MORUS – Utopia e Renascimento, v.11, n. 2, 2016 Interpretatio Linguarum, o mais completo tratado renascentista sobre tradução Mauri Furlan Universidade Federal de Santa Catarina Resumo Lawrence Humphrey compendiou a reflexão renascentista sobre a arte de traduzir produzindo o ingente tratado Interpretatio linguarum (Tradução de línguas), publicado em 1559. Dividido em três livros, com mais de 600 páginas, o tratado do teólogo puritano inglês, que, apesar de sua reconhecida importância, nunca foi reimpresso, nem recebeu edição crítica ou tradução integral a qualquer língua até hoje, é aqui apresentado em tradução ao português brasileiro. Abdicando de boa parte dos inúmeros exemplos oferecidos por Humphrey, selecionamos para esta publicação excertos do primeiro livro, o mais teórico de seu tratado, intitulado De ratione interpretandi (Da arte de traduzir). Palavras-chave Interpretatio linguarum, Lawrence Humphey, teoria da tradução Mauri Furlan é professor de Latim no Departamento de Língua e Literatura Vernáculas da UFSC. Possui Doutorado em Filologia Clássica pela Universidad de Barcelona (2002), Mestrado em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (1998), graduação em Letras–Licenciatura em Alemão pela Universidade Federal de Santa Catarina (1993) e graduação em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação e Turismo Hélio Alonso/RJ (1989). Professor Associado da Universidade Federal de Santa Catarina, atua na área de Letras, com ênfase em Teoria da Tradução da Antiguidade ao Renascimento, e Língua Latina. É fundador das revistas acadêmicas da área dos Estudos da Tradução Cadernos de Tradução e Scientia Traductionis. Coordena o Centrum Inuestigationis Latinitatis, na UFSC, e traduz.
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MORUS – Utopia e Renascimento, v.11, n. 2, 2016
Interpretatio Linguarum, o mais completo tratado renascentista sobre tradução
Mauri Furlan
Universidade Federal de Santa Catarina
Resumo
Lawrence Humphrey compendiou a reflexão renascentista sobre a arte de traduzir produzindo o
ingente tratado Interpretatio linguarum (Tradução de línguas), publicado em 1559. Dividido em
três livros, com mais de 600 páginas, o tratado do teólogo puritano inglês, que, apesar de sua
reconhecida importância, nunca foi reimpresso, nem recebeu edição crítica ou tradução integral a
qualquer língua até hoje, é aqui apresentado em tradução ao português brasileiro. Abdicando de boa
parte dos inúmeros exemplos oferecidos por Humphrey, selecionamos para esta publicação excertos
do primeiro livro, o mais teórico de seu tratado, intitulado De ratione interpretandi (Da arte de
traduzir).
Palavras-chave
Interpretatio linguarum, Lawrence Humphey, teoria da tradução
Mauri Furlan é professor de Latim no Departamento de Língua e Literatura Vernáculas da UFSC.
Possui Doutorado em Filologia Clássica pela Universidad de Barcelona (2002), Mestrado em
Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (1998), graduação em Letras–Licenciatura
em Alemão pela Universidade Federal de Santa Catarina (1993) e graduação em Jornalismo pela
Faculdade de Comunicação e Turismo Hélio Alonso/RJ (1989). Professor Associado da
Universidade Federal de Santa Catarina, atua na área de Letras, com ênfase em Teoria da Tradução
da Antiguidade ao Renascimento, e Língua Latina. É fundador das revistas acadêmicas da área dos
Estudos da Tradução Cadernos de Tradução e Scientia Traductionis. Coordena o Centrum
Inuestigationis Latinitatis, na UFSC, e traduz.
MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016
Interpretatio Linguarum, the most thorough Renaissance treatise on translation
Mauri Furlan
Federal University of Santa Catarina
Abstract
Lawrence Humphrey summarized the thought of the Renaissance on the art of translating in his
extensive treatise Interpretatio linguarum (The translation of languages), published in 1559.
Divided into three books and with more than 600 pages, the treatise written by the English Puritan
theologian, which, despite of its great importance, has never been reprinted, nor received a critical
edition or an integral translation into any language up to this day, is here presented in a translation
into Brazilian Portuguese. Forgoing much of the many examples offered by Humphrey, we have
selected excerpts from the first book, the most theoretical in his treatise, entitled De ratione
interpretandi (On the art of translating).
Keywords
Interpretatio linguarum, Lawrence Humphey, translation theory
Mauri Furlan teaches Latin in the Department of Vernacular Language and Literature at UFSC. He
holds a Ph.D. in Classical Philology from the University of Barcelona (2002), a Master Degree in
Literature from the Federal University of Santa Catarina (1998), a degree in Letters - German, from
the Federal University of Santa Catarina (1993) and a degree in Journalism from the Faculty of
Communication and Tourism Hélio Alonso / RJ (1989). He is Associate Professor at Federal
University of Santa Catarina, working in the area of Letters, with an emphasis on Theory of
Translation from Antiquity to Renaissance and Latin Language. He is the founder of the academic
journals in the area of Translation Studies Cadernos de Tradução and Scientia Traductionis. He
also coordinates the Centrum Inuestigationis Latinitatis, at UFSC, and works with translation.
Interpretatio Linguarum, o mais completo tratado renascentista sobre tradução
13 MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016
AWRENCE HUMPHREY (1527-1590), erudito e teólogo puritano inglês,
escritor prolífico, abordou temas relativos à teologia, à patrística, à
filologia clássica e à tradução. Foi diretor do Magdalen College (1561) em
Oxford, e decano de Gloucester (1571) e Winchester (1580). Das
biografias a seu respeito sabemos que, em sua formação acadêmica,
contam-se os títulos de Bacharel (1548) e Mestre (1549) em Artes Liberais,
Bacharel (1552) e Doutor (1562) em Teologia. Foi discípulo do teólogo italiano e reformador
protestante Pietro Martire Vermigli (1499-1462) e defensor de uma visão protestante
progressista. Por isso, quando da ascensão de Mary Tudor ao trono e o início da recatolização,
em 1553, obteve permissão para viajar ao estrangeiro. Residiu, assim, em Zurique, Basileia,
Frankfurt e Gênova. Durante sua estada na Suíça, reuniu-se com John Parkhurst (1512-1575),
posteriormente sagrado bispo de Norwich em 1560, e John Jewel (1522-1571), sagrado bispo
de Salisbury em 1560 – ambos caçadores de bruxas –, e outros exilados protestantes.
Retornou à Inglaterra em 1558, no início do reinado de Elizabeth I. Assumiu a cadeira de
professor de teologia em Oxford, em 1560. No ano seguinte foi eleito diretor do Magdalen
College, e transformou o centro de ensino num reduto do Puritanismo – uma doutrina da fé
cristã desenvolvida na Inglaterra por uma comunidade de protestantes radicais depois da
Reforma. Por causa de sua posição crítica frente à Igreja Católica foi chamado de
papistomastix (chicote ou castigo papal). Teve 12 filhos com sua esposa Joan Inkfordby
(1537-1611).
Acorde ao espírito de sua época, Lawrence Humphrey interessou-se sobremodo pela
questão da arte da tradução, participando de debates sobre o tema quando de sua permanência
na Suíça, onde foi publicado o que hoje é considerado o maior tratado compendiador sobre
tradução produzido no Renascimento: Interpretatio linguarum, seu de ratione conuertendi &
explicandi autores tam sacros quam prophanos (“Tradução de línguas ou da arte de traduzir e
interpretar autores sacros e profanos”). Nas palavras de Glyn Norton, “It is the only work
from this period that approaches an encyclopedia of doctrine on translation.” (1984, p. 11)
A originalidade de Humphrey está mais na produção do compêndio que nas linhas
mestras de seu pensamento sobre tradução – é de Leonardo Bruni o mérito de ter composto o
primeiro e mais impactante tratado sobre tradução no Renascimento, De interpretatione recta1
(1420), cuja grande novidade é a exigência de produção de arte no texto de chegada –, isto é,
o tratado de Humphrey destaca-se por sua extensão e por detalhar e sumarizar o pensamento
da época em torno da arte de traduzir. No entanto, apesar de sua reconhecida importância, é
ainda uma obra pouquíssimo estudada e referenciada, que nunca foi reimpressa nem recebeu
edição crítica ou tradução integral a qualquer língua. A erudição do teólogo inglês, que
dominava ademais do latim, também o grego e o hebraico, leva-o a rechear o texto latino com
palavras e citações gregas e hebraicas – sem traduzi-las –, servindo-se frequentemente de duas
línguas numa mesma frase, e seu conhecimento transita pelas áreas da filologia, da teologia,
da exegese bíblica, da história da igreja, da filosofia, da literatura e cultura clássicas, da
mitologia, etc. Seu texto também apresenta uma profusão vocabular não dicionarizada. Ele é,
afinal, um homem do Renascimento.
A única edição do tratado humphreyano que veio à luz foi publicada em 1559 pela
editora Froben, na Basileia, constando de 624 páginas, das quais 588 são dedicadas ao tratado,
e as demais, conforme anunciado na segunda parte do título, No final, o profeta judeu Abdias,
traduzido e interpretado, e o livro de Filon de Alexandria De iudice, em grego e latim.
1 BRUNI, L. “De interpretatione recta / Da tradução correta”. Apresentação e tradução de Mauri Furlan, in
Scientia Traductionis, nº 10. Florianópolis, 2011. Online:
https://periodicos.ufsc.br/index.php/scientia/article/view/1980-4237.2011n10p16/27998. N.E.: Outra tradução
deste texto de Bruni está disponível no presente número da revista Morus.
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O tratado Interpretatio linguarum compõe-se de três partes ou livros: I. De ratione
interpretandi, cujos pontos centrais abordados por Humphrey são os três tipos de tradução, as
virtudes da tradução, e as tarefas do tradutor; II. De ratione imitandi, onde o autor dedica-se
principalmente à discussão sobre a imitação; e III. De ratione interpretandi –
progymnasmatum & exemplorum syluulam continens, que trata da prática dos preceitos
teóricos expostos na primeira e segunda partes. Dos três livros, sem dúvida, o primeiro é o
mais importante no sentido de apresentar formalmente a concepção teórica de tradução do
autor inglês. E é sobre este primeiro livro que tratamos aqui e do qual oferecemos excertos,
sobretudo teóricos, traduzidos ao português brasileiro.
Humphrey abre seu tratado com um prefácio de 14 páginas, no qual exalta a tradução,
assinalando sua dignidade, comunidade, utilidade e necessidade, e o dedica a seu amigo Sir
Thomas Wroth2.
De ratione interpretandi, o primeiro livro do tratado, inicia com uma reflexão sobre a
utilidade da língua e da tradução: A utilidade da língua é seu uso, mas ele só será eficaz se ela
for entendida por todos, e é aí que entra o papel da tradução. A seguir define sua concepção
de tradução:
A tradução [interpretatio] foi chamada Ἐξκελεία3 [interpretação] pelos
gregos, mas é ambíguo o nome de tradutor [interpres], pois pode ser tomado
em vários sentidos: nós, por certo, aqui e agora, o atribuímos àquele que
aclara, mediante a tradução a uma língua mais conhecida e familiar, o
dialeto ou idioma pouco conhecido de muitos, e converte algo de uma
língua estrangeira a outra mais considerada e comum.4
Tal definição é acompanhada por um breve relato da história da tradução, no qual cita
os nomes de Jerônimo – e seu opúsculo De optimo genere interpretandi –, Cícero – e seu De
optimo genere oratorum –, Joaquim Periônio – tradutor de obras de Aristóteles –, Moisés –
mediador entre Deus e o povo israelense –, Ptolomeu – responsável pela tradução da
Septuaginta –, São Paulo – e sua Epístola aos Efésios –, Agostinho – por sua crítica e
posterior aceitação à tradução de Jerônimo –, e Orígines – e sua Héxapla5.
Dito isto, Humphrey argumenta em defesa da produção de seu tratado, com o qual
almeja prescrever “uma regra fixa e um método determinado”, seja para aperfeiçoar o
trabalho dos tradutores e render-lhes renome, seja para dar a conhecer a verdade ou avaliar as
traduções. No entanto, ao considerar a abundância de autores gregos e latinos, os diversos
2 Thomas Wroth (1516-1573), cortesão e político, serviu ao rei Edward VI também como camareiro e guarda-
costas pessoal. Depois da morte de Edward VI, exilou-se em Estrasburgo e Frankfurt, regressando à Inglaterra
após a ascensão (1558) de Elizabeth I (também chamada de Isabel I) (1533-1603) ao trono, e foi eleito cavaleiro
e representante no parlamento, entre outras funções. 3 A palavra grega ἑξκελεία (hermeneia), e sua equivalente latina interpretatio, foi na época clássica um termo
técnico para tradução. É interessante observar que o termo ἑξκελεία, que significava inicialmente expressão,
linguagem, produção de um discurso, relação entre linguagem e pensamento, significação, elocutio, muda
paulatinamente de sentido ao misturar-se com outras acepções do termo latino interpretatio: da relação entre um
texto dado e seus leitores se estendeu às funções intermediárias de explicação e tradução, um „ir entre‟, „mediar‟
entre duas línguas. 4 Haec Interpretatio dicta est Graecis α: estque hoc nomen Interpretis ambiguum, et in uarios sensus
trahi potest: nos hoc quidem loco et tempore eum uocamus, qui Dialectum seu idioma minus multis notum,
linguae notioris et familiaris interpretatione illustrat, et aliquid ex peregrina língua conuertit in aliam
celebratam magis et peruagatam. (03) 5 A Héxapla [sêxtupla] é uma edição compilada pelo erudito Padre da Igreja Orígenes (185-254) em seis
colunas, das escrituras do Antigo Testamento com (1) texto hebraico, (2) transliteração para o grego, e as
traduções gregas disponíveis de (3) Áquila, (4) Símaco, (5) Orígenes, e (6) Teodócio. Orígenes, acredita-se,
produziu a primeira excelente crítica textual da Bíblia.
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gêneros literários e as traduções, com suas discrepâncias, e seus tradutores, bem como
características inerentes às edições existentes dos originais e de suas línguas, e fatores
culturais, Humphrey reconhece a dificuldade de prescrever, mas não de ensinar um modo de
traduzir como o melhor.
Não ouso prescrever esta arte de traduzir, mas ela pode ser ensinada por um
método racional.6
Em seguida, o tratadista inglês passa a abordar os três diferentes tipos de tradução
adotados – uma concepção que no Renascimento se tornou um lugar-comum a muitos
pensadores da questão, manifestamente em Juan Luis Vives7 –, elegendo o terceiro como o
melhor método para traduzir.
I. Tradução pueril e escrupulosa (Interpretatio puerilis et superstitiosa)
Chamada de dura, grosseira, escabrosa, servil, pueril, escrupulosa e presa porque em
nada se aparta das palavras, extremamente literal é a tradução ad uerbum. Nela perde-se a
elegância do autor primeiro, os ornamentos, o idiomatismo, a clareza. Os que produzem tais
traduções são veementemente criticados:
[...] da mesma maneira como as amas de leite que dão aos bebês, na boca,
alimentos mastigados e em pedacinhos, quando balbuciam com os que
balbuciam, assim os professores que foram privados da palavra viva levam
quase que pela mão os aprendizes como que a um tênue conhecimento dos
poetas.8
[...]
Na verdade, neste século áureo e erudito, parecerão ocupar-se de inação, não
do proveito dos estudiosos, os que, desta forma, enquanto tudo esmiúçam,
acrescentam palavras às palavras, de modo que os zelos não deixem nada
para pensar e indagar por si próprios. Não é por maldade que, assim, por
este mesmo aprendizado constante, apresentam aos estudantes, de forma
articulada e distinta, rudimentos em sua prosa, em que cada palavrinha vale
por si, e por fim levam-nos aos poucos gradativamente em frente. E quem,
pois, os ensina a rastejar – quando na poesia deveriam voar às alturas –
buscando o mais sutil, negligenciando o melhor, também atua como se os
quisesse novamente a berrar nos berços, enquanto delicada e
timidazinhamente sustenta-os e nutre-os com este mastigado como fosse
pasto, indulgente com o ócio e a estupidez deles, e inteiramente favorecedor
da indolência. Semelhantemente, como se alguém ensinasse a um outro já
crescidinho e que pode saltar e correr a andar e a mover-se pé ante pé e a
avançar lentamente como criança, assim, na leitura dos gregos, a estes já
crescidos e adultos faz, de certo modo, tornarem-se meninos, e chama
6 Hanc interpretandi artem dicere non audeo: uia tamen et ratione de ea praecipi potest. (03-04)
7 Cf. FURLAN, M. (Org.), Clássicos da Teoria da Tradução - VI. Antologia do Renascimento (séc. XVI)
(bilíngue). 2ª ed. revista e modificada. Florianópolis: UFSC, 2016. Online:
_VI_Antologia_do_Renascimento_sec_XVI_bilingue 8 [...] tanquam nutrices infantibus mansa ac comminuta frustulatim in os ingerant, cum balbis balbutientes, ut ad
aliquam Poetarum tenuem cognitionem quasi manuducant tyrunculos, qui magistri uiua uoce destituti sunt. (14)
Mauri Furlan
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novamente ao berço os que sustentariam certas tarefas mais varonis e mais
sérias. E também executam rapidamente as que são facilmente aprendidas
sem contenção do espírito, embora as alcançadas com empenho
permaneçam por mais tempo. No entanto, enquanto estão presos às palavras,
não aprendem realmente, e o sentido se perde ou se obscurece, de forma que
é necessário um douto tradutor para as traduções certamente esclarecedoras
dos mesmos, as quais dizem realizar para toscos e aprendizes.9
[...]
Deve-se aprender apenas o melhor desde pequenos. Por isso, portam-se
pessimamente com seus moços os mestres-escolas, que, assim, ensinam
toscamente os toscos, de forma a que aprendam o pior de uma elocução em
ambas as línguas, ζνινηθίδεηλ [falar incorretamente]; a que considerem as
palavras isoladamente, e trabalhem muito pouco sobre as agrupadas; a que
traduzam, assim, palavra por palavra, de maneira a fazer dos bons gregos
algo latino nada bom. Deixam, por certo, sair de sua oficina para construir a
república e a igreja, como se fosse do cavalo de Tróia, artífices pouco
habilidosos, sofistas, bárbaros, scotistas10
que odeiam e perseguem as boas
artes e toda a humanidade.11
Os estragos produzidos por tais traduções se refletem e podem ser exemplificados em
todos os âmbitos, na Dialética, na Filosofia, no Direito, na Teologia.
9 Verum hoc aureo et erudito seculo, consulere uidebuntur ignauiae, non utilitati studiosorum, dum omnia ita
minutatim dissecant, uerba uerbis sic apponentes, ut nihil ad cogitandum et indagandum ipsorum relinquant
diligentiae. Non male uolunt, qui sic, ab ipso statim tirocinio, in oratione soluta rudimenta discentibus,
articulate et distincte ostendunt, quid quaeque uocula per se ualeat, et deinde paulatim ad altiora per gradus
quosdam prouehunt. At enim qui docet eos reptare, quum in poesi ad summa deberent euolare, minutiora
captans, negligens potiora: perinde facit, ac si in cunis eos uelit denuo uagire, dum hoc praemanso uelut pabulo
tenere et molliuscule alit et educat, indulgens eorum otio ac hoc aureo et erudito supinitati, ac plane fouens
socordiam. Similiter ac si quis aliquem grandiusculum iam qui saltare potest et currere, cum infantibus
pedetentim ire et mouere se ac sensim progredi doceat: sic istos in lectione Graecorum prouectos adultosque
iam quodammodo facit repuerascere, et ad incunabula reuocat, qui uiriliora quaedam pensa et grauiora
susciperent. Et cito quoque efficiunt, quae citra contentionem animi cito discuntur: labore acquisita
adhaerescunt diutius. Imo dum uerbis affixi sunt, ne discunt quidem, sed perit sensus, aut obscuratur, ut ad
ipsorum dilucidas scilicet interpretationes, quas rudibus et tyrunculis se dicunt parare, docto opus sit interprete.
(14-16) 10
Scotista: relativo ao scotismo, sistema filosófico desenvolvido pelo franciscano beato Iohannes Duns Scotus
(ca. 1266-1308), teólogo e filósofo escocês. Diferencia-se do tomismo (de Thomas Aquinas ou São Tomás de
Aquino (1225-1274), dominicano italiano considerado o maior dos filósofos medievais) por reconhecer o
primado do amor e da vontade sobre o do conhecimento e do intelecto. O scotismo opõe-se abertamente ao
tomismo em muitas teses: defende o caráter prático da teologia, negando-lhe que possa conter uma verdade
teórica revelada; afirma a indemonstrabilidade de proposições filosóficas e teológicas como a dos atributos de
Deus e da imortalidade da alma; prega a univocidade do ser, na qual a essência do homem e aquela divina é da
mesma natureza, entre outras. 11
Tantum est a teneris optima discere. Pessime merentur ergo de pube sua ludimagistri, qui sic crasse crassos
docent, ut contempta phrasi utriusque linguae, ζ discant: ut simplicia uerba attendant, de coniunctis
parum laborent: sic uerbum ex uerbo exprimant, ut ex bonis Graecis Latina faciant non bona. Emittent hinc
nimirum ex officina sua uelut ex equo Troiano fabros ad aedificandam rempublicam et ecclesiam parum
dexteros, sophistas, barbaros, scotistas qui bonas artes ac omnem humanitatem odio habeant et persequantur.
(19-20)
Interpretatio Linguarum, o mais completo tratado renascentista sobre tradução
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II. Tradução licenciosa (Interpretationis ratio licentiosa)
O segundo método apresentado por Humphrey é o que se permite demasiadas licenças,
extremamente liberal, vai de encontro ao método anterior.
Como, pois, o primeiro apresenta-se dentro de uma medida, assim, o
segundo estende-se para fora dos limites com uma audácia totalmente
imódica: abundando em sinônimos, jogando com tropos não necessários,
brincando com as traduções, impudente nos vocábulos que devem ser
formados, rejeitando os próprios, mendigando alheios, afetando adornos e
ornato onde não é o lugar, como diz o ditado In lente unguentum12
,
apregoando o luxo e as delícias do discurso e ostentando ornamentos,
reivindica, com a sentença, a frugalidade e a simplicidade, para o leviano o
sério, para o cômico o trágico, para o frio o quente, o frio para o quente,
toda ela enfim imitando a condução e o fio do seu engenho, mas não
servindo ao autor, que tem um objetivo proposto, que olha atentamente.13
O tradutor licencioso acaba por não se diferenciar do próprio autor. Porém,
O autor, com efeito, é livre para dizer o que quiser, e em qualquer ordem, e
com quaisquer palavras agora aceitas; o tradutor tem uma meta prefixada
diante dos olhos, e não pode apartar-se para além dos termos estabelecidos
se quiser reproduzir fielmente o sentido do autor, se quiser realizar bem sua
tarefa. Aquele vai em busca dos seus sentidos, este, dos sentidos alheios
encontrados; àquele é dada a liberdade, a este acomete a necessidade, não de
refletir sobre quaisquer coisas com seus próprios meios, e, uma vez
refletidas, de explicar expondo-as, mas de buscar o achado (inuentio) do
autor – e de permanecer nele –, e também a elocução (elocutio) e os
ornamentos do discurso, e as palavras da língua para a qual traslada, os
quais devem exprimir a mesma coisa com a mesma forma e figura14
. Estes
sãos os limites, estes os marcos além dos quais o trabalho e a faculdade de
um tradutor não ultrapassam, e que devem ser contidos pelos que o autor
circunscreveu em sua composição.15
12
“Unguento na lentilha”, provérbio de origem grega indicando incongruência, irracionalidade na associação de
idéias. 13
Vt enim illa intra modum consistit, sic haec extra fines sane immodica procurrit audacia: Synonymis
luxurians, tropis ludens non necessariis, translationibus lasciuiens, in fingendis uocabulis inuerecunda, propria
repudians, aliena corrogans, affectans flosculos, et ornatum, ubi locus non est, nimirum quod aiunt, In lente
unguentum, lautitiam et delicias orationis uenditans, et pigmenta ostentans, cum sententia frugalitatem poscit et
simplicitatem, in leuibus grauis, in comicis tragica, in frigidis feruens, frigens in feruidis, tota denique ductum et
filum ingenii sui imitans, non autori seruiens, quem tanquam scopum propositum habet, quem intueatur. (23) 14
A teoria da linguagem pela qual Humphrey plasma sua concepção de tradução é a da retórica clássica, e por
ela se esclarece muito da nomenclatura utilizada nos textos da época. Cf. FURLAN, M. La retórica de la
traducción en el Renacimiento. Tesi doctoral, Universitat de Barcelona, 2002. Online:
http://www.tdx.cat/handle/10803/1717 15
Scriptor enim liber est, ut dicat quae uelit, et quo ordine, ac quibuscunque uerbis, modo probatis: interpres
praefixam habet ob oculos metam, et terminos extra quos euagari non potest, si autoris sensum reddere fideliter,
si officio suo satis uelit facere. Ille sensa sua, hic inuenta aliena sequitur: libertas illi datur, incumbit huic
necessitas, non ut quaecunque suo Marte excogitet, et excogitata dicendo explicet, sed ut ab autore petat
inuentionem, et in ea conquiescat, elocutionem quoque et ornamenta orationis, uerba uero ab ea lingua in quam
transfert, quae eandem rem eadem forma et figura declarent. Hi sunt limites, hi cancelli, extra quos munus et
facultas interpretis non egreditur: sed his contineri debet, quos autor sua scriptione circumdedit. (23-24)
Mauri Furlan
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E compara o tradutor a um pintor, como Horácio o fizera na Ars poetica – “ut pictura
poesis” (como a pintura é a poesia), v. 361. A intertextualidade produzida por Humphrey
perpassa todo seu tratado, abarcando autores de todas as épocas e de vários gêneros.
Que o tradutor nunca difira de seu original, nem acrescentando nem
subtraindo. Age torpemente o pintor que se aparta de seu modelo, se, levado
a desenhar o retrato de algum rei, erra nas pernas ou noutra parte do corpo
ou se se interessa por outra coisa que não pela representação proposta. Mais
torpe, ou, completamente torpe, quem, aplicando-se a traduzir o pensamento
de outrem, não o reproduzir, mas em vez disso nos impuser uma outra ideia
ou representação. Isso é outra coisa, como mostrar uma nuvem em vez de
Juno, uma sombra em vez do corpo, nada em vez de algo. Certamente
Apeles, artífice hábil, representaria, com suas cores vivas e reais, a mesma
coisa que propusera ser imitada e descrita. Nem em lugar de Agamenon
ofereceria Menelau, ou em lugar de Heitor, seu irmão Alexandre, em lugar
de Filipe, seu pai Antígono, nem em lugar de Aquiles, Pátroclo, seu
consímile em tudo, mas representaria o verdadeiro Aquiles, perfeito e não
obscuro, vívido e não ensombreado, verdadeiro e não simulado, inteiro e
não pela metade. Assim o tradutor, escultor e pintor do engenho alheio,
resgatará seu autor com todas suas partes e membros, e não o apresentará
amputado ou mutilado nem diminuído em alguma coisa.16
[...]
Sei também que as vestes e os costumes, assim como a língua de cada país e
povo são diversos, e que não é necessário levar a língua incorrompida e
elegante dos gregos e romanos ao uso vulgar e corrompido da plebe. Νόκνο
θαὶ ρώξα17
, „costume e região‟ [a cada região seu costume], dizem, assim, a
todas as línguas é próprio e vernáculo um certo idiomatismo.18
Sobre os tradutores e os dois modos de traduzir acima apresentados, conclui dizendo:
Destes, porém, deduz-se, por fim, que se encontram em dois vícios, ou
traduzem de forma demasiadamente tímida, ou demasiadamente túmida.
Àquele acuso de escrupuloso, a este de ousado, aquele porque ousa pouco,
16
ut interpres nunquam uariet ab archetypo, uel addendo uel adimendo. Turpe ducimus, si pictor deflectat ab
exemplari, si conductus ad Regis alicuius effigiem delineandam, uel in tibia erret uel in ulla parte corporis: aut
si alio respiciat quam ad propositam imaginem. Turpius sane imo turpissimum, si quis ad interpretandum
alicuius animum accendens, non expresserit, sed pro illo phantasma aliud aut idolum nobis obtruserit. Hoc quid
aliud est, quam pro Iunone nubem, pro corpore umbram, pro aliquo nihil exhibere. Certe Apelles peritus artifex,
ipsam rem quam ad imitandum et describendum proposuit, suis, id est, uiuis atque ueris depinget coloribus. Nec
enim pro Agamemnone Menelaum, aut pro Hectore dabit Alexandrum fratrem, pro Philippo Antigonum patrem,
nec pro Achille Patroclum licet per omnia consimilem, sed uerum Achillem graphice non obscure, uiuide non
adumbrate, uere non simulate, totum etiam non dimidiatum repraesentabit. Sic interpres ingenii alieni fictor et
pictor, suum autorem omnibus partibus ac membris absoluet, truncatum aut mutilum ulla ue in re diminutum
non proponet. (25-26) 17
PLUTARCHUS, De proverbiis Alexandrinorum [Sp.] (0007: 149), edição eletrônica de: Plutarchi de proverbiis
Alexandrinorum libellus ineditus. Ed. Crusius, O. Tübingen: Fues & Kostenbader, 1887. Fragmento 10, linha 1. 18
Scio quoque cuique genti, populoque ut uestes et mores, sic linguam esse diuersa
α α aiunt, mos et regio, sic omnibus linguis proprium quoddam est idioma atque
uernaculum. (27-28)
Interpretatio Linguarum, o mais completo tratado renascentista sobre tradução
19 MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016
este porque demais; naquele repreendo a rusticidade de linguagem, neste os
ornamentos alheios do discurso.19
III. Tradução intermédia (Interpretationis ratio media)
Capital do pensamento de Humphrey sobre tradução, o primeiro livro, De ratione
interpretandi, revela em seu índice uma visão geral da teoria de tradução do autor. Depois de
apresentar brevemente os dois modos de traduzir que são condenáveis por seus vícios, o
tratadista aborda o cerne de sua proposta, a media uia, como o melhor método de traduzir. Sua
explanação é bipartida em 1. De interpretatione (Da tradução), em que trata da tradução e
suas características, e 2. Officia interpretis (Tarefas do tradutor), quando versa sobre as
características do bom tradutor e os recursos para sua instrução e preparação.
1. De interpretatione (Da tradução) (30-115)
1.1. Plenitudo: plenitude (31-41)
1.2. Proprietas: propriedade (41-57)
1.3. Puritas: pureza (57-80)
1.4. Aptitudo: aptidão (81-115)
2. Officia interpretis (Tarefas do tradutor) (115-200)
2.1. Natura: natureza (116-125)
2.2. Doctrina: instrução (125-170)
2.3. Fides & religio: fé e religião (170-180)
2.4. Diligentia: diligência (180-200)
O terceiro modo de traduzir constitui a via intermédia (media uia), ou seja, participa
de ambos os modos apresentados acima,
da simplicidade mas da erudição, da elegância mas da fidelidade, a qual não
é assim elevada que ultrapasse a medida, nem assim baixa que seja sórdida,
mas frugal, moderada, comedida, que não ama a torpeza nem o fausto, mas
o refinamento apurado.20
1. De interpretatione (Da tradução)
São quatro as virtudes da boa tradução: plenitude, propriedade, pureza, aptidão.
1.1. Plenitudo: plenitude
– assunto & sentença, forma da sentença, ritmo –
Chamo de tradução plena aquela que reproduz o sentido íntegro, em que
uma sentença ecoa a partir da sentença correspondente e segue a mente do
autor em tudo e plenamente, na qual nada falta nem sobra. [...] Por isso, para
que tudo corresponda à perfeição, deve-se considerar que há três coisas a
19
Ex his autem illud tandem efficitur, haec duo in uitio esse, uel nimis timide uertere, uel nimis tumide: hoc
accuso ut superstitiosulum, illud ut audax, hoc quod parum, illud quod nimium audeat; in hoc barbariem, in illo
cabeça humana um pescoço equino], e a unir coisas discordantes que não
in Aristotele obseruaui, quod et ante demonstraui et probaui, dictionem Latinam a uernacula et Graeca toto
propemodum genere dissidere, periodorum septa transiliri, ex breuiore ambitu, longam et circumductam
conuersionem effici, tum in sententiarum initiis, tum alibi: quod quum sit Ciceronis proprium, cum omnibus fieri
commune non debet: maxime quum ipsi hoc quantum possunt repudient in sua lingua: et subtilis est Aristoteles
et argutus, propriis uerbis non translatitiis gaudens, non dilatans orationis pomoeria, sed quibusdam arctis
circumscriptus angustiis, breuitatem, non illum , seu amplitudinem affectans. Quare hanc proprietatem et
argutias qui Aristoteli detrahit, et nouas circumductiones aut metaphoras accersit de suo, no mihi germanus
explicator Aristotelis, sed nouus fere autor uidetur, quod ad eloquutionem quidem attinet. Non enim hodie
aureum illud flumen orationis, animaduertunt docti in Aristotele, non illam admirabilem copiam, quam in eo,
superiori aetate, uidit et praedicauit Cicero: illae uirtutes praeceptori potius Platoni, quam discipulo congruunt. Itaque quo illud conseruetur, hac diligenti animaduersione et distinctione adhibita, cum iudicio suum
est cuique proprium in translatione reddendum, et ex Cicerone sumenda sunt non quae Ciceronem redoleant,
sed autoris idiomata naturam, ingenium, dictionemque resipere natiuo suo sapore optime possint et aptissime.
(87-89) 69
In his omnibus, duo praecepta tenenda sunt: primum ut quantum fieri potest, eius linguae idiotismum
retineamus, ex qua transferimus. Sic etenim citius pertingent linguarum studiosi ad eam quam cupiunt,
cognitionem. Est enim magna idiomatum affinitas et cognatio, ut iam adductis exemplis declaratum est. tum
minus errabimus a uia, cum eandem ineamus, quam autor et monstrat, et prior intendit: alioqui nostro freti
ingenio, labi, falli, hallucinari et possumus facillime, et solemus saepissime. (99) 70
Alterum est, ut caute agamus, ne ita seruiamus illi linguae, ut nostrae qua utimur parum pensi habeamus, sed
danda omnino opera est, ut uerbis utamur aptis ad eius linguae consuetudinem, in quam conuertimus. Alio qui
multa uerteris ridicule, inepte, obscure, monstrose, quippe cum sit, omnium linguarum ut quaedam uicinitas et
similitudo, sic insigne et manifestum dissidium. (99-100) 71
Horácio, Ars poética, 1-2: Humano capiti ceruicem pictor equinam / iungere si uelit [Quisesse um pintor
juntar a uma cabeça humana um pescoço equino].
Interpretatio Linguarum, o mais completo tratado renascentista sobre tradução
35 MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016
permitem qualquer associação. Nem é, pois, único e mesmo o sistema de
todas as línguas, ou seja, não há uma paridade única com nenhuma, nem
entre as palavras isoladas, nem na junção das palavras.72
A clareza, companheira de todos.
Apresento agora a clareza (perspicuitas) seguidora de todas estas virtudes,
mais propícia no conhecimento, necessária no uso, para que seja levada,
como se um tipo de sangue, a todas as partes do discurso. Que é, pois, um
discurso se for de tal modo obscuro que não possa ser entendido, de tal
modo tenebroso que não possa ser apreendido? Aristóteles convoca a
ζαθήλεηα [clareza] e afirma sua necessidade e utilidade quando diz que não
deve ser proferido qualquer discurso, nem é cumprido seu dever, se não
significar clara e perspicuamente. Será, pois, o discurso do tradutor dilúcido
e aberto, se trouxer de novo ao espírito e guardar na memória aquelas coisas
por mim referidas sobre a propriedade, a pureza e a aptidão. São, pois, a
propriedade e a clareza companheiras inseparáveis; e nada mais dilúcido que
a pureza, ao contrário, nada mais obscuro que a barbárie. E claro é o que
quer que for apto, e é mais emaranhado, atrasa o movimento do leitor e
estorva a inteligência o que não é traduzido de modo conveniente e
conforme. Cícero, em De partitione oratoria, sobre a ilustre e dilúcida luz
do discurso, e Aristóteles, πεξὶ θαὶ πξὸ ηῶλ ὀκκάησλ πνηεῖλ73
[fazer
próximo e diante dos olhos], devem ser consultados a fim de entendermos
os preceitos da clareza, se, ao traduzir, tivermos querido trazer luz, e não
espalhar trevas, o que muitas vezes acontece quando o autor é não raramente
mais claro que o tradutor.74
Vícios a serem evitados: hermetismo, hipérbato, sínquese.
O tradutor deve se afastar dos vícios, se não quiser falar de modo bárbaro e
ambíguo e nem as sentenças sejam mutiladas, nem as palavras obscuras,
nem a ordem perturbada ou destroçada, nem o discurso transborde ou
vagueie, nem claudique no sentido. Se eles forem também espinhos ou
pedras no autor, se herméticos, uma expressão de certa forma mais arrastada
72
Huc tendit omnis oratio, ut ad hanc aptitudinem deueniatur, per opus esse, linguarum callere similitudinem et
dissimilitudinem: ut cognitis omnium uerborum, simplicium et continuatorum proprietatibus ac differentiis, apte
discamus et commode res interpretari, nec cum imperitis Pictoribus, Humano capiti ceruicem iungere equinam,
incipiamus, et absurda connectere, quae nullam societatem patiuntur. Nec enim una est et eadem ratio omnium
linguarum, imo unius est non una parilitas, nec in uerbis singulis, nec in uerborum coniunctione. (112) 73
Em Retórica, 1411b : ηῷ πξὸ ὀκκάησλ πνηεῖλ. 74
Pedissequam harum uirtutum omnium nunc addo perspicuitatem, cognitione facillimam, usu necessariam: ut
quae per omnes partes orationis, tanquam sanguis quidam, sit diffusa. Quid enim est oratio si ita sit obscurata,
ut non intelligi, ita tenebricosa, ut comprehendi nequeat? Aristotel. αφή α uocat, eiusque declarat
necessitatem et utilitatem, cum ait ne orationem qudem dici debere neque officium suum facere, si non clare et
perspicue significet. Erit autem sermo interpretis dilucidus et apertus, si quae de proprietate, puritate et
aptitudine sunt a me recitata, animo repetere uelit et memoria tenere. Sunt enim proprietas et perspicuitas
indiuiduae comites:et puritate nihil dilucidius, e contrario barbarie nihil obscurius. Et clarum est, quicquid est
aptum, et impeditius est, ac remoratur cursum legentis, impeditque intelligentiam, quod non apposite et
accommodate transfertur. Cic. de Illustri et Dilucido orationis lumine in Partitionib. Oratoriis, et Aristot.
α , in consilium adhibendi sunt: ut perspicuitatis praecepta intelligamus: si lucem
affere, non tenebras offundere, uoluerimus interpretando: quod saepe fit cum autor non raro sit explicatore
lucidior. (114-115)
Mauri Furlan
MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016 36
e mais longa, se uma elipse ou uma reticência, se uma sínquese75
animi, VI, 4], escreveu Sêneca. Assim, pois, deve-se considerar a habilidade
e o engenho, do mesmo modo que para outras coisas, também para esta
obter o máximo vigor; e, de certo, ninguém, a não ser um desprovido da luz
da natureza, negará o lustre e o brilho de todas as coisas mais belas dali
nascidos. De modo preclaro, Cícero disse [Oratio por Archia, VII]: “Mais
freqüentemente a habilidade sem educação contribuiu para a glória e a
virtude do que a educação sem habilidade”.80
Pode-se, pois, perceber muitos, tão hábeis e aptos por graça da boa mãe
natureza, que parecem não natos mas feitos por Deus. Por outro lado,
outros, de tal modo infelizes, deselegantes e inapropriados, como se, contra
Minerva81
e com as Graças iradas e as Musas pouco favoráveis, tivessem
nascido apenas por direito. Assim são os ἀπάιαηζηξνη [desvalidos] e os
totalmente incapazes, aos quais se dirigem aquelas palavras de Horácio82
:
nada fazem ou dizem estando contrária Minerva, isto é, na interpretação de
79
Natura igitur, ut prima est ordine et tempore, ita hic principem locum obtinere debet. Hanc Ethnici
admirabilem quandam uim esse putauerunt, siue Deum: ego Spiritus S. inflammationem atque afflatum ad res
gnauiter suscipiendas, et perficiendas fortiter homini inditum ac tributum esse credo, et Dei quoddam donum
eximium, quo fertur generoso animi impetu ad quae est a natura institutus, uel a Spiritu S. potius edoctus. (116-
117) 80
Vt Plato Vatibus furorem quemdam et rabiem attribuit, et Poetae sibi numen quoddam quo ad carmen
canendum rapiuntur, uendicant: sic consiteri debemus esse cuique suum diuinitus ἐ υ α ,
agitante incalescit et corripitur: nec eundem uni homini, sed ut orti sunt, dissimiles habent singuli naturas, ut
non omnia possint omnes, sed quaedam quisque, prout est a iusto dispensatore et administratore bonorum Deo
uocatus. Ad hanc interpretationem uero nemo se recipiat, nisi muneribus naturae ad id instructus. Male enim ut
Seneca scripsit, respondent coacta ingenia. Sic enim est existimandum naturam atque ingenium, ut ad caetera,
sic ad hoc uim afferre maximam: et profecto scintillas et igniculos omnium rerum pulcherrimarum hinc natos
nemo nisi naturae lumine uacuus diffitebitur. Praeclare Cicero ut omnia, Saepius ad laudem, inquit, et ad
uirtutem naturam sine doctrina, quam sine natura ualuisse doctrinam. (117-118) 81
Inuita Minerua, isto é, contra a natureza, o gênio, o talento, a aptidão. 82
Ars poética, 385: Tu nihil inuita dices faciesue Minerua [Tu nada farás ou dirás contra a vontade de Minerva].
Mauri Furlan
MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016 38
Cícero [De officiis, I, 110], “contrário e incompatível com a natureza”. É,
pois, necessário aqui o voto de Minerva para aprovar a lista e a ordem dos
bons tradutores. A estes os gregos chamaram de engenhosos e bem
nascidos, εὐθπεῖο [talentosos], nos quais infundiram-se as falculdades tanto
da eloqüência quanto de todas as outras coisas, como Isócrates deixou
escrito em Contra os Sofistas. A técnica pode ajudar, mas não dar; limar,
mas não inserir; corrigir e melhorar, mas não dar ou conceder a qualidade
própria da natureza.83
[...]
Na verdade, estas coisas não devem ser tratadas por muitos, pois envolve
toda a questão da natureza, não da técnica, e por isso nenhum preceito pode
ser aqui estabelecido, a não ser o de que a boa qualidade do engenho e da
natureza seja aperfeiçoada mediante uma preservação e um cultivo
diligente; e a formação, que pouco vale para aqueles outros, seja
continuamente estimulada e fortalecida, para que progrida. Contudo, porque
cada um se distingue do outro de uma forma, aplique nisso suas forças e
engenho, o quanto for conveniente. Assim como fazem os histriões, que
representam não as melhores histórias, mas as mais adequadas, escolham
aqueles os livros mais convenientes para os traduzirem.84
Existem, pois, alguns de uma natureza mais grave e recôndita, estes são
levados à tragédia; e outros impetuosos, como Homero ou Tucídides,
preferem cantar a guerra. Em outros, encontra-se a graça e a alegria, e mais
os deleitará o cômico da urbanidade. De outro lado, este lê e traduz com
prazer a história, aquele é atraído mais avidamente para a poética, outro é
impelido mais vivamente para os oradores; todos são seduzidos por uma
certa paixão inata sua e são chamados para onde a alma, a vontade e a
natureza melhor conduz. Embora todos possamos todas estas coisas, tanto o
cantar de modo poético, como o declamar de modo oratório, e o narrar de
modo histórico, contudo, preferimos lançar-nos sobre umas mais que outras,
como se dependesse de nossa vontade e arbítrio a escolha dos autores, e não
da obediência à solicitação, à deliberação, à ordem de outros. Na verdade,
como já disse, o procedimento sobre estas coisas não pode ser prescrito pela
técnica, e nem toca, pois, obviamente, na técnica. Deve-se rogar a Deus para
que não se recuse a conceder este talento, se faltar; se existir, que o
engrandeça; que suavize o engenho plúmbeo, aguce o obtuso, para que seja
permitido aos mais notáveis escritores publicarem os textos ocultos em pó e
deterioração, e darem à luz os emendados, a fim de que possam ser
83
Cernere enim licet multos, ita naturae benignae parentis beneficio habiles et aptos, ut non nati, sed ficti a Deo
esse uideantur. Contra alios adeo infelices, inelegantes et auersos, ut inuita Minerua, et iratis Gratiis, Musisque
parum propitiis genitos fuisse iures. Ita sunt α bh b H ,
Nihil eos facere aut dicere inuita Minerua, id est, Cicerone interpretante, repugnante et aduersante natura. Est
ergo necessarium hic Mineruae suffragium, ut in hoc album ordinemque bonorum interpretum asciscatur. Istos
b φυ , b f ,
caeterarum rerum omnium ingenerantur, ut scriptum reliquit in Orat. contra Sophistas Isocrates. Hanc naturae
bonitatem adiuuare potest Ars, non dare, limare non inserere, corrigere et meliorem facere, non donare aut
tribuere. (118-119) 84
Verum haec pluribus non sunt tractanda, est enim res haec tota naturae non artis, itaque nulla hic comparari
potest praeceptio: nisi ut ingenii ac naturae bonitas cultu diligenti et custodia excolatur: et disciplina, qui illis
aliis parum ualet, se assidue exerceat atque confirmet, ut proficiat. Quoniam autem alius in alio genere praestet,
ad id uires suas ingeniumque conferat, ad quod erit accommodus: ut histriones faciunt, qui fabulas agunt non
optimas sed aptissimas, sic illi libros sibi ad interpretandum deligant accommodatissimos. (123-124)
Interpretatio Linguarum, o mais completo tratado renascentista sobre tradução
39 MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016
abarcados pela ciência, expostos em discurso latino, e conservados na
memória.85
2.2. Doctrina: instrução
– conhecimento dos assuntos, polimento do discurso –
A seguinte é a formação, guia e aperfeiçoadora da natureza; o que Cícero, o
mais eloquente dos sábios, o mais sábio dos eloquentes, assim ensinou em
Oratio pro Archia poeta [7]: “E também sustento eu que, quando a uma
natureza superior e distinta se tenha unido uma formação metódica e
profunda, então costuma resultar um não-sei-quê luminoso e
extraordinário”.86
[...]
À formação, portanto, se dirige nosso discurso; é necessário, pois, que seja
experiente aquele que deseja ser um tradutor fiel e verdadeiro, o qual
buscamos. E não queremos, pois, um tradutor rude e ignaro, ou um homem
de recados que, ademais de vazio de palavras, do ruído e do alarido, não é
provido de nenhuma ciência. Frequentemente, pois, adentra um caminho
não sempre uniforme e plano, mas coberto com matagais e espinhos, no
qual encontram-se muitos obstáculos, e retardos e dificuldades, os quais o
artífice versado e douto facilmente desembaraça. Aqui, há de se buscar a
força da instrução e da inteligência, caso ocorra um mau encadeamento.
Mas assim como requeremos erudição, também excluímos desta classe e
posição a má educação. Existem, pois, alguns doutos mas não
suficientemente sãos e corretos, porém corrompidos e enviesados, de modo
que teria sido melhor se lhes tivesse cabido ser rudes e desprovidos antes
que como se cheios de dicas para artes inúteis e desnecessárias, ou
impregnados de opiniões perniciosas; dentre os quais sobressaíram os
donatistas, os arianos, Porfírio, Martion, os maniqueístas87
e outras pestes,
85
Sunt enim quidam natura seueriore et recondita, hi ad Tragica feruntur: et classicum alii animosi cum
Homero aut Thucydide malunt canere. In aliis lepos inest et hilaritas, illos magis comica delectabit urbanitas. Rursus hic legit et conuertit historica lubentius, ille ad poetica rapitur auidius, alter ad oratores impellitur
incitatius: omnes sua quadam innata cupiditate trahuntur et uocantur eo quo animus, quo uoluntas et natura
ducit maxime. Quanquam haec possumus omnes omnia, et poetice canere, et oratorie declamare, et historice
narrare, sed tamen ad alia magis quam ad alia deuolare malumus, si sponte nostra arbitrioque eligendi autores
essent, ac non aliorum impulsu uel consilio uel imperio parendum. Verum de istis, uti iam dixi, arte praecipi non
potest: nec enim uidelicet cadit in artem haec tractatio. Rogandus est Deus, ut is commoditatem hanc non
grauetur dare si desit, si adsit, augere: ac ingenium plumbeum emollire, obtusum exacuere, ut praestantissimos
scriptores puluere et situ obductos publicare liceat, et conuersos in lucem emittere, quo scientia comprehendi,
oratione Latina explicati, queant, et memoria custodiri. (124-125) 86
Proxima est Doctrina, naturae dux et perfectrix: quod pro Archia poeta sic docuit Cicero sapientum
eloquentissimus, eloquentium sapientissimus. Idem ego contendo, cum ad naturam eximiam atque inlustrem
accesserit ratio quaedam conformatioque doctrinae, tum illud nescio quid praeclarum ac singulare solere
exsistere. (125) 87
Sectários de doutrinas religiosas consideradas heréticas pela Igreja Católica.
- O donatismo deve seu nome a dois bispos com o mesmo nome, Donato de Casa Nigra, bispo da Numídia, e
Donato, o Grande, bispo de Cartago. Os donatistas defendiam que os sacramentos só eram válidos se quem os
ministrasse fosse digno. Na religião católica, porém, crê-se que os sacramentos valem por si, seja o ministrante
(geralmente um sacerdote) um indivíduo corrupto ou não. Os donatistas foram muito influenciados por São
Cipriano, Montano e Tertuliano, e muito combatidos por Santo Agostinho, bispo de Hipona.
- O arianismo, um pensamento sustentado pelos seguidores de Arius nos primórdios da Igreja, negava a
consubstancialidade entre Jesus e Deus. Jesus seria subordinado a Deus, seu filho, e não o próprio Deus, que é
único. Esta doutrina foi condenada pelo Concílio de Nicéia, em 325.
Mauri Furlan
MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016 40
que se esforçaram por atacar os ortodoxos, armados com ciências e línguas
tanto quanto com flechas e dardos; e, com todos os recursos de sua doutrina
e as armas e como que com os aríetes, investir em sacrifício contra a santa fé
dos católicos.88
2.2.1. Conhecimento da matéria, da teologia e da filosofia a serem traduzidas
Há, assim, o conhecimento das coisas, γλῶζηο, e o da elocução das palavras,
ιόγνο. Primeiramente, pois, é mister que se obtenha o conhecimento das
coisas, tanto das divinas como das humanas, a fim de que o tradutor possa
ser formado nas artes e no aprendizado de muitas e grandes coisas. O saber
e o discernimento das artes é, pois, a base e a sede das palavras; assim como
o conhecimento é a luz das coisas, da humanidade e dos escritos dos mais
bem instruídos. Por isso, assim como o tradutor silente, mudo, ineloquente
ao se expressar, costuma ser criticado com razão, porque, ali onde se privou
de recursos deveria manifestar as coisas obscuras e ocultas em sua natureza,
e exibi-las aos olhos e ouvidos dos homens; também não está isento de
repreensão aquele que, nu e desarmado, e sem experiência das coisas mais
úteis para o traduzir, aspira a uma função árdua e difícil. Assim, a ele deve
ser disposto o conhecimento.89
A principal, a primeira e a rainha de todos é a sabedoria de nossa religião,
que é chamada certamente com o mais digno nome de teologia. Ela é
concebida das fontes sagradas dos escritos divinos, de onde a água flui e
avança para a vida eterna. Mas também as explicações, ou esclarecimentos,
- Porfírio (ca.232-ca.304), filósofo neoplatônico e um dos mais importantes discípulos de Plotino, foi um
violento opositor do cristianismo e defensor do paganismo. Escreveu uma obra intitulada Contra os Cristãos, da
qual nos chegaram apenas fragmentos, em que atacava os apóstolos, os líderes de Igreja, o Antigo e o Novo
Testamento. Diversos tratados foram escritos contra ela, destacando-se os de Eusébio de Cesaréia, Sidônio
Apolinário, Metódio de Olímpo e Macarius Magnes. Foi também criticado por Santo Agostinho em famosa
polêmica com o paganismo, expressa na obra De ciuitate Dei contra paganos.
- Martion, herege que ensinava que as criações de Deus, como a carne, o pão, o vinho não valiam nada e eram
impuras.
- O maniqueísmo surge da filosofia ensinada pelo profeta persa Mani (séc. III), na qual um dualismo divide o
mundo entre o Bem e o Mal. A matéria seria intrinsecamente má, e o espírito, intrinsecamente bom. 88
Ad doctrinam ergo nostra se conferat oratio: peritus enim sit oportet qui interpres fidus et uerus esse cupit,
qualem quaerimus. Nec enim rudem et ignarum uolumus, aut baiulum interpretem qui praeter inanem uerborum
sonitum et strepitum, nulla sit ornatus scientia. Saepe enim uiam ingredietur non semper aequabilem aut
planam, sed uirgultis ac spinis obsitam, in qua impeditio multa, ac remorae atque difficultates incidunt, quas
gnarus et doctus artifex facile expediet. Hic ergo doctrinae et intelligentiae cuneus est quaerendus, si malus
forte nodus accidat. Sed ut eruditum requirimus, ita male institutum ab hoc ordine numeroque excludimus. Sunt
enim nonnuli docti sed non satis sane et recte, at uitiose et praepostere, ut praestiterit rudem et uacuum uenisse,
quam inutilibus et superuacaneis artibus quasi retro odore tinctum, aut perniciosis infectum opinionibus: quales
extiterunt Donatistae, Ariani, Porphyrius, Martion, Manichaei et caeterae pestes, qui armati disciplinis et
linguis tanquam spiculis aut iaculis, orthodoxos confodere nixi sunt: omnibusque doctrinae praesidiis et
machinis, quasique arietibus sacro sanctam Catholicorum fidem oppugnare (125-126) 89
, b Primum enim rerum cognitio tum
diuinarum tum humanarum summo est acquirenda opere, ut interpres ab artibus, et a multarum et magnarum
rerum disciplina instructus esse possit. Fundamentum enim et sedes uerborum, est haec artium prudentia et
elegantia: ut lumen rerum est, humanitatis et politiorum literarum notitia. Ergo ut elinguis et mutus ac in
dicendo infans interpres iure culpari solet, quod eo sit destitutus ornamento quo res abstrusas et sua natura
absconditas aperire deberet, et auribus oculisque hominum explicare: ita reprehensione non caret is, qui nudus
et inermis, rerumque utilissimarum peritia inanis ad interpretandi aspirat arduam difficilemque prouinciam. Est
ergo comparanda illi cognitio. (128)
Interpretatio Linguarum, o mais completo tratado renascentista sobre tradução
41 MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016
ou homilias, ou sermões, ou comentários, ou anotações, ou notas90
, ou outro
tipo de discussões piedosas devem ser cuidadosa e atentamente lidos pelo
nosso tradutor. Não são poucas as coisas neles contidas, as quais ele pode
verter para sua língua, mas que, com critério, no entanto, selecione as
adequadas. Muitas vezes, pois, o infeliz joio nasce no campo junto ao
melhor trigo.91
Com efeito, a filosofia e outras artes devem ser provadas e absorvidas; em
suma, em todos os casos, ele trata e traduz um assunto, seja na Política, seja
na Ética, seja na Matemática, seja na Lógica, seja também nos livros De re
rustica, ou De re nautica92
, nas demais artes [liberais] ou nas mecânicas, em
sua língua ou em uma estrangeira, e deve entendê-lo e conhecê-lo
perfeitamente; ignorá-lo é vergonhoso e inaceitável. Pois querer traduzir o
que desconheces é estultice e insanidade; e declarar que sabes o que ignoras
é como que mercadejar publicamente tua ignorância com uma declaração
própria.93
Além disso, visto que muitas vezes exemplos ocorrem em todos os escritos,
deve ser ampliado o conhecimento de toda a Antiguidade, deve a história ser
continuamente revisitada, devem ser conhecidos os cânones, os escritores,
os concílios da Igreja, o quanto for necessário, e os anais e as obras literárias
da Judéia, da Grécia, e da República romana. Tudo isso deve estar muito à
mão, porque será de grande proveito. Mas, principalmente porque importa
para a eloquência do tradutor, deve-se dar atenção sobretudo à palavra a ser
polida e aperfeiçoada. Na verdade, esta parte abarca ὁ ιόγνο [a expressão],
evidentemente, todos os elementos lógicos, os quais consideram o aparato, a
construção e a estrutura do discurso. Depois, as línguas. Mas primeiramente
tratarei de umas poucas artes, da Gramática, da Retórica e da Dialética. Sem
90
Homiliae, Commentarii, Annotationes e Scholia são referências a gêneros de textos que tratavam de explicar,
comentar, estudar, assuntos da religião e dos escritos sagrados. 91
Princeps et prima ac regina omnium est religionis nostrae sapientia: quae Theologia nomine certe dignissimo
appellatur. Hauritur illa e sacris fontibus diuinarum literarum unde aqua fluit et exilit in uitam aeternam. Sed et
Aparentemente, Humphrey, ao aludir à Política, Ética, Matemática e Lógica, estaria referindo-se ao
pensamento de Aristóteles e sua obra, no entanto, Aristóteles não tratou da matemática. Por outro lado,
Humphrey também poderia estar ampliando o leque de assuntos com os quais o tradutor se depara, seja na
filosofia, seja em outras artes. Na época de Aristóteles, o saber por antonomásia constituía-se pelos quatro
mathemata [conhecimentos]: aritmética, geometria, astronomia e música; são essas quatro artes que comporão o
quadriuium, que, junto ao triuium (gramática, retórica, dialética), constituem a rede de „artes liberais‟, próprias
do sistema educacional durante a Idade Média. Às artes liberales opunham-se as artes mechanicae, que são as
atividades manuais. De re rustica [Sobre questões rurais], de Columela; De re nautica [Sobre questões náuticas]
pode ser a obra de Lilius Gregorius Giraldus, publicada em 1540. 93
Quinimo philosophia et aliae artes sunt uel libandae uel imbibendae etiam: in summa quam rem cunque
tractat et intepretatur, siue in Politicis, siue in Ehticis, siue in Mathematicis, siue in Logicis, siue in libris etiam,
De re rustica, siue re nautica, r ’ h , b
ignorare deforme est et dedecet. Nam quod nescis, uelle interpretari stultitiae est insaniae: et profiteri te scire
quod ignoras, est inscitiam tuam domestico praeconio quasi publice uenditare. (129)
Mauri Furlan
MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016 42
dúvida, estas são as artes primeiras e menores94
, contudo, elas servem ao
máximo o interesse do tradutor, acima das outras.95
2.2.2. Submetem-se ao discurso: Gramática, Retórica, Dialética, Línguas
A gramática, na forma como foi concebida e compreendida, é considerada a
mais baixa, e o é completamente, porque seu fundamento está colocado na
parte mais baixa; e se tentares construir e rematar outras [artes], sem como
que sujeitá-las à base gramatical, nunca ascenderás ao cume, mas ruirá e
sucumbirá, contudo, toda a esplêndida e ilustre invenção. Nem os fastígios
subsistem sem fundamentos, nem se atinge as alturas sem as profundezas.
“De todas as grandes artes, assim como das árvores, deleita-nos sua altura,
não da mesma forma suas raízes e troncos; mas ela não pode existir sem
eles” [Orator, XLIII, 147], deste modo, expressou-se muito elegantemente o
Orador ciceroniano. Por causa das proporções e dos sentidos das palavras,
ou seja, da „etimologia‟96
, e do mesmo modo que Cícero traduziu ad uerbum
os étimos, sejam, pois, os preceitos e as normas dos gramáticos inteiramente
esmiuçados na mente e guardados na memória. Com efeito, uma multidão
de doutos, porque negligenciaram tais regras e minúcias, que são os
rudimentos da infância, agora que são velhos e educadores de outros falam
mal o latim, e falham muitas vezes em assuntos mais sérios, não sem
zombaria, vituperação e erro de muitos.97
A retórica, hoje, certamente não é mais incômoda, mas está entre os hábitos
dos homens. Deve ser despertada e restituída à sua dignidade. Ela ensina os
tropos de palavras e de linguagem, mostra as partes do discurso e sua
ordem, expõe formas e figuras de pensamento, dispõe preceitos para ornar,
deleitar, ampliar, delineia ornamentos, ideias e modos de falar; sem isto, os
autores não podem ser entendidos nem apresentados, muito menos
traduzidos de modo que realmente alcances o sentido, que descrevas com
94
O chamado triuium (gramática, retórica, dialética) constituía o grupo de artes „primeiras‟ e „menores‟ porque
era considerado a base das artes „maiores‟, ou quadriuium (aritmética, geometria, astrologia e música). 95
Praeterea quoniam saepe incidunt in omnibus scriptis exempla, euoluenda est omnis antiquitatis memoria,
peruolutandae historiae, cognoscendi Canones, scriptores, concilia Ecclesiae, quantum satis erit, annalesque ac
monumenta Iudaeae, Graeciae, Romanaeque Reipublicae. Esse illa maxime ad manum debent, quae maximo
erunt usui. Sed enim quia interest cumprimis interpretis eloqui: orationi expoliendae et excolendae danda est
opera potissimum. Continet uero haec pars ὁ , , m et
fabricam spectant atque structuram. Dein linguas: Sed de artibus primum aggrediar agere, et paucis,
Grammatica, Rhetorica, Dialectica. Nimirum hae sunt primae artes et minimae, tamen interpreti prae caeteris
maxime inseruiunt. (129-130) 96
A etymologia, estudo das palavras enquanto elementos isolados, era considerada, desde a Antiguidade, uma
das matérias da gramática, e buscava a „verdade original‟ ao querer mostrar a coincidência originária entre forma
e significado das palavras. 97
Grammatica cum tenetur et percepta est, uidetur infima: et sane est, quia infimo loco fundamentum
substernitur: at si reliqua extruere coneris et exaedificare, non subiecta tanquam basi Grammatica, ad culmen
nunquam ascendes, sed concidet ac corruet tota quantumuis splendida et illustris machina. Nec enim constant
sine fundamentis fastigia, nec sine imis ad summa peruenitur. Omnium artium magnarum, sicut arborum
altitudo nos delectat, radices stirpesque non item: sed esse illa sine his non potest: quemadmodum Ciceronianus
Orator dixit pereleganter. Quare rationes et interpretationes uerborum, etymologiae scilicet, et, ut ad uerbum
transtulit Cic. ueriloquia, tum praeceptiones ac normae Grammaticorum omnimo animo percursae, ac retentae
sint memoria. Etenim doctorum uulgus, cum has regulas ac minutias neglexerit, quae primae sunt rudimenta
pueritiae, male Latine loquuntur iam senes et doctores aliorum, offenduntque saepenumero in grauioribus non
sine et irrisione et uituperatione et errore multorum. (130-131)
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43 MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016
esmero e habilidade sua força e aparência nativa por seu próprio valor. Com
que nome, pois, chamaremos a estes vituperadores da eloquência, que
tratam levianamente as excelsas dádivas de Deus, ou as louvam
maldosamente, ou as difamam abominavelmente? Por certo, são chamados
por São Paulo [Rm, 1:30] de ζενζηπγεῖο [inimigos de Deus], aqueles que
atacam a Deus ou seus dons divinos; algo que fazem alguns homens
tristemente ociosos, os quais, como foram dura e desgraçadamente nutridos
com alimento sofístico, invejam os lautíssimos manjares dos outros; porcos
cobertos de lama, βαιαλεθάγνη [comedores de bolotas98
], saciados e
acostumados com a fumaça, nada lhes cheira bem a não ser o fedorento e o
fuliginoso.99
E do mesmo modo, avalio a dialética, que, com Platão como testemunha,
eleva dos homens os olhos enterrados no lodo, pela qual os pregadores se
tornam δηδαθηηθνὶ [aptos para ensinar], o que Paulo [1Tm, 3:2] cobra de um
epíscopo, e aprendem a νξζνηνκεῖλ [ensinar bem], separar, dividir,
distinguir corretamente a palavra de Deus. Não engana, pois, os homens
com uma probabilidade capciosa, não arma ciladas esta verdadeira doutrina
do dissertar, não impera, como muitos imaginam, somente nas discussões,
na casa e nas reuniões de sofistas e de debates, não consiste numa questão
ou jogo de palavras, mas esclarece teses e conjecturas dos livros divinos,
separa os gêneros em espécies, discerne o verdadeiro do falso, distingue as
ambiguidades; enfim, no que faz por algo, e no que concerne mais
propriamente ao nosso objeto, aporta-lhe a luz das artes; para que então o
tradutor, e se se quiser o autor, veja, e, de alguma maneira, prove,
compreenda, e de certo modo proponha, argumente, conclua, examine
claramente e julgue. Se isto, pois, não for observado, no modo como
anteriormente já foi demonstrado, o tradutor se equivocará no sentido ou na
colocação das palavras e na ordem dos enunciados, e não dirá as mesmas
coisas que aquele, ou não as reconhecerá nem apresentará na mesma ordem.
Uma vez que, assim, esta faculdade confere não só sagacidade para discutir
e sutileza para arbitrar, mas também acrescenta agudeza ao método de
ensinar e de avaliar, de modo algum podemos desprezar tamanha mestra de
instrução, regra de julgamento, guia de caminho, árbitra de controvérsias,
juíza de causas, luz nas trevas mais espessas. Abracemos, pois, aquela
eloquência contraída e comprimida, e esta dialética propagada, para, com
razão, tomarmos desta a força e como que o gume do argumento, daquela,
98
Ainda hoje, em algumas regiões da Europa, os porcos são alimentados com bolotas, os frutos do carvalho, da
azinheira e do sobreiro. 99
Rhetorica hodie iacet non quidem suo uitio, sed moribus hominum: Excitanda est et suae dignitati restituenda. Tropos uerborum et linguarum docet, partes orationum et dispositionem monstrat, colores et figuras
sententiarum aperit, ornandi, delectandi, amplificandi praecepta tradit, lumina, ideas et formas eloquendi
deliniat: sine his non intelligi autores nec exponi possunt, nedum conuerti, ut sensum attingas uere, ut graphice
et affabre uim natiuamque speciem cuiusque pro dignitate describas. Quo ergo nomine appellabimus istos
uituperatores eloquentiae, qui excellentia Dei munera aut leuiter curant, aut maligne laudant, aut odiose
lacerant? υ f
homines male feriati, qui cum ipsi duriter ac male pasti Sophistico pabulo fuerint, lautissimis aliorum deliciis
, βα α φ , f mo satiati et adsueti, quibus nihil bene olet nisi olidum et
fuliginosum. (131-132)
Mauri Furlan
MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016 44
os ornamentos e embelezamentos do discurso aplicados não tanto para
persuadir quanto para ornar.100
Das línguas clássicas:
Passarei às línguas, as quais é necessário sobretudo que o tradutor saiba e
domine. Mediante as línguas, pois, ele realiza seu trabalho, e o que realiza
mediante as línguas é dado por certo, mas, se tiver carências nas línguas,
também terá carências o título e o nome do tradutor. As artes tornam-no
hábil, as línguas, elegante na expressão; aquelas encherão o seu espírito com
vasto conhecimento e com experiências, e o seu depósito com colheitas;
estas lapidarão sua linguagem; aquelas obrarão para que não seja
considerado inábil, superficial, inexperiente, estas, para que, ao se expressar,
não seja tomado por ressequido, seco, estéril. De todas elas, deve-se tomar a
abundância e os recursos do falar.101
A língua latina, uma vez que se tornou comum na boca e na conversação de
todos os povos em toda a parte, e é declarada própria dos cristãos, e faz-se
tradução de todas as línguas para ela, não há como não conhecê-la, mas
convém estar cientíssimo dela, cujo conhecimento edificou de muitos
modos pelo escrever, pregar, ensinar, em livros, sermões, escolas, na igreja
cristã. Seu desconhecimento e imperícia apresenta e oferece diariamente
ocasiões de erro a muitos. Daí que certos judeus temerários, não tendo
nenhum ou muito pouco conhecimento desta língua, põem-se, contudo, a
traduzir da língua hebraica, os quais podem até ser grandes rabinos e os
mais doutos na língua pátria, mas não sendo bons latinos é inevitável que
realizem mal e perfidamente seu ofício, o que também pode ser traduzido
com erros por alguns tradutores cristãos, com escassez da opulência latina
pelos trabalhadores, e um hebraísmo e um grecismo de modo pouco latino
pelos trasladadores. E acredito mesmo que muitas coisas dos antigos gregos,
que falaram grego de modo muito elegante, foram traduzidas por alguns que
100
Eodemque modo de Dialectica iudico, quae Platone teste, oculos hominum coeno defossos attollit, qua
f α , quod in episcopo exigit Paulus: et dis ,
secare, diuidere, distinguere. Non enim captiosa probalitate fallit homines, non struit insidias uera haec
disserendi doctrina, non in palaestris solum et umbra et phrontisteriis sophistarum et disputantium, ut multi
somniant, dominatur, non in concertatione aut captatione uerborum consistit: sed theses et conciones diuinorum
codicum explicat, genera in species dispertit, uera a falsis diiudicat, distinguit ambigua: denique, quod ad rem
facit, propiusque ad institutum nostrum pertinet, lucem artium affert: ut inde interpres et quid uelit scriptor,
uideat, et quo modo probet, intelligat, et quo ordine proponit, argumentatur, concludit, clare perspiciat et
iudicet. Haec enim nisi obseruentur, ut ante quoque demonstratum est, aut in sensu aberrabit interpres, aut in
collocatione uerborum et serie enunciationum: ut non eadem dicat quae ille, aut non eodem probet et proponat
ordine. Cum ergo non ad disputandi solum prudentiam subtilitatemque disceptandi conferat haec facultas, sed
modo possumus. Amplectamur potius et hanc astrictam compressamque eloquentiam, et illam dilatatam
dialecticam: ut ex hac uim et mucronem quasi argumenti, ex illa pigmenta et insignia orationis adiecta non tam
confirmandi quam ornandi causa addita deprehendamus, ut nihil nos praeteriisse uideatur. (132-134) 101
Veniam ad linguas, quibus ualere et excellere potissimum interpretem necesse est. Linguis enim suum
officium facit, linguis quod facit acceptum fert, linguis si careret, interpretis quoque titulo careret et nomine. Artes illum prudentem reddent, linguae disertum: illae pectus multiplici cognitione et rebus tanquam horreum
messibus complebunt: hae linguam polient: efficient illae ne imprudens, leuis, imperitus dicatur, hae ne in
dicendo exuccus, siccus, sterilis habeatur: ex quibus omnis sylua atque copia eloquendi ducenda est. (134)
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não tinham aprendido muito bem nem a língua grega nem a latina, como se
vê em Crisóstomo e Orígenes e em outros.102
[...]
A língua grega já não pode ser ignorada sem vergonha, pois todas as artes, e
quase todos os livros que devem ser traduzidos, sejam aqueles profanos,
sejam os sacros, encerram-na, e não ouse chamar-se de tradutor, teólogo ou
estudioso o inexperiente ou ignorante da língua grega, cuja riquíssima