpetradores da violência a integrarem anos escolaresinferiores (Z=-6.782; p<.001). No mesmo sentido, as vítimas de violência física (Z=-3.790;p<.001), também prevalecem entre os alunos menos escolarizados. No que se refere à violênciaemocional, verificam-se diferenças significativas no mesmo sentido, ao nível da perpetração (Z=-3.767; p<.001) e vitimação (Z=-2.838; p<.01). Finalmente, embora não existam diferenças de anoescolar entre perpetradores e não perpetradores de violência sexual (Z=-1.543; n.s.), essasdiferenças estão presentes ao nível da vitimação (Z=-2.310; p<.05), também no sentido já descrito.

Nível de ensinoExistem associações significativas entre nível de ensino e vitimação [χ2(1)=18.310; p<.001],

assim como perpetração de violência [χ2(1)=26.118; p<.001]. Os estudantes do ensino secundárioexperienciam (62%), bem como utilizam (66.5%), mais comportamentos violentos,comparativamente com os estudantes do ensino universitário. Especificamente, encontram-se estasassociações ao nível da perpetração [χ2(1)=36.733; p<.001] e da vitimação física [χ2(1)=16.637;p<.001], sendo a violência física mais comummente relatada pelos jovens do ensino secundário(74.6% – perpetração / 67% – vitimação), comparativamente com os do ensino universitário(25.4% – perpetração / 33% – vitimação). De igual modo, os estudantes do ensino secundárioprevalecem no relato da perpetração da violência emocional [χ2(1)=13.081; p<.001] – 65.8% –,assim como da vitimação emocional [χ2(1)=8.188; p<.01] – 60.4%. Não encontrámos, contudo,associações entre nível de ensino e violência sexual, nem termos da perpetração [χ2(1)=3.401;n.s.] nem de vitimação [χ2(1)=3.078; n.s.].

Nível socioeconómicoNão se verificam diferenças significativas quanto ao estatuto socioeconómico, ao nível da

perpetração (Z=-.083; n.s.) e da vitimação (Z=-1.333; n.s.) global. Numa análise mais específica,verifica-se que os ofensores (Z=-.368; n.s.) e vítimas (Z=-.082; n.s.) não se diferenciam, ao nívelda condição socioeconómica, dos sujeitos que relataram nunca ter recorrido, nem sofrido violênciafísica no contexto de uma relação ocasional. O mesmo sucede quando considerada a violênciaemocional, ao nível da perpetração (Z=-.416; n.s.) e da vitimação (Z=-1.292; n.s.). Por fim, quandoanalisada a violência sexual, também não há diferenças socioeconómicas entre perpetradores enão perpetradores (Z=-.364; n.s.), nem entre vítimas e não vítimas (Z=-.684; n.s.).

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Diferenças nos comportamentos violentos em função de variáveis relacionais

Duração da relaçãoQuando comparamos a duração da relação amorosa relatada por perpetradores e não

perpetradores não se encontram diferenças estatisticamente significativas (Z=.875; n.s.). O mesmosucede em termos da vitimação (Z=-.870; n.s.). Numa análise mais detalhada das diversas formasde violência, obtiveram-se resultados semelhantes. Não há diferenças significativas na duraçãodas relações em que é relatada perpetração física, quando comparadas com aquelas onde tal nãoé reportado (Z=-.356; n.s.), o mesmo acontecendo ao nível da vitimação física (Z=-1.227; n.s.),da perpetração emocional (Z=-.252; n.s.), da vitimação emocional (Z=-.339; n.s.), da perpetraçãosexual (Z=-1.473; n.s.) e da vitimação sexual (Z=-.928; n.s.).

Número de relações afectivas ocasionais Perpetradores e não perpetradores apresentam diferenças muito significativas ao nível da

quantidade de relações afectivas ocasionais em que se envolveram (Z=-3.909; p<.001), o mesmoacontecendo ao nível da vitimação (Z=-2.674; p<.01), sendo este número de envolvimentossuperior tanto nos ofensores como nas vítimas. O número de relações mantidas diferencia tambémvítimas físicas de não vítimas físicas (Z=-2.254; p<.05), o mesmo sucedendo ao nível daperpetração física (Z=-3.402; p<.01). Registam-se também diferenças significativas na quantidadede relações ocasionais mantidas por ofensores emocionais quando comparados com não ofensores(Z=-3.657; p<.001) e por vítimas comparadas com não vítimas emocionais (Z=-2.907; p<.01). Asdiferenças ocorrem no mesmo sentido, quando analisada a violência sexual, quer ao nível daperpetração (Z=-2.101; p<.05) quer da vitimação (Z=-2.136; p<.05).

Envolvimento emocional na relaçãoFinalmente, analisamos a associação entre perpetração/vitimação e o sentimento descrito pelos

jovens em relação ao seu parceiro ocasional (amor vs. atracção). Não encontrámos associaçõesentre esta variável e a perpetração [χ2(1)=.800; n.s.], nem entre aquela e a vitimação [χ2(1)=.008;n.s.]. Não há também associações entre o nível de envolvimento emocional e a perpetração física[χ2(1)=1.013; n.s.], embora a vitimação física surja associada ao envolvimento emocional narelação [χ2(1)=4.606; p<.05]. Assim, 70% das vítimas afirmaram ter sentido paixão pelocompanheiro, enquanto 30% apontaram o amor como o sentimento dominante na relação. Por suavez, não se encontram associações significativas entre envolvimento emocional e perpetração deabuso emocional [χ2(1)=2.030; n.s.] ou vitimação emocional [χ2(1)=.852; n.s.]. O mesmo sucedequando analisada a violência sexual, ao nível da perpetração [χ2(1)=1.817; n.s.] e da vitimação[χ2(1)=.207; n.s.].

DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

Este estudo permite, antes de mais, salientar o quão frequentes são as relações afectivasocasionais entre os jovens, já que 72.3% dos participantes da amostra relatou já se ter envolvidoneste tipo de relacionamentos. Estes dados replicam os do estudo de Manning, Giordano eLongmore (2006), que referem que mais de metade dos jovens (64%) já se envolveu numa relaçãoafectiva ocasional.

Em segundo lugar, os nossos resultados alertam para a relevância do problema da violêncianas relações de intimidade juvenil. Os índices significativos de violência encontrados neste estudo,quer ao nível da perpetração (43.2% dos estudantes perpetrou pelo menos um acto abusivo contra

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um parceiro(a) ocasional, 30.1% de natureza física), quer ao nível da vitimação (37.3% foramalvo de violência, 20.4% de agressão física) corroboram os dados de outros estudos nacionais deprevalência (e.g., Machado, Caridade, & Martins, 2009), ainda que tais estudos se remetam àanálise das relações de intimidade juvenil em geral e não existam outros estudos específicos sobreas relações ocasionais. Salientamos, no entanto, que os níveis de violência por nós encontradosnas relações ocasionais excedem bastante os identificados neste outro estudo de alcance mais geral(30.6% de perpetração, 18.1% de natureza física e 25.4% de vitimação, 13.4% de natureza física).Estes dados são, a nosso ver, bastante preocupantes e indiciam a necessidade de estudar melhor ofenómeno da violência no contexto das relações ocasionais, bem como os factores específicos quepotenciam a mesma nestes contextos (e.g., falta de envolvimento afectivo, ausência de expectativasde continuidade da relação, discrepâncias entre o nível de envolvimento e expectativas dosparceiros, comunicação pobre).

Por outro lado, ainda que seja o tipo de violência menos prevalente nas relações ocasionais, aviolência sexual nestes envolvimentos atinge também níveis elevados (perpetração – 12.4%;vitimação – 16.5%), bastante superiores aos encontrados num estudo exploratório sobre a violênciasexual em jovens universitários que abrangia diferentes tipos de relacionamentos (Martins &Machado, no prelo – 11% de vitimação e 3.9% de perpetração). A literatura corrobora que estetipo de violência tende a ocorrer em relações afectivas ocasionais (Flack, Daubman, Caron,Asadorian, D’Aureli, Gigliotti, Hall, Kiser, et al., 2007; Muehlenhard & Linton, 1987), uma vezque a própria falta de conhecimento e envolvimento dos parceiros dificulta a sua comunicaçãosobre os limites do envolvimento físico e sexual mutuamente desejados e potencia erros deinterpretação sobre as intenções do outro.

Em síntese, quer quanto aos níveis de agressão, quer quanto aos seus tipos, os dados sobre aviolência nos relacionamentos ocasionais reforçam a preocupação que deve existir com a questãoda violência na intimidade juvenil e sugerem que as relações ocasionais poderão conter factoresque contribuem para um risco acrescido da mesma.

Por outro lado, à semelhança do verificado no namoro, em Portugal e em vários estudos interna -cionais (e.g., Gidycz, Warkentin, & Orchowski, 2007; Lavoie, Hébert, Tremblay, Vitaro, Vézina,& McDuff, 2002), as diferentes formas de violência tendem a estar relacionadas entre si, assimcomo tendem a estar associados os estatutos de perpetrador e vítima. Esta associação parece sugerir(ainda que não permita comprovar) um padrão de bi-direccionalidade na agressão, em que o mesmoindivíduo simultaneamente agride e é agredido. Também num estudo levado a cabo por Gray eFoshee (1997, citados por Cyr, McDuff, & Wright, 2006) os índices de violência mútua se situavamentre os 45% e os 72%, conferindo credibilidade à hipótese de a violência ser bidireccional (Harned,2002). Sendo assim, os dados encontrados no presente estudo permitem estabelecer uma analogiacom um dos padrões de violência descritos por Johnson e Ferraro (2000), mais concretamente otipo common couple violence. Porém, torna-se necessário ressalvar que não é possível certificaresta correspondência, já que não se consegue discriminar, no nosso estudo, a pessoa que reage emauto-defesa daquela que iniciou a violência, tendo sido ambas codificadas como agressoras.

No que concerne ao impacto das diferentes variáveis sociodemográficas consideradas, o géneroparece ter influência na violência física, emocional e sexual, com os rapazes a relatarem mais seralvo de vitimação física, ao mesmo tempo que relatam mais perpetração de violência emocional esexual. Estes dados sugerem, assim, um padrão de maior ambiguidade do que os dos estudos levadosa cabo por Paiva e Figueiredo (2005) e Machado, Caridade e Martins (2009) que associavamclaramente níveis superiores de perpetração às raparigas. No que concerne, contudo, especificamenteà violência sexual, os dados do nosso estudo são congruentes com a investigação empíricainternacional (e.g., O’Sullivan, Byers, & Finkelman, 1998) e nacional (Martins & Machado, noprelo; Paiva & Figueiredo, 2005), que atribui maior perpetração sexual aos rapazes. Alguns autores(Flack et al., 2007; Muehlenhard & Linton, 1987) afirmam, aliás, que este tipo de violência tende a

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ser frequente nas relações ocasionais precisamente devido a disparidades de género existentes nestesrelacionamentos, que surgem, desde logo, quanto ao nível de intimidade física desejado (Flack etal., 2007), usualmente maior pelos rapazes. Subjacente a este facto estarão as diferenças desocialização entre rapazes e raparigas em matéria de sexualidade, nomeadamente o duplo padrãosexual e o facto de, apesar de se envolverem em relações ocasionais, este tipo de relação ser menosbem vista e aceite entre as raparigas (Daubman & Schatten, 2005, citados por ibidem).

Tal como constataram Stets e Pirog-Good (2002, citados por Cyr, McDuff, & Wright, 2006) –mas ao contrário do que encontraram Machado, Caridade e Martins (2009) – a idade, ano escolare grau de formação encontram-se negativamente associadas à vitimação e perpetração de violência.Do nosso ponto de vista, tal poderá acontecer porque os adolescentes evidenciam uma menormaturação relacional e, consequentemente, uma menor capacidade de negociação de conflitos eresolução de problemas, o que favorece a violência.

No que concerne à influência do nível socioeconómico, os resultados por nós encontradosreproduzem os de alguns estudos nacionais (Machado, Caridade, & Martins, 2009) e internacionais(e.g., Cyr, McDuff, & Wright, 2006; Flisher, Myer, Mèrais, Lombard & Reddy, 2007; O’Keefe,1997), no sentido da falta de impacto desta variável, pelo menos no que diz respeito às relaçõesjuvenis (já que no contexto conjugal vários estudos – e.g., Machado, Gonçalves, Matos, & Dias,2007 – indicam a maior prevalência da violência nos sectores sociais mais desfavorecidos).

Quando passamos destas variáveis sociodemográficas para a análise de factores maisespecificamente relacionais, não verificamos impacto significativo da duração da relação quantoà ocorrência de violência. Embora esta associação tenha sido encontrada noutras investigações(e.g., Gagné, Lavoie, & Hébert, 2005; Harned, 2002; Marcus & Swett, 2002), salientamos anatureza específica das ligações afectivas estudadas neste trabalho, na sua maioria de muito curtaduração quando comparadas com as relações de namoro analisadas naqueles estudos.

Não encontrámos também um impacto significativo do sentimento relatado face ao parceiroocasional, excepto para a paixão associada à vitimação física. Este é um resultado que merecemais exploração, na medida em que existem autores (Neufeld, McNamara, & Ertl, 1999) que,num estudo sobre a violência no namoro, concluíram que o comprometimento emocionalcontribuía para o aumento de violência. No entanto, mais uma vez, a especificidade destas relaçõespode explicar estes resultados, já que – independentemente do sentimento verbalizado aquandodo inquérito – o grau de compromisso e envolvimento dos participantes é, em princípio, menordo que o presente nas relações de namoro. Daí, eventualmente, o seu menor impacto em termosde violência.

Finalmente, os nossos dados corroboram os estudos que afirmam que a conduta violenta nasrelações de intimidade tende a aumentar conforme o número de relacionamentos mantidos (cf.Cyr, McDuff, & Wright, 2006; Neufeld, McNamara, & Ertl, 1999; O’Keefe, 1997). Uma hipóteseexplicativa para este dado poderá ser o facto de o envolvimento mais frequente em relaçõesocasionais poder levar o sujeito a desvalorizá-las no plano emocional, percepcionando-as comoligações puramente físicas e sexuais, sendo que este desinvestimento emocional pode facilitar oenvolvimento em comportamentos violentos. No entanto, O’Keefe (1997) aconselha prudênciana interpretação destes dados, uma vez que este resultado pode decorrer simplesmente dasoportunidades para a violência, ou seja, quanto mais parceiros teve um indivíduo, maisprobabilidades teve de enfrentar conflitos nessas relações e mais oportunidades teve para perpetrarou sofrer violência.

O presente estudo apresenta várias limitações, entre as quais se destacam as questõesmetodológicas. Em primeiro lugar, esta foi uma amostra de conveniência, limitada a umaUniversidade e duas escolas secundárias, de uma região específica do país. O alargamento destaamostra é, pois, fundamental, se pretendermos confirmar os resultados e algumas hipótesesexplicativas dos mesmos aqui avançadas.

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Paralelamente, este estudo enfrenta as limitações típicas das investigações feitas através deinstrumentos de auto-relato, muito particularmente a impossibilidade de recolher informaçõesmais detalhadas sobre o incidente (e.g., quem iniciou a interacção abusiva, grau de força aplicada,danos causados, intencionalidade). Este instrumento não permitia, também, discriminar em quantasrelações ocasionais ocorreu o comportamento abusivo.

Finalmente, o facto de a recolha dos dados ter sido efectuada, maioritariamente, em contextosque reuniam vários jovens apresenta aspectos potencialmente negativos: a veracidade do seu relatopode ter ficado comprometida quando o jovem se encontrava acompanhado, apesar dos esforçosdesenvolvidos para minimizar este efeito.

CONCLUSÃO

No cômputo geral, este estudo demonstra que o fenómeno da violência nas relações íntimasjuvenis se alarga a outros relacionamentos, que não apenas o contexto do namoro. Segundo algunsautores, as relações afectivas ocasionais estão, de certo modo, a substituir essas relações íntimastradicionais (Manning, Giordano, & Logmore, 2006), o que parece, em certa medida, ser sugeridopelo nosso estudo, já que a maioria dos jovens está envolvido ou já se envolveu numrelacionamento ocasional (72.3%). Dada a frequência destes relacionamentos, torna-sefundamental estudar a prevalência da violência nesta nova realidade relacional, algo, contudo,que ainda foi muito pouco explorado pela investigação na área.

Este estudo sugere, ainda, que as relações ocasionais podem ser contextos de particular riscopara a violência, se aceitarmos que os níveis de prevalência encontrados são superiores aosverificados nas relações de namoro. Quais são as especificidades das relações ocasionais quecontribuem para essa vulnerabilidade? O que se modifica nos processos de transição entre asrelações ocasionais e o namoro? Serão os programas de prevenção da violência concebidos nocontexto das relações de namoro também eficazes para diminuir a agressão nestes contextosrelacionais mais fluidos e instáveis?

Uma vez que as relações afectivas ocasionais constituem uma área de investigação recente nacomunidade científica, é pertinente avançar com propostas de investigação que esclareçam estase outras questões. Do nosso ponto de vista, os resultados encontrados neste estudo exploratóriosugerem que este fenómeno deve continuar a ser estudado, em duas vertentes: por um lado, surgea necessidade de avaliar a prevalência da violência nas relações ocasionais através de estudosrepresentativos alargados ao contexto nacional; por outro, torna-se necessário compreender afenomenologia da violência nestas novas formas de intimidade juvenil. Ou seja, seria relevanteconhecer os significados atribuídos pelos jovens às relações ocasionais e à violência que nelasocorre, conhecer os contextos em que estas relações predominam e perceber as dinâmicasrelacionais que as caracterizam e que facilitam a violência.

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This paper presents the results of a research project on the prevalence of violence in the casual intimateinvolvements of a sample of 600 university and college students. 72.3% of the participants reportedto have been involved in such relationships. They answered a violence inventory (IVC-4, Antunes &Machado, 2007), and 43.2% of them admitted to have perpetrated at least one abusive act towards acasual partner along their lives (30.1% report acts of physical violence) and 37.3% admit to have beenvictimized by a casual partner (20.4% describe acts of physical violence). Violence is more commonamong younger subjects, those that attend to lower educational levels and students from secondaryschools. It is also more common among participants that have had a higher number of casualrelationships. These results corroborate the notion that violence in juvenile intimate relationships is aserious social problem. They also suggest, because the levels of violence found are quite higher thanthose reported for juvenile dating relationships (Machado, Caridade, & Martins, 2009), that casualintimate involvements may imply specific dynamics that enhance the risk of violence and that shouldbe addressed by future studies.

Key-words: Causal dates, Intimacy, Students, Violence.

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Análise Psicológica (2012), XXX (1-2): 109-130

Violência nas relações de namoro entre adolescentes: Avaliação do impacto de

um programa de sensibilização e informação em contexto escolar

Rosa Saavedra* / Carla Machado**

*Associação Portuguesa de Apoio à Vítima; **Escola de Psicologia, Universidade do Minho

Este estudo pretende avaliar o impacto de uma acção de sensibilização e informação sobre violêncianos relacionamentos de namoro, implementada em contexto escolar, e perceber o papel do género noimpacto da intervenção. Esta foi uma acção composta por três sessões de 90 minutos, cada uma,conduzidas junto de 578 alunos de 15 escolas do norte de Portugal.Todos os alunos preencheram, antes e após a intervenção, questionários de auto-relato acerca das suasatitudes sobre a violência física, psicológica e sexual nos relacionamentos de namoro e acerca dasestratégias de resolução de conflitos por si utilizadas nestes relacionamentos.Os resultados revelaram a eficácia da intervenção ao nível da diminuição das atitudes de legitimaçãoda violência nos relacionamentos, mas não foi possível identificar um impacto significativo da acçãonas estratégias de resolução de conflitos utilizadas pelos participantes. Estes dados podem estarassociados ao facto de o programa ter uma duração breve e uma orientação mais informativa do quecomportamental.A questão do impacto diferencial deste tipo de programas em função do género não apresentou nesteestudo resultados conclusivos.

Palavras-chave: Avaliação do impacto, Prevenção, Violência no namoro.

INTRODUÇÃO

Nas últimas três décadas, as estratégias de prevenção dirigidas à violência nos relacionamentosíntimos (referenciada na literatura como partner violence ou intimate partner violence) adoptaramuma linha de intervenção sobretudo reactiva, numa lógica de combate contra um problemainequivocamente grave (e.g., Atkinson, Indermaur, & Blagg, 1998; Hammond, Whitaker, Lutzker,Mercy, & Chin, 2006; Matos, 2002; Schewe, 2002; Wolfe & Jaffe, 1999) mas focando-se,sobretudo, nas relações estabelecidas pela população adulta (Whitaker, Morrison, Lindquist,Hawkins, O’Neil, Nesius, Mathew, & Reese, 2006).

A violência no namoro tem visto, contudo, mais recentemente, a atenção de muitos profissionaise investigadores dirigida sobre si, não apenas pela frequência que parece assumir dentro dosrelacionamentos íntimos – alguns autores referem taxas de prevalência entre 12% e 59.1% (cf.

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Este texto foi elaborado no âmbito do Projecto “Violência nas Relações Juvenis de Intimidade” financiadopela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (PTDC/PSI/65852/2006), coordenado por Carla Machado, e oestudo aqui apresentado foi desenvolvido no âmbito da tese de doutoramento da primeira autora, também como apoio da FCT (SFRH/BD/28483/2006).

A correspondência relativa a este artigo deverá ser enviada para: Rosa Saavedra, Associação Portuguesa deApoio à Vítima, Rua Aurélio Paz dos Reis, 351, 4250-068 Porto. E-mail: [email protected]

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Jackson, Cram, & Seymour, 2000)1 – e pelo impacto que causa nas suas vítimas mas, sobretudo,por ser considerada um forte preditor da violência nas relações de conjugalidade (e.g., Wekerle &Wolfe, 1999). Um estudo efectuado por O’Leary (1989, citado por Cleveland, Herrera, & Stuewig,2003), em que este acompanhou a transição para o casamento de casais com experiências de abusofísico nas relações de namoro e verificou que cerca de metade relatavam a continuidade dessasexperiências após o casamento, parece corroborar esta ideia. Outros estudos de carácterretrospectivo com mulheres batidas na conjugalidade denunciam também experiências precocesde violência (cf. Cleveland et al., 2003).

Em Portugal, num estudo realizado junto de estudantes universitários (Machado, Matos, &Moreira, 2003), 15% dos sujeitos avaliados referiram ter sido vítimas, durante o último ano, depelo menos um acto abusivo perpetrado pelo namorado/a e 27% dos inquiridos assumiram teradoptado condutas violentas dirigidas aos seus parceiros. Apesar de os actos mais frequentementereferidos se tratarem de formas aparentemente menos graves de violência (actos como “insultar,difamar ou fazer afirmações graves para humilhar ou ferir”), comportamentos mais graves como“actos sexuais contra a vontade”, “murros”, “pontapés” ou “cabeçadas”, entre outros, tambémestavam presentes, com percentagens a variar entre os 2.1% e 0.3%. A corroborar a necessidadede focalizar a atenção na violência que tem lugar nas relações juvenis de intimidade, no maisrecente estudo realizado em Portugal no domínio da violência no namoro, com uma amostra de4667 estudantes do ensino secundário, do ensino profissional e do ensino superior, 25.4% dosjovens, entre os 13 e os 29 anos, referiram ter sido vítimas de violência na sua relação de namorodurante o último ano (Machado, Caridade, & Martins, 2009).

Outro elemento relevante abordado nestes dois estudos relaciona-se com a relação entre asatitudes de minimização ou legitimação da violência e os comportamentos de vitimação e deagressão. Crenças erradas acerca da violência parecem promover a culpabilização da vítima, adesresponsabilização do agressor e ser importantes preditores do envolvimento emrelacionamentos abusivos (ibidem).

Estes dados, associados ao facto de alguns estudos correlacionarem positivamente a duraçãoda relação com índices mais elevados de severidade e de frequência da violência (Hamberg,Holtzworth, & Monroe, 1994, citados por Caridade & Machado, 2006) impelem a que os esforçosde prevenção devam iniciar-se o mais precocemente possível.

Analisaremos de seguida o que tem caracterizado os esforços preventivos neste domínio.No final da década de 90, Wekerle e Wolfe (1999) efectuaram uma análise comparativa de seis

programas de prevenção da violência no namoro e concluíram que todos os programasapresentavam um modelo teórico subjacente, maioritariamente as perspectivas feministas2 ou a

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1 Uma das razões para as diferenças de prevalência encontradas pelos vários estudos provavelmente estaráassociada à própria definição de namoro, uma vez que este conceito poderá incluir situações tão distintascomo, por um lado, o “sair” com mais do que um parceiro ou parceira e, por outro, os compromissos íntimose sérios, em regime de exclusividade (Avery-Leaf & Cascardi, 2002). Por outro lado, os dados de prevalênciatambém oscilam em virtude do período de análise considerado em cada estudo, uma vez que este pode variar,por exemplo, entre a ocorrência de um ou mais episódios ao longo da vida e a ocorrência de um ou maisepisódios no ano anterior ao inquérito (Gover, 2004).

2 A abordagem difundida pelas teorias feministas assenta no pressuposto de que a estrutura social patriarcalestá na base da etiologia da violência exercida pelos homens sobre as mulheres, sublinhando as diferençasculturais que reforçam as desigualdades de poder e de controlo entre os dois géneros. Todavia, aplicada auma problemática como a violência no namoro, sobressaem duas limitações desta abordagem: por um lado,a ausência de uma justificação para a elevada percentagem de violência feminina nestes relacionamentos(Dutton, 1994, citado por Avery-Leaf, Cascardi, O’Leary, & Cano, 1997) e, por outro, a ausência de reflexãosobre a ocorrência de violência nos relacionamentos íntimos homossexuais.

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teoria da aprendizagem social3; a maioria dos programas focava de forma directa a problemáticada violência no namoro; dirigia-se a estudantes do ensino secundário; a intervenção era feita nocontexto escolar, na comunidade ou numa modalidade mista; a lógica de intervenção era sobretudouniversal, embora dois programas efectuassem uma intervenção selectiva, seleccionando umapopulação de risco (e.g., com história passada de violência familiar); as intervenções eramconduzidas em grupo, por um ou mais facilitadores treinados para o efeito; e a duração destasvariava entre 1 e 20 horas.

Mais recentemente, Whitaker e colaboradores (2006) efectuaram uma análise comparativa deonze programas de prevenção e reiteraram a associação da base teórica das intervenções às teoriasfeministas e à teoria de aprendizagem social, o carácter sobretudo universal dos programas, a suarealização em contexto escolar, a sua curta duração (apenas três programas apresentavam umaduração superior a 5 horas) e a condução da intervenção predominantemente pelos professores(em seis dos onze programas), depois de alguma formação para este efeito (a descrição dosprogramas é, em geral, omissa no que concerne ao detalhe dos conteúdos desta formação).

Apesar de a maioria dos programas descritos utilizar designs experimentais, segundo os autores,a sua qualidade era bastante reduzida, fundamentalmente em virtude dos curtos períodos de follow-up e da falta de instrumentos estandardizados para a população adolescente. Por outro lado, todosos programas mediram o impacto da intervenção ao nível dos conhecimentos, atitudes ou crenças,mas apenas quatro mediram o seu impacto ao nível comportamental. Esta dificuldade parece,segundo os autores, estar associada, não à falta de consciência da necessidade de o fazer, mas àdificuldade em concretizar os indicadores a utilizar para a obtenção destes dados. Algumas dasalternativas apresentadas relacionam-se com a possibilidade de aceder aos relatos do agressoratravés dos relatos da vítima. Contudo, a volatilidade dos relacionamentos de namoro poderá seruma condicionante nesta análise (Whitaker et al., 2006).

Outra crítica resultante desta revisão resulta da percepção de que, apesar de todos os programasapresentarem a teoria da aprendizagem social como base da sua intervenção, e sendo a aquisiçãode novas competências um dos seus objectivos primordiais, nenhum deles contemplava estacomponente na sua avaliação. A questão da avaliação surge, desta forma, como um problemacomum e muito significativo destes programas. De facto, de acordo com Schewe (2002), apesarde na última década muitas escolas terem dedicado algum espaço à realização de programas deprevenção em diversas áreas da violência, a preocupação com a eficácia destas mesmasintervenções só mais recentemente mereceu igual atenção. E isto porque aparentemente“documentar o sucesso da intervenção na violência é muito mais difícil do que documentar aexistência de violência” (ibidem, p. 4). Assim, apesar do investimento percebido ao nível daexecução e proliferação destas dinâmicas preventivas, a avaliação da eficácia dos resultados parececontinuar a ser o “calcanhar de Aquiles” destes esforços.

Em Portugal, com base numa recolha de programas efectuada em 2007 (Saavedra & Machado,no prelo), a amostra de programas de prevenção de que dispomos neste domínio é bastante restrita,sobretudo tendo em conta o número de entidades e serviços que se dedicam à intervenção naviolência doméstica/íntima. Num universo de oitenta e três serviços referidos no Guia de Recursosna Área da Violência Doméstica (Estrutura de Missão contra a Violência Doméstica, 2006) comosendo Estruturas de Atendimento Especializado da Rede Nacional de Atendimento para Vítimas

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3 A teoria da aprendizagem social explica a violência que tem lugar nos relacionamentos de namoro comosendo produto de uma aprendizagem que teve lugar num contexto passado, como a família, ou num contextomais actual, como a escola, grupo de pares ou relacionamento de namoro (Chung, 2005). Ainda segundo esteautor, a maior limitação desta teoria é a imagem de quase total ausência de controlo do indivíduo face àssuas opções.

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de Violência Doméstica, e contactados através de questionário, apenas foram identificadas seisiniciativas de prevenção da violência na intimidade juvenil.

Apesar desta escassez de acções, os dados obtidos a partir deste levantamento corroboramalgumas das reflexões internacionais neste domínio (e.g., esforços de curta duração, em contextoescolar, com problemas ao nível da avaliação), com a agravante de os esforços de prevenção emPortugal serem sobretudo realizados por ONG, sendo que a sua execução está, de um modo geral,dependente de financiamentos extraordinários, tornando estas iniciativas algo de pontual. Acresceque a maioria dos resultados faz parte apenas do espólio das instituições, não havendo publicaçãoou disseminação destes (Saavedra & Machado, no prelo).

Em suma, os dados disponíveis sobre a prevalência da violência nas relações juvenis deintimidade justificam a necessidade premente da sua prevenção no nosso país. Importa, porém,conhecer e avaliar de forma aprofundada os esforços nacionais e internacionais já desenvolvidosneste domínio, de forma a procurar, por um lado, preencher as lacunas e evitar a repetição de errosjá identificados e, por outro, disseminar e replicar as boas práticas. O estudo que aqui apresentamosvisa, precisamente, contribuir para a avaliação de um destes programas.

OBJECTIVOS DO ESTUDO

O Projecto IUNO II – sensibilização e informação sobre violência doméstica e sexual foipromovido pela Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) e aprovado pela Comissãopara a Cidadania e Igualdade de Género (CIG), no âmbito Programa Operacional Emprego,Formação e Desenvolvimento Social (POEFDS) – Medida 4.4. Tipologia de Intervenção 4.4.3.1Pequena Subvenção às ONG. Foi implementado em contexto escolar, entre 1 de Setembro de2005 e 31 de Dezembro de 2006.

Os objectivos gerais desta intervenção foram três: (1) criar um espaço que permitisse asensibilização e a informação acerca de questões relacionadas com a violência física, psicológicae sexual nos relacionamentos de namoro; (2) estimular os adolescentes na procura e valorizaçãodas suas competências e aptidões nos domínios pessoal e comportamental, promovendo umaatitude responsável de minimização dos fenómenos referidos; e (3) implementar e testar a eficáciade uma intervenção desta natureza ao nível das atitudes e comportamentos dos alunos.

Relativamente às expectativas face aos resultados desta intervenção, estas eram, essencialmente,as seguintes: (1) promover atitudes mais realistas e informadas do grupo-alvo em relação aofenómeno da violência do namoro, nas suas dimensões física, psicológica e sexual; (2) diminuira concordância com atitudes de legitimação da violência física, psicológica e sexual nas relaçõesde namoro; (3) aumentar a utilização de estratégias de resolução de conflitos positivas e nãoabusivas.

METODOLOGIA

Descrição da intervenção

Esta intervenção foi desenvolvida ao longo de três sessões de 90 minutos cada, realizadas comum intervalo de duas semanas. No plano teórico, adoptou uma combinação de modelos:

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a) uma abordagem educativa, que procurou contribuir para um melhor conhecimento do gruporelativamente à problemática, ao seu impacto físico, psicológico e social, aos principaisrecursos comunitários disponíveis para quebrar o ciclo de violência e à identificação decomportamentos não violentos de resolução de conflitos;

b) uma componente socio-cognitiva, que incidiu na valorização da compreensão social e culturaldo fenómeno através do desafio de atitudes de legitimação/minimização da violência nosrelacionamentos de namoro e da compreensão do impacto que as crenças acerca dos papéisde género podem desempenhar nas atitudes e comportamentos nos relacionamentos íntimos.Da teoria feminista, foram seleccionados dois conceitos explicativos da violência: a“desigualdade de poder” e “o controlo”, ainda que sem recorrermos ao conceito de violênciade género, ou seja, sem identificarmos a violência como associada a uma estrutura patriarcale sem a tipificarmos como sendo predominantemente exercida pelos homens contra asmulheres.

Os tópicos abordados nas sessões estão sumariamente descritos na Tabela 1.

TABELA 1

Descrição das sessões de sensibilização e informação realizadas no âmbito do Projecto IUNO IISessão nº 1 Sessão nº 2 Sessão nº 3

Acção de sensibilização e infor- Acção de sensibilização e Acção de sensibilização e informaçãomação sobre violência física e informação sobre violência sobre estratégias de prevenção da psicológica nas relações sexual nas relações violência nos relacionamentos de namoro de namoro de namoro

1. Relação entre violência 1. Violência sexual nas relações 1. Realização de uma actividade 1. doméstica e violência no 1. de namoro 1. prática relacionada com a 1. namoro 1. – Conceito de violência sexual 1. violência no namoro, no âmbito de

1. – Estereótipos de género 1. uma campanha de sensibilização1. – relacionados com a 1. a ser concretizada na escola.1. – violência sexual1. – Normalização da violência 1. – sexual nas relações de namoro1. – Discussão de dois casos 1. – práticos

2. Relações de namoro 2. Razões para a manutenção 1. – Relações de namoro positivas 2. numa relação violenta1. – Comportamentos prejudiciais –1. numa relação de namoro

3. Violência no namoro 3. Direitos e deveres numa relação1. – Conceito de violência 3. de namoro–3. no namoro1. – Formas de violência –3. no namoro1. – Causas da violência –3. no namoro

4. Competências de resolução 4. Procedimentos a adoptar numa 4. de conflitos 4. situação de violência no namoro

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Relativamente à duração da intervenção, experiências anteriores compostas por duas sessões4

fundamentaram a nossa convicção da necessidade de adicionar uma sessão mais prática aoprograma, em que os alunos fossem convidados a planear, apoiando-se na sistematização dosconteúdos anteriormente abordados, estratégias de prevenção passíveis de ser implementadas nasua escola (e.g., exposição de cartazes e folhetos acerca das problemáticas em análise). Apesar deo IUNO II se manter como uma intervenção de curta duração (duração total: 4.5 horas), estaestrutura em três sessões permitiu abordar com alguma especificidade os conceitos de violênciafísica, psicológica e sexual. A importância deste debate detalhado das diferentes formas deviolência foi reforçada por um estudo recente acerca das significações atribuídas pelosadolescentes à violência na intimidade, em que é percebida a sua relutância em admitir actos deviolência sexual no âmbito de relacionamentos íntimos, considerando-os como actos nãoconsentidos, mas não como actos de violência (Caridade, 2009).

Por outro lado, ainda no que à duração diz respeito, quando a intervenção tem lugar em contextoescolar, como neste exemplo, é relativamente simples obter a concordância e apoio logístico dasescolas para a realização de acções cuja duração não seja demasiado comprometedora dofuncionamento do calendário escolar e do programa curricular. Pelo contrário, uma acção de médiaou longa duração exigiria uma conquista de um espaço na escola e no programa educativo nemsempre possível de negociar.

Esta implementação foi assegurada por uma equipa multidisciplinar de três técnicos5 daAssociação Portuguesa de Apoio à Vítima, com formação nas áreas do Direito, Psicologia eCiências da Educação e com experiência e/ou formação no apoio a vítimas de crime e no trabalhode sensibilização e informação com crianças e jovens.

Procurámos facilitar o processo de transferência de informação através da utilização deestratégias de brainstorming, projecção de conteúdos em powerpoint, debate em grupo, eelaboração por parte dos alunos de materiais de informação, como folhetos ou cartazes, com vistaà prevenção do fenómeno. Com o intuito de desafiar estereótipos de género associados a estaproblemática e de desconstruir imagens de culpabilização da vítima e desresponsabilização doagressor, foram discutidos dois casos práticos.

Amostra

O Projecto IUNO II – sensibilização e informação sobre violência doméstica e sexual, foidesenvolvido ao longo de 16 meses, em quinze escolas de concelhos do norte de Portugal(Matosinhos, Santo Tirso, Vila Nova de Gaia, Vila do Conde, Paços de Ferreira, Porto, Paredes,Espinho, Santa Maria da Feira e Oliveira de Azeméis), envolvendo 578 alunos. O projectointerveio também junto dos auxiliares de acção educativa e profissionais de educação, ainda queos resultados apresentados neste texto digam respeito apenas à amostra dos alunos.

A amostra total deste estudo foi composta por um grupo experimental e um grupo de controlo. Ogrupo experimental (GE) integrou os 578 alunos já referidos, com idades compreendidas entre os14 e os 21 anos (M=16.4; SD=1.32), sendo 314 (54.3%) do sexo feminino e 264 (45.7%) do sexomasculino. Dos 578 alunos que compuseram a amostra inicial, apenas 313 completaram as três fases

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4 Referimo-nos ao Projecto IUNO – sensibilização e informação sobre violência doméstica e sexual, tambémdesenvolvido pela Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, em 2003-2005, financiado no âmbito doPOEDFS, Medida 4.4, Tipologia de Intervenção 7.3 Apoio Técnico e Financeiro às ONG (Saavedra, &Machado, 2007).

5 Ao Dr. Hugo Padilha, à Dra. Isabel Braz, e à Dra. Elisabete Hilário, o nosso agradecimento e reconhecimentopelo trabalho de qualidade realizado junto das escolas e pelos contributos inestimáveis para as estratégias deintervenção delineadas e para os resultados finais deste projecto. À Dra. Isabel Lima, o nosso obrigada peloinquestionável apoio na coordenação desta equipa.

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de avaliação (pré-teste, pós-teste e follow-up). A mortalidade de parte da amostra inicial esteveassociada a três causas: à dificuldade em emparelhar os questionários preenchidos pelos alunos(devido ao preenchimento incorrecto de vários questionários); à existência de questionários nãopreenchidos na sua totalidade e que por essa razão foram eliminados; e também porque em algumasescolas a implementação tardia e muito próxima do final do ano lectivo impediu a recolha de dadosde follow-up.

O grupo de controlo (GC) foi composto por 145 sujeitos, com idades compreendidas entre os 13e os 20 anos (M=16.6; SD=1.13), sendo 78 (53.8%) do sexo feminino e 67 (46.2%) do sexomasculino.

A diferença de idades entre o grupo experimental e o grupo de controlo não era significativa[t(718)=-0.820, p>.05], assim como também não eram significativas as diferenças verificadas navariável sexo [χ2(723)=-.013, p>.05].

Com vista a minimizar a desvantagem imposta ao grupo de controlo, em virtude da sua nãoinclusão nas dinâmicas de intervenção previstas neste projecto, após a aplicação do “pós-teste”,foi realizada junto do mesmo uma acção de sensibilização de sessão única, com duração de 90minutos, sobre a violência nas relações de namoro entre adolescentes. Face às limitações temporaisassociadas ao final de ano lectivo, não foi possível adiar a realização desta curta intervenção, oque impossibilitou a recolha de dados de follow-up que pudessem ser comparados com os valoresde follow-up do grupo experimental.

Instrumentos

A selecção dos instrumentos de avaliação utilizados teve a preocupação de escolher materiaisespecificamente concebidos para a população adolescente, nomeadamente ao nível da linguagemutilizada e das situações de conflito relacional apresentadas.

Assim, para conhecer as atitudes dos adolescentes face à utilização de violência nas relaçõesde namoro utilizámos a “Escala de atitudes acerca da violência no namoro” (EAVN), uma traduçãoe adaptação autorizada das Attitudes Toward Dating Violence Scales (Price & Byers, 1999; Price,Byers, Scars, Whelan, Saint-Pierre, & The Dating Violence Research, 2000), validada pelas autoraspara a população portuguesa (Saavedra, Machado, & Martins, no prelo). Na sua versão adaptada,tal como na original, a escala é composta por 76 itens e seis subescalas – (1) Atitudes acerca daviolência psicológica masculina, (2) Atitudes acerca da violência física masculina, (3) Atitudesacerca da violência sexual masculina, (4) Atitudes acerca da violência psicológica feminina, (5)Atitudes acerca da violência física feminina e (6) Atitudes acerca da violência sexual feminina –, cujos níveis de alpha de Cronbach variam entre 0.7 e 0.8 e que permitem avaliar as atitudesacerca da violência física, psicológica e sexual no contexto das relações de namoro, seja estaperpetrada por rapazes seja por raparigas. As três alternativas de resposta expressam o nível deconcordância ou discordância com cada um dos itens (1=discordo; 2=não concordo nem discordo;3=concordo).

Para a avaliação do impacto das sessões nos comportamentos de resolução de conflitos foiaplicado o “Inventário de conflitos nas relações de namoro entre adolescentes” (ICRNA). Esteinstrumento de auto-relato é uma tradução e adaptação autorizada do Conflict in Adolescent DatingRelationships Inventory (Wolfe, Scott, Reitzel-Jaffe, Wekerle, Grayley, & Straatman, 2001),também validado pelas autoras para a população Portuguesa (Saavedra, Machado, Martins, &Vieira, 2011). Na sua versão adaptada, tal como na original, o inventário é composto por duasdimensões: numa primeira dimensão, com 35 itens, é avaliada a utilização pelo respondente deestratégias de resolução de conflitos abusivas ou não abusivas; numa segunda dimensão, tambémcomposta por 35 itens, é avaliada a utilização de estratégias de resolução de conflitos abusivas ounão abusivas por parte do(a) namorado(a) de quem responde ao questionário. As estratégias deresolução de conflitos abusivas referem-se à utilização de alguma forma de comportamento

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violento, enquanto as estratégias positivas ou não abusivas procuram a resolução da disputa semrecurso a comportamentos agressivos ou violentos. Assim, cada parte do questionário é compostapelos mesmos dois factores, revelados através da análise factorial dos dados, a saber: (1) estratégiasde resolução de conflitos positivas ou não abusivas, e (2) estratégias de resolução de conflitosabusivas. O valor da consistência interna do inventário obtido no estudo de validação conduzidoem Portugal, avaliado pelo alpha de Cronbach, foi de 0.90, tratando-se, pois, de um instrumentocom um elevado nível de consistência interna. As alternativas de resposta indicam a frequênciado comportamento (Nunca: isto nunca aconteceu no teu relacionamento; Raramente: istoaconteceu 1-2 vezes no teu relacionamento; Às vezes: isto aconteceu 3-5 vezes no teurelacionamento; Frequentemente: isto aconteceu mais do 6 vezes no teu relacionamento).

O questionário é preenchido apenas por um indivíduo, relativamente aos seus comportamentose àqueles de que é alvo por parte do outro elemento da sua díade amorosa. Afere ainda a ocorrênciade formas específicas de abuso, como o comportamento ameaçador, o abuso físico, o abuso sexual,o abuso emocional ou verbal e o abuso relacional.

Finalmente, com vista a avaliar o nível de satisfação dos alunos relativamente à intervenção,foram aplicados no final da terceira sessão questionários de satisfação referentes aos conteúdos edinâmicas utilizadas.

Procedimentos

No grupo experimental, os questionários foram aplicados pela equipa de técnicos do projectojunto dos alunos que participaram nas acções de sensibilização e informação, em três fasesdistintas: pré-teste, pós-teste e follow-up. Os procedimentos de administração foram uniformizadose treinados. Os sujeitos foram informados acerca do carácter voluntário do preenchimento dosquestionários, bem como sobre o facto de os dados recolhidos serem absolutamente confidenciais.Reforçou-se a não existência de respostas certas ou erradas, salientando-se a importância daopinião pessoal relativamente às afirmações apresentadas.

O pré-teste foi aplicado cerca de duas semanas antes da realização das acções, o pós-teste nofinal da terceira sessão e o follow-up entre três a quatro meses após a finalização da intervenção.

No grupo de controlo, os questionários foram aplicados apenas nos momentos pré-teste e pós-teste, em virtude das dificuldades já elencadas para a condução do follow-up, mas com umintervalo de tempo equivalente ao do grupo experimental.

RESULTADOS

Apresentaremos de seguida os resultados referentes ao impacto da intervenção nas atitudes delegitimação da violência nas relações de namoro e nas estratégias de resolução de conflitos nosrelacionamentos amorosos. Começaremos por analisar os resultados referentes às atitudes,primeiro comparando os diferentes momentos da intervenção e depois analisando estes em funçãodo género. De seguida, analisaremos os resultados a nível comportamental, também em funçãodos diferentes momentos de avaliação e do género.

Resultados ao nível das atitudes

Impacto da intervenção De seguida, serão apresentados os dados relativos ao impacto da intervenção. Começaremos

por estabelecer a comparação entre os dados do grupo experimental e do grupo de controlo nopré e no pós-teste. Posteriormente, apresentaremos uma análise mais detalhada dos resultados do

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grupo experimental (comparando os três momento de avaliação realizados) e do grupo de controlo(comparando apenas pré e pós-teste).

Os resultados sistematizados na Tabela 2 permitem-nos comparar as atitudes do grupoexperimental e do grupo de controlo relativamente à violência física, psicológica e sexual, exercidapor rapazes e raparigas nos relacionamentos de namoro, no pré-teste e no pós-teste.

TABELA 2

Atitudes face à utilização de violência nos relacionamentos de namoro, no grupo de controlo e no grupo experimental, nos momentos de pré e pós-teste

(ns: não significativo para p>.05; *significativo para p<.05; **significativo para p<.001)M (DP) N t g.l. p

Legitimação da violência psicológica Pré-teste GE 23.1 (4.42) 538 1.885 665 nsmasculina (VPM) GC 22.3 (4.47) 129

Pós-teste GE 20.6 (4.30) 482 -2.546 183.612 *GC 21.8 (4.77) 127

Legitimação da violência física Pré-teste GE 17.0 (4.32) 565 3.405 216.786 **masculina (VFM) GC 15.6 (3.82) 132

Pós-teste GE 15.5 (3.96) 485 -2.468 180.382 *GC 16.6 (4.80) 131

Legitimação da violência sexual Pré-teste GE 15.6 (3.35) 569 1.516 697 nsmasculina (VSM) GC 15.1 (3.24) 130

Pós-teste GE 14.4 (3.15) 494 -1.487 599 nsGC 14.9 (3.40) 107

Legitimação da violência psicológica Pré-teste GE 19.1 (3.83) 570 2.384 698 *feminina (VPF) GC 18.2 (3.40) 130

Pós-teste GE 16.7 (3.73) 492 -3.803 186.686 **GC 18.3 (4.39) 133

Legitimação da violência física Pré-teste GE 18.8 (4.62) 540 .497 666 nsfeminina (VFF) GC 18.5 (4.94) 128

Pós-teste GE 16.1 (4.00) 489 -3.914 170.863 **GC 18.0 (5.15) 129

Legitimação da violência sexual Pré-teste GE 16.9 (3.94) 536 -.751 665 nsfeminina (VSF) GC 17.2 (4.45) 131

Pós-teste GE 15.7 (3.98) 491 -2.869 176.114 **GC 17.1 (5.01) 131

Nota Total Pré-teste GE 109.5 (18.47) 1.725 598 nsGC 106.3 (17.60)

Pós-teste GE 97.8 (18.05) -2.080 529 *GC 102.7 (21.25)

Verificamos que não existiam diferenças significativas entre o grupo experimental e o grupocontrolo no pré-teste, nem na nota total [t(598)=1.725, p>.05] nem em quatro das seis subescalasque integram o questionário [VFM: t(665)=1.885, p>.05; VSM: t(697)=1.516, p>.05; VFF:t(666)=.497, p>.05; VSF: t(665)=-.751, p>.05]. Existiam, no entanto, diferenças significativas nassubescalas de legitimação da violência física masculina [t(216.786)=3.405, p<.05] e na legitimação

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da violência psicológica feminina (t(698)=2.384, p<.05), em ambos os casos superiores no grupoexperimental.

Apesar destas duas diferenças no pré-teste, considerámos justificada a utilização deste grupode controlo, pelas seguintes razões: (1) o facto de a diferença entre grupos no valor da nota totalnão ser estatisticamente significativa, (2) o facto de a diferença entre o grupo experimental e decontrolo não ser significativa na maioria das subescalas do questionário, e (3) o facto de nos doiscasos em que existem diferenças, os valores de tolerância do grupo experimental serem, em pré--teste, superiores ao do grupo de controlo, não colocando o segundo em desvantagem clara emrelação ao primeiro.

Como podemos também ver na Tabela 2, no pós-teste o grupo experimental e de controloapresentaram diferenças estatisticamente significativas em todas as escalas, à excepção da referenteà legitimação da violência sexual masculina [VSM: t(599)=-1.487, p>.05]. Essas diferenças foramtodas no sentido da maior elevação dos valores de legitimação das diferentes formas de violênciano grupo de controlo [nota total: t(529)=-2.080, p<.05; VPM: t(183.612)=-2.546, p<.05; VFM:t(180.382)=-2.468, p<.05; VPF: t(186.686)=-3.803, p<.05; VFF: t(170.863)=-3.914, p<.05; VSF:t(176.114)=-2.869, p<.05].

Apresentamos de seguida (cf. Tabela 3) uma análise mais detalhada do impacto da intervençãono grupo experimental, comparando os resultados atitudinais nos três momentos de avaliação:pré-teste, pós-teste e follow-up.

TABELA 3

Resultados do impacto da intervenção ao nível das atitudes (ANOVA para medidas repetidas) no grupo experimental

(ns – não significativo para p>.05; *significativo para p<.05; **significativo para p<.001)Comparações

múltiplasM (DP) N F g.l. P (Bonferroni)

Legitimação da Pré-teste (1) 22.3 (1.48) 1-2 **violência psicológica Pós-teste (2) 19.8 (1.32) 355 70.671 (1.923, 471.147) ** 1-3 **masculina (VPM) Follow-up (3) 20.1 (1.34) 2-3 n.s.

Legitimação da Pré-teste (1) 16.24 (1.35) 1-2 **fviolência ísica Pós-teste (2) 15.0 (1.25) 356 20.341 (2.490) ** 1-3 **masculina (VFM) Follow-up (3) 15.1 (1.26) 2-3 n.s.

Legitimação da Pré-teste (1) 14.8 (1.24) 1-2 **violência sexual Pós-teste (2) 13.6 (1.13) 362 43.465 (1.967, 481.898) ** 1-3 **masculina (VSM) Follow-up (3) 13.8 (1.15) 2-3 n.s.

Legitimação da Pré-teste (1) 18.4 (1.42) 1-2 **violência psicológica Pós-teste (2) 16.1 (1.24) 359 80.540 (2, 490) ** 1-3 **feminina (VPF) Follow-up (3) 16.5 (1.27) 2-3 n.s.

Legitimação da Pré-teste (1) 18.3 (1.53) 1-2 **violência física Pós-teste (2) 15.6 (1.30) 354 69.328 (1.884, 461.493) ** 1-3 **feminina (VFF) Follow-up (3) 16.2 (1.35) 2-3 *

Legitimação da Pré-teste (1) 16.2 (1.35) 1-2 **violência sexual Pós-teste (2) 14.4 (1.20) 352 54.332 (1.750, 428.654) ** 1-3 **feminina (VSF) Follow-up (3) 14.6 (1.21) 2-3 n.s

Nota total Pré-teste (1) 106.2 (1.40) 1-2 **Pós-teste (2) 94.3 (1.24) 323 135.380 (1.889, 464.738) ** 1-3 **Follow-up (3) 96.1 (1.26) 2-3 *

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Os resultados da análise estatística realizada (ANOVA para medidas repetidas) apontam para aexistência de diferenças estatisticamente significativas entre os resultados recolhidos nas diferentesfases de aplicação dos questionários. Verificou-se após a intervenção uma diminuição das atitudeslegitimadoras da violência, quer a um nível mais global, expressa através dos valores da nota total[F(1.889, 464.738)=135.380, p<.001], quer ao nível dos diferentes factores: violência psicológicamasculina [F(1.923, 471.147)=70.671, p<.001], violência física masculina [F(2, 490)=20.341,p<.001], violência sexual masculina [F(1.967, 481.898)=43.465, p<.001], violência psicológicafeminina [F(2, 490)=80.540, p<.001], violência física feminina [F(1.884, 461.493)=69.328,p<.001) e violência sexual feminina [F(1.750, 428.654)=54.332, p<.001].

Analisando o impacto da intervenção a médio prazo, através da comparação entre o pós-testee o follow-up, verifica-se uma manutenção do impacto (ausência de diferenças estatisticamentesignificativas) nas escalas de atitudes acerca da violência exercida pelos rapazes e nas escalas deviolência física e sexual feminina. Já nas escalas de violência física feminina e na nota globalexistem diferenças significativas entre estes dois momentos de avaliação [VFF: F(1, 245)=8.851,p<.05; nota total: F(1,245)=7,537, p<.05], com um aumento das médias de legitimação no follow--up. Note-se, contudo, que apesar deste acréscimo as diferenças do follow-up para o pré-testepermanecem significativas (cf. Tabela 3).

Por sua vez, os resultados do teste t para amostras emparelhadas realizado com o grupo decontrolo (cf. Tabela 4) apontam para ausência de diferenças significativas entre os resultadosrecolhidos nas duas aplicações, correspondentes aos momentos de pré-teste e pós-teste no grupoexperimental.

TABELA 4

Resultados da intervenção ao nível das atitudes (Teste t para amostras emparelhadas) no grupo de controlo (ns – não significativo para p>.05)

M (DP) N t g.l. p

Legitimação da violência psicológica Pré-teste 22.1 (4.35)masculina (VPM) Pós-teste 21.4 (4.63) 114 1.935 113 ns

Legitimação da violência física Pré-teste 15.8 (3.97)masculina (VFM) Pós-teste 16.3 (4.75) 118 -1.762 117 ns

Legitimação da violência sexual Pré-teste 14.8 (3.09)masculina (VSM) Pós-teste 14.6 (3.37) 95 0.871 94 ns

Legitimação da violência Pré-teste 18.2 (3.45)psicológica feminina (VPF) Pós-teste 18.0 (4.39) 120 .634 119 ns

Legitimação da violência física Pré-teste 18.4 (5.02)feminina (VFF) Pós-teste 17.7 (5.15) 114 1.894 113 ns

Legitimação da violência Pré-teste 17.0 (4.39)sexual feminina (VSF) Pós-teste 16.8 (5.00) 118 .763 117 ns

Nota total Pré-teste 102.9 (17.01)Pós-teste 100.5 (21.08) 80 1.892 79 ns

Apesar de se verificarem variações nos valores médios entre os dois momentos de avaliação,estas não foram estatisticamente significativas, nem a um nível mais global, traduzido pela notatotal [t(80)=1.825, p>.05], nem ao nível dos diferentes factores: violência psicológica masculina[t(113)=1.935, p>.05] violência física masculina [t(117)=-1.762), p>.05], violência sexual

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masculina [t(94)=.871, p>.05], violência psicológica feminina [t(119)=.634, p>.05], violênciafísica feminina [t(113)=1.894, p>.05] e violência sexual feminina [t(117)=.763, p>.05].

Impacto da intervenção em função do género no grupo experimentalNa Tabela 5 podemos verificar que os níveis de acordo dos rapazes com as crenças

legitimadoras da violência são, de um modo geral, superiores e significativamente diferentes dosdas raparigas nos três momentos de análise.

TABELA 5

Diferenças de género nos valores médios da nota total da escala de atitudes,nos diferentes momentos de avaliação (**significativo para p<.001)

Nota Total Sexo M (DP) N t gl p

Pré-teste Feminino 102.8 (15.16) 265 -9.487 404.906 **Masculino 117.8 (18.83) 214

Pós-teste Feminino 92.8 (14.84) 258 -7.078 313.921 **Masculino 105.1 (19.75) 180

Follow-up Feminino 91.7 (13.70) 189 -7.259 218.802 **Masculino 106.1 (20.03) 134

Contudo, a análise individualizada dos resultados por género, permite-nos confirmar que oimpacto da intervenção, com base na evolução dos resultados, é significativo para ambos osgéneros (cf. Tabela 6)

TABELA 6

Diferenças de género no impacto ao nível atitudinal, nos diferentes momentos de avaliação (ns: não significativo para p>.05; *significativo para p<.05; **significativo para p<.001)

Comparaçõesmúltiplas

M (DP) N F g.l. P (Bonferroni)

Feminino Pré-teste (1) 100.8 (1.12) 1-2 **Pós-teste (2) 90.9 (1.02) 149 87.346 (1.867, 276.382) ** 1-3 **Follow-up (3) 91.6 (1.12) 2-3 ns

Masculino Pré-teste (1) 114.5 (1.94) 1-2 **Pós-teste (2) 99.6 (1.75) 97 55.702 (1.872, 179.667) ** 1-3 **Follow-up (3) 103.2 (1.86) 2-3 *

Quando comparamos, para cada género, o impacto da intervenção realizada, constatamos que,quer nos rapazes quer nas raparigas, se verificam diferenças estatisticamente significativas entreos diferentes momentos de avaliação [feminino: F(1.867,276.382)=87.346, p<.001; masculino:F(1.872, 179.667)=55.702, p<.001]. A comparação múltipla dos dados permite confirmar adiminuição estatisticamente significativa do acordo com atitudes legitimadoras da violência,imediatamente após a intervenção, em ambos os géneros. A médio prazo verifica-se uma ligeiraelevação dos valores, também em ambos os géneros, apesar de em nenhum dos casos se

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aproximarem significativamente dos resultados iniciais (a diferença entre as médias do pré-testee do follow-up é sempre estatisticamente significativa, reforçando a tendência para a manutençãodos resultados da intervenção realizada, pelo menos a médio-prazo). Note-se, contudo, que amanutenção dos resultados no follow-up parece mais sólida no caso das raparigas, já que nestas adiferença verificada entre pós-teste e follow-up não é significativa, ao contrário do constatado nosrapazes.

Resultados ao nível comportamental

Impacto da intervençãoAs Tabelas 7 e 8 procuram sistematizar a comparação do grupo experimental (GE) e do grupo

de controlo (GC), nos dois momentos de avaliação (pré e pós-teste).

TABELA 7

Comparação entre o grupo experimental e o grupo de controlo, no pré e no pós-teste (teste t para amostras independentes) relativamente à utilização de estratégias de resolução

de conflitos, utilizadas pelo próprio e pelo outro (ns: não significativo para p>.05)N M (DP) t g.l. p

GE 479 16.4 (5.33)Pré-teste -.678 578 ns

Estratégias de resolução de conflitos GC 107 16.8 (4.73)positivas ou não abusivas do próprio GE 297 17.4 (4.93)

Pós-teste .573 401 nsGC 106 17.1 (4.94)

GE 471 15.1 (5.30)Pré-teste -1.287 571 ns

Estratégias de resolução de conflitos GC 109 15.8 (4.92)positivas ou não abusivas do outro GE 291 16.1 (4.96)

Pós-teste -.053 391 nsGC 102 16.2 (5.18)

GE 479 4.6 (4.42)Pré-teste -1.606 584 ns

Estratégias de resolução de conflitos GC 107 5.4 (4.79)abusivas do próprio GE 295 4.4 (4.35)

Pós-teste -1.242 401 nsGC 108 5.1 (5.97)

GE 467 5.1 (5.30)Pré-teste -1.379 570 ns

Estratégias de resolução de conflitos GC 105 5.9 (4.91)abusivas do parceiro ou parceira GE 292 4.8 (5.07)

Pós-teste -1.507 149.371 nsGC 479 5.9 (6.95)

Os dados da Tabela 8 confirmam a inexistência de diferenças significativas entre o grupoexperimental e o grupo de controlo na utilização de estratégias positivas ou não abusivas deresolução de conflitos, no momento prévio à intervenção, quer ao nível das estratégias adoptadaspelo próprio [t(578)=-.678, p>.05], quer ao nível das estratégias adoptadas pelo outro [t(571)=-1.287,p>.05]. Esta ausência de diferenças mantém-se no momento do pós-teste [estratégias adoptadaspelo próprio: t(401)=.573, p>.05; estratégias adoptadas pelo outro: t(391)=-.053, p>.05].

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Estes resultados repetem-se relativamente às diferenças entre o grupo experimental e o grupo decontrolo na utilização de estratégias de resolução de conflitos abusivas: ausência de diferenças antesda intervenção [estratégias do próprio: t(584)=-1.606, p>.05; estratégias do outro: t(570)=-1.379,p>.05] e também após a intervenção [estratégias do próprio: t(401)=-1.242, p>.05; estratégias dooutro: t(149.371)=-1.507, p>.05].

Passamos de seguida a analisar mais especificamente a evolução de cada grupo ao longo dosdiferentes momentos da avaliação (cf. Tabela 8). Nesta tabela não serão apresentados dados defollow-up, nem para o grupo experimental, nem para o grupo de controlo. Tal como já foianteriormente explicado, relativamente ao grupo de controlo, em virtude dos condicionamentosimpostos pelo final do ano lectivo e pela necessidade de realizar uma acção de sensibilização, nãofoi possível recolher dados de follow-up. Quanto ao grupo experimental, foi presumido que, sendoo intervalo de tempo decorrido entre o início e o final da intervenção de apenas 45 dias, e avaliandoo questionário comportamentos sucedidos ao longo do último ano, a avaliação imediata após aúltima sessão não permitiria detectar as eventuais mudanças comportamentais ocorridas. Por isso,a avaliação de pós-teste comportamental foi realizada cerca de 4 meses após a intervenção, nomesmo momento em que foi efectuado o follow-up relativamente às atitudes.

TABELA 8

Comparação entre o grupo experimental e o grupo de controlo, no pré e pós-teste (teste t para amostras emparelhadas) relativamente à utilização de estratégias de resolução de conflitos, utilizadas pelo próprio e pelo outro (ns: não significativo para p>.05; *p<.05)

N M (SD) t g.l. pPré-teste 17.0 (5.41)

Grupo experimental 274 -1.482 273 nsEstratégias de resolução de conflitos Pós-teste 17.4 (4.99)positivas ou não abusivas do próprio Pré-teste 17.0 (4.81)

Grupo de controlo 94 -.805 93 nsPós-teste 17.3 (4.60)

Pré-teste 15.6 (5.15)Grupo experimental 268 -2.050 267 *

Estratégias de resolução de conflitos Pós-teste 16.3 (4.96)positivas ou não abusivas do outro Pré-teste 16.1 (4.85)

Grupo de controlo 92 -.902 91 nsPós-teste 16.5 (4.81)

Pré-teste 4.6 (4.42)Grupo experimental 282 0.730 281 ns

Estratégias de resolução de conflitos Pós-teste 4.4 (4.32)abusivas do próprio Pré-teste 5.2 (4.64)

Grupo de controlo 93 0.619 92 nsPós-teste 4.9 (4.78)

Pré-teste 5.0 (5.18)Grupo experimental 270 1.010 269 ns

Estratégias de resolução de conflitos Pós-teste 4.7 (5.01)abusivas do parceiro ou parceira Pré-teste 5.8 (4.70)

Grupo de controlo 91 -0.185 90 nsPós-teste 5.9 (6.72)

No que concerne ao impacto da intervenção no grupo experimental quanto à adopção deestratégias positivas de resolução de conflitos, as diferenças verificadas entre o momento anteriore posterior à intervenção apenas são estatisticamente significativas no relato das estratégias

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positivas ou não abusivas adoptadas pelo outro [t(267)=-2.050, p<.05]. No grupo de controlo, emnenhum dos factores foram percebidas diferenças significativas entre o “pré-teste” e o “pós-teste”(cf. Tabela 8).

Relativamente ao impacto na utilização de estratégias abusivas adoptadas pelo próprio, os dadosrevelam a inexistência de diferenças estatisticamente significativas entre o pré-teste e o pós-teste,quer no grupo de controlo [t(92)=.619, p>.05], quer no grupo experimental [t(281)=.730, p>.05](cf. Tabela 8).

Impacto da intervenção em função do géneroA Tabela 9 compara os resultados obtidos em função do género dos participantes, nos diferentes

momentos da intervenção.

TABELA 9

Diferenças de género nos valores médios da utilização de estratégias de resolução de conflitos, por parte do próprio e por parte do outro (ns: não significativo para p>.05; *p<.05; **p<.001)

N M (DP) t g.l. p

Feminino 264 16.9 (5.04)Pré-teste 2.462 469 *

Estratégias de resolução de conflitos Masculino 207 15.7 (5.62)positivas ou não abusivas do próprio Feminino 188 17.6 (4.44)

Pós-teste .800 184.277 nsMasculino 109 17.1 (5.69

Feminino 263 15.8 (5.18)Pré-teste 3.140 464 **

Estratégias de resolução de conflitos positi- Masculino 203 14.2 (5.34)vas ou não abusivas do parceiro ou parceira Feminino 182 16.6 (4.71)

Pós-teste 1.785 206.331 nsMasculino 109 15.5(5.31)

Feminino 269 5.2 (4.75)Pré-teste 3.156 476.303 **

Estratégias de resolução de conflitos Masculino 210 3.9 (3.85)abusivas do próprio Feminino 184 4.7 (4.29)

Pós-teste 1.168 293 nsMasculino 111 4.0 (4.45)

Feminino 265 5.7 (5.75)Pré-teste 2.429 417.501 *

Estratégias de resolução de conflitos Masculino 202 4.5 (4.58)abusivas do parceiro ou parceira Feminino 183 5.1 (5.18)

Pós-teste 1.319 290 nsMasculino 109 4.3 (4.86)

Como podemos ver na Tabela 9, numa fase anterior à intervenção, a utilização das estratégiasde resolução de conflitos positivas ou não abusivas pelo próprio e pelo outro, por parte dos rapazese das raparigas, diferia significativamente [respectivamente t(469)=2.462, p<.05 e t(464)=3.140,p<.05]. As raparigas relatavam uma maior utilização de estratégias positivas ou não abusivas doque os rapazes, ao mesmo tempo que também mais facilmente identificavam no seu parceiro autilização destes comportamentos. Após a intervenção, estas diferenças deixaram de serestatisticamente significativas.

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Por sua vez, também previamente à intervenção existiam diferenças estatisticamente significa -tivas entre rapazes e raparigas, quer no relato das estratégias de resolução de conflitos abusivasutilizadas pelo próprio [t(476.303)=3.156, p<.001], quer no relato das estratégias abusivas utili -zadas pelo outro [t(417.501)=2.429, p<.05]. As raparigas relatavam maior utilização pessoal deestratégias abusivas, ao mesmo tempo que denunciavam também uma maior utilização deestratégias abusivas pelos seus parceiros. Tal como nos dados relatados na tabela anterior, após aintervenção estas diferenças dissiparam-se, deixando de ser significativas.

Finalmente, a Tabela 10 apresenta a evolução dos resultados de cada género ao longo daintervenção.

TABELA 10

Diferenças de género no impacto da intervenção (teste T para amostras emparelhadas) na utilização de estratégias de resolução de conflitos, utilizadas pelo próprio e pelo outro

(ns: não significativo, p>.05; *p<.05)N M (SD) t g.l. p

Estratégias de resolução de conflitos Feminino Pré-teste 176 17.4 (4.95) -.371175 nspositivas ou não abusivas do próprio Pós-teste 17.5 (4.50)

Masculino Pré-teste 98 16.2 (6.10) -1.933 97 nsPós-teste 17.2 (5.78)

Estratégias de resolução de conflitos positi- Feminino Pré-teste 173 16.3 (4.74) -.764172 nsvas ou não abusivas do parceiro ou parceira Pós-teste 16.6 (4.80)

Masculino Pré-teste 95 14.5 (5.68) -2.449 94 *Pós-teste 15.8 (5.23)

Estratégias de resolução de conflitos Feminino Pré-teste 179 5.3 (4.84) 1.817178 nsabusivas do próprio Pós-teste 4.8 (4.30)

Masculino Pré-teste 103 3.5 (3.33) -.925102 nsPós-teste 3.9 (4.34)

Estratégias de resolução de conflitos Feminino Pré-teste 172 5.7 (5.62) 1.466171 nsabusivas do parceiro ou parceira Pós-teste 5.2 (5.20)

Masculino Pré-teste 98 3.9 (4.09) -.164 97 nsPós-teste 4.0 (4.59)

Os dados sistematizados na Tabela 10 permitem perceber uma elevação significativa, após aintervenção, na identificação pelos rapazes de estratégias de resolução de conflitos positivas ounão abusivas adoptadas pelas suas parceiras [t(94)=-2.449, p<.05]. Relativamente aos restantesfactores, apesar das pequenas variações encontradas, verifica-se que, para nenhum dos géneros,ocorrem mudanças significativas após a intervenção.

Em suma, de um modo geral há diferenças de género no momento prévio à intervenção, masnão há diferenças ao nível do impacto da mesma.

DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

No que concerne à mudança de atitudes, os resultados a curto e a médio prazo da intervençãorealizada pelo Projecto IUNO II são, de algum modo, encorajadores. De facto, e apesar de osadolescentes se mostrarem, na generalidade, previamente intolerantes face à utilização de

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comportamentos de violência física, psicológica ou sexual nos seus relacionamentos, podemosconsiderar que esta intervenção, ainda que provavelmente coadjuvada por outros factores (e.g.,outras acções de informação e sensibilização desenvolvidas na escola ou na comunidade, o papeldos pares na censura de determinados comportamentos, experiências pessoais durante o períodoem análise), terá contribuído para a diminuição das atitudes de tolerância dos adolescentes face adeterminados comportamentos abusivos nas relações íntimas e a um reforço da sua intolerânciaface a outros.

Ainda assim, importa referir que os rapazes apresentaram níveis significativamente maiselevados de tolerância às diferentes formas de violência, quer estas fossem perpetradas por rapazesou por raparigas. Esta superior legitimação tem sido encontrada em diferentes estudos e pordiferentes autores (e.g., Katz, Kuffel, & Coblentz, 2002; Machado et al., 2009; Matos, Machado,Caridade, & Silva, 2006), e tem sido explicada, nomeadamente, pelo facto de os rapazes seremsocializados no sentido de uma maior agressividade nos seus relacionamentos interpessoais.Contudo, esta diferença não condicionou o impacto da intervenção a nível atitudinal, sendo estesignificativo quer na amostra de rapazes, quer na amostra de raparigas.

Em nosso entender, para este resultado poderão ter contribuído algumas das actividadesdesenvolvidas junto do grupo (informação acerca do tema, discussões de grupo, desafio de mitos),mas também o permanente esforço efectuado em não identificar, ao longo da intervenção, umperfil de agressor como pertencente ao género masculino e um perfil de vítima como pertencenteao género feminino, diminuindo a potencial resistência dos rapazes à intervenção.

Os dados do impacto da intervenção relativamente às mudanças de comportamento já não sãotão encorajadores, uma vez que os resultados esperados ao nível do aumento da utilização deestratégias positivas de resolução de conflitos e ao nível da diminuição da utilização de estratégiasabusivas não se verificaram. Todavia, a experiência internacional dos programas de prevençãorealizados nesta área, fazia já antecipar que a mudança de comportamentos seria um objectivomais difícil de atingir do que a mudança de atitudes (Whitaker et al., 2006).

Estes resultados podem também estar associados com características inerentes à própriaintervenção, como o facto de ter uma duração breve e uma orientação mais informativa do quecomportamental. Na verdade, apesar de terem sido discutidas algumas estratégias de resoluçãode conflitos, através da apresentação de casos práticos, não podemos considerar que tenha existidoum efectivo treino de competências de resolução de conflitos.

Finalmente, as próprias características do instrumento de avaliação poderão ser responsáveispela não identificação de mudanças. Efectivamente, o inventário de comportamentos utilizadoquestiona os alunos acerca dos comportamentos ocorridos nas suas relações de namoro durante oúltimo ano. Ora, se a segunda administração do questionário acontece num período inferior a umano, como foi o caso, poderia acontecer um aumento, mas seria pouco provável que ocorresseuma diminuição significativa do número de comportamentos anteriormente elencados. Por outrolado, a volatilidade associada aos relacionamentos de namoro pode ser limitadora da validade dainformação dada pela vítima relativamente ao agressor, uma vez que a díade poderá ter mudadono intervalo de tempo decorrido entre a primeira e a segunda recolha de informação.

No que concerne às diferenças comportamentais em função do género, os dados recolhidos nafase anterior à intervenção revelam um padrão assimétrico: as raparigas relatam maior utilizaçãode estratégias abusivas, ainda que, também em maior grau, considerem que os seus parceirosfazem uso destas estratégias; por outro lado, no que se refere à utilização de estratégias positivasou não abusivas de resolução de conflitos, também se distinguem dos rapazes, relatando maisestratégias de resolução de conflitos positivas, quer usadas por si quer pelos seus namorados.

De um modo geral, os estudos nacionais e internacionais conduzidos neste domínio têmcorroborado esta tendência de maior relato de agressão por parte das raparigas, pelo menos no querespeita a actos de menor gravidade (e.g., Lewis & Fremouw, 2001; Machado, Matos, & Moreira,

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2003; Machado, Caridade, & Martins, 2009; Magdol, Moffitt, Caspi, Newman, & Fagan, 1997;Paiva & Figueiredo, 2004). As justificações para estes resultados podem ser diversas: as raparigasserão alvo de menores sanções sociais por exercerem violência e por isso poderão não ter tantarelutância em assumi-la, enquanto nos rapazes as pressões sociais limitam e censuram estescomportamentos e a sua admissão (Avery-Leaf & Cascardi, 2002); por outro lado, as jovens podemnão ter a percepção da gravidade do seu comportamento, dado o diminuto dano físico causado pelassuas acções, comparativamente com as dos rapazes (Hickman, Jaycox, & Aronoff, 2004).

Quanto aos valores relatados pelos rapazes, estes podem reflectir a tentativa de minimizar aadopção de comportamentos agressivos, não os valorizando ou assumindo, optando por umaresposta socialmente mais desejável e menos passível de reprovação social (Feiring, Deblinger,Hoch-Espada, & Haworth, 2002). Em relação à menor utilização de estratégias positivas deresolução de conflitos, tal poderá estar associado a uma socialização predominantemente agressiva,em que alternativas não violentas não são tão estimuladas e reforçadas.

Relativamente às mudanças pós intervenção, as diferenças entre rapazes e raparigas quanto àsestratégias de resolução de conflitos tornaram-se praticamente inexistentes. Estes dados poderãoreflectir um superior impacto da intervenção nos rapazes, superando as diferenças previamenteexistentes, sugerindo mesmo que alguns alunos poderão beneficiar mais deste tipo de programado que outros. Esta interpretação poderá ser reforçada pelo facto de ser precisamente no grupodos rapazes que se verifica a única diferença significativa entre o pré e o pós-teste, ao nível dacapacidade de identificação de estratégias positivas usadas pelas namoradas. Contudo, ainexistência de mudanças nas outras escalas sugere que esta possibilidade de interpretação deveser cautelosamente tomada e que a questão do impacto diferencial deste tipo de programas emfunção do género deve ser alvo de estudos posteriores.

Em termos gerais, os resultados deste estudo, assentes na comparação de um grupo experimentale de um grupo de controlo, apontam para a probabilidade de a intervenção realizada, embora decarácter relativamente breve e com ênfase informativa/educacional, ter contribuído de formapositiva para a mudança de atitudes. Contudo, é certo que a mudança de comportamentos nãopode ser presumida a partir da mudança atitudinal (Whitaker et al., 2006) e os dados deste estudo,de facto, não nos permitem constatar uma mudança comportamental como resultado da inter -venção realizada. Julgamos, assim, fundamental, em resposta à necessidade de prevenir compor -tamentos de risco, mas também de promover comportamentos positivos nos relaciona mentos,investir na identificação de modelos de intervenção capazes de promover mudanças ao nívelcomportamental e de identificar nos seus componentes, conteúdos, dinâmicas ou modelos teóricossubjacentes, quais os ingredientes para o impacto positivo nos comportamentos. Consideramos, aeste propósito – e porque a intervenção aqui avaliada foi claramente insuficiente nesse domínio –que as próximas abordagens de prevenção deverão incluir um trabalho mais sistematizado eintensivo ao nível da aprendizagem e treino de competências de assertividade, resolução deconflitos e tomada de decisão.

Ainda no que diz respeito à avaliação do impacto, consideramos neste momento que osinstrumentos utilizados deveriam ter incluído também a avaliação dos conhecimentos dosparticipantes, já que esta era uma das componentes essenciais desta dinâmica de sensibilização einformação. Salvaguardamos, contudo, que a última sessão, dedicada à produção de cartazes e demateriais de informação, nos permitiu formular uma impressão qualitativa sobre os conhecimentosdos alunos relativamente às formas de violência, impacto e procedimentos de pedido de ajuda.Também na última sessão foi percebida a reacção positiva dos alunos face aos conteúdos edinâmicas utilizadas nas sessões, através do preenchimento de um questionário de satisfação.

Por outro lado, percebida a violência no namoro como parte de uma “constelação” decomportamentos de risco que têm lugar na adolescência e que têm trajectórias de desenvolvimentoem tudo semelhantes (Whitaker et al., 2006), consideramos neste momento fundamental

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desenvolver programas com uma abordagem integrada à prevenção dos comportamentos de riscodos adolescentes. De facto, esta intervenção incidiu fundamentalmente nas questões relacionadascom as relações de namoro, apesar de incluir também alguns elementos associados à pressão dospares. Ainda que, nos 270 minutos desta acção, fosse impossível abordar outros elementos, ouefectuar uma articulação com outros comportamentos de risco, consideramos fundamental quefuturos esforços de prevenção, mais alargados no tempo, possam investir numa abordagem maisintegrada da prevenção.

Salientamos, contudo, que esta lógica integrada só será sustentável se fizer parte de uminvestimento na prevenção mais continuado. Com este programa, percebemos que as sessões decurta duração poderão produzir, pelo menos a curto e a médio prazo, efeitos positivos ao nível damudança de atitudes, mas estamos convictos de que a mudança de comportamentos só seráatingível através de uma intervenção mais continuada no tempo. Os exemplos mais conhecidosinternacionalmente são o programa Safe Dates (Foshee et al., 1996, 1998, 2000, 2004, citados porWhitaker et al., 2006), o Youth Relationship Project (Wolfe, Wekerle, Gough, Reitzel-Jaffe,Grasley, Pittman, Lefebvre, & Stumpf, 1996) e o The Fourth R (Wolfe, Crooks, Chiodo, Hudges,& Jaffe, 2005), este último ainda numa fase de experimentação e validação.

A possibilidade deste esforço continuado é, ela própria, um desafio técnico e institucional. Defacto, sabemos que um elemento limitador da continuidade e investimento por parte das entidadesneste tipo de intervenções é a sua dependência de financiamentos extraordinários, como sejam osfundos comunitários (Saavedra & Machado, no prelo). O IUNO II, independentemente daqualidade dos seus resultados e da sua aceitação por parte dos alunos e das escolas, tinha, à partida,um tempo de início e de fim definido. Findo o financiamento, a equipa externa que se deslocouàs escolas deixou de o poder fazer. Cumpre, assim, encontrar soluções organizacionais e técnicasque permitam assegurar a continuidade temporal dos esforços de prevenção e a capacitação daspróprias instituições neste sentido, reduzindo a sua dependência de equipas exteriores. A reforçareste facto, mais uma vez fazemos referência à revisão de programas efectuada por Whitaker ecolaboradores (2006), na qual seis dos dez programas realizados em contexto escolar foramassegurados pelos professores, apesar de também existir um número equiparável de programasassegurados por elementos da comunidade.

Futuras experiências preventivas deverão também dar continuidade e refinar a metodologia deavaliação aqui ensaiada. Efectivamente, como já atrás referimos, um dos erros mais comuns dasintervenções realizadas tem sido a inexistência de grupos de controlo, a ausência de pré-teste, pós--teste e follow-up, os períodos excessivamente curtos para a aplicação de follow-up, as limitaçõesdos instrumentos utilizados e a sobrevalorização da avaliação da satisfação dos sujeitos emdetrimento da avaliação do impacto (Saavedra & Machado, no prelo; Whitaker et al., 2006). Nanossa intervenção procurámos ultrapassar algumas destas limitações, nomeadamente incluindoum grupo de controlo e seleccionando instrumentos validados para a população adolescente. Masreconhecemos que o período de avaliação de follow-up foi insuficiente para nos permitir fazerafirmações mais peremptórias relativamente à eficácia da intervenção a médio prazo. Por sua vez,a impossibilidade da avaliação de follow-up no grupo de controlo foi também uma clara limitaçãodeste estudo. Em futuras intervenções consideramos ainda fundamental aumentar o número defollow-up realizados, com vista a aferir o impacto a intervenção também a longo prazo.

Finalmente, no que ao contexto de intervenção se refere, consideramos que a opção pela inter -venção em contexto escolar tem efectivamente vantagens, na medida em que possibilita umaabordagem universal, permitindo um fácil acesso a alunos com características bastante distintas ediminuindo a possibilidade de gerar situações de estigmatização ou discriminação. Contudo, emalgumas situações poderá ser importante conduzir uma intervenção selectiva, sobretudo em contextosou indivíduos que evidenciem a presença de factores de risco (e.g., já ter sido vítima ou agressornum relacionamento de namoro, ter experiências familiares de vitimação directa ou vicariante).

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CONCLUSÃO

Portugal tem feito um investimento bastante lacunar ao nível da prevenção da violência nosrelacionamentos íntimos. A comprovar esta afirmação, no estudo de Saavedra e Machado (noprelo), atrás referido, apenas foi identificado um número residual de iniciativas de informação,sensibilização ou prevenção e, entre estas, foram verificadas diversas deficiências ao nível dasustentação teórica da intervenção, da definição de metodologias de avaliação do impacto e dacontinuidade dos esforços preventivos realizados.

Neste programa procurámos colmatar algumas destas lacunas, nomeadamente através daidentificação de uma problemática que fosse inequivocamente interessante para o grupo alvo, ouseja, os relacionamentos de namoro; promovemos o aumento do tempo de intervenção, com vistaa uma discussão mais detalhada dos temas, à identificação de estratégias de prevenção e deestratégias de resolução de conflitos positivas e à criação de uma relação de maior proximidadecom os grupos; e incluímos um grupo de controlo. O resultado destes esforços foi oreconhecimento do contributo deste modelo de intervenção de curta duração na diminuição dasatitudes de legitimação da violência nos relacionamentos, ainda que não tenha sido confirmado oseu impacto nas estratégias de resolução de conflitos utilizadas.

Neste sentido, percebida a necessidade de desenvolver esforços mais específicos para apromoção do impacto ao nível dos comportamentos, reconhecemos a importância de uminvestimento, em futuras intervenções, centrado no treino efectivo de competências e numaavaliação direccionada para a aplicação prática destas aprendizagens.

Porém, estes propósitos não podem ser dissociados da necessidade de promover esforços maiscontinuados no tempo e de encontrar estratégias que permitam a sua sustentabilidade,nomeadamente através da formação de agentes chave dos contextos de intervenção – como porexemplo os professores –, dotando-os de competências e de instrumentos para uma maiorautonomia na prossecução destas iniciativas.

Para finalizar, acrescentamos que a descrição desta intervenção procurou não apenassistematizar o esforço realizado pela Associação Portuguesa de Apoio à Vítima neste domínio mastambém, através da apresentação das dinâmicas realizadas e do reconhecimento dos limites daeficácia desta intervenção, permitir que outros práticos e investigadores possam usar estaexperiência e a reflexão a partir dela realizada como ponto de partida para novos esforços deprevenção da violência nos relacionamentos íntimos.

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This paper presents the evaluation of the impact of a preventive action about violence in datingrelationships, conducted in a secondary school context. This action was composed by three sessions,90 minutes each one, and involved 578 students from 15 schools in the north of Portugal.All students filled, before and after the intervention, self-report questionnaires about their attitudestoward physical, psychological and sexual violence in dating relationships and about the conflictresolution strategies they use with their intimate partners.Results showed that the intervention reduced violent prone attitudes, but had no impact in the conflictresolution strategies used by the participants. These results can be due to the fact that the program hada brief duration and a more informative than behavioral orientation.The question of the differential impact of such programs by gender did not provide, in this study,conclusive results.

Key-words: Dating violence, Impact assessment, Prevention.

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Análise Psicológica (2012), XXX (1-2): 131-142

Práticas de prevenção da violência nas relações de intimidade juvenil:

Orientações gerais

Sónia Caridade* / Rosa Saavedra** / Carla Machado***

*Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Fernando Pessoa; **AssociaçãoPortuguesa de Apoio à Vítima, Porto; ***Escola de Psicologia, Universidade do Minho

A prevenção da violência nas relações de intimidade juvenil foi, durante muito tempo, negligenciadano âmbito da intervenção e investigação sobre este tema. Todavia e não obstante o adiamento naproliferação destes esforços, o quadro científico internacional apresenta-nos hoje programas deprevenção exemplares, dirigidos à população juvenil, numa óptica de prevenção primária do problema,e com resultados muito promissores. Com este artigo, pretendemos precisamente analisar o estado daarte em termos das práticas internacionais e nacionais, em matéria de prevenção da violência nasrelações de intimidade juvenil. Pretendemos ainda, e tendo por base aquele que é o conhecimentocientífico nesta área, esboçar algumas recomendações gerais neste âmbito e mais especificamente, ascomponentes a privilegiar na elaboração dos programas de prevenção. Por último, procuraremos aindadebater sobre os desafios futuros em matéria de prevenção.

Palavras-chave: Intimidade, Jovens, Prevenção, Violência.

INTRODUÇÃO

Ainda que o estudo da violência na intimidade tenha começado por privilegiar a violênciamarital, prevalece na actualidade uma consciência sólida da necessidade de estudar a violência nasrelações amorosas juvenis. A proliferação da investigação científica internacional nesta áreacomprova isso mesmo e ilustra a dimensão preocupante do fenómeno. Um estudo intercultural(Straus, 2004), que envolveu 31 universidades de 16 países, apurou que a violência física ocorrida,no último ano, nas relações de intimidade poderá oscilar entre os 17% e os 45%.

Em Portugal, o investimento científico no estudo deste fenómeno, embora mais recente, éigualmente manifesto e tem vindo a corroborar os resultados internacionais. A título exemplifi -cativo, cita-se um estudo recente (Machado, Caridade, & Martins, 2010) que integrou uma amostraelevada (4667) de participantes, de diferentes grupos populacionais (ensino secundário,profissional e universitário) e de diferentes zonas geográficas (desde a zona Norte, Centro, Sul eilhas). Os indicadores de prevalência apurados por este estudo indicam que 25.4% dos jovensrelataram ter sido vítimas de pelo menos um acto abusivo durante o último ano e 30.6% admitiuter adoptado este tipo de condutas em relação ao seu parceiro. Apesar de os actos mais frequente -

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A correspondência relativa a este artigo deverá ser enviada para: Sónia Caridade, Faculdade de CiênciasHumanas e Sociais, Universidade Fernando Pessoa, Praça 9 de Abril, 349, 4249-004, Porto. E-mail:[email protected]

Este texto foi elaborado no âmbito do Projecto “Violência nas Relações Juvenis de Intimidade” financiadopela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (PTDC/PSI/65852/2006), coordenado por Carla Machado.

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mente referidos se caracterizarem pela sua menor gravidade (actos como “insultar, difamar oufazer afirmações graves para humilhar ou ferir”), comportamentos mais graves como “actossexuais contra a vontade”, “murros”, “pontapés” ou “cabeçadas”, entre outros, também estavampresentes, com percentagens a variar entre os 0.9% e os 2.8%. Esta investigação concluiu aindapela existência de uma relação significativa entre atitudes e comportamentos e em que amanifestação de certas crenças (e.g., minimização e banalização da violência menor, atribuiçãoexterna da culpa, preservação da privacidade) sobre o abuso íntimo tendem a promover aculpabilização da vítima, a desresponsabilização do agressor, constituindo igualmente importantespreditores do envolvimento em relacionamentos abusivos.

Esta e outras investigações anteriores desenvolvidas em território nacional (e.g., Machado,Matos, & Moreira, 2003; Paiva & Figueiredo, 2004) alertam, deste modo para a necessidade denão perceber este fenómeno como exclusivo das relações maritais, nem como algo que se está adesvanecer entre as gerações mais novas. Não menos inquietantes, são os dados que indicam que,caso a relação amorosa abusiva se perpetue, a violência tende a aumentar em termos de frequênciae gravidade (Hamberg & Holtzworth-Munroe, 1994), constituindo um factor preditor da violênciaconjugal (Hamby, 1998). O impacto deste tipo de abuso é igualmente descrito ao nível da literaturaem que se procura destacar as consequências perniciosas que este tipo de comportamento podedesencadear nos jovens, designadamente, baixa auto-estima, depressão, raiva, ansiedade, insucessoescolar, ideação suicida, perturbações alimentares, envolvimento em comportamentos sexuais derisco, consumo de substâncias e comportamentos de risco associados (e.g., Jackson, Cram, &Seymour, 2000; Jezl, Molidor, & Wright, 1996; Jouriles, Wolfe, Garrido, & McCarthy, 2006;Leadbeater, Banister, Ellis, & Yeung, 2008).

Esta inquietante dimensão da violência nas relações íntimas, o seu impacto imediato nasvítimas, a particular fragilidade e desprotecção destas aliados ao facto de esta forma de abusopotenciar outras – provavelmente mais graves – agressões e o envolvimento em outroscomportamentos de risco, podendo funcionar ainda como um factor preditor da violência marital,fundamentam a implementação premente de esforços preventivos no sentido de fazer face a umfenómeno que se afigura deveras preocupante.

A cultura de prevenção portuguesa neste domínio só agora começa a dar os primeiros passose, portanto, é ainda muito pouco sólida e consistente para fazer face a este problema social. Amultiplicação dos estudos a que assistimos nos últimos anos, e que procuram a caracterização daviolência nas relações juvenis não tem sido, efectivamente, acompanhada do necessárioinvestimento em programas preventivos, assim como de serviços específicos, dirigidos a estapopulação.

Efectivamente, os esforços em matéria de prevenção por parte das entidades públicas (e.g.,Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, autarquias, entre outras) ou mesmo pelasOrganizações não Governamentais e/ou Instituições Particulares de Solidariedade Social (e.g.,Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, União de Mulheres Alternativa Resposta, Associaçãode Mulheres contra a Violência, e outros projectos comunitários), têm privilegiado o apoioimediato e remediativo – prevenção terciária –, dirigido essencialmente às mulheres e criançasvítimas de violência doméstica, carecendo-se um maior investimento na prevenção primária doproblema. Com efeito, são ainda muito incipientes as experiências preventivas com respostaespecífica ao fenómeno da violência nas relações amorosas juvenis.

Com este artigo pretendemos precisamente analisar o estado da arte em termos das práticasinternacionais e nacionais, em matéria de prevenção da violência nas relações de intimidadejuvenil. Pretendemos ainda, e tendo por base aquele que é o conhecimento científico nesta área,esboçar algumas recomendações gerais neste âmbito e mais especificamente, as componentes aprivilegiar na elaboração dos programas de prevenção. Por último, procuraremos ainda debatersobre os desafios futuros em matéria de prevenção.

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CULTURA DE PREVENÇÃO DA VIOLÊNCIA NAS RELAÇÕES DE INTIMIDADE JUVENIL: DAS PRÁTICAS INTERNACIONAIS À REALIDADE NACIONAL

Os esforços preventivos da violência ocorrida nas relações de intimidade começaram porprivilegiar uma lógica de intervenção fundamentalmente reactiva (e.g., Schewe, 2002; Wolfe &Jaffe, 1999) e incidindo, essencialmente, nas relações estabelecidas pela população adulta(Whitaker, Morrison, Lindquist, Hawkins, O’Neil, Nesius, Mathew, & Reese, 2006). Deste modo,a intervenção visava primeiramente uma multiplicação de esforços no sentido de penalizar osagressores e implementar estruturas de apoio às vítimas, descurando-se a prevenção primária doproblema (Perez & Rasmussen, 1997).

O primeiro esforço realizado ao nível da prevenção primária da violência nas relações íntimasfoi o programa Skills for Violence-Free Relationships (Levy, 1984). Concebido para adolescentescom idades compreendidas entre os 13 e os 18 anos e para ser implementado em contextoseducativos (escolas ou outras instituições educativas), este programa tinha como objectivoprimário a prevenção da violência contra as mulheres nas relações íntimas. Não obstante, o factodas primeiras avaliações realizadas a este programa não evidenciarem mudanças ao nível dasatitudes, suscitou algumas reservas acerca da sua eficácia ou mesmo da estratégia de avaliaçãoempregue, considerada algo simplista (Avery-Leaf, Cascardi, O’Leary, & Cano, 1997).

Concomitantemente, assistiu-se a uma progressão do foco de interesse na prevenção daviolência nas relações íntimas. Ainda que num primeiro momento se tenha privilegiadoessencialmente as mulheres casadas ou a viver em união de facto com os agressores;posteriormente, também se passaram a incluir nos esforços preventivos, as mulheres separadas oudivorciadas. Mais recentemente, começou a considerar-se as relações amorosas juvenis e asrelações entre pessoas do mesmo género (Pleck, 1987, citado por Hickman, Jaycox, & Aranoff,2004). Neste contexto, alguns autores (e.g., Wolfe, Wekerle, & Scott, 1996), sustentam que muitosdos primeiros programas dirigidos a adolescentes para prevenir a violência nas relações íntimasjuvenis, resultaram essencialmente de uma adaptação de esforços anteriormente dirigidos àpopulação adulta, quer pelos conteúdos e dinâmicas utilizadas, quer pelos instrumentosseleccionados para efectuar a avaliação.

As primeiras referências aos programas de prevenção da violência nas relações íntimas juvenissurgem na década de 90 e, desde então, assistimos a uma proliferação do investimento científicointernacional nesta área. De uma forma global, estes programas visam consciencializar a populaçãojuvenil acerca da gravidade e do impacto da violência e promover comportamentos não-violentosnas relações íntimas, procurando diminuir a probabilidade de os jovens se tornarem, futuramente,ofensores ou vítimas (Suderman, Jaffe, & Hastings, 1995).

O percurso dos programas de prevenção neste domínio não parece, segundo Foshee e Reyes(2009), afastar-se dos esforços preventivos desenvolvidos no combate a outro tipo decomportamentos (e.g., prevenção de comportamentos sexuais de risco). Inicialmente focalizadosna intervenção individual, parece hoje haver uma maior preocupação na inclusão do contextosocial e ambiental dos indivíduos, em especial da família e da comunidade, uma vez que oscomportamentos positivos ou negativos poderão ter lugar nestes diferentes contextos (Burt, 2002).Por outro lado, percebida a co-ocorrência de problemas de comportamento persiste agora apreocupação de dirigir a intervenção não apenas para um factor ou exclusivamente para a reduçãodos riscos mas, fundamentalmente, para a promoção de factores protectores e do desenvolvimentosaudável (Catalano, Hawkins, Berglund, Pollard, & Arthur, 2002).

Uma revisão recente dos estudos internacionais nesta área (Saavedra & Machado, no prelo)identificou e analisou catorze programas de prevenção primária nesta área, verificando-se que osobjectivos principais envolvem essencialmente: a promoção de conhecimento acerca da temática,

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através da abordagem das suas causas, dinâmicas e/ou impacto; o desafio de atitudes ou crenças;e a promoção de competências associadas a comportamentos prossociais ou de resolução deconflitos e problemas.

Uma outra conclusão, decorrente da supracitada revisão bibliográfica, foi de que a maioria dosprogramas de prevenção desenvolvidos até ao momento neste domínio é implementada emcontexto escolar, sobretudo em sala de aula, dirigidos a adolescentes em idade escolar e com umaduração que pode variar, aproximadamente, entre uma a vinte sessões. O que parece evidente éque, enquanto alguns dos esforços desenvolvidos, pela sua duração e profundidade dos temas,podem, de facto, ser enquadrados enquanto esforços de prevenção, entre os quais salientamos oSkills for Violence Free Relationships, Youth Relationships Project, Safe Dates e o The Fourth R(e os quais explicitaremos sucintamente de seguida, para melhor compreender o seu âmbito deactuação), a verdade é que outros, pela sua reduzida duração, parecem manter um formato maisassociado a estratégias de consciencialização acerca dos fenómenos, permanecendo algumasdúvidas sobre a sua caracterização enquanto programas de prevenção (e.g., MacGowan, 1997;Programa STOP).

O Youth Relationships Project consistiu numa intervenção de grupo, dinamizada por umaparelha mista de facilitadores e dirigida a adolescentes com história passada de mau-trato. Aintervenção processou-se ao longo de dezoito sessões, tendo cada sessão a duração de 120 minutos.Este programa teve por objectivos específicos: (i) aumentar o conhecimento dos jovens acercadas dinâmicas de abuso nos relacionamentos de namoro e relações de proximidade; (ii) promovero desenvolvimento de competências de comunicação e resolução de problemas; (iii) aumentar onível de consciência acerca dos estereótipos de género que contribuem para a ocorrência deviolência e acerca do impacto que a violência poderá ter e, (iv) desenvolver competências deprocura de ajuda. Os resultados apontaram para uma diminuição a longo-prazo dos níveis deperpetração física e de vitimação emocional ou através da utilização de comportamentosameaçadores (Wolfe, Wekerle, Scott, Straatmen, Grasley, & Reitzel-Jaffe, 2003).

O Safe Dates, ainda em implementação e avaliação, tem como objectivo central a prevençãoda incidência e a eliminação de situações de vitimação e perpetração nos relacionamentosamorosos juvenis. Esta intervenção dirigida a alunos que frequentam o 8º e 9º anos de escolaridadeé desenvolvida em contexto sala de aula, composta por um currículo de dez sessões, um concursode cartazes e por uma curta sessão de teatro. Os alunos envolvidos nesta intervenção apresentarammenores níveis de perpetração de diferentes tipos de violência (psicológica, violência físicamoderada e de violência sexual) e menores níveis de vitimação física moderada a longo prazo,registando-se ainda mudanças ao nível da aceitação da violência nos relacionamentos amorosos(Foshee & Reyes, 2009).

Por fim, o The Fourth R, que mais adiante abordamos na versão adaptada para o contextoportuguês – o 4d –, é também implementado em contexto escolar, dispondo actualmente de umadiversidade de materiais de prevenção para destinatários com diferentes características e faixasetárias. É um programa curricular de prevenção universal de comportamentos de risco e promoçãode comportamentos saudáveis, implementado em contexto de sala de aula, na disciplina deEducação para a Saúde, por professores com formação específica nas dinâmicas incluídas noprograma. Tem por objectivos: (i) promover relacionamentos saudáveis e prevenircomportamentos de violência; (ii) comportamentos sexuais de risco; e (iii) consumo e abuso desubstâncias. Uma noção fundamental que subjaz à metodologia desenvolvida é de que, uma dasmelhores formas de reduzir o risco durante a adolescência é ajudar os adolescentes a estabelecerrelacionamentos saudáveis. Este programa tem demonstrado a sua eficácia na modificação positivados conhecimentos, das atitudes e dos comportamentos dos adolescentes (Wolfe et al., 2003).

O trabalho de revisão de literatura que temos vindo a referenciar (Saavedra & Machado, noprelo), efectuou ainda um levantamento dos programas de prevenção existentes no contexto

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nacional, apurando-se que os esforços preventivos neste domínio são bastantes restritos, sobretudotendo em conta o número de entidades e serviços que se dedicam à intervenção na violênciadoméstica/íntima. Num universo de oitenta e três serviços referidos no Guia de Recursos na Áreada Violência Doméstica (Estrutura de Missão contra a Violência Doméstica, 2006) como sendoEstruturas de Atendimento Especializado da Rede Nacional de Atendimento para Vítimas deViolência Doméstica, apenas se registam seis iniciativas de prevenção da violência na intimidadejuvenil (ibidem).

Apesar desta escassez de acções, os dados obtidos a partir deste levantamento corroboramalgumas das reflexões internacionais neste domínio (e.g., esforços de curta duração, em contextoescolar, com problemas ao nível da avaliação). Acresce ainda o facto de os esforços de prevençãoem Portugal ficarem essencialmente a cargo das ONG’s, o que implica que a sua execução dependade financiamentos extraordinários, tornando estas iniciativas algo de pontual. Em efeito, e porquea maioria dos resultados integram apenas o espólio das instituições, não convergem parapublicação ou a disseminação dos mesmos (Saavedra & Machado, no prelo).

Não obstante, e decorrente do maior e crescente investimento científico no estudo desta temáticae consequentemente, da maior consciencialização social para as dinâmicas violentas e do impactoda violência nas relações íntimas, começam a surgir entre nós algumas propostas de prevençãoprimária da violência das relações de intimidade juvenil, como é o caso do Projecto Iuno II e oProjecto 4D.

O Projecto IUNO II – sensibilização e informação sobre violência doméstica e sexual foipromovido pela Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) e aprovado pela Comissãopara a Cidadania e Igualdade de Género (CIG)1. Este programa foi implementado em contextoescolar (entre 2005 e 2006), com três grandes objectivos de intervenção: (i) criar um espaço quepermitisse a sensibilização e a informação acerca de questões relacionadas com a violência física,psicológica e sexual nos relacionamentos amorosos; (ii) estimular os adolescentes na procura evalorização das suas competências e aptidões nos domínios pessoal e comportamental,promovendo uma atitude responsável de minimização dos fenómenos referidos; e (iii) implementare testar a eficácia de uma intervenção desta natureza ao nível das atitudes e comportamentos dosalunos (Saavedra & Machado, no prelo).

Ainda que não tenha sido confirmado o seu impacto nas estratégias de resolução de conflitosutilizadas, este modelo de intervenção, de curta duração, teve um impacto positivo na diminuiçãodas atitudes de legitimação da violência nos relacionamentos amorosos (ibidem).

O 4d2 – Prevenção integrada em contexto escolar é um programa curricular, de prevençãouniversal, dirigido especificamente a alunos do 9º ano de escolaridade. Tendo por princípios basea promoção de comportamentos saudáveis e a prevenção de comportamentos de risco, contemplouquatro dimensões: (i) relacionamentos íntimos juvenis e entre pares; (ii) comportamentos sexuaisde risco; (iii) consumo e abuso de substâncias e (iv) igualdade de género.

Embora ainda não existam dados conclusivos acerca da eficácia da implementação desteprograma no contexto português3, o programa original com génese no Canadá tem demonstrado

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1 No âmbito Programa Operacional Emprego, Formação e Desenvolvimento Social (POEFDS) – Medida 4.4.Tipologia de Intervenção 4.4.3.1 Pequena Subvenção às ONG.

2 Este programa é uma tradução e adaptação autorizada do The Fourth R (© 2001 David A. Wolfe, Ph.D), umprojecto desenvolvido pelo Centre for Prevention Science, coordenado pelo Dr. David Wolfe, sendo umprojecto que se destacou na literatura pela sua abordagem integrada da prevenção, pelo rigor metodológicoe pelos resultados promissores que tem apresentado ao nível da mudança de conhecimentos, atitudes,comportamentos e aprendizagem de novas competências.

3 Em Portugal, durante os anos lectivos 2008/2009 e 2009/2010, a Associação Portuguesa de Apoio à Vítimaestá a realizar a sua implementação piloto e respectiva avaliação da eficácia.

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a sua eficácia ao nível do aumento de conhecimento sobre as temáticas e recursos da comunidadee ao nível da modificação atitudinal e comportamental (Wolfe et al., 2003), antevendo-se, destemodo, os seus potenciais efeitos positivos também em território nacional.

Este programa de intervenção tem vindo a suscitar enorme interesse e relevância na área,sobretudo pelas especificidades que comporta, destacando-se: (i) o reconhecimento de que a escolaé também um espaço de aprendizagem de aptidões, no qual deve ser possível aprender e experimentarcompetências de relacionamento positivas; (ii) a adopção de uma intervenção que seja efectuada deforma holística e integrada e não isolada; (iii) o reconhecimento da adolescência como um períodofundamental para fomentar iniciativas preventivas; (iv) a importância de um treino de competênciassistemático e específico; (v) o facto de, ao privilegiar uma lógica de preven ção universal, curricular,e sendo implementado pelos professores, que recebem formação e ficam na posse de materiais deapoio estruturados, permitir a continuidade da acção, mesmo depois do financiamento do projectono qual está inserido terminar, algo até agora não alcançado nas experi ências de prevenção desen -volvidas em Portugal; (vi) por fim, a selecção de uma metodo logia de avaliação rigorosa, capaz defazer face às questões relativas à eficácia da intervenção nos mais variados domínios (e.g., conheci -mentos, atitudes, intenções de comportamento e aprendizagem de novas competências), com impli -cações positivas na qualidade e futura replicação destes esforços (Saavedra & Machado, no prelo).

Em suma e não obstante a proliferação de dinâmicas de acção mais proactivas, sobretudo atravésdo desenvolvimento de programas ou projectos de prevenção primária ou universal, urge continuara apostar em iniciativas preventivas, incidindo-se de forma proporcional na aferição da eficáciadestes esforços.

PROGRAMAS DE PREVENÇÃO DA VIOLÊNCIA NAS RELAÇÕES DE INTIMIDADE JUVENIL: ORIENTAÇÕES GERAIS

Tomando como ponto de partida o público-alvo a integrar nestes programas, e atendendo àsevidências empíricas que atestam que a violência na intimidade juvenil poderá ter início em idadesprecoces (Machado, Caridade, & Martins, 2010), parece-nos importante que este tipo de acçõesabarque diversas faixas etárias, não se restringindo à população universitária. Sabe-se, aliás, quea adolescência, para além dos desafios identitários que apresenta, fomenta a construção de relaçõesfora do contexto familiar, sendo um período crítico para o estabelecimento de padrões nosrelacionamentos amorosos e eventual exposição ao risco. Não obstante, o facto de em algunsestudos (Machado et al., 2010), os participantes mais velhos, inseridos no ensino universitário, seapresentarem como os mais representados entre os agressores, fundamenta a necessidade de nãodescurar este grupo em termos de prevenção.

Para serem eficazes, para além da intervenção directa com os jovens, estes esforços preventivosda violência nas relações íntimas deverão procurar abarcar outros intervenientes no problema, nãosó os agentes educativos (pais, professores, funcionários), mas também, e sobretudo, os pares.Existem já, no plano internacional, exemplos de intervenção deste tipo (e.g., Mathews, 2000) e quecomeçam já a estender-se à realidade portuguesa. De facto, também ao nível da literatura nacionalexistem algumas propostas neste sentido, e mais especificamente, as intervenções conduzidas porpares sobretudo na prevenção de comportamentos sexuais de risco (Carinhas, 2009) e da violênciade género (Escola Superior de Enfermagem de Coimbra, 2009). Tem sido fundamentado, destemodo, a necessidade de se encarar os jovens como agentes pro-activos da mudança, capazes deincitarem mudanças atitudinais e promoverem competências relacionais saudáveis (Coelho &Machado, 2010). Efectivamente, a investigação (Caridade, 2012) tem vindo a documentar o papeldeterminante que os pares desempenham na vida dos adolescentes, sendo pelos próprios (sobretudo

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pelos rapazes) percebidos como potenciais modelos e fontes de reforço da violência. São também,as fontes de eleição dos jovens para partilharem as suas experiências abusivas amorosas. Assimsendo, a promoção de acções de formação junto dos pares, professores e outros profissionais queestão em contacto com estes adolescentes, são fundamentais para que estes melhor os possamajudar a lidar com a experiência de vitimação (Ashley & Foshee, 2005). No trabalho de prevençãocom estes agentes parece-nos importante atender às seguintes componentes: a importância detransmitirem, junto dos jovens, a ideia de que a violência não é, em caso algum, aceitável e nãodeve ser tolerada; a sensibilização para que incentivem as vítimas a procurar ajuda e a denunciara experiência abusiva; e a disponibilização de informação sobre os recursos disponíveis de apoioàs vítimas (Molidor & Tolman, 1998).

Atendendo às diferenças de género verificadas no que concerne ao pedido de ajuda, algunsautores sugerem que poderia também ser importante promover programas diferenciados pararapazes e raparigas, no sentido de trabalhar as suas percepções acerca da importância de solicitarapoio para a violência na intimidade (Black & Weisy, 2003).

Para além de um maior investimento na formação dos pares e agentes educativos, seriaigualmente importante a criação de espaços, no contexto escolar, que possibilitassem a discussãoe reflexão sobre o tema das relações amorosas juvenis, promovendo de modo transversal (e.g., noâmbito de diferentes disciplinas) modelos de interacção positivos. Uma outra necessidade que seafigura extremamente relevante, envolve facultar, no âmbito dos serviços escolares existentes(e.g., unidades de orientação escolar), um apoio especializado para aqueles que se confrontemcom estas realidades no seu quotidiano e não tenham outros adultos ou pares a quem recorrer.Compete também às escolas consolidar práticas de promoção para a saúde, recorrendo para issoas entidades exteriores às escolas como parceiras e não como recursos únicos para se substituir àssuas funções, com vista a um trabalho de interdependência.

Em termos dos conteúdos a ser trabalhados nestes programas de prevenção destaca-se desdelogo a necessidade de estes enformar uma perspectiva desenvolvimental e ecológica, dandoparticular atenção ao contexto social e cultural em que os jovens se encontram inseridos, devendoabarcar várias dimensões. Refira-se, aliás, que alguns autores (Connolly & Josephson, 2007)defendem que os programas de prevenção serão melhor sucedidos se atenderem aos diferentesníveis/áreas (e.g., individual, familiar, social) que poderão colocar os jovens perante uma situaçãode risco de agressão amorosa.

Num plano mais individual e interpessoal, seria útil o desenvolvimento e a implementação deprogramas integrados de promoção de relacionamentos saudáveis, trabalhando competências decomunicação e de gestão de conflitos (e.g., gestão da raiva, assertividade, comunicação positiva)(O’Keefe, 2005). Atendendo a que o consumo de álcool (pela vítima e pelo ofensor) tem sidoconsensualmente associado a um maior risco de agressão sexual, é igualmente importante que osesforços preventivos procurem contemplar esta matéria, usualmente esquecida nestes programas.

Por outro lado, estes programas devem também discutir directamente a questão da violência,ajudando os jovens a identificar comportamentos abusivos e a compreender as dinâmicas deintimidação, poder e controlo, que poderão estar presentes nos relacionamentos amorosos. A estenível, é necessário que tais programas contemplem as diferentes formas de violência, ao invés dausual centração na violência física e nas suas formas mais severas. Tomando em consideração osestudos que sugerem que o abuso emocional constitui um percursor de outras formas de violência(White, Merril, & Koss, 2001) e constatação de que a violência psicológica ou as formas deviolência menor são relativamente toleradas pelos jovens (Machado et al., 2010), incidir sobreesta forma de abuso torna-se essencial.

Por outro lado, e atendendo aos dados preocupantes em torno da violência sexual e que ainvestigação documenta (Caridade, 2012) (e.g., a “negação” da violência sexual; a minimização dasformas “menores” deste tipo de abuso; a culpabilização da vítima, sobretudo quando esta adopta

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comportamentos que se afastam do padrão convencional, como por já ter iniciado a sua actividadesexual), parece-nos fundamental integrar nestes programas a discussão deste tópico, assim como dascaracterísticas de uma sexualidade positiva, promovendo a autonomia e capacidade de decisão dosjovens também nesta matéria (Petersen, Bhana, & McKay, 2005; Serquino-Ramiro, 2005).

Para optimizar e facilitar a abordagem dos diferentes temas poderia ser útil, por exemplo,recorrer-se às áreas curriculares não disciplinares, como a área de projecto ou formação cívica ou,se quisermos algo mais ambicioso, porque não a implementação de uma disciplina própria eautónoma, dirigida por profissionais com formação específica (e.g., psicólogos, professores comformação específica), dispondo de um tempo lectivo próprio e de um programa específico.

É igualmente importante que estes programas procurem promover, tanto mudanças atitudinaiscomo comportamentais. Efectivamente, tal como apurado em alguns estudos nacionais (Machadoet al., 2003; Machado et al., 2010) e à semelhança de outros internacionais (e.g., Foshee, Linder,MacDougall, Bangdiwala, 2001; O’Keefe, 1997; Riggs & O’Leary, 1996), as atitudes constituemimportantes preditores da agressão amorosa. No entanto, a acção ao nível atitudinal não basta,sabendo-se que a reprovação da violência, por si só, é insuficiente para a sua erradicação. Torna-se, pois, necessário agir activamente ao nível das competências dos jovens, e não só das suascognições, medindo o impacto dos programas também a estes dois níveis. Esta abordagem podenão ser tão simples como a usual avaliação da eficácia dos programas apenas através da mudançaatitidinal (Matos, Machado, Caridade, & Silva, 2006) mas é, na nossa opinião, fundamental.

Por outro lado, entendemos que o fenómeno da violência na intimidade juvenil não deve serconceptualizado como apenas dependente das competências individuais e relacionais dos sujeitos.Apesar de alguns estudos nacionais (e.g., Machado et al., 2003; Machado et al., 2010) einternacionais (e.g., Straus, 2004) apontarem para o esbatimento das diferenças de género naagressão íntima juvenil (ou mesmo sinalizarem alguma inversão relativamente ao padrãotradicional), tem sido também demonstrado (e.g., Caridade, 2012) que subsistem diferençassignificativas na forma como rapazes e raparigas compreendem a violência e que muitasrepresentações tradicionais do género e das relações amorosas continuam presentes entre os maisnovos. Desta forma, a discussão em torno do poder e da igualdade de género nas relações amorosascontinua a parecer-nos fundamental.

Ainda no que concerne ao género, é necessário que os jovens percebam que a violência éinaceitável, independentemente de quem é o agressor ou do tipo de violência usada. Atendendoao facto de o género feminino surgir em alguns estudos (e.g., Machado et al., 2010) como agenteperpetrador de violência, os programas de prevenção deverão reconhecer a mulher como potencialagressora no contexto da relação amorosa, não a conceptualizando apenas como vítima. Adenegação ou mesmo minimização da violência feminina poderá ter implicações perniciosas naprevenção desta forma de violência, na medida em que a legitimam. Sendo assim, importadesmistificar a ideia de que a violência feminina é menos grave ou mais benévola do que apraticada pelos rapazes. A agressão interpessoal é um “problema humano” e um problema socialgrave, configurando-se, dado o seu impacto nas vítimas e agressores, como um problema globalde saúde pública (WHO, 2002). Torna-se pois necessário que rapazes e raparigas sejam educadosno sentido de monitorizarem o seu comportamento e adoptarem outras formas de resolução deconflitos que não envolvam o recurso a tácticas maltratantes.

Ao nível familiar, e atendendo à grande consensualidade entre os estudos que documentam quepresenciar o conflito interparental pode representar um factor de risco para agressões subsequentes,inclusive agressão amorosa, alguns autores sugerem a importância de desenvolver programasespecíficos, numa lógica de prevenção indicada, para os jovens com este tipo de experiênciasprecoces, ainda que isto não signifique que a prevenção geral deste problema deva ser descurada.Por outro lado, a cooperação entre a escola e a família deverá ser algo a atender e a privilegiarnestes programas.

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Outra dimensão da prevenção da violência íntima, no plano mais social e institucional, passa pelodesenvolvimento de outras políticas governamentais, comunitárias e organizacionais que promovamrelações de género paritárias, que estimulem a cooperação entre homens e mulheres, que promovama autonomia e a resiliência de cada um, bem como a resolução não violenta e eficaz dos conflitos.A promoção da funcionalidade do sistema de suporte, que não está isento dos discursos deminimização da violência e culpabilização das vítimas, conforme o verificado pelo estudo portuguêsque temos vindo a referenciar (Machado et al., 2010), é também fundamental neste âmbito.

Só pela acção integrada a estes diferentes níveis será possível almejar a erradicação da violênciana intimidade juvenil e contribuir para que a esfera amorosa seja também um território onde sãoplenamente reconhecidos os direitos humanos (Levesque, 2001).

CONCLUSÃO: DOS DESAFIOS FUTUROS NA PREVENÇÃO DA VIOLÊNCIA

A literatura em matéria de prevenção da violência nas relações de intimidade é unânime aoidentificar a adolescência como um período favorável ao investimento em esforços preventivos.Tem sido sustentado que o facto de os padrões de agressividade não estarem ainda estabelecidos,poderá significar uma janela de oportunidade no sentido de intervir reforçando comportamentosinterpessoais preferenciais (Wekerle & Wolfe, 1999). Tal justifica, deste modo, a maior incidêncianas estratégias de prevenção no namoro, uma realidade relacional com mais significado para osadolescentes do que a violência doméstica. A promoção de competências para o estabelecimentode relacionamentos saudáveis ou para identificação de comportamentos abusivos no seunamorado/a, afigura-se como sendo mais pertinente em detrimento do debate em torno de casosde violência doméstica, que é uma realidade mais próxima dos relacionamentos adultos. Osprogramas dirigidos a adolescentes não podem, pois, ser a adaptação de esforços utilizados juntoda população adulta.

Igualmente crucial é a necessidade de os esforços de prevenção desenvolvidos em Portugalevoluírem para dinâmicas de intervenção mais continuadas no tempo, de forma a poderem afastar--se de lógicas de sensibilização, informação e consciencialização do fenómeno da violência naintimidade, uma vez que os dados dos estudos internacionais demonstram que programas longose mais focalizados no treino de competências apresentam resultados mais promissores ao nível dasmudanças esperadas (Saavedra & Machado, no prelo).

Outro elemento que interessa reflectir refere-se aos profissionais responsáveis pela implemen -tação. O panorama internacional aponta para um progressivo envolvimento dos professores naintervenção e um menor envolvimento dos técnicos dos projectos ou de outro tipo de profissionais,o que se torna compreensível, atendendo a que a intervenção tem lugar, não raras vezes, no contextoescolar. A possibilidade de formar os professores, dotando-os de competências para a utilizaçãode dinâmicas de prevenção deverá ser um elemento de mudança a ponderar nos projectos imple -mentados em Portugal, uma vez que este tem sido um dos factores que mais tem condicionado asustentabilidade das intervenções. A dependência exclusiva de técnicos externos às escolas(provenientes de ONG’s, associações ou universidades) para assegurar a implementação, podelimitar ou mesmo invalidar as oportunidades de replicação das experiências, nomeadamente, seestas dependem – e os dados recolhidos apontam para esta realidade (Saavedra & Machado, noprelo) – de financiamentos extraordinários aos orçamentos das entidades responsáveis. Este factointroduz limites óbvios à sustentabilidade dos esforços desenvolvidos.

Conforme o exposto ao longo deste artigo e não obstante se assista a um empenho por parte dacomunidade científica e mesmo das entidades governamentais em matéria de prevenção, torna-seainda premente redobrar os esforços preventivos, incutindo-lhes maior rigor. O desafio futuro maior

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e mais urgente em matéria de prevenção envolve, em nosso entender, a avaliação da eficácia dosprogramas de prevenção, e mais especificamente, procurando-se perceber os seus efeitos noscomportamentos e atitudes dos jovens. Efectivamente, neste domínio, a realidade portuguesa tambémtem acompanhado a realidade internacional, verificando-se grande desproporcionalidade entre onúmero de programas desenvolvidos, e os que são efectivamente avaliados. Apesar de os esforçosrealizados por alguns projectos para sistematizar a avaliação, muitas vezes a sua validade torna-sequestionável em virtude das questões metodológicas adoptadas (e.g., com ou sem grupo de controlo,timing de aplicação do follow-up, domínios de impacto avaliados) e das inadequações dosinstrumentos à população a que se destinam (Avery-Leaf & Cascardi, 2002). Torna-se, pois,importante atender a estes pressupostos no planeamento de futuras intervenções. Em Portugal, umadas opções para ultrapassar as lacunas atrás apontadas poderá assentar na colaboração com estruturasou serviços idóneos, como universidades ou entidades externas, que possam assumir este papel.

Por fim, e com vista à disseminação dos resultados das intervenções realizadas importa que odesenho da intervenção (e.g., conteúdos, materiais e metodologia) e da avaliação sejam efectuadose descritos de forma precisa e minuciosa, permitindo retirar conclusões acerca da sua eficácia. Sóassim será possível evitar a reprodução de erros e permitir a replicação de boas práticas.

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The prevention of violence in intimate relationships has for long been neglected under the interventionand research on this topic. Despite the delay in the proliferation of these efforts, the internationalscientific world recently presented several model prevention programs directed to the youth populationas a primary prevention scheme, establishing promising results. With this article, we intend to analyzethe state of the art in terms of international and national practices in the prevention of violence inintimate relationships. We also intend to, based on scientific knowledge in this area, make some generalrecommendations and, more specifically, recommendations on the components to focus on thedevelopment of prevention programs. Suggestions for future challenges in the field of prevention ofviolence in intimate relationships will also be discussed.

Key-words: Intimate violence, Juveniles, Prevention.

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Análise Psicológica (2012), XXX (1-2): 143-159

Repertórios interpretativos sobre o amor e as relações de intimidade de

mulheres vítimas de violência: Amar e ser amado violentamente?

Ana Rita Dias* / Carla Machado* / Rui Abrunhosa Gonçalves* / Celina Manita**

*Escola de Psicologia, Universidade do Minho; **Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação,Universidade do Porto

O presente estudo procura compreender como as mulheres vítimas de violência falam sobre o amor e asrelações de intimidade e como experienciam e significam o fenómeno da violência sofrida. Explora-setambém o recurso à violência por parte destas mulheres, em que contextos o fazem e como significama violência perpetrada. O estudo envolve 12 mulheres vítimas de violência, de diferentes grupos etáriose com diferentes trajectórias de vida, com as quais se conduziu uma entrevista individual acerca dahistória de amor da sua vida. Conclui-se que tanto os relatos de vitimação como os de perpetração seinscrevem em discursos socioculturais mais amplos sobre o amor e as relações de intimidade – quesustentam a vitimação sofrida no feminino e limitam a agressividade feminina. Concluímos que aviolência feminina assume características idiossincráticas e tem implicações práticas diferentes,relacionadas com as desigualdades e assimetria de género, não havendo similaridade na violênciaentre homens e mulheres na intimidade. A agressividade feminina surge como estratégia para lidar coma adversidade, no sentido de conseguir algum controlo sobre a relação e o sentido de si próprias,revelando a capacidade de luta, sobrevivência e resiliência destas mulheres.

Palavras-chave: Agressividade feminina, Amor, Discursos socio-culturais, Violência na intimidade,Vitimação feminina.

INTRODUÇÃO

O amor e a violência na intimidade têm sido maioritariamente abordados – à excepção dostrabalhos desenvolvidos no âmbito das teorias da vinculação (e.g., Allison, Bartholomew,Mayseless, & Dutton, 2008) – como fenómenos distintos ou reduzidos a uma mera associaçãocontingente. Usualmente, a violência surge como contingência/consequência associada adeterminadas características, processos ou dinâmicas subjacentes ao fenómeno do amor (e.g.,Riggs & O’Leary, 1989) ou, quando muito, o amor surge como mais uma variável que pode terinfluência na violência (e.g., Black, Tolman, Callahan, Saunders, & Weisz, 2008). Por exemplo,o amor tem sido referido como um factor de risco para o stalking (Spitzberg & Cupach, 2007) epara a violência no namoro, embora com resultados empíricos inconsistentes no que se refere aeste último domínio (Riggs & O’Leary, 1989). Por outro lado, o amor tem também sido analisado

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A correspondência relativa a este artigo deverá ser enviada para: Ana Rita Dias, Escola de Psicologia, Campusde Gualtar, 4710-057 Braga. E-mail: [email protected]

Este texto foi elaborado no âmbito do Projecto “Violência nas Relações Juvenis de Intimidade” financiadopela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (PTDC/PSI/65852/2006), coordenado por Carla Machado.

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como factor explicativo das reacções das vítimas após a ocorrência de violência, nomeadamentea sua manutenção na relação ou não denúncia do problema (Black e cols., 2008).

Numa leitura construcionista, são os estudos culturais – que analisam os discursos e práticassobre o amor em contextos culturais/étnicos específicos – e as abordagens narrativas – sobretudoestudos qualitativos com vítimas ou agressores, centrados nas suas vivências e no significado quelhes atribuem – que mais têm procurado analisar a relação específica entre a violência e a formacomo cada sociedade nos diz o que “é” ou “deve ser” o amor.

No âmbito dos estudos culturais, destacamos Hatfiel e Rapson (2005) que procederam a umarevisão dos estudos que analisam o amor e as suas expressões mais intensas e/ou violentas (ciúme,rejeição, amor não correspondido) em várias culturas, concluindo que é a cultura que determinao que é ou não perturbador numa relação e o que desencadeia reacções negativas mais intensas,veiculando e modelando a adopção de práticas relacionais abusivas ou violentas.

Por outro lado, apesar dos contributos dos estudos culturais, são sobretudo as abordagensnarrativas (nesta área, maioritariamente de enfoque feminista) as que têm explorado a dimensãoconstruída e cultural da articulação do amor e da violência, através de um conjunto de estudos quesugerem que as representações acerca do amor e das relações amorosas podem influenciar aperpetração da violência e constituir um factor que mantém as vítimas nas relações abusivas(Towns & Adams, 2000).

Por exemplo, Wood (2001), num estudo com mulheres vítimas, identifica duas narrativasromânticas: (i) o conto de fadas do príncipe encantado que “venera” a princesa, sustentandocrenças que legitimam a violência (e.g., que o melhor da relação supera o pior, que a mulher podeparar a violência se se aproximar do estereótipo da mulher ideal); e (ii) o romance negro, queretrata o homem como naturalmente controlador e descreve as relações como tipicamentedolorosas para a mulher, naturalizando o seu sofrimento. Estas histórias prototípicas prescrevemscripts genderizados que sustentam a violência do homem e a tolerância/passividade da mulher,contribuindo para que as mulheres considerem as relações violentas como toleráveis ou preferíveisa não ter qualquer relação. Num estudo análogo, Towns e Adams (2000) identificaram construçõesculturalmente enraizadas do “amor-perfeito” (por exemplo, o amor como forma de alcançar afelicidade, o poder do amor da mulher transformar o marido violento) que contribuemsignificativamente para manter e silenciar as mulheres em situações abusivas.

No entanto, é nosso entendimento que estas abordagens apresentam algum reducionismoanalítico, ao utilizarem na análise amor/violência como grelha teórica quase exclusiva o discursogenderizado tradicional, posicionando a mulher como vítima quer do seu parceiro, quer dasociedade em geral. Embora esta descrição represente, certamente, uma das faces do problema, odesafio é, a nosso ver, reconhecer a variabilidade do fenómeno da experiência da vitimação, demodo a não negligenciar na vítima a sua capacidade de agência, resiliência e auto-superação.Assim, procuramos no presente estudo explorar outras perspectivas, nomeadamente, aagressividade feminina e o recurso à violência por parte da mulher no contexto da intimidade.

A investigação sobre a violência perpetrada pela mulher na intimidade é ainda diminuta mas,através da revisão da literatura (cf. Dasgupta, 2002), verifica-se que a análise do fenómeno temincidido bastante no debate e discussão da simetria versus neutralidade de género no fenómeno.Procedemos a uma breve descrição das linhas de investigação sobre o fenómeno, defendendo,uma vez mais, a necessidade de assumir, também aqui, uma perspectiva sociocultural, sem cair noreducionismo analítico já referido.

Através da análise da literatura e dos vários estudos desenvolvidos, podemos identificar 4principais linhas de investigação: (i) a que defende a neutralidade ou a simetria de género; (ii) aque postula a violência da mulher como auto-defesa ou acção de retaliação; (iii) a ecológica, quedestaca o enquadramento geral e as múltiplas causas da violência da mulher; (iv) e a cultural, que

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analisa a forma como os discursos socioculturais constrangem a identidade da mulher e a violênciafeminina no contexto da intimidade (e.g., Gilbert, 2002).

(i) A linha que defende a neutralidade ou a simetria de género assenta essencialmente emmetodologias quantitativas que indicam níveis similares de violência entre homens emulheres na intimidade. Os defensores desta perspectiva desafiam as teorias feministas,destacando, que tanto a mulher como o homem, recorrem de forma similar à violência,propondo uma análise neutra de género na análise da violência na intimidade. (e.g., seeCook, 1997; Dutton, 1994). No entanto, estes estudos têm sido alvo de críticas,nomeadamente ao nível metodológico, dado que a maioria se baseia no Conflict TacticsScale (CTS) (Currie, 1998). A discussão centrou-se na validade desta escala, tendo-lhesido apontadas várias limitações, nomeadamente a de que, ao basear-se num rankingordenado de tipos de abuso, negligencia o contexto, a interpretação e o impacto dos actosabusivos. Assim, a principal crítica reside no facto de a CTS se basear numa abordagemempirista que se limita a contabilizar a frequência do abuso, mas que nada nos refereacerca da etiologia ou natureza da violência conjugal (Anderson, 2005; Breines & Gordon,1983, citados por Currie, 1998).

(ii) A linha de investigação que remete para a violência feminina como auto-defesa ecomportamento de retaliação tem como base os pressupostos das teorias feministas, quesalientam que a violência é mais sofrida no feminino, tanto em termos de prevalênciacomo em termos de impacto e amplitude. Defendem que a violência na intimidade tem porbase diferenças genderizadas de poder e de estatuto no contexto das quais as dinâmicasviolentas têm como objectivo dominar a mulher através do uso de várias acções decontrolo e de coerção, tanto na esfera pública como na esfera privada, para manter osistema patriarcal actual (Dasgupta, 1999). Nesta linha, vários estudos indicam que asmulheres que usam violência física contra o parceiro são, elas próprias, vítimas deviolência e que agridem para parar ou escapar à violência dos parceiros (e.g., Barnett,Lee, & Thelen, 1997; Dasgupta, 1999; Miller, 2001; Straus, 1999), defendendo que ofenómeno está relacionado com a vitimação continuada de que as mulheres são alvo.

(iii) A linha de investigação ecológica e da multicausalidade – os autores que se situam nestalinha (e.g., Dasgupta, 2002) referem que limitar a compreensão da violência feminina àanálise dos seus motivos – como a auto-defesa ou a retaliação – é negligenciar acomplexidade do fenómeno e da vida da mulher. Assim, defendem a necessidade decompreender o enquadramento geral e de proceder à análise interactiva dos múltiplosfactores que podem concorrer para que a mulher adopte comportamentos violentos nocontexto da intimidade, desde um nível mais macro (que inclui valores e crenças culturais,estruturas sociais formais e informais, instituições, etc.), até a um nível mais micro(características mais imediatas do contexto onde a violência ocorre, dinâmica da relação)e individual (história desenvolvimental, características psicológicas da mulher).

Por exemplo, o estudo de Dasgupta (1999) apresenta uma grande variedade de factoresque podem levar a mulher a ser violenta na intimidade: reivindicar a perda de respeitopróprio, proteger os membros da família, manter a imagem de uma mulher forte, ohistorial das experiências de abuso (que pode ter influência na forma como a mulherpercepciona o perigo), a ausência de respostas adequadas por parte dos sistemas einstituições sociais (que cria o sentimento de impotência e desamparo, criando a percepçãode que não há outra forma de parar o abuso que não seja o recurso à violência). Conside -ramos, no entanto, que, apesar de esta linha já reconhecer o papel dos factores culturais

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e procurar integrá-los na sua análise, postula modelos causais bastante complexos e dedifícil operacionalização.

(iv) As abordagens culturais e narrativas – destacam a dimensão sociocultural e enfatizam aanálise crítica da dimensão histórica, cultural, social, económica e política do fenómenoda violência feminina. Ao introduzirem estas dimensões, conduziram também à adopçãode novas e diversificadas metodologias de análise, nomeadamente, o recurso às metodo -logias qualitativas. Assim, vários estudos procuram analisar a forma como os discursossocioculturais constrangem a identidade da mulher e a violência feminina no contexto daintimidade (e.g., Gilbert, 2002; Miller & Meloy, 2006; Pearson, 1997). De uma formaglobal, os resultados indicam que grande parte das mulheres agressoras é ou foi tambémvítima (Miller, 2001; Saunders, 2002) e enfatizam que a agressão feminina é vivenciadae experienciada de uma forma distinta da agressão masculina, com implicações práticasdiferentes (Gilbert, 2002; Miller & Meloy, 2006). Neste contexto, concluem que ofenómeno da violência feminina na intimidade tem um enquadramento social completa -mente diferente da agressão masculina, sendo desaprovada social e culturalmente porquecolide com as prescrições, expectativas e papéis historicamente atribuídos à mulher(passiva, submissa, não violenta) (idem).

Com base nesta análise, consideramos que a análise sociocultural do fenómeno daviolência na intimidade não pode ser negligenciada. Os discursos socioculturais sobre asrelações de intimidade, os seus actores e a violência têm implicações nas práticas relacio -nais, na medida em que constrangem o posicionamento e acções na relação. Assim, nãoé possível compreender a violência na intimidade sem proceder à análise crítica doenquadramento sociocultural da violência e, mais especificamente, sem considerar asrelações no contexto das quais a violência ocorre. Para uma melhor compreensão dofenómeno é necessário atender às histórias das mulheres que o vivenciam, analisandocriticamente a forma como constroem discursivamente a sua experiência e acções.

METODOLOGIA

Objectivos e questões de investigação

O presente estudo procura compreender a forma como as mulheres vítimas de violência falamsobre o amor e as relações de intimidade e como experienciam e significam o fenómeno daviolência – a sofrida e a perpetrada. Neste sentido, procuramos explorar como é que dão sentidoà violência no contexto da intimidade – identificar os repertórios interpretativos culturais sobre oamor e a intimidade que utilizam e de que forma tais repertórios constrangem a experiência daviolência nas relações de intimidade – nomeadamente, a experiência de vitimação e o uso deviolência por parte das próprias. A partir daqui, e numa perspectiva construcionista social,discutimos a necessidade da transformação social, analisando criticamente as grelhasinterpretativas sobre o amor e a violência em que as mulheres são socializadas, permitindo a suadesconstrução e a possibilidade de tomarem posições alternativas àquelas que as mantêm naexperiência de “ser amadas/amar violentamente”.

Para tal, procuramos dar resposta a três questões de investigação: (a) que repertórios interpre -tativos sobre o amor e as relações de intimidade são utilizados pelas mulheres vítimas de violênciaquando nos relatam a sua história? (b) a experiência da vitimação surge no seu discurso? Se sim,como é significada e de que forma os seus discursos sobre o amor e a intimidade constrangem a

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sua vivência?; e (c) o uso da violência por parte destas mulheres surge no seu discurso? Se sim,como é significada e de que forma os seus discursos sobre o amor e a intimidade constrangem asua vivência?

Por fim, discutem-se os discursos socioculturais mais alargados veiculados nas narrativas destasmulheres, as possíveis implicações destes discursos nas práticas relacionais e no posicionamentodas mulheres na relação e os possíveis constrangimentos à experiência da vitimação e daperpetração femininas que os discursos acarretam.

PARTICIPANTES

O grupo é constituído por doze mulheres vítimas de violência, relatada pelas próprias ousinalizadas pelo sistema judicial, cuja história relacional se caracteriza pela conflitualidadeconstante e vitimação física. Com o objectivo de obter uma amostra teoricamente relevante,procurou-se seleccionar mulheres com backgrounds diferentes, pelo que considerámos a variedadeao nível da faixa etária (jovens vs adultas), nível educacional e social, estado civil e permanência//saída da relação (ver Quadro 1). Nenhuma das participantes apresenta diagnóstico de psico -patologia ou deficiência mental, nem foi alvo de intervenção psicoterapêutica.

QUADRO 1

ParticipantesPermanência na

Casos Escolaridade Classe social Estado civil Idade relação violenta

1 12.º Ano Média/baixa União de facto 45 Sim2 4.º Ano Média/baixa Divorciada 43 Não3 4.º Ano Média Divorciada 29 Não4 4.º Ano Baixa Divorciada 40 Não5 12.º Ano Média Divorciada 32 Sim6 4.º Ano Média/Baixa Casada 52 Sim7 4.º Ano Média Divorciada 45 Não8 Doutoramento Média/Alta Solteira 30 Não9 12.º Ano Média/Baixa União de Facto 30 Sim10 1.º Ano (Univers.) Média/Alta Solteira 20 Sim11 2.º Ano (Univers.) Média Solteira 20 Sim12 11.º Ano Média/Baixa Solteira 17 Não

PROCEDIMENTOS

No presente estudo foram analisadas narrativas de mulheres sobre o amor, procurandocompreender como conceptualizam e atribuem sentido â conflitualidade e à violência no contextoda intimidade e das relações amorosas.

Com cada participante foi realizada uma entrevista semi-estruturada (“a história de amor dasua vida”), adaptada do guião da entrevista de McAdams (1995), The Life Story Interview. Apóso consentimento informado, advertindo para as possíveis consequências emocionais da situaçãode entrevista, foi pedido que identificassem e contassem a história de amor da sua vida, focandotodos os tópicos do guião (resumo e fases da história, momentos importantes, desafios, futuros

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possíveis, valores e crenças pessoais). Apesar desta estrutura prévia, as questões foram formuladasde forma a permitir que a narrativa fluísse de acordo com os interesses das participantes (e.g., “ eo que é que pensa sobre o que acabou de me contar?”; “como se sentiu face a isso?”), explorando-se os pensamentos, comportamentos, emoções e contextos situacionais dos relatos. Assim, apesarde se inquirirem todas as participantes sobre todos os tópicos do guião, a ordem e organização domaterial do material variou de entrevista para entrevista.

É de referir ainda que a temática da violência não foi inquirida directamente, de forma apodermos perceber se a violência era ou não espontaneamente abordada nas histórias. Nos casosem que a violência foi abordada, analisámos se referiam ou não o uso da violência por parte daspróprias contra os parceiros e, neste caso, como é que esta era significada e contextualizada. Oobjectivo foi o de compreender como é que as mulheres experienciavam, recordavam e falavamsobre a violência.

Todas as entrevistas foram conduzidas pela investigadora responsável do estudo, variando otempo de duração entre os quarenta e cinco minutos e as duas horas e meia. Foram gravadas etranscritas na íntegra, no sentido de preservar a integridade dos relatos, e todas as entrevistas foramanalisadas separadamente, codificando-se todo o seu conteúdo. Posteriormente, identificaram-seos diferentes temas abordados pelas participantes e focámos a nossa análise nos relatos referentesao amor e à violência (sofrida e/ou perpetrada) nas relações de intimidade.

Utilizou-se o NVivo 9.0 software (QSR, 2010) para organizar, codificar e analisar os dados,aplicando a abordagem da análise do discurso, como indicada por Potter e Wetherell (1987):

(i) O processo inicial de codificação foi feito indutivamente e a construção das categorias foidefinida e redefinida sistematicamente em cada entrevista, ao longo de todo o processode categorização;

(ii) Após a codificação inicial de todas as entrevistas, organizaram-se e agruparam-se ascodificações em “unidade de significado” que constituem os repertórios interpretativos,considerando como as participantes usam padrões partilhados de compreensão sobre oamor e a intimidade;

(iii) Paralelamente à identificação e descrição dos repertórios, procurou-se mostrar como osrepertórios são utilizados para fazer sentido e compreender a violência;

(iv) Recorreu-se a extractos dos relatos das participantes para ilustrar a análise e discussão,atendo aos padrões de significados usados nesses exemplos.

Dada a natureza e características do estudo, assume-me a natureza local e específica dos seusresultados, sem a ambição de os generalizar. Apesar de identificarmos a utilização de repertóriosinterpretativos específicos, sob determinadas formas e por determinadas participantes, tal nãosignifica que estes resultados sejam partilhados por todas as mulheres que possuam característicasidênticas.

ANÁLISE

A partir da análise das histórias narradas por cada participante, procuramos dar resposta àsnossas questões de investigação. Assim, para facilitar a leitura dos resultados, procederemos à suadescrição e discussão tendo por base as questões de partida.

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Que repertórios interpretativos sobre o amor e as relações de intimidade são utilizados pelasmulheres vítimas de violência quando nos relatam a sua história?

Nas entrevistas seleccionou-se todo o discurso das vítimas referente ao amor e às relações deintimidade, identificando-se cinco Repertórios Interpretativos: 45.89%1 do discurso sobre o amorremete para o Amor Romântico, 18.3% para o Amor Apaixonado, 18.39% para o AmorCompanheiro, 16.3% para o Amor Pragmático e 0.59% para o amor Game-Playing. Procedendoa uma análise global, verificamos que o repertório amor romântico é o mais utilizado pelas vítimas.

Repertório amor romântico. O Repertório amor romântico tende a surgir no início dasnarrativas, sendo o ponto de partida das histórias que as participantes nos relatam. Remete para o“script” tradicional, que associa o amor a uma relação duradoira e de compromisso (namoro ecasamento) e destaca-se a noção do amor eterno/verdadeiro ou a existência da pessoa certa (Caso7: ... eu só tive um amor na vida... para mim só há um amor na vida). É de notar que neste scriptse veicula a noção da turbulência/zangas iniciais e, ainda assim, existe uma extrema idealizaçãoda relação e do parceiro (Caso 11: foi um namoro que no início foi um bocado atribulado –começávamos, acabávamos. Agora estamos há 3 anos juntos e a coisa até agora tem corrido bem.Caso 12: ... foi aquele tempo em que não havia problemas, em que tudo era cor-de-rosa, tudoestava muito bonito, risinhos para ali, risinhos para aqui, risinhos para ali e ia sendo assim).

Este repertório inclui ainda duas metáforas:

(i) A metáfora do amor vencedor, aquele que é proibido ou não aceite socialmente mas cujosobstáculos, enfrentados em conjunto e com amor, serão ultrapassados (Caso 2: Até éinteressante haver problemas e ultrapassarmos juntos, unidos, ultrapassar os problemase a relação ficar mais forte... De poder dizer que houve problemas, que houve crises nocasamento e conseguir ultrapassar).

(ii) A metáfora do amor sacrifício, nomeadamente, a noção de abdicar e ceder por amor, emprol do companheiro e da relação (Caso 2: ... eu pensar mais nos outros do que em mim,aguentar tudo por pensar mais nele, no nosso casamento, do que em mim. Isso fez a relaçãodurar... aguentar tudo).

Paralelamente, uma construção discursiva presente no amor romântico e que constitui um sub--repertório deste é o amor desencantado, surgindo em todas as participantes (à excepção dasparticipantes jovens). Esta construção veicula a imagem do desencanto/desilusão dos ideais esonhos românticos, em que surge a noção do sofrimento e mal-estar psicológico face à frustraçãodos sonhos românticos (Caso 2: Mal-estar... uma ansiedade, um mal-estar que não conseguimosexplicar...) e a descrença no amor e nas relações (Caso 6: A gente casa, faz um sonho mas nadaacontece como nos sonhos. Tudo o que eu sonhei foi tudo por água abaixo, nada se realizou. Oamor da minha vida... olhe, morreu!). Como veremos na análise da experiência da violência, asparticipantes recorrem bastante a este sub-repertório para darem sentido à conflitualidade e àviolência.

Repertório amor companheiro. O repertório amor companheiro veicula a associação entre oamor e a amizade/companheirismo, defendendo como valores essenciais a sinceridade, a honesti -dade e a confiança (Caso 5: amor é o companheirismo, amizade, inter-ajuda; Caso 12: O amoré isso: compreensão, sinceridade, amizade, carinho.). O respeito mútuo e a tomada de decisão adois surgem enfatizados, assentes no diálogo e na comunicação (Caso 1: Para mim o verdadeiroamor é haver respeito, essencialmente. Haver diálogo com a pessoa e respeitar. Quando se tomar

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1 Valores calculados automaticamente no Nvivo, utilizando as matrizes que comparam as codificações.

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uma decisão, acho que se deve tomar a dois), bem como a necessidade da adequação dos parceiros,da aceitação, compreensão e entendimento entre ambos (Caso 2: Não há dois seres iguais. Aceitoque as pessoas tenham de se moldar um ao outro, também temos de ceder, aceitar que temos demudar. Caso 5: As cedências, compreendermo-nos um ao outro).

É no notar que este repertório tende a ser mais utilizado no final das narrativas, quando asparticipantes são questionadas sobre os valores que defendem numa relação, fazendo uso prescritivodeste repertório para conseguir manter uma relação de amor funcional e feliz ao longo do tempo.

Repertório amor apaixonado. O repertório amor apaixonado surge quase de forma equitativa aoamor companheiro. Veicula a noção de que o amor constitui uma alteração do estado normal dosindivíduos, em termos cognitivos, emocionais e físicos (Caso 3: Eu naquela altura fiquei sempalavra. Senti-me muito feliz, assim por dentro! Ah... não sei explicar (suspiro)! O meu coraçãobatia, batia, batia! Ali não lhe sei explicar o que é que foi!), associando-se a esta alteração tambéma sua expressão mais violenta e o ciúme como manifestações de amor (Caso 5: Eu sentia-me bem.Ele gostava de mim porque eu sabia que ele tinha ciúmes... ele ficava muito zangado, muito bravo!).

Dois aspectos específicos presentes neste repertório são a noção ambivalente do amor/ódio(Caso 8: aquilo foi uma relação muito complexa, muito difícil de gerir e de amor-ódio. Não épropriamente uma história de amor, é uma história de amor-ódio) e a conceptualização do amorcomo prisão – de não poder viver sem a pessoa amada, de não conseguir libertar-se devido àintensidade e profundidade do amor (Caso 2: Eu querer libertar-me e não conseguir. Eu pensavaque não conseguia viver sem ele, que a vida não era possível sem ele).

Repertório amor pragmático. O repertório amor pragmático surge habitualmente no final dasnarrativas, como balanço da história relacional das vítimas. Remete para uma perspectiva maisracional e ponderada do amor, com uma noção da finitude, temporalidade e contingências dasrelações (Caso 9: Também não acho que o amor tem de durar a vida inteira, não, não tem. Queo amor seja para sempre, não! Caso 12: quando chegar ao ponto em que vir que a coisa não dáou que o amor está a acabar, seja da parte dela ou seja da parte dele, que é desnecessário lutarquando o outro não quer).

Integra a imagem de aprendizagem, insight e amadurecimento resultantes das más experiênciasamorosas (Caso 2: Porque agora estar a criar uma relação de fazer vida, para mim é difícil, jáfui burra uma vez. Caso 11: teve impacto na forma como eu vejo as relações, deixei-as de ver, secalhar, de uma forma tão inocente...).

Repertório amor game-playing. O repertório amor game-playing surge numa reduzida percen -tagem na nossa amostra (0,59%), sendo o que concebe as relações como um jogo, envolvendomenor investimento emocional e compromisso. Sendo mais utilizada no passado, esta formarelacional é associada, essencialmente, às relações fugazes e passageiras e é conceptualizada como“não amor” (Caso 10: E foi só esse namoro que foi mesmo um namoro a sério. Os outros foi maiscurtes, mas namoro a sério foi só esse). É de notar que apenas uma participante o utiliza nopresente, associando-o à noção de aproveitar o momento e à prescrição de evitar o compromisso(Caso 2: Neste momento da minha vida, preferia ter uma amizade colorida, não sei se meentendes... Porque agora estar a criar uma relação de fazer vida, para mim é difícil, já fui burrauma vez, agora vai-se vivendo).

A experiência da vitimação surge no discurso? Se sim, como é significada e de que forma osdiscursos sobre o amor e a intimidade constrangem a sua vivência?

Considerando todo o discurso presente nas entrevistas, apenas 19% se refere à violência no con -texto da intimidade e, considerando especificamente o discurso sobre a violência, 68% deste discurso

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refere-se à experiência de vitimação e 32% ao relato da perpetração de violência sobre os parceiros.O tema da violência, tanto a sofrida como a perpetrada, surge no contexto dos diferentes repertórios– à excepção do “game-playing” um repertório que, como já foi referido, surge com reduzidafrequência. Vejamos então como é abordada a violência no contexto dos dife rentes repertórios sobreo amor e as relações de intimidade, apresentando os repertórios pela ordem decrescente: romântico(53,85%), companheiro (20,4%), apaixonado (17.88%) e pragmático (7,87%).

O repertório amor romântico é o mais utilizado pelas vítimas adultas para dar sentido à experi -ência da vitimação, mais precisamente o amor desencantado, em que descrevem a conflitualidade//violência para justificar a frustração das idealizações/expectativas românticas e o desencanto paracom as relações e o amor. Assim, como motivos para o “desencanto” face às expectativas român -ticas surge principalmente a infidelidade por parte do companheiro (Caso 2: O mais infeliz foiquando tive a certeza de que existia outra pessoa), o investimento unidireccional da mulher narelação (Caso 7: A maior dificuldade foi quando ele deixou de trabalhar porque eu tive de criaros filhos e ainda mantê-lo a ele, dar-lhe de comer... Foi muito difícil, que eu trabalhava mas tinhaque pagar casa, tinha que pagar tudo e o dinheiro não chegava) e a desilusão do dia-a-diaassociada à violência física e verbal (Caso 7: foi tudo muito bom, nos primeiros tempos, era muitomeu amigo, ele não tinha mais que me fazer! Depois ele começou-me a tratar mal, a encher-mede nomes, e depois veio a violência. Batia-me, chamava-me todos os nomes, dizia-me que euandava metida com todos os homens).

Na consequência deste “desencanto”, relatam a descrença no amor e nas relações, bem comoo extremo sofrimento e trauma psicológico que as faz rejeitar novas relações (Caso 4: Eu nãoconfio em mais homem nenhum. Ficar sozinha, é a melhor solução. Caso 7: Para mim os homenssão todos iguais. Eu estou cansada... Para mim, um homem chegou). Verifica-se também atentativa de justificarem o comportamento violento por parte do parceiro, usando factores externosque o “transformaram” e o levaram ao uso da violência: o consumo de álcool (Caso 1: Começou abeber, ele tem um muito mau beber. Quando chegava bêbado a casa, desancava-me e chamava-medo piorio. Até que me bateu, deu-me um biqueiro...), as dificuldades do dia-a-dia (Caso 9: Eletornar-se violento foi, sem dúvida, toda a situação económica porque nós passámos) e a infide -lidade (Caso 4: Sempre que a gente se zangava ele batia-me, tinha a ver com as amantes dele).

De salientar que as vítimas jovens não recorrem a este repertório para significar a experiênciade vitimação – no nosso entender porque os seus relatos românticos se centram na idealização darelação e na expectativa da vivência de um grande amor no futuro e de um final feliz, que não lhespermite o “desencanto” dos sonhos românticos, apesar da experiência de vitimação.

As mulheres recorrerem também ao repertório amor companheiro para dar sentido à violênciasofrida, conceptualizando-a como consequência da falta de entendimento/desacordo e daincompatibilidade do modo de ser/estilos de vida entre os parceiros (Caso 8: ... e foram dias demanipulação, de ameaça... eu na altura compreendia que ele não se identificava com o meu estilode vida e contextos. E apesar dele saber que eu me identificava, ele... nunca houve tolerância poressas práticas).

Há que destacar que são as mulheres que se mantêm na relação violenta as que mais utilizamo repertório amor companheiro, como forma de justificar a sua permanência na relação,nomeadamente através da crença da consciencialização, arrependimento e mudança por parte doparceiro, que ocorrerá do entendimento futuro entre ambos, adiando, dessa forma, a ruptura (Caso6: O que eu gostava é que ele compreendesse. Eu estou a tentar... Se ele dizer “Eu realmentefalhei, eu realmente reconheço que errei”, se houver este reconhecimento, eu ainda lhe dou umachance).

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No caso das mulheres jovens, a expectativa de conseguir o entendimento, a crença de queocorreu uma mudança e, principalmente, a percepção de uma imagem de “paridade” entre ambosno que respeita a restrições mútuas, permite-lhes justificar a tolerância e a permanência na relaçãoabusiva (Caso 11: Houve ali uma mudança porque eu ali consegui perceber que estava a serrepressiva com ele e ele também conseguiu perceber aquilo que estava a fazer mais mal. Houvemudança).

O repertório amor apaixonado é maioritariamente utilizado pelas vítimas juvenis, em relaçõesem que a violência surge associada à noção de ciúmes, possessão e dificuldades de controlo porparte do companheiro. Neste repertório, a violência do companheiro é significada comomanifestação de ciúmes, prova do seu amor e “querer”/obsessão, não conseguindo controlar aintensidade do afecto (Caso 10: começou a ser possessivo ele queria-me ter à força toda, entreaspas. (...) Ciúmes, era muito possessivo. Tinha medo de me perder... Caso 12: Começou a sofrerum bocado daquela obsessão. Ele começou a ser um bocadito agressivo por amar de mais, achoeu... violento).

Neste contexto, a violência surge como sinónimo de amor e tende a ser minimizada ou a nãoser conceptualizada como tal, responsabilizando-se a si próprias por provocarem o parceiro (Caso10: Ele começou a tornar-se possessivo e, por vezes, também agressivo. E eu entrava tambémmais ou menos no jogo dele, porque também o “picava” e ele... A primeira vez que ele meagrediu... não é bem agredir...).

De notar, ainda, que são também as mulheres mais jovens que mais recorrem a este repertóriopara justificar a sua tolerância à violência – à noção de que o amor “cega” ou interfere na percepçãoque fazem do parceiro e da relação (Caso 10: O primeiro amor, a primeira paixão, não é! Assim,aquela magia... Porque eu só o via a ele. Ele era a minha vida e não via mais nada!).

A experiência da vitimação parece ser menos compatível com o repertório amor pragmático –pelas próprias características deste repertório – sendo este utilizado essencialmente na descriçãodo processo de tomada de decisão acerca da permanência vs. abandono da relação violenta. Esterepertório inclui um modelo racional (quase economicista) da relação, em que são ponderadas assuas vantagens e desvantagens, pelo que lhes permite equacionar os ganhos e as perdas depermanecer ou abandonar a relação. Aqui, identificamos diferenças na forma como a ponderaçãoé feita pelas mulheres que se mantêm na relação e pelas que saíram, identificando-se tambémcaracterísticas específicas nas vítimas juvenis.

Verifica-se que a maioria das mulheres adultas (tanto as que saíram como as que estão narelação) partilha o desejo de sair da relação (Caso 1: O melhor futuro possível era eu separar-medele, completamente. E ficar sozinha com os meus filhos) e que são os constrangimentoseconómicos, sociais e familiares que dificultam ou dificultaram a ruptura, nomeadamente: a faltade recursos económicos e habitacionais, a ausência de respostas judiciais e sociais adequadas, acrítica social e a ausência de uma rede de suporte e apoio familiar (Caso 1: Neste momento nãotenho situação financeira estável que possa sair de casa, só tenho o meu trabalho, e não tenhofamília nenhuma que me dê apoio. Estou com ele por causa do miúdo, o caso foi parar a tribunal!Caso 6: O meu medo é a falta de dinheiro para criar os meus dois filhos. Porque eu não trabalho.E eu sujeito-me é por causa disso, porque é o dinheiro dele que entra em casa.... E eu sujeito-me).

O que se verifica no caso das mulheres que saíram da relação é que a ruptura se efectivouquando sentiram o bem-estar e/ou a vida dos filhos em causa (Caso 2: Senti que era um bastaquando ele começou também a ser mau com a filha...”) em concomitância com a obtenção desuporte e apoio externos (Caso 2: Foi bom perceber que o médico entendeu e dizer-me que játinha ouvido histórias como a minha. Ajudou-me muito).

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No caso das vítimas juvenis, verifica-se que a ambiguidade entre sair e permanecer é maior,sendo a falta de liberdade pessoal e a restrição das suas actividades/relações um factor essencialna sua ponderação (Caso 11: porque me sentia sem liberdade. E fiquei a pensar “como é que vouaturar assim uma pessoa para o resto da minha vida?”), ao contrário das vítimas adultas, onde aintegridade física e psicológica recebe maior relevo.

O uso da violência por parte destas mulheres surge no seu discurso? Se sim, como é significadae de que forma os seus discursos sobre o amor e a intimidade constrangem a sua vivência?

O recurso à violência por parte destas mulheres também surge no seu discurso mas, como já foireferido, assume menor relevância (no âmbito da violência, apenas 32% do relato se refere àperpetração de actos violentos sobre os parceiros). À semelhança do que sucede na experiência davitimação, também a perpetração é abordada no contexto dos diferentes repertórios: romântico(47,28%), apaixonado (28,76%), companheiro (14,93%) e pragmático (9,03%).

O repertório amor romântico-desencantado continua a ser o mais utilizado pelas vítimasadultas, num discurso em que o recurso à violência emerge da frustração extrema de determinadosideais românticos: a fidelidade e a expectativa de “cuidado/protecção”. Assim, o uso da agressãoverbal e física é justificado principalmente pela infidelidade do parceiro, numa tentativa desalvaguardar uma auto-imagem positiva e recuperar respeito próprio (Caso 4: mas depois andavacom outra. Eu andava sempre a ver onde é que ele andava e discutia com ele porque sabia queandava com outra. Dizia-lhe: “Ouve lá seu Cxxxx, tiveste com a Pxxx?” e pegávamo-nos...).

Quando não conseguem encontrar um motivo para a violência do parceiro, o que aumenta adissonância face à expectativa de receber cuidados e protecção do companheiro, as mulheresrelatam reagir de forma agressiva. A violência surge como estratégia de expressar a sua frustraçãoe desencanto dos sonhos/ideais românticos que as levaram à relação (Caso 7: Já não acredito emnada, desiludida é o que estou. Batia-me constantemente, rasgava-me a roupa e enchia-me denomes. E sem explicação! Mas eu, agora, já não me deixava ficar. Ele insultava-me e eurespondia-lhe. Quando vinha para me bater desviava-me e defendia-me).

O repertório amor apaixonado é usado quase exclusivamente pelas vítimas juvenis eprincipalmente no âmbito da violência física. A violência é conceptualizada como fazendo parteda dinâmica dos ciúmes excessivos e do amor extremo e como manifestação da ambiguidadeamor-ódio decorrente da intensidade do afecto e da relação. Surge no sentido de restaurar algumasimetria/paridade na relação, ainda que violenta, e como forma de “provar” a sua “integridade” efidelidade face aos ciúmes excessivos do namorado (Caso 11: Discutimos. Ele acusou-me de dartrela a outros, de andar com outros e eu, como já estava farta, respondi-lhe mal. Senti-me insultadae também o insultei... Caso 12: Tivemos uma pequena discussão. Ele ficou agressivo e eu dei-lheuma bofetada... porque ele me insultou... chamou-me... que era uma “vai com todos”).

A agressividade feminina, ainda que com menor frequência, é conceptualizada também nocontexto do amor companheiro, surgindo como estratégia de resolução de desentendimentos//desacordo, havendo um discurso de “normalização” da violência verbal na resolução de conflitos(Caso 9: Ou enervo-me e expludo, começo a discutir com ele. Mas acho que eu tenho o direito deter um dia de má disposição).

Por fim, a violência feminina surge também conceptualizada no contexto do repertório amorpragmático, em que, na ponderação de ganhos e perdas face à vitimação reiterada, as mulherespostulam a defesa da sua integridade física e a dos filhos como prioritária, reagindo violentamentecomo último recurso (Caso 2: Foi quando ele me agrediu... eu andei marcada na rua e isso eu não

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aceitei. E depois ele começou a tratar mal a minha filha. E aí tive de me impor... tive de medefender a mim e a ela).

Da análise dos relatos sobre a violência e a agressividade destas mulheres, resulta que, em todosos repertórios, a violência surge essencialmente num contexto de defesa face à violênciacontinuada e reiterada que sofreram por parte dos parceiros. No caso das mulheres adultas, todasfazem referência ao uso de violência (tanto verbal como física) num contexto de defesa da suaintegridade física e/ou psicológica e/ou quando percepcionam perigo para os filhos.

No caso das mulheres jovens, a violência surge em todas como uma resposta pontual e isoladaface à manifestação violenta e extrema de ciúmes por parte dos namorados (como vimos norepertório amor apaixonado) – o que nos leva a concluir que se procede a uma “normalização” daviolência (tanto a masculina como a feminina) no contexto do namoro, não sendo esta concebidacomo violência (Caso 10: A primeira vez que ele me agrediu... não é agredir, pronto... Eu chegueia um ponto que respondia, mas claro que um murro meu, ou uma bofetada, não tem nada a vercom os dele. Caso 11: Não foi bem violência... agarrou-me e deu-me um safanão. E dei-lhe outroe empurrei-o).

No caso das participantes adultas, é de notar que, mesmo no caso das que agridem por ciúmesou devido à infidelidade dos companheiros, já existia um historial de vitimação física e verbalanterior. Parece-nos que as mulheres, nesta situação, tomam a iniciativa de agir violentamenteporque existe um enquadramento sociocultural que lhes “permite” fazê-lo em determinadassituações (usando formas de “violência menor”, como a bofetada), sendo a infidelidade uma delas.Por outro lado, consideramos que a manifestação de violência neste contexto de ciúme podefuncionar como estratégia protectora face a eventuais retaliações dos parceiros – neste contexto aagressão tenderá a não ser percepcionada pelo companheiro como uma afronta à suaautoridade/poder mas como manifestação de afecto e de amor. Aliás, verifica-se pelo relato dasvítimas adultas que, quando a agressão ocorre neste contexto, as reacções do parceiro são menosviolentas, comparativamente às que ocorrem no contexto da defesa da integridade física ou deuma discussão motivada por outras razões. Um bom exemplo disto ocorre no caso 6.

Caso 6: Eu segui-o e vi-o lá com ela, ao fundo de umas escadas, aos beijos e aos abraços. Eeu agarrei-me a ela aos cabelos! E ele ficou a ver, ficou a ver. Tentou separar... mas tambémlevou... Ele também já me batia... Mas agarrei-me a ele também (contexto infidelidade); Eu jáestava assim habituada com a vizinhança e conversava e ele veio um dia e bateu-me! E eu assim“Ah, seu cabrão!” Ai o que eu disse! Foi a primeira vez e a última, ele tratou-me logo da saúde!Levou-me para dentro de casa e bateu-me (contexto de defesa da integridade física e afronta àautoridade masculina).

CONCLUSÃO

A partir do exercício de integração das respostas às nossas questões de investigação eprocedendo a uma leitura transversal dos resultados obtidos, há três ideias centrais queconsideramos importantes destacar:

(i) Os discursos socioculturais sobre o amor e a intimidade veiculam uma associação entreamor e violência

É notória nos relatos das nossas participantes a associação entre a violência e as dinâmicasrelacionais amorosas, havendo um discurso “romantizado”, “passional” e de “companheirismo”

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sobre as relações de amor/conjugais que acaba por “normalizar” a violência, sustentar uma posiçãode tolerância face a esta e manter a vítima na relação violenta (ou retardar a sua saída).

Verifica-se, no relato destas mulheres, no que diz respeito à experiência de vitimação, umatentativa de encontrar uma justificação para a violência do parceiro, recorrendo a factores externos(problemas do dia-a-dia, álcool, infidelidade), à intensidade dos afectos ou a desentendimentosconjugais, permitindo-lhes, dessa forma, desresponsabilizar o parceiro e dissociar o parceiro“violento” do “verdadeiro” parceiro.

Os repertórios que sustentam a permanência numa relação onde sofreram vitimação continuada(romântico e companheiro) reflectem, em nosso entender, os discursos socioculturais maisalargados que veiculam a associação da felicidade/realização feminina ao contexto da conjugali -dade e, simultaneamente, responsabilizam a mulher pelo êxito das relações (Dias & Machado,2007). Tal constrange a actuação da vítima, na medida em que a faz manter-se na relação abusiva,sujeitando-se aos maus-tratos, não só para sustentar a relação mas também pela responsa bilidadesocial que recai sobre si quando uma relação fracassa. Um estudo sobre a representação da mulhernos media em Portugal (Dias & Machado, 2007) revela a prescrição da necessidade da mulher teruma relação estável e de compromisso, no sentido de constituir família e conseguir alcançar afelicidade/bem-estar emocional. Tais discursos reforçam a crença de que a mulher terá comoprincipal objectivo ter uma relação estável e veiculam a expectativa de que a mulher adopte umaatitude de submissão quando o consegue (mesmo que isso implique suportar ou tolerar situaçõesde violência e de assimetria). No nosso entender os repertórios que promovem a permanência dasmulheres nas relações insatisfatórias relacionam-se com uma representação sociocultural ideali -zada do amor prescrita no feminino – encontrar o verdadeiro amor e, encontrando-o, cuidar emanter a relação.

No que diz respeito ao recurso à violência por parte das mulheres, no caso das participantesadultas é essencialmente o sub-repertório “desencantado” que associa o amor à violência feminina(frustração das expectativas românticas – fidelidade, cuidado) e, no caso das jovens, é exclusiva -mente o repertório amor apaixonado que associa a violência feminina à defesa da “ integridademoral” da jovem e como forma de enfatizar o seu amor e fidelidade perante os ciúmes e adesconfiança do namorado.

(ii) Os discursos socioculturais sobre o amor e a intimidade sustentam a “tolerância” àvitimação feminina e restringem amplamente a agressão feminina

O facto do discurso das mulheres incidir maioritariamente na experiência de vitimação, comdescrições longas e pormenorizadas, comparativamente com a experiência da perpetração deviolência contra os parceiros (descrições breves e vagas), leva-nos a concluir a existência de umenquadramento sociocultural que, por um lado, “compreende” melhor a vitimação feminina//violência masculina e, por outro, que restringe amplamente a agressividade feminina/vitimaçãomasculina.

Vários estudos indicam a existência de normas, expectativas e padrões de conduta genderizados,no contexto dos quais a mulher é socializada para ser dócil e não agressiva, para prestar cuidados,para ser gentil, carinhosa e compreensiva, preparando-a, assim, para o seu papel de mãe ecompanheira, suporte do lar e do marido (Cancian & Gordon, 1988; Williams, 2002). Pelocontrário, o homem é socializado para ser activo, agressivo, competitivo e líder/chefe (Boonzaier& De La Rey, 2003; Totten, 2003).

Outros estudos indicam ainda um tratamento diferencial, em função do género, das situaçõesde violência (Carll, 2003; Dias & Machado, 2007). Carll (2003), por exemplo, refere a existênciade estereótipos de género na representação mediática da violência doméstica – quando a mulheré a vítima, os casos são tratados como crimes menores, mas quando a mulher é a agressora, são

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tratados como crimes hediondos – sendo a mulher descrita de forma muito negativa. Um estudodesenvolvido em Portugal (Dias & Machado, 2007) revela que os media tendem também adesresponsabilizar o agressor masculino, perspectivando a violência como um acto emocional ede descontrolo, e a sobre-responsabilizar a mulher agressora, descrita como maquiavélica/perversa.Assim, à semelhança do panorama internacional (Carll, 2003), também em Portugal existem, nodiscurso mediático, diferenças genderizadas relativamente à violência na conjugalidade (Dias &Machado, 2007) – uma maior tolerância da agressão masculina e uma clara desaprovação daagressão feminina, também presentes no discurso das participantes do presente estudo.

As narrativas das nossas participantes revelam que estas fazem uso da violência mas nãorecorrem a ela de forma similar aos companheiros. Remetem para os standards em que a violênciafeminina no contexto conjugal é permitida, revelando-se em situações muito específicas e comcontornos muito limitados: surge contextualizada em situações de defesa, como último recurso esó depois de se terem esgotado todas as outras possibilidades; e tende a ser discursivamenteconstruída dentro dos limites considerados socialmente razoáveis (violência física menor eviolência verbal).

Assim, o nosso estudo parece indicar que a violência feminina assume características e temimplicações práticas diferentes, relacionadas com diferenças de género. Enquanto a violênciamasculina vai ao encontro dos papéis de género masculinos, que postulam a agência, a supremaciae a autoridade (Barnett et al., 1997; Dasgupta, 2002), a violência feminina vai contra o que ésocialmente esperado da mulher (passiva, dócil, prestadora de cuidadosos) (Dasgupta, 1999;Straus, 1999). Implicitamente, as mulheres parecem reconhecer o seu comportamento agressivo(principalmente a violência física) como uma violação ou transgressão dos papéis de géneroprescritos, pelo que tendem a construir a sua “transgressão” dentro dos limites que o contextosociocultural postula como aceitáveis e/ou razoáveis: contexto de defesa, situações de infidelidade,violência física menor e violência verbal.

(iii) Os relatos da violência perpetrada no feminino veiculam um discurso genderizadotradicional mas, simultaneamente, revelam a capacidade de agência, resiliência e auto-superação da mulher

Verifica-se que as nossas participantes são mulheres que, na sua maioria, foram vítimas deviolência continuada e, num processo de escalada em termos de severidade e frequência, acabampor agredir os parceiros para parar ou escapar à sua violência (corroborando o que vários estudosindicam – e.g., Barnett, Lee, & Thelen, 1997; Dasgupta, 1999, 2002; Miller, 2001; Miller &Melloy, 2006).

Numa primeira análise, o discurso das nossas participantes indica que a sua violência tem porbase a assimetria de poder e estatuto que, no contexto da vitimação continuada, tem como objectivodiminuir a sua posição de vulnerabilidade e a sua impotência face às acções de controlo e decoerção do companheiro. Assim, a violência feminina surge com características específicas ediferentes da violência masculina: além de se tratar maioritariamente de violência menor(“bofetada”, “agarrei-me a ele”), surge em episódios isolados e/ou únicos, com reduzido impactono parceiro, quer em termos psicológicos quer em termos físicos. Além disto, verificamos que aviolência das nossas participantes tem também implicações práticas diferentes: em vez de lhespossibilitar algum controlo ou dominância na relação (como ocorre na violência masculina) acabapor desencadear retaliações severas por parte do parceiro e com maior violência – remetendo paraa tentativa do parceiro restabelecer e reforçar a sua autoridade e dominância. Como vimos, aviolência das participantes em situações de ciúme constitui a única excepção, sendo,provavelmente, significada pelo parceiro como manifestação de amor e não como desafio à suaautoridade ou poder.

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No entanto, consideramos que o uso da violência por parte das mulheres surge também comoestratégia para lidar com a adversidade, no sentido de conseguir algum controlo sobre a relação eo sentido de si próprias – revelando a capacidade de luta, sobrevivência e resiliência destasmulheres. Alguns autores (e.g., Werner-Wilson, Zimmerman, & Whalen, 2000) referem comoelementos da resiliência a capacidade de mudar ou se adaptar a circunstâncias de vida negativas,a capacidade de “lutar” e ser bem-sucedido face a expectativas negativas e a capacidade de lidaractivamente com os problemas, em vez de utilizar estratégias de evitamento ou de fuga.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No nosso estudo verificamos que, de facto, tanto as narrativas de vitimação como as deperpetração produzidas pelas mulheres se inscrevem em discursos socioculturais mais amplossobre o amor e as relações de intimidade – discursos que promovem a vitimação sofrida nofeminino e limitam a agressividade feminina.

Os discursos “romantizados” ocultam da percepção das vítimas a dimensão intencional einstrumental da violência masculina, obscurecem o exercício de poder e controlo da violência eperpetuam as desigualdades de género que persistem na nossa sociedade e cultura. Todos osrepertórios, à excepção do pragmático, que é utilizado para enquadrar a ruptura (quando todos osoutros recursos já se esgotaram), veiculam claramente esta associação entre violência e relaçõesde “amor”, desresponsabilizam o agressor e mantêm as vítimas na relação – seja por contingênciasexternas que concorrem para o “desencanto” da imagem do amor romântico, seja pela dimensão“passional” no repertório amor apaixonado, seja pela “incompatibilidade”/desentendimento edesacordo no repertório amor companheiro.

No caso específico da perpetração/violência das nossas participantes, constata-se que a violênciafeminina emerge da expressão da frustração e da dor pela vitimação continuada (amordesencantado), para expressar a sua frustração e obter respeito emocional (amor apaixonado), paralidar com os desentendimentos e problemas da relação (amor companheiro) e, por fim, comorecurso último para escapar à violência e sair da relação, quando não percepcionam apoio externonem possibilidade de mudança (amor pragmático).

Alguns autores (e.g., Holtzworth-Munroe, 2005) têm procurado estudar a violência feminina echamar a atenção para a necessidade de clarificar os modelos de explicação para o fenómeno –compreender se a violência feminina e masculina podem partilhar modelos teóricos ou se requeremmodelos diferentes de explicação (dado que tal terá implicações práticas em termos de acções deprevenção e tratamento). Além disto, alertam também para a distorção ou enviesamento da leiturade alguns resultados sobre a violência feminina em função dos interesses “políticos” de diferentesgrupos (Holtzworth-Munroe, 2005), tanto no sentido da desvalorização como da sobrevalorização.

Neste contexto, há que referir que não é objectivo do presente estudo proceder à comparaçãoda violência masculina com a feminina, ou procurar explicar a violência feminina em si. Numaperspectiva construccionista social, procurámos compreender como as práticas e discursossocioculturais dão forma à vivência da violência (tanto a sofrida como a perpetrada) e comoconstrangem as práticas relacionais. No entanto, ao concluirmos que as narrativas das mulheresveiculam discursos socioculturais mais alargados que sustentam a vitimação sofrida no femininoe limitam a agressividade feminina, entendemos que – existindo um enquadramento socioculturalgenderizado e assimétrico da violência e das relações onde esta ocorre – a grelha de leitura ou dacompreensão/explicação da violência masculina vs. feminina não pode ser a mesma.

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The present study focus both women’s victimization experience and on women’s violence againstpartner. We aim at addressing their discourse about love and intimacy and at understanding how womenconceptualize and experience violence. The study involved 12 women with whom we conducted anindividual interview about their lives’ love story. We conclude that both the reports of victimization andperpetration fall on broader socio-cultural discourses about love and intimate relationships that supportfemale victimization and restrict female aggressiveness. We conclude that female violence hadidiosyncratic characteristics and different practical implications, related to gender inequalities andasymmetry, differentiating male and female intimate violence. Female aggression emerges as a strategyto deal with adversity in order to gain some control over the relationship and some sense of themselves,revealing the capacity to struggle, survival and resilience of these women.

Key-words: Female aggressiveness, Female victimization, Intimate violence, Love, Socioculturaldiscourses.

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Análise Psicológica (2012), XXX (1-2): 161-176

Vitimação por stalking: Preditores do medo

Marlene Matos* / Helena Grangeia** / Célia Ferreira* / Vanessa Azevedo*

*Escola de Psicologia, Universidade do Minho; **Departamento de Ciências Sociais e doComportamento, Instituto Superior da Maia e Escola de Psicologia, Universidade do Minho

Este artigo pretende reflectir sobre uma realidade ainda pouco conhecida no contexto nacional – ostalking – e analisar os factores que concorrem para o sentimento de medo face a esta experiência devitimação. O estudo foi conduzido junto de uma amostra de 236 participantes que relataram ter sidoalvo de stalking em algum momento das suas vidas. O sexo e a idade da vítima, assim como ser alvode vigilância pelo stalker emergiram como preditores do medo face a este tipo de vitimação. Osresultados sugerem que os efeitos deste tipo de violência devem ser compreendidos e localizados notecido sócio-cultural, sendo necessário um maior investimento ao nível da investigação e das práticaspara fazer face a este fenómeno.

Palavras-chave: Assédio, Medo, Stalking, Vitimação.

INTRODUÇÃO

Este artigo pretende reflectir sobre uma realidade ainda camuflada no contexto nacional – avitimação por stalking – reconhecida como um problema social e de justiça criminal em diferentespaíses ocidentais. Este fenómeno carece de visibilidade em Portugal, não obstante estarem já emdesenvolvimento um conjunto de estudos que têm vindo a revelar a sua dimensão e as suas conse -quências (cf. Grangeia & Matos, 2011). Procura-se assim actualizar e informar o debate sobre asnecessidades de caracterização e actuação sobre uma forma de vitimação que contabiliza 19.5% devítimas, de acordo com o estudo de prevalência, representativo da população portuguesa, com idadesuperior a 16 anos (N=1210; Matos, Grangeia, Ferreira, & Azevedo, 2011).

Atendendo à dimensão subjectiva desta experiência de vitimação (e.g., Grangeia & Matos,2009), importa analisar o medo já que este é um dos indicadores que, nos países em que o stalkingconstitui crime, tem contribuído para delimitar as fronteiras de legitimação social e legal destefenómeno e (im)possibilitando, consequentemente, a validação desta experiência como forma devitimação (Dunn, 2002; Kamir, 2001). Esta análise assume especial importância no contextohistórico-social em que o presente estudo foi desenvolvido pelo facto de, em Portugal, a práticade stalking não ser reconhecida legalmente como crime e dificilmente entendida pela sociedade(e até pelo próprio alvo) como um comportamento desviante (Grangeia & Matos, 2009, 2011).

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A correspondência relativa a este artigo deverá ser enviada para: Marlene Matos, Escola de Psicologia (EPsi),Universidade do Minho, Campus de Gualtar, 4710-057 Braga. E-mail: [email protected]

Este trabalho é financiado por Fundos FEDER através do Programa Operacional Factores de Competitividade– COMPETE e por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia e da CIG –Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género no âmbito do projecto “Stalking em Portugal: Prevalência,impacto e intervenção” (PIHM/VG/0090/2008).

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Interessa assim analisar quais os factores que concorrem para a experiência de medo face a umcenário de stalking.

CONTEXTUALIZAÇÃO E CARACTERIZAÇÃO DO STALKING

O conceito de stalking surge no final do século XX, sendo actualmente reconhecido como umaforma particular de violência interpessoal. Pode ser definido como um “padrão de comportamentosde assédio persistente, que se traduz em formas diversas de comunicação, contacto, vigilância emonitorização de uma pessoa – alvo” (Grangeia & Matos, 2010, p. 124). Sheridan, Blaauw eDavies (2003) realçam o carácter singular desta forma de violência, sublinhando que a condutado stalker pode envolver não mais que a repetição de acções comuns e rotineiras, tidas comoinofensivas noutros contextos. Ainda assim, a generalidade dos autores reconhece que o stalkinginclui um espectro diversificado de comportamentos, desde actos aparentemente inócuos (e.g.,oferecer flores) até estratégias explicitamente intimidatórias (e.g., ameaças, perseguição), quetendem a escalar ao longo do tempo e que podem mesmo associar-se a formas de violência físicae/ou sexual (cf. Spitzberg & Cupach, 2007). Mesmo que não atinjam o extremo mais severo docontinuum de comportamentos, as estratégias de vitimação por stalking, pela sua natureza crónicae intrusiva, constituem uma verdadeira campanha de assédio, capaz de comprometer fortementeo bem-estar e qualidade de vida da vítima.

Importa considerar que a definição de stalking apresenta especiais constrangimentos emcontextos em que o stalking não é formal e socialmente reconhecido como forma de violênciainterpessoal, como é o caso português, estando por isso especialmente vulnerável a mecanismosde legitimação cultural (Grangeia, Ferreira, Matos, & Gonçalves, 2008). Complementarmente, otermo stalking não encontra tradução conceptual satisfatória numa única palavra portuguesa, peloque optámos por utilizar a expressão assédio persistente no sentido de apreender as dinâmicas ecaracterísticas representadas pelo termo em inglês. Efectivamente, e apesar do stalking não reflectirainda uma atenção global, a emergência deste conceito permitiu reunir numa única categoriacomportamentos distintos que até então permaneciam desagregados, proporcionando umentendimento comum entre diferentes audiências (cf. Grangeia & Matos, 2011).

Decorridas mais de duas décadas de estudos no panorama internacional, o impacto da vitimaçãopor stalking está já bem documentado, sendo frequentemente associado a consequências negativasem diferentes esferas da vida da vítima, compreendendo alterações do estilo de vida (e.g., Amar,2006; Dressing, Kuehner, & Gass, 2005; Hall, 1998; Tjaden & Thoennes, 1998), impacto na saúdefísica (e.g., Centers for Disease Control, 2000; Pathé & Mullen, 1997, citados por Kuehner, Gass,& Dressing, 2007) e na saúde mental, incluindo medo, hipervigilância, desconfiança e sentimentosde abandono ou falta de controlo (Mullen, Pathé, & Purcell, 2001) mas também sintomatologia edistúrbios psiquiátricos, salientando-se os sintomas depressivos e, especialmente, os sintomasansiosos e traumáticos (e.g., Blaauw, Winkel, Arensman, Sheridan, & Freeve, 2002; Kamphuis &Emmelkamp, 2001; Mechanic, Uhlmansiek, Weaver, & Resick, 2002; Nicastro, Cousins, &Spitzberg, 2000; Pathé & Mullen, 1997, citados por Kuehner et al., 2007; Purcell, Pathé, & Mullen,2005). Os elevados custos que esta conduta acarreta para as vítimas, conduziram à descrição dostalking como “terrorismo psicológico” (Hall, 1998, p. 133) e à comparação do seu nível deimpacto aos efeitos traumáticos de um desastre de avião (Kamphuis & Emmelkamp, 2001). Defacto, o carácter intermitente, arbitrário e discricionário dos comportamentos, faz desta experiênciaalgo imprevisível e da ameaça uma sensação constante, potenciando dessa forma os efeitosnegativos experienciados pelas vítimas (Collins & Wilkas, 2001; Kamphuis & Emmelkamp, 2000).

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Os dados acumulados neste domínio contribuíram decisivamente para reforçar o potencial efeitonocivo desta forma de vitimação, muitas vezes entendida como “meramente incomodativa”,permitindo a validação da experiência das vítimas e justificando o investimento em medidas deactuação direccionadas à redução das suas dificuldades (Mullen et al., 2001).

VITIMAÇÃO POR STALKING: O MEDO COMO CRITÉRIO DE DEFINIÇÃO

Devido à necessidade de delimitar as fronteiras do stalking, quer para efeitos da sua mensuraçãoe caracterização (do ponto de vista da investigação), como para a sua criminalização (perspectivajurídico-legal), o impacto tem surgido junto de alguns autores como um importante elemento dedefinição, circunscrevendo o fenómeno a uma experiência negativa, que deve ser não sóvivenciada pelo alvo, mas também compreendida socialmente enquanto tal. Assim, enquantoofensa criminal (ainda circunscrita a alguns países ocidentais, dos quais se exclui Portugal), ostalking envolve tipicamente a presença de diferentes elementos estruturais – a linha de conduta,a intenção do ofensor e as consequências implicadas – sendo normalmente identificado como umpadrão de comportamentos repetidos, intencionais, não desejados pelo(s) alvo(s) e que induz medonas suas vítimas ou que, em alternativa, é percebido como ameaçador ou atemorizador por uma“pessoa razoável” (Spitzberg & Cupach, 2007). De facto, na maioria das jurisdições, a percepçãoda vítima sobre a conduta do stalker como ameaçadora ou indutora de medo é fulcral para a suailegalidade (e.g., EUA). O impacto pode ser acedido através de critérios subjectivos – acedidosatravés da experiência da vítima – ou objectivos – estabelecidos pela reacção típica que seriaesperada de uma “pessoa razoável” face à situação. A inclusão de um critério objectivo asseguraque a definição desta ofensa não dependa exclusivamente das respostas de cada vítima (Dennison& Thomson, 2005; McEwan, Mullen, & MacKenzie, 2007; Purcell, Pathé, & Mullen, 2004a).Não obstante, fazer depender a tipificação deste crime de um juízo externo (que se pretendeobjectivo), para além de não atender às idiossincrasias de cada caso, ignora as influências sócio--culturais que pesam nesse julgamento (e.g., Kamir, 2001).

Nos países em que o critério medo se constitui como critério de definição legal (e.g., Canada,Reino Unido, vários Estados Norte-americanos), esta opção reflecte-se necessariamente nainvestigação sobre a prevalência do fenómeno, constrangendo desta forma a identificação dasvítimas àquelas que experienciam medo como resultado do stalking (e.g., Tjaden & Thonnes, 1998).Não obstante, alguns teóricos e investigadores questionam-se sobre a legitimidade da definiçãolegal do stalking sustentada na resposta da vítima, uma vez que nem todas as vítimas experienciamum impacto negativo (e.g., Dietz & Martin, 2007; Dunn, 2002; Cupach & Spitzberg, 2002). Aliás,quando comparado com outras ofensas criminais como a violação ou a violência doméstica, o crimede stalking revela-se único por converter (em algumas jurisdições) a resposta emocional da vítima,assim como a sua razoabilidade, num elemento central do crime (Dunn, 2002; Kamir, 2001). Nestesentido, Tjaden, Thonnes e Allison (2002) compararam as taxas de prevalência do stalking obtidasa partir da definição legal e da definição idiossincrática dos participantes do National ViolenceAgainst Women Survey (cf. Tjaden & Thonnes, 1998). Entre os resultados alcançados, realça-seque quando utilizada a auto-definição como vítima de stalking comparativamente à definição legal,as taxas de prevalência aumentavam exponencialmente, quer o número de mulheres vítimas – de8.1% para 12.1% – quer o número de homens vítimas – de 2.2% para 6.2%. As autoras realçaramainda que 60% das pessoas que se auto-definiram como vítimas mas não o eram legalmente, nãose enquadrando na definição legal por não preencherem o critério de medo. Claramente para estesindivíduos não é relevante a presença de consequências nefastas para definir a sua experiência devitimação, afastando-se deste modo do enquadramento legal destes casos.

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VITIMAÇÃO POR STALKING: O MEDO COMO RESPOSTA

A experiência empírica tem demonstrado que a percepção das vítimas relativamente ao stalkingé incerta, podendo variar num contínuo de reacções e emoções, desde o aborrecimento e a irritação,até elevados níveis de medo e ameaça (Cupach & Spitzberg, 2002). Concepções mais abrangentesdo stalking (e.g., “Intrusão Relacional Obsessiva”, Cupach & Spitzberg, 1998), não dependentesdo impacto negativo como critério de definição, contemplam inclusivamente a possibilidade destesactos terem um impacto positivo, como nos casos em que a persistência mesmo que não desejadapelo alvo promova o (r)estabelecimento da relação de intimidade (e.g., Langhinrichsen-Rohling,Palarea, Cohen, & Rohling, 2002).

Importa considerar que o limite que se estabelece entre a legitimidade ou conformidade e ailegitimidade varia “não só de pessoa para pessoa, mas também de relação para relação e de culturapara cultura” (Cupach & Spitzberg, 2004, p. 27). Neste sentido, determinantes sócio-culturais,relacionais e pessoais devem ser pesados na compreensão do impacto do stalking.

Os repertórios culturais do romance e da paixão, assim como a adopção de scripts genderizadosde cortejamento, poderão explicar a ambivalência (sobretudo numa fase inicial) relatada pelas vítimasde stalking (Dunn, 2002; Emerson, Ferris, & Gardner, 1998). Também o sexo parece desempenharum papel relevante na forma como o stalking é percepcionado, uma vez que as mulherestendencialmente percepcionam a perseguição e assédio persistente como mais ameaçadora que oshomens (cf. Spitzberg, Cupach, & Ciceraro, 2010, para uma meta-análise). Estes dados suportam ahipótese de que homens e mulheres experienciam de forma diferente o mesmo tipo decomportamento, pelo que as acções perpetradas pelos homens serão interpretadas mais seriamentepelas mulheres e, por isso, perspectivadas como mais ameaçadoras (Davis & Frieze, 2002).

Não obstante, experiências que afectam negativamente algumas mulheres não afectam todaselas. Portanto, há que não descurar outros factores, características e dinâmicas, as quais podempatrocinar ou, pelo contrário, obstar os efeitos negativos do stalking. A este respeito, importaanalisar com detalhe o estudo desenvolvido por Dietz e Martin (2007) que explora os padrões demedo das mulheres vítimas de stalking identificadas no National Violence Against Women Survey,já referido anteriormente (Tjaden & Thonnes, 1998). Interessa salientar a interseccionalidade defactores que predizem o facto de algumas mulheres reportarem medo como consequência daexperiência de stalking e de outras não o fazerem (um quarto das vítimas identificadas). Osresultados deste estudo apontam algumas características demográficas que aumentam aprobabilidade das mulheres experienciarem medo: as mulheres afro-americanas (em contrastecom as caucasianas), mais velhas e viúvas (comparativamente com as solteiras) e com nível deescolaridade inferior que o ensino superior têm menor probabilidade de experienciarem medo.Relativamente às características e dinâmicas do stalking, enumera-se como preditoressignificativos de medo: um maior número de experiências de stalking, o facto do stalker serparceiro ou ex-parceiro da vítima ou um familiar do sexo masculino (em oposição ao stalking pordesconhecidos) e, ainda, os métodos físicos e de comunicação utilizados no stalking.

Considerando o medo como uma medida do impacto negativo, e uma vez que a sua presençaassocia-se intrinsecamente à presença de dano psicossocial, pela sua dimensão ameaçadora,importa atender aos factores de risco que contribuem para um maior dano neste domínio. Assim,no que concerne as características do alvo, sabe-se que as mulheres vítimas apresentamhabitualmente maior impacto psicológico e social que os homens vítimas. Paralelamente, aadopção de algumas estratégias de reacção à vitimação caracterizadas pela passividade eevitamento face ao problema poderá contribuir, a longo prazo, para um impacto mais negativo.As vulnerabilidades prévias de cada indivíduo contribuem igualmente para a maior extensão doimpacto da vitimação (cf. McEwan, Mullen, & Purcell, 2007). Relativamente às tácticas do(a)

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stalker, quanto mais intrusivas (Blaauw et al., 2002) e diversas (Johnson & Kercher, 2009) maioro impacto da vitimação. A presença de ameaças, devido à percepção de vulnerabilidade, pareceexplicar melhor o impacto negativo do que propriamente a violência física (cf. McEwan et al.,2007). A duração do stalking surge como factor especialmente relevante para a extensão do danopsicossocial potencial na vítima: quanto maior a duração do stalking, maior o dano potencial,sendo particularmente relevante que o limite para além de duas semanas de duração foiempiricamente estabelecido como preditor do stalking vir a prolongar-se durante vários meses ouanos (Purcell, Pathé, & Mullen, 2004b).

Por último, salienta-se a importância da avaliação do risco contemplar a análise da relaçãoprévia entre vítima e stalker e das motivações subjacentes à perpetração de stalking. Relativamenteà dimensão relacional, o risco de dano psicossocial é superior para vítimas de stalkers ex-parceirose para aquelas perseguidas em contexto laboral (cf. Mullen et al., 2006). Socorrendo-nos datipologia de stalkers desenvolvida por Mullen, Pathé e Purcell (2000) e por Mullen, Pathé, Purcelle Stuart (1999) que cruzam os dois eixos de análise (relação prévia e motivações) destacam-se osstalkers rejeitados como aqueles que elevam todos os tipos de risco: violência, persistência,reincidência e dano (cf. Mullen et al., 2006). Estes stalkers perseguem habitualmente no contextode uma ruptura de uma relação de proximidade, geralmente íntima, como forma de vingança e/oucom o propósito de reatar a relação (Mullen et al., 1999, 2000). Neste grupo incluem-se,normalmente, os stalkers ex-parceiros que partilham das características (tácticas e dinâmicas dostalking), descritas anteriormente e que elevam o risco de dano psicossocial. Salienta-se que orisco de violência aumenta quanto mais próxima a relação entre vítima e stalker (Purcell, Pathé,& Mullen, 2002). No entanto, o stalking por desconhecidos tende a ser percepcionado comocausando maior alarme e apreensão na vítima (Pathé, Mullen, & Purcell, 2001). Apesar de algunsresultados contraditórios, a relação vítima-stalker surge como uma dimensão que tipicamentecondiciona as percepções da população face a cenários hipotéticos de stalking (cf. Dennison,2007). Alguns estudos sobre percepções sociais (e.g., Phillips, Quirk, Rosenfeld, & O’Connor,2004; Scott & Sheridan, 2011; Sheridan, Gillett, Davies, Blaauw, & Patel, 2003) confirmam avigência da imagem estereotipada do stalker como alguém estranho e perigoso, reforçadora daapreensão pública face a estas situações.

Descritas as idiossincrasias de uma experiência negativa face à vitimação por stalking, e maisespecificamente da reacção de medo, salienta-se a importância de conhecer quais os factores que,em Portugal, contribuem para essa resposta por parte das vítimas. Assim, a partir de uma amostrarecolhida em todo o país (N=1210), pretendeu-se identificar os preditores do medo entre osparticipantes que relataram ter sido alvo de stalking em algum momento das suas vidas, definidocomo a experiência de alguém que é alvo, por parte de outra pessoa, de um interesse e umaatenção continuados, mas indesejados.

MÉTODO

Participantes

A amostra deste estudo é constituída por 236 participantes (67.8% do sexo feminino), comidades compreendidas entre os 16 e os 94 anos (M=38.28, DP=16.56). Tal como se pode ver naTabela 1, a vasta maioria da amostra é de nacionalidade portuguesa (94.9%). Apenas 36.6% referiumanter-se numa relação íntima formalizada. Relativamente às habilitações académicas, 41.2%dos participantes frequentavam apenas o ensino básico, 32.9% o ensino secundário/profissional ecerca de 26% frequentaram o ensino superior.

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TABELA 1

Características sócio-demográficas da amostra%

Sexo Feminino 67.8Masculino 32.2

Nacionalidade Portuguesa 94.9Outra 5.1

Estado Civil Sem relação formalizada 63.4Com relação formalizada 36.6

Habilitações Literárias Até ao Ensino Básico 41.2Ensino Secundário / Profissional 32.9Frequência do Ensino Superior 25.9

MATERIAIS E PROCEDIMENTOS

A recolha de dados foi realizada através do “Inventário de Vitimação por Stalking” (IVS; Matos,Grangeia, Ferreira, & Azevedo, 2009), um instrumento que permite detectar a prevalência devitimação por stalking e explorar essa experiência em vários parâmetros. O IVS é constituído porvinte e dois itens, os quais se encontram organizados em cinco secções: dados sócio-demográficos;prevalência da vitimação ao longo da vida; perfis, dinâmicas e cenários de vitimação; impacto daexperiência; e procura/avaliação do apoio.

O critério de vitimação decorre da auto-identificação pelos participantes, isto é, resulta de umaresposta afirmativa face à questão “ao longo da sua vida alguma vez foi alvo de assédiopersistente, que consiste na experiência de alguém que é alvo, por parte de outra pessoa, de uminteresse continuado, mas indesejado?”

O projecto de investigação onde se inscreve o actual estudo reuniu uma amostra representativada população nacional, sendo elegíveis indivíduos, de ambos os sexos, com idade igual ou superiora 16 anos. Para garantir a qualidade dos relatos foram estabelecidos alguns critérios de exclusão,nomeadamente: indivíduos que não compreendessem e/ou falassem fluentemente português, queevidenciassem estar sob o efeito de álcool ou drogas e/ou que aparentassem défice cognitivo/atrasomental.

A recolha de dados decorreu entre Abril e Junho de 2010, através de entrevistas cara-a-cara,realizadas em todo o território nacional. Após a apresentação do estudo e obtenção do consenti -mento informado, procedeu-se à aplicação do IVS.

As análises estatísticas, cujos resultados serão de seguida apresentados, foram realizadas atravésdo software informático Statistical Package for Social Sciences (SPSS; versão 17.0 para Windows).

RESULTADOS

Medo face à experiência de stalking

Face à questão “Como se sentiu relativamente a essa experiência?”, a maioria dos participantes(68.2%, n=161) reportou algum nível de medo como consequência da vitimação por stalking (i.e.,Um pouco assustado/a ou Muito assustado/a). Por seu turno, 31.8% da amostra (n=75) referiunão ter sentido qualquer medo na sequência da campanha de stalking sofrida (i.e., “Nadaassustado/a”).

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Medo e características da vítima, do stalker e dinâmicas de stalking

Medo e características da vítimaTal como se ilustra na Tabela 2, foi encontrada uma relação significativa entre o medo e o sexo

da vítima [χ2(1)=17.165, p<.001], assim como entre o medo e o estado civil [χ2(1)=7.7, p<.01],sendo que mais vítimas mulheres e mais vítimas sem relação formalizada reportaram ter sentidomedo na sequência da campanha de stalking sofrida.

Em relação à idade, verificou-se existirem diferenças significativas ao nível do medo [t(234)=2.60,p<.05], sendo que as vítimas que reportaram tal reacção são mais jovens do que aquelas que o nãoexperienciaram, respectivamente: M=36.39 anos (d.p.=15.55) vs. M=42.33 anos (d.p.=17.98).

TABELA 2Medo e características da vítima

Sem relato Com relatode medo de medo

(%) (%) χ2(1)

Sexo (N=236) Feminino 15.7 52.1Masculino 16.1 16.1 17.165***

Nacionalidade (N=226) Portuguesa 31.6 63.2 3.267a

Outra .4 4.7Estado Civil (N=227) Sem relação formalizada 16.2 47.2

Com relação formalizada 15.7 20.9 7.7**Habilitações Literárias (N=220) Até ao Ensino Básico 14.9 26.3 1.27

Mais do que o Ensino Básico 17.1 41.7Nota. **p<.01; ***p<.001; aMais de 20% das células apresentaram uma frequência esperada inferior a 5, sendo

utilizado como referência o valor de significância de Fisher.

Medo e características do stalkerConsiderando as características do stalker, verificou-se existir uma relação significativa entre

o sexo daquele e o medo [χ2(1)=22.471, p<.001], tal como se pode observar na Tabela 3. Assim,a maioria das vítimas que sentiu medo foi alvo de stalking por parte de um homem.

TABELA 3Medo e características do stalker

Sem relato Com relatode medo de medo

(%) (%) χ2(1)

Sexo (N=222) Feminino 15.3 14Masculino 14.4 56.3 22.471***

Relação com a vítima (N=234) (Ex) parceiro íntimo 6 22.6 .67Não (ex) parceiro íntimo 23.1 45.3

Nota. ***p<.001.

Medo e dinâmicas de stalkingTal como se ilustra na Tabela 4, a experiência de medo relaciona-se significativamente com

diferentes comportamentos de stalking, nomeadamente perseguir [χ2(1)=15.114, p<.001]; ameaçara vítima e/ou a pessoas próximas [χ2(1)=14.433, p<.001]; vasculhar, roubar ou apoderar-se deobjectos pessoais [χ2(1)=4.21, p<.05]; invadir a propriedade da vítima [χ2(1)=7.245, p<.01];aparecer em locais habitualmente frequentados por aquela [χ2(1)=4.561, p<.05]; ameaçar fazermal a si próprio/a [χ2(1)=4.95, p<.05]; vigiar [χ2(1)=16.303, p<.001]; agredir ou prejudicar pessoas

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próximas da vítima [χ2(1)=8.041, p<.01]; e agredir a vítima [χ2(1)=8.59, p<.01]. Em qualquer doscasos, apenas uma minoria dos participantes que afirmaram ter sido alvo destes comportamentosnão relataram medo face à campanha de stalking.

Por sua vez, existe uma relação marginalmente significativa entre o medo e a frequência doscomportamentos, sendo que a maioria das vítimas que referiu ter sido alvo de stalking num registodiário ou semanal reportou sentimento de medo.

TABELA 4

Medo e dinâmicas de stalkingSem relato Com relatode medo de medo

(%) (%) χ2(1)

Duração Até 1 mês (inclusive) 11.5 21.7 .392(N=235) Mais do que 1 mês 20.4 46.4Frequência Diária ou semanalmente 24.6 59.3 3.507(N=236) Mensalmente ou menos 7.2 8.9N.º de stalkers Apenas por uma pessoa(N=236) Por mais do que uma pessoa 14.4 25.8 1.179Perseguiu-me Sim 8.1 36.2 15.114***(N=235) Não 23.4 32.3Tentou entrar em contacto comigo Sim 26.7 52.5 1.516(N=236) Não 5.1 15.7Ameaçou e/ou ameaçou pessoas Sim 3.4 23.3próximas (N=236) Não 28.4 44.9 14.433***Filmou ou tirou-me fotografias Sim 1.3 3 .015a

sem autorização (N=236) Não 30.5 65.3Vasculhou, roubou ou apoderou-se Sim 3.4 14.8de objectos (N=236) Não 28.4 53.4 4.210*Invadiu a minha propriedade Sim 2.1 14.0 7.245**(N=236) Não 29.7 54.2Apareceu em locais que costumo Sim 15.3 42.8 4.561*frequentar (N=236) Não 16.5 25.4Ameaçou fazer mal a si próprio/a Sim 3.0 14.4 4.950*(N=236) Não 28.8 53.8Vigiou ou pediu a alguém para Sim 5.9 31.4 16.303***me vigiar (N=236) Não 25.8 36.9Agrediu ou prejudicou pessoas Sim 1.3 11.9próximas (N=236) Não 30.5 56.4 8.041**Agrediu-me física e/ou sexualmente Sim 0 7.2 8.590**(N=235) Não 31.9 60.9

Nota. +p<.10; *p<.05; **p<.01; ***p<.001; aMais de 20% das células apresentaram uma frequência esperadainferior a 5, sendo utilizado como referência o valor de significância de Fisher.

PREDITORES DO MEDO

Com base numa análise de regressão logística1 (método Enter), procedemos à previsão davariância do sentimento de medo a partir das variáveis que, nas análises anteriores, se mostraram

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1 As análises preliminares revelaram estarem cumpridos os pressupostos subjacentes à utilização deste tipo deanálise, nomeadamente dimensão adequada da amostra; frequências esperadas/observadas adequadas para ospreditores dicotómicos; ausência de multicolinearidade e de outliers (Pallant, 2007).

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significativamente relacionadas com este. Os preditores foram inseridos em três blocos, tal comose ilustra na Tabela 5: no primeiro bloco introduziram-se as características da vítima, no segundointroduziram-se as características do stalker e, no terceiro bloco, introduziram-se as dinâmicas dostalking. Desde logo, importa destacar que o modelo se revelou estaticamente significativo emtodos os momentos da análise.

TABELA 5

Preditores do sentimento de medo face à experiência de vitimação por stalking95% I.C. para OR

OddsBloco B S.E. Wald df p Ratio Inferior Superior Modelo

1 Sexo da vítima -1.512 .337 20.161 1 .000 4.535 2.344 8.774 χ2(3)=30.195***

Idade da vítima -.016 .011 2.089 1 .148 .984 .963 1.006

Estado civil -.683 .360 3.603 1 .058 1.981 .978 4.011

2 Sexo da vítima -.812 .486 2.800 1 .094 2.254 .870 5.837 χ2(4)=34.246***

Idade da vítima -.019 .011 2.809 1 .094 .981 .960 1.003

Estado civil -.630 .363 3.011 1 .083 1.877 .922 3.825

Sexo do stalker .999 .496 4.055 1 .044 .368 .132 .974

3 Sexo da vítima -1.763 .669 6.945 1 .008 5.829 1.571 21.626 χ2(14)=95.853***

Idade da vítima -.047 .015 9.540 1 .002 .954 .925 .983

Estado civil -.344 .458 .564 1 .453 1.410 .575 3.457

Sexo do stalker 1.200 .654 3.362 1 .067 .301 .084 1.086

Frequência dos comportamentos -.502 .544 .854 1 .355 1.652 .569 4.795

Perseguiu-me .793 .459 2.992 1 .084 .452 .184 1.111

Ameaçou-me e/ou ameaçoupessoas próximas .862 .622 1.923 1 .166 .422 .125 1.428

Vasculhou, roubou ou apoderou-se de objectos pessoais 4.014 .681 .370 1 .543 .661 .174 2.510

Invadiu a minha propriedade ou forçou aentrada em minha casa -1.302 .886 2.159 1 .142 3.675 .648 20.857

Apareceu em locais que costumo frequentar -.027 .438 .004 1 .951 1.027 .436 2.422

Ameaçou fazer mal a si próprio/a .805 .793 1.030 1 .310 .447 .094 2.116

Vigiou ou pediu a alguém para me vigiar 1.812 .596 9.252 1 .002 .163 .051 .525

Agrediu ou prejudicou pessoas próximas 2.304 1.244 3.431 1 .064 .100 .009 1.143

Agrediu-me fisicamente 19.300 7723.282 .000 1 .998 .000 .000

Nota. Variável a predizer: Sentimento de medo (0=Sem medo, 1=Com medo); Preditores dicotómicos: Sexo da vítima(0=Fem., 1=Masc.); Estado civil (0=S/relação formalizada; 1=C/relação formalizada); Sexo do stalker (0=Fem.,1=Masc.); Frequência dos comportamentos (0=Mensalmente ou menos, 1=Diaria ou semanalmente); Ocorrência dosdiferentes comportamentos (0=Não, 1=Sim); ***p<.001.

O modelo com as características da vítima explicou entre 13.3% e 19.1% da variância (Cox &Snell R Square e Nagelkerke R Square, respectivamente) e classificou correctamente 74.4% doscasos. Neste caso, apenas o sexo da vítima revelou uma contribuição individual estatisticamentesignificativa na predição do sentimento de medo, sendo que as vítimas mulheres evidenciarammaior probabilidade de relatar aquele efeito face ao stalking de que eram alvo.

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A introdução do sexo do stalker no segundo bloco contribuiu para aumentar ligeiramente opoder preditivo do modelo, quer ao nível da variância explicada (de 15% a 21.1%, Cox & Snell RSquare e Nagelkerke R Square, respectivamente), quer ao nível da percentagem de casoscorrectamente classificados (76%). Aliás, o sexo do stalker assumiu destaque neste modelo (únicopreditor estatisticamente significativo), com os stalkers do sexo masculino a evidenciarem maiorprobabilidade de despoletar apreensão nas respectivas vítimas.

As variáveis incluídas no terceiro bloco, relativas às dinâmicas do stalking, vieram acrescentarum contributo ainda mais importante na predição do sentimento de medo, tendo o modelo passadoa explicar de 36.5% a 52.4% da variância (Cox & Snell R Square e Nagelkerke R Square,respectivamente) e a classificar correctamente 82% dos casos. Neste caso, três preditoresexerceram uma contribuição individual estatisticamente significativa na predição do sentimentode medo: o sexo da vítima (preditor mais forte), a idade da vítima e o ser-se alvo de vigilânciapelo stalker. Pudemos, assim, concluir que as vítimas do sexo feminino, mais novas e aquelas querelataram ter sido vigiadas pelo stalker ou por alguém em seu nome tinham maior probabilidadede sentir medo face à campanha de stalking sofrida.

DISCUSSÃO

Tendo em consideração os resultados descritos, é importante compreender de que modo estesse articulam com as conclusões de outros estudos e como poderão ser interpretados atendendo àsperspectivas actuais sobre o medo.

Em primeiro lugar, importa reflectir acerca do requisito da experiência de medo para a definiçãoe reconhecimento da vitimação por stalking. Neste estudo, quase 70% dos participantes referiuter sentido algum medo decorrente da experiência de stalking, valor que se assemelha ao verificadopor Dietz e Martin (2007), que concluíram que cerca de três quartos das vítimas relataram medo.Assim, mesmo perante a adopção de um critério mais restrito na identificação desta forma de viti -mação, conclui-se que o stalking, para além de consistir numa experiência prevalente na sociedadeportuguesa, traduz-se geralmente num impacto negativo para as suas vítimas. Este dado alerta-nos para a necessidade de incluir o stalking na agenda pública, no sentido da implementação demedidas concretas face a esta forma de violência interpessoal, que permanece ainda oculta oudissi mulada nos planos de acção política contra a violência (e.g., legislação adequada, planosnacionais de intervenção e prevenção). Importa ainda estabelecer que, caso o medo tivesse sidopreviamente adoptado como critério de definição, cerca de 30% dos participantes que se auto--identificaram como tendo sido alvo de stalking, em algum momento da sua vida, teriam sidoexcluídos a priori do grupo de vítimas. É igualmente relevante considerar as experiências dessesparticipantes, ainda que o medo não tenha sido experienciado. Fazer depender a vitimação de umcritério de impacto implicaria assumir o medo como uma experiência objectiva e não como umconstruto social (cf. Dietz & Martin, 2007). Esta assumpção revela-se de extrema importância nocontexto nacional uma vez que o não reconhecimento desta forma de vitimação alimenta ainterpretação desta conduta à luz de mecanismos de legitimação da conduta, minimização dagravidade e desresponsa bilização dos ofensores, por exemplo, através da romantização de certoscomportamentos (cf. Grangeia et al., 2008). Para além disso, o impacto da vitimação por stalkingnão se esgota no medo; pelo contrário, a panóplia e diversidade de reacções possíveis, quer ao níveldo impacto negativo, quer do positivo, está amplamente documentada pela literatura (cf. Cupach& Spitzberg, 2004 para uma revisão). Assim sendo, é provável que alguns dos participantesidentificados como vítimas possam ter sofrido outras repercussões decorrentes da experiência devitimação que não o medo.

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Apesar de ser compreensível o esforço de operacionalizar a definição de stalking recorrendoao critério de medo, este pode tornar-se altamente limitador – já que promove a eliminaçãopreliminar de potenciais vítimas – e até mesmo segregador – na medida em que não atende, nemvalida igualitariamente todas as experiências de vitimação.

De modo a aprofundar estes resultados, entendemos ser elucidativo atentar aos preditores daexperiência de medo.

No que concerne às características da vítima, o sexo parece desempenhar um papel crucial,sendo que o grupo das vítimas que relatam ter experienciado medo é constituído sobretudo pormulheres (52.1% vs. 16.1%). Esta tendência vai de encontro com os resultados encontrados noutrosestudos (cf. meta-análise de Spitzberg et al., 2010).

Apesar das mulheres apresentarem, neste estudo, uma taxa de vitimação superior que os homens(67.8% e 32.2%, respectivamente), interessa compreender os processos e mecanismos maiscomplexos – nomeadamente sócio-culturais – que parecem estar envolvidos na diferenciação entrehomens e mulheres no que concerne ao medo. Numa outra investigação, Sutton e Farral (2005)exploraram a associação entre a desejabilidade social e a experiência de medo e concluíram queos homens que se mostraram mais sensíveis à desejabilidade social relatavam menores níveis demedo, o que não acontecia nas mulheres; além disso, quando a variável “desejabilidade social”era controlada, homens e mulheres apresentavam valores idênticos no que concerne ao medo.Neste sentido, a desejabilidade social deve ser considerada para a análise dos resultados(especialmente no caso dos homens vítimas), uma vez que não relatar medo não significanecessariamente que não o tenham experienciado. A confirmar-se esta tendência em estudosfuturos, importa considerar as implicações decorrentes da dificuldade dos homens vítimas destalking em assumir as consequências negativas da sua experiência. Por exemplo, Thompson,Dennison e Stewart (2010) alertam para o facto de ocorrer um menor recurso à ajuda policial noscasos em que os homens minimizam o medo e desvalorizam as acções de uma mulher stalker.Dessa forma, para além de contribuir para a negação da vitimação, minimização da gravidade epara a protelação da denúncia e procura de apoio, a sua experiência poderá permanecer oculta enão validada socialmente.

O género, enquanto mecanismo social, parece contribuir significativamente para a construçãodiferenciada das experiências de medo vivenciadas por homens e mulheres. Neste sentido, segundoHollander (2001), a feminilidade (no sentido da sua representação hegemónica) associa-se aimagens de fragilidade, delicadeza e indefesa, que legitimam não só sentir (como também expor)a experiência de medo; por outro lado, a masculinidade pressupõe bravura, força e moderação nasmanifestações emocionais, o que desfavorece a expressão do medo. Este autor acrescenta a estascaracterísticas as noções de vulnerabilidade e de perigosidade face à violência; segundo o autor,a primeira é parte integrante da construção de feminilidade, enquanto a segunda se integra naconstrução da masculinidade. De facto, estas imagens do que é ser homem e mulher podemrepercutir-se ao nível quer do impacto psicológico e social (aquele que confere maior visibilidadeà vitimação e que parece ser mais permitido à mulher), quer das respostas (esperando-se que amulher reaja com maior passividade e evitamento e assim condicionando a percepção devulnerabilidade), influindo significativamente no relato de medo. Em suma, sendo o stalking umaexperiência de violência e percepcionando-se as mulheres como mais vulneráveis, fará sentidoque experienciem e reportem com mais facilidade o sentimento de medo.

Quando se analisam exclusivamente as características da vítima note-se que, contrariamenteao estudo de Dietz e Martin (2007), o estado civil não se revelou preditor da experiência de medo.Contudo, importa referir que estes autores privilegiaram uma análise por pares sucessivos, o quecondiciona a comparação. Não obstante, verifica-se que as vítimas sem uma relação formalizadaaparecem significativamente mais associadas ao relato da experiência de medo, quandocomparadas com aqueles que tinham uma relação formalizada (47.2% vs. 20.9%). Estes dados

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poderão ser explicados pelo facto da ausência de uma relação de intimidade poder contribuir parauma maior percepção de vulnerabilidade, contrariamente à existência de relações percepcionadascomo securizantes.

Quando se exploraram de forma conjunta as características da vítima e do stalker, verificou-seque o sexo do stalker era o único preditor significativo do medo. Interessa lembrar que, na amostrade vítimas que relataram medo como consequência da vitimação, 56.3% foram perseguidas poralguém do sexo masculino, enquanto que para 16% a stalker era mulher. Uma vez mais, importareferir as questões da identidade de género, mais especificamente a ideia de perigosidade associadaà masculinidade (hegemónica) (Hollander, 2001). Neste sentido, o facto de o sexo da vítima perderinfluência neste bloco pode ser sintomático da percepção do perigo em função do sexo doperpetrador, isto é, quando a conduta de stalking é levada a cabo por um indivíduo do sexomasculino é percepcionada como mais ameaçadora. Neste sentido, para Grangeia e Matos (2009),as percepções sobre a experiência de stalking reflectem diferenças de género, o que reforça anatureza cultural deste tipo de fenómeno. No seu estudo com 3381 estudantes universitáriosportugueses, as mulheres vítimas de stalking identificaram a sua experiência como maisassustadora e avaliaram a conduta do ofensor como mais grave do que as vítimas do sexomasculino. Enquanto ofensoras, as mulheres revelaram também maior censura da sua conduta doque os homens ofensores, avaliando-a como mais grave. Também de acordo com Davis e Frieze(2002), homens e mulheres apresentam percepções diferenciadas do mesmo acontecimento, sendoque quando o perpetrador é homem as acções são avaliadas pelas mulheres como mais sérias eindutoras de medo. Uma vez mais, o género parece influenciar a forma como se avalia o perigo ea segurança envolvida nas situações. Segundo um estudo realizado por Madriz (1997) que, atravésde focus group e de entrevistas, explorou as imagens ideais de vítima e de criminoso numa amostraconstituída por 140 mulheres, verificou-se que a maioria das participantes descreveu “o criminosoideal” como um homem com uma figura física corpolenta, imoral, cruel, irracional, violento ecom dificuldades sérias no controlo dos impulsos; por outro lado, “a vítima ideal” era apresentadacomo uma mulher com uma figura física frágil, inocente, passiva, vulnerável e inofensiva.

Por fim, a análise conjunta das características quer da vítima, quer do stalker, bem como dasdinâmicas de vitimação permitiu superar o poder preditivo dos blocos anteriores, classificandocorrectamente mais de 80% dos casos, o que sugere que a experiência de medo decorre de umainteracção complexa de variáveis de diferentes índoles. Assim, quando se atentam às variáveisque integram o bloco, verifica-se que o maior preditor é o sexo da vítima, sendo que quando avítima é mulher a probabilidade de ter relatado medo é quase seis vezes superior,comparativamente aos participantes masculinos. No terceiro bloco, a idade da vítima apresenta-se também como um preditor significativo da experiência de medo, o que corrobora os resultadosverificados por Dietz e Martin (2007). Desta forma, parece que as vítimas mais novas parecemexperienciar um grau de medo superior. De acordo com os mesmos autores, esta vulnerabilidadedecorrente da idade poderá explicar-se quer por efeitos de cohorte (i.e., maior sensibilidade econsciencialização face a estas questões), bem como devido às experiências anteriores, sugerindoque a exposição a este tipo de vivências permite desenvolver um conjunto de competências erecursos que inibiriam o sentimento de medo. Outro motivo subjacente a esta tendência poderáprender-se com aspectos associados aos rituais de cortejamento que poderão legitimar uma posturamais permissiva e aos quais os participantes mais jovens, pela fase desenvolvimental em que seencontram, poderão estar mais expostos.

Quanto aos comportamentos de stalking, saliente-se que apenas a vigilância pelo/a stalker oupor terceiros incumbidos por este/a é um preditor significativo da experiência de medo. Atendendoao carácter proeminentemente intimidatório, predatório e intrusivo do acto, este resultado eraexpectável. De facto, a vigilância enquadra-se nas “acções subtis capazes de funcionar comolembretes constantes da vulnerabilidade” (Keane, 1995, p. 451). Curiosamente outros comporta -

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mentos percepcionados pelo senso-comum como geradores de medo – tais como a presença deameaça explícita ou a ocorrência de agressão – não se revelaram factores discriminantes daexperiência de medo. Ora, uma vez mais, este dado problematiza o critério de medo, sobretudoquando compreende a perspectiva de um juízo externo incorporado no conceito de pessoa“razoável”, na medida em que os actos que as pessoas poderão percepcionar como geradores demedo poderão não corresponder à realidade e percepções da vítima. De facto, num estudodesenvolvido por Dennison (2007), junto de uma amostra da comunidade (N=868), com opropósito de identificar, entre outras variáveis, a influência da intenção (presença e ausência deameaça) na antecipação da experiência de medo em casos de stalking, verificou-se que noscenários em que a ameaça era explícita os participantes percepcionavam como superior aprobabilidade de sentir medo. Por tudo isto, defende-se, à semelhança de outros autores (e.g.,Kamir, 2001), que uma avaliação das experiências de stalking assente exclusivamente num juízoexterno negligencia quer as idiossincrasias, quer as influências sócio-culturais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desconhecendo-se a existência de estudos anteriores acerca dos preditores do medo em vítimasde stalking de ambos os sexos, este estudo assume um carácter pioneiro e, por isso, os resultadosdeverão ser encarados com cautela. Neste sentido, carecem quer de replicação, quer deaprofundamento através de estudos de índole qualitativa, que permitam explorar com mais detalheas circunstâncias, experiências e trajectórias que potenciam ou inibem o relato de medo pelasvítimas.

Uma das limitações do estudo prende-se com a constituição dos grupos, na medida em que asvítimas que sentiram “pouco” ou “muito” medo foram aglomeradas num único grupo (“comexperiência de medo”). Uma análise comparativa destes grupos permitiria destrinçar variáveiscomuns e específicas envolvidas nos diferentes graus de medo.

Espera-se, no entanto, que este estudo contribua para o reconhecimento e consciencializaçãosocial de um fenómeno de vitimação interpessoal que afecta de modo expressivo a populaçãoportuguesa e que é percepcionado, na maioria dos casos, como uma experiência indutora de medo.Naturalmente, o medo acarreta custos pessoais significativos, repercutindo-se em diferentes esferasda vida da vítima mas também socialmente. Evidenciou-se também que os efeitos da vitimaçãopor stalking não dependem apenas da conduta do ofensor. Pelo contrário, resultam da intersecçãode factores que, na sua complexidade, devem ser compreendidos e localizados no contextosociocultural. O stalking é, assim, uma experiência subjectiva e deve ser encarado como umproblema social relevante. Urge pois a implicação social e política de forma a prevenir a suaocorrência e revitimação, responsabilizar os/as ofensores/as e diminuir as dificuldades das vítimas.

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This paper aims to reflect about a reality that is still hidden in the national context – stalking – and toanalyze the factors that compete to fear as a result of this kind of victimization. The study wasconducted with a sample of 236 participants that had reported being a target of stalking in some pointof their lives. Victim’s age, sex, and also being victim of surveillance by the stalker have emerged aspredictors of fear as a consequence of stalking. Therefore, results suggest that the effects of this typeof violence should be understood and located in the sociocultural tissue, being necessary a greaterinvestment in research and practices for acting against this phenomenon.

Key-words: Fear, Harassment, Stalking, Victimization.

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Análise Psicológica (2012), XXX (1-2): 177-191

Escala de Crenças sobre Violência Sexual (ECVS)

Sónia Martins* / Carla Machado* / Rui Abrunhosa* / Celina Manita**

*Escola de Psicologia, Universidade do Minho; **Faculdade de Psicologia e de Ciências daEducação da Universidade do Porto

A incorporação e partilha das concepções culturais dominantes acerca da sexualidade, da violência,da violação e de outras formas de violência sexual têm consequências tanto para a vida dos indivíduoscomo para a vida em sociedade. Atitudes sexistas e crenças legitimadoras da violação têmconsistentemente sido associadas com uma maior probabilidade de agressão e violência sexual. Asatitudes face à violência sexual parecem também estar associadas com os papéis tradicionais de género,sobretudo os que se prendem directamente com o comportamento sexual. A ECVS mede o grau detolerância/aceitação do sujeito quanto ao uso de violência desta natureza. Quanto mais elevada for apontuação total da escala, mais elevado será o grau de tolerância/aceitação do sujeito quanto ao usode violência sexual. A ECVS foi administrada a uma amostra nacional de 1000 estudantesuniversitários, analisando-se as suas características psicométricas. A análise factorial de componentesprincipais (com rotação varimax) permitiu obter cinco factores. A consistência interna da escala, obtidaatravés do coeficiente alpha de cronbach, é de 0.91. Discutem-se as implicações dos resultadosobtidos, quer em termos da análise da capacidade da ECVS para detectar atitudes e crenças associadascom a violência sexual, quer em termos da análise do seu contributo na construção e implementaçãode programas de intervenção e prevenção.

Palavras-chave: Atitudes, Crenças, Mitos sobre violação, Violência sexual.

INTRODUÇÃO

A ECVS mede o grau de tolerância/aceitação do sujeito quanto ao uso de violência de naturezasexual. A necessidade de construção da escala foi sentida a partir da constatação da inexistênciade instrumentos aferidos para a população portuguesa neste domínio e insere-se num projectomais vasto de investigação (incorporado no projecto “Violência nas Relações Juvenis deIntimidade” – PTDC/PSI/65852/2006, financiado pela FCT e coordenado pela Professora DoutoraCarla Machado) que, globalmente, pretende: (a) disponibilizar instrumentos de investigação,adaptados para a população portuguesa, no domínio da violência sexual; (b) recolher dados sobrea prevalência e incidência dos diferentes tipos de violência sexual (i.e., contactos sexuaisindesejados, coerção sexual, tentativa de violação e violação) junto de jovens adultos, estudantesuniversitários, com idades compreendidas entre os 18 e os 24 anos de idade, tanto ao nível davitimação quer como da perpetração; (c) conhecer o posicionamento destes jovens face a estasformas de violência (procurando identificar o grau de tolerância/legitimação em relação a estes

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Este texto foi elaborado no âmbito do Projecto “Violência nas Relações Juvenis de Intimidade” financiadopela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (PTDC/PSI/65852/2006), coordenado por Carla Machado.

A correspondência relativa a este artigo deverá ser enviada para: Sónia Martins, Centro de Investigação eClínica Forense (CICLIF), Porto. E-mail: [email protected]

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comportamentos e as crenças específicas que concorrem para a sua legitimação); (d) analisar arelação entre atitudes e comportamentos abusivos e identificar factores sociodemográficos eformativos associados às crenças e comportamentos sexualmente abusivos; (e) explorar eventuaisfactores preditores das atitudes legitimadoras da violência sexual e dos comportamentossexualmente abusivos; e, (f) reflectir sobre o uso de diferentes metodologias e diferentes designsde investigação. De mencionar, também, que a elaboração da escala percorreu várias etapas (talcomo explicitaremos mais em baixo), tendo sempre como alvo estudantes universitários.

HISTÓRIA

Trata-se de uma escala que foi construída elaborada a partir da “Escala de Crenças sobre aViolação (ECV)” (Matos, Machado, & Gonçalves, no prelo). Esta última é constituída por 29itens, construídos a partir da observação clínica de vítimas de violação, da revisão da literaturasobre mitos e crenças culturais em relação à violência sexual, da observação clínica de violadorese do que é veiculado na literatura a respeito das estratégias cognitivas de legitimação docomportamento sexualmente abusivo.

Os itens estão construídos segundo a concepção de que as vítimas serão do género feminino eos seus perpetradores do género masculino. Os 29 itens da escala correlacionam-se fortementecom o seu total (as correlações variam entre um mínimo de .41 e um máximo de .76). Aconsistência interna da ECV, obtida através do coeficiente alpha de Cronbach, é de .93. A análisefactorial de componentes principais (rotação varimax) permitiu obter três factores que, no seuconjunto, explicam 53.5% da variância da escala. O primeiro factor [“legitimação da violênciapelo consentimento feminino”] explica 43.8%, o segundo [“legitimação da violência através docomportamento sexual prévio da mulher”] explica 5.2% e, o terceiro [“legitimação da violaçãopela normalidade do ofensor”] explica 4.5% da variância.

Face ao exposto, importa mencionar que a construção e adaptação da ECVS passou pordiferentes etapas, nomeadamente: (a) adaptação dos itens da ECV de forma a comportar umalinguagem não genderizada (de modo a que ambos os géneros possam ser conceptualizados comopotenciais vítimas e/ou agressores), assim como um continuum de comportamentos sexualmenteviolentos (e não apenas a violação); (b) reflexão falada dos itens, junto de um grupo de 15 jovensuniversitários com idades compreendidas entre os 18 e os 24 anos de idade, da Universidade doMinho, e junto da equipa de investigação (cerca de 10 colegas investigadores), de modo a analisaro modo como a formulação dos itens era interpretado, nomeadamente as dificuldades ouambiguidades apresentadas pelos mesmos. Esta fase conduziu à alteração na forma de apresentaçãoou formulação de alguns itens. No final, a escala ficou com trinta itens; (c) primeiro estudo dasqualidades psicométricas da escala, com uma amostra de conveniência, composta por 700estudantes do ensino superior, com idades compreendidas entre os 18 e os 24 anos de idade, daregião Norte do país; e, (d) um novo estudo, conduzido com a versão definitiva da escala,administrada a uma amostra representativa (quanto ao género, área de formação e região dePortugal Continental), constituída por 1000 estudantes do ensino superior, com idadescompreendidas entre os 18 e os 24 anos de idade.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Os comportamentos sexuais, à semelhança do que acontece com os restantes comportamentoshumanos, são constrangidos pelas normas sociais e culturais dominantes, que impõem determinados

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padrões de comportamento sexual, sendo o género apontado como o principal factor de discriminaçãodo que constitui um comportamento aceitável/não aceitável (Freese, Moya, & Megías, 2004).

Desde os anos 70, em particular a partir dos primeiros estudos de Brownmillher (1975) sobreo tema, várias investigações têm procurado compreender como é que as atitudes de género (e.g.,Burt, 1980; Ong & Ward, 1999; Ryckman, Kaczor, & Thornton, 1992) e/ou mitos de aceitação daviolência sexual contribuem para esta forma de violência e se relacionam com as reacções àmesma. Apesar de diferentes estudos conduzidos recentemente começarem a documentar que, nageneralidade, os participantes tendem a discordar com a afirmação expressa de mitos sobre aviolência sexual (e.g., Brady, Chrisler, Hosdale, OsoWiecki, & Veal, 1991; Carmody &Washinghton, 2001; Golge, Yavuz, Muderrisoglu, & Yavuz, 2003; Hinck & Thomas, 1999;McDonald & Kline, 2004; Vrij & Kirby, 2002), ainda se continuam a registar algumas crençaslegitimadoras desta forma de violência, nomeadamente as de que: (a) relativamente às mulheres,estas acusam injustamente os homens de violação; a violação não é prejudicial; aquelas gostamda ou desejam a violação e provocam a agressão ou merecem ser violadas, devido ao seu comporta -mento inapropriado ou de “risco”; e, que raramente são perpetradoras desta violência contra oshomens; e, (b) relativamente aos homens, estes não podem ser, ou raramente são, vítimas deagressão sexual; que estas agressões só acontecem em prisões e são cometidas por violadoreshomossexuais.

Neste sentido, e como referem Freese e colaboradores (2004), perceber as atitudes face àviolência sexual permite-nos perceber como é que as pessoas reagem e se comportam face àsvítimas e aos agressores. Tal facto é de extrema relevância na medida em que estas atitudes podemser sustentadas quer por perpetradores quer por vítimas e são, frequentemente, pautadas pelaculpabilização da vítima, minimização do impacto psicológico do crime e justificação docomportamento do agressor. Estas atitudes e crenças influenciam quer a manifestação e tolerânciada violência sexual (Proite, Donnells, & Benton, 1993), quer a adesão aos estereótipos sexuaistradicionais de masculinidade e feminilidade (Zweing, Barber, & Eccles, 1997).

Por exemplo, a probabilidade de usar a força num encontro sexual tem aparecido positivamenteassociada a sentimentos de hostilidade face às mulheres, à aceitação de mitos de violência sexuale à crença de que a mulher deseja ou merece ser violada (Feltey, Ainslie, & Geib, 1991). De modosemelhante, outros estudos têm documentado que, quando os homens são socializados de modoa serem dominantes e agressivos, tendem a guiar-se por uma “cultura da hipermasculinidade”,com o suporte de pares que fomentam a agressão sexual e legitimam mitos e crenças sexuaisagressivos (Rozee & Koss, 2001).

Por sua vez, os estudos conduzidos com o intuito de compreender as atribuições para osdiferentes tipos de agressão sexual têm concluído que os indivíduos consideram a agressão sexualcometida por um estranho como um crime mais sério e mais traumatizante (física epsicologicamente) para a vítima do que a agressão, mesmo que com características muitosemelhantes, cometida por um conhecido (e.g., Bell, Kuriloff, & Lottes, 1994; Bridges, 1991;Perry, McLondon, & Foley, 1994; Szymanski, Devlin, Chrisler, & Vyse, 1993). O mesmo severifica nos estudos que procuram comparar atitudes relativamente à violação por um estranho eà violação marital (e.g., Monson, Byrd, & Langhinrichsen-Rohling, 1996; Sullivan & Mosher,1990).

Em todas estas investigações se constatou que as mulheres tendem a avaliar a violação maisseveramente do que os homens (Bell et al., 1994; Bridges, 1991; Monson et al., 1996; Szymankiet al., 1993). Porém, quando se compara a violação por um conhecido ou namorado com a violaçãoperpetrada por um desconhecido, quer os homens quer as mulheres tendem a percepcionar aprimeira como mais atribuível às características da vítima do que a segunda (Monson,Langhinrichsen-Rohling, & Biderup, 2000).

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Importa ainda reflectir sobre os estudos que procuraram perceber o tipo de informação que aspessoas tendem a considerar na formulação de julgamentos atribucionais face à violação. Krahé(1991), por exemplo, registou como variáveis frequentemente consideradas: “o grau de resistênciada vítima, o consumo de álcool ou existência de lesões físicas, a ameaça ou uso de uma arma porparte do violador e as circunstâncias em que a violação ocorreu (incluindo a hora do dia e o localda agressão)” (p. 227). Outros estudos sustentam que factores como a ausência ou presença deresistência por parte da vítima (Ong et al., 1999) ou as relações entre a vítima e o perpetrador(Bell et al., 1994; Monson et al., 1996) podem influenciar estas atitudes, sendo que a probabilidadede a vítima ser responsabilizada pela sua vitimação é elevada quando ela é conhecida do violador(Bell et al., 1994; Bridges & Mcgrail, 1989).

Uma revisão mais aprofundada destes trabalhos permite concluir que, relativamente aos estudosque se centraram na violação das mulheres, sobretudo nos mais antigos, as pessoas tendem aacreditar no “clássico” estereótipo da violação perpetrada por um estranho (e.g., Estrich, 1987;Ryan, 1988). O facto é que, mesmo na actualidade, quando é pedido às pessoas para descreveremo que entendem por uma “típica violação” (“credível”, “genuína”, “real”), estas tendem a descreverum acontecimento que ocorre na rua, à noite, em que as vítimas estão sozinhas e desprotegidas e,subitamente, são atacadas por um estranho. É curioso notar que, relativamente à vítima, factorescomo esta vestir roupa “provocante”, conhecer o agressor, estar alcoolizada e ter passado tempocom aquele no momento que precedeu a agressão e, no caso do agressor, factores como este usararma e recorrer a actos agressivos para tentar consumar a violação, tendem a não ser imediatamentemencionados (Anderson, 2007).

Não menos relevante é a conclusão de que este estereótipo da “real” violação, associada àperpetração por um estranho, também está presente no discurso de vários profissionais, entre osquais médicos, polícias, advogados e juízes (Du Mont, Miller, & Myhr, 2003; Ferreira, 2004; Kassing& Prieto, 2003). Existem mesmo evidências de que estes discursos se imiscuem na avaliação queestes profissionais fazem dos casos de violação, traduzindo-se na classificação que fazem dosmesmos como “fortes” e “fracos” (Estrich, 1987; Larcombe, 2002). Mais especifica mente, um caso“forte”, percepcionado como uma situação em que a probabilidade de se conseguir uma condenaçãoé significativa, é um caso cujas características se aproximam do estereótipo da “real violação”.

Alguns autores (e.g., Wood & Rennie, 1994) alertam para o facto de que esta tendência étambém, frequentemente, observada nas próprias vítimas. Por outras palavras, as vítimas raramentedefinem um episódio sexual como abusivo se o mesmo não se aproximar dessa percepção estereo -tipada do que é uma “verdadeira violação” – o que, obviamente, conduz a baixas taxas de denúncia(Estrich, 1987). Contudo, mais recentemente, outros autores (e.g., Gavey, 2005), sugerem queestamos a assistir a uma mudança nas crenças públicas em torno do estereótipo da violação. Estamudança paulatina tem sido associada a um conjunto de factores, entre os quais se encontram aerosão do suporte cultural para os mitos de violação e para as atitudes tradicionais face aos papéissexuais (Orcutt & Faison, 1988), a crescente discussão nos media sobre as violações cometidasno contexto das relações de intimidade (Gavey, 2005), e uma maior ênfase na denúncia e discussãodos mitos de violação nos jornais e nas revistas (Verberg, Desmarais, Wood, & Senn, 2000). Estamodificação estará mesmo a conduzir, na óptica de alguns investigadores, a uma relação estatisti -camente significativa entre a diminuição de crenças e mitos sobre a violação e o incremento dedenúncias de violações cometidas por agressores conhecidos das vítimas (Hinck & Thomas 1999).

Um estudo internacional recente (Krahn, 2004) parece ser demonstrativo desta mudança, namedida em que, quando foi pedido às participantes para descreverem uma experiência sexualcoerciva recente, se verificou que relatavam, frequentemente, uma violação perpetrada por umnamorado ou conhecido. Além disso, quando se questionou se essas situações correspondiam auma “verdadeira” violação, a maioria concordou, apenas discordando quanto ao facto de o sexooral ou “digital” constituírem violação – o que mostra que muitas outras mudanças cognitivasprecisam ainda de ocorrer.

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A verdade é que um número considerável de mulheres é alvo de violência sexual em circuns -tâncias diferentes das que são contempladas neste estereótipo (e.g., Lonsway & Fitzgerald, 1994).Como refere Estrich (1987), a “verdadeira violação” (isto é, a mais frequente) acontece entre duaspessoas que se conhecem e em que o agressor não bate na vítima nem a ameaça com uma arma.

Já quando se analisam os estudos em torno da violência sexual cometida contra homens adultos,verifica-se que esta só muito recentemente tem ganho terreno na investigação, nomeadamente nocampo da psicologia social (Anderson, 1999; Anderson, Beatti & Spencer, 2001; Isely &Gehrenseck-Shim, 1997). Além disso, verifica-se, à semelhança do que se regista no caso dasvítimas mulheres, que existe uma subrepresentação desta realidade nas estatísticas oficiais(Anderson, 2007). Entre as principais razões evocadas para a não denúncia encontra-se o medodos homens vítimas de serem desacreditados, culpabilizados ou questionados quanto à suaorientação sexual (Scarce, 1997).

A literatura documenta, ainda, que a ignorância e a descrença face ao fenómeno da agressãosexual dos homens têm contribuído para a perpetuação de vários mitos em torno desta proble mática.Mais especificamente, estudos realizados com o objectivo de perceber as concepções dosparticipantes relativamente à violação dos homens (e.g., Struckman-Johnson & Struckman-Johnson,1992), identificaram diversas percepções estereotipadas, como, por exemplo, que “os homensadultos só podem ser violados na prisão”, “os homens que são violados são homossexuais”, “oshomens são demasiado fortes para serem violados”. Outras ideias comuns são as de que, para seruma “verdadeira vítima”, o homem tem de ser mais pequeno que o seu agressor, que nestas situaçõeso violador e/ou a vítima são homossexuais, e que a vítima deverá sentir culpa pela agressão sexualde que foi alvo (Anderson, 2007; Struckman-Johnson & Struckman-Johnson, 1992). O estado daarte leva-nos, portanto, a concordar com autores como Donnelly e Kenyon (1996), quando referemque o conhecimento em torno da violação cometida contra homens se encontra no mesmo estádioem que o saber sobre a violação das mulheres se encontrava há vários anos atrás, apesar de existirum longo caminho a percorrer ainda, também nesta última área.

O que parece indiscutível e consensual é o facto de o género dos participantes afectar as suaspercepções do que constitui uma “típica violação das mulheres” e uma “típica violação doshomens”. Mais concretamente, os estudos revelam que os homens concordam mais com mitossobre a violação do que as mulheres (Brady et al., 1991; Davies, Pollard, & Archer, 2001; Geiger,Fisher, & Eshet, 2004; Hinck & Thomas, 1999), culpam mais as vítimas (White & Kurpius, 2002)e sustentam atitudes menos tolerantes face às mesmas (Jiminez & Abreu, 2003; Nagel, Matsuo,McIntyre, & Morrison, 2005; William & Pollard, 2003). Autores como Doherty e Anderson (1998)concluem que tal realidade decorre “da natureza altamente genderizada da violação e dasexpectativas culturais que norteiam as relações sexuais e suas transgressões” (p. 229).

O que é interessante notar é que esta menor identificação também se estende à violação doshomens (Anderson, 2007). Por outras palavras, a investigação evidencia que os homens culpammais as vítimas homens do que as mulheres (Mitchell, Hirshman, & Hall, 1999), concordam maiscom os mitos sobre a violação masculina (Struckman-Johnson & Struckman-Johnson, 1999) esão mais homofóbicos (Anderson, 2004; Burt & DeMello, 2002). Quanto a este último aspecto,algumas investigações (e.g., Anderson & Doherty, 2004; Davies, 2002; Davies & McCartney,2003) constataram que a homofobia se torna mais saliente quando os homens não se identificamcom as vítimas envolvidas e quando o incidente é descrito como envolvendo vítimas “gay”.

Alguns autores procuraram averiguar os factores que contribuem para esta reacção hostil ehomofóbica à violação dos homens. Identificaram como factores preponderantes a reduzidasimpatia com homens posicionados num papel não-dominante, assim como a crença de que oshomens vítimas são homossexuais, com um estilo de vida pautado pelo envolvimento em sexocasual e indiscriminado (Scarce, 1997; West, 2000). Neste sentido, Davies (2002) considera queesta associação entre a violação dos homens e a homossexualidade pode ser uma maneira de osparticipantes expressarem a sua homofobia.

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A percepção da violação masculina por parte dos homens parece, aliás, estar associada a umacombinação da masculinidade hegemónica (Kite & Whitley, 1996) com estratégias dedistanciamento/defensividade emocional (Bell et al., 1994; Shaver, 1970). Por exemplo, Andersone Doherty (2004) verificaram que os homens tendem a distanciar-se de certos incidentes deviolação envolvendo vítimas homens, descrevendo-os em termos sexuais e homofóbicos, de modoa deixarem a sua masculinidade intacta e a negarem a possibilidade de se poderem tornar vítimasdeste tipo de agressão. As autoras verificaram também que as crenças homofóbicas estavampositivamente correlacionadas com a atribuição de culpabilidade aos homens vítimas de violaçãoe com a crença de que as vítimas sofrem um impacto menor se a penetração for uma prática sexualnormal na sua vida (i.e., se o homem for homossexual), acreditando, portanto, que o trauma serámaior para as vítimas que nunca experienciaram este tipo de contacto sexual.

Como tentativas de explicar esta diferente identificação de homens e mulheres com as vítimasde violação, têm ainda sido avançados os argumentos de que as mulheres têm maior probabilidadede ser agredidas sexualmente (DeKeseredy, Schwartz, & Trait, 1993; Koss, Gidycz, & Wisniewski,1987) e o facto de estas experimentarem quotidianamente o medo de uma potencial violação(Verberg, 1998). Por outro lado, historicamente, as mulheres foram quase sempre as vítimas daviolência, ao passo que os homens quase sempre encarnaram o papel de perpetradores.

Partindo deste pressuposto, Anderson (2007) considera que os homens têm um menorconhecimento sobre o fenómeno porque são menos vítimas, têm poucos amigos que o foram, osmedia são mais omissos no que respeita à violação dos homens do que à das mulheres e,consequentemente, este é um tema que raramente surge na sua interacção social. A autora entende,assim, que os homens, por possuírem menor conhecimento ou empatia para com as vítimas deviolação, quando lhes é pedido para verbalizarem o que constitui uma “verdadeira violação”tendem a recorrer ao estereótipo da perpetração da agressão por um estranho – fazendo-o querem relação à violação das mulheres quer em relação aos homens, por extrapolação de um cenáriopara outro. Em contrapartida, Anderson considera que é esperado que as mulheres conheçammelhor o fenómeno e, como tal, se identifiquem mais proximamente com as vítimas. Refere aindaque, dadas as mudanças que têm ocorrido na percepção da violação das mulheres, é esperado queas mulheres saibam que a violação por alguém conhecido é mais frequente do que por um estranhoe tendam a incluir esta situação nas suas descrições, extrapolando este conhecimento para aviolação dos homens.

No plano das implicações destes dados, salientamos que a não percepção deste tipo de violênciacomo algo de grave tem consequências negativas extremas para a vítima, ao nível da suarecuperação (Kubany, Abueg, Owens, Brennan, Kaplan, & Watson, 1995), da denúncia do crimee da intervenção do sistema judicial, que acaba por passar a mensagem aos agressores de que a leinão pode punir as suas acções e, simultaneamente, contribui para o sentimento de insegurança edesamparo das vítimas (Freese et al., 2004; Koss, 1992). Tal torna-se particularmente significativose considerarmos que estas vítimas, mais do que as de outros crimes graves, já tendem a silenciara sua vitimação (Koss, 1992).

ESTUDOS REALIZADOS EM PORTUGAL

Etapas e objectivos

O primeiro estudo realizado com a ECVS teve por objectivo analisar as qualidadespsicométricas da escala e decorreu durante o ano lectivo de 2007/2008. Um segundo estudo foiconduzido no ano lectivo de 2008/2009, já com a versão definitiva da escala, e com uma amostra

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representativa de estudantes do ensino superior, residentes em Portugal Continental, com idadescompreendidas entre os 18 e os 24 anos de idade. Este segundo estudo permitiu-nos replicar,globalmente, as análises estatísticas anteriormente realizadas, no que se refere às propriedadespsicométricas da escala, nomeadamente, no que diz respeito à sua precisão e validade, queapresentaremos mais adiante. De salientar que, ao longo deste artigo e para que o leitor possaacompanhar os diferentes passos realizados, iremos apresentar os resultados de ambos os estudosefectuados, ressaltando, contudo, os resultados do segundo estudo, dada a maior representatividadeda amostra que lhe serve de base.

Amostras e metodologia

Tal como mencionado anteriormente, foi realizado um estudo piloto, com uma amostra deconveniência, composta por 700 sujeitos [319 Homens (45.6%) e 381 mulheres (54.4%)], comidades compreendidas entre os 18 e os 24 anos de idade [M=20.01; DP=1.654]. Esta amostra foirecolhida em quatro estabelecimentos de ensino superior da zona Norte do País.

O segundo estudo permitiu alargar esta amostra e torná-la mais representativa, abrangendo1000 estudantes do ensino superior [462 Homens (46.2%) e 538 Mulheres, (53.8%)], com idadescompreendidas entre os 18-24 anos de idade (M=20.21 anos de idade; DP=1.72). A amostra foicalculada segundo a informação disponibilizada pelo Observatório da Ciência e do EnsinoSuperior, derivada do tratamento dos resultados obtidos pelo inquérito estatístico anual DIMAS,controlando as variáveis: género, região do país (definidas de forma concordante com o que édefinido pelo Instituto Nacional de Estatística, com base nos Censos para Portugal Continental,sendo este dimensionamento baseado no erro absoluto, com um grau de confiança de 95%) ediferentes áreas de formação (definidas de acordo com a Portaria nº 256/2005 de 16 de Março doDiário da República). Os quadros seguintes permitem analisar, de forma mais detalhada, os dadosformativos e sociodemográficos que caracterizam os participantes deste segundo estudo (cf.Quadro 1 e 2).

QUADRO 1

Distribuição dos participantes segundo as suas características sociodemográficas (N=1000)N % face ao total da amostra

Características sociodemográficas

Género Feminino 462 46.2Masculino 538 53.8

Estado civil Solteiro 991 99.1União de facto 9 0.9

Nível socioeconómico Baixo 13 1.3Médio-Baixo 180 18.0Médio 634 63.4Médio-Alto 167 16.7Elevado 6 0.6

Zona Portugal Continental Norte 315 31.5Centro 219 21.9Lisboa e Vale do Tejo 387 38.7Alentejo 49 4.9Algarve 30 3.0

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QUADRO 2

Distribuição dos participantes segundo as suas características formativas (N=1000)N % face ao total da amostra

Áreas de formação Educação 61 6.1Artes e humanidades 84 8.4Ciências sociais, comércio e direito 329 32.9Ciências, matemática e informática 73 7.3Engenharias, Indústrias transformadoras e construção 219 21.9Agricultura 20 2.0Saúde e Protecção Social 158 15.8Serviços 56 5.6

Áreas de formação 1º Ano 362 36.22º Ano 318 31.83º Ano 231 23.1Mestrado e Mestrado Integrado 60 6.0Doutoramento 29 2.9

Dados qualitativos e quantitativos dos itens

A escala é composta por 30 itens, apresentados com uma escala de resposta de cinco pontos(desde 1=discordo totalmente até 5=concordo totalmente). Nenhum dos itens foi eliminado, umavez que todos se mostraram adequados do ponto de vista da validade de conteúdo, da dispersão edo poder discriminativo.

Resultados no âmbito da precisão

A escala, na sua versão final, é constituída por trinta itens. Os itens apresentam uma correlaçãocom a pontuação total da escala que varia entre 0.397 e 0.796. A consistência interna da escala,obtida através do coeficiente alpha de cronbach é, segundo os dados recolhidos no estudo piloto,de 0.905 e, no segundo estudo, de 0.908. Trata-se, por conseguinte, de uma escala com elevadograu de consistência interna.

Resultados relativos à validade

Na análise da estrutura factorial dos resultados, optámos pela análise da ECVS em componentesprincipais com rotação varimax. Os resultados apontam para a existência de cinco factores que,no seu conjunto, explicam 48.602% da variância dos resultados no primeiro estudo e 48.896% nosegundo.

As análises estatísticas efectuadas às escalas da ECVS revelam valores de adequação para oíndice de Kaiser-Meyer-Olkin (de 0.921 no primeiro estudo e de 0.929 no segundo). O teste deesfericidade de Bartlett também apresenta valores adequados em ambos os estudos (nomeadamenteχ2=6591.634; gl=435; p=0.000 no que se refere ao primeiro e χ2=9433.568; gl=435; p=0.000 nosegundo).

De salientar que a estrutura factorial obtida no primeiro estudo foi reproduzida no segundo, talcomo será descrito de seguida. Mais especificamente, verificámos que o factor 1 explica 13.492%da variância comum, no primeiro estudo, e 14.197% no segundo. A análise dos itens que ointegram (em particular 2, 6 e 22), de acordo com a respectiva saturação, levou-nos a concluir

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que este integra um conjunto de crenças que legitimam ou minimizam a violência sexual mediantea referência à existência de um passado sexual entre ofensor e vítima e à ausência de violênciafísica durante o acto sexual praticado. Denominámos este factor de “representação estereotipadada violação” (cf. Quadro 3).

QUADRO 3

Itens que integram o factor 1 e respectiva saturação

Saturação

Estudo EstudoFactor 1: Itens piloto representativo

02 – “Se uma pessoa já tiver mantido antes relações sexuais com a outra, então não 00 – se pode falar de violência sexual”. 0.611 0.590

06 – “Forçar o(a) cônjuge (marido/esposa) a ter relações sexuais não é violação”. 0.684 0.657

09 – “Se não for usada violência física, não se pode dizer que o acto sexual foi 00 – forçado”. 0.448 0.480

15 – “Os agressores sexuais, na sua maioria, são pessoas com um aspecto 00 – diferente das outras”. 0.324 0.397

16 – “Se uma pessoa não agredir fisicamente nem magoar a outra, então, a 00 – agressão sexual é pouco grave”. 0.407 0.479

21 – “Se uma pessoa violada tiver um comportamento sexual «indecente», então, 00 – a agressão sexual é menos grave”. 0.450 0.446

22 – “Forçar o(a) namorado(a) a ter relações sexuais não é violação”. 0.735 0.719

23 – “Uma queixa de violação feita dias após o acto, provavelmente, não é 00 – verdadeira”. 0.535 0.586

24 – “Uma pessoa pressionar a outra para ter relações sexuais pode ser uma 00 – forma de expressar amor e envolvimento”. 0.441 0.452

25 – “Se uma pessoa não resistir fisicamente, então, não se pode dizer que foi 00 – vítima de agressão sexual”. 0.528 0.555

28 – “Se uma pessoa aceita algum acto de natureza sexual com outra (e.g., carícias, 00 – beijos), então, isso quer dizer que ela aceita ter relações sexuais com essa pessoa”. 0.493 0.509

29 – “Se uma pessoa não quiser mesmo ser violada, ela consegue defender-se”. 0.475 0.494

O factor 2 explica 10.741% da variância comum no primeiro estudo e 10.794% no segundo.Os itens que o integram, em particular os que nele têm maior peso e lhe são específicos (e.g., 13,26 e 27), criam a noção de que a violência poderá ser justificável em função de certas condutasda vítima. Por outras palavras, permitem a legitimação ou minimização da violência sexual atravésdo comportamento prévio da vítima, quer no que toca ao seu passado sexual (e.g., provocatórioou sexualizado, promíscuo) quer no que respeita à sua exposição a situações de risco (e.g.,frequentando locais com má reputação ou consumindo estupefacientes). O comportamento sexualprévio da vítima parece ser interpretado como evidência de que a agressão sexual não existiu oufoi menos grave. De igual modo, a exposição ao risco, parece ser interpretada como evidência deque a vítima merece ou detém parte da culpa da agressão. Designámos este factor de “provocaçãoda vítima” (cf. Quadro 4).

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O factor 3 explica 8.650% da variância comum no primeiro estudo e 9.070% no segundo. Aanálise dos itens que o integram (em particular o 17, 18 e 19), de acordo com a respectiva saturaçãono factor, levou-nos a concluir que este integra um conjunto de crenças que legitimam a violênciasexual com base na ideia de que a vítima consente ou induz a relação sexual, desejando-a e sentindoprazer com a mesma. Denominámos este factor de “consentimento da vítima” (cf. Quadro 5).

QUADRO 4

Itens que integram o factor 2 e respectiva saturaçãoSaturação

Estudo EstudoFactor 2: Itens piloto representativo

08 – “Há um certo ponto a partir do qual nenhum homem/nenhuma mulher é de ferro”. 0.483 0.526

11 – “Se uma pessoa provoca sexualmente outra, não se pode depois queixar de 00 – ter sido violada”. 0.498 0.503

13 – “Se uma pessoa se expõe (por exemplo, saindo à noite sozinha ou frequentando 00 – locais com má reputação), a culpa é sua, se for vítima de uma agressão sexual”. 0.726 0.706

26 – “Quem anda à chuva molha-se”, quem não quiser ser agredido sexualmente deve00 – evitar expor-se ao risco. 0.714 0.684

27 – “Se uma pessoa é violada quando está alcoolizada e/ou sob efeito de outras 00 – drogas, então, pelo menos uma parte da culpa é dela”. 0.624 0.645

QUADRO 5

Itens que integram o factor 3 e respectiva saturaçãoSaturação

Estudo EstudoFactor 3: Itens piloto representativo

10 – “Quando as mulheres dizem não (ao sexo), muitas vezes, querem dizer sim”. 0.369 0.427

17 – “Algumas pessoas têm prazer sexual quando são violadas”. 0.745 0.733

18 – “Algumas pessoas têm o desejo secreto de ser violadas e gostariam que tal 00 – acontecesse”. 0.810 0.796

19 – “Há mulheres que gostam que os homens usem um pouco de força para as 00 – convencer a ter sexo”. 0.733 0.731

O factor 4 explica 8.322% da variância comum no primeiro estudo e 7.579% no segundo. Aanálise dos itens que o integram, de acordo com a respectiva saturação, levou-nos a concluir queeste engloba um conjunto de crenças que legitimam ou minimizam a violência sexual mediante aideia de que os ofensores e as vítimas deste tipo de violência possuem características que os tornamdiferentes da restante população, criando noção de “falsa invulnerabilidade”. Designámos estefactor de “falsa noção de invulnerabilidade pessoal” (cf. Quadro 6).

O factor 5 explica 7.397% da variância comum no primeiro estudo e 7.256% no segundo. Ositens que o integram (em particular o 14 e o 20) criam a noção de que a violência poderá serminimizada/desvalorizada mediante a negação da ocorrência da violência sexual, a interpretação

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de que as queixas de violação ou tentativa de violação constituem sinais de arrependimento pós--facto ou vontade de vingança. Denominámos este factor de “falsas alegações” (cf. Quadro 7).

QUADRO 6

Itens que integram o factor 4 e respectiva saturaçãoSaturação

Estudo EstudoFactor 4: Itens piloto representativo

01 – “Os agressores são, quase sempre, desconhecidos da vítima”. 0.584 0.597

03 – “Só são vítimas de agressões sexuais as pessoas «indecentes»”. 0.505 0.519

04 – “Só as pessoas que não conseguem arranjar parceiros(as) é que cometem 00 – agressões sexuais”. 0.630 0.654

07 – “Há pessoas que merecem ser violadas”. 0.518 0.480

30 – “Se uma pessoa violada já não era virgem, a violação é menos grave”. 0.490 0.437

QUADRO 7

Itens que integram o factor 5 e respectiva saturaçãoSaturação

Estudo EstudoFactor 5: Itens piloto representativo

05 – “As pessoas dizem que foram vítimas de violência sexual quando se querem 00 – vingar de alguém”. 0.588 0.557

12 – “A maioria das queixas de violação é falsa ou exagerada”. 0.550 0.540

14 – “Muitas queixas de violação são inventadas quando os(as) companheiros(as)00 – expressam o desejo de terminar a relação”. 0.667 0.657

20 – “Muitas queixas de violação são inventadas quando as pessoas se arrependem 00 – do que fizeram”. 0.632 0.634

Procedimentos de aplicação e correcção

A escala pode ser administrada individualmente ou em grupo, sem tempo limite. Os itens sãocotados de um a cinco e, uma vez que estão todos formulados no mesmo sentido, a pontuaçãototal da escala é obtida pelo somatório directo das respostas a cada um dos itens. Pode ainda sercalculada a nota para cada factor, pela soma da pontuação dos itens que o integram.

INTERPRETAÇÃO DOS RESULTADOS

A pontuação total da escala mede o grau de tolerância/aceitação do sujeito quanto ao uso daviolência sexual. A pontuação em cada um dos factores permite-nos perceber melhor o tipo decrenças específicas envolvidas nesta tolerância à violência.

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CONCLUSÃO

Este trabalho tinha como objectivo validar a ECVS na população de estudantes universitários,esperando, desta forma, constituir uma mais valia na investigação na área da violência sexual.Esperamos, assim, ter contribuído para validar um instrumento que futuramente possa permitiruma avaliação mais adequada das atitudes face à violência sexual, permitindo o desenvolvimentode acções de prevenção e intervenção mais eficazes.

Resumindo, a escala apresentada representa um esforço de medida da tolerância face à violênciasexual e de compreensão dos factores envolvidos na justificação da mesma. Os resultados doestudo das características psicométricas do instrumento revelam valores bastante satisfatórios aonível da precisão e da validade. De destacar que, apesar de a amostra utilizada no segundo estudoser razoavelmente alargada e representativa dos estudantes do ensino superior no que respeita aogénero, área de formação e zona de Portugal continental, seria importante que investigações futurasnesta área sejam feitas com outras populações.

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The dominant culture sends out powerful messages about rape, sex and violence. Many studiespostulated that conceptions of what events constitute sexual violence are influenced by the attitudesof those in their immediate social network. Sexist attitudes and rape-supporting beliefs have long beenlinked to relationship aggression and sexual violence. Attitudes toward sexual violence seem to belinked to traditional gender-role stereotypes, in particular those related to sexual behavior. The ECVSmeasures the degree to which a person sustains false information about sexual violence (false beliefsabout sexual violence that are used to justify sexual violence and trivialize its effects on the victims).High scores indicate that a person is more tolerant to sexual violence. The ECVS was administered toa national sample of 1.000 university students. The psychometric properties of the ECVS wereexamined. Using principal components analysis we presented five independent factors. The scale hasan alpha coefficient (internal consistency reliability) of .91. The implications of these findings arediscussed in terms of the ability of the ECVS to detect attitudes and beliefs associated with sexualviolence and to subsequently develop appropriate educational and intervention programs to addressand ultimately prevent sexual aggression.

Key-words: Attitudes and rape-supporting beliefs, Rape myths, Sexual violence.

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Análise Psicológica (2012), XXX (1-2): 193-213

O envolvimento na luta armada política em Portugal: A perspectiva dos seus

actores

Raquel Beleza Pereira da Silva* / Carla Machado*

*Escola de Psicologia, Universidade do Minho

Este estudo analisa o envolvimento em movimentos de luta armada política em Portugal, através daperspectiva dos seus participantes. Assim, explorou-se a iniciação/entrada no grupo; as dinâmicasinterpessoais dentro do grupo; a vida dentro do grupo versus vida quotidiana; a gestão daclandestinidade; o papel das mulheres no movimento; as justificações de ordem ética, moral,psicológica, ideológica para as acções empreendidas; a gestão de momentos e acções percebidos comodesconfortáveis; a gestão da dúvida e questionamento; o suporte popular; e o sentido das acções e doenvolvimento, no passado e no presente.Recorreu-se a uma metodologia de natureza qualitativa, realizaram-se entrevistas semiestruturadas aparticipantes em movimentos de luta armada política em Portugal no passado, permitindo, deste modo,uma apresentação e discussão dos resultados que espelham o posicionamento e a opinião daquelesaos tópicos supracitados, comparados, quando possível, com os dados recolhidos na literatura.

Palavras-chave: Clandestinidade, Luta armada, Terrorismo.

INTRODUÇÃO

A definição do termo terrorismo não é unânime e acarreta inúmeras discussões e controvérsias,sendo que algumas das principais questões geradoras de falta de consenso nesta matéria prendem--se, essencialmente, com que contextos considerar de actuação terrorista, a partir de que princípiosmorais avaliar uma acção como terrorista, como separar o terrorismo da actuação estratégica emanipuladora de alguns Estados e como apelidar de terroristas organizações que não se identificamcomo tal (Ventura & Nascimento, 2001).

Assim, de acordo com Weinberg e Eubank (2006), na origem do terrorismo estão motivaçõespolíticas e não particulares, expressas através de um formato violento de comunicação que, tendocomo aliados principais os mass media, procura influenciar as emoções e promover a alteraçãocomportamental de um público específico. Tais motivações estão, muitas vezes, confinadas a umlugar específico e têm por base conflitos étnicos, culturais ou religiosos (Henderson, 2004).

A organização de um grupo terrorista, de acordo com Fraser e Fulton (1984, citados porHenderson, 2004), apresenta a seguinte forma piramidal: no topo encontra-se o Líder – reconhe -cido internacionalmente –, seguido pelo Comando – grupo reduzido de líderes responsáveis portoda a planificação e manutenção da disciplina –, secundado pelo Quadro Activo – grupo mais

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Este texto foi elaborado no âmbito do Projecto “Violência nas Relações Juvenis de Intimidade” financiadopela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (PTDC/PSI/65852/2006), coordenado por Carla Machado.

A correspondência relativa a este artigo deverá ser enviada para: Raquel Beleza, Bairro do Vale, Lote 29, 1ºDto., Fte., 3515-156 Abraveses, Viseu. E-mail: [email protected]

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alargado constituído por indivíduos aptos em áreas específicas, que levam a cabo as acçõesterroristas –, coadjuvado pelos Sustentadores Activos – responsáveis pelo suporte material daactividade terrorista – e por último pelos Sustentadores Passivos – concordantes e cooperantescom o propósito da actividade terrorista. Os autores supracitados salvaguardam o facto de grandeparte dos grupos terroristas apresentarem um reduzido número de efectivos, o que leva uma mesmapessoa a desempenhar vários papéis e o que é, ainda, agravado pelo fraco suporte popular,dificultante do acesso a recursos materiais.

No sentido em que os desafios da actividade terrorista se relacionam, essencialmente, com anecessidade da manutenção do segredo acerca da verdadeira identidade de cada um dos seusmembros, o Quadro Activo daquela divide-se em células, ou seja, pequenos grupos de mais oumenos cinco elementos, organizados para uma tarefa particular e desconhecedores da actividadedas restantes células. A comunicação é feita através do líder de cada célula e a organização deuma acção específica coloca em marcha uma coluna, isto é, o trabalho conjunto de várias células.Por um lado, este sistema permite a preservação da informação em situações flagrantes, no entanto,por outro lado, dificulta a comunicação e coordenação das actividades (Costa, 2008; Fraser &Fulton, 1984, citados por Henderson, 2004).

A recruta de elementos para esta actividade é realizada de forma muito prudente e tem em contadiversos aspectos citados por Costa (2008), entre os quais: “grau de confiança, a combatividadedemonstrada anteriormente, ou até mesmo a antiguidade em outros sectores do grupo, maturidadepolítica... percurso por outros sectores do grupo terrorista” (p. 519). Este autor chama ainda aatenção para a necessidade do “processo de comprometimento”, ou seja, a comissão de delitospor parte dos elementos mais recentes, que os vincula ao grupo e os constrange às suas condições.

No que respeita ao lugar ocupado por homens e mulheres em termos do funcionamento daactividade terrorista a literatura é bastante omissa, no entanto salienta que, por vezes, as mulherespraticam elevados graus de violência no sentido de não se sentirem inferiores aos homens e desentirem aprovação (Cameron, 2005).

Em termos de abordagens explicativas do fenómeno em análise consideramos a importânciadas abordagens sociocultural, marxista e psicológica. No âmbito da abordagem sociocultural avança-se a hipótese de que as origens do terrorismo estão nas influências que o indivíduo recebe do meioque o envolve e não nos traços da sua personalidade (Hudson, 1999). Assim, o terrorismo éincentivado pela presença de determinadas condições no meio envolvente, tais como o tipo deurbanização, o sistema de transportes nacionais e internacionais, a publicitação levada a cabopelos mass media, a facilidade de acesso a armas e a ausência ou falibilidade das medidas desegurança (Crenshaw, 1981, citado por Hudson, 1999).

Neste âmbito, Merton (1938, citado por Lilly, Cullen, & Ball, 1995) sugere a teoria dasoportunidades diferenciais, que apresenta a existência de uma clara disjunção entre os objectivosindividuais incutidos culturalmente e os meios efectivos conferidos pela estrutura social para osalcançar. Tal disjunção provoca um aumento dos sentimentos de injustiça e ressentimento face àordem social, alimentados pela percepção da arbitrariedade com que as circunstâncias ocorremna mesma, o que conduz à desvalorização das normas sociais e à maior facilidade de rompimentocom as mesmas (ibidem). No sentido da teoria apresentada por Merton (ibidem), Lea e Young(1984) consideram não bastar a existência de exploração no seio da ordem social para esta serperturbada, sendo que o essencial é a percepção da injustiça, ou seja, não se trata da privação emsi, mas de uma privação relativa. Assim, estes autores sugerem que a explicação para oaparecimento de organizações praticantes de violência jaz na relação entre a privação relativa e amarginalidade política e económica (ibidem).

Uma abordagem marxista do terrorismo remete para uma leitura da sociedade organizada sobo ponto de vista económico, ou seja, acerca da forma como as pessoas se relacionam com os meiosde produção, se os possuem ou se trabalham para aqueles que os possuem (Chambliss, 1975). Nas

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sociedades capitalistas, onde os meios de produção são privatizados e onde se verifica uma claradivisão entre a classe dominante e a classe dominada as taxas criminais são elevadas, bem comoo conflito de classes, lançando os alicerces para o desenvolvimento de actividade terrorista entreos elementos da classe dominada (Chambliss, 1975). É ainda acrescentado o facto de muitas vezesos elementos da classe dominante actuarem fora da lei e saírem impunes, ao contrário doselementos da classe dominada, bem como o facto de a lei ser cada vez mais coerciva para estesúltimos, o que acicata, muitas vezes, a prática de acções terroristas (Chambliss, 1975).

No que respeita à abordagem psicológica são considerados dois factores fundamentais para acompreensão do como é que indivíduos, num determinado contexto, se envolvem na actividadeterrorista, que são a motivação e a vulnerabilidade (Borum, 2004; Crenshaw, 1986; Horgan &Taylor, 2001). Crenshaw (1985) apresenta quatro tipos de motivações para o ingresso na actividadeterrorista, que são: a oportunidade para a acção, a necessidade de pertença, o desejo de estatutosocial e o ganho de recompensas materiais. Ao que se acrescenta uma revisão da literatura queapresenta três temas fundamentais relacionados com a motivação para a actividade terrorista: ainjustiça – tida como uma motivação básica para o processo de entrada na actividade terrorista,muitas vezes acompanhada por sentimentos de vingança (Borum, 2004) –, a identidade – tanto anível pessoal, como social, podendo esta ser firmada e até adoptada no interior de organizaçõespraticantes de violência, sem qualquer exame prévio (Arena & Arriago, 2005) ou até mesmo serdefinida pelo simples factor membrazia (Johnson & Feldman, 1992; Post, 1987) – e a pertença –que passa por um sentimento de conexão e afiliação a um grupo, que se pode tornar na famíliaque alguns sujeitos nunca tiveram, conferindo-lhes segurança através da subjugação à identidadegrupal (Post, 1984). Estas questões motivacionais relacionam-se com o papel ocupado pelo factorvulnerabilidade, que se prende com a maior abertura demonstrado por alguns indivíduos para aadesão a este género de grupos do que outros (Borum, 2004).

No que respeita à prática de acções violentas Crenshaw (1986) considera que esta é umresultado da própria pertença ao grupo, que a um determinado momento coloca o sujeito em umaposição em que ou comete as acções estipuladas ou sai do grupo, sendo esta saída bastante difícil,pois não é possível simplesmente voltar para casa. O que, de acordo com Ventura e Nascimento(2001), conduz a que, no seio deste tipo de organizações, a obediência e o conformismocaracterizem o estilo relacional. As abordagens referidas pelos autores supracitados podemrelacionar-se com os crimes de obediência explorados por Beu e Buckley (2004), nos quais háum conflito entre as orientações de uma autoridade e a legalidade e, por vezes, com as própriaspreferências da pessoa, sendo que esta age, mesmo assim, de acordo com as orientações recebidas.Este processo é bastante complexo e envolve diversas componentes, dos quais se salienta aexistência de uma liderança carismática, que cria as condições necessárias para o desprendimentomoral (moral disengagement) dos seus militantes, avocando o sentido de uma missão a levar acabo (Beu & Buckley, 2004). De acordo com Bandura (1990), o desprendimento moral é umaspecto chave para a comissão de acções ilegais e tem origem no enfraquecimento da auto-censurapela demissão do raciocínio moral e pelo estado das circunstâncias sociais. A demissão doraciocínio moral é levada a cabo pela produção de justificações morais, de uma linguagemeufemística e paliativa e de comparações vantajosas; pela difusão e deslocação da responsabilidadee pela minimização das consequências das acções, o que confere ao indivíduo um sentimento deque se alguma coisa correr mal não lhe pedirão contas só a ele; e, por último, pela desumanizaçãoe culpabilização da vítima (Bandura, 1990, 1999).

No que respeita à relação entre terrorismo e doenças mentais não é apontada qualquercorrespondência directa, sendo apenas caracterizados como indivíduos mais instáveis e com ummarcado anseio de afiliação a um grupo (Costa, 2008).

Em Portugal, o processo de luta armada integra-se numa política global antifascista, anticapi -talista e anti-imperialista, exacerbada pelo decorrer e condução política da guerra colonial (Leitão

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& Pina, 1975), pelo aumento da instabilidade interna e das informações vindas do exterior acercados movimentos revolucionários e pelo crescimento da oposição política (Bebiano, 2005). O queoriginou um “clima de guerra revolucionária”, no intuito de, principalmente, conduzir as massasà libertação (Leitão & Pina, 1975).

Neste contexto, encontramos quatro organizações praticantes de luta armada revolucionária nonosso país, antes e depois do 25 de Abril de 1974 – a ARA (Acção Revolucionária Armada), aLUAR (Liga de Unidade e Acção Revolucionária), as BR (Brigadas Revolucionárias) e as FP-25(Forças Populares 25 de Abril). As quatro organizações em análise possuem pontos de conver -gência e divergência em diversos planos – ideológico, operacional, organizacional. Costa (2004)considera que é possível colocar a ARA, a LUAR e as BR ao mesmo nível em termos de forçamotriz, que seria a luta pelo fim do colonialismo e o derrube do regime fascista. Já as FP-25, aosurgirem após o 25 de Abril de 1974, são o reflexo do descontentamento de alguns sectores dasociedade com o caminho tomado após a revolução (Costa, 2004).

Cada uma destas organizações estabeleceu relações particulares com os organismos partidáriosda sua época de actuação. A ARA constituiu-se como o braço armado do Partido ComunistaPortuguês (PCP), apesar de o seu arranque ter despoletado alguma controvérsia no seio do mesmoe de se ter mantido como uma organização semiautónoma, ou seja, por um lado seguidora dasdirectivas do partido, mas, por outro lado, independente aquando da tomada de decisão (Narciso,2000; Serra, 1999). A LUAR foi, por vezes, apontada como o braço armado do PS (PartidoSocialista), o que sempre recusou veementemente, por considerar que nas suas fileiras conviviamelementos provenientes de diferentes contextos partidários (Brinca, 2000). A criação das BRassenta desde logo na ruptura com o PCP e com a sua forma de luta (Antunes, 1974; Carmo, 1974;Júnior, 1999). No entanto, após o 25 de Abril de 1974 esta organização tenta ingressar no PartidoRevolucionário do Proletariado (PRP), partido do qual a mesma esteve na origem, masrapidamente regressa à clandestinidade por considerar necessária a continuação da luta (Manifestocontra a guerra civil: insurreição armada, PRP, 1975). Por último, as FP-25 são consideradas umaorganização posicionada na extrema-esquerda radical, pertencentes a um Projecto Global, o qualintegrava inicialmente a OUT (Organização Unitária de Trabalhadores) e posteriormente a FUP(Frente de União Popular) (Costa, 2004; Pereira, 1992; Ventura, 1999).

Em termos organizacionais, a ARA apresentava um comando central composto por trêselementos e possuía quatro tipos de infra-estruturas principais – o Paiol Central, o laboratório,garagens e arrecadações (Narciso, 2000). No que respeita à LUAR e às BR não são encontrados,nas fontes bibliográficas, dados que permitam concluir da sua estrutura e composição. Já as FP-25 eram constituídas por 152 membros, dos quais 46 eram operacionais, aquelas estavamintegradas no Projecto Global, no qual pertenciam à Estrutura Civil Armada (ECA), constituídapor diversos grupos territoriais, que possuíam líderes locais (Costa, 2004).

Em termos operacionais, as quatro organizações em análise procederam a assaltos para ofinanciamento da luta armada, dos quais resultava tanto dinheiro como materiais necessários àconsecução das diferentes acções (Costa, 2004; Rosas & Brito, 1996; Narciso, 2000). No entanto,tanto na ARA como na LUAR e nas BR só eram levadas a cabo acções que cumprissemdeterminados critérios, entre os quais a garantia total ou quase total da ausência de vítimashumanas e o ataque a estruturas políticas e militares relacionadas com o regime ditatorial e coma guerra colonial (Narciso, 2000). Já as FP-25 recorreram a acções de maior violência, dirigindo-se, frequentemente, a vidas humanas, contando com dezoito mortes no seu historial (Costa, 2004).

De seguida, passaremos para a explanação dos aspectos relacionados com a metodologiautilizada neste estudo, no sentido de conferir rigor e aplicabilidade aos dados recolhidos e deresponder às questões orientadoras daquele.

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METODOLOGIA

Participantes

A selecção dos participantes foi efectuada de acordo com o processo de amostragem teórica, sendoque era apenas colocado como critério necessário o envolvimento, no passado, em algum movimentode luta armada. O acesso aos participantes foi tentado, a princípio, através da utilização deintermediários, contudo esta estratégia não resultou e o primeiro contacto foi feito directamente, pore-mail e de seguida por telefone, com o primeiro participante. Após a primeira entrevista recorreu--se à estratégia de snowball sampling, devido ao facto de a população em análise ser de difícil acesso.

Assim, a presente investigação envolveu um grupo de sete participantes, cinco homens e duasmulheres, sendo que a sua maioria (n=5) não exigiu anonimato, apenas o acesso aos resultadosfinais do estudo.

Instrumentos

De modo a facilitar o acesso às experiências e perspectivas pessoais de casa participante nestainvestigação optou-se pela realização de entrevistas qualitativas semi-estruturadas.

De uma forma global, o guião semi-estruturado traçado especificamente para a presente investi -gação, compreendia questões acerca: (a) iniciação/entrada no grupo; (b) dinâmicas interpessoaisdentro do grupo; (c) vida dentro do grupo versus vida quotidiana; (d) gestão da clandestinidade; (e)papel das mulheres no movimento; (f) justificações de ordem ética, moral, psicológica, ideológica,etc., para as acções empreendidas; (g) gestão de momentos e acções percebidos como desconfor -táveis; (h) gestão da dúvida e questionamento; (i) suporte popular; e (j) sentido das acções e doenvolvimento, no passado e no presente. A entrevista decorreu em um único momento de avaliação.

Procedimentos

Os participantes foram contactados telefonicamente e foi-lhes solicitada a participação numestudo acerca da sua perspectiva pessoal sobre o envolvimento passado na luta armada políticaem Portugal. Todos os sujeitos contactados aceitaram participar e consentiram, oralmente, arealização da entrevista, bem como a sua audio-gravação.

Os dados analisados e discutidos foram entregues aos participantes, no sentido da realização deuma validação comunicativa (Flick, 2002), na qual lhes foi dada a oportunidade de consideraremnuma escala de 1 a 5 (sendo que 1 correspondia a concordo muitíssimo; 2 a concordo; 3 a concordorazoavelmente; 4 a não concordo e 5 a não concordo de todo) se a presente análise correspondia àrealidade tal com eles a percebem e se a sua opinião/perspectiva estava presente na mesma. Estadevolução contemplou, ainda, duas questões de resposta aberta, de modo a perceber se existiaalguma afirmação no estudo que não correspondesse à realidade e se os participantes tinham algumcomentário a acrescentar. Dos sete participantes neste estudo apenas cinco avaliaram os resultadosque lhes foram entregues, sendo que um participante concordou muitíssimo que a presente análisecorresponde à ‘sua’ realidade, dois concordam e um concorda razoavelmente; os cinco participantesreferem que concordam com o facto de a sua perspectiva estar presente nesta dissertação. No querefere às questões de carácter aberto, os participantes em geral consideram que este é um temamuito complexo, que precisaria de um maior aprofundamento. Os participantes que praticaram lutaarmada antes do 25 de Abril consideram, também, que na análise desta questão deve ser feita umadistinção clara entre a luta armada em contexto de ditadura (o que eles consideram ter praticado) eo terrorismo em contexto de democracia (que consideram ter sido praticado pelas FP-25).

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Análise dos dados

As entrevistas foram transcritas e analisadas de acordo com os princípios da grounded analysis(Glaser & Strauss, 1967; Strauss & Corbin, 1998) e com a assistência do software QSR NVivo 8.A aplicação da grounded analysis decorreu em três fases: a determinação das questões orientadorasdo estudo, a construção da amostra teórica relevante para o fenómeno em estudo e a aplicação deprocedimentos de codificação. Neste estudo procedeu-se à codificação aberta das entrevistasrealizadas, tendo sido o primeiro passo dado a selecção da frase como unidade de análise, ao quese seguiu o agrupamento das mesmas em categorias e subcategorias, que descrevem a vivênciados participantes e o seu posicionamento.

APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

Neste tópico serão apresentados e discutidos os resultados da análise do discurso dosparticipantes, mediante os aspectos abordados com relevo para este estudo. Os números entreparêntesis significam o efectivo de sujeitos que evidenciou as asserções apresentadas.

Antes do 25 de Abril em Portugal a luta armada tinha por objectivo a queda do regime ditatorial(n=4), sendo o PCP considerado como o único partido da oposição que resistia, apesar de no seuseio nem todos concordarem com a insurreição armada (n=3). Deste modo surge a ARA, que seempenha na sensibilização e “animação” da população para a luta contra o regime ditatorial, bemcomo na sabotagem de materiais, cujo fim seria servir a Guerra Colonial (n=1). Enquanto a ARAera apoiada pelo PCP, as BR surgem a partir de uma ruptura com este e empenham-se, igualmente,na consecução de acções armadas para queda do regime, sendo que a referida ruptura preconizou-se pelo facto de o PCP até aos anos 60 não apoiar a luta armada (n=2). Por seu lado, a LUAR nãose encontrava ligada a nenhuma corrente específica e, por isso, não fazia a defesa de uma ideologiaclaramente delimitada, considerando que o ponto de partida que ligava todas as coisas era oprincípio de “derrubar o regime de Salazar” através da acção armada (n=1). Aqui se denota umvincado posicionamento político e ideológico (n=6) que caracteriza as diferentes organizaçõesestudadas em geral e os seus militantes em particular, sendo expresso que “o enquadramento erapolítico” e “as motivações eram única e exclusivamente políticas”, tendo sempre como perspectivauma luta ideológica que levava a cabo acções armadas com fins, igualmente, ideológicos. Talposicionamento e motivações estritamente políticos concordam com as assunções de Weinberg eEubank (2006), que os consideram o motor principal da acção armada.

As acções no sentido da sabotagem da Guerra Colonial (n=2) passam pela análise de que Portugalnão estava em condições de suportar a mesma, o que posteriormente, segundo a opinião dos próprios,se vem realmente a verificar, pois para aquela foi canalizado metade do orçamento de Estado, o queacarretou um agravar das condições sociais no país e provocou a fuga de milhões de pessoas.

As três organizações actuantes antes do 25 de Abril ocupavam um posicionamento político eideológico antiterrorista (n=3), no sentido em que recusavam veementemente a morte propositadade pessoas, procurando apenas “criar as condições que permitissem que outros sectores resistisseme desenvolvessem a sua própria oposição” e a sabotagem da Guerra Colonial (n=3). Ainda, de acordocom um elemento da LUAR, “o problema não era a pessoa, o problema era social e político”, logomatando a pessoa não se resolveria o problema. Aqui é de notar um dos aspectos geradores decontrovérsia no que refere à definição de terrorismo, no sentido em que estes actores apesar de terempraticado luta armada não se vêem como terroristas e são mesmo, veementemente, contra este tipode actividade. Aquando do retorno dos dados aos participantes, um dos aspectos mais sublinhadospor aqueles que praticaram luta armada durante o regime ditatorial é que a sua actividade nada teve

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a ver com actividade terrorista. Deste modo, como apontaram Ventura e Nascimento (2001), sãoencontradas divergências de opinião em relação a que contextos considerar de actuação terrorista(e.g., contexto de regime ditatorial vs. contexto de regime democrático), bem como a partir de queprincípios morais avaliar uma acção como terrorista (e.g., uma acção é tida como terrorista apenasquando mata alguém?). No entanto, cremos que, por vezes, o considerar, ou não, uma organizaçãocomo terrorista parte de valorações subjectivas e está dependente do facto de as pessoas que emitemo juízo se identificarem, ou não, com as causas defendidas.

O aparecimento das FP-25 (n=3) acontece num período após o 25 de Abril de 1974, no qual aanálise política e social dos intervenientes era de que existiam condições para continuar a lutar. Noentanto, uma cisão nas BR dá origem ao movimento FP-25, que se constituiu como “umacomponente de um Projecto Global com uma estrutura própria”, sendo que neste Projecto Globalexistiam outras componentes que partilhavam a mesma concepção ideológica, mas que intervinhamem áreas distintas (n=2). O principal objectivo desta organização era a tomada do poder, no entanto,os entrevistados são unânimes em afirmar que “ninguém nas FP-25 achava que aquele caminho ialevar ao derrube do poder”, sendo “a luta armada que se praticou (...) uma atitude de pressão”, quetinha por objectivo levar as pessoas a não recuar (n=3). Assim, realiza-se que os fundadores das FP-25 foram mais influenciados pelos aspectos presentes no meio envolvente, do que pelas suas própriascaracterísticas de personalidade (Hudson, 1999), justificando as suas acções pela urgente necessidadede fazer alguma coisa pelo estado no qual a nação estava a tombar (Costa, 2008).

Quando questionados acerca de qual a melhor táctica de luta armada a utilizar, os elementospertencentes às FP-25 (n=3) consideravam que, ao terem como alvo a tomada do poder no contextodas condicionantes sociopolíticas vividas em Portugal naquela época, a melhor táctica seria a lutacontra o capitalismo, sob a forma de ataques directos ao capital (e.g., colocação de explosivossobre o património), mas também sob a forma de “baleamento” de patrões. Por seu turno, as BRdavam preferência à colocação de petardos, que evitavam o ferimento de pessoas, chamavam aatenção e permitiam a divulgação de informação; ou à colocação de explosivos, de fácil preparaçãoe aplicação, permitindo controlar, igualmente, a não vitimação de pessoas. Já a LUAR consideravaque “da luta armada a melhor táctica é desarmá-la” e substituir as armas por uma razãocolectivamente consensual.

Assim, as acções das FP-25 situam-se em “um momento em que as injustiças eram demasiadoeminentes”, sob a forma de salários em atraso, despedimentos em massa, hipotecas de habitações,famílias a passar fome, e eram praticadas em função das queixas e motivos reivindicativosapresentados, essencialmente, pela classe operária. O que vai de encontro a uma “preocupação social”desta organização, que dirigia as suas acções “sobretudo numa perspectiva de justiça social”,procurando apoiar os trabalhadores vítimas das situações supra citadas, que em alguns casos optarampelo suicídio. Este apoio era realizado através de acções que visavam interesses económicos ou quevisavam directamente o patronato, de modo a mostrar “às populações que havia outro caminho eque não se deviam baixar os braços”, mas pelo contrário deviam resistir. Na maior parte dos casos,as estruturas do Estado não eram atingidas1, salvo em alguns casos muito específicos (e.g., o DirectorGeral dos Serviços Prisionais). Neste sentido, e de acordo com a abordagem marxista de Chambliss(1975), fica claro que as acções praticadas pelas FP-25 foram motivadas pelo conflito existente entrepatrões e trabalhadores, sentindo-se estes explorados por aqueles e sentindo que os patrões eramimpunes perante o Estado. Assim, pelo facto de o Estado não exercer a justiça social e ainda protegeros donos dos meios de produção, as FP-25 procuraram fazê-lo à revelia daquele, pretendendo

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1 AS FP 25 consideravam o Estado inapto para a resolução dos problemas sociais provocados pelos interessescapitalistas e por isso eles agiam para “punir” directamente os capitalistas, devido à inoperância do Estado.A estratégia não era como antes do 25 de Abril, ou seja, atacar as estruturas do Estado para as derrubar, massim conseguir o apoio popular para chegar ao poder.

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demonstrar que é obrigatório agir, legal ou ilegalmente (Crenshaw, 1990). Neste ponto há, ainda, areferir a aplicação da teoria da anomia de Merton (1938, citado por Lilly, Cullen, & Ball, 1995), queconsidera as respostas violentas desta índole como consequência da desigualdade de oportunidadespresente na ordem social, quando o que é incutido nos indivíduos são princípios de igualdade. Nestesentido, começam-se a gerar os tais sentimentos de injustiça relatados pelos elementos entrevistados,e é esta percepção das injustiças sociais que aliada à marginalização política e económica dá origema que indivíduos se organizem em um colectivo praticante de acções violentas (Lea & Young, 1984).Ao que se acrescenta, como apontado por Chambliss (1975), o claro entendimento da arbitrariedadeda ordem social vigente, dando origem a sentimentos de injustiça e levando à desvalorização e quebradas normas sociais (Merton, 1938, citado por Lilly, Cullen, & Ball, 1995). Assim, e de acordo comMerton (ibidem), a própria ordem social incita a existência de conflito, que neste caso toma a formade movimentos de luta armada. Outra forte condicionante apontada para o nascimento destaorganização foi a necessidade de resistir aos “avanços da extrema-direita” e de não perder o passado,ou seja, tudo o que foi conquistado com a revolução. Dois elementos desta organização referem,ainda, a desilusão com a maneira tradicional de fazer política, considerando as eleições e o direitoao voto como insuficientes. Prova disto é que enquanto o Estado, do ponto de vista destes militantes,não fazia nada relativamente às injustiças sociais do pós 25 de Abril, as FP-25 mantinham o patronatoem sobressalto e fizeram-no recuar em função das suas acções (n=2). No entanto, a análise posteriorde um dos elementos da organização é de que “matar patrões” não chega para resolver o conflitosocial e que naquela época os militantes da organização eram muito “naives” e não tinham umavisão da complexidade da realidade social, que necessita de muitas outras componentes para sertransformada.

As FP-25 organizavam-se em células (n=2), que planeavam e levavam a cabo as acções,formando, por vezes, uma coluna, quando necessária a junção do trabalho de duas ou mais equipas,de acordo com a dimensão da acção. Assim, como medida de segurança, as pessoas eramreconhecidas como fazendo parte da organização apenas no interior da célula a que pertenciam.Existiam, ainda, as células de apoio, constituídas por pessoas que não eram obrigatoriamenteclandestinas, mas que davam suporte às acções e às pessoas na clandestinidade. Os desafios daactividade terrorista relacionam-se, essencialmente, com a necessidade da manutenção do segredoacerca da verdadeira identidade de cada um dos seus membros, sendo referido por dois elementosde duas organizações diferentes (BR e FP-25) a compartimentação entre “o sector da informaçãoe o sector da acção”, no sentido em que quem realizava a acção não tinha realizado a busca deinformação. Deste modo, as acções eram debatidas de uma forma geral, sem que os operacionaisconhecessem exactamente o alvo, de modo a não depreenderem o local onde se realizaria a acçãoaté ao dia da mesma, em que eram inteirados de tudo em uma reunião que a antecedia (n=4). Estesprocedimentos tinham como objectivo a preservação da informação caso alguma coisa corressemal e algum elemento fosse preso e submetido a tortura (no que refere às organizações actuantesantes do 25 de Abril) (n=3). Este tipo de organização está de acordo com o modelo piramidalapresentado por Fraser e Fulton (1984, citados por Henderson, 2004), onde o quadro activo seencontra dividido em células, no sentido da protecção dos conhecimentos e instruções relacionadoscom cada acção, no sentido em que cada célula desconhece o trabalho das restantes.

Nas FP-25, a uma determinada altura, verifica-se uma escalada no grau das acções realizadas(n=2), que podia em alguns casos “chegar ao ponto da morte da pessoa”, sendo que este não eraapontado como o caminho preferido por todos os participantes. Alguns preferiam “manter o níveldas bombas e eventualmente o baleamento nas pernas em casos muito particulares”, enquantooutros “defendiam que se devia dar o passo para o enfrentamento” (n=2). De acordo com osparticipantes esta foi uma discussão recorrente, que nunca chegou a um consenso. No entanto, adecisão política de matar foi tomada, apesar de ser apontada como uma decisão que não era tomadade “ânimo leve” e envolvia muito debate e procura de consenso (n=3). Segundo os participantes,

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algumas decisões de matar foram de natureza retaliatória – justificadas por se tratar de patrões“tiranos e salazaristas”, que causaram o suicídio de alguns trabalhadores –, enquanto outras nemse podem considerar decisões, pois foram fruto de trocas de tiros aquando de confrontos com apolícia (n=2). Em relação aos homicídios cometidos pelas FP-25 é expressa alegria em algunscasos e é, igualmente, reiterada a justificação que muitos operacionais foram, igualmente, mortosno mesmo combate (n=3). Neste sentido, os elementos pertencentes às FP-25 legitimam a violênciano seio do combate político (n=2) como um meio de demonstração de revolta, quando não se têmoutros meios, impelido pela “sensação de estar numa sociedade injusta”, sendo a confrontaçãoviolenta o motor das transformações sociais (n=3). Assim, é dado a entender que elementos maisradicais pertencentes a movimentos de luta armada actuam motivados por um sentido de justiçatão extremo e exacerbado que não olham a meios para atingir os fins, ou seja, consideram ohomicídio como uma contingência à consecução da luta política (S. Cohen, 1971). É ainda denotar a utilização de expressões paliativas (Bandura, 1990) – “... baleamento nas pernas...”,expressão utilizada aquando da decisão de “ajuste de contas” com um patrão ou outra pessoa quecometia diversas injustiças e saía sempre impune, quando o que na realidade e na maior parte doscasos acabava por acontecer era a morte da pessoa; de eufemismos (ibidem) – “... dar o passo parao enfrentamento”, no sentido de proceder à morte de alguém; de referências despersonalizadas(ibidem), ocultando a responsabilidade pessoal (e.g., “... chegar ao ponto da morte da pessoa”);de difusão e deslocação da responsabilidade (Bandura, 1990), no sentido em que a decisão dematar não era tomada por A ou B, mas era tida como uma decisão política, tomada por ummovimento armado político (e.g., “Quer dizer não te vou dizer agora que aquele e o outro foramum acidente (...) houve efectivamente uma decisão política”), havendo mesmo, por vezes, anegação da actuação da organização, no sentido da existência de certas decisões que “nem sepodem considerar decisões” pelo facto de serem de natureza retaliatória. Ainda neste tópicoimporta salientar que, muitas vezes, a responsabilidade era deslocada da organização para asvítimas, pois eram estas que contribuíam “para que alguns trabalhadores se suicidassem”, bemcomo para a morte de “operacionais (...) no mesmo combate”, tornando assim a retaliação justa,uma morte para justificar outra morte; e de desumanização e culpabilização das vítimas (Bandura,1990), tidas como monstruosas e dignas de morrer, pelo sofrimento provocado a outros, que, namaior parte dos casos, são mais fracos e estão numa posição de maior vulnerabilidade (e.g., “Naslouças de Sacavém houve vários suicídios, o caso do Delmar foi um homem que fechou váriasfábricas, era um peão de brega nesse contexto, no caso do Castelo Branco houve pessoal queadoeceu, era um tirano, era um salazarista”).

A desarticulação das FP-25 (n=3) acaba por acontecer muito rapidamente, sendo que aorganização tem o seu início formal na década de 80, mas já com muitas limitações,essencialmente, no que respeita à capacidade de resposta dos seus integrantes, que na sua maiorianão tinham muita experiência e nem foram treinados para o efeito. As prisões foram-se sucedendo,fruto da incapacidade operacional dos militantes, mas também da resposta do Estado aos“clamores” da população2 e à própria escalada das acções das FP-25 (n=2), bem como a morte demilitantes (n=2). Assim, apesar de o núcleo operacional ser desmantelado apenas em 1985, aorganização já estava muito desarticulada, devido ao facto de ter perdido grande parte da sua redede apoios e de gastar muitas das suas energias a fugir à polícia (n=2).

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12 A falta de apoio popular, paradoxal para os membros das FP-25, que descrevem a sua acção como tendo amelhoria das condições do povo por objectivo, foi um dos motivos apontados para o desmembramentodaquela organização. Tal é explicado por Crenshaw (1990) mediante o facto de a população não se quereridentificar com a vitimização de inocentes e começar a temer a repressão do Estado, essencialmente no querespeita à prisão de todos e quaisquer indivíduos suspeitos de colaborar com a organização.

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A morte de camaradas no combate político (n=4) está bastante presente em duas dasorganizações em estudo, nas BR e nas FP-25. São momentos vividos como “um murro noestômago”, que nas FP-25 acompanham a organização desde o seu início e que nas BR acontecemapenas uma vez com a morte de duas militantes, devido a um erro técnico. Um elemento das BRconsidera que apesar de a morte de camaradas ser uma perda “horrível”, não foram sentidasculpabilizações nem feitas acusações, por se ter tratado de um erro dos próprios e pelo facto de osmilitantes terem sentido “que aquelas pessoas tinham morrido pelo seu ideal”. No entanto, taisocorrências criaram abertura para que tenha havido alguma desmotivação e até pessoas queficaram menos disponíveis para a organização. Já as FP-25 viveram a morte de camaradas como“um grande embate para a organização”, que provocou “uma culpabilização fortíssima” e que,por um lado, “gerou muitos conflitos que se traduziram, na maior parte das situações, em saídaspara o estrangeiro”, mas que, por outro lado, manteve algumas pessoas na organização como umaforma de honrarem a memória dos companheiros que caíram em luta. Contudo, os elementos dasFP-25 consideram que a morte na luta armada “faz parte das regras do jogo”, chegando mesmoum deles a afirmar que houve mágoa pelos camaradas que morreram, mas que “pronto foi umaopção deles, aconteceu como podia ter acontecido a outros companheiros”.

No que concerne aos delatores dentro destes movimentos, dois elementos das FP-25 consideramque o que os motivou foi o facto de não estarem nem muito convictos, nem muito comprometidoscom as opções da organização, não conseguindo lidar com a ideia de que iriam presos. Tal variaçãono grau de compromisso e convicção individuais no seio de uma organização é, segundo Crenshaw(1990), natural, pois, muitas vezes, é a decisão colectiva que dita o que há a fazer, mas nem sempreespelha a vontade e consciência de cada militante. Nesta área, as organizações presentes antes do25 de Abril sofriam de uma agravante, que era o facto da existência da tortura quando as pessoaseram presas (Pimentel, Madeira, & Farinha, 2007), à qual era muito difícil resistir (n=2). Asconsequências para os delatores nas FP-25 passaram, segundo os entrevistados, pelo assassinatode um deles, de modo a veicular uma mensagem (n=2). Nas restantes organizações não foi levadoa cabo nenhum tipo de castigo ou punição para os elementos delatores, devido ao facto de não seruma prática que encontrava unanimidade no seio daquelas, por ir contra o princípio de evitar amorte ou ferimento de pessoas (n=4).

Já a existência expressa de uma dissociação entre aquilo que são os operacionais e aquilo quesão os ideólogos do movimento é negada pelos participantes das várias organizações em estudo(n=7). Isto porque a concepção de que “se podiam instrumentalizar pessoas para fazer a acçãoarmada” sem implicação pessoal não agradava a estes militantes, pois isso seria “abrir caminho aum conjunto de pessoas que se podiam tornar aventureiras (...) mas que não têm estrutura política,nem psicológica para aguentar esses processos” (n=2). No entanto, não se deixa de expressar quealguns militantes tinham mais “habilidade” para umas áreas do que para outras, aceitando-se queuns tinham mais “análise política, capacidade de lidar com as ideias”, enquanto outros tinhammais “capacidade de puxar o gatilho com frieza” (n=2). Tal não significa que uns fossem apenasideólogos e outros apenas operacionais, pois todos estavam envolvidos, tanto no domínio doplaneamento estratega das acções, como na realização “de tarefas práticas que não exigemnenhuma ideologia” (n=3).

O processo de recrutamento (n=6) nas organizações em análise tomava diversas formas: oconvite a pessoas que expressavam a defesa de ideais semelhantes aos do movimento (n=3); aindicação do partido ao qual as organizações estavam vinculadas (no caso da ARA e das FP-25)(n=2); a recruta de amigos ou pessoas conhecidas e a chegada à organização de pessoas que aprocuravam por partilhavam os mesmos ideais e quererem participar na luta de uma formaorganizada (sendo esta uma das quatro motivações apresentadas por Crenshaw (1985) para oingresso na actividade terrorista – a oportunidade para a acção conferida por este tipo demovimentos).

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As dificuldades referidas (n=2) neste processo de recrutamento prendiam-se, essencialmente,com a avaliação das verdadeiras motivações das pessoas para a entrada na organização e com aavaliação de se a pessoa teria estrutura para resistir a uma vida de clandestinidade e, se caso fossepresa, conseguiria guardar segredo de tudo o que sabia. Assim, verifica-se que independentementeda forma de chegada à organização os novos elementos ficavam sujeitos a um processo de entradaprogressiva, no qual tinham de demonstrar serem dignos de confiança, bem como teremcapacidade de aguentar as dificuldades inerentes à vida no seio da organização (Costa, 2008).

No que respeita ao exercício da tomada de decisão (n=6), é comum a todas as organizações aprocura do consenso e o recurso ao voto, sendo que este processo é encabeçado por uma direcçãorestrita, a qual indica a decisão final, de modo a preservar o máximo possível o cariz políticodesta, não obrigando ninguém à sua consecução. No caso específico da ARA, por vezes, asdecisões eram indicadas pela direcção do PCP (n=1). Nas FP-25 as acções violentas concretaseram decididas apenas pela direcção da estrutura clandestina, enquanto ao nível da avaliação dasituação política e das estratégias em colocar em prática em sentido genérico havia um encontroentre a direcção da estrutura clandestina e a direcção da estrutura legal da FUP. Como já foireferido, em todas as organizações em análise os participantes referem (n=4) que era dada margempara recusa à realização de acções com as quais não se estava de acordo ou para as quais o militantenão se sentia preparado.

No que concerne ao papel das mulheres, é considerado que nas BR houve um “salto qualitativo,porque as mulheres estavam em pé de igualdade com os homens”, havendo mulheres que não sófaziam acções, mas também ocupavam cargos directivos (n=2). As BR encaravam como fundamentalaparecerem mulheres nas suas acções, de modo a incentivar o público feminino para a actividade,passando assim “uma mensagem em condições de censura” e também aproveitando o facto de asmulheres serem, na sua opinião, menos violentas, sabendo resistir em difíceis circunstâncias da lutaarmada (n=1). Na LUAR negava-se, igualmente, a relevância das questões de género (n=1). Noentanto, era reconhecido (n=1) que, apesar de serem poucas, as mulheres marcavam a diferença pelapositiva ao demonstrarem que eram tão operacionais como um homem. Na ARA, o papel atribuídoàs mulheres era o mesmo que o PCP atribuía, ou seja, na maior parte dos casos estas mantinham “oteatro da vida normal”, acabando por ocupar o papel feminino tradicional, deixando para os homenso protagonismo das acções, das reuniões e da militância (n=2). As mulheres podiam ainda contribuirem termos de análise política com a escrita de artigos para diversos jornais do partido ou revistasfemininas (n=1), sendo consideradas indispensáveis (n=1). Por último, nas FP-25 as mulheres eramconsideradas “iguais aos homens” (n=2), contudo desempenhavam, essencialmente, um papel deapoio logístico que permitia o funcionamento de toda a estrutura, sendo que algumas não pertenciamdirectamente à organização, mas tinham relações ocasionais ou continuadas com militantes da mesma(n=2). No entanto, as mulheres envolvidas organicamente na organização constituíam um grupomuito reduzido ao qual nada era vedado, mas que também não tinha um papel determinante naquela,mas a quem eram, muitas vezes, exigidos esforços como comprovativo de capacidade para praticarluta armada, que não eram aos homens (n=1). Cameron (2005) aponta que, por vezes, as mulheresque praticam luta armada exercem elevados níveis de violência, no sentido de não se sentireminferiores aos homens e de sentirem aprovação. Em síntese, da perspectiva feminina (n=1) as FP-25eram uma organi zação “profundamente machista”, enquanto da perspectiva masculina (n=2) tanto“havia pessoas que consideravam a mulher de uma forma machista, como havia companheiros maisliberais que tratavam as mulheres reaccionariamente”, havendo, ainda, uma postura, por vezespaternalista em relação às mulheres.

Em termos da passagem à clandestinidade (n=6), tanto nas BR como nas FP-25, esta era umasituação evitada ao máximo, pois o militante não clandestino resiste mais facilmente à polícia eao manter o seu emprego legal, não é um peso financeiro para a organização. Assim, a passagemà clandestinidade na generalidade das organizações acaba por ser feita apenas quando os militantes

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legais são detectados. Os membros de todas as organizações estudadas caracterizam as circuns -tâncias de passagem à clandestinidade como difíceis, às quais estão inerentes diversas perdas. Étambém relatado que para viver na clandestinidade é preciso adoptar uma dupla personalidade(n=2), no sentido em que se cria uma personagem, o mais diferente possível da original, mas aomesmo tempo o mais simples e restrita possível, de modo a não acarretar problemas nem levantarsuspeitas. Tudo isto “deixa marcas”, que se mantém mesmo depois da clandestinidade, sendomesmo descrito que chegavam a existir pessoas que continuavam a agir como se ainda fossemclandestinos, assumindo apenas a sua identidade clandestina, já na vida legal. A vida na clandesti -nidade está também na origem, segundo alguns participantes (n=3), de alguns problemas do foropsicológico, pelo facto de ser uma vida muito dura e desgastante, em que as pessoas vivem muitosozinhas. Os sintomas mais frequentemente relatados de mau estar psicológico são insónias, delíriose sentimento exagerado e irrealista de estar a ser perseguido (n=3). Neste sentido, os entrevistadospertencentes às FP-25 (n=3) apontaram uma série de cuidados a ter na clandestinidade que não sócontribuíam para a segurança física dos militantes, mas também para o seu equilíbrio psicológico– evitar sair durante a noite, fugindo assim a operações stop e a rondas policiais em estabelecimentospúblicos; estar atento ao que está ao redor, nunca ir directamente para casa, nunca fazer o mesmopercurso, trocar de casa com frequência, etc. Um entrevistado pertencente à ARA considerou oinverso, ou seja, que a clandestinidade na época da ditadura impedia as pessoas de sair durante odia e levava-as a evitar de todo o frequentar de estabeleci mentos públicos e as mudanças de casa,consideradas como momentos de grande perigo, pois era um trabalho que só o próprio clandestinopodia realizar e no qual poderia ser facilmente reconhecido. No entanto, quando os referidoscuidados não eram suficientes e a pessoa continuava a temer pela sua segurança física ou davamostras de claro mau estar psicológico havia sempre a hipótese de ir para um outro país onde sepoderia sentir segura, sendo que todas as organizações tinham este aspecto em atenção e tinhampaíses específicos aos quais davam preferência (e.g., as BR privilegiavam Argel) (n=4). No querespeita às dificuldades sentidas na clandestinidade, estas prendiam-se essencialmente comcondições de vida muito precárias, que se faziam sentir na falta de dinheiro para preparar a acçãoe numa logística com muitas falhas que não conferia os meios necessários aos objectivos a alcançar(n=4); com a percepção de enfrentar situações de elevado risco diariamente, com a incerteza cons -tante acerca da segurança individual (n=4), o que tinha como consequência a mudança frequentede casa, tida, igualmente, como uma dificuldade (n=2); com o corte relacional com a família eamigos (n=5) e, essencialmente, com a separação dos filhos (n=4); um participante refere tambémque uma das maiores dificuldades que teve foi a limitação “de carácter científico ou cultural”, nosentido em que na clandestinidade os meios eram muito restritos. Os sentimentos vividos naclandestinidade passavam por uma “sensação de vulnerabili dade muito grande”, no sentido em quenunca se sabia o que é que aconteceria a seguir e tudo era muito provisório, havendo alturas commais actividade, consideradas mais “suportáveis” e outras mais “desagradáveis” por não se ver ascoisas avançar (n=2). Na clandestinidade detecta-se, também, uma enorme necessidade de sentirconfiança nos parceiros com quem se realizam acções (n=4), o que conduz a um sentimento deprotecção por parte daquelas pessoas em quem se confia, tidas como operacionais exemplares, “quesabiam disparar, sabiam comandar uma retirada” (n=1). A vida na clandestinidade é relatada portrês participantes como uma vida de muita solidão, sendo que dois deles apontam para o facto queesta solidão é amainada quando a clandestinidade é partilhada com outra pessoa com quem se temum relacionamento de intimidade. Todos os partici pantes (n=7) relatam ter sentido medo na suavida de clandestinos, sendo que dois deles consideram mesmo que é necessário ter medo, pois nãoter medo significa estar demasiado confiante e descorar aspectos importantes. Este medo era “omedo da polícia, o medo de ser apanhado”, o medo pela família que não estava na clandestinidadee que podia ser prejudicada, o medo de ser detectado na rua ou em casa, o medo aquando dosconfrontos directos com a polícia (n=4).

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Em termos da retirada de dividendos da actividade armada (n=3), os elementos das FP-25consideram que “de maneira geral não houve ninguém que ficasse com o dinheiro”, apesar deessa ser a ideia passada pelos numerosos assaltos a bancos, mas que serviriam a subsistência daprópria organização. Um dos elementos considera mesmo que financeiramente só foi prejudicado,sendo que afirma que quando saiu da prisão “ainda saí mais pobre financeiramente”. No querespeita à aquisição de estatuto social através da participação em acções armadas, dois elementosdas BR consideram que não houve ninguém que tenha estado na clandestinidade por este motivo.No entanto, um elemento da LUAR considera que sempre se pode passar à clandestinidade “umbocado por diletantismo” e porque “se era visto”. Deste modo, as assunções de Crenshaw (1985)acerca de duas das quatro motivações apresentadas para o ingresso na actividade terrorista – desejode estatuto social e ganho de recompensas materiais – não se verificam nas organizações emestudo, segundo os seus participantes.

O suporte popular era granjeado por todas as organizações (n=5), no sentido em que todasprocuravam que a população se revisse nas suas acções. Todas as organizações relatam situaçõesdo pré 25 de Abril nas quais as suas acções foram “saudadas com largas dezenas de palmas”, poistratava-se de uma luta pela liberdade e pelo regime democrático. Por outro lado, depois daqueladata a altura em que é percebido mais suporte popular é durante o processo do ProcessoRevolucionário em Curso – PREC – em que as acções eram muito praticadas “em função de ecosde luta”, ou seja, sobre casos específicos de patrões ou empresas que estavam de algum modo areprimir e a prejudicar os trabalhadores. As FP-25 vão ainda mais longe, tendo uma rede de apoiosconstituída por pessoas que não estavam na clandestinidade e nem estavam directamenterelacionadas com a organização, mas que, por exemplo, tratavam de aspectos logísticos (e.g.,aluguer de casa, automóvel) e de documentos para os militantes na clandestinidade ou cediam asua casa para alojar alguém, apenas com a justificação que estava envolvido com assuntospolíticos, sendo que naquela altura “as pessoas assumiam isso com uma certa naturalidade semperguntar grande coisa”. Desta forma, os participantes não corroboram as afirmações de Fraser eFulton (1984, citados por Henderson, 2004) que caracterizam o suporte popular à luta armadacomo bastante reduzido e dificultante do acesso a materiais. Porém, segundo os participantespertencentes às FP-25 a desaprovação popular acaba por chegar e prende-se com o carácterextremado – mortes – das acções desenvolvidas, não sendo assim atingidos os resultados esperadospor esta organização, pois ao invés de animarem os trabalhadores para a luta, reforçaram arepressão que já antes existia sobre eles e assustaram-nos, no sentido em que estes não se queriamcomprometer com o tipo de violência praticada pelas FP-25. O que vai de encontro às afirmaçõesde Crenshaw (1990), relativas ao facto de a população não se querer identificar com a vitimizaçãode inocentes e começar a temer a repressão do Estado.

A publicidade que se faz às acções levadas a cabo (n=3) aparece como um elemento centralpara os movimentos de luta armada, sendo que um elemento da ARA relata que “o objectivocentral das acções era ganhar, digamos assim, pelo efeito espectacular e propagandístico, poisnaquela altura a televisão não falava da oposição nem os jornais”. Ao que dois elementos das FP-25 acrescentam que o mais importante não era a organização ter muitos operacionais, mas oimpacto das suas acções na opinião pública, sendo que havia um sentimento de reconhecimentoque percorria os militantes da organização, que se constituía sempre como “um factor decontentamento”. O que corrobora a teoria de Weinberg e Eubank (2006) que afirma serem os massmedia os aliados principais da actividade terrorista. Os mass media veiculam as mensagensprovocatórias enviadas pelos terroristas e concedem-lhes notoriedade pública e consequentementecredibilidade, contribuindo assim para a difusão de um clima de terror. No fundo, os mass mediadão consecução ao objectivo terrorista de fractura social e reproduzem a sua propaganda.

No que respeita ao relacionamento interpessoal (n=5), todos os participantes relatam aexistência de uma boa camaradagem, de laços afectivos muito fortes e significativos e de um

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profundo respeito cumplicidade entre os militantes. Tudo isto muito alicerçado na confiança quetinham necessariamente uns pelos outros. No entanto, mesmo que não existissem laços afectivosentre os militantes, existiam em todos os casos laços ideológicos, responsáveis pela coesão dogrupo. Contudo, dois elementos das FP-25 relatam algum mau estar a nível interpessoal naorganização, relacionado com o facto de ser uma organização política onde está sempre presenteo “factor do poder” e de quem manda em quê e em quem, o que pode sempre gerar algunsconflitos. Segundo dois participantes pertencentes às FP-25, o relacionamento interpessoal tambémpassava muito pelo aspecto de vivência conjunta, sendo este, talvez, um dos aspectos maisrelevantes para o equilíbrio dos sujeitos na clandestinidade. Assim, ou o sujeito tinha uma/umcompanheira/o na clandestinidade, que não tinha que fazer obrigatoriamente parte da organização,ou vivia com parceiros, que na maior parte dos casos não escolhia, mas com quem realizavaacções, sendo que de maneira geral o relacionamento nas casas era conflituoso (n=2), pois namaior parte das vezes não havia dinheiro suficiente, as condições de habitabilidade eram más ehavia sempre a tensão de nunca se ter a certeza se a casa tinha sido detectada ou não e, caso tivesse,para onde era a mudança. Porém, tal situação não causava conflitos de maior, porque as pessoasandavam sempre a trocar de casa e, logo, a trocar de parceiros. Em termos de relacionamentosamorosos no contexto da luta armada (n=4), verificam-se duas dinâmicas distintas, uma primeiraque era o relacionamento ocasional, fruto da rotação das pessoas e “de uma época em que haviaainda os restos do amor livre”, que não impunha uma ideia de casal muito restrita nem formalizada.Esta dinâmica, por vezes, trazia alguns problemas, no sentido em que alguns companheiros tinhamvárias companheiras em vários sítios. Neste sentido, o relacionamento amoroso dentro daorganização é descrito como “não muito saudável” (n=3), pois na maior parte dos casoscircunscrevia-se às pessoas da organização, sendo relatado que “as poucas companheiras queestiveram nunca lhes faltou companhia”, o que nem sempre significou uma “afectividaderesolvida”. No entanto, é referido que alguns casos “que começaram com relações de cama,passaram a relações de amor, tiveram filhos e mantêm hoje essa relação”. É de notar que aquandodo retorno dos dados aos participantes, um elemento da ARA não identifica a presença destesaspectos nesta organização. A segunda dinâmica passa pelos relacionamentos amorosos que jáexistiam antes do envolvimento no movimento e que são mantidos ou por aqueles que acontecemdepois de estar na organização, mas com pessoas que nada tinham a ver com esta, que podiam ounão habitar com os militantes (n=3). Segundo os participantes (n=4), a retoma dos relacionamentosapós o término da organização e de todas as consequências que o envolvimento nesta acarretoudepende em grande parte do facto de ter havido um relacionamento afectivo forte anteriormenteou não e se há uma continuidade ideológica entre o passado e o presente.

Os conflitos interpessoais no seio das organizações em estudo (n=6) são descritos como frutode divergências na maneira de pensar as acções a praticar e também como fruto de divergênciasideológicas sobre aspectos específicos, mas sobretudo como fruto dos diferentes tipos depersonalidade individuais, que, por vezes, entravam em colisão. A morte de camaradas é um outroaspecto que os participantes (n=2) apontam como acarretando conflitualidade no seio dasorganizações, pois provoca o questionamento da organização e da acção pessoal, bem comorecuos. Os pormenores logísticos do dia-a-dia, agravados e aumentados pelas condicionantes daclandestinidade, essencialmente a falta de dinheiro, a actuação de cada um para a segurança dacasa e os envolvimentos amorosos que não corriam bem ou as disputas por companheiras(essencialmente no feminino), são também apontados (n=3) como motivos de conflitosinterpessoais. A gestão de conflitos interpessoais era, segundo os participantes (n=4), feita emreuniões de direcção, e podia resultar no afastamento das pessoas em causa entre si, ou seja,continuavam na organização, mas não trabalhavam juntas. Podia também resultar no recuo dosmilitantes, tanto em Portugal como no estrangeiro, para reflexão ou afastamento permanente, poispodia estar em causa a segurança do próprio militante, assim como do grupo.

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Quando questionadas acerca da existência de alguma acção que tenha causado desconfortopessoal, todos os participantes das FP-25 (n=3) apontam a morte não intencional de um bebé. Noentanto, apesar de um dos participantes considerar esse dia como “um atentado”, considera,igualmente, que faz parte da luta política e que “se tratou de um acidente ou de um maulevantamento”. Contudo, tal desconforto leva os participantes a questionar as acções, a organizaçãoe até a actuação pessoal (n=3), de modo a compreenderem o porquê de algumas acções, queprovocam a vitimação não intencional de pessoas. Um participante da LUAR questionava-se,fruto das “dúvidas permanentes”, se o que faziam e os sacrifícios pessoais se justificavam ou não.E um elemento das FP-25 parou mesmo de fazer acções concretas, passando para uma componenteonde tinha funções mais de logística, devido ao questionamento constante que fazia aofuncionamento da organização. É de levar em consideração que apesar de algumas acções teremsido desconfortáveis para alguns participantes e de existir algum questionamento da organização,nenhum deles a abandonou ou deixou de fazer acções, o que pode está relacionado com o factode, em primeiro lugar, ser muito complicado um militante desvincular-se da luta, pois é impossívelretornar ao seu dia-a-dia habitual (Crenshaw, 1990) e, em segundo lugar, o facto de estes poderemser vistos como crimes de obediência, crimes cometidos por pessoas que não apresentam qualquerperturbação e que podem escolher agir de acordo com a lei, mas escolhem agir de acordo com asorientações da organização armada (Beu & Buckley, 2004).

No que respeita à utilização de armas (n=5) é comum aos participantes, tanto do antes comodo pós 25 de Abril, o facto de não terem uma preferência especial pela utilização de armas. Aoponto de um deles afirmar que nunca disparou uma arma, outro dizer que nunca andava armadano dia-a-dia, devido ao facto de acreditar que seria “uma tentação para um acto qualquer dedesespero” e outro referir que tinha uma péssima capacidade de tiro, o que causava algumainsegurança aquando da realização das acções onde poderia ser necessário disparar.

No que refere às características dos sujeitos envolvidos nos movimentos de luta armada éapontado por dois dos participantes que “não há uma personalidade do guerrilheiro ou da pessoaque se envolve na luta armada, há várias personalidades como em todo o lado”, logo quem praticalutar armada não é obrigatoriamente alguém “desiludido, frustrado ou enganado”, nem o faz porser “ de esquerda revolucionária” ou porque é “traumatizado ou malquerido”, sendo a grandemaioria dos participantes considerada como estruturada e equilibrada. Deste modo, tal comoreferido na literatura (Crenshaw, 1990; Costa, 2008), não se verifica a presença de qualquer tipode perturbação ou doença mental, pelo menos nos discursos dos participantes, em indivíduos quepraticam luta armada.

A faixa etária dos participantes na luta armada em Portugal encontrava-se, maioritariamente,entre os 20 e os 30 anos (n=3), eram pessoas que estavam no “começo da idade adulta” e queconsideram que o que fizeram resultou fundamentalmente da idade que tinham, sendo esta “umaexperiência de jovem”. No entanto, uma experiência que marca “um período tremendo” em todasas áreas da vida dos sujeitos que por ela passaram, com consequências nas formas de pensar, agire estar no presente. O que realmente corrobora as afirmações presentes na literatura que vão nosentido das idades jovens dos indivíduos praticantes de luta armada (Cohen, 1955; Hudson, 1999;Post, 1986, citado por Nascimento, 2002) e do facto de a sua identidade ser formada e afirmadapela sua pertença ao movimento (Ventura & Nascimento, 2001).

Em termos do posicionamento individual antes de uma acção (n=4), são encontradas algumasdiferenças entre os participantes. Alguns afirmam que não tinham medo, nem se sentiamstressados, nunca pondo em causa a realização da acção ou pensando em voltar atrás, enquantooutros referem que nunca conseguiram aprender a lidar com o stress, indo para as acções muitotensos e inseguros pelo facto de não saberem se conseguiriam responder da forma acertada àscircunstâncias ou até mesmo não dando consecução à acção (n=4). No entanto, aquando darealização das acções propriamente dita os participantes relatam diversos estados internos (n=3)

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– alguns, movidos pela “adrenalina”, procuravam sair o mais rápido possível das situações; outrosrelatam momentos em que “as pernas estavam a tremer”, mas em que tinham que dar continuidadeà acção, pois caso contrário prejudicariam outros camaradas; outros, ainda, perdiamcompletamente a calma; por fim, alguns demonstravam possuir “nervos de aço”, “muito sanguefrio e muito destemor”, provocados por uma “calma excessiva” que os invadia no decorrer daacção.

No presente os elementos pertencentes às FP-25 apontam para uma necessidade de contextua -lização do passado (n=2), no sentido em que a “organização correspondeu a um momento históricoe a um grupo de pessoas (...) que tinha uma grande disponibilidade para o todo social e queolhavam a realidade social no sentido de a transformar”. Deste modo, os participantes têmdificuldades em realizar análises à posteriori por considerarem que houveram motivações sociais,económicas e políticas referenciadas à época. Contudo, é admitida uma certa falta de maturidadee uma “tremenda ilusão” que a igualdade poderia ser imposta “na ponta das espingardas”. É, ainda,admitido que houve acções que não foram bem-feitas, apesar de na altura o terem parecido, masos seus efeitos colaterais vieram provar o contrário (e.g., o facto de quase todos terem acabadopor ser presos). No entanto, as recordações do passado (n=3), tanto nas organizações do antes,como do pós 25 de Abril são sobretudo positivas, afectivamente muito fortes, apesar das muitasdificuldades passadas e do medo constante de serem descobertos. Tais recordações permitem aindadar sentido ao passado e “ajustar as coisas”. Os participantes de movimentos existentes antes do25 de Abril sublinham, ainda, a sua elevada importância no passado sob o ponto de vista políticopor terem agido de forma diferente e por terem contribuído para a revolução (n=2).

É de notar uma marcada ausência de arrependimento (n=5), estendido tanto aos grupos do antescomo do pós 25 de Abril, sendo que dois sujeitos pertencentes a organizações que estiveram noactivo antes dessa data expressam mesmo “um sentimento de orgulho” pelo percurso na lutaarmada no passado, que de acordo com aqueles trouxe ganhos incomparáveis para a sociedadeportuguesa. No que respeita às FP-25 os envolvidos consideram que “em termos de conceito e demaneira de ver o mundo” não há como se arrependerem, nem se descomprometerem das acçõesde decisões levadas a cabo (n=2), sentindo-se ainda motivados para a continuidade na luta política.Tal ausência de arrependimento pode ser produto de uma inibição das regras morais convencionaisempreendida por estes elementos, que ao darem grande relevância às circunstâncias sociais,produzem justificações para as acções praticadas (e.g., “... foi uma boa trajectória, foi importantena sociedade portuguesa, importante na história e foi uma formulação em si como objecto...”; “... não se podia ficar parado à espera que tudo que se tinha ganho em 74 e 75 se fosse perdendoe, portanto, havia que fazer alguma coisa de extremo”), deslocam a responsabilidade dasconsequências para as vítimas (e.g., “se o arrependido das FP-25 não tivesse colaborado com apolícia não tinha sido morto”) ou minimizam-nas e percepcionam a vítima como culpada e indignade viver (e.g., “... um gajo que mandava mais que os outros, um gajo que as pessoas estavam amorrer de fome, os médicos mandavam as pessoas ir para o hospital e ele dizia não vão nada,quem manda sou eu...”) (Bandura, 1990, 1999).

No que respeita à continuidade da luta após a revolução de Abril, as organizações que actuaramantes do 25 de Abril demonstram total desacordo com a mesma (n=2), por considerarem que nopresente é-se livre para praticar formas de luta legais. Já os elementos das FP-25 consideramalguns motivos para a não continuação na luta armada no presente (n=2) – limitações puramentefísicas, bem como a existência de sentimentos de desilusão e frustração, devidos ao fracocumprimento dos objectivos da organização e ao facto de a maioria dos seus militantes ter sidopreso (n=2). Contudo, tanto os grupos do antes como do pós 25 de Abril apresentam umamanutenção no presente da ideologia e postura defendidas no passado (n=4). O que, em algunscasos, não poderia acontecer de outro modo devido à tenra idade de adesão a organizaçõespraticantes de luta armada, o que contribui para a moldagem das identidades pessoal e social dos

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indivíduos (Ventura & Nascimento, 2001). No entanto, são referidos numerosos camaradas quenão mantiveram qualquer continuidade entre o passado e o presente (n=4), que recusam qualquertipo de proposta relacionada com algum tipo de luta e até mesmo alteraram as suas convicçõesideológicas.

No sentido da manutenção no presente de formas de luta legais dos sete participantesentrevistados, três relatam continuarem na defesa dos seus ideais, mediante uma necessidade decontribuição para a transformação social e de luta contra as injustiças. Porém, é relatado que amaioria dos restantes militantes dos movimentos em geral não teve a mesma atitude deenvolvimento político e social, optando por “uma postura de tratar da vida no sentido doquotidiano”.

SÍNTESE CRÍTICA E CONCLUSÃO

Em síntese, a iniciação no grupo acontecia, na maior parte dos casos, através de um processode recrutamento, que podia ser levado a cabo pela própria organização, pelo partido político queestava na sua retaguarda ou por iniciativa de sujeitos que procuravam aquela a título individual,no intuito de concluir se a pessoa tinha ou não capacidade de ajuste à organização clandestina eaos seus propósitos. A entrada no grupo não parece ser levada a cabo por nenhum tipo de fascíniopor armas ou pelo exercício da violência, mas antes pela oportunidade de agir, no sentido dederrubar o regime ditatorial (no respeitante às organizações actuantes antes do 25 de Abril) e nosentido de combater injustiças sociais e um possível retorno ao fascismo (no respeitante às FP-25).

As dinâmicas interpessoais no seio das organizações abordadas eram caracterizadas por umaclara afectividade e, na ausência desta, existiam, pelo menos, laços ideológicos, sendo que osrelacionamentos tinham por base a necessidade de confiar no outro, devido aos riscos corridosdurante a consecução das acções. Os relacionamentos amorosos eram marcados por um carácterocasional, entre militantes ou não, ou diziam respeito a relacionamentos que já existiam antes daorganização ou que se iniciaram após entrada na mesma, mas com pessoas do exterior.

Os conflitos decorriam essencialmente das necessidades do quotidiano e da convivência nashabitações, sendo também motivados por divergências na forma de pensar e executar as acções.A gestão dos mesmos poderia significar tanto o afastamento dos militantes entre si, como o recuopara o estrangeiro, no sentido da sua protecção pessoal e da organização. A morte de camaradasexercia um peso substancial no que concerne às dinâmicas interpessoais, pois esta era sempre tidacomo uma perda arrasadora, que trazia consigo sentimentos de culpa e desmotivação. O modo delidar com os delatores difere entre as organizações actuantes antes do 25 de Abril – que nãoexerciam qualquer tipo de castigo relativamente aos mesmos – para a organização actuante nopós 25 de Abril – que optou pelo assassinato de um deles, como meio de veicular uma mensagem.Ressaltam-se, ainda, relatos de algum mal-estar em termos de dinâmicas interpessoais, provocadopela procura de poder por parte de alguns militantes, negando-se, contudo, a existência de umadissociação entre militantes puramente ideólogos e militantes puramente operacionais.

A vida dentro do grupo diferia totalmente da vida quotidiana, pois todos os participantes areferem como muito limitada e muito marcada por dificuldades e saudades da família, dos amigose dos próprios hábitos da vida fora do grupo. A gestão da clandestinidade revela-se uma das áreasmais complicadas da militância armada, sendo que nenhum participante encontra nela algumavantagem, pois é caracterizada como uma vida muito dura, repleta de perdas e dificuldades, quechega mesmo a provocar perturbações psicológicas. Neste sentido, foram referidos diversosprocedimentos de segurança colocados em prática, bem como oportunidades de refúgio no

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estrangeiro. Os sentimentos mais relatados foram a sensação de vulnerabilidade constante, asolidão, as saudades e o medo. É ainda apontada a não retirada de dividendos (financeiros ou deestatuto social) pelo facto de se estar na clandestinidade.

O papel das mulheres no movimento é considerado em todas as organizações, à excepção daARA, igual ao dos homens. É descrito que um reduzido número de mulheres praticava luta armada,contudo ocupavam cargos directivos, ocupavam-se do apoio logístico e participavam nas acções.Na ARA as mulheres estavam mais encarregues de manter a aparência de normalidade na vidaquotidiana, perante a sociedade, participando, por vezes, em questões de análise política. Destemodo, o grau de aceitação das mulheres nas diferentes organizações era elevado, apesar de estassentirem, por vezes, que não eram fundamentais e que tinham que se esforçar mais do que oshomens para serem aceites.

No que refere às justificações atribuídas às acções empreendidas, estas são de teor essencial -mente político e ideológico, no sentido da libertação da repressão do regime fascista e do peso daGuerra Colonial antes do 25 de Abril de 1974, e no sentido da luta contra as injustiças sociais e oregresso da ditadura após aquela data. A gestão de momentos e acções percebidos comodesconfortáveis é realizada através de processos de tomada de decisão, a qual, de acordo com osparticipantes, se caracterizava pelo recurso ao voto e pela procura de consenso, deixando sempremargem de recusa individual. A dúvida e o questionamento surgiam, particularmente, após acçõesque provocavam vitimização não intencional ou a morte de camaradas, e quando os militantesreflectiam acerca de os ganhos e perdas compensarem, ou não, todo o sacrifício pessoal.

O suporte popular era procurado por todas as organizações e todas elas procuravam despertaras populações no sentido de uma revolução popular, umas com mais sucesso do que outras, poisao colocarem em prática o ataque contra pessoas as FP-25 atemorizaram as populações, que –segundo os participantes – não se queriam comprometer com este género de acções.

O sentido que actualmente os participantes dizem atribuir às suas acções e envolvimento nopassado é descrito como a percepção de um momento que não se podia deixar passar, e no qualera necessário agir. No presente, os participantes contextualizam a sua actuação de acordo com aconjuntura política, económica e social da época e a referência à existência de recordaçõesmormente positivas e à ausência de arrependimento são unânimes entre aqueles. Estes participantesmantêm hoje a ideologia do passado. Estão, na sua maioria, envolvidos em formas de luta legaispor aquilo que defendem; no entanto não aderem novamente a movimentos de luta armada, unspor não o acharem necessário, outros por considerarem que a idade já não o permite. Referem,contudo, que diversos camaradas alteraram totalmente a sua postura e preferem ignorar e ocultaro passado.

Finalmente, em jeito de conclusão e de aproximação a uma explicação teórica do porquê daentrada e participação em organizações armadas por parte deste grupo de participantes,consideramos que neste estudo se distinguem claramente os actores que participaram emorganizações de antes do 25 de Abril e os actores praticantes de luta armada após esta data.

No primeiro caso, parece-nos tratarem-se, essencialmente, de indivíduos pertencentes a umestrato social composto por intelectuais, com carreiras políticas sólidas, ideologicamenteorganizados e, muitas vezes, com experiência de formação política e operacional no estrangeiro.Indivíduos estes que aspiravam apenas à queda do regime ditatorial e ao fim da Guerra Colonial,repudiando de todo a vitimização humana como meio para o alcance dos seus objectivos. Nosegundo caso, parece-nos tratarem-se de indivíduos mais jovens e menos intelectualizados, na suamaioria, que experienciaram a euforia da revolução de Abril, a reconquista da democracia e quea um dado momento se começam a aperceber, muitas vezes por experiência própria (no casodaqueles que eram operários), de injustiças no seio do tecido social, que afectavam principalmenteos mais desfavorecidos. Estes indivíduos começam, igualmente, a temer o retorno à ditaduradevido a avanços da extrema-direita e aos fracassos eleitorais dos partidos da esquerda. É neste

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sentido que se organizaram, mas a nosso ver de uma forma bastante emocional e pouco ponderada,o que justifica a rápida desarticulação da organização, a prisão da maioria dos seus elementos,bem como a realização de acções com as quais nem todos os participantes se identificaram.

Deste modo, acreditamos que este estudo deixa o seu contributo para o melhor conhecimentodas vivências e perspectivas individuais daqueles que dedicaram um período da sua vida à lutaarmada no nosso país, bem como das dinâmicas das organizações que integraram. Acedemos aáreas muito pouco perscrutadas pela literatura, tanto a nível nacional, como internacional, poisprocurámos centrar a análise a um nível mais micro do que macro, ou seja, ao nível do individuoe das suas experiências subjectivas (quando a maioria das análises sobre o terrorismo se situa numplano mais macro, de orientação sociológica).

No entanto, consideramos ser possível ir mais além e explorar melhor aspectos relacionadoscom a história de vida dos sujeitos, com as suas justificações de carácter ético, moral e psicológicopara a comissão de acções ilegais e acerca da própria estrutura e modus operandis dasorganizações. Contudo, estas são áreas de difícil aproximação, às quais, por vezes, os própriosentrevistados têm dificuldade em aceder, pois não nos podemos esquecer que muitos deles viveramanos a fio na clandestinidade e determinadas formas de estar e agir, e mesmo algumas limitaçõesde expressão, são ainda fruto dessa experiência.

Este estudo procurou, ainda, relacionar diversas abordagens com o fenómeno da luta armada,no sentido de lhe dar um enquadramento teórico e de corroborar ou não, através dos dadosrecolhidos, a parca teoria prévia. Contudo, a literatura nesta área está muito voltada para osmovimentos de luta armada de cariz religioso, ou para os movimentos de guerrilha da AméricaLatina, o que nem sempre permite a adopção de uma abordagem metodológica no sentido daprova. Assim sendo, acabámos por optar por uma postura metodológica orientada sobretudo nosentido da descoberta, congruente com a pobre teoria disponível na área e com a própriametodologia qualitativa adoptada.

No futuro, consideramos relevante a abordagem de formas de prevenção da violência armadae das suas consequências, através da análise das condições sociopolíticas que originammovimentos de luta armada, de como estas podem ser alteradas, de como o próprio Estado podeprevenir e controlar o terrorismo e os seus efeitos e de como o terrorismo se relaciona com osmeios de comunicação. Será, igualmente, relevante analisar as consequências da participação naluta armada para os militantes, mas também as consequências das acções violentas nas sociedades,nos Estados e nas próprias vítimas ou familiares e amigos destas, sendo ainda interessante a análiseda relação destes com as redes de suporte existentes, bem como com os órgãos de comunicaçãosocial.

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The purpose of this article is to study the involvement in armed political fight in Portugal. Thus, wehave taken the perspective of individual participants. This may point to future ways of dealing withthe phenomenon. In order to access such perspectives we aimed to explore (a) the initiation/entry intothe group (b) the interpersonal dynamics within the group, (c) life within the group versus everydaylife, (d) the management of underground life (e) the role of women in the movement, (f) the ethical,moral, psychological, ideological, etc., justifications for their actions, (g) the management of momentsand actions perceived to be undesirable, (h) the management of the doubt and self-questioning, (i)popular support, and (j) the meaning of actions and involvement in the past and present. We used aqualitative methodology that gave preference to the method of semi-structured interviews withparticipants in movements of armed political fight in Portugal in the past. The presentation anddiscussion of the results mirror the position of participants throughout the topics mentioned abovecompared, when possible, with data collected from literature on the subject.

Key-words: Armed fight, Terrorism, Underground life.

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Análise Psicológica (2012), XXX (1-2): 215-230

Discursos sociais sobre a violência de Estado: Um estudo qualitativo

Mariana Barbosa* / Carla Machado** / Raquel Matos* / Ana Barbeiro***

*Universidade Católica do Porto; **Universidade do Minho; ***Université de Lausanne

Assistimos, na actualidade, a uma crescente preocupação com o papel das políticas de acção dosgovernos na perpetuação de ciclos de violência. No entanto, a violência de Estado (da guerra à tortura,ou à violência policial) foi, até recentemente, um tema negligenciado pela comunidade criminológica(Aas, 2007; Young, 2007). O presente estudo visa conhecer a real extensão da tolerância e legitimaçãoda violência de Estado por parte dos cidadãos comuns. Apesar de este texto se focar apenas nos dadosportugueses, este é um projecto que está a ser conduzido em quarenta e três países de todo o mundoatravés do Group on International Perspectives on Governmental Aggression and Peace (GIPGAP).Com o intuito de contribuir para o conhecimento dos processos de legitimação da violência de Estadopor parte de cidadãos portugueses, procedeu-se a uma análise comparativa do posicionamento de 600participantes face a diferentes tipos de violência de Estado. Partindo da identificação dos argumentosutilizados pelos participantes para legitimar ou rejeitar cada tipo de violência, procurou-se depoisperceber em que medida estes posicionamentos se diferenciam em função do grau de normatividadedo acto (percebido como legal ou ilegal), da sua natureza (por exemplo: agressão ou morte) e do alvodo mesmo (por exemplo: civis ou prisioneiros de guerra).

Palavras-chave: Contra-terrorismo, Invasão, Pena de morte, Tortura, Violência policial.

VIOLÊNCIA DE ESTADO

A violência de Estado foi, até recentemente, um tema em larga medida esquecido pelacriminologia (Aas, 2007; Young, 2007). Como referem Green e Ward (2004), o aspecto maissurpreendente da teorização criminológica sobre a violência de Estado é a pouca atenção que lhetem sido dedicada e o pouco que sabemos sobre o assunto. Temas como a tortura, por exemplo,têm recebido uma atenção surpreendentemente escassa e a pouca teorização sobre a violênciapolítica tem-se centrado tendencialmente nos actos perpetrados por grupos infra-nacionais,ecoando as definições tradicionais do terrorismo e esquecendo a violência institucional, exercidapor agentes do Estado ou em seu nome (Ross, 2003).

Green e Ward (2004) propõem uma tipologia dos crimes cometidos pelo Estado, na qualincluem a corrupção, algumas dimensões do crime corporativo e do crime organizado, os crimesambientais, a violência policial, o terrorismo de Estado, a tortura e o genocídio. Por sua vez, Fattah(1997) distingue os assassinatos cometidos pelo Estado (e.g., genocídio, execuções extrajudiciais,execuções sumárias), o abuso de poder político (e.g., tortura, internamento em campos deconcentração, experimentação em seres humanos) e o crime organizado por agentes do Estado.Considera, ainda, que nestes crimes podem estar envolvidas corporações legais, sujeitos

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A correspondência relativa a este artigo deverá ser enviada para: Mariana Reis Barbosa, Universidade CatólicaPortuguesa, Rua Diogo Botelho, 1327, 4169-005 Porto. E-mail: [email protected]

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individuais em posições de poder (ressonante com o conceito de white-collar crime), profissionaisdo crime, organizações policiais e organizações criminosas.

De entre as várias dimensões do crime de Estado propostas por estes autores, a violência policialé, sem dúvida, o tema mais estudado, com um número significativo de estudos sobre a sociologiado policiamento a dedicarem-se à desviância cometida pelos agentes policiais, por exemplo, soba forma de corrupção e uso ilegítimo da força (Green & Ward, 2004). Outros temas, sobretudo osque se ligam à dimensão económica da criminalidade de Estado, tais como o crime corporativo ea interpenetração entre certos Estados e o crime organizado, foram também alvo de algumaatenção, sobretudo por autores da área da criminologia radical. Chambliss (1999) denunciou, porexemplo, as afinidades existentes entre a estrutura política e económica do Estado e a forma quetoma o crime organizado. Green e Ward (2004), por sua vez, discriminam a relação do crimeorganizado com o Estado em função da diferenciação entre Estados “fortes” e Estados “fracos”,propondo que nestes últimos o crime organizado substitui “o vácuo criado por um Estado ineficaz”(p. 87). Como exemplos, apontam o caso da Itália, da Rússia ou da Colômbia.

Outras dimensões da violência de Estado, contudo, têm sido praticamente esquecidas pelacriminologia, como sejam o caso da tortura, dos crimes de guerra ou do genocídio. Este viés dacriminologia (Fattah, 1997) está, no entanto, longe de traduzir a raridade do fenómeno. Diversosautores têm salientado que a violência extra-legal é amplamente utilizada de forma integrada nofuncionamento regular do Estado, sem que se confine a regimes autoritários ou a períodos de crise,embora estas condições possam agudizá-la (Green & Ward, 2004).

A literatura sobre a violência policial tem tido um papel central neste sentido, ao elucidar ocarácter rotineiro da violência e a forma como ela decorre das próprias características estruturaisdo trabalho policial. De forma análoga, tem sido verificado que o recurso à vigilância ilegal é umprocedimento operacional regular e que a tortura, não obstante as convenções internacionais, éamplamente utilizada por vários países, sendo a maioria das suas vítimas suspeitos de crimescomuns de sectores socialmente desfavorecidos e a maioria dos torturadores membros de forçaspoliciais ou do exército (Fattah, 1997; Green & Ward, 2004). A documentação sobre adisseminação desta prática, assim como sobre as redes de formação e de fornecimento deinstrumentos de tortura, frequentemente envolvendo países ditos civilizados (cf. Green & Ward,2004), tem contribuído para negar o seu carácter excepcional ou as suas explicações de teorindividualista. Ganha credibilidade a explicação de Chomsky e Herman (1979), segundo a qual atortura representa um modo de governação, isto é, uma estratégia coerente que não visa, aocontrário do que é uso dizer-se, obter informação crucial em momentos excepcionais, mas antesproduzir o silenciamento ou a subordinação das vozes dissidentes dentro do Estado.

A recente “descoberta” da utilização alargada da tortura por governos democráticos, associadaà reconstrução da segurança no pós-11 de Setembro ilustra bem, a nosso ver, a afirmação de Cohen(1985), segundo o qual a modernidade tardia se caracteriza pela expansão dos métodos de controlosocial, tanto hard como soft. Do lado soft, a transformação mais relevante a que assistimos é aexpansão da vigilância pública e a concomitante restrição das liberdades individuais – bases dedados computadorizadas, vigilância electrónica, das chamadas telefónicas, do e-mail e dastransacções bancárias. A regulação da mobilidade é um outro elemento central deste controlo soft,com um agravamento das suspeições em torno dos imigrantes e de quem pede asilo, na medidaem que, encarnando já, em si mesmos, a figura do “outro” temido pelos ocidentais, estes setornaram hoje rostos que podem esconder o que Hudson (citado por Aas, 2007) chama o paradigmado “outro monstruoso” – o terrorista. A mobilidade torna-se, aliás, tanto mais ameaçadora quantonão é só quem vem de fora que é percebido como perigoso: a perpetração de actos terroristas porcidadãos ocidentais alimenta o medo do “inimigo cá dentro”, consubstanciado na desconfiançaface às minorias étnicas.

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Do lado hard, sabemos que, depois do 11 de Setembro, a administração norte-americana decidiuusar um conjunto de métodos de interrogatório proibidos pela Convenção de Genebra,reinterpretando-a de forma a criar uma base legal para usar estas técnicas de inquérito. Os torturememos escritos por John Yoo, antigo funcionário da Administração Bush, defendem que aConvenção de Genebra não se aplica ao contexto da guerra contra o terrorismo. Rumsfeldacrescentou que os prisioneiros iraquianos, sendo combatentes ilegais, não têm direitos eridicularizou as restrições às técnicas de interrogatório usadas pela CIA. Para vários autores, estasvozes estabeleceram o contexto de legitimação para abusos tais como os que aconteceram em AbuGhraib e Guantánamo.

A nosso ver, importa levantar três questões centrais em torno destas práticas: Quais são ascondições sociais que as estimulam?, Como se explica o envolvimento de pessoas aparentementenormativas em comportamentos desta natureza? e Como se compreende a tolerância ou mesmoa franca aceitação que tais práticas merecem, pelo menos durante certos períodos de tempo, porlargos sectores da população?

Em resposta à primeira destas perguntas, a investigação disponível tem sugerido que, para alémdas dimensões pessoais e organizacionais envolvidas no recurso à violência de Estado, hácondições sociais que a facilitam. Desde logo, a desigualdade social, associada ao medo das“classes perigosas”, medo este que é partilhado tanto pelas elites, que temem ver os seus bens eprivilégios atacados, como pelos “pobres respeitáveis”, cuja indignação moral e punitividadetraduzem o ressentimento de uma vida de contenção e a inveja perante o aparente hedonismo e faltade restrições de quem percebem como estando “abaixo” de si (Box, 1996; Caldeira, 1992). Váriosestudos empíricos, conduzidos por exemplo nos EUA e na América Latina, têm sugerido que estascondições se agudizam quando aumenta o fosso entre ricos e pobres, dando lugar a práticaspoliciais mais violentas (Green & Ward, 2004). Quando a estas condições de desigualdade seassocia um Estado fraco, incapaz de impor a ordem por outros meios e alimentando uma sensaçãode arbitrariedade e caos, o desejo de reposição da ordem e de autoridade pode também gerar umsentimento popular de apoio à violência “de cima” (ibidem). Esta vai ser, usualmente, empreguecontra um inimigo comum claramente identificado pela própria ideologia dominante, um membrodo out-group que é identificado como responsável pelo mal-estar social, sendo a facilidade naidentificação deste culpado e a forma desumanizada e perversa como o mesmo é retratadoelementos adicionais facilitadores da legitimação social da violência de Estado. Este mecanismode constituição discursiva do “Outro” tem sido apontado por vários autores como tendo um papelcentral na justificação moral da violência, quer para a perpetrada pelo próprio, quer para a que oEstado pratica com a complacência de boa parte dos cidadãos. Efectivamente, perpetrar actos queo senso comum, as normas legais e as convenções internacionais constituem como ilegítimos eimorais, exige o desenvolvimento de um racional justificativo que suspenda tal julgamento moral.

Esta neutralização dos juízos morais tem sido estudada por vários autores na Sociologia e naPsicologia, desde os estudos originais de Sykes e Matza (1957) sobre as técnicas de neutralização,até aos trabalhos mais recentes de Cohen (2001) sobre os mecanismos de denegação, de JockYoung (2007) sobre os mecanismos de othering e de Albert Bandura (1999, 2002; McAlister,Bandura, & Owen, 2006) sobre os processos de descomprometimento moral. Apesar das diferençasentre estes autores, no seu conjunto eles consideram que a violência de Estado tem sido justificadaa partir de um conjunto de estratégias discursivas centrais:

(i) A negação dos factos (“este Estado não usa a tortura”);

(ii) A negação do seu significado (utilização de linguagem eufemística como “ataquescirúrgicos”, “bombas de precisão”, “pressão corporal”);

(iii) A negação da responsabilidade dos agentes (“a guerra tem outras regras”, “apenasobedecíamos a ordens”);

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(iv) A negação dos efeitos (“danos colaterais”);

(v) A essencialização do Outro (“eixo do mal”, “terroristas”) e do próprio (“combatentes daliberdade”);

(vi) A negação das implicações morais da acção (“não é nada comigo”, “quem manda é quesabe”).

Baseando-se nestes pressupostos, o projecto de investigação que apresentamos neste texto visaconhecer a real extensão da tolerância e legitimação da violência de Estado por parte dos cidadãoscomuns. Apesar de este capítulo se focar apenas nos dados portugueses, este é um projecto que estáa ser conduzido em quarenta e três países de todo o mundo e de todos os continentes, através doGroup on International Perspectives on Governmental Aggression and Peace (GIPGAP), sobcoordenação de Kathleen Malley-Morrison, da Universidade de Boston. Para além de procurarperceber o grau de tolerância dos cidadãos em relação a diferentes formas de violência de Estado(desde a violência policial à guerra) e os mecanismos discursivos envolvidos nesta legitimação,este projecto visa também compreender o seu posicionamento face às possibilidades de paz ereconciliação.

Com o intuito de contribuir para o conhecimento dos processos de legitimação da violência deEstado por parte de cidadãos portugueses, o presente estudo compreendeu uma análise comparativado posicionamento dos participantes face a diferentes tipos de violência de Estado (por exemplo:guerra; violência policial; pena de morte). Partindo da identificação dos argumentos utilizadospelos participantes para legitimar ou rejeitar cada tipo de violência, procurou-se depois perceberem que medida os posicionamentos dos participantes se diferenciam em função do grau denormatividade do acto (percebido como legal ou ilegal), da sua natureza (por exemplo: agressãoou morte) e do alvo do mesmo (por exemplo: civis ou prisioneiros de guerra).

MÉTODO

Amostra

No presente estudo utilizou-se uma amostra de 600 participantes (52% do género feminino)estratificada em função do género e da região a partir dos dados do Census, 2001 (INE, 2001). Aidade dos participantes está compreendida entre os 18 e os 67 anos, com a média a situar-se nos 34anos para ambos os géneros. Esta amostra é constituída por uma maioria de participantes da classemédia (66%), com os restantes distribuindo-se de forma equitativa pelas classes baixa (17%) e alta(17%). Aproximadamente 47% dos participantes possuem um grau superior, 37% completaram oensino secundário e 16% possuem habilitações académicas mais baixas. No que concerne à situaçãoprofissional, 63% dos participantes encontram-se no activo, verificando-se uma grande diversidadede profissões (por exemplo: professores, mecânicos, músicos, engenheiros, agricultores, etc.). 25%dos participantes são estudantes a tempo inteiro, sendo que os restantes 12% se encontramdesempregados ou reformados. 78% dos participantes assumem-se como católicos, 19% comoateus ou agnósticos e os restantes 3% referem pertencer a outras religiões.

Instrumento

Todos os participantes responderam ao PAIRTAPS – The Personal and Institutional Rights toAggression and Peace Survey (Malley-Morrison, 2006). O PAIRTAPS é um instrumento que avalia

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atitudes sobre violência de Estado, direitos humanos e paz. Este instrumento é constituído pelasseguintes secções: a primeira refere-se aos dados sociodemográficos do participante; na segundae terceira secções (Parte A, questões sobre direitos e Parte B, questões sobre crençasgovernamentais), é pedido aos participantes que classifiquem, quanto ao seu grau de acordo,afirmações relativas a direitos individuais e governamentais e que expliquem o seu posicionamentoface a cada uma das afirmações. Na parte C (respostas emocionais) solicita-se aos participantesque respondam, em relação a um conjunto de cenários, sobre como se sentiriam e o que gostariamde fazer caso fossem expostos a certas formas de violência (por exemplo: bombardeamento de umacidade). Na parte D, é pedido aos participantes que dêem a sua definição pessoal de algunsconceitos (por exemplo: reconciliação).

De entre os diferentes itens do PAIRTAPS, foram seleccionados, para esta análise, aquelesrelacionados com violência de Estado:

– “às vezes os governantes têm o direito de matar civis inocentes para combater o terrorismointernacional” (designação ao longo do texto: contra-terrorismo);

– “às vezes o governo tem o direito de executar um dos cidadãos do seu país” (designação aolongo do texto: pena de morte); a opção por esta designação, apesar de a formulação doitem referir o direito governamental à execução de uma forma geral, prende-se com o factode a grande maioria dos participantes nas suas respostas se referirem especificamente à penade morte;

– “o governo tem o direito de ordenar a tortura de prisioneiros em tempo de guerra” (designa -ção ao longo do texto: tortura de prisioneiros de guerra);

– “às vezes um país tem o direito de invadir outro país” (designação ao longo do texto:invasão);

– “às vezes a polícia ou os militares têm o direito de usar de violência contra os seusconcidadãos” (designação ao longo do texto: violência policial/militar).

Os três primeiros itens (contra-terrorismo, pena de morte e tortura de prisioneiros de guerra)têm como denominador comum o facto de se reportarem a formas de utilização de violência porparte do Estado que em Portugal são percebidas como não normativas, tanto de acordo com asnormas nacionais como nos acordos internacionais sobre direitos humanos. Já os itens da invasãoe da violência policial/militar reportam a formas de utilização de violência por parte do Estado quepor vezes assumem um carácter normativo, sendo os contextos por excelência de exercício do“uso legítimo da força” por parte dos Estados.

Os participantes classificaram a sua concordância com os itens numa escala Lickert de 7 pontos(desde 1 – Discordo totalmente até 7 – Concordo totalmente), tendo-lhes sido ainda solicitadoque explicassem, por escrito, o seu posicionamento face ao item.

Análise dos dados

Para os propósitos deste estudo, de natureza qualitativa, analisaram-se apenas as respostas dosparticipantes à segunda tarefa solicitada em cada item (explicação do seu posicionamento). Osistema de codificação das respostas qualitativas ao PAIRTAPS foi desenvolvido a partir da análisede uma amostra aleatória de respostas de participantes de diferentes países envolvidos no projecto.De forma a evitar possíveis enviesamentos no processo de codificação das respostas de diferentespaíses, todas as respostas foram transcritas na mesma língua (inglês) e procedeu-se a uma leituracega dos dados, omitindo-se os dados sociodemográficos dos participantes. Após a categorizaçãoinicial das respostas qualitativas em dois grandes grupos (concordância e discordância), recorreu-

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se à Grounded Analysis (Straus & Corbin, 1998), para criar, de forma indutiva, subcategoriasintegrativas da argumentação dos participantes, explicativas do seu posicionamento. O critériobase do processo de definição das categorias consistiu no acordo inter-codificadores da equipa doGIPGAP responsável pelo desenvolvimento do sistema de codificação. O processo de selecção docorpus de análise, garantindo a qualidade dos dados, assim como a fidelidade inter-codificador dossistemas de categorias desenvolvidos a partir do mesmo, conferiram a este processo de análise oestatuto de credibilidade necessário à sua utilização para a codificação das respostas dos diferentespaíses envolvidos no projecto.

Os protocolos de codificação criados para os diferentes itens do PAIRTAPS através desteprocesso têm sido utilizados pelos investigagores envolvidos neste projecto para codificação dasrespostas de participantes dos seus países. O recurso a este sistema comum, para além de contribuirpara a validação do processo de categorização, através da triangulação dos dados e dosinvestigadores, possibilita ainda a análise comparativa entre o posicionamento de participantesde diferentes países. No entanto, na codificação das respostas de cada país estes protocolos decodificação deverão servir apenas de ponto de partida, reajustando-se as categorias prévias oucriando-se novas categorias de forma a contemplar também as especificidades associadas aocontexto histórico-cultural dos participantes.

As respostas qualitativas da amostra portuguesa foram codificadas de acordo com o processodescrito, com o sistema geral de categorias para cada item a obedecer aos critérios desenvolvidospela equipa de codificadores do GIPGAP. A análise destas respostas conduziu à criação e/oureformulação de algumas categorias de análise, garantindo assim a qualidade descritiva eproximidade mantida com os significados expressos pelos participantes (Strauss e Corbin, 1998),de forma a abarcar as especificidades da amostra portuguesa. De forma a garantir a fidelidade donosso sistema de análise, seleccionámos aleatoriamente 30% das respostas a cada um dos itens,para serem co-codificadas. Procedeu-se ao cálculo do índice de fidelidade seguindo a fórmulaapresentada por Vala (1986): F=2(C1,2)/C1+C2, dividindo o número de acordos entrecodificadores pelo total de categorizações efectuadas por cada um. A média de acordo inter-codificadores para todos os manuais foi de 0.9. No sentido de excluir a possibilidade de existiremacordos devidos ao acaso, aplicou-se a estatística Kappa de Cohen, obtendo-se um valor médiode 0.75. Estes resultados oferecem uma boa garantia da fidelidade dos sistemas de codificaçãoutilizados.

APRESENTAÇÃO DOS RESULTADOS

Nesta secção serão apresentados e discutidos os resultados relativos ao posicionamento dosparticipantes face aos diferentes tipos de violência de Estado analisados (contra-terrorismo, penade morte, tortura de prisioneiros de guerra, invasão e violência policial/militar). A apresentaçãodos resultados será feita item a item, remetendo-se para a parte da discussão a análise comparativados posicionamentos face aos diferentes tipos de violência de Estado.

Relativamente ao posicionamento geral dos participantes para cada um dos cinco itensanalisados, verificou-se um predomínio de respostas situadas na concordância para os itens dainvasão (53%) e da violência policial/militar (79%). Para os itens da tortura de prisioneiros deguerra, pena de morte e contra-terrorismo verificou-se a tendência oposta, uma vez que a maioriadas respostas se situou na discordância (80%, 85% e 88%, respectivamente).

Antes de passarmos à descrição das principais subcategorias criadas a partir dos dados, importadar conta de alguns aspectos que se assumiram como transversais a todos os itens. Em primeirolugar, se as respostas situadas na discordância traduzem um posicionamento absoluto de rejeição

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do tipo de violência de Estado descrito no item, do lado da concordância a maioria das respostasassume um carácter condicional, com os participantes a referirem circunstâncias, percebidas comoexcepcionais, em que o recurso à violência Estatal é visto como legítimo. Por último, importatambém dar conta da necessidade que houve de criar, para todos os itens, subcategorias decodificação de respostas em que era manifestada concordância/discordância mas em que não eramespecificados os motivos de tal posicionamento (Exemplo de resposta situada na concordânciageral: “em algumas situações um país pode ter de invadir outro”; Exemplo de resposta situada nadiscordância geral: “sou absolutamente contra a invasão”).

Seguidamente serão descritas, para cada item, as principais subcategorias criadas a partir dodiscurso dos participantes, identificando os padrões de argumentação que sustentaram aconcordância ou discordância com cada um dos tipos de violência de Estado analisados. Aspercentagens apresentadas para as subcategorias foram calculadas relativamente ao número totalde participantes da categoria geral em que se inserem (concordância ou discordância).

Contra-terrorismo

No item “às vezes os governantes têm o direito de matar civis inocentes para combater oterrorismo internacional”, e no que concerne às respostas situadas na discordância (88%),verificou-se que, 23% dos participantes enfatizaram a necessidade de salvaguardar os direitoshumanos, em particular o “direito à vida” (“O direito a vida é inalienável”; “ A vida não pode sertratada como ‘só mais uma’, cada ser humano tem o direito a ela, a viver e morrer dignamente”).Por outro lado, para 22% dos participantes discordantes, a argumentação baseou-se nadiferenciação entre “inocentes” e “culpados”, através da referência à inocência do alvo da agressão(“há que separar o trigo do joio, [porque] os justos não devem pagar pelos pecadores”). Algunsparticipantes (16%) alertaram para as consequências negativas do recurso à violência, porque “nãoiria combater o terrorismo internacional, mas sim legitimá-lo ainda mais”. Em 7% das respostasdiscordantes verificou-se uma clara responsabilização do Estado, com alguns participantes areferirem que, ao utilizar os mesmos métodos que os terroristas, o próprio Estado está a cometerterrorismo (“Pois sendo assim o próprio estado torna-se num terrorista”). Alguns participantes(5%) responsabilizaram o Estado de uma forma mais específica, fazendo críticas à “guerra aoterror”, em particular às políticas norte-americanas neste domínio (“Essa é a política de Mr. Bushe está completamente errada”). Em 8% das respostas discordantes foram apresentadas alternativasà utilização de métodos violentos no combate ao terrorismo (“através da adopção de políticasjustas, que fomentem a compreensão mútua e o desenvolvimento de todos os povos do mundo”).Na maioria das restantes respostas situadas na discordância os participantes manifestaram umdesacordo geral com o item (“É inadmissível a morte de civis inocentes”), não especificando osmotivos do seu posicionamento.

Relativamente às respostas de concordância com o item (12%), a argumentação de algunsparticipantes baseou-se na ideia de “inevitabilidade” (“Penso que nenhum governante o fará como intuito de matar um civil. É um dano colateral muitas vezes inevitável”), associada àresponsabilização dos terroristas (“Se for inevitável. Os terroristas usam escudos humanos: porvezes a única forma de os eliminar implica baixas civis”). No entanto, a fundamentaçãopredominante (68% das respostas situadas na concordância) decorreu do princípio de que “os finsjustificam os meios” (“O terrorismo internacional deve ser combatido a qualquer custo e nãohavendo alternativa o sacrifício de alguns pode ser necessário para salvar muitos”). Em algumasdestas respostas foi clara a alusão a ticking-bomb scenarios, isto é, situações de catástrofe iminente(“Só quando a causa for superior à presumível desgraça. Por ex: abater um avião que se possadespenhar num sítio muito populoso”). Na maioria das restantes respostas os participantes

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manifestaram uma concordância geral com o item, referindo que “existem situações em que podeser inevitável”, mas sem, contudo, concretizarem as mesmas.

Pena de morte

Do lado da discordância (85%) com o item “às vezes o governo tem o direito de executar um doscidadãos do seu país” verificou-se, uma vez mais, que a grande maioria dos participantes (42%)centraram o seu discurso no direito à vida (“O direito à vida é um direito intrínseco à “qualidade dehomem”, é um direito natural e irrevogável”). Outras linhas de argumentação que sustentaram adiscordância com o item prendem-se com a referência ao carácter desumano do acto (5%) (“é umacto bárbaro e primitivo, como é possível que ainda exista em países supostamente civilizados?”),ou com o juízo de que o Estado está a cair em contra-senso ao punir a imoralidade com um actoigualmente imoral (7%) (“ao promover a pena de morte, um governo é tão assassino como oassassino”; “Matar torna-nos no que queremos destruir”). 15% dos participantes discordantesreferiram que “há outras formas de exercer a justiça”, com 5% destes a afirmarem que concordariamcom a prisão perpétua e os restantes (10%) a defenderem a reeducação e posterior reinserção destessujeitos (“Não acho que a morte de uma pessoa traga a paz para os cidadãos, ninguém, muito menoso governo tem o direito de executar um cidadão. A prevenção e a reintegração dos indivíduos é umamais-valia”). Alguns dos participantes discordantes (10%), revelaram preocupação com apossibilidade de erro judicial (“e se for inocente?”; “Se o governo/ministério público condena alguémà morte e se engana não há volta a dar”). 7% dos participantes salientaram o carácter não-normativodeste tipo de violência de Estado em Portugal: “No caso do governo português não lhe cabe nuncaessa decisão”. Na maioria das restantes respostas verificou-se uma discordância geral com o item(“sou absolutamente contra a pena de morte”).

Nas respostas situadas na concordância (15%) verificou-se um padrão predominante deargumentação relacionado com a responsabilização dos alvos da agressão. Alguns participantes(33% das respostas discordantes) focaram-se no tipo de acto cometido (“Se se provar culpado dealgo que tal justifique”), com referências específicas aos crimes de homicídio, abuso sexual eviolação. Outros (39%) focaram-se na natureza dos próprios sujeitos (“Por vezes existem ‘seresvivos’ que merecem esse final de vida”; “Há pessoas que o merecem sem dúvida alguma”). Aideia central em ambas as situações consistiu na responsabilização do alvo da agressão que, pelomal que representa ou pelo tipo de crime que cometeu, merece e justifica o recurso à pena capital(“Certos cidadãos não merecem – devido a actos praticados – que se gaste com eles um centavodos contribuintes”). Finalmente, 16% dos participantes situados na concordância referiramconcordar com a pena de morte apenas para crimes contra a humanidade (“Só apoio a pena demorte em crimes contra a humanidade”; “No caso de crimes de guerra ou de genocídios”). Namaioria das restantes respostas verificou-se uma concordância geral com o item, com osparticipantes a referirem que “em algumas situações a pena de morte deve ser legítima”.

Tortura

Também na discordância (80%) com item “o governo tem o direito de ordenar a tortura deprisioneiros em tempo de guerra” se verificou um predomínio de respostas com referências aosdireitos individuais. Humanizando a figura do prisioneiro de guerra (“um prisioneiro não deixa deser um ser humano colocado do outro lado com outra opinião”), alguns participantes (28%)salientaram que os seus direitos e dignidade devem ser respeitados (“A tortura é um desrespeito àdignidade humana”). A ênfase nos direitos humanos foi também patente em algumas respostas (6%)com referência a acordos internacionais sobre direitos humanos (“Os acordos internacionais não opermitem”), com particular destaque para a Convenção de Genebra (“Um prisioneiro de Guerra deve

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ser tratado com dignidade, conforme está decretado pela Convenção de Genebra”). Também nestaquestão surgiu o padrão de argumentação baseado na diferenciação entre inocentes e culpados, comalguns participantes (9%) enfatizando a inocência dos prisioneiros de guerra (que não podem serresponsabilizados pela guerra) e culpabilizando antes os governantes (“Os prisioneiros de guerrasão, muitas vezes, meros peões num cenário desenvolvido pelos seus superiores; Não são os soldadosque trazem a guerra mas sim os governantes”). Outros participantes (6%) exprimiram a suadiscordância através da rejeição da ideia de que “tudo vale na guerra” (“Mesmo em guerra, os sereshumanos têm direito e obrigação de respeitar um conjunto de valores que em circunstância algumadevem ser abolidos, por isso, não se justifica”). Em 5% das respostas foram referidas asconsequências negativas do recurso à tortura (“métodos violentos geram mais revolta e violência”),assim como a ineficácia deste método (“Sou contra os meios coercivos para atingir fins que nemsempre resultam na verdade”). Outros participantes (6%) referiram alternativas ao uso da tortura, comênfase no direito ao julgamento e em formas não violentas de punição (“Claro que não, se sãoprisioneiros por crimes de guerra têm o direito de lhes facultar um justo processo judicial”). É aindaimportante salientar que foi este o item que elicitou um maior número de respostas com uma elevadatonalidade emocional (10%) (“Acho inadmissível e cobarde”; “A tortura é um acto monstruoso;nada pode justificá-la”). Esta tonalidade era por vezes mesmo identificável nas respostas dediscordância geral com o item (“sou absolutamente contra a tortura!”).

Tal como no item do terrorismo, nas respostas situadas na concordância (20%) predominou oraciocínio de que os fins podem justificar os meios, sendo a tortura aceitável “porque por vezes épreciso torturar um para poupar a vida a um milhão”. Além disso, e à semelhança do verificadono item da pena de morte, alguns participantes colocaram a tónica na tortura como forma depunição dos prisioneiros que se revelem culpados e merecedores de tal castigo (“Depende dosprisioneiros – se forem responsáveis por ‘massacres’”). Na maioria das restantes respostas osparticipantes referiram uma concordância geral com o item, referindo que “há casos em que podeser essencial”.

Invasão

Enquanto nas respostas aos itens do contra-terrorismo, pena de morte e tortura de prisioneirosde guerra as referências aos direitos humanos serviram para fundamentar, sobretudo, osposicionamentos de discordância, nas respostas ao item da invasão verificou-se precisamente ocontrário, com este tipo de argumentação a surgir apenas nas respostas favoráveis à invasão (53%).De acordo com estes participantes (49% das respostas situadas na concordância), um país tem odireito de invadir outro “se nele se estiverem a exercer crimes contra a humanidade”, “quando o paísa invadir não esteja a respeitar os direitos humanos e cívicos dos seus habitantes ou esteja a agircontra a vida dos seus habitantes”. Inerente a este tipo de argumentação está a ideia de invasão comoforma de intervenção humanitária (“Por motivos de guerra noutro país, para receberem ajuda énecessário, por vezes, invadir outro país”). Alguns participantes (7%) enfatizaram a necessidade deaprovação internacional da invasão, com referências a organismos como a NATO ou a ONU. Aindano contexto da legitimação da invasão, torna-se importante dar conta de uma percentagemconsiderável de respostas (25%) que focalizaram questões relacionadas com a segurança nacional(“Há matérias de segurança para o próprio país que poderão a isso obrigar”). A argumentação destesparticipantes centrou-se na responsabilização do país a invadir e na noção de legítima defesa: ainvasão justifica-se como resposta a um ataque prévio desse país (15%) (“Apenas em situação delegítima defesa contra um ataque militar”) ou como resposta a uma potencial ameaça do mesmo(10%) – estando, neste último caso, implícita a ideia de ataque preventivo (“Preventivamente, comoforma de evitar ser atacado. Apenas perante ameaças irrefutáveis”). Em 10% das respostas, o direitoà invasão foi defendido por referência a situações limite, que possam comprometer a paz mundial,

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em casos “em que esteja ameaçada a paz da maior parte dos países do mundo”. Alguns participantesrecorreram a referências históricas, com particular destaque para a Segunda Guerra Mundial (“Comona invasão da Alemanha para acabar com a II Guerra”). À semelhança do verificado para os outrositens, alguns participantes manifestaram uma concordância geral, não concretizando os motivosdeste posicionamento (“existem situações em que a invasão de um país é necessária”).

De entre os participantes que sustentaram uma posição de discordância (47%), o argumentopredominante foi o direito dos países à autodeterminação (43% das respostas discordantes), com23% dos participantes a referenciarem o conceito de “soberania” (“cada país é e deve sersoberano”). Enquanto alguns participantes enfatizaram questões de ordem geográfica e territorial(“Um país nunca tem o direito de invadir outro país, na medida em que invadir é desrespeitar oespaço do outro”), outros centraram-se no direito à autonomia cultural, social e política dos povos(“Cada país tem o direito à liberdade, e à escolha das suas crenças e valores”). Alguns participantes(7%) realçaram a ineficácia da invasão como forma de resolução de conflitos (“Não acredito naresolução de problemas dessa maneira”) e outros (5%) alertaram para o perigo de a invasão poderconduzir a uma guerra prolongada (“Porque isso leva a mais conflitos, possivelmente a uma guerraprolongada”). 16% dos participantes apresentaram soluções alternativas e não-violentas deresolução de conflitos, tais como o diálogo e a negociação (“Invadir nunca, existe a comunicaçãopara se chegar a um concordo para os 2 países. Há que tentar respeitar a soberania e resolver osconflitos através da diplomacia”). A maioria dos restantes participantes manifestaram umadiscordância geral com o item (“discordo totalmente de invadirmos outros países “).

Violência policial/militar

Nas respostas dos participantes relativamente ao item “às vezes a polícia ou os militares têm odireito de usar de violência contra os seus concidadãos”, foi possível identificar três categoriascentrais de argumentação a favor da legitimidade deste tipo de violência de Estado. De acordo comestes participantes (79%), as forças policias ou militares têm o direito de usar violência contra osseus concidadãos: para defesa pessoal (legítima defesa); para defesa de outros cidadãos; paradefesa do Estado (para assegurar o cumprimento das normas vigentes e a manutenção da ordempública).

No que concerne aos participantes que utilizaram o primeiro tipo de argumentação (43%),verificou-se que a maioria confere à legítima defesa um carácter de excepção, vendo-a como aúnica situação passível de justificar o recurso à violência (“acho que as forças policiais nuncadeveriam usar a violência a não ser em legítima defesa”). A legitimidade do recurso à violênciapolicial/militar em defesa de outros cidadãos foi defendida por 25% dos participantes queconcordaram com o item. (“Só o poderá fazer se os cidadãos usarem a violência contra outroscidadãos”). Em 21% destas respostas a violência foi considerada legítima em situações de ameaçaà integridade física e em 11% das respostas em situações de ameaça à vida. 8% dos participantesreferiram-se de forma generalista a situações de ameaças aos direitos e liberdades dos cidadãos(“Em determinados casos as autoridades têm legitimidade para usar a violência, ainda que deforma contida, de forma a impedir situações que ponham em causa as liberdades e direitos dosdemais cidadãos”), sendo que os restantes não especificaram o tipo de situações legitimadoras daviolência. No terceiro tipo de argumentação (28%), que denominámos de “defesa do Estado”,optou-se por agrupar aquelas respostas em que a ênfase, ao invés de ter sido colocada na protecçãoda integridade física ou vida humana (do próprio ou do outro), foi colocada sobretudo na protecçãoda autoridade do Estado (“Um Estado sem autoridade não é Estado”). Nesta óptica, a função dospolícias e militares passa por “manter a ordem pública e fazer respeitar a lei”, garantindo “o normalfuncionamento da democracia”, “caso contrário, tornar-se-ia uma anarquia”. Quanto à naturezadestes actos percebidos pelos participantes como constituindo desvios à ordem estabelecida, alguns

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participantes referiram sobretudo situações na esfera da desobediência civil (“Em determinadasmanifestações os manifestantes excedem-se e atacam as forças da ordem”; “Casos de necessidadede reposição/manutenção da ordem pública em tumultos/motins”). Outros participantesmencionaram actos ilícitos (“Se esses cidadãos são foras de lei”; “Um homicida ou agressorviolento tem de ser tomado por meios violentos na generalidade”), havendo ainda a referência agrupos específicos perante os quais a violência policial/militar é percebida como necessária elegítima (“há grupos (hooligans, neonazis) que...”; “se os seus concidadãos forem terroristas”). Amaioria dos restantes participantes manifestaram uma concordância geral com o item (“se ascircunstâncias assim o exigirem”).

Do lado da discordância (21%), a argumentação da maioria baseou-se na oposição geral ao usode violência (“Nada justifica o uso de violência”). 63% dos participantes situados na discordânciareferiram que o recurso à violência não resolve problemas, conduzindo a sentimentos de revolta e aprocessos de escalada (“A violência não ajuda, só traz revolta e na minha opinião os conflitosaumentam devido à revolta”; “Acredito que violência gera violência”). Por sua vez, 30% dosparticipantes sugeriram alternativas de controlo social não violentas (“Existem meios legais – recursoaos tribunais – para punir infractores sem recurso a violência por parte da polícia ou militares”). Amaioria dos restantes participantes apresentaram uma discordância geral com o item, referindo que“nem a polícia nem os militares têm direito de utilizar a força contra quem quer que seja”.

DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

A análise das respostas dos participantes aos itens seleccionados permitiu identificar, para cadauma das formas de violência de Estado abordadas, os argumentos associados à sua legitimação eaqueles que fundamentam a rejeição de tais actos. A selecção de tipos de violência de Estado quese distinguem no grau de normatividade do acto, na sua natureza (agressão, tortura, morte) e noalvo do mesmo (civis, criminosos, prisioneiros de guerra), possibilitou ainda uma análisecomparativa do posicionamento dos participantes para cada um deles, procurando perceber em quemedida se assemelhava ou diferenciava em função destas variáveis.

Relativamente à primeira dimensão (grau de normatividade do acto), os resultados apontampara a sua influência, ao verificar-se uma predominância de discordância para os três itens queremetem para violência de Estado não-normativa (tortura de prisioneiros, pena de morte e contra--terrorismo), aumentando a concordância em função do grau de normatividade do acto (maiorconcordância com o item violência policial/militar do que com o item invasão).

Analisando o tipo de argumentação utilizado pelos participantes para cada um dos itens,verifica-se uma relação entre a questão da normatividade e a argumentação com base nasalvaguarda de direitos humanos. Em primeiro lugar, importa salientar o facto de esta temática seter afigurado como central nas respostas dos participantes. Atendendo à tradição humanista donosso país, espelhada na Constituição Portuguesa e na elevada adesão de Portugal a acordos econvenções internacionais em matéria de direitos humanos, a ênfase dada pelos participantes desteestudo a esta questão era, de certa forma, previsível. No entanto, verifica-se uma transversalidadedeste tipo de argumentação, que surge tanto na concordância como na discordância com os itensanalisados: a defesa dos direitos humanos legitima, aos olhos de uns, e impossibilita, aos olhos deoutros, a utilização de violência por parte do Estado. Esta aparente contradição traduz, afinal, osdiscursos políticos, mediáticos e sociais em torno da violência de Estado, conceptualizada, porvezes, como um “mal necessário”, um meio para atingir um fim – a protecção dos direitos humanos– e outras vezes como uma forma de violação dos mesmos.

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É a análise das respostas dos participantes à luz deste processo discursivo de legitimação (ourejeição) da violência de Estado que nos permite compreender as influências recíprocas entre aquestão da normatividade do acto e a argumentação com base nos direitos humanos: nos discursosem torno da violência de Estado, a ilegalidade de determinadas formas de violência menosnormativas (como a tortura de prisioneiros de guerra) é geralmente fundamentada em princípiosconsagrados em convenções e acordos internacionais sobre direitos humanos. Sob a égide dessesprincípios, a morte de civis inocentes no combate ao terrorismo, a tortura de prisioneiros de guerraou a pena de morte constituem violações dos direitos humanos e as respostas dos participantes aositens relacionados com estes tipos de violência de Estado enfatizam esse facto. Já nos itensrelacionados com violência de Estado que por vezes assume um carácter normativo (invasão eviolência policial/militar) verificou-se a tendência contrária, com os argumentos centrados naprotecção dos direitos humanos a surgirem sobretudo para fundamentar a concordância. A invasãoé percebida como aceitável se tiver fins humanitários, remetendo para a conceptualização da violênciacomo um “mal necessário”, um meio para atingir um fim: a protecção de direitos humanos. De formasemelhante, também no item da violência policial/militar a argumentação com base na questão dosdireitos humanos se verifica apenas para a concordância, sendo pratica mente inexistente nas respostasdos participantes que defendem a ilegitimidade deste tipo de violência de Estado.

Analisando as respostas em que os motivos invocados se deslocam do plano individual para oplano nacional, constata-se que a preocupação com a segurança nacional foi um denominadorcomum do lado da concordância para a generalidade dos itens analisados. Assim, se a reflexão emtorno dos direitos humanos leva alguns cidadãos a legitimar a violência de Estado e outros a refutá-la, verificamos agora que a segurança nacional fundamenta sobretudo a legitimação da violência.Apesar de a questão da segurança nacional servir para fundamentar a concordância para actosnormativos e não-normativos, a influência deste tipo de argumentação parece ser mediada pelograu de normatividade do acto, uma vez que é nos itens não-normativos que esta assume maiorpreponderância. Esta influência é particularmente notória em dois dos itens não-normativos(contra-terrorismo e tortura de prisioneiros de guerra), para os quais esta questão surge comofundamentação predominante.

Os acontecimentos do 11 de Setembro e posteriormente o contexto de luta contra o terrorismointernacional conduziram a sucessivas restrições de direitos e liberdades individuais e à adopçãode medidas agressivas, invariavelmente justificadas pelos governos como sendo necessárias àsegurança nacional. Os discursos políticos em torno da ameaça do terrorismo, muitas vezesamplificados pelos meios de comunicação social, ao passarem a mensagem de que a segurançanacional está em perigo, conduzem a um aumento da percepção de ameaça por parte dos cidadãos.Alguns estudos têm demonstrado que esta percepção de insegurança está associada a uma maiorpredisposição para aceitar medidas agressivas, assim como restrições às liberdades e direitosindividuais (Hodson, Esses, & Dovido, 2006; Zimbardo, 2007). A este propósito vale a penarevisitar aquilo que Cohen (2001) designa por espiral de negação, um processo que começa coma negação das medidas agressivas, passa pela reconstrução dos actos (as mortes de civis inocentespassam a ser danos colaterais e a Convenção de Genebra é contornada pela transformação decomportamentos considerados como tortura em técnicas de interrogatório e de prisioneiros deguerra em combatentes ilegais) e, quando a natureza ilegítima dos actos é posta em evidência, asegurança nacional surge, por norma, como último grande recurso de legitimação. Esta relaçãopoderá ajudar a explicar a centralidade da “segurança nacional” na argumentação dos participantespara justificar a concordância com actos que ultrapassam as fronteiras usualmente definidas paraa legitimidade da violência de Estado.

No que toca ainda aos motivos situados no plano nacional, importa reflectir aqui sobre umaespecificidade relacionada com os resultados para o item da invasão, e que se prende com acentralidade do princípio da soberania dos Estados do lado da discordância com o item. É

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interessante verificar que os padrões centrais de argumentação que diferenciam o posicionamentoda maioria dos participantes relativamente ao item da invasão (direitos humanos do lado da concor -dância e soberania dos Estados do lado da discordância), traduzem, afinal, o debate suscitado peladifícil conciliação entre os princípios da “não-intervenção” e da “ingerência humanitária”. Como final da Guerra-fria assistiu-se a uma mudança de paradigmas na ordem internacional, com aprotecção de direitos humanos a sobrepor-se à questão da soberania dos Estados através doaparecimento do princípio da “ingerência humanitária” (Walzer, 2000). Sob a perspectiva de quea segurança dos Estados não significa automaticamente a segurança dos respectivos povos e dosindivíduos, este principio ampliou a definição de ameaça à paz e à segurança internacionais, preva -lecendo a ideia de que a comunidade internacional não só poderia actuar para defender os direitoshumanos e proteger indivíduos e populações como teria a responsabilidade de o fazer (Tomé,2007). A referência à ajuda humanitária, com vista à protecção de direitos humanos e manutençãoda paz foi o argumento central na legitimação do direito geral à invasão. No entanto, do lado dadiscordância, os participantes sobrepuseram o plano nacional ao individual, refutando a invasãopela referência à soberania dos países.

Tomando em consideração a segunda variável diferenciadora dos tipos de violência de Estadoanalisados (natureza do acto), verifica-se que a mesma terá um efeito secundário relativamente aodo grau de normatividade do acto. A questão da normatividade é a que parece ter um efeito maispreponderante, sendo este o critério diferenciador entre concordância (itens normativos) ediscordância (itens não-normativos). No entanto, dentro destes dois grupos verifica-se um efeitoda natureza do acto: no grupo dos itens não-normativos, a discordância é mais forte nos itens docontra-terrorismo e da pena de morte (ambos envolvem matar) do que no item da tortura deprisioneiros de guerra (infligir dor/sofrimento). Seguindo o mesmo padrão, no grupo dos itensnormativos verifica-se uma maior aceitação perante a utilização de violência policial/militar doque perante a invasão, geralmente mais associada à perda de vidas humanas. Referimos já a grandeimportância atribuída pelos nossos participantes à questão dos direitos humanos e em particularao direito à vida. A defesa da vida gerou um elevado consenso na nossa amostra, sendo umargumento fulcral na refutação dos itens em que se confere ao Estado o direito de matar. Se grandeparte dos nossos participantes discordou com o direito do governo à tortura de prisioneiros deguerra, o facto de este acto não violar o direito mais fundamental (à vida) facilita o desenvol -vimento de um racional justificativo deste tipo de violência. Isto permite ao indivíduo minimizaras consequências do acto para o alvo da agressão (dor, sofrimento) por comparação com o actovalorado como mais grave (matar). Bandura (2002) refere-se a este processo como “comparaçãopaliativa”, um mecanismo de reconversão de um comportamento ilegítimo num comportamentomoralmente justificável, através da sua comparação com outro acto percebido como maiscondenável. Permite ainda comparar as sequelas do acto para o indivíduo com as consequênciasde um ticking-bomb scenario, salientadas pela maior parte dos nossos participantes concordantes,referindo-se à possível morte de inocentes. Se nos itens da pena de morte e do contra-terrorismoa comparação é de carácter quantitativo (“matar um para impedir a morte de cem”), no item datortura de prisioneiros de guerra os participantes não só utilizam essa ponderação quantitativacomo a esta acrescem uma comparação de natureza qualitativa (torturar para impedir a morte).

Relativamente à terceira variável analisada – alvo da agressão – verificou-se que o seu efeito serelaciona não tanto com o tipo de alvo (civil, governante ou militar), mas sobretudo com a questãoda inocência ou culpabilidade atribuída ao mesmo. A questão da culpabilidade surge em todos os itens– embora, no caso do item do terrorismo, a culpabilização não seja dirigida ao alvo da agressão (civisinocentes) mas sim aos supostos responsáveis pela situação (terroristas). Ao contrário do que severificou na argumentação com base nos direitos humanos, em que os mesmos fundamentos foramutilizados por uns para legitimar e por outros para refutar o recurso à violência de Estado, aargumentação centrada no alvo da agressão diferenciou-se claramente no discurso concordante ou

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discordante dos nossos participantes, em função da percepção de responsabilidade do alvo pelasituação: a inocência dos alvos foi usada para refutar a violência de Estado e a culpabilidade dosmesmos serviu para legitimá-la, sendo bastante claro que, para estes participantes, inocentes eculpados têm direitos diferentes, sendo por isso importante que os “justos não paguem pelospecadores”.

No caso dos itens normativos, a questão da culpabilização foi patente na ênfase dada à legítimadefesa, ao direito de resposta a um ataque prévio de um indivíduo (violência policial/militar) ou deum país (invasão). É interessante verificar que a culpabilização assumiu maior preponderância parao item da invasão do que para o item da violência policial, podendo estar aqui em causa adicotomização entre “nós” e os “outros”, sendo mais fácil culpar o outro – outro país – do que osnossos concidadãos (os alvos prováveis da violência policial/militar). No entanto, a culpabilizaçãoassumiu maior centralidade na legitimação das formas de violência de Estado não-normativas, o quenos remete uma vez mais para um dos processos discursivos de neutralização dos actos “imorais”:a essencialização do “outro” (culpado) por diferenciação do “nós” (inocentes). A essencialização do“outro” passou também pela sua desumanização, desprovindo-o de qualidades humanas epercebendo-o como não tendo valor. O não reconhecimento do outro como um ser humano é umprimeiro passo para o não reconhecimento dos seus direitos e necessidades, facilitando a legitimaçãoda violência (McAlister et al., 2006). O uso da desumanização foi sobre tudo notório no item da penade morte, com uma quantidade considerável de participantes a referirem que alguns indivíduos, porserem maus e desprovidos de qualidades humanas, merecem morrer.

CONCLUSÃO

Na análise do posicionamento dos participantes em relação a diferentes formas de violência deEstado, constatou-se que o principal critério diferenciador da legitimação ou refutação da mesmase prende com o grau de normatividade do acto. A violência de Estado não-normativa foiclaramente mais rejeitada pelos participantes, com os resultados a evidenciarem grandes níveis dediscordância para os itens do contra-terrorismo, da pena de morte e da tortura de prisioneiros deguerra. Olhando às respostas dos nossos participantes e às frequentes referências que fizeram aacordos e convenções internacionais, parece-nos que a avaliação da não-normatividade destesactos se deve não apenas ao facto de serem ilegítimos em Portugal, mas sobretudo ao facto deserem considerados ilegítimos à luz das convenções internacionais sobre os direitos humanos. Jápara as formas de violência de Estado que por vezes são consideradas normativas (a utilização deviolência por parte da polícia e militares; o direito de um país a invadir outro), verifica-se umamaior prevalência de respostas legitimadoras do recurso à violência estatal.

As restantes variáveis analisadas (natureza do acto e alvo da agressão) parecem ter um efeitosecundário ao da normatividade, diferenciador do grau de tolerância dentro de cada um dos grupos(normativo e não-normativo). Em ambos os grupos, verifica-se que os participantes são maistolerantes em relação a situações nas quais não antecipam a perda de vidas humanas (maiortolerância para a violência policial do que para a invasão; maior tolerância para a tortura deprisioneiros de guerra do que para a pena de morte ou o contra-terrorismo). No entanto, aponderação da gravidade do acto (matar) parece ser mediada pelo grau de inocência ouculpabilidade do alvo da agressão, com os nossos participantes a revelarem uma maior tolerânciaface à morte de culpados (pena de morte) do que de inocentes (contra-terrorismo). Além disso, oprocesso de culpabilização do alvo parece ganhar maior preponderância na legitimação daviolência de Estado quando os culpados são “os outros” (invasão) do que quando somos “nós”(violência policial/militar).

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Esta análise comparativa de diferentes formas de violência de Estado, pondo em relevo o papelpreponderante da normatividade dos actos na legitimação da violência, evidencia a complexidadede alguns tipos de violência estatal pelo seu carácter híbrido, em que não existe uma proibiçãoabsoluta da violência mas antes uma aceitação condicional da mesma, que esbate as fronteirasentre o “bem” e o “mal”. Os nossos resultados evidenciam que o posicionamento dos participantesrelativamente à legitimação da violência de Estado resultou de uma avaliação dos seus propósitos,mediada pela ponderação de variáveis associadas ao grau de normatividade, à natureza e ao alvodo acto. No contexto internacional de luta contra o terrorismo, as restrições de direitos individuaise a adopção de medidas agressivas têm sido justificadas pela defesa de valores como a liberdade,os direitos humanos e a paz (Malley-Morrison, 2009). Os resultados do nosso estudo sugerem queestes conceitos parecem ter ressonância nos discursos de senso comum de legitimação da violênciade Estado, pelo que a margem de ambiguidade inerente a justificações como “interessehumanitário” ou “segurança nacional” deverá suscitar-nos preocupação.

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Nowadays there is an increasing concern about the role of governments’ policies in perpetuation ofviolence cycles. However, State violence (from war to torture, or to police violence) was an issue thatwas neglected by the criminological community until recently (Aas, 2007; Young, 2007). This studyaims at knowing the real extent of tolerance and legitimation of State violence by common citizens.Although this study only focuses on the Portuguese data, this is a project that is being carried out inforty-three countries across the world by the Group on International Perspectives on GovernmentalAggression and Peace (GIPGAP). With a view to contributing to understanding the legitimationprocesses of State violence by Portuguese citizens, a comparative analysis of the judgments of 600participants towards different types of State violence was conducted. Based on the identification of theparticipants’ arguments to either legitimate or reject each type of violence, we tried to understand inwhat extent those judgments differentiate according to the degree of normativity of the act (perceivedas legal or illegal), its nature (e.g., aggression or death) and its target(e.g., civilians or prisoners ofwar).

Key-words: Conteur-terrorism, Death penalty, Invasion, Police violence, Torture.

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Análise Psicológica (2012), XXX (1-2): 231-246

A construção mediática do tráfico de seres humanos na imprensa escrita

portuguesa

Dulce Couto* / Carla Machado* / Carla Martins* / Rui Abrunhosa Gonçalves*

*Escola de Psicologia, Universidade do Minho

O crescente reconhecimento do tráfico de seres humanos ao longo da última década deveu-se, emgrande parte, à acção dos órgãos de comunicação social, quer enquanto veículos transmissores deinformação massificados, quer enquanto participantes activos no processo de construção da realidade.Este duplo papel justifica a necessidade de estudo dos seus produtos no sentido de melhor compreenderos fenómenos sociais e, particularmente, aqueles que se associam ao desvio. Da análise das notíciaspublicadas por dois jornais diários de distribuição nacional emerge uma sobreposição frequente entretráfico, prostituição e imigração ilegal, fruto de um predomínio de narrativas sobre exploração sexualde mulheres, contribuindo para a presença de estereótipos e mensagens de alarme social. No entanto,os actores principais das histórias são arredados da arena das narrativas, sendo os seus discursossubalternizados face à acção dos órgãos de polícia criminal, atribuindo-lhes o controlo doconhecimento difundido sobre o fenómeno. Sublinha-se, por fim, a necessidade da adopção de códigosde conduta por parte dos agentes dos meios de comunicação de massas que permitam evitar a emissãode mensagens que apelam ao estigma e ao pânico e que promovam a reconciliação das pressõescomerciais com o interesse público, a responsabilidade ética e social.

Palavras-chave: Construção social, Media, Percepções públicas, Tráfico de seres humanos.

INTRODUÇÃO

Reconhecidos como o 4º Estado nas sociedades modernas, os media constituem-se, naactualidade, como o veículo de transmissão de informação mais poderoso à escala global, assimcomo a fonte preferencial de acesso ao mundo (Berns, 2001), condicionando fortemente oconhecimento e a opinião pública. Sendo produto e reflexo das práticas socioculturais, sãoigualmente construtores activos da realidade (Reiner, 1997), prescrevendo grelhas de leitura emodelos de conduta, tornando-os duplamente relevantes na análise dos discursos culturais.

O tráfico de seres humanos (TSH), por sua vez, tem vindo a ser, sobretudo na última década,alvo de uma atenção pública crescente e generalizada que se deveu, em larga medida, precisamenteà acção dos media (Hodge & Lietz, 2007; Peixoto et al., 2005; Santos, Gomes, Duarte, & Baganha,2008), com particular destaque para a imprensa escrita e a televisão.

Dada a escassez de investigação neste domínio, pretende-se, com o presente estudo, contribuirpara uma visão do TSH enquanto fenómeno socialmente construído e significado, partindo da

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Este projecto de investigação foi financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, através da Bolsa deDoutoramento SFRH/BD/40366/2007, concedida a Dulce Couto.

A correspondência relativa a este artigo deverá ser enviada para: Dulce Couto, Escola de Psicologia, Universidadedo Minho, Campus de Gualtar, 4710-057 Braga. E-mail: [email protected]

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análise das mensagens veiculadas por dois títulos de distribuição nacional com forte relevânciapara, de seguida, reflectir sobre as suas implicações na percepção pública do crime e sobre aimportância de uma cobertura jornalística socialmente responsável. Incide-se no discursojornalístico, dado que este se assume, no universo dos media, como especialmente influente na“criação e desestabilização de consensos acerca da moral e ordem públicas e na legitimação dosprocessos de reacção social” (Ericson et al., 1991, citados por Simões & Peça, 2009, p. 84), aspectoparticularmente relevante na análise de temas ideologicamente impregnados.

A REPRESENTAÇÃO DO CRIME NOS MEDIA: PARADIGMAS E MODELOS DE ANÁLISE

A produção teórica sobre o papel dos media e seus efeitos na opinião e comportamento dopúblico divide-se, essencialmente, em dois paradigmas (Penedo, 2003): o paradigma dos efeitoslimitados, que predominou até aos anos 60, e onde se postula um modelo transmissivo e demanipulação de massas, em que as mensagens veiculadas são passivamente assimiladas pelopúblico; e o paradigma construtivista, desenvolvido nos anos 70 na linha dos ensaios de Foucault(1970) sobre o discurso, que enfatiza o papel dos media enquanto barómetros e, simultaneamente,construtores da realidade. Neste, valoriza-se o contexto social da relação com o público eassumem-se funções de regulação normativa (Heath & Gilbert, 1996; Reiner, 1997),particularmente evidentes nas notícias sobre o crime, onde se estabelecem parâmetros para o quedeverá ser considerado desvio (Welch, Fenwick, & Roberts, 1997).

Numa perspectiva conciliadora, Machado (2004) defende que o discurso proposto pelos mediaconstrange, mas não determina, a forma como as pessoas constroem significados e articulamposições face ao crime, à lei e à justiça, isto é, embora estes possam favorecer certas leituras ou areprodução de determinadas normas sociais, existem “espaços de abertura e de receptividade aposicionamentos alternativos e com algum potencial de transformação da ordem social” (p. 121),onde a subjectividade e os contextos interpretativos desempenham um papel importante. Ou seja,as pessoas não são receptáculos passivos de informação mas, antes, construtores activos designificados (Ericson, 1997), envolvidos num processo de permanente influência entre as suasposições e as que lhes são apresentadas pelas fontes mediáticas.

A CONSTRUÇÃO DE UM DISCURSO E A REPRESENTAÇÃO DO TSH NOS MEDIA

O crime e as actividades associadas à indústria sexual, frequentemente conotadas com o desvio,constituem, em regra, matérias consideravelmente apelativas para os media (Bindel, 2006; Simões& Peça, 2009), dado o seu potencial para despoletar fortes reacções no público. Todavia, o TSH,apesar de se constituir como um fenómeno criminal que, com frequência, combina as duasdimensões (no caso do tráfico sexual), tem revelado um potencial mediático relativamentemodesto. Paralelamente, tem-se mostrado um terreno fértil para uma produção noticiosaestereotipada e com cunho sensacionalista, alarmista e pandémico (United Nations GlobalInitiative to Fight Human Trafficking, 2008), saturada de imprecisões na definição e delimitaçãode conceitos e fenómenos, bem como de explicações pobres acerca das relações entre o TSH efactores macrossociais, tais como a globalização, as políticas migratórias, a violência contra asmulheres ou as desigualdades de género.

Nesta linha, os resultados do trabalho desenvolvido pela organização ASTRA – Anti-TraffickingAction (2006) sobre a cobertura das situações de TSH pela imprensa escrita sérvia desde 1998 até

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2005 demonstraram que, embora os jornalistas reconhecessem o TSH como um problema socialimportante, os textos publicados sobre a matéria eram esporádicos. Em paralelo, muitos dos artigosestavam escritos de modo sensacionalista e a maioria limitava-se à publicação de casos isolados,geralmente descritos numa perspectiva policial, descurando reflexões úteis para a prevenção denovas situações ou da sua reincidência. Todavia, numa análise da imprensa efectuada entre 2001 e2004 na Estónia (Meigs, 2005), foi salientada uma mutação no discurso jornalístico, alterando-se arepresentação do TSH enquanto consequência de uma escolha individual para um fenómenopotenciado por factores de natureza sociológica.

A presença de representações estereotipadas e preconceituosas torna-se particularmenteevidente nos textos que aludem à prostituição e ao tráfico de mulheres para fins de exploraçãosexual, registando-se uma tendência de sobrevalorização por parte dos media face a este tipo detráfico (Santos et al., 2008; Simões & Peça, 2009). Em 2006, Bindel notou que a imprensa britânicaestaria a favorecer uma distinção problemática no que respeita à conceptualização destas mulheres,ao difundir a noção de que as traficadas seriam “escravas sexuais”, logo, vítimas verdadeiras,enquanto as que se prostituíam teriam optado por este “estilo de vida” e, como tal, seriamdesmerecedoras da empatia do público face à eventualidade de serem alvo de situações deviolência. Porém, se as traficadas eram descritas como “imigrantes ilegais”, logo, infractoras dalei, eram igualmente desvalorizadas, apesar da subsistência da sua condição de escravidão. Por fim,Bindel sublinhou que a procura masculina da prostituição feminina, quer esta seja alimentada peloTSH ou não, era amplamente ignorada pelos jornalistas.

Em Portugal, o primeiro estudo efectuado sobre o TSH (Peixoto et al., 2005) comportou umaanálise da imprensa escrita entre 2001 e 2004. Em linha com os estudos internacionais, constatou-sea sua fraca visibilidade mediática, assumindo-se, com frequência, como um sub-tema dentro dotema maior das migrações. O tráfico laboral foi o mais citado nas notícias, emergindo muitas vezesassociado a detenções relacionadas com o auxílio à imigração ilegal; por sua vez, o tráfico demulheres surgia com maior visibilidade em pequenas notícias sobre rusgas em bares de alterne,reforçando a ideia da prostituição enquanto actividade privilegiada das mulheres em situação ilegalno país, particularmente das de nacionalidade brasileira, da Europa de Leste e África; finalmente,o tráfico de crianças foi o menos noticiado, destacando-se apenas algumas conexões com situaçõesde pedofilia e pornografia infantil.

Para além do número relativamente restrito de notícias sobre a matéria, estas não eramespecialmente detalhadas nos jornais diários, predominando descrições referentes à actividadepolicial e/ou judicial, normalmente relacionadas com casos particulares (Peixoto et al., 2005).Todavia, em alguns semanários e revistas eram explorados aspectos como a caracterização dosagentes e do funcionamento das redes criminosas, bem como histórias de vida de algumas vítimas.A este nível, destaca-se a ênfase no elevado nível de organização, hierarquização e violência dasredes, particularmente das oriundas da Europa de Leste, bem como a referência ao envolvimentofrequente de cidadãos portugueses como agentes exploradores. A actuação dos grupos criminososera descrita de forma semelhante, independentemente da sua origem ou finalidade, com processosde recrutamento baseados em falsas promessas de trabalho e de exploração/controlo assentes naviolência, mobilidade geográfica e sonegação de documentos.

Vários destes resultados foram, posteriormente, reiterados no estudo de Simões e Peça (2009)acerca da produção da imprensa nacional sobre o tráfico de mulheres para fins sexuais e aprostituição. Adicionalmente, as autoras confirmaram que, em contraste com as instâncias queexercem o controlo da lei e da ordem, os restantes actores (prostitutas, vítimas, traficantes eclientes) não tinham um papel activo no discurso mediático, situação que, para Kantola e Squires(2004), se justifica pelo facto de o TSH ter pouco impacto na esfera pública, na medida em quenão atinge directamente uma grande percentagem dos leitores. Em particular, as duas classes demulheres identificadas como dominantes, as “traficadas” e as “prostitutas”, eram relegadas para

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um papel passivo, reproduzindo um modelo cultural de mulher inábil, reduzindo-as à condição demercadoria transaccionada no mercado do sexo (Simões & Peça, 2009). A característica maisevidente nestas mulheres era a nacionalidade, quer estas fossem classificadas como estrangeirasou brasileiras, sendo especialmente relevante a sua associação à imigração ilegal quando estaseram descritas como “prostitutas” e menos como “traficadas”.

Em síntese, da análise da produção científica desenvolvida no domínio do TSH realça-se queo discurso da imprensa exibe traços de uma cobertura mediática que fomenta o pânico moral(Berman, 2003; Cohen, 1972; O’Neill, Campbell, Hubbard, Pitcher, & Scoular, 2008; Saar, 2010;Schaeffer-Grabiel, 2010; Simões & Peça, 2009; Weitzer, 2007) e o preconceito, sobretudo atravésda catastrofização das estatísticas relativas ao fenómeno e da amplificação da participação deestrangeiros e minorias em situações de desvio.

MÉTODO

Objectivos e questões de partida

No sentido de compreender melhor os mecanismos inerentes à construção mediática e socialdo TSH, foi efectuada uma análise dos conteúdos difundidos por dois jornais nacionais diários noano de 2008. Procuraram-se indicadores de resposta para as seguintes questões:

1) Quais os conteúdos veiculados nos textos produzidos sobre o TSH, em comparação comaqueles que, não sendo específicos do tráfico, surgem nas peças com fortes associações aotema?

2) Que actores são mobilizados nas histórias e quais os significados dos seus discursos?

Amostra e processo de amostragem

A amostra foi constituída por 85 peças recolhidas dos 730 jornais que compuseram as ediçõesdiárias dos jornais Público e Correio da Manhã durante 2008. A selecção das peças respeitou doiscritérios essenciais, a saber, o facto de abordarem explicitamente a questão do TSH e o facto de,embora não incidindo expressamente sobre o TSH, tornarem plausível a sua presença pelaconjugação de várias circunstâncias e consequentes indicadores nos textos, dos quais foramconsiderados1: em primeiro lugar, a referência a situações de exploração sexual; em segundo lugar,a referência a vítimas de uma situação de escravidão ou do envolvimento forçado ou involuntáriona prostituição ou noutra forma de trabalho sexual (e.g., alterne); e, por fim, a referência àpresença, envolvimento ou actuação de redes de crime organizado.

Dos textos analisados, 58 abordavam explicitamente a questão do TSH (11 recolhidos doPúblico e 47 do Correio da Manhã) e 27 configuravam cenários aproximados ao TSH (2 do Públicoe 25 do Correio da Manhã). A escolha dos jornais enunciados prendeu-se com o facto de interessaranalisar textos provenientes de diferentes perfis de publicação, optando-se por contrastar um jornalconsiderado como sendo de referência (Público) com um entendido como mais sensacionalista(Correio da Manhã).

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1 A inclusão dos textos esteve sujeita à verificação de dois ou mais dos critérios enunciados, como forma degarantir, à partida, maior relação com o fenómeno em análise.

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Análise, codificação, tratamento e validação dos dados

Os textos foram consultados, recolhidos e transcritos a partir das fontes originais. Dadas ascaracterísticas do material em apreço, geralmente curto, a unidade de análise seleccionada foi afrase. Como referência metodológica, e no sentido de permitir uma estratégia sistemática eexaustiva de codificação dos conteúdos, foi adoptada a grounded analysis (Strauss & Corbin,1994, 1998), tendo sido considerados princípios orientadores vulgarmente implicados nestaabordagem metodológica, designadamente o princípio indutivo, o da parcimónia, o da teorizaçãoe o da codificação inclusiva (Huberman & Miles, 1998). Foi também adoptado o modelo dehierarquização de categorias proposto por Hill, Thompson e Williams (1997, citados por Machado,2004) e utilizado o programa informático QSR NVivo, Versão 7.0 (Qualitative Solutions &Research, 2007) para o tratamento qualitativo dos dados.

Para assegurar uma maior credibilidade dos resultados, e tendo em conta a naturezaessencialmente descritiva do estudo, foram adoptados dois procedimentos específicos devalidação: a “descrição densa” (Geertz, 1973, citado por Vidich & Lyman, 1994, p. 41) dossignificados identificados, com uma apresentação detalhada dos mesmos e ilustração textual decada categoria; e o recurso a um co-codificador na análise do material, tendo sido obtido um índicede fidelidade (Vala, 1986) de 0.95, considerado um valor de acordo substancial.

RESULTADOS

Na sequência dos princípios que orientaram metodologicamente este estudo, segue-se umadescrição densa dos resultados, através das categorias de natureza descritiva, no sentido deproceder a uma exposição sistemática da representação do TSH emergente no discurso mediático.De seguida, é efectuada uma análise transversal destes resultados, orientada pelas questõesanteriormente formuladas, permitindo, por um lado, estabelecer a interligação entre as diferentescategorias e, por outro, fundamentar a leitura conceptual e teórica dos dados.

Salvaguardando-se as diferenças quanto ao número de notícias recolhidas de cada fonte, eembora ambas registem uma frequência baixa e descontinuada na publicação e com poucodestaque visual dos textos, os conteúdos centrais apurados são essencialmente comuns.

CARACTERÍSTICAS CENTRAIS DO TSH

Caracterização e dinâmicas do crime

Da análise efectuada ressalta um vasto conjunto de elementos textuais que dominam asmensagens veiculadas sobre o TSH, estando presentes em 93.1% das peças, e que, quandorelacionados entre si, constituem dimensões que permitem caracterizar as dinâmicas do crime.

O primeiro aspecto relevante nesta categoria relaciona-se com a espacialização do TSH,verificando-se, todavia, uma inversão das dimensões quando analisados os textos específicos sobreo TSH e aqueles que não se reportam explicitamente a ele. Quanto aos primeiros, os espaços ondeos eventos reportados se desenvolvem remetem, sobretudo, para territórios internacionais, eparticularmente para Espanha, onde se destacam espaços físicos geralmente enquadráveis na esferados estabelecimentos de diversão nocturna; nos segundos predomina o território nacional e asreferências a estabelecimentos de diversão nocturna no Norte, embora surjam, esporadicamente,menções à rua e a apartamentos ou residências enquanto locais onde a exploração acontece (e.g.,

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“As mulheres acabam por ser espalhadas por diversos países da Europa Ocidental, colocadas emestabelecimentos nocturnos”, Público, 15-11-2008).

Surgem, também, indicações sobre as rotas do TSH, com identificação dos países de origem,particularmente o Brasil e países do continente africano e da Europa de Leste, de trânsito e destino,onde, vulgarmente, figuram Portugal, Espanha e Itália (e.g., “As ‘meninas’ eram (...) trazidas doBrasil para o Algarve e obrigadas, sob sequestro e mediante ameaças, a prostituírem-se emapartamentos de Portimão e Albufeira”, Correio da Manhã, 14-02-2008).

O segundo aspecto prende-se com a saturação dos textos com dados relativos à natureza crimi -nógena do TSH, em detrimento da sua conceptualização enquanto fenómeno social e culturalmenteconstruído, fazendo gravitar em seu redor dimensões relacionadas com a sua conexão a outroscrimes, particularmente o lenocínio, a associação criminosa, o auxílio à imigração ilegal esequestro (e.g., “Ambos respondem por lenocínio agravado, quatro crimes de sequestro, tráfico depessoas e associação criminosa”, Correio da Manhã, 14-02-2008). Trata-se, todavia, de umindicador esperado no contexto da produção noticiosa de um crime entendido como “organizado”e que quase sempre envolve a prática de outros ilícitos.

Paralelamente, surgem fortes conexões com outros fenómenos ou sectores da indústria sexualconotados com o desvio, particularmente a prostituição e o alterne, favorecendo uma construçãodiscursiva híbrida que activa outros links temáticos e alguma confusão conceptual. Assim, apesarde serem fenómenos teórica e juridicamente distintos, invoca-se novamente o debate sobre arelação entre o tráfico de mulheres para fins sexuais e a prostituição, uma vez que este últimoconceito está presente em 41.2% das peças analisadas, sendo frequentemente usado comosinónimo de exploração sexual, vitimação e inabilidade femininas (e.g., “Grande parte dasmulheres acaba em bares de alterne e na prostituição, incapazes de saírem das redes de tráfico”,Correio da Manhã, 13-06-2008). Quanto ao alterne, verifica-se também alguma confusão, emboraesta seja menos aguerrida, uma vez que, face à ausência de regulamentação da prostituição emPortugal, os clubes ou bares de alterne assumem-se como contextos físicos propícios à existênciade situações que se enquadram na actividade prostituitiva, pelo que, naturalmente, são convocadospara os textos onde se narram histórias de exploração sexual.

Em terceiro lugar, foi identificado um conjunto de propriedades relativas às formas de organi -zação e dinâmicas do TSH, presentes em 68.2% das peças, permitindo identificar várias dimensões,a saber: a estrutura e o sistema de funcionamento em rede, a transnacionalidade, os mecanismosde recrutamento e de transporte, os processos de exploração e de controlo.

De facto, na maioria dos textos analisados surgem referências à estruturação dos agentescriminosos, quer em termos de hierarquia, quer de funções, qualificando a sua acção comofortemente especializada, organizada e lucrativa, aspectos particularmente presentes no tráfico deâmbito transnacional (e.g., “A estrutura tinha uma hierarquia de chefes e recrutadores que faziama angariação ilegal de mão-de-obra”, Correio da Manhã, 24-04-2008). Surgem, ainda, referênciasa esquemas ardilosos de camuflagem e desenvolvimento da actividade criminosa, nomeadamenteo recurso a fachadas empresariais, frequentemente relacionadas com negócios de exploração decasas de diversão nocturna ou nas áreas da construção civil e agricultura.

No que respeita aos mecanismos de recrutamento ou angariação de vítimas, é realçada apersuasão através de ofertas de trabalho apelativas, normalmente apresentadas por pessoas queseriam, à partida, dignas de confiança. Existem, porém, referências a estratégias ardilosas depublicidade nos media, designadamente através de anúncios na imprensa escrita. Por sua vez, oprocesso de transporte é distinto tendo em conta a origem e o destino das vítimas: nas peças ondefiguram vítimas oriundas do Leste Europeu, o transporte é normalmente feito por via terrestre(e.g., “A forma de actuação desta rede (...) consiste em recrutar mulheres através de anúncios (...).Viajando em carrinhas e pequenos autocarros, mas também dissimuladas entre mercadoriastransportadas em camiões, (...) são orientadas para dizerem, caso sejam interpeladas, que são

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turistas”, Público, 15-11-2008); quanto às vítimas de nacionalidade brasileira, as indicaçõesremetem para a sua entrada em Portugal e na Espanha por via aérea.

Os mecanismos de exploração e controlo dizem respeito às estratégias utilizadas pelos elementosdas redes de TSH no sentido de manter o funcionamento da actividade criminosa e a subordinaçãodas vítimas. Nas peças analisadas, estes aspectos traduzem-se, sobretudo, em referências a espaçosdesprovidos de condições elementares de sobrevivência onde as vítimas são forçadas a subsistir, emsimultâneo com o recurso, por parte dos exploradores, à violência física (e.g., agressões, tentativa deatropelamento) e/ou psicológica (e.g., ameaças de violência e morte às próprias vítimas ou a pessoassignificativas, privação de descanso e da liberdade de movimentos, vigilância permanente), sendo aprimeira mais referenciada nos textos sobre o TSH e a segunda naqueles que não se reportamexplicitamente a ele (e.g., “(...) as mulheres eram tratadas como mercadoria, para obtenção de lucrose viviam em condições deploráveis”, Correio da Manhã, 08-04-2008; “Vigiavam-nas e agrediam-nasquando elas pensavam em desistir. Algumas eram forçadas a trabalhar 12 horas seguidas”, Correioda Manhã, 23-10-2008). São, também, mencionadas outras formas de controlo, designadamente asubordinação económica, através da responsabilização pelo pagamento de avultadas dívidas relativasa custos com a viagem e subsistência (e.g., “As vítimas são vinculadas às redes através de um‘sistema de dívida’ (...)”, Correio da Manhã, 13-06-2008) e a sonegação de documentação pessoal.

No seguimento das dimensões anteriormente mencionadas, surge um novo conjunto de dadosque se prende com as finalidades da exploração. Nas peças onde estas são identificadas, cerca demetade consiste no tráfico de mulheres para exploração sexual e um quinto no tráfico de crianças parao mesmo fim. Foram contabilizadas apenas seis peças em que a finalidade do tráfico é a exploraçãolaboral, a extracção de órgãos ou a adopção ilegal, traduzindo uma clara sobrevalorização da explora -ção sexual face às restantes.

Por último, no acervo de dados que caracterizam o TSH, importa analisar o conjunto dereferências alusivas aos indicadores estatísticos sobre o crime. Salienta-se, desde logo, que amaioria dos textos não identifica qualquer fonte oficial; porém, naquelas em que tal acontece,prevalecem dados avançados pelos órgãos de polícia criminal (e.g., “Um total de 151 pessoasforam indiciadas no ano passado pelo crime de tráfico de seres humanos em Portugal e ‘78 foramdetidos’, revelou (...) um coordenador de investigação criminal da PJ”, Público, 31-01-2008).Esporadicamente, são citadas estimativas sobre o número global de vítimas, o tipo de vitimaçãoque envolve, bem como o lucro gerado pelo crime (e.g., “Número da ONU. Todos os anos, cercade 2,5 milhões de pessoas são vítimas de tráfico internacional para exploração sexual e trabalhoforçado”, Público, 17-10-2008). Embora este seja um fenómeno oculto por natureza, são raras asreferências ao desconhecimento da sua dimensão, não deixando, porém, de ser retiradas conclusõesmais ou menos “plausíveis” ou “consensuais” a partir dessa lacuna (e.g., “Apesar de não havernúmeros, é consensual que a exploração de mulheres para fins sexuais é a face mais visível dotráfico de seres humanos em Portugal”, Público, 17-10-2008).

Sociedade, política criminal e acção dos sistemas de controlo policial e penal

A segunda categoria de análise emergente dos textos concentra em si várias dimensões quepermitem enquadrar o TSH em termos sociopolíticos, jurídico-penais e, sobretudo, ao nível dainvestigação criminal, comportando 89.4% das peças em apreço.

Verifica-se, desde logo, um claro predomínio de textos em que o tema central circunda na acçãofiscalizadora dos órgãos de polícia criminal, denotando-se, dentro desta dimensão, uma prevalênciade notícias cujo núcleo informativo assenta em descrições de procedimentos de investigaçãoadoptados pelas forças policiais, destacando-se as rusgas em estabelecimentos de diversãonocturna, sendo escassas as referências a denúncias como ponto de partida para essas operações.Não raras vezes surgem alusões à cooperação entre diversas forças policiais, nacionais e/ouestrangeiras, tipicamente associadas a peças que noticiam o desmantelamento de redes com maior

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grau de organização (e.g., “Intitulada Operação Bagdad, mobilizou 1300 agentes e foi coordenadaem conjunto pela Europol e Eurojust”, Público, 24-06-2008).

Aliada a esta dimensão surgem considerações sobre trâmites judiciais que, geralmente, incidemsobre audições, julgamentos e sentenças, particularmente de processos fortemente mediatizados(e.g., Passerelle, Máfia da Noite, Noite Branca); aliás, o processo Passerelle é responsável, por sisó, por 10.6% dos textos analisados, situação que se justifica atendendo a que o seu desenvolvi -mento foi seguido em permanência pelos media. Estão ainda presentes propostas de alteraçãolegislativa, no sentido de ajudar a ultrapassar obstáculos que subsistem no combate ao crime (e.g.,“Maria José Morgado defende maior protecção às testemunhas e apreensão de todos os rendi -mentos das redes que traficam pessoas para evitar a impunidade ou que o crime compense”,Correio da Manhã, 13-06-2008).

Em 40% das peças explicitamente relacionadas com o TSH surgem, ainda, referências a umadimensão de acção política e social, de onde sobressaem orientações de política criminal,valorizando-se a investigação do crime, o financiamento de estruturas de apoio às vítimas e odesenvolvimento de acções de informação e sensibilização comunitárias (e.g., “Foi anunciadapelo Governo a criação (...) de um refúgio para mulheres e crianças vítimas de tráfico de pessoas”,Correio da Manhã, 01-06-2008; “(...) o Governo vai lançar uma campanha nacional desensibilização (...), cujo objectivo é (...) ‘apelar à consciência social e pedir a todas as pessoas quefiquem atentas ao fenómeno e o denunciem’”, Público, 17-10-2008). Veicula-se, assim, amensagem do combate ao TSH como prioridade do Governo, apelando a uma maior cooperaçãoentre a sociedade civil, as autoridades nacionais e internacionais neste propósito.

Estes reptos são também lançados por entidades da sociedade civil, no sentido de, por um lado,informar o público, favorecendo um movimento solidário e proactivo em relação às vítimas, esensibilizar o poder político para as necessidades de actuação face às exigências do fenómeno e,por outro lado, reiterar o seu compromisso de denúncia do problema (e.g., “Os bispos portuguesese dos restantes países lusófonos denunciaram ontem o aumento do tráfico de mulheres e decrianças e pediram aos governos (...) para tomarem medidas ‘concretas e eficazes para acabar comeste inaceitável flagelo’”, Correio da Manhã, 29-09-2008).

As medidas de apoio às vítimas enunciadas nas peças focam, sobretudo, a intervençãoproporcionada pelo Centro de Acolhimento e Protecção, enquanto única estrutura específica deapoio no país, possibilitando o seu acolhimento, protecção, apoio jurídico, psicológico e médico.No âmbito das medidas previstas no I Plano Nacional Contra o TSH, surgem ainda notícias quefocam a autorização especial de residência para algumas vítimas (e.g., “(...) o coordenador ManuelAlbano adiantou (...) que outras cinco vítimas de tráfico aguardavam por autorização especial deresidência”, Público, 17-10-2008). Não existem, porém, informações relativas à possibilidade deapoio às vítimas no processo de retorno ao seu país de origem.

Nas peças que não se reportam especificamente ao TSH, conceptualiza-se a prostituiçãoenquanto risco para a saúde pública, pelo que a intervenção é orientada para a distribuição dematerial contraceptivo, numa lógica de prevenção das doenças sexualmente transmissíveis.

Actores mobilizados e significação discursiva

A análise dos textos permitiu identificar a presença de cinco grupos centrais de actores: asvítimas, os traficantes/exploradores, os clientes, os representantes políticos e da sociedade civil e,por último, os órgãos de polícia criminal. Porém, a consideração destes elementos não se traduznuma presença equitativa dos espaços discursivos2, isto é, existem discrepâncias quanto ao peso

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2 Nesta análise foram apenas considerados os textos com referências em discurso directo.

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relativo das vozes dos diferentes grupos nas histórias, verificando-se um claro predomínio dosdois grupos mencionados em último lugar face aos restantes. Assim, e apesar do papel centraldesempenhado pelas vítimas, traficantes/exploradores e clientes no TSH, são também estes osagentes que menos “se fazem ouvir”.

Caracterização e discursos das vítimas

No conjunto das peças que veiculam informação sobre as vítimas do tráfico (81.2%), a suacaracterização é dominada pelos atributos “sexo” e “nacionalidade”, com o sexo feminino e anacionalidade brasileira claramente destacados, com 62.3% e 34.8% das referências nestasdimensões, respectivamente. De facto, a referência a vítimas do sexo masculino surge apenas emquatro peças, todas elas relativas a outras finalidades que não a exploração sexual. Quanto àsrestantes origens, predominam as vítimas provenientes da Europa de Leste e africanas.

Nas peças onde se identificam mulheres brasileiras, o conceito da prostituição está mais presentedo que o do tráfico, algo que já não acontece relativamente às pessoas oriundas da Europa deLeste, reforçando-se, assim, a ideia de que as mulheres brasileiras sabem que irão trabalhar nomercado do sexo, sendo, por via dessa consciência, percepcionadas como estando menos sujeitasà exploração. Quando não expressa claramente, a questão da nacionalidade é evidenciada atravésdo recurso a conceitos inespecíficos, tal como “estrangeiro/a”, que, em 30.6% das peças, seassociam à condição de ilegalidade da situação migratória das vítimas.

Da intersecção destas dimensões resultam as três categorias de mulheres presentes nos textosanalisados: as traficadas, as prostitutas e as ilegais.

Quanto à idade das vítimas, 18.8% dos casos envolvem adultos, tipicamente mulheres entre os20 e os 30 anos. Paralelamente, em 17.4% das situações, os dados revelam vítimas menores,aspecto especialmente significativo em termos da gravidade percebida do problema por parte dopúblico, dado que quanto mais jovem for a vítima, maior alarme será suscitado.

Apesar de a origem socioeconómica assumir um peso limitado nos textos, esta remete,invariavelmente, para cenários de precariedade (e.g., “Romenas, muito jovens, algumas aindacrianças, de famílias pobres do seu país, eram aliciadas com melhores condições de vida”, Correioda Manhã, 23-10-2008), favorecendo uma relação de causalidade linear entre pobreza e TSH. Defacto, quando apontados os motivos para a emigração, torna-se preponderante a questão da suavulnerabilidade socioeconómica no país de origem e a tentativa de melhorar essa situação noutrolocal. As mulheres e as crianças surgem como os elos mais fracos de uma sociedade desigual,voltada para o consumo e para a concorrência dos mercados, ainda que não se auto-percepcionemcomo vítimas (e.g., “A maioria não reconhece que é explorada”, Correio da Manhã, 13-06-2008).

Em quatro peças são aludidas estratégias adoptadas pelas vítimas no sentido de lidar com otráfico, consistindo na denúncia da situação de exploração às autoridades e na tentativa de fuga,podendo esta ser realizada com o auxílio de terceiros, sobretudo clientes, e implicar uma retaliaçãopor parte dos exploradores. Ainda assim, esta dimensão representa o único domínio onde é possíveldenotar sentido de agência por parte destas vítimas, uma vez que, em termos discursivos, a sua“voz” está presente em apenas 2.4% dos textos e restringe-se à explanação de dois aspectoscentrais: as condições de exploração a que estiveram sujeitas e as potenciais consequências deuma denúncia da situação às autoridades (e.g., “‘Armazéns de pessoas’ (...) chegavam a estar 13mulheres num só quarto”, Correio da Manhã, 08-04-2008).

Caracterização e discursos dos traficantes/exploradores

No conjunto dos textos que apresentam informação sobre os agentes perpetradores do crime,representando 70.6% do total, e de forma parcialmente divergente do que sucede com as vítimas,

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os atributos demográficos dominantes são o “sexo”, a “ocupação profissional” e, só depois, a“nacionalidade”. Assim, prevalecem histórias em que os traficantes/exploradores são do sexomasculino, surgindo, depois, as mulheres nesta posição, presentes em 28.3% dos textos destacategoria. No que diz respeito à nacionalidade e profissão, sublinha-se a elevada presença decidadãos portugueses, tipicamente proprietários/exploradores de estabelecimentos de diversãonocturna ou pensões. Todavia, o envolvimento de elementos das forças policiais, políticos eprofissionais de saúde nas redes de TSH e prostituição também é comum (e.g., “Entre osimplicados na rede estão médicos e enfermeiras”, Correio da Manhã, 31-01-2008; “António Frazãoé um destacado militante do Partido Nacional Renovador (...) que seria já responsável pelofuncionamento de quatro casas de prostituição (...) onde eram exploradas cerca de três dezenas demulheres ilegalmente imigradas em Portugal”, Público, 31-10-2008). Em 28.3% dos casos, osagentes perpetradores surgem identificados pelos seus nomes.

A maioria das mulheres, ao contrário do que acontece com os homens, são estrangeiras. Noseu conjunto, são sobretudo mencionados(as) cidadãos(ãs) oriundos(as) dos países da Europa deLeste, Brasil, África e Espanha. Contudo, ao contrário das vítimas, os elementos das redes têm,por norma, a sua situação migratória regularizada para minimizar as probabilidades de detecção(e.g., “Os condutores das viaturas que transportam as mulheres são, regra geral, ucranianos quepossuem autorização de residência em Portugal”, Público, 15-11-2008).

As indicações relativas à idade destes agentes são escassas; no entanto, são tipicamenteidentificadas pessoas com idades entre os 30 e os 50 anos. De resto, constata-se a presença derelações de parentesco ou proximidade afectiva entre alguns elementos das redes (e.g., “Umprofessor (...) e a mulher foram detidos sob suspeita de dirigirem uma rede de prostituição commulheres oriundas do Leste da Europa”, Correio da Manhã, 02-01-2008).

Por fim, surgem aspectos relacionados com a posição ou funções que estes assumem naestrutura criminosa, bem como informações sobre os antecedentes criminais destes agentes erelativas à acusação de pessoas colectivas por este crime (e.g., “Do total de 26 detidos em Portugale em Espanha, dois portugueses, considerados elementos das chefias da organização, ficaram emprisão preventiva”, Correio da Manhã, 24-04-2008; “O processo Passarelle (...) tem 24 arguidos– 15 em nome individual e nove empresas”, Correio da Manhã, 05-12-2008).

A presença dos traficantes/exploradores na arena discursiva é visível em apenas 11.1% dostextos que apresentam alguma conexão com o TSH e em apenas 3.5% da totalidade das peçasanalisadas, limitando-se a frases muito curtas e que versam essencialmente sobre duas dimensõesparticulares: a exposição de argumentos de auto-defesa face ao seu envolvimento na actividadecriminosa (e.g., “Em tribunal, Carlos M. G. acusou o “xerife” de ter “arrastando todos os polícias”para a trama de corrupção e extorsão de fundos a prostitutas”, Correio da Manhã, 17-05-2008) erelatos que espelham as percepções individuais sobre as vítimas (e.g., “‘Essa era especial, porqueera muito inocente’, ironizou”, Correio da Manhã, 18-01-2008).

Caracterização e discursos dos clientes

Assumindo um peso modesto comparativamente com as restantes, contemplando apenas 18.8%dos textos examinados, a análise desta categoria afigura-se, todavia, muito relevante face aosobjectivos delineados para o estudo, dado que a quase ausência da figura do cliente é, por si só,sintomática das dificuldades de acesso aos intervenientes no TSH. São os clientes que, pela suaprocura, fomentam a oferta de vítimas no mercado do sexo; todavia, continua a mitigar-se a suapresença na complexa rede de relações edificada entre os actores envolvidos.

Nos textos explicitamente relacionados com o TSH, as referências à figura do cliente sãoabsolutamente indiscriminadas em relação ao género, embora se possa depreender, pelo conteúdodas histórias e pela utilização de artigos no masculino, tratarem-se de homens (e.g., “A polícia

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britânica desmantelou ontem uma rede de prostituição que angariava clientes através da internete era alimentada por tráfico de pessoas”, Correio da Manhã, 21-04-2008).

Nas restantes peças, aplica-se o mesmo princípio, havendo, no entanto, notícias onde aidentificação do sexo masculino é clara, caracterizando-os também ao nível da sua ocupaçãoprofissional e eventual envolvimento nas redes de tráfico (e.g., “quatro polícias da cidade e váriospolíticos (...) seriam os principais responsáveis pela criação do esquema e (...) clientes das criançase adolescentes aliciados para a prostituição”, Correio da Manhã, 14-01-2008).

Nos textos que se reportam ao tráfico para fins sexuais são dirigidos alertas para quem procuraestes serviços, invocando medidas de responsabilização criminal (e.g., “alguém que recorra aosserviços de uma prostituta, sabendo que esta é vítima (...) de exploração sexual, arrisca-se a umapena de prisão que vai até aos cinco anos”, Público, 17-10-2008).

Embora as referências forneçam, quase sempre, uma imagem passiva dos clientes, não existindotextos com referências discursivas na 1ª pessoa, verifica-se uma postura diferente numa das peçasanalisadas. Nesta, os clientes são os agentes que ajudam a resgatar as vítimas, assumindo umadupla posição: por um lado, de “exploradores”, na medida em que procuram e/ou usufruem dosserviços efectuados por elas; e, por outro lado, de “protectores”, ajudando a retirá-las da situaçãode exploração em que se encontram (“Esta terá sido agredida com um spray de gás pimenta e alvode tentativa de atropelamento (...) depois de ter conseguido fugir, com o auxílio de um cliente, dacasa onde estava retida”, Correio da Manhã, 14-02-2008).

A voz do poder político e da sociedade civil

A produção discursiva de estruturas políticas e de organizações da sociedade civil cuja acçãovisa o apoio às vítimas de TSH, também assume algum relevo. As indicações reportam-se,essencialmente, à necessidade de fomentar a cooperação na prevenção e combate ao TSH (e.g.,“(...) a mulher de Durão Barroso considerou que ‘é indispensável o envolvimento da sociedade’nesta problemática, apelando também ao ‘estreitamento da relação entre a polícia e as organizaçõesnão governamentais’”, Correio da Manhã, 06-04-2008).

Surgem, em paralelo, reflexões à volta da necessidade de aplicação e revisão da lei penal, dacriação e financiamento de estruturas e/ou serviços de apoio, bem como dados que traduzem certaspercepções externas face à situação do TSH em Portugal (“Apenas oito das 49 pessoas condenadasem Portugal em 2006 por tráfico de seres humanos cumpriram pena de prisão, segundo umrelatório do Departamento de estado norte-americano que classifica como ‘inadequadas aspunições impostas pelos tribunais portugueses’”, Público, 06-06-2008).

No entanto, e apesar das interpelações aos cidadãos comuns, no sentido de denunciarem o crimee contribuírem para o seu combate, tentando fomentar um sentido de responsabilidade colectivana resolução do problema, não se verifica qualquer contribuição do público anónimo nos textosanalisados.

O sistema de justiça criminal e o discurso dominante sobre o TSH

A participação discursiva dos órgãos de polícia criminal e do aparelho judicial verifica-se, deforma directa, em 9.4% dos textos. Do conjunto das forças policiais, a mais citada é o Serviço deEstrangeiros e Fronteiras, revelando circunstâncias inerentes à própria organização dos serviçosde investigação criminal no país. A presença de forças internacionais, apesar de habitual, não é,na maioria dos casos, especificada pelos nomes (e.g., “a polícia britânica”).

A maior parte das intervenções destes órgãos serve propósitos informativos em relação aresultados de operações policiais e divulgação de estatísticas criminais (e.g., “Pedro Felícioadiantou que, das 78 pessoas detidas no ano passado, ‘cerca de trinta ficaram em prisão

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preventiva’”, Público, 31-01-2008). Esporadicamente surgem relatos sobre as dinâmicas do crimee as condições de exploração a que as vítimas estariam sujeitas (e.g., “(...) as crianças estavam comfome e não tinham documentos”, Correio da Manhã, 31-01-2008).

As restantes referências são atribuídas a outras personagens da arena da justiça (e.g.,magistrados, advogados), sobretudo focadas na tramitação processual dos casos denunciados.

Deste modo, se no discurso indirecto predominam as categorias e dimensões relativas à acçãodos sistemas de controlo policial e penal, também no discurso directo esta presença se sobrepõeem relação aos restantes actores, contribuindo para a sua dominância narrativa.

DISCUSSÃO

Embora o TSH tenha sido alvo de uma maior exposição mediática nos últimos anos, e apesarda restrição temporal da análise efectuada e das fontes consultadas – que impedem a generalizaçãodos resultados –, a primeira conclusão que poderá ser extraída é a de que, ainda assim, a suavalorização por parte dos media não tem sido suficientemente forte ao ponto de justificar umapublicação assídua e a sua presença nas primeiras páginas dos jornais ou em géneros jornalísticosmais aprofundados, nomeadamente reportagens e entrevistas, limitando o conhecimento públicosobre o fenómeno e a complexidade de relações que este envolve.

Os resultados revelam a emergência de categorias cujos significados convergem em temas maisou menos centrais e mediatizados, favorecendo um entendimento público do TSH enquantofenómeno amplamente organizado, violento e estreitamente coligado com outros crimes efenómenos conotados com o desvio social, particularmente a imigração ilegal e a prostituição(Peixoto et al., 2005; Simões & Peça, 2009), justificando uma atenção crescente por parte dosistema de justiça. Ora, se é certo que as actividades praticadas pelas mulheres prostituídas e pelasexploradas sexualmente são semelhantes, existe, todavia, uma diferença essencial entre estasrealidades, assente no pressuposto da ausência de auto-determinação por parte das últimas (Santoset al., 2008), pelo que concebê-las como prostitutas significa, desde logo, retirar-lhes a condiçãocentral de vitimação, desvirtuando o sentido dessa experiência.

Efectivamente, para além de uma postura pautada pela inércia e desvalorização social, tal(con)fusão de conceitos contribui para a “não desocultação dos diferentes fenómenos, para oadensamento das ideias moralizantes sobre a prática prostitutiva e para o estabelecimento derelações causais entre prostituição e tráfico” (Associação para o Planeamento da Família, 2007,p. 2). Tal não significa, contudo, que a exposição mediática do TSH e da prostituição, frequente -mente misturados na narrativa jornalística, seja puramente moralista, na medida em que a imprensatambém reconhece a indústria do sexo enquanto mercado legítimo de trabalho, traduzindoresultados similares aos obtidos por outros autores (e.g., Simões & Peça, 2009).

Os actores centrais mobilizados nas histórias não assumem um peso homogéneo, dado que,embora haja referências que sustentam a presença das vítimas, traficantes/exploradores e clientes,estas são subalternizadas face às descrições cujo vector central atravessa a acção dos órgãos depolícia criminal (ASTRA, 2006; Kantola & Squires, 2004; Meigs, 2005; Peixoto et al., 2005;Santos et al., 2008), verificando-se uma presença ainda menos significativa na arena discursiva.Aliás, como defendem Simões e Peça (2009), o ideário discursivo tende a gravitar em torno dehistórias cujos temas convergem na acção das instituições de maior poder social, e em particulardaquelas que exercem o controlo da lei e da ordem, enfatizando uma leitura institucional do TSHe arredando do palco as narrativas dos actores principais e do público anónimo, o que reflecte aforte inacessibilidade destes intervenientes ao espaço mediático.

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Dado o predomínio de histórias de TSH para fins de exploração sexual, as vítimas sãotipicamente qualificadas pela sua condição de mulher e imigrante ilegal. Apela-se, assim, àmisoginia, reiterando imagens de subalternização feminina e fazendo oscilar a opinião públicaentre valores de moralidade (mulher construída como vítima) e imoralidade (concebida comoprostituta), de legalidade (ênfase na protecção dos direitos humanos) e ilegalidade (ênfase natransgressão migratória). Fruto de uma cultura onde persistem discriminações baseadas no género,o TSH será, assim, construído como mais um produto dessas desigualdades.

A centralidade das questões associadas à nacionalidade das vítimas requer uma análise acercadas concepções e estereótipos associados à sexualidade feminina e, em particular, das mulheresbrasileiras. Estas são, com frequência, percepcionadas como mais disponíveis para o envolvimentosexual, favorecendo a construção de que a prostituição das mulheres brasileiras é essencialmenteuma opção laboral migratória (Santos et al., 2008), o que poderá resultar numa maior negligênciade situações de exploração que envolvem estas mulheres.

Por outro lado, apesar de figurarem como actores inclusos no discurso, a participação discretados clientes nas histórias é, para Simões e Peça (2009), reflexo de uma cultura de género assenteem cenários de interacção humana e em normativos desiguais erigidos para a sexualidade femininae masculina, obscurecendo a verdadeira natureza da indústria do sexo, isto é, a de mulheres ehomens que se polarizam nos papéis de procura e oferta.

Embora ocasional, a presença de actores da esfera pública permite clarificar medidas de apoioàs vítimas, apelar à mobilização da sociedade civil e à responsabilização do Governo no combateao crime. De resto, a reduzida presença deste tipo de dados poderá ser sintomática da falta deatenção a que este fenómeno foi votado no país até muito recentemente e do número limitado deintervenções técnicas específicas levadas a cabo em território nacional.

No que respeita à organização das redes criminosas, as dinâmicas enunciadas coincidem comas que outros autores (e.g., Hodge & Lietz, 2007; Peixoto et al., 2005; Santos et al., 2008) referem,isto é, o recrutamento baseado em ofertas de trabalho apelativas, na indústria sexual ou outra,transmitidas por pessoas com algum grau de familiaridade com a vítima, e os mecanismos deexploração e controlo assentes, tipicamente, na utilização de violência física e/ou psicológica.

Quanto aos espaços, é possível analisá-los a partir de duas dicotomias: o espaço público versusprivado e o território nacional versus internacional. Contudo, quer em Portugal, quer em territóriointernacional, predominam os estabelecimentos de diversão nocturna enquanto locais de explora -ção, podendo estes ser conceptualizados como espaços híbridos, na medida em que conjugam odomínio público com o privado, sendo o seu acesso determinado por via de uma moralidade quelegitima a sua frequência apenas por parte dos homens. Por seu turno, dado o período normal defuncionamento destes espaços, há um claro predomínio do tempo nocturno nas histórias, tambémele socialmente mais associado a actividades desviantes.

Os indicadores causais para o TSH traduzem factores que impulsionam a generalidade dosmovimentos migratórios, ou seja, condições de privação socioeconómica ou pobreza das popula -ções, também estas estreitamente associadas ao género. De facto, vários autores (e.g., Hodge &Lietz, 2007; Meigs, 2005; Peixoto et al., 2005; Santos et al., 2008) têm indicado que o TSH sealimenta das condições de vulnerabilidade socioeconómica, principalmente sentidas pelasmulheres, forçando-as a emigrar. Porém, as restrições impostas à passagem de fronteiras têm vindoa remeter estes processos de mobilidade para a clandestinidade, contribuindo para a emissão demensagens de alarme social e para o desenvolvimento de um ambiente pautado pelo “pânicomoral” (Cohen, 1972; Welch et al., 1997). Tal cenário é, ainda, favorecido pela catastrofização dasestatísticas publicadas, pela exasperada imagem de violência difundida e pela amplificação daparticipação de estrangeiros em crimes ou actividades conotadas com o desvio (Peixoto et al.,2005; Saar, 2010; Simões & Peça, 2009). Autores como Berman (2003) e Schaeffer-Grabiel (2010)têm, aliás, denunciado a utilização estratégica das preocupações vitimológicas com o objectivo de

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justificar uma vigilância social cerrada, uma campanha reaccionária contra a imigração e uma“cruzada moral” (Weitzer, 2007) contra a prostituição.

CONCLUSÃO

O TSH é um crime complexo e que envolve, por norma, múltiplos actores, estratégias, dinâ -micas e associações com outros ilícitos, bem como, em determinadas situações, elevados níveisde organização, sofisticação e mutabilidade, ingredientes que despoletaram o interesse dos media,contribuindo para que este tivesse, nos últimos anos, alcançado maior visibilidade.

Esta, no entanto, é uma situação que tem tido resultados paradoxais, na medida em que se, por umlado, estes meios, devido ao elevado poder de que se revestem, assumem um papel crucial nainformação, sensibilização e denúncia de situações de exploração, por outro lado, também têmpromovido, pela publicação de notícias imprecisas e sensacionalistas, a falta de empatia, opreconceito e a estigmatização por parte do público (Santos et al., 2008), sobretudo em relação àsmulheres traficadas para fins sexuais, curvando-se ao imperativo da informação breve e imediata ealheando-se de um aprofundamento analítico sobre os processos sociais.

Na medida em que o discurso não é apenas um instrumento de exercício do poder, mas tambémuma representação que, em simultâneo, se constitui como realidade (Foucault, 1970), asobreposição do sector político com o mediático congrega o potencial de modificação da percepçãoda sociedade sobre o TSH (Simões & Peça, 2009). Paralelamente, os significados discursivosarquitectam a opinião pública, não sendo o discurso jornalístico uma excepção, apesar da suapresunção de imparcialidade ou isenção. De facto, para além da sua função informativa, aodescrever os problemas de forma selectiva, exagerada e obscura (Saar, 2010), os media assumemum papel central na criação de cenários de pânico moral, com impacto ao nível do fortalecimentode políticas migratórias restritivas (O’Neill et al., 2008) e da ideologia abolicionista face àactividade prostitutiva.

No contexto do TSH, os requisitos da objectividade, imparcialidade e veracidade que devemnortear a acção dos jornalistas são frequentemente postos à prova, dado que se trata de um crimeem que as fontes são duvidosas, de difícil acesso ou mesmo de abordagem perigosa. Como tal, ainvestigação e produção noticiosa exige o cumprimento escrupuloso de códigos de conduta partedos media stakeholders (Bindel, 2006) em relação à credibilidade das fontes e material publicado.Paralelamente, a investigação do TSH tem sido largamente “inspirada”, comissionada edesenvolvida pelos Estados (Kelly, 2005, citado por Nieuwenhuys & Pécoud, 2007), restandopouco espaço para perspectivas críticas sobre políticas estabelecidas e que colocam em pólosopostos a prevenção do TSH e a repressão da imigração irregular, a vitimização e a emancipaçãodas vítimas, a segurança das nações e a supremacia dos direitos humanos.

Atendendo ao potencial dos media para construir e transformar a opinião das massas, bem comopara favorecer o debate político, salienta-se, também, a necessidade de investir no jornalismo deinvestigação e de formar os agentes mediáticos para noticiar o tema com rigor e no respeito pelosdireitos humanos, incorporando, além da função informativa, uma estratégia de educação pública(Saar, 2010), onde o direito à informação, à liberdade de expressão e as pressões comerciais que afec -tam os media possam ser reconciliadas com o interesse público e a responsabilidade ética e social.

REFERÊNCIAS

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The growing recognition of trafficking in human beings over the last decade was due in large part tothe action of the media, either as a massive information vehicle, either as an active participant in theprocess of constructing reality. This dual role justifies the need to study their products in order to betterunderstand social phenomena, and particularly those associated with deviation. By analysing the newspublished by two national daily newspapers, a frequent overlap between trafficking, prostitution andillegal immigration emerges, reflecting the dominance of narratives regarding women’s sexualexploitation, which, in turn, contributes to the presence of stereotypes and social alarm messages.However, the main actors are sidelined from the narratives arena, since their discourses aresubordinated to the action of the criminal police bodies, giving them control of the spread knowledgeregarding the phenomenon. Finally, the need to adopt codes of conduct by media stakeholders is notedin order to avoid the release of messages that appeal to stigma and panic, as well as to promote thereconciliation between commercial pressures and the public interest, ethical and social responsibility.

Key-words: Media, Public perceptions, Social construction, Trafficking in human beings.

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