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PROGRAMA DE PSGRADUAO EM DIREITO MESTRADO REA DE CONCENTRAO EM
DIREITOS SOCIAIS E POLTICAS PBLICAS
LINHA DE PESQUISA: CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORNEO
Andria Haas
O PRINCPIO DA INTERPRETAO CONFORME CONSTITUIO COMO MECANISMO
HERMENUTICO DE CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE E
DE REALIZAO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Santa Cruz do Sul, maio de 2007
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Andria Haas
O PRINCPIO DA INTERPRETAO CONFORME CONSTITUIO COMO MECANISMO
HERMENUTICO DE CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE E
DE REALIZAO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao Stricto Sensu
Mestrado em Direito, rea de Concentrao em Direitos Sociais e
Polticas Pblica, Linha de Pesquisa: Constitucionalismo
Contemporneo, da Universidade de Santa Cruz do Sul, como requisito
parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Direito.
Orientadora: Prof.a Dr.a Mnia Clarissa Hennig Leal
Santa Cruz do Sul, maio de 2007
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Andria Haas
O PRINCPIO DA INTERPRETAO CONFORME CONSTITUIO COMO MECANISMO
HERMENUTICO DE CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE E
DE REALIZAO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Esta Dissertao foi submetida ao Programa de Ps-Graduao Stricto
Sensu Mestrado em Direito, rea de Concentrao em Direitos Sociais e
Polticas Pblica, Linha de Pesquisa: Constitucionalismo
Contemporneo, da Universidade de Santa Cruz do Sul, como requisito
parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Direito.
Dr.a Mnia Clarissa Hennig Leal
Professora Orientadora
Dr. Paulo Mrcio Cruz
Dr. Itiber Castellano Rodrigues
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Aos Operadores Jurdicos que fazem da interpretao um instrumento
para a constitucionalidade.
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AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, Deus e, em seguida, ao meus pais, Orlando e
Helena, pela vida, pelo amor imensurvel, pelos sacrifcios e,
principalmente, pelos incentivos durante toda a minha existncia. No
seria diferente neste trabalho.
Ao meu irmo, Renan, e aos demais familiares pelo carinho que me
proporcionaram e pela torcida de sempre.
Ao meu companheiro e grande amigo Mrcio, pela compreenso e
estmulo durante a perpetuao de mais um trabalho de concluso. Se no
fosse o teu estmulo e a tua insistncia, talvez no teria concludo
essa pesquisa.
Universidade de Santa Cruz do Sul UNISC pelas horas de ausncia
na Coordenao do Campus de Venncio Aires.
minha orientadora, Prof.a Dr.a Mnia Clarissa Hennig Leal, pessoa
admirvel pelo conhecimento adquirido na tenra idade, professora
pacenciosa na espera de algum resultado e sensvel aos compromissos
da sua orientanda. Obrigada pelo apoio e, acima de tudo, por ter
acreditado que o presente estudo ainda poderia ser
desenvolvido.
minha querida amiga, Prof.a Ms. Rosana Jardim Candeloro, que,
com um olhar crtico e carinhoso, sempre esteve presente em minha
trajetria acadmica, fazendo da pesquisa cientfica um verdadeiro
espao de interlocuo e aprendizado permanentes.
s colegas do G6: R, Dani Richter, Dani Salla, Claudinha e
Glucia, se no fosse o apoio incondicional de vocs, as divididas de
sempre e a torcida, tudo seria mais difcil. AMIGAS como vocs
merecem ser guardadas do lado esquerdo do peito, pois, por maior
que seja distncia, jamais vou esquec-las.
E, por ltimo, aos amigos para os quais fui ausente.
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6
Sem aprofundar a investigao acerca da funo dos princpios nos
ordenamentos jurdicos no possvel compreender a natureza, a essncia
e os rumos do constitucionalismo contemporneo. Paulo Bonavides.
A interpretao a sombra que segue o corpo. Da mesma maneira que
nenhum corpo pode livrar-se da sua sombra, o Direito tampouco pode
livrar-se da interpretao. Sem interpretao no h direito, no h
direito que no exija ser interpretado.
ROYO, Javier Perez. Curso de Direito Constitucional. Madrid,
1994. pp.97-98
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7
RESUMO
A pesquisa que ora se apresenta visa, a partir dos pressupostos
democrticos que informam a Constituio Brasileira de 1988, a
analisar o papel, as possibilidades e os limites de aplicao do
princpio da interpretao conforme Constituio no contexto do direito
brasileiro e sua aplicao e operacionalizao por parte da jurisdio
constitucional ptria, mais especificamente por parte do Supremo
Tribunal Federal. O presente estudo tem como objetivo principal
investigar a doutrina e as decises jurisprudenciais, notadamente do
Supremo Tribunal Federal, no que diz respeito aplicao dos
instrumentos interpretativos, mais especificamente, do princpio da
interpretao conforme Constituio, enquanto instrumento de controle
da constitucionalidade e de realizao dos direitos fundamentais. O
mtodo de abordagem adotado no desenvolvimento do presente trabalho
o dedutivo, baseado na utilizao de documentao indireta, por meio do
enfrentamento terico das categorias consideradas fundamentais do
trabalho, quais sejam: a origem da Constituio, a transio da
hermenutica clssica hermenutica baseada em princpios
constitucionais e a importncia dada ao princpio da interpretao
conforme Constituio como princpio interpretativo da Lei Maior e
garantidor da constitucionalidade das leis infraconstitucionais,
para, ao final, analisar pontualmente o problema da investigao, a
saber: como o Supremo Tribunal Federal Brasileiro, voltado para a
supremacia da Constituio, operacionaliza a questo da interpretao
conforme Constituio, enquanto mecanismo de controle da
constitucionalidade e de realizao dos direitos fundamentais. Neste
sentido, a hiptese desenvolvida a de que o Supremo Tribunal Federal
no tem utilizado, de forma adequada, esse mecanismo hermenutico de
realizao da supremacia da Constituio, uma vez que, por vezes, acaba
por confundi-lo com outros institutos e at mesmo
desconsidera/sonega sua aplicao quando se tem em foco a questo dos
direitos fundamentais. O tema proposto coaduna-se, ainda, com a
linha de pesquisa do Constitucionalismo Contemporneo, visto que a
sua abordagem est em conexo com a jurisdio constitucional
democrtica vivenciada pela Constituio de 1988 e sua atual relao
proteo dos direitos humanos fundamentais, sem falar que se
constitui em ponto de fundamental interesse para a cincia jurdica
contempornea, visto a sua relevncia, insuficincia de abordagem
e
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8
contradio de conceituao e aplicao no ordenamento jurdico
brasileiro.
Palavras-chave: Hermenutica. Princpio da interpretao conforme
Constituio. Controle de constitucionalidade. Supremacia da
Constituio. Direitos humanos fundamentais.
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9
ABSTRACT
This research aims, based on the democratic principles that
guide the 1998 Brazilian Constitution, to analyze the role, the
possibilities and the application limits of the interpretation
principle according to the Constitution in the context of Brazilian
Law and its application and operationalization by the Country's
constitutional jurisdiction, especially the Federal Superior Court.
The main objective of this study is to investigate the doctrine and
the jurisprudential decisions of the Federal Superior Court,
regarding the application of the interpretative instruments,
specifically the interpretation principle according to the
Constitution, as a controlling instrument of the constitutionality
and the accomplishment of the fundamental rights. The methodology
used here was the deductive method, based on the use of indirect
documentation, through the theoretical confronting of the
cathegories considered fundamental to this study: origin of the
Constitution, transition from the classic hermeneutics to the
hermeneutics based on constitutional principles and importance
given to the interpretation principle according to the Constitution
as an interpretative principle of the Major Law and a garantee of
the constitutionality of the infraconstitutional laws, to, finally,
analyze the research problem: how the Brazilian Federal Superior
Court, guided to the Constitution supremacy, deals with the
interpretation matter according to the Constitution, as a
controlling tool of the constitutionality and the accomplishment of
the fundamental rights. Our hypothesys is that the Federal Superior
Court has not been using accordingly this hermeneutics mechanism of
the Constitution superiority because sometimes it is confused with
other instituts and its application is desconsidered when the
fundamental rights are being focused. The subject here proposed
relates also to the research area of the contemporary
constitutionalism because its approach is connected with the
democratic constitutional jurisdiction of the 1988 Constitution and
its current relation with the fundamental human rights protection
and also because it is a matter of interest of the contemporary
juridic law considering its relevance, insuficiency of approach and
contradiction between concepts and application in the Brazilian
Law.
Key-words: Hermeneutics. Interpretation principle according to
the Constitution. Constitutionality control. Constitution
supremacy. Fundamental human rights.
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10
SUMRIO
INTRODUO.....................................................................................................
13
1. A EVOLUO HISTRICA DO ESTADO E DO CONSTITUCIONALISMO: UMA
BREVE PERSPECTIVA DO ESTADO LIBERAL AO ESTADO DEMOCRTICO DE
DIREITO.............................................................................
1.1 Estado, Poder e Legitimao no transcurso histrico
................................ 1.2 A Constituio como decorrncia
do Estado: do Estado de Direito Liberal ao Estado de Direito
Democrtico.....................................................................
1.3 O Estado Democrtico de Direito e o papel da hermenutica frente
Jurisdio Constitucional
..................................................................................
2 HERMENUTICA CONSTITUCIONAL: DOS MTODOS CLSSICOS DE INTERPRETAO
AOS PRINCPIOS DE INTERPRETAO DA JURISDIO CONSTITUCIONAL
CONTEMPORNEA ................................ 2.1 Hermenutica
versus interpretao constitucional: diferenas e conceituaes do
filosfico ao jurdico
............................................................. 2.2
Mtodos e conceitos clssicos aplicados interpretao
constitucional...... 2.3 A nova hermenutica constitucional baseada
em regras e princpios e na superao dos mtodos clssicos de
interpretao ......................................... 2.3.1 A
distino entre regras e
princpios........................................................
2.3.2 Princpios constitucionais
materiais..........................................................
2.3.3 Princpios instrumentais de interpretao constitucional
......................... 2.3.3.1 Princpio da Supremacia da
Constituio.............................................. 2.3.3.2
Princpio da Presuno de constitucionalidade das leis e dos atos do
Poder
Pblico....................................................................................................
2.3.3.3 Princpio da unidade da
Constituio....................................................
2.3.3.4 O princpio da razoabilidade e da
proporcionalidade............................ 2.3.3.5 O princpio da
efetividade......................................................................
2.3.3.6 Princpio da Interpretao conforme
Constituio..............................
16 16
29
41
55
55 66
77
77
86 88 89
93 96 100 103 105
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11
2.4 A interpretao contempornea baseada na hermenutica de
princpios e na sociedade aberta dos intrpretes da
Constituio..........................................
3 A INTERPRETAO CONFORME CONSTITUIO COMO PRINCPIO GARANTIDOR DA
SUPREMACIA DA CONSTITUIO E DOS DIREITOS HUMANOS
FUNDAMENTAIS.............................................................................
3.1 A interpretao conforme Constituio: origem, conceitos,
caractersticas e
fundamentos......................................................................................................
3.2 Interpretao conforme Constituio versus declarao de
nulidade/inconstitucionalidade parcial sem reduo de texto e o
posicionamento do Supremo Tribunal Federal frente ao controle de
constitucionalidade...............................................................................................
3.2.1 O princpio da interpretao conforme Constituio como mecanismo
de Controle de Constitucionalidade: difuso X concentrado
................................ 3.3 Limites e possibilidades da
Interpretao conforme Constituio frente aos direitos humanos
fundamentais uma viso a ser alada junto s decises do Supremo
Tribunal
Federal..............................................................
3.3.1 Como garantir os direitos humanos fundamentais por meio da
interpretao conforme
Constituio?..............................................................
107
117
117
145
157
166
169
CONCLUSO....................................................................................................
REFERNCIAS.................................................................................................
ANEXOS
...........................................................................................................
ANEXO A Supremo Tribunal Federal. Mandado de Injuno 20-4 DF,
julgado em 19/05/1994. Ministro Celso de Mello
(relator)................................... ANEXO B Supremo
Tribunal Federal. Ao Declaratria de Inconstitucionalidade 2596 PR,
julgada em 19/03/2003. Ministro Seplveda Pertence
(relator).................................................................................................
ANEXO C Supremo Tribunal Federal. Ao Direta de
Inconstitucionalidade 3046-9 SP, julgado em 15/04/2004. Ministro
Seplveda Pertence (relator)........ ANEXO D Supremo Tribunal
Federal. Agravo Regimental em Agravo de
182
188
202
203
204
205
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Instrumento 606805 SP, julgado em 28/11/2006. Ministro Eros Grau
(relator)... ANEXO E Supremo Tribunal Federal. Representao 1417 DF,
julgado em 09/12/1987. Ministro Moreira Alves
(relator)........................................................
ANEXO F Lei n.o 9.868, de 10 de novembro de 1999, que dispe sobre o
processo e julgamento da ao direta de inconstitucionalidade e da ao
declaratria de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal
Federal........... ANEXO G Supremo Tribunal Federal. Medida
Cautelar na Ao Direta de Inconstitucionalidade 1620 DF, julgado em
19/06/1997. Ministro Seplveda Pertence
(relator).................................................................................................
ANEXO H Supremo Tribunal Federal. Ao Direta de
Inconstitucionalidade 1586 PA, julgado em 27/02/2003. Ministro
Sydney Sanches (relator)................. ANEXO I Supremo Tribunal
Federal. Medida Cautelar na Ao Direta de Inconstitucionalidade
491-3 AM, julgado em 25/10/1991. Ministro Moreira Alves
(relator).......................................................................................................
ANEXO J Supremo Tribunal Federal. Ao Direta de
Inconstitucionalidade 2816 SC, julgada em 09/03/2005. Ministro Eros
Grau (relator)........................... ANEXO L Supremo Tribunal
Federal. Agravo Regimental no Recurso Extraordinrio 399 248 - DF,
julgada em 25/05/2004. Ministro Carlos Britto
(relator)................................................................................................................
ANEXO M Supremo Tribunal Federal. Reclamao 2143 SP, julgada em
12/03/2003. Ministro Celso de Mello
(relator)......................................................
ANEXO N Supremo Tribunal Federal. Ao Direta de
Inconstitucionalidade 3324 DF, julgada em 16/12/2004. Ministro
Marco Aurlio Mello (relator)............ ANEXO O Lei 9.536, de 11
de dezembro de 1997 - Regulamenta o pargrafo nico do art. 49 da Lei
n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (transferncia de alunos de
curso superior)
....................................................................................
ANEXO P Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996 Estabelece as
diretrizes e bases da educao nacional.
..............................................................................
206
207
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211
212
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214
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216
217
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INTRODUO
No Estado Democrtico de Direito, a Constituio acaba por figurar
como a lei mais importante do ordenamento jurdico, por ser
resultante da vontade da nao, trazendo as aspiraes e os valores
mais significativos da vida em comum. Conseqentemente, essa mesma
Constituio, por meio de regras e de princpios, acaba por ser
considerada em uma perspectiva viva, como uma construo dos
indivduos nela inseridos, aspecto que se realiza, notadamente, pela
via interpretativa.
inegvel, porm, a necessidade de se buscarem, dentro deste
contexto, em sede de controle de constitucionalidade, alternativas
mais eficazes de interpretao constitucional e tambm mecanismos que
permitam a adequao e submisso das normas infraconstitucionais ao
texto da Lei Fundamental, notadamente em face do efeito de irradiao
que identifica a Constituio e sua vinculao aos direitos
fundamentais na atualidade.
Conseqentemente, entende-se que a finalidade precpua da
hermenutica jurdica, um dos pilares sobre os quais se assenta o
Estado Democrtico de Direito, consiste em fornecer meios adequados
de interpretao e de busca de sentidos para as leis e para o
direito, harmonizando-os com os preceitos e contedos
constitucionais estabelecidos. , por sua vez, por meio de
mecanismos indicados por uma nova hermenutica constitucional,
baseada notadamente em princpios, principalmente no princpio da
interpretao conforme Constituio, objeto deste estudo, que o
operador do direito buscar recursos interpretativos adequados mxima
realizao dos contedos constitucionais, notadamente dos direitos
fundamentais.
nesse sentido que se torna importante uma atuao construtiva da
hermenutica, possibilitando-se que a Constituio seja interpretada
ao longo do tempo de forma a compatibilizar seu texto ao momento
histrico e cultural em que est inserido.
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14
Assim sendo, a questo central que se coloca para o presente
trabalho est em observar como a Teoria Constitucional Contempornea
e, em especial, o Supremo Tribunal Federal Brasileiro, voltado para
a supremacia da Constituio, operacionaliza a questo da interpretao
conforme Constituio enquanto mecanismo de controle da
constitucionalidade e de realizao dos direitos fundamentais e quais
os limites e possibilidades que este recurso hermenutico
possibilita em meio ordem democrtica na jurisdio brasileira.
Dessa forma, o tema proposto mostra-se pertinente ao contexto
atual do constitucionalismo, visto que a sua abordagem est em
conexo com a moderna jurisdio constitucional democrtica vivenciada
pela Constituio de 1988 e baseada no apenas em regras, mas, tambm,
e, principalmente, em princpios, que buscam uma interpretao
integradora, sem falar que um ponto de fundamental interesse para a
cincia jurdica contempornea, visto a sua relevncia e, ainda,
insuficiente abordagem e contradio de conceituao e de aplicao no
ordenamento jurdico brasileiro, conforme demonstraremos ao longo do
trabalho, especialmente no que diz respeito s decises do Supremo
Tribunal Federal.
A presente pesquisa utiliza, para tanto, o mtodo de abordagem
dedutivo, ao adotar como estratgia de desenvolvimento,
primeiramente, um enfrentamento terico das categorias fundamentais
da pesquisa, para, ao final, analisar pontualmente o problema
proposto, utilizando-se, ainda, o mtodo de procedimento histrico e
analtico, que a visa localizar no tempo e de forma crtica o tema
objeto de anlise. Como tcnica de pesquisa, trabalha-se com a
documentao indireta, atravs da pesquisa bibliogrfica, com consulta
a fontes primrias e secundrias, tanto em termos doutrinrios como
jurisprudenciais. O referencial terico que norteia o estudo
constitudo, basicamente, por autores contemplados na linha de
pesquisa do Constitucionalismo Contemporneo.
Para dar conta do pretendido, no primeiro captulo do presente
trabalho faz-se um esboo do conceito de Constituio na perspectiva
da evoluo do Estado, demonstrando como ela passou de mero
instrumento organizatrio e assegurador das liberdades individuais
no perodo liberal a projeto civilizatrio no atual Estado Democrtico
de Direito.
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15
J no segundo captulo da presente dissertao, discorre-se,
notadamente, sobre a hermenutica constitucional, abordando-se desde
os mtodos clssicos aplicados interpretao constitucional at as
questes que envolvem e permeiam uma nova hermenutica
constitucional, marcada no apenas por regras, mas tambm por um
conjunto de princpios que acabam por superar os mtodos clssicos de
interpretao.
No terceiro e ltimo captulo, adentra-se, especificamente, na
perspectiva do princpio da interpretao conforme Constituio como
princpio hermenutico e garantidor da supremacia da Constituio,
traando-se, primeiramente, sua origem, conceitos, caractersticas e
fundamentos, para, posteriormente, proceder-se a uma anlise de sua
operacionalizao enquanto instrumento de controle da
constitucionalidade e de realizao dos direitos fundamentais, a
partir de decises prolatadas pelo Supremo Tribunal Federal,
buscando verificar-se se lhes tm sido conferida, efetivamente, a
plena eficcia que lhes atribuda pela teoria constitucional
contempornea, estreitamente conectada com os fundamentos e
preceitos do Estado Democrtico de Direito.
Por fim, apresentada a concluso que encerra o presente estudo,
promovendo-se um breve apanhado dos assuntos tratados ao longo do
trabalho, com a exposio, ao fim, das respostas encontradas para os
questionamentos que instigaram a pesquisa, a fim de se corroborar
ou no a hiptese levantada, que considera que o Supremo Tribunal
Federal no tem operacionalizado de forma adequada a aplicao do
princpio da interpretao conforme Constituio, principalmente, na
proteo dos direitos humanos fundamentais, sustentando um
posicionamento frgil e, por vezes, at confuso e contraditrio em
suas decises.
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16
1. A EVOLUO HISTRICA DO ESTADO E DO CONSTITUCIONALISMO: UMA
BREVE PERSPECTIVA DO ESTADO LIBERAL AO ESTADO DEMOCRTICO DE
DIREITO
1.1 Estado, Poder1 e Legitimao no transcurso histrico
Vrias teorias tentaram ou tentam explicar a origem do Estado.
Assim, alm da teoria contratualista, poder-se-ia mencionar outras
vertentes de explicao da origem do Estado e do poder poltico, mas
no presente trabalho far-se- um exame mais restrito da teoria
contratualista, cujo pensamento de seus autores no unvoco, sendo
este o foco do que analisaremos adiante, no nmero de trs, por
considerarmos as correntes mais importantes no que diz respeito ao
tema proposto.
Leal2, introduzindo o assunto refere que:
Com a queda do modelo feudal, a forma concentrada de organizao
do poder poltico, justificado na vontade divina, sofre um profundo
desgaste, abrindo-se espao para a teoria do contrato social que,
partindo do pressuposto de que o indivduo est no centro da teoria
poltica, coloca o Estado como sendo criado por um pacto firmado
entre homens livres e iguais, que a ele delegam a funo de assegurar
as suas liberdades e os seus direitos.
Assim sendo, para superar os inconvenientes do estado de
natureza3, os homens acabam por se reunir e estabelecer entre si um
pacto que funciona como instrumento de passagem do estado de
natureza para o estgio poltico (social), que serve, ainda, como
fundamento de Iegitimao do Estado da Sociedade.
1 Poder: quando escrito em letra maiscula refere-se ao poder
institucionalizado.
2 LEAL, Mnia Clarissa Hennig. A Constituio como Princpio: os
limites da jurisdio constitucional
brasileira. Barueri: Manole, 2003. p. 03. 3 Segundo STRECK e
MORAIS, o Estado de natureza se apresenta como contraface do estado
civil,
ou seja, se no estamos no interior da sociedade poltica, camos
no estado de natureza. Seria o estgio pr-poltico e social do homem,
embora este, mesmo em estado de natureza no seja pensado como
selvagem, sendo o mesmo que vive em sociedade. STRECK, L. L.,
MORAIS, J. L. Cincia Poltica e Teoria Geral do Estado. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 32.
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17
Esse pacto chamado de contrato social, sendo que para Hobbes4
esse contrato firmado entre os indivduos que, com o intuito de
preservao de suas vidas, transferem a outrem todos os seus poderes,
com exceo, claro, do prprio direito vida5, eis ser intransfervel e
irrevogvel pela sua prpria natureza. No h aqui, ainda, para este
autor, de se falar em direitos, pois estes s aparecem com o Estado
- em troca de segurana. Ou seja, para pr fim guerra de todos contra
todos, prpria do estado de natureza, Hobbes entendia que os homens
deveriam despojar-se do que possuam de direitos e possibilidades,
em troca de receberem a segurana do Leviat6.
Por outro lado, para Locke7, pai das diretrizes fundamentais do
Estado Liberal, a passagem do Estado de natureza para o Estado
Civil, por meio do contrato social, se far para permitir que os
direitos pr-sociais possam ser garantidos pelo soberano. Assim, os
direitos naturais, presentes no Estado de Natureza, vo traar os
limites do poder soberano no Estado Civil. Observa-se, aqui, que o
indivduo abandona um nico direito, qual seja, o de fazer justia
pelas prprias mos, concordando em juntar-se e unir-se em sociedade,
para viver pacificamente uns com os outros.
Observa-se, ainda, que Locke8 tem uma concepo de contrato social
diferente da de Hobbes, considerando-o um pacto de consentimento em
que se mantm todos os direitos naturais, devendo o indivduo dar seu
consentimento para a entrada no estado civil e para a formao do
governo em momento posterior.
Em resumo, no contrato social de Hobbes no h parmetros naturais
para a ao estatal, uma vez que, pelo contrato, o homem se despoja
de tudo, exceto da
4 HOBBES, Thomas. Leviat. So Paulo: Abril Cultural, 1983. Coleo
Os pensadores.
5 Segundo Martins, o primeiro e mais importante de todos os
direitos fundamentais do ser humano
o direito vida. o primeiro dos direitos naturais que o direito
positivo pode simplesmente reconhecer, mas que no tem a condio de
criar. MARTINS, Ives Gandra da Silva. O direito constitucional
comparado e a inviolabilidade da vida humana. In: PENTEADO, J.C.;
MARQUES, R.H. (Org.). A vida dos direitos humanos: biotica mdica e
jurdica. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1999. p. 128.
6 Para Hobbes, a figura mitolgica ou bblica do mostro Leviat
representa a figura do Estado, um ser
superior frente ao indivduo. 7 LOCKE, John. Dois Tratados sobre
o governo. Traduo de Julio Fischer. So Paulo: Martins
Fontes, 1998. p. 26-32. 8 LOCKE, ibidem.
-
18
vida, conforme j referido, transferindo o asseguramento dos
interesses sociedade poltica, especificamente ao soberano ou figura
do Leviat, sendo que os direitos existentes acabam por tornarem-se
autoria do Estado.
Por conseguinte, na viso de Rousseau9, terceiro autor em
comento, o homem nasce livre e encontra-se intrinsecamente
aprisionado, sendo que somente a vontade geral pode dirigir as
foras do Estado, segundo a finalidade de sua instituio, que o bem
comum. Esse bem comum caminha sempre em direo dos interesses
gerais, verdadeiro motor do corpo social.
A vontade geral10 de que fala Rousseau no advm da vontade de um
terceiro, por meio de um pacto, mas se origina de uma unio entre
iguais, onde cada indivduo renuncia os seus prprios interesses em
favor da coletividade e [...] cada indivduo contratando consigo
mesmo, acha-se de dois modos empenhado, isto , como membro do
soberano com os particulares, e como membro do Estado com o
soberano [...]11.
Dessa forma, a soberania sai da mo do Monarca e se consubstancia
no povo que dita a vontade geral, cuja expresso acaba sendo a lei.
Esse contrato social acaba dando origem democracia12, na medida em
que o poder j no pertence ao prncipe ou a uma oligarquia, e sim
sociedade civil.
Rousseau13, quando da afirmao da origem popular do poder, ao
considerar que o soberano, constitudo pelo pacto social, o povo
incorporado, ditando a vontade geral por meio da lei, considera
que: a natureza d a cada homem poder absoluto sobre todos os seus
membros, o pacto social d ao corpo poltico um poder
9 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. Traduo de Pietro
Nassetti. So Paulo: Martin
Claret, 2003. Coleo a Obra-Prima de cada autor. 10
A vontade geral para Rousseau est na concepo de sempre se querer
o bem e por isso que preceitua dessa forma: H comumente grande
diferena entre a vontade de todos e a vontade geral; esta s fita o
interesse comum; aquela s v o interesse, e no mais do que uma soma
de vontades particulares; porm quando tira dessas vontades as mais
e as menos, que mutuamente se destroem, resta por soma das
diferenas a vontade geral. Ibidem, p. 41. 11
Ibidem. p. 33. 12
A democracia disposta por ROUSSEAU, Jean-Jacques. Traduo de
Pietro Nassetti. Do Contrato Social. So Paulo: Martin Claret, 2003.
p. 69. Coleo a Obra-Prima de cada autor., diz respeito a confiana
do governo pelo soberano todo povo, ou maior parte dele, de forma
que haja mais cidados magistrados que cidados simples particulares.
13
Ibidem, p. 43.
-
19
absoluto sobre todos os seus; e esse mesmo poder que,
encaminhado pela vontade geral, tem o nome de soberania".
Como se v, a doutrina do contrato social tornou-se um importante
componente terico para os revolucionrios, sendo que as reivindicaes
de uma Constituio embasava-se exatamente na tese de que o contrato
social encontra sua explicitao no texto Constitucional.
Dando continuidade, cabe lembrar que tanto o Poder como o
Estado, este ltimo derivado dos grupamentos humanos, sempre foi
objeto de estudos dos grandes filsofos14, na medida em que o
interesse pela sua organizao, sua origem e pelo funcionamento de
seus rgos, desperta indagaes e debates infindveis em torno da sua
funo, poderes e finalidade.
Aristteles15 escreveu um tratado sobre o Estado o Estado da
Antigidade , o qual denominou de A poltica. Partiu ele do estudo da
organizao poltica de Atenas e Esparta, seus rgos de governo,
redundando, ao final, na classificao de todas as formas de governo
existentes poca. Por este estudo, Aristteles considerado por muitos
como o fundador da Cincia do Estado, sendo que seus estudos, as
suas idias e a classificao que fez das formas de governo, ainda
inspiram e guiam os que se propem e se aventuram a analisar este
fenmeno e campo inesgotvel de pesquisa: o Estado.
Plato16, por sua vez, tambm se props a estudar e escrever sobre
o Estado, elaborando o tratado conhecido como A repblica, contudo,
descreveu o Estado ideal, como deveria ser, sob a concepo do homem
e do mundo. O princpio do seu tratado era a idia de Estado.
J na Idade Mdia, denotam-se grandiosas tentativas de
sistematizao da cincia poltica, fato que assinalou significativa
atividade do pensamento filosfico da
14 Cita-se, aqui, Aristteles, Plato, So Thomas de Aquino, entre
outros, que sero nominados no
decorrer do estudo. 15
ARISTTELES. A poltica. So Paulo: Martins Fontes, 2002. 16
PLATO. A repblica. So Paulo: Martin Claret, 2004.
-
20
poca, destacando-se as obras dos pensadores da Igreja,
notadamente as obras de Santo Toms de Aquino17, que ainda nos dias
de hoje servem de fundamento soluo de muitos dos problemas que se
enfeixam aos juristas hodiernos.
O Prncipe, de Maquiavel18, no sculo XVI, lana os fundamentos da
poltica como arte de governar os Estados, enfatizando os modos de
atingir, conservar e exercer o Poder, derivando da diversas
doutrinas oriundas dos escritores que se dedicam ao estudo do
Estado.
Com o decorrer da histria, envolvendo o avano do pensamento
filosfico e da prpria sociedade, o Estado sofre profundas
modificaes nas suas estruturas e no seu funcionamento, muitas delas
reclamadas e intentadas pela sociedade, que tinha por objetivo a
organizao dos Poderes do Estado.
Sendo assim, h de se relembrar que durante a Idade Mdia a
jurisdio estava em mos privadas, concentrando-se a o Poder, no
havendo dissociao entre o indivduo e a autoridade, o que favorecia
o exerccio de um Poder absoluto e desagregado do interesse do
indivduo e do coletivo. No havia garantias coletividade ou aos
indivduos.
Dessa forma, o Poder, que tinha origem na posse da terra e que
aos poucos se centra nas mos do monarca na autoridade do rei que
vai se concretizar, posteriormente, como uma das principais
caractersticas do Estado Moderno, na verso absolutista, passando a
denominar-se de soberania.
Observa-se, no decorrer do presente estudo, que houve tentativa,
na Idade Mdia, de criar-se uma idia de Estado, de nao e de ptria,
conforme preceituou Azambuja19, mas o Estado surge, enquanto
instituio jurdica, apenas na Modernidade.
17 Uma de suas obras : AQUINO, Santo Toms de. Escritos polticos
de Santo Toms de Aquino.
Petrpolis: Vozes, 1997. 18
MAQUIAVEL, Nicolau. O prncipe. So Paulo: Martin Claret, 2003.
19
AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 35. ed. So Paulo:
Globo, 1996. p. 51.
-
21
Conforme Streck e Morais20,
[...] no existiu Estado Centralizado no decorrer do perodo
medieval, exatamente pela fragmentao dos poderes em reinos, feudos
etc. A forma do Estado centralizado o Estado como poder
institucionalizado ps-medieval, vindo a surgir como
decorrncia/exigncia das relaes que se formaram a partir do novo
modo de produo o capitalismo ento vigente.
Dessa forma, a existncia do Poder e a forma como era exercido
levaram o homem a procurar a causa da eficincia deste fenmeno e dos
fatos que o rodeavam, indagando-se sobre a origem das instituies
polticas e o fundamento do Poder e da autoridade. Assim, a
irresignao que vertia no seio popular, em face do exerccio do Poder
absoluto, levou necessidade de sua limitao, bem como do seu
deslocamento; j no mais se concebendo a personificao do Poder em um
determinado indivduo, sendo necessrio despersonaliz-lo e institu-lo
mediante uma fora superior dos indivduos, com o consentimento da
grande maioria da coletividade.
Conforme teoriza Ferrajoli21:
a Hobbes, em particular, que remonta a primeira formulao das
idias do Estado-pessoa e da personalidade do Estado, que serviro
para oferecer um firme ancoradouro ao atributo da soberania.
Querendo dar uma definio do Estado, escreve Hobbes no De Cive,
"devemos dizer que este uma nica pessoa, cuja vontade, em virtude
dos pactos contrados reciprocamente por muitos indivduos, deve ser
considerada como vontade de todos aqueles indivduos; e, portanto,
pode servir-se das foras e dos haveres individuais para a paz e
para a defesa comum". Trata-se de uma idia basilar para a futura
histria do direito pblico. Nasce com ela a metfora antropomrfica do
Estado "pessoa" ou "homem artificial", ainda hoje dominante na
doutrina juspublicista, qual a soberania associada como essncia ou
"alma artificial" e, concomitantemente, como poder absoluto. [...]
Onde a autoridade, e no a verdade, faz a lei.
Portanto, em contraponto ao Estado Medieval, Leal22 refere que:
o Estado Moderno foi constitudo exatamente para instituir um espao
controlvel e seguro de produo da ordem, com recursos suficientes
para estabelecer e impor regras e normas que ditavam o rumo dos
negcios num certo territrio.
20 STRECK, L. L., MORAIS, J. L. Cincia Poltica e Teoria Geral do
Estado. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2000. p. 23. 21
FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno: nascimento e
crise do Estado nacional. Traduo de Carlo Coccioli e Mrcio Lauria
Filho. So Paulo: Martins Fontes, 2002. pp. 19-20. 22
LEAL, Rogrio Gesta. Gesto Pblica Compartida no Brasil:
construtos epistemolgicos. In: Estado, Administrao Pblica e
Sociedade: novos paradigmas. 2005. p. 32.
-
22
Por conseqncia, foi em face das deficincias da sociedade poltica
medieval que surgiram as caractersticas fundamentais do Estado
Moderno: o territrio e o povo como elementos materiais; o governo,
o poder, a autoridade ou o soberano, como elementos formais.
Vale-se da lio de Correa23 para afirmar que para alguns autores,
existe um terceiro elemento: a finalidade o Estado deve ter uma
finalidade peculiar, que justifique sua existncia.
com Streck e Morais24, ao tratar do deslocamento do Poder e sua
institucionalizao em um ente superior, que se tem a noo de que:
Nessa linha importante registrar que, naquilo que se passou a
denominar de Estado Moderno, o Poder se torna instituio [...]. a
idia de uma dissociao da autoridade e do indivduo que a exerce. O
Poder despersonalizado precisa de um titular: o Estado. Assim, o
Estado procede da institucionalizao do Poder, sendo que suas
condies de existncia so o territrio, mais potncia e autoridade.
Esses elementos do origem idia de Estado. Ou seja, o Estado Moderno
deixa de ser patrimonial. Ao contrrio da forma estatal medieval, em
que os monarcas, marqueses, condes e bares, eram donos do territrio
e de tudo o que neles se encontrava (homens e bens).
Segundo Leal25, as relaes entre poder poltico, sociedade e
governo, ao longo da histria do Ocidente, encontram-se presentes em
todas as esferas da vida, geralmente sob a forma de uma organizao
poltica institucionalizada ou no e surge como [...] uma extenso da
natureza humana, [...] concebida como manifestao espontnea do
indivduo racional e intrinsecamente social.
E, ainda, seguindo o pensamento do autor referido no pargrafo
anterior, h de se citar que:
[...] a concepo de poder e de governo atrela-se figura do
indivduo/cidado e s condies de possibilidades do seu
desenvolvimento econmico, pois o papel do cidado o mais elevado a
que um indivduo pode aspirar [...], a nica forma legtima na qual a
liberdade pode ser sustentada e efetivada. 26
23 CORREA, Darciso. Implicaes jurdico-polticas da dicotoma
pblico e privado na sociedade
capitalista. Tese de Doutorado. Florianpolis: UFSC, 1995. p. 54.
24
STRECK, L. L., MORAIS, J. L. Cincia Poltica e Teoria Geral do
Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 27. 25
LEAL, Rogrio Gesta. Gesto Pblica Compartida no Brasil:
construtos epistemolgicos. In: Estado, Administrao Pblica e
Sociedade: novos paradigmas. 2005. pp. 01-02. 26
Ibidem, p. 05.
-
23
No tocante migrao do poder soberano para a parcela do povo que
habita determinado territrio, cabe recordar que no Estado Medieval
o Poder estava nas mos do monarca e que no Estado Moderno ele passa
a ser consubstanciado na mo do povo, tendo como limitao, apesar de
seu carter absoluto, o contedo do contrato originrio do Estado,
conforme bem preceituou, anteriormente, Rousseau27.
Ainda no que diz respeito soberania, Morais28 ensina que:
A soberania caracteriza-se, historicamente, como um Poder que
juridicamente incontrastvel, pelo qual se tem a capacidade de
definir e decidir acerca do contedo e da aplicao das normas,
impondo-as coercitivamente dentro de um determinado espao
geogrfico, bem como fazer frente a eventuais injunes externas. tida
como una, indivisvel, inalienvel e imprescritvel. [...]
Caracterizada por uma estrutura de poder centralizado e que exerce
o monoplio da fora e da poltica legislativa, executiva e
jurisdicional sobre um determinado territrio e a populao que o
habita.
Mas a soberania, a representao do Poder, nem sempre esteve com o
Estado, j que no medievo este Poder estava nas mos privadas do
senhor feudal. Segundo Streck e Morais29
o rompimento paradigmtico da velha ordem medieval para uma nova
ordem se d principalmente atravs da passagem das relaes de poder
(autoridade, administrao da justia, etc.) at ento nas mos privadas
do senhor feudal, para a esfera pblica (o Estado centralizado). Ou
seja, na medida em que ocorria a alterao do modo de produo, a
sociedade civil agregava novas exigncias ao que at ento era
exercido pelo poder privado (comunicaes, justia, exrcito, cobrana
de impostos, etc).
Entende-se que a distino entre a esfera privada e a pblica, a
dissociao entre o poderio poltico e o econmico, e a separao entre
as funes administrativas, polticas e a sociedade civil, so as
principais especificidades que marcaram a passagem da forma Estatal
Medieval para o Estado Moderno, mas a referida passagem do velho ao
novo modelo no se deu sem traumas. Houve rupturas que, no momento,
se mostravam irreconciliveis, em face dos interesses polticos e
econmicos em jogo, mas os obstculos no se mostravam capazes de
27 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. Traduo de Pietro
Nassetti. So Paulo: Martin
Claret, 2003. Coleo a Obra-Prima de cada autor. 28
MORAIS, Jos Luis Bolzan de. As crises do Estado e da Constituio
e a transformao espacial dos direitos humanos. Livraria do
Advogado: Porto Alegre, 2002. pp. 24-25 29
STRECK, L. L., MORAIS, J. L. Cincia Poltica e Teoria Geral do
Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 27-28.
-
24
desestimular a idia de que era necessrio que um ente superior,
com caractersticas, estruturas e administrao prprias e
autofinanciveis, fosse o detentor legal dos poderes outorgados pelo
povo. Contudo, esta entidade deveria ser despojada e desinteressada
pela proteo to-somente dos interesses individuais, deveria ser
capaz de centralizar poderes suficientes soluo e controle dos
problemas sociais, atendendo tambm as suas demandas.
A idia de Estado conduz a sociedade no-percepo de que o Estado a
confisso de que ela mesma se h embrenhado numa contradio insolvel,
resultando em antagonismos irreconciliveis, uma vez que no se
dispunha de mecanismos de conciliao e controle. Por conseguinte, o
Estado no existe em prol dos cidados: poder-se-ia dizer que ele a
finalidade e que aqueles so seus instrumentos30.
Contudo, o que parecia intransponvel e paradoxal, no se prestava
a frear definitivamente os anseios pelo estabelecimento de uma nova
ordem, eis que era preciso que os antagonismos, tanto individuais
como coletivos, as classes com interesses econmicos opostos, com
ideologias polticas contrapostas, no se devorassem mutuamente,
assim como era imperioso evitar que a sociedade se lanasse numa
luta estril e inconseqente. Streck e Morais31, consubstanciando-se
no pensamento de Engels, referem que para isso se faz mister um
Poder, colocado aparentemente acima da sociedade, com a misso de
amortecer o conflito e mant-lo dentro dos limites da ordem; e, na
seqncia, concluem que este Poder, que brotou da sociedade, mas que
se colocou por sobre ela e da qual cada vez mais se divorcia, o
Estado.
Em razo da existncia do Estado, o indivduo passa a organizar-se
em comunidade e a exigir mudanas no ordenamento jurdico-poltico,
sendo que nesse momento, o indivduo entende que o Direito no pode
resultar somente dos costumes, mas de normas jurdicas editadas por
determinado e reconhecido ato legislativo, passveis de serem
cumpridas e exigidas a qualquer um, o que redundou
30 Conforme FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno:
nascimento e crise do Estado
nacional. Traduo de Carlo Coccioli e Mrcio Lauria Filho. So
Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 100. 31
STRECK, L. L., MORAIS, J. L. Cincia Poltica e Teoria Geral do
Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 31.
-
25
na limitao e no controle do Poder estatal. Passava-se, a partir
desse momento, por conseqncia, a fixar os limites do Poder exercido
pelo Estado.
Dessa feita, observa-se a necessidade de um Poder superior, mas
no se podia estabelec-lo sem controle, desvirtuado de sua
finalidade, fato que preocupava a sociedade que desejava a
institucionalizao do Estado. Assim, ao tempo em que era necessrio
outorgar a algum o Poder, era imperioso control-lo e
legitim-lo.
Mas como legitimar este Poder? Streck e Morais32 entendem que a
legitimao reside e deriva do povo, sendo relevante recordar que
Rosseau33 identificou a legitimao na vontade geral, dizendo: Creio
poder estabelecer como princpio indiscutvel que somente a vontade
geral pode dirigir as foras do Estado segundo a finalidade de sua
instituio, que o bem comum. Todavia, cumpre aclarar que a vontade
geral no advm da submisso a um terceiro, por meio de um pacto: ela
se origina de uma unio entre iguais. Cada um renuncia a seus
prprios interesses em favor da coletividade. assim que o Estado, em
agindo a par do interesse coletivo, legitima as suas aes, tanto
interna como externamente, conduzindo-nos concluso de que na
supremacia dos Poderes da coletividade nasce a democracia.
E esta vontade geral relacionava-se diretamente aceitao pelo
povo do sistema legal vigente, j que:
[...] o povo no apenas de forma mediata a fonte ativa da
instituio de normas por meio de eleies, bem como de forma imediata
por meio de referendos legislativos; ele de qualquer modo o
destinatrio das prescries, em conexo com deveres, direitos e funes
de proteo. E ele justifica este ordenamento jurdico num sentido
mais amplo como ordenamento democrtico, medida que o aceita
globalmente, no se revoltando contra o mesmo34.
Note-se que o constitucionalismo moderno ope-se tradio medieval,
que se fundamentava somente no direito consuetudinrio e, ainda, no
poder divino. No
32STRECK, L. L., MORAIS, J. L. Cincia Poltica e Teoria Geral do
Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 39. 33
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. Traduo de Pietro
Nassetti. So Paulo: Martin Claret, 2003.p. 46. Coleo a Obra-Prima
de cada autor. 34
MLLER, Friedrich. Quem o povo. A questo fundamental da
democracia. Traduo de Peter Neumann. 2. ed. So Paulo: Max Limonad,
2000. p. 61
-
26
medievo, acreditava-se que o direito era anterior lei, imanente
condio do homem, bastando instituio de uma ordem, mas os regimes
absolutistas provaram o contrrio.
Fazendo, novamente, uma digresso histrica, observa-se, em razo
da prpria existncia do Estado, cujo Poder, em princpio, no era
controlado nem compartilhado, sendo exercido contrariamente aos
interesses do homem, com o uso da violncia estatal, que o indivduo
passa a organizar-se em comunidade e a exigir mudanas no
ordenamento jurdico-poltico do Estado.
As idias de uma nova ordem para o Estado avanavam. No se podia
mais conviver com o status do medievo, com os poderes feudais e
monrquicos despticos. Os movimentos eram para a instituio de uma
lei fundamental que regrasse os Poderes do Estado, estabelecendo,
ainda, a diviso destes Poderes35.
Aps a promulgao da Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado de
1789, h a definio da organizao e a separao dos Poderes,
estabelecendo regras atividade estatal, passando o Estado a deter a
exclusiva competncia para a elaborao e promulgao de leis reclamadas
pela comunidade. Com isto, o Legislativo (o Parlamento) passa a,
cada vez em maior volume, editar leis elaboradas e aprovadas
consoante um processo definido e legitimado pela sociedade, j que o
Legislativo era o representante desta, obrigando a observncia a
todos, inclusive aos demais Poderes, dispondo ao Judicirio o
aparelho repressivo estatal, com o fito de, em havendo resistncia,
determinar, sob fora, o seu cumprimento.
Dessa forma, observa-se que no incio do sculo XVIII a Constituio
escrita passa a desempenhar uma funo de garantia, ou seja,
inserem-se no texto constitucional normas jurdicas de garantia dos
direitos do homem contra o arbtrio e a opresso do Estado. Estas
normas constituram-se na principal caracterstica do
constitucionalismo moderno e do Estado Democrtico de Direito.
35 Com Montesquieu, no sculo XVI, que toma fora a teoria da
tripartio dos Poderes do Estado: o
executivo, o legislativo e o judicirio. A essa poca j se falava
da exigncia da autonomia para a Justia, com juzes atuando
independentes de quem governa ou faz as leis, bem como de um
parlamento com autonomia suficiente para no se submeter vontade do
rei. Isto garantia a continuidade e a segurana necessrias evoluo
social e do Estado, na medida em que a diviso dos Poderes
representava um bice interferncia de uma esfera em outra.
-
27
Por conseguinte, ao passo que o ordenamento legal deveria
derivar de uma vontade geral, tambm se fazia necessria a implantao
de normas jurdicas escritas que fossem superiores a todas as
outras, efetivando o Poder e reconhecendo que ele pertence a um rgo
superior: o Estado. Desta feita, todo o ordenamento jurdico deveria
respeitar a uma norma superior: a Constituio.
Por conseqncia, o Estado Moderno no podia mais sobreviver sem a
configurao e a estruturao do seu quadro de normas jurdicas, sendo
estas necessrias ao conforto das decises dos governantes, como
fonte de legitimao do Poder, e devidamente submetidas a uma lei
maior. Neste sentido, Leal36 ensina que:
[...] a teoria do Estado Moderno est toda centrada na figura da
Lei como principal fonte de padronizao das relaes de convivncia,
lugar onde o princpio de legitimao das sociedades polticas
vindouras se assenta. A partir desta premissa, a figura da
Constituio tem uma funo de justificao do novo poder que se
instaura, delimitando a estrutura, organizao e competncias estatais
que so responsveis pelo asseguramento das regras do desenvolvimento
social e econmico da sociedade, bem como, claro, substitutas das
instncias de governo at ento existentes.
assim, com o advento das Constituies escritas, que a cincia do
Estado toma novo impulso. O estudo da organizao de cada Estado,
facilitado pela codificao de suas normas fundamentais, vai
acentuando a evidncia de que em todos eles h notas e elementos
comuns e permanentes, bem como nas instituies que neles existem, de
modo a ser possvel conceitu-los e classific-los.
No obstante positivar as normas relativas aos Poderes do Estado,
com o consentimento do povo notava-se que as suas normas jurdicas e
as suas decises no alcanavam e obrigavam a todos, j que havia
resistncias da elite dominante a submeter-se s prprias normas que
editavam em nome do Estado, o que gerava uma crise de legitimidade
no exerccio do Poder, que necessitava ser efetivo, alcanando a
todos, inclusive aos governantes, o que, em princpio, no se
concretizava.
36 LEAL, Rogrio Gesta. Significados e sentidos do Estado
Democrtico de Direito enquanto
modalidade ideal/constitucional do estado brasileiro. Redes,
EDUNISC, jul. 1998, v. 3. n. 1. p. 149
-
28
Dessa forma, a igualdade perante a lei deveria ser a
caracterstica justificadora da ao estatal. Deveria ser instalado o
imprio da lei, significando que o prprio legislador que a institua
deveria submeter-se a ela, evitando-se, desta forma, a instalao de
um instrumento de dominao arbitrria, acobertada por uma legalidade.
Surgia-se da a figura do Estado de Direito.
No se pode deixar de abordar a questo da efetividade do Poder
que editou a Constituio da efetividade dela prpria. Assim que
aprendemos com Ferreira Ferreira Filho37 que:
H que se distinguir a efetividade do Poder que editou a
Constituio e a efetividade da prpria Constituio. Sim, porque esta
efetividade h de registrar-se tanto quanto aos governados como
quanto aos governantes, ou seja, quanto aos prprios detentores do
poder efetivo. Se estes no se sujeitam ao que dispe a Constituio
que editaram, esta no uma verdadeira constituio. Tem aparncia de
Constituio, apenas e to-somente. A Constituio torna-se ato jurdico,
ou melhor, assume significado jurdico como diria Kelsen se for
efetiva para o prprio poder que a estabeleceu e para a comunidade
para a qual foi estabelecida, quando obtm esta efetividade.
Entende-se, conforme o estudo depreendido daqui, que a
legitimidade, em afinidade com a legalidade, que vai oferecer as
condies ideais para o exerccio do Poder, das normas que o regem e
das que edita, dando estabilidade s instituies e s relaes
sociais.
Para no conhecer de sua ineficincia, o Estado prefere, em
algumas oportunidades, negar a existncia de inmeras tenses sociais
que se avolumam sem respostas satisfativas, ou ainda, lan-las
clandestinidade ou ilicitude, [...] deixando, assim, de compreender
que administrar os conflitos da sociedade significa conservar a
sociedade. Ento, na medida em que o Estado no capaz de resolver os
conflitos, ele perde sua legitimidade38.
E, desta forma, se encerra a percepo do surgimento do Estado,
notadamente pela existncia de um territrio, de uma organizao
poltica e de mecanismos de dominao legal e, tambm, pela organizao
da administrao burocrtica, submetendo todos ao mesmo sistema
jurdico-legal-administrativo.
37 FERREIRA FILHO, Manoel Gonalves. Aspectos do Direito
Constitucional Contemporneo. So
Paulo: Saraiva, 2003. p. 52. 38
o entendimento de LEAL, Rogrio Gesta. Gesto Pblica Compartida no
Brasil: construtos epistemolgicos. In: Estado, Administrao Pblica e
Sociedade: novos paradigmas. 2005. p. 39.
-
29
Assim, a evoluo da formao e caracterizao do Estado acaba por
buscar uma legalizao ou constitucionalizao das relaes entre
indivduos e Estado. Dessa forma, sente-se a necessidade de
discorrer sobre as formas que o Estado de Direito vai tomando no
decorrer da histria, mais precisamente, no que diz respeito ao
Estado Moderno e formao da Constituio na perspectiva dessa evoluo,
indo do Estado Liberal ao Estado Democrtico de Direito, para a
partir da termos condies de buscar as concepes de um Estado que
valoriza a hermenutica constitucional, a sociedade aberta dos
intrpretes da Constituio e os princpios, como garantidores do
controle de constitucionalidade e dos direitos humanos
fundamentais.
1.2 A Constituio como decorrncia do Estado: do Estado de Direito
Liberal ao Estado de Direito Democrtico
A Constituio caracteriza-se por ser, hierarquicamente, a carta
poltico-jurdica mais importante relativa organizao do poder, sendo
que suas caractersticas variam no decorrer da histria, e apesar de
ter suas verdadeiras concepes advindas da Idade Moderna, aparece,
timidamente, conforme Matteucci39, j na Idade Antiga.
Observa-se, no Estado de Direito Liberal, a predominncia clara
do autoritarismo e da idia de limites, sendo que nesse momento
histrico que a Constituio passa a ser vista como uma carta
eminentemente jurdica, onde o Poder Legislativo tem lugar de
destaque e maior importncia em relao aos demais poderes
constitudos.
Por conseguinte, sob a tica liberal, podemos referir que
o instrumento que melhor pode ordenar os regramentos sobre as
competncias e atribuies, [...] a lei; entretanto, para que se
vincule o Estado a respeito da mesma, ela deve ter um status
diferenciado, capaz de efetivamente obrigar a todos os entes
polticos: o de lei constitucional.40
39 MATTEUCCI, Nicola. Organizacin del poder y libertad. Historia
del constitucionalismo moderno.
Traduccin de Francisco Javier Ansutegui Roig y Manuel Martnez
Neira. Madrid: Trotta, 1998. p. 23 40
LEAL, Rogrio Gesta. Perspectivas Hermenuticas dos Direitos
Humanos e Fundamentais no
-
30
O Estado Liberal de Direito apresenta-se como uma garantia dos
indivduos-cidados frente eventual atuao do Estado, impeditiva ou
constrangedora de sua ao cotidiana. Ou seja, a este cabe o
estabelecimento de instrumentos jurdicos que assegurem o livre
desenvolvimento das pretenses individuais, ao lado das restries
impostas sua atuao positiva. Por isso, Bobbio41 diz que [...] o
liberalismo uma doutrina do Estado limitado tanto com respeito aos
seus poderes quanto s suas funes.
Cria-se, assim, conforme Leal42, a idia de que o Estado est a
servio do homem, e no o contrrio, o que permite que se imponham
limites s suas atividades e ao seu poder.
Para Ferrajoli43:
[...] com o nascimento do Estado liberal. Com a Declarao dos
direitos do homem e do cidado, de 1789, e depois com as sucessivas
cartas constitucionais, muda a forma do Estado e, com ela muda, at
se esvaziar, o prprio princpio da soberania interna. De fato,
diviso dos poderes, princpio de legalidade e direitos fundamentais
correspondem a outras tantas limitaes e, em ltima anlise, a negaes
da soberania interna. Graas a esses princpios, a relao entre Estado
e cidados j no uma relao entre soberano e sditos, mas sim entre
dois sujeitos, ambos de soberania limitada.
A partir desse momento, o princpio da legalidade nos novos
sistemas parlamentares modifica a estrutura do sujeito soberano,
vinculando-o no apenas observncia da lei, mas tambm ao princpio da
maioria e aos direitos fundamentais, transformando os poderes
pblicos de poderes absolutos em poderes funcionais.
Com a instaurao do Estado Liberal, movido e gerido pelos
interesses da burguesia e partindo do pressuposto de que o homem
anterior ao Estado44, ao primeiro dado o direito de pensar que tudo
aquilo que no seja proibido pela lei permitido para si. Nesse
momento histrico, a Constituio passa a ser reconhecida
Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 123-124.
41
BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. So Paulo:
Brasiliense, 1988. p. 17. 42
LEAL, Mnia Clarissa Hennig. A Constituio como Princpio: os
limites da jurisdio constitucional brasileira. Barueri: Manole,
2003. p. 03. 43
FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno: nascimento e
crise do Estado nacional. Traduo de Carlo Coccioli e Mrcio Lauria
Filho. So Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 28. 44
Concepo de LEAL, Mnia Clarissa Hennig. A Constituio como
Princpio: os limites da jurisdio constitucional brasileira.
Barueri: Manole, 2003. pp. 03-04.
-
31
pela sua superioridade hierrquica em relao s demais normas,
sendo considerada um instrumento de manuteno da ordem, o que passa
a ser o grande mote do Estado Liberal, passando o poder das mos do
monarca para a representatividade da lei que no admite lacunas.
Pelayo45 define o Estado Liberal de Direito como sendo:
Um Estado cuya funccin capital es estabelecer y mantener el
Derecho cuyos lmites de accin estn rigurosamente definidos por
este, pero, bien entendido que Derecho no se identifica com
qualquier ley o conjunto de leyes con indiferencia hacia su
contenido (...) EI Estado de Derecho significa, as una limitacin
deI poder deI Estado por el Derecho, pero no Ia posibilidad de
legitimar cualquier critrio alndole forma de ley...
Observa-se, dessa maneira, que o Estado liberal est fundado na
liberdade, na igualdade formal de todos perante a lei e na
independncia, mais ou menos como determinavam os ideais da Revoluo
Francesa. Assim, o carter puramente formal da igualdade no Estado
de Direito liberal no exprime seno a superao burguesa das
desigualdades jurdicas prprias de um antigo regime46.
O Estado de Direito Liberal no era apenas um Estado legal, mas
um Estado de limites servio da burguesia, estando fundado na
liberdade, igualdade e independncia de todos os membros da
sociedade, ficando sujeitos mesma lei. Portanto, no basta que um
Estado possua uma certa legalidade, pois indispensvel ser que seu
contedo reflita um determinado iderio. Ou seja, para o Estado ser
de Direito, no suficiente que seja um Estado Legal, mas um Estado
que tenha limites dispostos na legalidade.
O Estado liberal no era to formal como por vezes se afirma. Ele
no era s um Estado de direito, mas tambm um Estado de limites a
servio dos factores dominantes da sociedade burguesa. Um exemplo
claro o da funo racional das leis gerais e abstractas: sendo um
instrumento de garantia do livre e igual desenvolvimento dos
indivduos, encobriam a possibilidade de desiguais poderes sociais e
a natureza de classe do Estado. 47
45 PELAYO, Manuel Garca. Las transformaciones del Estado
contemporneo. Madrid: Alianza, 1996.
p. 52. 46
PINTO, Luzia Marques da Silva Cabral. Os limites do poder
constituinte e a legitimidade material da Constituio. Coimbra:
Coimbra, 1994. p. 160-161. 47
CANOTILHO, J.J. Gomes. Constituio dirigente e vinculao do
legislador contributo para a compreenso das normas constitucionais
programticas. Coimbra: Almedina, 1994. p. 42.
-
32
Observa-se que, em sua origem, o Estado de Direito era um
conceito tipicamente liberal; da falar-se em Estado Liberal de
Direito, cujas caractersticas bsicas era: a) submisso ao imprio da
lei; b) a diviso dos poderes e c) a garantia dos direitos
individuais.
Entende-se, dessa maneira, que a concepo liberal do Estado de
Direito serve de apoio aos direitos do homem, convertendo os sditos
em cidados livres, percebendo-se a partir de ento uma igualdade
natural dos homens perante a lei, surgindo da, consequentemente, a
reivindicao pelo reconhecimento dessa igualdade pelo Direito. Em
outras palavras, o que se reivindica durante o Estado Liberal de
Direito a abolio dos privilgios pelos quais a nobreza e o clero
juridicamente se distinguiam do Terceiro Estado.
Conforme Streck e Morais48,
Como liberal, o Estado de Direito sustenta juridicamente o
contedo prprio do liberalismo, referendando a limitao da ao estatal
e tendo a lei como ordem geral e abstrata. Por outro lado, a
efetividade da normatividade garantida, genericamente, atravs da
imposio de uma sano diante da desconformidade do ato praticado com
a hiptese normativa.
Resumindo, pode-se afirmar que o Liberalismo lutou
fundamentalmente pelas liberdades, sejam elas: de religio, de
palavra, imprensa, de reunio, de associao, de participao na
poltica, etc., sendo que tinha como objetivo a reivindicao pela no
interferncia do Estado, o que, posteriormente, teve que ser
renunciado em decorrncia do Estado Social de Direito, que o
sucedeu.
Dessa forma, segundo Pinto49:
As liberdades individuais, fundamento do progresso, inatas,
eram, pois, liberdades pr-polticas: o Estado formava-se exactamente
para as proteger e no podia interferir na sociedade para as
limitar, mas apenas para as generalizar, impedindo os eventuais
abusos cometidos no seu
48STRECK, L. L., MORAIS, J. L. Cincia Poltica e Teoria Geral do
Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 94. 49
PINTO, Luzia Marques da Silva Cabral. Os limites do poder
constituinte e a legitimidade material da Constituio. Coimbra:
Coimbra, 1994. p. 154.
-
33
exerccio. Um Estado, portanto, absolutamente neutral perante os
interesses econmico-sociais que se digladiavam na sociedade.
Assim, o que podemos depreender desse momento histrico do Estado
de Direito Liberal que a Burguesia no era economicamente oprimida
pela aristocracia dominante, bem pelo contrrio: possua muitos
recursos financeiros, sendo que o que realmente incomodava a classe
burguesa era o desprestgio e as diferenas impostas pelos estatutos
jurdicos, trazendo, com isso, a diferena entre as duas classes em
comento.
De acordo com Leal50:
A Constituio , neste contexto, justamente o mecanismo capaz de
conferir esta garantia, constituindo-se ela, assim, mais em um
instrumento de manuteno da ordem estabelecida - numa tentativa da
burguesia de se defender do Estado e manter as conquistas obtidas
com a Revoluo - do que de transformao social.
Conclusivamente, Morais51 refere que o Estado Liberal de Direito
se concebeu pelas seguintes caractersticas:
A. Separao entre Estado e Sociedade Civil mediada pelo Direito,
este visto como ideal de justia. B. A garantia das liberdades
individuais; os direitos do homem aparecendo como mediadores das
relaes entre os indivduos e o Estado. C. A democracia surge
vinculada ao iderio da soberania da nao produzido pela Revoluo
Francesa, implicando a aceitao da origem consensual do Estado, o
que aponta para a idia de representao, posteriormente matizada por
mecanismos de democracia semidireta - referendum e plebiscito, etc.
- bem como, para a imposio de um controle hierrquico da produo
legislativa atravs do controle de constitucionalidade. D. O Estado
tem um papel reduzido, apresentando-se como Estado Mnimo,
assegurando, assim, a liberdade de atuao dos indivduos.
A partir do sculo XIX percebe-se uma mudana na forma de agir do
Estado Liberal, onde o papel negativo do mesmo (mantena da paz e
segurana) passa a ser positivada lentamente por meio das prestaes
pblicas, a serem asseguradas aos cidados.
50 LEAL, Mnia Clarissa Hennig. A Constituio como Princpio: os
limites da jurisdio constitucional
brasileira. Barueri: Manole, 2003. p. 07. 51
MORAIS, Jos Lus Bolzan de. Do Direito social aos interesses
transindividuais: O Estado e o Direito na ordem contempornea.Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 1996. pp.70-71
-
34
Foram profundas contradies e desigualdades verificadas no centro
da Sociedade capitalista da poca que originaram uma poderosa reao s
concepes liberais at ento vigentes, oportunizando uma reviso
profunda na tese do Estado Mnimo, devendo o Poder Pblico avocar
para si uma tutela poltica mais eficaz, de forma mais coletiva e
indeterminada em relao satisfao econmica.
Assim, no incio do sculo XX, o carter puramente formal da
igualdade no Estado de Direito Liberal fez com que vrios movimentos
sociais alavancados por lutas operrias buscassem uma nova
alternativa para o Estado e para as desigualdades vivenciadas,
sendo que o Estado de Direito Social passa a ser uma tentativa de
adaptao da sociedade ps-industrial, apoiando-se num processo de
transformao por meio de dois aspectos bsicos: a) melhoria nas
condies sociais e b) garantia regulatria para o prprio Estado.
Conseqentemente, h a ampliao da atuao positiva do Estado, visto
que percebe-se que no mais possvel acreditar-se que a ordem
econmica da poca, baseada na liberdade, tivesse condies de produzir
justia, aparecendo, assim, como uma soluo intermediria entre o
capitalismo e o socialismo52.
H de se referir que, com o crescimento da interveno, desaparece
o modelo de Estado mnimo, sendo que Estado e sociedade se aproximam
para assistirem ao indivduo, eis que conforme Pelayo53: En resmen,
Estado y sociedad ya no son sistemas autnomos, (...) sino dos
sistemas fuertemente interrelacionados entre s a travs de
relaciones complejas.
Dessa forma, com a evoluo do Estado liberal e a percepo de que,
apenas teoricamente, o direito era igual para os indivduos, as
relaes sociais passam a sofrer transformaes, dando origem ao Estado
Social de Direito, Estado de Bem-estar ou Welfare State, que tem
por caracterstica o prprio iderio liberal agregado pela questo
social e como ponto comum a prpria adaptao social, no sentido
de
52 LEAL, Mnia Clarissa Hennig. A Constituio como Princpio: os
limites da jurisdio constitucional
brasileira. Barueri: Manole, 2003. p. 13. 53
PELAYO, Manuel Garca. Las transformaciones del Estado
contemporneo . Madrid: Alianza, 1996, p.25.
-
35
buscar a realizao da igualdade material e a fim de impedir a
destruio da igualdade jurdica54. Aqui a Constituio aparece como um
instrumento caracteristicamente poltico, sendo considerado um
elemento de integrao social.
Para Silva55,
A democracia, como realizao de valores (igualdade, liberdade e
dignidade da pessoa) de convivncia humana, conceito mais abrangente
do que o de Estado de Direito, que surgiu corno expresso jurdica da
democracia liberal. A superao do liberalismo colocou em debate a
questo da sintonia entre o Estado de Direito e a sociedade
democrtica. A evoluo desvendou sua insuficincia e produziu o
conceito de Estado Social de Direito, nem sempre de contedo
democrtico.
A partir do Estado Social, a Constituio deixa de ter um carter
apenas de organizar o Estado e limit-lo, transformando-se numa
constante busca de direitos sociais com a tomada do carter poltico,
passando os direitos a serem positivados, ou seja, ocorre a
constitucionalizao de direitos sociais e econmicos.
Este novo Estado de Direito, segundo Leal56, no representa uma
ruptura, mas sim uma mera adaptao do modelo liberal s necessidades
sociais, mostrando-se como uma soluo entre o socialismo e o
capitalismo, tendo como finalidade a adaptao social e a aproximao
do Estado com a sociedade.
No Estado Social de Direito a Constituio assume contedo poltico,
englobando os princpios de legitimao do poder e aproximando-se cada
vez mais da vida do povo. Segundo Bercovici57, o campo
constitucional ampliado para abranger toda a sociedade, no s o
Estado.
Observa-se, aos poucos, que as polticas do Estado de Bem-estar
acabam por desencadear um aumento no crescimento econmico, numa
redistribuio de salrios, garantindo o poder aquisitivo dos
trabalhadores, e, principalmente na
54 LEAL, Mnia Clarissa Hennig. A Constituio como Princpio: os
limites da jurisdio constitucional
brasileira. Barueri: Manole, 2003. p. 16. 55
SILVA, Jos Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo.
12 ed. rev. So Paulo: Malheiros. 1996. p. 113. 56
Idia extrada da obra de LEAL, op.cit., p. 13. 57
BERCOVICI, Gilberto. A Constituio Dirigente e a Crise da Teoria
da Constituio. In: SOUZA NETO, C. P. et. al. Teoria da Constituio:
estudo sobre o lugar da poltica no Direito Constitucional. Rio de
Janeiro: Lumen Jris, 2003. p. 103.
-
36
apario dos direitos sociais, bem como da interveno da autoridade
poltica na economia. Para tanto, esse Estado de Direito opunha-se
anarquia econmica e ditadura para resguardar os valores da
civilizao e do cidado.
Por outro lado, esse mesmo Estado trouxe, conforme Capella58,
alguns problemas como: custos salariais em aumento e dificuldades
no exerccio do domnio social. Gerando, por sua vez, uma crescente
dificuldade das polticas redistributivas para fazer frente ao
ascenso das demandas sociais e, desenhando uma perspectiva
conseqente de aumento da tenso, propunha o reforo dos poderes
autoritrios dos Estados.
Segundo Leal59,
Este ciclo histrico, progressivamente, vai impondo ao Estado
outras misses e fins at ento descartados pelo Estado Liberal de
Direito, exigindo do Poder Pblico o atendimento s demandas
comunitrias cada vez mais crescentes. Os problemas sociais que
surgem aqui, bem como a falta de capacidade de resoluo por parte
dos particulares, impulsionam a reflexo sobre o alargamento dos
deveres estatais para muito alm de suas atribuies de garantir,
simplesmente, uma ordem jurdica estvel e proporcionadora de relaes
sociais da mesma natureza.
O desafio do Estado Social de Direito passa a ser, de alguma
forma, a garantia da justia social efetiva aos seus cidados, no
sentido do desenvolvimento da pessoa humana, ao mesmo tempo em que
se deve respeitar o ordenamento jurdico. Significa dizer que este
Estado se encontra marcado por preocupaes ticas voltadas aos
direitos e prerrogativas humanas fundamentais.
Verd60 entende que um intento louvvel converter em direito
positivo, velhas aspiraes sociais, elevadas categoria de princpios
constitucionais protegidos pelas garantias do Estado Social de
Direito. Mas nota-se que aos poucos o Estado de Bem-estar social
acaba se transformando em Estado de assistncia, perde-se pouco a
pouco a escala mvel dos salrios e a segurana do emprego.
58 CAPELLA, Juan Ramn. Os cidados servos. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris, 1998. p. 94.
59 LEAL, Rogrio Gesta. Perspectivas Hermenuticas dos Direitos
Humanos e Fundamentais no
Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 68. 60
VERD, Pablo Lucas. Curso de Derecho Poltico. Madrid: Tecnos,
1982. v 1. p. 371.
-
37
Neste diapaso pode-se citar Pelayo61:
El Estado social significa historicamente el intento de
adaptacin del Estado tradicional (...Estado liberal burgus) a las
condiciones sociales de la civilizacin industrial y postindustrial
com sus nuervos y complejos problemas. No hemos de ver ls medidas
de tal adaptacin como algo totalmente nuevo, sino ms bien como um
cambio calitativo de tendncias.
Cria-se, a partir desse momento, como rapidamente comentado, uma
relao de interdependncia entre Estado e sociedade, sendo que o
primeiro no pode mais ser tido como mero espectador, devendo
intervir diretamente nas questes sociais, sendo devedor de uma
prestao positiva.
Conforme preceitua Streck e Morais62,
Transmutado em social, o Estado de Direito acrescenta
juridicidade liberal um contedo social, conectando aquela restrio
atividade estatal a prestaes implementadas pelo Estado. A lei passa
a ser, privilegiadamente, um instrumento de ao concreta do Estado,
tendo como mtodo assecuratrio de sua efetividade a promoo de
determinadas aes pretendidas pela ordem jurdica. Em ambas as
situaes, todavia, o fim ultimado a adaptao ordem estabelecida.
Pode-se dizer, por derradeiro, que a transformao no vis
intervencionista e promocional do Estado Moderno Liberal o faz
assumir responsabilidades organizativas e diretivas do conjunto da
economia do Pas, em vez de simplesmente exercer poderes gerais de
legislao e polcia, prprias do perfil do Estado Mnimo, como era at
ento conhecido. Acaba constituindo-se numa experincia concreta da
total disciplina pblica da economia, assumido como modelo de
futuros objetivos autoritrios da poltica econmica e ao mesmo tempo
cria hbitos e mtodos dirigistas.
61 PELAYO, Manuel Garca. Las transformaciones del Estado
contemporneo . Madrid: Alianza, 1996.
p. 18 62STRECK, L. L., MORAIS, J. L. Cincia Poltica e Teoria
Geral do Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000.
p.94.
-
38
Para Pelayo63:
[...] apesar de se poder distinguir duas modalidades de Estado
de Direito - a liberal e a social -, no se trata de conceitos
contraditrios, mas sim de duas dimenses, de dois momentos do Estado
de Direito, constituindo este ltimo no uma ruptura em relao ao
primeiro, seno uma tentativa de adaptao do Estado de Direito
clssico a um novo contedo e a novas condies ambientais. [Traduo
livre]
Na seqncia, possvel afirmar que os textos constitucionais
incorporam propsitos emancipatrios, com reais igualdades e sendo um
instrumento tanto para governantes quanto para governados,
revelando-se um tipo de Estado que prima pelo bem-estar geral e
garante o desenvolvimento da pessoa. Aqui as leis so promulgadas no
em vista de alguma vantagem particular, mas sim em prol do bem
comum dos cidados.
Ainda de acordo com Pelayo64:
[...] Estado social de Derecho significa un Estado sujeto a Ia
ley legitimamente establecida con arreglo ai texto y a Ia praxis
constitucionales con indiferencia de su carcter formal o material,
abstracto o concreto, constitutivo o activo, y Ia cual, en todo
caso, no puede colidir con los preceptos sociales establecidos por
Ia Constitucin o reconocidos por Ia praxis constitucional como
normativizacin de unos valores por y para los cuales se constituye
el Estado social y que, por tanto, fundamentan su legalidad.
No Estado Social de Direito, a Constituio passa a ser entendida
no mais como um mero instrumento de garantia contra o poder do
Estado, mas como mxima dos valores eleitos pela comunidade. Ela
passa a ser vista como um instrumento de ao, aparecendo numa
perspectiva viva, como obra de todos os seus intrpretes e, ainda,
um produto cultural65, que interage com seu meio, sendo produto
desse meio em que est inserida.
63 PELAYO, Manuel Garca. Las transformaciones del Estado
contemporneo . Madrid: Alianza, 1996.
p. 54. 64
Ibidem, p. 64. 65
Conforme conceituao de HBERLE, Peter. Teora de la constitucin
como ciencia de la cultura. Madrid: Editorial Tecnos, 2000.
-
39
Resumindo o que foi dito at agora, Morais66 afirma que:
O Estado Liberal de Direito apresenta-se caracterizado pelo
contedo liberal de sua legalidade, onde h o privilegiamento das
liberdades negativas, atravs de uma regulao restritiva da atividade
estatal. A lei, como instrumento da legalidade, caracteriza-se como
uma ordem geral e abstrata, regulando a ao social atravs do
no-impedimento de seu livre desenvolvimento; seu instrumento bsico
a coero atravs da sano das condutas contrrias. O ator caracterstico
o indivduo.
O desenrolar das relaes sociais produziu uma transformao neste
modelo, dando origem ao Estado Social de Direito que, da mesma
forma que o anterior, tem por contedo jurdico o prprio iderio
liberal agregado pela convencionalmente nominada questo social, a
qual traz baila os problemas prprios ao desenvolvimento das relaes
de produo e aos novos conflitos emergentes de uma sociedade
renovada radicalmente, com atores sociais diversos e conflitos
prprios a um modelo industrial-desenvolvimentista. Temos aqui a
construo de uma ordem jurdica na qual est presente a limitao do
Estado ladeada por um conjunto de garantias e prestaes positivas
que referem a busca de um equilbrio no atingido pela sociedade
liberal. A lei assume uma segunda funo, qual seja a de instrumento
de ao concreta do Estado, aparecendo como mecanismo de facilitao de
benefcios. Sua efetivao estar ligada privilegiadamente promoo das
condutas desejadas. O personagem principal o grupo que se
corporifica diferentemente em cada movimento social.
Justifica-se, aqui, que a Constituio o complexo de normas
fundamentais de um dado ordenamento jurdico ou de uma dada ordem
jurdica fundamental da comunidade onde est inserida, sendo ela o
norte para o estabelecimento dos pressupostos de criao, de vigncia
e de execuo das normas do resto do ordenamento, determinando
amplamente seu contedo e colocando-se como base e fundamento de
validade de todo um sistema.
Aos poucos, observa-se que a teoria constitucional evolui para
um mbito mais aberto, sendo que os princpios constitucionais passam
a ter valor igual ou superior s regras, o que segundo Daz67 acaba
por se transformar numa viragem lingstica que d origem ao conceito
de Estado Democrtico de Direito, em substituio ao Estado social.
Razo pela qual o Direito passa a ser entendido como sendo a
expresso dos valores jurdicos-polticos vigentes em uma determinada
poca.
66 MORAIS, Jos Lus Bolzan de. Do Direito social aos interesses
transindividuais: O Estado e o
Direito na ordem contempornea. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 1996.p. 79. 67
DAZ, Elias. El Estado Democrtico de Derecho en la Constitucin
espaola de 1978. Madrid: Sistemas, 1981. p. 46.
-
40
De acordo com Morais68:
A novidade do Estado Democrtico de Direito no est em uma revoluo
das estruturas sociais, mas deve-se perceber que esta nova conjugao
incorpora caractersticas novas ao modelo tradicional. Ao lado do
ncleo liberal agregado questo social, tem-se com este novo modelo a
incorporao efetiva da questo da igualdade como um contedo prprio a
ser buscado atravs do asseguramento jurdico de condies mnimas de
vida ao cidado e comunidade.
A concepo de Estado Democrtico de Direito o marco do
constitucionalismo, encontrando-se a a regulao social com o resgate
da promessa da modernidade69, onde temos valores supremos
representados por princpios que garantem o respeito aos direitos
humanos fundamentais e almejam a justia social.
Neste momento, entende-se que a sociedade passa a participar
ativamente da vontade geral do Estado Democrtico de Direito, que
percorre por uma constante mutao e ampliao dos contedos do Estado,
refletindo-se na concepo de uma Constituio70 que passa a ser a
expresso mxima dos valores de determinada comunidade, tendo uma
perspectiva viva de acordo com cada intrprete e por conseqncia na
aplicao dos mtodos hermenuticos.
68 MORAIS, Jos Lus Bolzan de. Do Direito social aos interesses
transindividuais: O Estado e o
Direito na ordem contempornea.Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 1996. pp.80-81. 69
Concluso de STRECK, Lenio Luiz. Hermenutica jurdica e(m) crise.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p. 218. 70
De acordo com STRECK, Ibidem, pp. 214-215, "Constituio significa
constituir alguma coisa; fazer um pacto, um contrato, no qual toda
a sociedade co-produtora. (...) A Constituio , assim, a
materializao da ordem jurdica do contrato social, apontando para a
realizao da ordem poltica e social de uma comunidade, colocando
disposio os mecanismos para a concretizao do conjunto de objetivos
traados no seu texto normativo deontolgico".'
-
41
1.3 O Estado Democrtico de Direito e o papel da hermenutica
frente Jurisdio Constitucional
Quando assume a dimenso democrtica71, o Estado de Direito tem
como objetivo a disseminao da igualdade, no lhe bastando a limitao
ou a promoo da atuao estatal, mas tendo como pretenso a mudana do
status quo, com a participao da sociedade.
Na seqncia, cita-se Morais72 ao entender que:
A lei aparece como instrumento de transformao da sociedade, no
estando mais atrelada inelutavelmente sano ou promoo. O fim a que
pretende a constante reestruturao das prprias relaes sociais. com a
noo de Estado de Direito, contudo, que liberalismo e democracia se
interpenetram, permitindo a aparente reduo das antteses econmicas e
sociais unidade formal do sistema legal, principalmente atravs de
uma Constituio, onde deve prevalecer o interesse da maioria. Assim,
a Constituio colocada no pice de uma pirmide escalonada,
fundamentando a legislao que, enquanto tal, aceita como poder
legtimo.
Conseqentemente, se o Estado Liberal de Direito e o Estado
Social de Direito no conseguiram, ao menos ao longo de toda sua
histria, dar conta das progressivas e constantes demandas sociais,
em especial no mbito do ideal de liberdade e igualdade, tem-se que
avaliar novas alternativas para atender as demandas que surgem.
Assim, de acordo com Gomes73:
A dia de democracia, para se concretizar, exige dentre seus
principais requisitos os seguintes: liberdade de pensamento e de
expresso; conscincia das dimenses individual e social, inerentes a
todo ser
71 A dimenso democrtica tem por objetivo o fortalecimento da
cidadania e a garantia dos direitos
humanos - polticos, sociais e civis -, a transparncia do setor
pblico com controle da sociedade, descentralizao, planejamento
participativo e gesto pblica orientada para o cidado, garantia de
segurana pblica e de defesa da soberania nacional, sendo que o
combate s desigualdades econmicas e sociais entendido como condio
necessria para que seja garantido a todos os cidados uma igualdade
real e no meramente formal. 72
MORAIS, Jos Lus Bolzan de. Do Direito social aos interesses
transindividuais: O Estado e o Direito na ordem contempornea.Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 1996. pp. 83-84. 73
GOMES, Sergio Alves. Hermenutica Jurdica e constituio no estado
de direito democrtico. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p.
17.
-
42
humano; prticas garantidas do livre debate, em torno das questes
de interesse individual e social; maior participao [...]; efetiva
vontade de quem exerce o poder, em qualquer de suas esferas, de
empreg-lo to-somente em beneficio da coletividade, segundo os fins
por esta previamente estabelecidos; no perpetuao dos mesmos
governantes, no poder; equilbrio entre o poder poltico, jurdico e
econmico e o indivduo, de sorte a no ser este um objeto nas mos
daquele; mas, sim, sujeito de direitos individuais, sociais e
polticos a serem salvaguardados pela ordem jurdica; respeito
pluralidade de concepes ideolgicas, religiosas, polticas e
filosficas; exerccio da tolerncia, tendo em vista a coexistncia de
mltiplas cosmovises; no diluio do indivduo no grupo do qual
participa; constante busca da supresso das desigualdades materiais,
pobreza, no intento de ajudar os menos favorecidos a se tornarem
capazes de auto promoo e a se reconhecerem como sujeitos dotados de
dignidade.
Assim sendo, segundo Verd74, En el Estado Democrtico de Derecho
sobreviven elementos del Estado social de derecho: regulacin y
garantias de derecho econmicosociales, justicia constitucional;
reconocimiento de los partidos polticos y sindicatos libres".
Apesar da realidade exposta acima, observa-se que o Estado
Democrtico de Direito tem como meta a transformao da realidade, no
se restringindo, como o Estado Social de Direito, a uma adaptao
melhorada das condies sociais de existncia. Assim sendo, pode-se
nominar como caractersticas do Estado Democrtico de Direito:
A. Constitucionalidade: vinculao do Estado Democrtico de Direito
uma Constituio como instrumento bsico de garantia jurdica; B.
Organizao Democrtica da Sociedade onde esto presentes os mecanismos
tradicionais democracia poltica, somados s possibilidades novas de
participao social atravs de atores sociais emergentes, tais como:
sindicatos, associaes, etc.; C. Sistema de direitos fundamentais
individuais e coletivos, seja como Estado de distncia, porque os
direitos fundamentais asseguram ao homem uma autonomia perante os
poderes pblicos, seja como um Estado antropologicamente amigo, pois
respeita a dignidade da pessoa humana e empenha-se na defesa e
garantia da liberdade, da justia e da solidariedade; D. Justia
Social como mecanismos corretivos das desigualdades; E. Igualdade
no apenas como possibilidade formal mas, tambm, como articulao de
uma sociedade justa; F. Diviso de Poderes ou de Funes; G.
Legalidade que aparece como medida do direito, isto , atravs de um
meio de ordenao racional, vinculativamente prescritivo, de regras,
formas e procedimentos que excluem o arbtrio e a prepotncia; H.
Segurana e Certeza Jurdicas.75
74 VERD, Pablo Lucas. Curso de Derecho Poltico. Madrid: Tecnos,
1982. v. 1. p. 144.
75 Classificao dada por MORAIS, Jos Lus Bolzan de. Do Direito
social aos interesses
transindividuais: O Estado e o Direito na ordem
contempornea.Porto Alegre: Livraria do Advogado,
-
43
Como j referido, no Estado Democrtico de Direito a Constituio
acaba por figurar como a lei mais importante do ordenamento
jurdico, por ser resultante da vontade da nao, trazendo as aspiraes
e os valores mais significativos para o coletivo; conseqentemente,
essa mesma Constituio, por meio de regras e de princpios, pode ser
considerada uma construo dos indivduos nela inseridos, que possuem
a capacidade racional de estabelecer os fundamentos bsicos da ordem
social.
De acordo com Gomes76, v-se, pois, que a realizao da democracia
proporcional ao grau de efetivao dos valores encampados pelos
princpios constitucionais e ao nvel de seriedade com o qual a
Constituio venha a ser tratada.
Conforme Magalhes Filho77,
O novo Estado de Direito ou Estado Democrtico de Direito ou,
ainda, Estado Constitucionalista, distingue-se pelo culto
Constituio, com nfase no princpio da constitucionalidade e no
reconhecimento da normatividade dos princpios que consagram
direitos fundamentais, sendo tais preceitos supremos, vistos no
como meros conselhos ao legislador ou simples declaraes polticas de
direitos, mas, antes, como normas vinculantes.
Observa-se, aos poucos, que a Constituio passa a ser a base para
toda as demais normas jurdicas infraconstitucionais, sendo que
qualquer disposio em contrrio das ltimas em relao primeira,
reputa-se uma inconstitucionalidade que se reconhece pelos
mecanismos de controle de constitucionalidade existentes no
ordenamento jurdico.
Compreende-se, portanto, conforme Silva78, que
a igualdade do Estado de Direito, na concepo clssica, se funda
num elemento puramente formal e abstrato, qual seja a generalidade
das leis.
1996. p.75. 76
GOMES, Sergio Alves. Hermenutica Jurdica e constituio no estado
de direito democrtico. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 26.
77
MAGALHES FILHO, Glauco Barreira. Hermenutica e unidade axiolgica
da Constituio. 2. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 64.
78
SILVA, Jos Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo.
12 ed. rev. So Paulo: Malheiros. 1996. p. 119.
-
44
No tem base material que se realize na vida concreta. A
tentativa de corrigir isso foi a construo do Estado Social de
Direito, que, no entanto, no foi capaz de assegurar a justia social
nem a autntica participao democrtica do povo no processo poltico,
de onde a concepo mais recente do Estado Democ