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1 Ano 16, n. 33, dezembro 2014 informe econômico econômico 3 Crise global e o novo ataque aos direitos sociais: a latino-americanização da Europa? Samuel Costa Filho 12 Desigualdade social: uma trajetória de insistência Francisco Mesquita de Oliveira 23 Classe trabalhadora e espaço urbano: o surgimento do bairro Vila Operária em Teresina (PI) (1928-1950) José Mauricio M. dos Santos e Solimar Oliveira Lima 28 Os (des)caminhos da associação interfederativa: o caso do Consórcio Regional de Saneamento do Sul do Piauí João Soares da Silva Filho e Jaíra Maria Alcobaça Gomes 36 O impacto da reputação na avaliação da qualidade percebida do serviço: uma proposta analítica para empresas de consultoria empresarial Christian Bischof dos Santos, Cristiano Molinari Bispo, Heitor Takashi Kato e Tomas Sparano Martins 42 O mundo pós-queda do Muro de Berlim Zilneide de Oliveira Ferreira 47 Interno e Internacional: fronteiras, continuidades ou semelhanças? Notas sobre Gramsci e Waltz relacionadas ao Terceiro Debate Teórico em Relações Internacionais Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos 55 População adulta e situação de rua no município do Rio de Janeiro: as políticas públicas e os serviços sociais Irene Serafino 62 A nova cena da AIDS: um panorama atual que se comunica sobre a doença no Brasil Maria Helena Almeida Oliveira e Francisco de Oliveira Barros Junior 70 Os intelectuais dos anos 1950 e os rumos da educação no Brasil Diana Patricia Ferreira de Santana 74 Os dispositivos disciplinares e a normalização das sociedades modernas segundo Michel Foucault Rosilene Maria Alves Pereira ISSN 1517-6258 Publicação do Curso de Ciências Econômicas/UFPI Ano 16, n. 33 dezembro 2014 i nforme SUMÁRIO EDITORIAL NORDESTINADOS A transmutação que evidencia historicamente a formação social brasileira, em sua estruturação, reagregou sob este trópico elementos componentes de mundos diversos, havidos de fluxos de culturas e riquezas que se expandiam, mobilizadas, inclusive, pelas energias mentais e materiais geradas pelas impulsões da chamada “revolução copernicana”. Expansão dinamizada pela atividade mercantil. O surgimento nesta margem do Atlântico de uma vasta zona de ocupação, pelo labor econômico, implicou a organização de um aparato de macro exploração de caráter colonial-predador, operando um espaço natural quase intocado, expressão genuína do viver humano primitivo. Para os europeus que forçavam então a abertura das cortinas de um mundo que lhes parecia um maná de riquezas mil, logo este imenso país palmeirinho se transformaria numa fronteira das mais promissoras donde extrair ditas riquezas. Como se sabe, ante o olhar ganancioso do invasor, o corpo dos habitantes e sua força laboral constituíram um dos primeiros “bens” a amealhar. O texto que segue como editorial, elaborado pelo nosso colaborador professor Fonseca Neto, reforça a linha desta publicação na leitura crítica das realidades sociais, a exemplo dos artigos apresentados nesta edição. Boa leitura!
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Interno e internacional: fronteiras, continuidades ou semelhanças? Notas sobre Gramsci e Waltz relacionadas ao Terceiro Debate teórico em Relações Internacionais

Feb 24, 2023

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1 Ano 16, n. 33, dezembro 2014informe econômico

econômico3 Crise global e o novo ataque aos direitos sociais: a latino-americanização da Europa?Samuel Costa Filho

12 Desigualdade social: uma trajetória de insistênciaFrancisco Mesquita de Oliveira

23 Classe trabalhadora e espaço urbano: o surgimento do bairro Vila Operária emTeresina (PI) (1928-1950)José Mauricio M. dos Santos e Solimar Oliveira Lima

28 Os (des)caminhos da associação interfederativa: o caso do Consórcio Regional deSaneamento do Sul do PiauíJoão Soares da Silva Filho e Jaíra Maria Alcobaça Gomes

36 O impacto da reputação na avaliação da qualidade percebida do serviço: uma propostaanalítica para empresas de consultoria empresarialChristian Bischof dos Santos, Cristiano Molinari Bispo, Heitor Takashi Kato e Tomas Sparano Martins

42 O mundo pós-queda do Muro de BerlimZilneide de Oliveira Ferreira

47 Interno e Internacional: fronteiras, continuidades ou semelhanças? Notas sobreGramsci e Waltz relacionadas ao Terceiro Debate Teórico em Relações InternacionaisRodrigo Duarte Fernandes dos Passos

55 População adulta e situação de rua no município do Rio de Janeiro: as políticaspúblicas e os serviços sociaisIrene Serafino

62 A nova cena da AIDS: um panorama atual que se comunica sobre a doença no BrasilMaria Helena Almeida Oliveira e Francisco de Oliveira Barros Junior

70 Os intelectuais dos anos 1950 e os rumos da educação no BrasilDiana Patricia Ferreira de Santana

74 Os dispositivos disciplinares e a normalização das sociedades modernas segundoMichel FoucaultRosilene Maria Alves Pereira

ISSN 1517-6258

Publicação do Curso de Ciências Econômicas/UFPI Ano 16, n. 33 dezembro 2014

informeSUMÁRIO

EDITORIAL

NORDESTINADOSA transmutação que evidencia historicamente a formação social brasileira, em sua estruturação,

reagregou sob este trópico elementos componentes de mundos diversos, havidos de fluxos de culturas eriquezas que se expandiam, mobilizadas, inclusive, pelas energias mentais e materiais geradas pelasimpulsões da chamada “revolução copernicana”. Expansão dinamizada pela atividade mercantil.

O surgimento nesta margem do Atlântico de uma vasta zona de ocupação, pelo labor econômico,implicou a organização de um aparato de macro exploração de caráter colonial-predador, operando umespaço natural quase intocado, expressão genuína do viver humano primitivo. Para os europeus que forçavamentão a abertura das cortinas de um mundo que lhes parecia um maná de riquezas mil, logo este imensopaís palmeirinho se transformaria numa fronteira das mais promissoras donde extrair ditas riquezas. Comose sabe, ante o olhar ganancioso do invasor, o corpo dos habitantes e sua força laboral constituíram um dosprimeiros “bens” a amealhar.

O texto que segue como editorial, elaborado pelo nosso colaborador professor Fonseca Neto, reforça a linhadesta publicação na leitura crítica das realidades sociais, a exemplo dos artigos apresentados nesta edição.

Boa leitura!

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2informe econômicoAno 16, n. 33, dezembro 2014

O país objetado nessa narrativa seria apelidado décadas e séculos depois de Brasil e na constitui-ção desuas territorialidades particulares as áreas dos primeiros contatos e engendrações da ordem econômica esocial passariam a ser chamadas de Nordeste, Bahia, Pernambuco e Maranhão, e suas cidades-cabeça, osseus eixos ordenadores estruturantes.

O que no último século se “inventou” como região Nordeste do Brasil, nos quatro séculos antecedentes,constituíra parte da banda norte da América euro-portuguesa. Região social e historicamente formada pelafixação de um sistema econômico estabelecido em unidades produtivas monoculturais movidas pelo trabalhoescravo. Mas como falar-se e ter-se trabalho escravo em plena era da constituição e expansão do sistema docapital e sob a regência do motor mercantilista que afetava toda a dinâmica produtiva colonial? Concitamos àvolta das leituras necessárias de Eric Williams, por exemplo, em seu Capitalismo & Escravidão, e tambémFernando Antonio Novais, em Estrutura e Dinâmica do Antigo Sistema Colonial.

O Nordeste do Brasil de hoje é um campo depredado desses séculos de exploração colonial-mercantil-escravista. A despotencialização de suas riquezas essenciais, no centro de tudo as terras, a mata atlântica,as águas, o sangue dos seus nativos, muito foi extraído em proveito das acumulações necessárias aoreferido sistema do capital, que logo passaria do estágio mercantil do capital para o industrial. O Nordeste doBrasil que o grosso do “capital” sul-sudestino de hoje amaldiçoa é um campo das devastações entre osmuitos que exemplificam os lugares de onde se tirou os materiais construtivos dos pórticos da Era doCapital.

Quando no alvorecer do Oitocentos encaminhou seu processo de autarquização estatal-nacional, o Brasilprotagonizou o deslocamento de seu centro econômico interno, entrando o Norte/Nordeste (e ficando) numacondição de estagnação e de espaço esvaziado de iniciativas que insinuassem o que se chama de progressomaterial-social. Nesse espaço, porém, ficaram, e insistiram, espaços citadinos fragilizados e campos delavras e de criatório gadeiro movendo a economia ao nível da manutenção do imperativo de subsistência desua gente. No plano mais geral do ordenamento da sociedade, um espaço articulado por cultura e formapolíticas que viçam no atraso. Como se nota, nada que se possa ter como determinação das forças cogentesdo meio físico natural, do corpo social etnicamente considerado ou de um atavismo qualquer.

Decorrente da percepção de decadência em face desses deslocamentos dos lugares de produção socialdas riquezas é que são infundidas as leituras do Nordeste como espaço de miséria e de todas as formas deviolência a esta associados. A perversão preconceituosa contra nordestinos emana de um vezo da cultura declasses nutrida nessas outras regiões e carregada de violência para além de simbólica.

O Nordeste do Brasil está engendrando uma conjuntura que já o inscreve nos marcos de retomadassignificativas no caminho da reinserção de sua gente na elaboração do destino brasileiro.Fonseca NetoHistoriador, professor do Departamento de Geografia e História/UFPI, Doutor em Políticas Públicas/UFMA.

ExpedienteINFORME ECONÔMICOAno 16 - n. 33 - dezembro 2014Reitor UFPI: Prof. Dr. José Arimatéia Dantas LopesVice-Reitora: Prof. Dra. Nadir do Nascimento NogueiraDiretor CCHL: Prof. Dr. Nelson Juliano Cardoso MatosChefe DECON: Prof. Esp. Luiz Carlos Rodrigues Cruz PuscasCoord.CursoEconomia: Prof. Dra. Edivane de Sousa LimaRevisão: Zilneide O. Ferreira e João Paulo Santos MourãoProjeto gráfico: Profa. Ms. Neulza Bangoim(CEUT)Jornalista responsável: Prof. Dr. Laerte Magalhães(UFPI)Endereço para correspondência: Campus IningaTeresina-PI - CEP: 64.049-550Fone: (86)3215-5788/5789/5790-Fax: (86)3215-5697Tiragem: 600 exemplaresImpressão: Gráfica-UFPIParceria: Conselho Regional de Economia 22ª Região-PISite DECON: http://www.ufpi.br/economia.

Editor-chefe: Prof. Dr. Solimar Oliveira LimaEditor-assistente: Economista Esp. Enoisa VerasConselho Editorial: Prof. Dr. Aécio Alves de Oliveira(UFC)Prof. Dr. Alvaro Bianchi(Unicamp)Prof. Dr. Alvaro Sánchez Bravo (Universidad de Sevilla-Espanha)Profa. Dra. Anna Maria D’Ottavi(Università degli Studi RomaTER-Itália)Prof. Dr. André Turmel(Université Laval-Canadá)Prof. Dr. Antônio Carlos de Andrade (UFPI)Prof. Dr. José Machado Pais (Universidade de Lisboa-Portugal)Prof. Dr. Leandro de Oliveira Galastri(Unicamp)Prof. Esp. Luis Carlos Rodrigues Cruz Puscas(UFPI)Profª Drª Maria do Socorro Lira Monteiro(UFPI)Profa. Dra. Maria Elizabeth Duarte Silvestre (UFPI)Prof. Dr. Marcos Del Roio(Unesp)Prof. Dr. Marcos Cordeiro Pires(Unesp)Prof. Dr. Mário José Maestri Filho(UPF)Prof. Dr. Manoel Domingos Neto(UFC)Prof. Dr. Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos(Unesp)Prof. Dr. Samuel Costa Filho(UFPI)Prof. Dr. Sérgio Soares Braga (UFPR)Prof. Dr. Solimar Oliveira Lima(UFPI)Prof. Dr. Vitor de Athayde Couto(UFBA)Prof. Dr. Wilson Cano(Unicamp)Econ. Ms. Zilneide O. Ferreira

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CRISE GLOBAL E O NOVO ATAQUEAOS DIREITOS SOCIAIS: a latino-americanizaçãoda Europa?Samuel Costa Filho*

Resumo: Este artigo utiliza a distinção de Milton Santos entre globalização como fábula (palavra) e lógica daglobalização perversa (ação) para, assim, analisar os efeitos da crise do capitalismo global na Europa.Objetiva mostrar que o sistema financeiro internacional na crise usa o Fundo Monetário Internacional paracontinuar o domínio da lógica parasitária financeira, levando a novo ataque aos diretos sociais, ao Estado doBem-Estar Social, para continuar fazendo dinheiro e obtendo lucros. Todavia, a crise significa que esta etapado capital encontrou seus limites e iniciou uma crise final desta etapa rentista e parasitária do capital.Infelizmente, essa crise não representa o fim do capitalismo, embora seja um processo de magnitudemultidimensional, global, que inclui crise econômica mundial, crise na geopolítica, na área social, na política,militar, crise energética, crise alimentar, ecológica, ética e, ainda, uma crise social.Palavras Chaves: Neoliberalismo. Crise Global. Estado do Bem-Estar Social.

Abstract: This article uses of the Milton Santos’s distinction between globalization as a fable (word) andperverse logic of globalization (action), so as to analyze the effects of the crisis of global capitalism in Europe.Aims to show that the international financial system crisis uses the International Monetary Fund to continuethe dominance of parasitic financial logic, leading to a new attack on law social, the Welfare State, tocontinue making money and making profits. However, the crisis means that this capital’s fase found its limitsand began a final crisis of this stage of the parasitary and rentier capital. Unfortunately, this crisis is not theend of capitalism, although it is a process of multidimensional magnitude, which includes global economiccrisis, crisis in geopolitics, in social area, political, military, energy crisis, food crisis, ecological, ethical, andalso a social crisis.Keywords: Neoliberalism. Global Crisis. Social. Welfare State.

1 Introdução

Na década de 80 do século XX, diante da criseda dívida externa, as populações dos países daAmérica Latina foram vítimas dos programas deausteridade impostos pelo Fundo MonetárioInternacional (FMI), tendo suas economias levadasa um agravamento da recessão, ocorrendo aindauma piora da crise econômica e regressão doquadro social. O início do século XXI presencia umacrise econômica financeira em nível global nocapitalismo, de grandes e graves proporções.Nesta realidade, são as populações dos países daEuropa desenvolvida que protestam quanto àutilização em seus países de programas de austeri-dade do FMI, que são postos em prática tantopelos governos de esquerda como pelos de direita.

O FMI, que havia participado de maneirainadequada na orientação da política de transiçãodos antigos países comunistas para economias demercado, somente voltou à cena econômicamundial durante as crises financeiras do México,Tigres Asiáticos, Rússia, Brasil e Argentina.Nessas várias crises dos anos 1990 e,principalmente, na crise dos Tigres Asiáticos, oFMI passou por um verdadeiro vexame por não

antecipar e detectar estas crises. O crescimentomundial do final do século XX e início do século XXI,comandado por um modelo que unia as economiasdos Estados Unidos e da China, relegou o FMI aum papel secundário na conjuntura mundial; porém,a crise econômico-financeira mundial revela que aglobalização financeira não acabou bem.O capitalismo presencia uma crise em nível globalque, apesar de ter sido rapidamente combatida pormedidas de intervenção do Estado, evitou umagrande depressão mundial, mas tem levado aoagravamento da situação da dívida de governos,principalmente em diferentes países da Europa,nos chamados PIIGS (Portugal, Irlanda, Itália,Espanha e Grécia).

Novamente, o FMI foi chamado para defender osinteresses do capital financeiro internacional,aplicando medidas para socializar os custos dofracasso, exigindo austeridade dos governos,transferindo o ônus da crise para a classetrabalhadora, os servidores públicos, os aposenta-dos, e exigindo a redução de direitos sociais dapopulação. As mesmas políticas recomendadaspelo Fundo para os países da América Latina, quesempre se revelaram inapropriadas para promover o

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desenvolvimento econômico e solucionar osproblemas das dívidas, passaram a ser a normapara os governos na Europa. A agenda dosgovernos europeus está contaminada deconservadorismo e de falta de solidariedade sociale internacional. Diante das graves crises docapitalismo global e dado que o G-20 não procurouviabilizar uma solução estrutural adequada, apolítica do FMI nos países da Europa acarretaránovas crises e recuo de direitos e de políticassociais criadas no Welfare State, e segue na linhade latino-americanização da Europa.

Desse modo, o presente trabalho objetivaressaltar que o caminho conservador seguido pelospaíses europeus, adotando políticas do FMI,significa um retrocesso no avanço dos direitossociais, um ataque ao Estado do Bem-EstarSocial, relegando a questão social para segundoplano. Neste sentido, além desta introdução, o itemseguinte apresenta uma abordagem crítica dadiferença entre o uso da “palavra” e “ação” nesseprocesso de globalização. No ponto seguinte, tratada lógica do desenvolvimento do capital financeiroespeculativo nesta fase do capitalismo. Emseguida, aborda as políticas do FMI nos países daEuropa, com ataque aos direitos sociais etransformando os países europeus desenvolvidosem repúblicas sem autonomia de decisão; trata dabusca de um sentido, ressaltando a necessidadede sistema alternativo de ideias em favor dosdireitos sociais, da liberdade, da felicidade,da vida;e, por fim, a conclusão.

2 A diferença entre o uso da palavra e a ação:uma visão crítica da história da globalização

A globalização foi divulgada pela correntehegemônica por meio de uma propaganda de“encantamento do mundo”, disseminado umdiscurso e uma retórica de harmonia, sucesso eprosperidade para os países que aderissemincondicionalmente a este processo. Essa retóricaacarretou um movimento de alienação e adesãoirrestrita de diversos governos a esse processo,alicerçado na linha de pensamento neoliberal e desupremacia de mercado. O FMI, o Banco Mundial ea Organização Mundial do Comércio (OMC)desempenharam papel decisivo na propagaçãodessa ideologia da globalização que representava ointeresse de um número reduzido de atores nacena internacional, no campo da produção, dasfinanças, do consumo, da informação.

Foi na década de 1990 que o FMI, o Banco

Mundial e o Departamento do Tesouro dos EstadosUnidos idealizaram o Consenso de Washingtoncomo receituário de políticas adequadas para ospaíses emergentes para alavancar o seu processode desenvolvimento. Essas medidas, classificadascomo “adequadas” e que a mídia brasileiraclassificou como “dever de casa”, deveriam estarapoiadas nos pilares da austeridade fiscal,privatização, liberalização do mercado de capitais edo comércio.

Esse processo de globalização representa oápice do processo de internacionalização domundo capitalista e cria um novo processo deanexação das economias subdesenvolvidas pelogrande capital dos principais países do capitalismomundial. Held e McGrew (2001), estudando estemomento histórico, afirmam existir duas correntes:a dos globalistas, para os quais a globalização éum acontecimento histórico real e significativo, e acorrente dos céticos, que defende o caráterideológico e mítico do fenômeno chamadoglobalização. Nesta mesma perspectiva, Lima Filho(2004) constata existir os entusiastas, queargumentam ser a globalização um fenômenoresultante das intensas transformações científicase tecnológicas, do fim da guerra fria, da liberdadede capitais, de bens e serviços, de uma sociedadepós-industrial, do fim da história, e a corrente doscríticos, composta por estudiosos que percebemque este é um processo de expansão que ocorrenos marcos do capitalismo; portanto, uma falsanovidade.

A crise do capitalismo global que eclodiu emfins de 2008, principalmente nos Estados Unidosda América (EUA), em diversos países da Europa eno Japão, põe à mostra a fraqueza do processo deglobalização, de dominância financeira, e develevar, em longo prazo, ao descrédito das políticas edo discurso liberal dominante. Esse processo, quefoi imposto de cima para baixo, a partir dos paísesda tríade EUA-Europa-Japão, representa a luta emnível mundial das diversas frações de capitalinternacional hegemônicas, procurando ampliar suaárea de influência, de domínio e de sua hegemoniaeconômica e política em nível global.

Milton Santos (2000), ao estudar o processo deglobalização, constata a diferença existente entre ouso da palavra e da ação. Esta realidade éapresentada como uma fábula (o uso da palavra),mas se trata de uma globalização perversa (o efeitoda sua ação) que, ao encontrar os seus limites,possibilitará uma transformação em defesa de outra

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globalização humana e social. Conforme Santosnão é a palavra, a ideologia da harmonia eigualdade, mas a ação de uma globalizaçãoperversa que domina o cenário mundial. A ideologialiberal do pensamento único criou as condições dealienação e adesão irrestrita a este processo,principalmente nos países em desenvolvimento daAmérica Latina, que somente elevou e agravou oseu grau de heterogeneidade, de dependência e desubordinação ao capital internacional.

O uso da “palavra”, a visão dominante, tentouimpor uma ideia de uma globalização identificadacomo uma nova etapa no desenvolvimento docapitalismo, em que a dinâmica do grande capitalnão necessita mais do apoio dos seus Estadosnacionais, passando, este capital, a ter a naturezaglobal e, consequentemente, levando aoenfraquecimento generalizado desses Estadosnacionais, o que criava a necessidade de seconstruir uma nova estrutura de poder mundialsupranacional. Ainda, segundo a “palavra” e odiscurso liberal, nessa nova realidade passou aocorrer a “mundialização da cultura”, a construçãode valores e de identidades globais que suplantamos valores e as identidades nacionais e locais,formando uma nova “sociedade civil global”- independentemente dos marcos nacionais - que,cada vez mais, deverá encaminhar as suasreivindicações diretamente aos organismosinternacionais

Finalmente, o discurso - a fábula ou o uso dapalavra - afirmava que os Estados nacionais, aoutilizarem uma agenda única de ajustemacroeconômico e uniformização institucional-regulatória orientada para a integração plena dosfluxos de recursos financeiros, de investimento e decomércio mundial, levariam inexoravelmente àhomogeneização e harmonia das economias esociedades do planeta. Entretanto, Milton Santos(2000) percebe o que o discurso de globalizaçãorepresenta: uma fábula, com a construção demitos; um discurso que se apresenta como umafantasia; uma ideologia que tenta encobrir a ação,ou seja, o domínio de uma lógica de globalizaçãoperversa fundada na tirania do dinheiro e dainformação, na luta por competitividade.

A ação perversa da globalização está apoiadano sentido da competitividade e da eficiênciaque provocam uma guerra sem fronteira de todoscontra todos, disseminando uma confusão nosespíritos e propagando a violência estrutural,acarretando o recuo e abandono das medidas e

das políticas sociais realizadas pelo Estado. Trata-se de um processo que estimula o egoísmo, oindividualismo e o consumismo, o abandono danoção de generosidade e de humanização. Omundo das finanças se apodera do Estado, dadinâmica da economia mundial, levando, cada vezmais, ao domínio da racionalidade e da dinâmicada economia mundial a ser comandada pelasgrandes empresas e pelo grande capital financeirointernacional. Eis, pois, a ação.

A ação perversa, nessa globalização,impulsiona uma política de encolhimento dasfunções do Estado, leva ao retrocesso quanto ànoção de bem público e ao abandono da noção eda questão da solidariedade e da generosidadepessoal e universal. A ação estimula alastrando eaprofundando as mazelas espirituais e morais, como crescimento do egoísmo, do cinismo e dacorrupção, exacerbando o imediatismo, o culto aoconsumo, ao desperdício, os excessos doconsumismo de coisas inúteis, do narcisismo, comum processo de crescimento da ética pragmáticaindividualista, tendo o dinheiro e o consumo comoos objetivos reguladores da vida. A pobreza éabandonada à sua própria sorte e tratada comofenômeno banal, natural e inevitável. Esta questãoda pobreza passa a não ser mais apenas umaquestão de especificidade histórica de cadarealidade de capitalismo nacional, estandopresente em toda parte do mundo - sendoestrutural e ficando o poder público desobrigado datarefa de proteção social.

Petrella (1997) afirma que o processo deglobalização liberal implica na aceitação das “novastábuas da lei de Deus”; leis mais rigorosas do quea colocada pela civilização cristã; leis queconsagram uma nova aliança entre o mercado e oconjunto da humanidade, dominando, como leigeral, a vida social e tendo na regra da competitivi-dade o guia humano e para a sociedade. O serhumano deve a ela se adaptar por toda aeternidade; e essas regras não aceitamdesobediência e contestação, tendo os indivíduos,empresas e países, como única alternativa, aliberdade de submeter-se ao mercado. Em caso derecusa, de cair na tentação da desobediência,quem ousar, não terá perdão; será simplesmenteeliminado do mercado - do mercado de trabalho, domercado de bens, do mercado de capitais, domercado mundial etc. Trata-se na verdade de umafábrica de perversidade.

Em sua análise sobre o processo de

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globalização, Milton Santos (2000) revela que aação apresenta diversos traços e aspectos quedominam o mundo dessa globalização perversa:a) um denso sistema ideológico que envolve,orienta e sustenta as ações para que os indivíduosnão entendam a evidência dos fatos, com a técnicada informação sendo utilizada pelo Estado e pelasempresas para atender a objetivos particulares,manipulando a informação e impedindo adescoberta da verdade, e para que as pessoas nãopassem a ter atitude e visão crítica;b) ocorre uma adaptação dos comportamentoslocais aos interesses globais, com o Estadofavorecendo aos atores hegemônicos eprevalecendo os interesses corporativos sobre osinteresses públicos, sem qualquer compromissocom a sociedade local;c) aumenta o repúdio às ideias, às práticas, àdefesa da questão social e cresce o apoio contraas medidas de políticas públicas e de defesa dosdireitos da classe trabalhadora e dos membros dasociedade;d) ocorre a criação de uma nova hierarquia nosgastos público, empresarial e privado engajados nadefesa dos interesses da financeirização daeconomia, sendo, nessa linha, a busca dointeresse social e a defesa dos mais necessitadosuma prática de cunho de solidariedade,assistencialista, política para o terceiro setor;e) este modo de vida não beneficia e nem interessaà maioria da humanidade, mas cria uma orgia deconsumo de coisas e necessidades supérfluas queimpõem relações e governam as pessoas,produzindo e recriando carências e escassez, numprocesso de recriação de necessidades infinitas;f) trata-se de necessidades fabricadas e impostaspor meio da publicidade e do consumo conspícuode coisas e necessidades que passam a nosgovernar, criando desejos insatisfeitos, passando oconsumo e o conforto material a ser o principalmotor da vida, sem a verdadeira tomada deconsciência deste estado de coisas;g) este mundo globalizado produz umaracionalidade comandada pelos grandes negócios,cada vez mais concentrado e centralizado empoucas empresas e pessoas, que aumenta o graude dependência dos países subdesenvolvidos,levando a um processo predominante desubordinação, obediência e conformismo dospaíses capitalistas;h) as instituições públicas nacionais passam a ficarfrequentemente mais dóceis e subservientes,

deixando de lado os interesses próprios de cadanação e abandonando qualquer alternativa deprojeto nacional; ei) as burguesias dos países emergentes continuama aceitar, pregam e conduzem uma modernizaçãoajustada aos interesses do capital financeirointernacional, de cima para baixo, conduzida pelasburguesias internacionais e pelas burguesiasnacionais associadas.

3 Lógica do capitalismo especulativo,parasitário, rentista

A lógica do capitalismo se reduz e setransforma nesse capitalismo globalizado. Adominância do circuito D - M - D’ passa a serinfluenciado em maior peso pela busca da liquidez,pelo aspecto financeiro, com o circuitopredominantemente se restringindo à dinâmica D -D’ - típico do capital financeiro, portador de juros, odo capital fictício. Esse circuito de valorizaçãofinanceira (D - D’) supera a lógica do circuito realda economia (D - M - D’) e reduz as oportunidadesde valorização produtiva. Configura assim um novoregime de acumulação mundial que adquiriu amarca, cada vez mais nítida, de um capitalismopredominantemente rentista e parasitáriosubordinado às necessidades do capital-dinheiro.

Nesse processo de globalização, a dinâmica docapital produtivo é suplantada pelo capitalespeculativo, parasitário e financeiro. O capitalfictício sob a forma de ações, títulos da dívidapública e dívida privada, mera e pura transações depapéis, passa a dominar a cena, sendotransacionados com grande flexibilidade efacilidade, por meio de práticas especulativas.Ocorre uma diversificação de investimentos, querseja no mercado de ouro, de commodities, emimóveis, em ações, por meio de práticas dederivativos e securitização, sem a adequadaregulamentação. A atividade financeira passa a sera atividade preferida do grande capital, elevando aespeculação a um nível que acarreta a formação debolhas, que tende a provocar grandes colapsosfinanceiros (CARCANHOLO; NAKATANI, 2002).

O capital a crédito, que tinha o objetivo definanciar a atividade capitalista na formação dariqueza real, nos processos de produção e decirculação dessa riqueza (produtos e serviços), emvirtude da ilusão do capital a juros, o “capitalilusório”, cria o “capital fictício”, que representa odireito de remuneração em atividades decomercialização de um título, ou seja, na sua

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venda, que, com esse processo, não contribui parafinanciar o capital (produtivo ou comercial). Estecapital fictício não apresenta e nem possuinenhuma substância real por trás dele. Este fato setorna possível em virtude de na economiacapitalista existir o trabalho produtivo real, que gerariqueza na forma material e nos serviços, que,acumulado, transforma-se em mais capital.Todavia, existe um trabalho útil, porém improdutivo,que faz parte da atividade capitalista, seja capitalimprodutivo, não criando riqueza, representandomera transferência de riqueza entre os indivíduos eas empresas (CARCANHOLO; SABADINI, 2009).

A dominância do capital financeiro expande ocapital fictício, faz a economia descolar a relaçãoentre o âmbito produtivo e financeiro. O lucrofictício apresenta a ilusão de realização fácil egarantida. A expectativa de realização individual(sua compra e venda) mantém a crença e asexpectativas que podem ser tornadas reais na suatotalidade em qualquer momento (ocorre que nuncatodos podem vender imediatamente suas ações nabolsa). Esta impossibilidade de tornar real atotalidade dos lucros fictícios não é colocada nodiscurso dos economistas ortodoxos, dada suaconcepção positivista e metafísica de aceitar que aatividade financeira, por ser atividade geradora delucro, atua como “capital”, ou seja, é atividadeprodutiva.

Esta dinâmica financeira rentista difundiu acrença na globalização harmônica, encobrindo oprocesso de ampliação da concorrência em nívelmundial, da procura de ampliar e ganhar mercadospelo grande capital internacional, com a integraçãoeconômica. A agenda neoliberal foi usada como“palavra”, nesse processo, com o objetivo e comoarcabouço de políticas orientadas para eliminar aspolíticas nacionais alternativas e atacar o Estadodo Bem-Estar Social, objetivando reduzir os direitossociais, desprestigiar o papel do Estado, promovera desintegração das organizações operárias edespolitizar a sociedade. No discurso e na “palavra”dominam o esforço para difundir o ponto de vista desuperação do imperialismo, as ideologias e aspolíticas de origem e de dominação dos paísescentrais. Assim, a globalização foi difundida comoregida por leis diferentes daquelas que regulavam ocapitalismo; sendo que na “ação” o atual estágiorepresenta um processo histórico de expansão docapital.

A crise global do sistema capitalista representao início do colapso dessa etapa especulativa,

parasitária, rentista do capitalismo. Não decorre deuma questão de falta de regulação e depermissividade das políticas dos governos, comoafirmam os economistas keynesianos. A crise éprópria das contradições do sistema capitalistafinanceiro, que gerou um descolamento entre asórbitas da produção e da apropriação de riqueza,com o lado real não podendo gerar o excedentenecessário para atender ao conjunto do capitalfinanceiro e do capital produtivo (CARCANHOLO,2011).

Na realidade, trata-se de uma grande crise docapital especulativo e parasitário desse sistemarentista, do capital fictício, onde mais uma vez seconstata que o capitalismo apresenta acaracterística de ser inerentemente instável,apresentando crises periódicas e causando muitadesolação, tristeza e dor para a maioria dapopulação do globo no seu processo de ajuste decontas, como pode ser constatado pelo elevadodesemprego nos EUA e pelos efeitos das políticasdo FMI adotadas pela Grécia, Irlanda e Portugal, ejá antecipada pela Espanha, em um processo delatino-americanização de democracias da Europa.

4 A crise global e o novo ataque aos direitossociais

O domínio do capital financeiro levou a umincremento descontrolado do endividamento públicoe privado (hipotecário, corporativo, crédito,consumo) que, por sua vez, levou a uma crisecreditícia e hipotecária dos principais bancos dosEUA e europeus, espalhando-se por todo o mundocapitalista, obrigando os bancos centrais a resgataros bancos e as empresas falidas. Assim, osEstados assumiram dívidas volumosas, a tal pontoque levou à falência diferentes governos em paísesda Europa, principalmente nos PIIGS, que foramobrigados, via mercado, a aceitarem o “socorro” doFMI, e com políticas econômicas de austeridade.

As décadas de supremacia do neoliberalismoelevaram a desigualdade e destruíram até aeconomia americana. Em muitos países europeus,os banqueiros e a mídia financeira exigem queseus governos sacrifiquem a economia e o bem-estar de sua população para pagar a dívida,implementando políticas de “eficácia” duvidosa doFMI - uma política de austeridade que promete levara recuperação dessas economias, mas com osacrifício e à custa das necessidades de seu povo.Os grandes bancos que tiveram comportamentoirresponsável e fraudulento foram poupados da

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bancarrota. Os grandes bancos, ao possuir enormepoder, não poderiam ser abandonados à própriasorte, ou seja, como se diz no jargão da ortodoxia,eram empresas grandes demais para quepudessem quebrar.

Trilhões de dólares foram usados para salvar,fundamentalmente, o sistema financeiro, osmaiores especuladores mundiais, mas deixou-seque as empresas pequenas quebrassem, que aclasse trabalhadora perdesse seus empregos eprovocou enormes dívidas governamentais. Ocorreque essas políticas dos governos encorajaram osistema bancário a continuar o seu jogoespeculativo, com as mesmas práticas quedeterminavam a lucratividade dos bancos,estimulando o sistema financeiro internacional acontinuar correndo ainda maiores riscos, eatacando os governos que haviam acabado desalvá-los da bancarrota.

Os governos preferiram aplicar medidas decortes no orçamento público na área de educação,assistência social, assistência à saúde, eminfraestrutura social básica, apoiados na ideia deque a política de austeridade vai trazer junto aprosperidade econômica aos países da Europa,embora o quadro econômico e social europeu tendaa se agravar, semelhante à América Latina nosanos 1980 e à Ásia nos anos 1990, quando dasexperiências do FMI nessas regiões (HUDSON;SOMMERS, 2011).

A crise global confirma a velha afirmação deMarx (2008) de que a história se repete duas vezes:a primeira, como tragédia; a segunda, como farsa.A história econômica da crise do modelo liberal de1929 terminou com a tragédia do fascismo e daSegunda Guerra Mundial. A crise econômico-financeira neoliberal revela a farsa e o embuste quefoi o período, que criou uma fábula para explicar edefender um processo de globalização perverso.

Na denominada “época de ouro do capitalismo”,entre 1945 e 1970, em diferentes países da Europaconstruíram o chamado Estado do Bem-EstarSocial, devido, no momento histórico, à dominaçãocapitalista necessitar do apoio da classetrabalhadora para, simultaneamente, afastar aameaça de revoluções comunistas e para conseguira colaboração e cooptação dos trabalhadores. Nacrise do capital financeiro na Europa, está-seaplicando políticas conservadoras e o Estado deuprioridade à aplicação de medidas que obrigavamum retrocesso social, iniciando a eliminação dosdireitos sociais e das conquistas trabalhistas

conseguidas pós-Segunda Guerra Mundial. Ocapital retornou à antiga política de exploração declasse típica do século XIX (SANTOS, B., 2010).

O vexame dessa crise obrigou à criação de umanova visão ideológica da causa, do funcionamento eda dinâmica dessa crise da sociedade capitalista.Conforme se pode perceber em Boaventura Santos(2010), essa nova palavra vem sendo usada comoum novo engodo, um senso comum para explicar oretumbante fracasso do capital financeiro e docapitalismo neoliberal. Segundo esse novo discursodo mercado, a crise é consequência de um períodode esbanjamento da sociedade que estava vivendoacima das suas possibilidades. Tratava-se de umperíodo de bonança insustentável para as possibili-dades da economia. Devido a esta justificativa, acrise financeira mundial revela que a população dospaíses dos PIIGS terá que pagar a conta peloesbanjamento anteriormente realizado pelo povo epelo Estado, e os cidadãos devem aguentar osremédios amargos que foram indicados pelo FMI.

O discurso em defesa do capital financeiro temsido repetido e difundido pelas principais agênciasfinanceiras internacionais e até pela grande maioriados governos dos países desenvolvidos, que a cadadia estão mais conservadores. Estes estão aapresentar a crise financeira como uma farra deconsumo, do fim de um período de bonança e bem-estar vivido pela sociedade, pelas empresas e pelopróprio Estado. Assim, o Estado assumiu seupapel histórico, aplicando a política de socializaçãodos prejuízos, ficando com as dívidas privadas, eos grandes credores não arcando com qualquerprejuízo. Na “palavra” reaparece um Estadoineficiente e perdulário que, para arcar com seuscompromissos de classe e salvar o capitalfinanceiro, tem que cortar os gastos sociais ereduzir os serviços, despedir funcionários públicos,diminuir salários, privatizar estradas, ferrovias,aeroportos, empresas públicas e até loterias.

Assim, a Europa, diante da crise financeira,apresentou a resposta mais conservadora,burocrática e retrógrada possível à crise global,esta é a “ação” retrógrada. A “resposta” da UniãoEuropeia (UE) sempre foi a pior possível.Comandados pela Alemanha, apoiam-se na ideiade que os Estados devem responder a esta crisedo sistema financeiro cortando despesas,diminuindo direitos sociais e reduzindo os serviçospúblicos, de modo a permitir o pagamento e aremuneração dos credores do Estado, semelhanteà América Latina nos anos 1980.

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O problema da Irlanda não foi criado por gastopúblico irresponsável e não é apenas a crise daspolíticas neoliberais; é uma crise da globalizaçãofinanceira, que antes era apresentada como fábula,um ufanismo, com um processo de globalizaçãoque desenvolvia necessariamente a solidariedade.Todavia, a “ação” demonstra como o melhor alunoeuropeu, sempre aplicando as políticas neoliberais,apresentando inclusive superávits fiscais nos cincoanos anteriores à crise do capital financeiro, foi àbancarrota quando a crise dos bancos privadosexplodiu e levou seus bancos à falência. O Estadoirlandês tentou salvar o capital rentista e atuou nalinha recomendada pelos economistas de mercadoe, ainda assim, foi penalizado. A resposta daGrécia não salvou os outros PIIGS do saquerealizado pelos piratas do capital financeiro.

Na Grécia, a precariedade das contas públicasfoi relizada por um governo de direita e contou comauxílio do Goldman Sachs nesse processo deformção do caos vivido pelo povo grego. Assim, asnações do PIIGS estão em dificuldades por razõesmuito além do deficit do governo. A fase definanceirização da economia levou aoendividamento das empresas e das famílias,aprofundando a perda de competitividade dosPIIGS, em relação aos países da Europa Oriental,em decorrência dos baixos salários dos últimos;levou os bancos a ficarem quebrados; elevou anecessidade de manter serviços sociais epagamento dos auxilios-desemprego em meio àqueda de receita devido à crise financeira desde2008.

Nesse quadro, os países do PIIGS estão sendoainda obrigados a pagar juros punitivos parasatisfazer e atender ao interesse do sistemafinancerio da Alemanha, cortando gastos sociais epiorando o quadro de endividamento e recessão.Os bancos que foram resgatados com o dinheirodos impostos arrecadados de todos oscontribuintes europeus agora exigem que essesmesmos cidadãos contribuam, ainda mais, para aelevação de seus lucros financeiros e salvar seusgovernos aceitando medidas que significam perdados direitos sociais de lutas históricas e de difícilconquista da classe trabalhadora e do povo -criaram novas “palavras” para encobrir aperversidade das “ações”. A verdade é encoberta.Nos países onde a crise é mais grave, os cidadãosestão sendo enganados pelas ideias deausteridade e de sacrifícios compartilhados.Criou-se uma mentira que encobre que a crise é do

capitalismo na etapa do capital financeirodesregulado que se deu bem e viveu acima dolimite e esbanjou - que no período de bonançaaparecia extremamente lucrativo. Na crise, osistema financeiro é poderoso e forte demais e, nãopodendo ser abandonado e quebrar, exige o avançona dissolução do Estado do Bem-Estar Social e oesvaziamento das funções do Estado.

Os pacotes de ajuda via Estado não procurarammudar nada na dinâmica da economia financeiramundial e levaram a UE a um contágio que atingiuos PIIGS. Todavia, ao aceitar as regras impostaspelos piratas das finanças, a UE provocou maiscrise, manutenção da queda no nível decrescimento e no emprego e não conteve ocontágio. À quebra da Irlanda, seguiram-se as daGrécia e de Portugal e será acompanhada embreve pela da Espanha e Itália. A própria Inglaterranão pode dormir tranquila. O Estado, a quem,pretensamente, caberia e deveria, no mínimo,domesticar os mercados financeiros, criandoregulamentação adequada, continuou na suamissão de subserviência ao capital financeiro, nãoproduziu reformas significativas e, comoconsequência, muitos dos governos que salvaram opescoço dos mercados financeiros mundiais estãosendo intimidados por estes mesmos mercados,via dívidas públicas que foram criadas para salvaros lucros desse capital financeiro.

Diferentemente das palavras, da fantasia deharmonia, a ação mostra uma falta de solidariedadeinternacional, um egoísmo social, até a diminuiçãoda solidariedade entre parte de um mesmo paístem-se desenvolvido na Europa. Está abalada adefesa dos valores que historicamente fizeramparte dos povos europeus, como a noção deliberdade, igualdade, tolerância, fraternidade. Estefato aponta para a dificuldade de manter o Estadodo Bem-Estar Social e os direitos dos cidadãosduramente conquistados, se vencerem a linhaconservadora de latino-americanização da Europa,que acaba minando o Estado do Bem-Estar Social,e caminha para destruir a UE.

5 A busca de um sentido: a defesa da questãosocial e da construção de um sistemaalternativo (a ideia de vida)

Urge a dissolução dessa ideologia, uma tomadade consciência, uma visão crítica sobre esteprocesso de globalização que serve de alicerce àsações hegemônicas do capital financeirointernacional, das grandes empresas, dos Estados

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do mundo desenvolvido, com apoio das principaisinstituições internacionais, impostas de cima parabaixo, em detrimento da humanidade, da liberdade,da igualdade e da felicidade. Deve-se resgatar aideia de utopia, o reino das possibilidades, o reinoda vontade na perspectiva de construção de umfuturo diferente sem a centralidade do consumoostensivo e da ideologia do discurso pós-moderno,que constrói símbolos e propaganda ostensiva,ideologia com objetivo e discurso.

O FMI, que impôs à Grécia uma agendaortodoxa de austeridade desleal e injusta, jáfracassou em recuperar a economia, agravando aquestão financeira do Estado. Mesmo assim, jáinicia uma segunda fase de martírio grego,adentrando com políticas de privatização queobjetivam a partilha do patrimônio público do povogrego - processo de privatização das empresaspúblicas, que inclui rodovia, aeroportos, ferrovias eaté loterias para cumprir novas exigências emedidas de austeridade do Fundo. Na Grécia, ossalários dos trabalhadores caem, as escolas ehospitais estão sendo fechados, professores emédicos perdem seus empregos, jornalistas sãocensurados, os sindicalistas perseguidos, osdemitidos não recebem indenização ou aceitamcortes de salário, a polícia reprime os protestosdos cidadãos, os sem-teto vasculham os caixotesdo lixo à procura de alimento. Os trabalhadores nãopodem fazer greve, não podem se organizar deforma coletiva, as férias foram cortadas e adoecer éum risco demasiado grande, tudo semelhante aoocorrido nos países da América Latina na décadade 80 do século XX (KOUKI, 2011).

Na Irlanda, após o fracasso do neoliberalismo,ocorreu também a implementação de medidas deausteridade terríveis no plano social. O governoirlandês e o FMI infligiram à população umprograma de ajuste estrutural assentado emmedidas impostas há três décadas aos paísessubdesenvolvidos e da América Latina. Dentre asmedidas adotadas, ocorreu a eliminação de 24.750postos de trabalho de funcionários públicos, osnovos contratos de trabalho passaram a ser feitoscom o pagamento de 10% a menos do que osanteriores à crise, ocorreu uma redução dastransferências sociais e a diminuição das ajudas aodesemprego e às famílias carentes, sem contar aredução no orçamento de saúde e congelamentodas pensões (TOUSSAINT, 2011).

Em Portugal, a consciência crítica já fezBoaventura Santos (2011) alertar que a receita do

FMI irá privatizar o que resta do setor empresarial efinanceiro do Estado, propor medidas deprecarização do trabalho, cortes nos gastos, nosserviços e nos subsídios do setor públicos, cortesnas pensões e nos salários, causando eaprofundando a crise portuguesa, como aconteceuna Ásia Oriental e na América Latina. Recentemen-te, milhares de pessoas na Espanha intensificaramprotestos contra a situação econômica do país eestão procurando evitar destino similar aos dePortugal, Grécia e Irlanda, que tiveram que recorrerao auxílio da UE e do FMI aceitando medidas deausteridade que agravam o quadro econômico esocial. Nessa realidade, os partidos de direitailudem o povo, apresentando à nação, comoinimigos, os imigrantes, os árabes, os excluídos,os direitos sociais etc., difundindo a xenofobia.Como nos países da América Latina, a adoção dasmedidas do FMI pelos países da Europa somentetem servido para agravar a heterogeneidade, adependência e a subordinação dos países do PIIGSao capital financeiro internacional. Governossupostamente progressistas, usando plataformasconservadoras, têm sido a norma na Europa.

Para Beinstein (2011), esta crise representa aomesmo tempo o início do declínio desse sistema; ea propalada recuperação econômica que a mídiadivulga representa apenas um alívio passageiro.Beinstein afirma ainda existir uma multiplicidade decrises, como a crise financeira, a crise produtiva, acrise alimentar, a crise energética, a criseambiental e a crise do complexo militar do impérioamericano. Neste mesmo sentido de crise global,Dierckxsens et al. (2010) defendem a tese de que acrise iniciada em 2008 representa uma “crise dacivilização” capitalista, uma crise extensa, profundamultidimensional, de alcance global, que inclui umagrande crise mundial econômica, geopolítica,social, política, militar, energética, alimentar,ecológica, ética e social.

Os avanços da civilização europeia e a suaintegração baseada em um sistema de liberdade,paz, democracia e justiça social, com valores quereafirmem a fraternidade, a harmonia, a vida e aética solidária, devem ser resgatados. A defesa daheterogeneidade das identidades entre continentes,entre os países, os povos, as culturas, os setoressociais, étnicos, regionais, todo tipo dediferenciação, deve ser preservada. A defesa dalegalidade, da maioria, da democracia e daigualdade deve ser o objetivo do processo derecuperação da economia e da sociedade europeia.

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Este deve ser o paradigma a guiar os demais povosdo planeta.

6 Conclusão

A crise do capitalista, infelizmente, não significao início da derrocada deste sistema; apenasrepresenta o início do fim da fase especulativaparasitária rentista. Esta atual crise, que não é aprimeira e nem será a última, revela-se uma grandecrise do capital especulativo e de sua lógica fictíciae rentista. Novamente, constata-se que o capitalis-mo apresenta a característica de ser inerentementeinstável, apresentando crises periódicas; e, apósessas crises, o capitalismo deve ressurgir maisvigoroso, mais dinâmico e mais pujante que antes.Assim, infelizmente, a crise não levará ao fim dosistema capitalista. Todavia, para sua recuperação,irá cobrar e custar muita desolação, tristeza e dorpara a maioria da população do globo.

O domínio dos valores éticos, culturais eideológicos da racionalidade neoliberal e o domíniodo capital rentista estão levando a Europa apolíticas conservadoras que fracassaram naAmérica Latina e na Ásia. Avanços na integraçãoeuropeia exigem que se abandone a opçãoortodoxa do FMI e que se prossiga na construçãode um sistema baseado em liberdade, paz,democracia e justiça social por meio de valores quereafirmem a fraternidade, a harmonia, a éticasolidária e sustentada na ideia de vida.

Milton Santos, na sua análise da globalização,finalizou otimista. Ele afirmou que a palavra, aprodução dessas meias-verdades, desses mitos,não impedem que, nessa realidade, nascesse,crescesse e se desenvolvesse uma sociodiversida-de devido à mistura de povos, raças, culturas,gostos, pessoas e filosofias, de todos os continen-tes, que criaria e possibilitaria o surgimento de umnovo discurso, de uma nova realidade, a construçãode outro mundo possível. Faz-se necessáriocomeçar a construir o mundo para melhor servir eatender à população e não para atender àsinstituições financeiras internacionais e aosinteresses dos negócios globais. Dierkxsentambém afirma que a crise abre oportunidades paraa construção de novos caminhos na linha queassegurem a paz, a democracia, a liberdade, ajustiça, a dignidade humana, o progresso e asegurança no convívio dos seres humanos e emharmonia com planeta o Terra.

Será possível isso no capitalismo? Tenhomuitas dúvidas

* Professor Adjunto do Departamento de CiênciasEconômicas da Universidade Federal do Piauí (UFPI),economista, mestre em Economia pelaUniversidade Federal do Ceará (UFC), doutor emPolíticas Públicas pela Universidade Federal doMaranhão (UFMA).

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DESIGUALDADE SOCIAL: uma trajetória deinsistênciaFrancisco Mesquita de Oliveira*

Resumo: Este trabalho analisa o fenômeno da desigualdade social no Brasil, bem como a criação dascondições de igualdade de oportunidades para todos. Desde a colonização até o inicio da modernização doEstado, praticou-se uma postura de indiferença em relação às desigualdades sociais. Somente nos anos de1930 é que foram instituídas as primeiras políticas sociais de direitos dos trabalhadores. Durante o regimepolítico autoritário, a desigualdade social cresceu e foi tratada como caso de polícia. Com aredemocratização do Estado, governos flexíveis, participação da sociedade civil organizada, nos anos 1990, oEstado dispôs-se a debater políticas de enfrentamento da fome, da pobreza e da desigualdade social comopolítica pública de direito social.Palavras-chave: Desigualdade social. Pobreza. Distribuição de Renda. Educação.

Abstract: This work analyzes the phenomenon of the social inaquality in Brazil, as well as creation of theconditions of equality of chances for all. Since the settling until the beginning of the modernization of theState, a position of indifference in relation to the social inaqualities was practised. In the years of 1930 the firstsocial politics of rights of the workers had only been instituted. During the regimen authoritarian politician thesocial inaquality grows and was dealt with as case policy. With redemocratização of the State, flexiblegovernments, participation of the organized civil society, in the years of 1990, the State made use to debate itpolitics of confrontation of the hunger and the poverty, as social right public politics and.Keywords: Social inaquality. Poverty. Distribution of Income. Education.

1 Considerações iniciais

O fenômeno desigualdade social, na realidadeprática e conceitualmente, como categoriaanalítica, não é novo. Na Revolução Francesa de1789, por exemplo, o lema “Liberdade, Igualdade eFraternidade” impulsionou o movimentorevolucionário numa cabal demonstração de que àépoca, na França, não existia igualdade política,econômica e social entre os indivíduos. A partir deentão, esse lema se tornou uma espécie de cartaprogramática das lutas por liberdade política eigualdade social em diversos países. O conceito deigualdade, como parâmetro de análise sobre asorigens das desigualdades econômicas, políticas esociais entre os indivíduos foi insistente objeto deanálise dos pensadores contratualistas efundamentadores do pensamento liberal burguês,como Hobbes, em “Leviatã”; Locke, em “Doistratados sobre o governo”, e Rousseau, em “Ocontrato social” (FERREIRA, 2003).

A busca pela superação da desigualdade socialna sociedade moderna vem sendo abordada sobduas perspectivas: a ideia de igualdade absoluta(igualdade total na situação socioeconômica dosindivíduos) e igualdade relativa (igualdade deoportunidades a todas as pessoas da sociedade).A absoluta é irrealizável, uma utopia, devido ànatureza de insatisfação das pessoas em acumularbens, dinheiro, poder, riqueza e, por isto mesmo,

uma permanente disputa entre indivíduos,expressada pela máxima medida de enchernunca enche. A igualdade relativa torna-sepossível à medida que os grupos sociais menosfavorecidos conquistam mais direitos; e estes setraduzem em políticas públicas de distribuição derenda, gerando equidade social (DIAS, 2001;GIDDENS, 2005). Equidade social é a justadistribuição de renda (riqueza produzida pelotrabalho) na sociedade, compreendida como odireito de as pessoas participarem não “só daatividade política e econômica, mas também odireito de contar com os meios de subsistência(adequada segundo suas necessidades) e com oacesso a um conjunto de serviços públicos quepermitam manter um nível adequado de vida”(WOLFE apud DIAS, 2001, p. 152).

No Brasil, a desigualdade social está presentedesde seu surgimento, em diversas dimensões(política, econômica, social, racial, regional ecultural), de forma exacerbada ao longo da históriada sociedade. No período colonial, foi imposto omodelo econômico escravocrata, no qual o escravoera a principal mão de obra e, por ser elecomprado, não tinha participação na renda. Osdemais trabalhadores pobres foram excluídos já nadivisão das terras brasileiras; pelo Estatuto daTerra, negros, índios e pobres não recebiam terrapara trabalhar. No primeiro período republicano

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(1889-1930), o País adotou o modelo econômicoagroexportador, que fortaleceu sobremaneira onascente capitalismo brasileiro com trabalhoassalariado nas fazendas de café e nas primeirasindústrias têxteis e tipografias. O valor e o tempodo trabalho assalariado não eram regulamentados,cabia ao empregador determinar esses fatores.O modelo político era oligárquico, com oligarquiasrurais aliadas à nascente burguesia industrialurbana; a pobreza e desigualdade social eramcasos de polícia (FERREIRA, 2003).

Entre 1930 e 1964, o Brasil viveu um ciclovirtuoso de desenvolvimento econômico capitalista,acelerou-se o processo de implantação econsolidação industrial em várias áreas: metalurgia,automobilística, química, petroquímica, alimentícia,eletrodomésticos, entre outros. Nesse períodoapareceram políticas públicas visando minimizar adesigualdade social através de uma política desalário mínimo, aposentadoria, regulamentação dajornada de trabalho, cuidados mínimos com asaúde do trabalhador, planos habitacionaisdestinados a grupos de pessoas, sob aresponsabilidade do Estado. O modelo político, aospoucos, passou do oligárquico ao populista, deGetulio Vargas (1930), instalou-se o Estado Novo(1937-1945) e a democracia política (1946-1963). Omodelo econômico foi do nacionaldesenvolvimentismo de Juscelino Kubitschek àspolíticas de reformas de base de João Goulart(1963) (FERREIRA, 2003).

A questão social nesse período mudou: ostrabalhadores organizaram-se para garantir maisdireitos sociais e rendimentos salariais. Noentanto, os altos rendimentos capitalistas ficaramconcentrados nas mãos da elite industrial, a massade trabalhadores tinha baixos salários, o êxodorural, pela ausência de políticas públicas para ocampo, encheram as cidades de desempregados eaumentou sobremaneira os índices de pobreza noPaís. No inicio dos anos 1960, com a construçãode Brasília, instalou-se uma crise nas finançaspúblicas que obrigou ao endividamento externo doBrasil e criou uma instabilidade política quedesembocou no golpe de estado pelos militares em1964. Nos governos militares (1964-1985), omodelo político era totalitário; o econômico,chamado por alguns de desenvolvimento comsegurança, sustentou-se no tripé capital nacional,capital estrangeiro e Estado empresarial autoritário;e a desigualdade social agravou-se, a organizaçãodos trabalhadores e os movimentos sociais foram

tratados, novamente, como caso de polícia equestão de Estado (FERREIRA, 2003).

Não faltam exemplos ilustrativos para essarealidade na sociedade escravista (formalmenteextinta em 1888). O negro, além de consideradovivente sem alma (o que justificou filosófica eteologicamente ser escravizado), era explorado aoesgotamento; os índios, historicamente, foraminferiorizados em relação ao homem branco; o voto(como direito de cidadania), por várias décadas, foicensitário, as mulheres, por exemplo, sóexerceram direito ao voto em 1932 e osanalfabetos, somente em 1988 (FERNANDES,1978; FREYRE, 1978).

Percebem-se, nesses exemplos, variadasformas de convivência da sociedade brasileira, aolongo da história, com a desigualdade social.Desigualdade social vai além de aspectossubjetivos, relações sociais entre indivíduos,exploração do homem pelo homem, diferenciaçãodo poder do voto; é um processo, sobretudo, dediferenciação material extrema entre pessoas,grupos e classes sociais presente geralmente emsociedades com renda concentrada. O contrário dadesigualdade é a igualdade social, que, no planoteórico, consiste na ideia de as pessoas teremcondições socioeconômicas o mais próximopossível da igualdade em várias áreas: educação,saúde, trabalho, oportunidade de consumo,utilização de bens de lazer, entre outros (MILLER,1996). No plano prático, quanto menos diferençasocial entre as pessoas, grupos e classes sociais,maior será a superação das carências materiais ehaverá mais efetivação de direitos humanosfundamentais.

Ao longo do tempo, mais na teoria que naprática, a questão da igualdade social tem sidotratada como construção de condições deigualdade de oportunidades às pessoas no acessoaos bens produzidos pela força de trabalho nasociedade. Nesse sentido, é defendido que aspessoas deveriam ter as mesmas condições deoportunidades, ou seja, as mesmas possibilidadesde construírem social e economicamente suasvidas. Para deixar mais claro, tomamos o exemplode uma maratona em que os atletas partem todosdo mesmo ponto de largada e chegam ao pontofinal, porém, ao longo da corrida, alguns sedestacam por suas habilidades, treinamento,empenho e dedicação à corrida etc., mas todostiveram as mesmas chances. Assim também seriaa vida das pessoas: elas partiriam de um mesmo

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ponto para atingir o crescimento econômico eacesso à riqueza. Então, qual seria esse ponto departida? Muitos estudiosos da questão social noBrasil têm defendido como ponto de largada aeducação. A educação de qualidade e universalpode ser um vigoroso processo de construção daigualdade de oportunidades. Trata-se, pois, dostrês ciclos da educação: infantil, fundamental esuperior. Garantir o ciclo completo de formação dapopulação é conferir-lhe condições reais deconstrução de sua vida de forma mais igualitária ejusta. Mas, a quem cabe oferecer a educação dequalidade à população? A resposta é trivial: aoEstado; Estado compreendido não somenteenquanto correlação de força entre grupos, mastambém enquanto instituição que realiza políticaspúblicas; e a ele cabe essa tarefa por três motivos:primeiro, porque é ao Estado que todos oscidadãos contribuem economicamente comimpostos; segundo, pelo fato de o Estado ser ainstituição de maior responsabilidade com odesenvolvimento da sociedade; e terceiro, oprocesso de desenvolvimento social e econômiconão dispensa a ação do Estado, que funcionacomo mola propulsora do desenvolvimento.

Na Modernidade, não se tem conhecimento dea sociedade desenvolver-se sem forte atuação doEstado e nem de sociedade desenvolvida social,econômica e culturalmente sem ter investidomaciçamente na educação de sua população. Épor essas razões (e outras mais) que cabe aoEstado prover educação de qualidade, capaz dedotar as pessoas de possibilidades que, pelo seuesforço, pelo resultado do seu trabalho e méritonão sofram desigualdade social.

O processo de criação de igualdade deoportunidades implica extinção de privilégios, dediscriminação, de preconceitos racial, econômico ede sexo presentes na sociedade, quase sempretolerados pelo Estado e, em alguns casos, atéinstitucionalizado.1 A existência dessescondicionantes, em si, constitui barreiraslimitadoras de mobilidade econômica de grupossociais (MILLER, 1996). Nesse caso, o Estado, aoinvés de permitir privilégios e preconceitos, deveriacoibi-los, criar e discricionar equitativamente asoportunidades de crescimento socioeconômico daspessoas de modo a garantir condições deigualdade de oportunidades a todos. Este ideáriode igualdade de oportunidades, de certa forma,descende do liberalismo econômico do século XVII,que, na prática, mostra-se não ser efetivo por si só,

porque não se trata de uma lei, uma regra a sercumprida, mas sim de construção de condiçõesobjetivas e concretas às pessoas, especialmenteàquelas que mais precisam do Estado paradeixarem de fazer parte das estatísticas dadesigualdade social.

A educação de qualidade, não resta dúvida, éum processo adequado à criação de condições deigualdade de oportunidades na sociedade brasileiraque, desde sua origem, é extremamente desigual.A educação de qualidade é mais que apreender asoperações principais de matemática, ler e escrever,é também saber ler a realidade, compreender atrama social, política e econômica, ter espíritocritico, aperfeiçoar-se em uma profissão pelas suasaptidões, capacidades e competências, educar-separa ser cidadão. Como diz Paulo Freire (apudVIEIRA, 2012), educação para a desigualdadesocial é educação para libertação. No entanto, istoimplica na formação completa do educador; namudança de concepção de professor que sótransmite conhecimento para educadorpesquisador, que constrói e socializaconhecimento; na valorização do educador emtodos os aspectos; nas condições adequadas aoexercício de educar; na gestão participativa dasinstituições de ensino; e no acesso e uso dastecnologias; porém, historicamente, a educaçãopopular, para ser educação do povo, tem sidoobjeto de incansáveis lutas de memoráveisintelectuais, a exemplo de Paulo Freire, FlorestanFernandes, Josué de Castro, Anísio Teixeira, DarcyRibeiro e outros tantos que viram na educação apossibilidade real de combater a extremadesigualdade social e de promover a libertação dopovo da ignorância, do analfabetismo, dando-lhecondição de ser mais, ser cidadão.

Essa possibilidade, entretanto, na prática, tem-se mostrado difícil; basta lembrar, por exemplo, osaltos índices de analfabetismo da populaçãobrasileira com 15 anos ou mais de idade, ao longodo século XX e na primeira década do XXI: em1920, o índice de analfabetismo chegava a 65% dapopulação; em 1979, era 33,60%; em 1980,25,50%; em 1991, 20,10% e, no ano 2000, aindaera 13,60% dos brasileiros adultos. Hoje, conformea Pesquisa Nacional por Amostragem deDomicílios (PNAD), sobre dados de 2012, esseíndice ainda é de 8,7%, cerca de 13,2 milhões depessoas. Porém, considerando o analfabetismofuncional, pessoa que lê mas não compreende(conceito criado pela Organização das Nações

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Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura -Unesco), o índice sobe para 18,3%, que representa27,8 milhões de analfabetos funcionais, mais que odobro dos analfabetos em leitura e escrita (IBGE,2013). Tal realidade indica que a educação, aolongo do tempo, não foi ofertada como mecanismode criação de igualdade de oportunidades. Fazeristo não é tarefa fácil, pois demanda vontadepolítica e exige repensar o modelo educacional ecriar outras possibilidades de igualdade deoportunidades, complementar a educação.Retomaremos esse ponto nas consideraçõesfinais, mas prosseguimos agora com o debate dodesenvolvimento econômico, ponto-chave no debateda desigualdade social no Brasil.

2 Desenvolvimento sem distribuição de renda

Neste tópico, trabalha-se com asconsequências do modelo de desenvolvimentoeconômico implementado entre as décadas de1970 e 1990, dando continuidade ao explicitadoacima sobre a insistência da desigualdade socialno percurso da história brasileira. Nos anos 1970 amáxima entre os economistas alinhados ao grupopolítico gestor do Estado era “deixar o bolo crescerpara, depois, ser dividido”. Em outras palavras, osinvestimentos no desenvolvimento deveria aceleraro crescimento econômico, mas sem distribuição derenda, que seria distribuída em outro momento. Oresultado foi um forte crescimento econômico doPaís, que ficou conhecido por “milagre econômico”,em que o “bolo da economia” cresceu, mas nãohouve a prometida e esperada distribuição.

Em 1974, por exemplo, o salário mínimo tinhametade do poder de compra do ano de 1960. Emcontrapartida, nos anos do milagre (1968-1973), ataxa de crescimento econômico do Brasil ficouentre 10% e 14%, em momento de pico, e aindústria de transformação cresceu quase 25%,mas o salário mínimo, entre 1965 e 1974, manteve-se na média anual, com apenas 69% do poderaquisitivo do ano de 1940 (BOCCHINI, 2014). Noregime político autoritário não havia espaço paraexpressão de organizações sociais, de lutas pelosdireitos dos trabalhadores e da população pobre e aquestão social era tratada como caso de polícia.Mesmo assim, como o País passaria por um ciclovirtuoso de crescimento econômico, a desigualdadesocial não se tornaria dramática, como veio aocorrer nos anos 1980 e 1990. Aos poucos, oregime político autoritário foi forçado a, lentamente,caminhar para a democracia e, em um colégio

eleitoral, em 1985, após mais de 20 anos deautoritarismo, elegeu-se um presidente civil.

O presidente eleito, Tancredo Neves, morreuantes de tomar posse e assumiu seu vice-presidente, José Sarney. Na tentativa de conter acrise econômica e os ciclos inflacionáriosdesenfreados, entre 1986 e 1990 foramadministrados cinco planos econômicos nosgovernos de Sarney e de Collor de Mello. A inflaçãonesse período chegou a cifras sem precedência nahistória do País: em 1984, antes do GovernoSarney, ela estava em 250% ao ano; mesmo apósquatro planos econômicos no governo de Sarney,em 1989, a inflação chegou a 1.764,86% ao ano,média de 147% ao mês. Em junho de 1994, ultimomês antes do Plano Real, nos primeiros 15 dias, ainflação estava em 47,43% (PASSARELLI, 2011).Por um lado, quem realmente perdeueconomicamente com os processos inflacionáriosforam os trabalhadores assalariados e a populaçãopobre desempregada, pois, nesses períodos, porconta da política de combate à inflação, estessetores da população viveram forte achatamentosalarial, que implicou em maior empobrecimentodevido à inflação corroer o poder aquisitivo dossalários; por outro lado, os mais ricos, além desofrerem menos com a inflação, aindaconcentraram mais renda e ampliaram a diferençada desigualdade social entre ricos e pobres.

Dados estatísticos desse período mostram asconsequências do processo inflacionário, da altaconcentração de renda entre os mais ricos e doempobrecimento dos mais pobres: “em 1992, os10% mais ricos tinham 45,8% da renda nacional,enquanto que, em 1999, os 10% mais ricospassaram a ter 47,4% dessa mesma renda”(FERREIRA, 2003, p. 137). Utilizando dadosoficiais sobre os índices de pobreza, Ferreira (2003,p. 138-139) indica que “1% mais rico da populaçãodo Brasil, que tinha 11,9% da renda nacional em1960, passou a ter 16,9% em 1980” e,considerando “os 5% mais ricos, sua participaçãosubiu de 28% para 37,9% no mesmo período,enquanto a dos 50% mais pobres caiu de 17,4%para 12,6%.”

No regime político autoritário, a desigualdadesocial praticamente foi ignorada pelo Estado.Somou-se a isso a crise econômica dos anos1980, que agravou a situação de pobreza, e adesigualdade social tornou-se aguda, com grandecontingente de famílias vivendo na extremapobreza. Foi a sociedade, por meio dos

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movimentos sociais, quem buscou saída para esseproblema que se tornou crônico. O problema dapobreza passou a mobilizar pessoas emmovimentos sociais, organizações nãogovernamentais (ONGs) e pastorais da igrejacatólica. Dois exemplos expressivos da atuação dasociedade por meio dessas organizações ajudam aentender o desenrolar do problema daí para frente:a Pastoral da Criança e a Campanha Contra aFome, a Miséria e Pela Vida. A Pastoral da Criançaé uma organização de pessoas, principalmentemulheres, organizadas pela ação social da igrejacatólica, fundada em 1983, com objetivo depromover o desenvolvimento integral de criançaspobres e diminuir o alto índice de mortalidadeinfantil. Ela tem expressivos grupos de voluntáriasorganizadas em todos os estados da federação efunciona como um serviço social da igreja em apoioà maternidade e à infância de famílias pobres.Desde os anos 1980 até a atualidade, a pastoralrealiza serviço de orientação às mães no cuidadomaterno-infantil através de agentes da pastoral quevisitam os domicílios, orientam e acompanham odesenvolvimento de crianças e mulheres gestantes(PASTORAL DA CRIANÇA, 2013). A CampanhaContra a Fome, a Miséria e Pela a Vida surgiu em1993, animada e coordenada pelo sociólogoHerbert José de Sousa (Betinho), foi uma respostada sociedade civil à grave crise social exposta noMapa da Fome, do Instituto de PesquisaEconômica Aplicada (Ipea), uma pesquisa realizadaem 1993, em que o instituto constatou a existênciade mais de 32 milhões de brasileiros vivendo abaixoda linha da pobreza, isto é, vivendo com valores demenos de um dólar por dia (BURITY, 2005).

A Campanha, que depois passou a serchamada de Ação da Cidadania, ao longo dos anosrealizou várias atividades de arrecadação edistribuição de alimentos a pessoas pobres;2

organizou milhares de comitês de voluntários em22 estados da federação, mobilização deempresários, articulação de organizações parceriasem torno do problema da fome;3 e, o principal, nogoverno do então presidente Itamar Franco (1992-1994), colocou na agenda do poder público oproblema da fome e da desigualdade social. Essaatitude fez o Governo criar o Conselho Nacional deSegurança Alimentar (Consea), junto ao Gabineteda Presidência da República, para discutir e proporpolíticas públicas de segurança alimentar ecombate à fome no Brasil. Igualmente importante,nesse mesmo período, foi a sansão da Lei

Orgânica de Assistência Social (Loas).4 A partirdessas iniciativas, milhares de ONGs emovimentos sociais articulados com a Ação daCidadania colocaram em pauta o debate sobre afome e o combate à pobreza. Em 1994, o Conseaarticulou a primeira Conferência Nacional deSegurança Alimentar, com participação dasociedade civil, para debater as causas da fome ediretrizes da segurança alimentar. No governo deFernando Henrique Cardoso (FHC), o Consea foiextinto (como outros órgãos de assistência social)e deu lugar ao Conselho do Comunidade Solidária,que criou a Secretaria de Assistência Social doMinistério da Previdência e Assistência Social(PERES, 2005).

O modelo de desenvolvimento econômico nosanos 1990, do curto governo de Collor e dosgovernos de FHC (1995-2002), assumiu diretrizesdo neoliberalismo e da globalização em ascensãomundial à época. Na concepção política doneoliberalismo, os investimentos do Estado na áreasocial são contabilizados como gastos, portanto,ao governo é recomendado gastar o menos possívelna área social, repassando ao mercado aresponsabilidade pela prestação dos serviços àpopulação. O Brasil, após o Plano Real (de 1994)estabilizar a economia e controlar a inflação, aospoucos retomou o crescimento econômico e deusinal de saída das sucessivas crises econômicas;porém, obedecendo ao receituário doneoliberalismo e da globalização.

Na área social, com a globalização daeconomia em andamento e gestão do Estado sob oreceituário do neoliberalismo - cuja orientaçãoprincipal era repassar a execução das políticassociais à sociedade e ao mercado -, o GovernoFHC criou, em 1995, o programa ComunidadeSolidária e, por meio dele, articulou programassociais para atender a famílias que viviam naextrema pobreza, com pequena ajuda financeira.Os principais programas sociais executados noâmbito do Comunidade Solidária foram: Vale Gás;Bolsa Alimentação; Bolsa Escola; Erradicação doTrabalho Infantil e Brasil Jovem, que o governorepassava às famílias, cadastradas pelo governo,com renda per capita de até meio salário mínimomensal, um valor variável entre R$ 15,00 e R$ 65,00por mês. Em alguns programas, o valor eracondicionado a beneficiar só até três crianças porfamília, com 15 reais cada, a exemplo do BolsaAlimentação. Apesar de o programa articular váriasiniciativas do Governo na área da complementação

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de renda, o Comunidade Solidária não galgouexpressivos resultados na diminuição da pobreza,pois focou a ação nos setores mais vulneráveis dapopulação e de forma setorizada, como prescreve oneoliberalismo, sem atingir o universo da populaçãoque vivia na miséria (BURITY, 2005).

Em que pese a mudança de foco em relação aoGoverno Itamar sobre o problema da fome, oesfriamento da mobilização social - dada a posturado Governo em transferir responsabilidade naexecução de políticas sociais à sociedade - odebate sobre a questão da fome e da pobrezacontinuou no âmbito do Comunidade Solidária.Devido às razões acima, a eficácia dos programassociais do Comunidade Solidária foi baixa. QuandoFHC assumiu o governo, em 1995, segundo dadosda Fundação Getúlio Vargas, por exemplo, o Brasiltinha 28,79% da população vivendo em situação demiséria; ao deixar o governo, em 2002, esse índice,era 26,72%. Houve uma pequena diferença nadiminuição da miséria em oito anos de atuação doprograma, o que significa que as políticas sociaisarticuladas no Comunidade Solidária forameficientes apenas em evitar o crescimento dadesigualdade social; a diminuição da miséria foiinexpressiva (PERES, 2005).

O índice de Gini, padrão internacional que medea desigualdade social, nesse período, indicava amagnitude da desconcentração de renda tãosomente de 1,89%. Em 1995, ele apresentavaindicador de concentração de renda de 0,5987; oitoanos depois, em 2002, este indicador estava em0,5874, diferença muito pequena (IPEA, 2014).

O maior ganho no processo de mobilização dasociedade e articulação com os governos de Itamare de FHC em torno desse problema, a meu ver, nãofoi a ajuda com alimentação a milhões de famílias erepasses em dinheiro do Governo num valor quasesimbólico (que tiveram seu valor, não resta dúvida),mas foi sim possibilitar à sociedade brasileiraassumir a causa da fome como um problema socialgrave e, ao Estado, assumir, ao menos em parte,responsabilidade com implementação de políticassociais, ainda que em uma visão neoliberal depolíticas sociais compensatórias.

A partir das mobilizações da Ação da CidadaniaContra a Fome, a Miséria e Pela a Vida, milharesde articulações locais de pessoas e atorescoletivos da sociedade civil foram viabilizadas emtodo o Brasil, formando ampla rede desolidariedade. Essa mobilização gerou uma opiniãopública nacional de que a fome e a miséria são

problemas sociais graves, de responsabilidadepública, com correlação direta na concentração derenda, em consequência dos modelos dedesenvolvimento econômico, e solução para osmesmos cabe ao Estado e à sociedade. AoEstado, cabe construção e implementação depolíticas sociais de erradicação da fome,diminuição significativa da desigualdadeeconômica, distribuição de renda e melhoria daqualidade de vida das pessoas. A sociedade, porsua vez, tem a tarefa de mobilizar-se, exercer ocontrole social e participar ativamente naproposição de políticas públicas ao Estado.

3 O Estado pelo desenvolvimento, contra afome e a miséria

O governo do presidente Luis Inácio Lula daSilva (Lula) (2003-2010) investiu em duas frentes deatuação: política de desenvolvimento econômico,com o Estado como indutor do processo; einvestimento e criação de políticas dedesenvolvimento social de combate à fome e àmiséria. Na área econômica, uma medida relevantee imediata do governo se consistiu na criação doConselho do Desenvolvimento Econômico e Social5

(CDES) - um “órgão de consulta da Presidência àsociedade civil, ao mesmo tempo em que um canalinstitucionalizado de negociação de pactos entrediferentes atores societários e o governo, emrelação à agenda das reformas econômicas,políticas e sociais” (FLEURY, 2006, p. 79). OCDES contempla representação da sociedade civile governo, reunindo três segmentos (empresários,trabalhadores e governo) na concertação de pactospelo desenvolvimento econômico e social do País.Ao longo de 10 anos, o CDES concentrou-se nosseguintes eixos: agenda para o desenvolvimento;estratégias para o desenvolvimento; e agendanacional do desenvolvimento.6 No Governo Lula, osgrandes projetos de desenvolvimento econômico esocial foram objetos de debates do Conselho(BRASIL, 2010).

Em janeiro de 2007, pelo decreto n. 6.025, oGoverno lançou o Programa de Aceleração doCrescimento (PAC) - conjunto de políticas deestímulo ao crescimento econômico, com previsãode investimento da ordem de R$ 503,9 bilhões atéo ano de 20107 O PAC articulava todas as ações deinvestimento em infraestrutura de saneamento,habitação, transporte, energia e recursos hídricosdo Governo. Para coordenar o programa, foiconstituído um comitê gestor interministerial para

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planejar e monitorar as obras. Em agosto de 2007o comitê apresentou um balanço e registrou 2.014ações; destas, 60% estavam em estágio de obra;40% em licenciamento ou licitação; e avaliou orendimento do mesmo satisfatório (BRASIL, 2010).Com razoável desempenho na arrecadação doEstado, nas parcerias com o setor privado,desembolso dos recursos, execução de obrasplanejadas, não obstante as críticas do Tribunal deContas da União (TCU), “de obras superfaturadas”,crítica da oposição de que o programa eraeleitoreiro (lançado na conjuntura pré-eleitoral daseleições municipais de 2008), o governo manteve oprograma com monitoramento sistemático docomitê (LOPES, 2010).

Em março de 2010, o governo lançou o PAC 2,que previa recursos de R$ 1,59 trilhões deinvestimentos para um amplo conjunto de obras detransporte, energia, meio ambiente, saúde, áreasocial e habitação. Tais investimentos nainfraestrutura do País resultou em impacto positivono crescimento econômico e na oferta de empregoem vários setores da economia, como indústria,construção civil, comércio, serviços etc. (BRASIL,2014d).

A taxa de crescimento do produto interno bruto(PIB) entre 2003 e 2008 foi expressiva para padrõesde anos anteriores. Segundo dados do InstitutoBrasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)sistematizados por Curado (2011, p. 92),

[...] neste período a taxa média de expansão doPIB foi da ordem de 4,2% a.a., praticamente odobro da observada no período imediatamenteanterior. Em 2009, em decorrência dos impactosnegativos da crise financeira global, o PIBapresentou uma variação negativa de 0,6%, o queevidencia o impacto significativo da crise sobre aeconomia brasileira. Não obstante, a rápidarecuperação de nossa economia é igualmentereconhecida. As expectativas do mercado,sintetizadas no relatório Focus, sinalizavam paraum crescimento superior aos 7,0% em 2010. Ésalutar lembrar que entre 2007 e 2010, excluindoo ano de 2009, as taxas de crescimento do PIBforam superiores aos 5% ao ano.A média do “crescimento (do PIB) nos dois

mandatos do presidente [Lula] ficou em 4,60%”(SPITZ, 2011, n.p.). O crescimento de 2010, bemcomo a média em todo período daquele governo, foiresultado dos expressivos investimentos públicosarticulados no PAC. Segundo Curado (2011, p. 93),no “primeiro trimestre de 2003 a relaçãoInvestimento/PIB era de 16,23%. No terceirotrimestre de 2008, antes dos efeitos da crisefinanceira global, a relação chegou a atingir 20,1%.No segundo trimestre de 2010 a relação atingiu17,85%.” No mercado de trabalho, o impacto dessa

política econômica foi significativamente positivo:[...] em janeiro de 2003 a taxa de desemprego erade 11,3%. Em outubro de 2010 a taxa alcançou6,1%, menor patamar registrado pela sériehistórica. A retomada do crescimento econômicotem provocado também impactos positivos sobreo mercado de trabalho brasileiro em diversasdimensões, com destaque para a redução de seugrau de informalidade e para a elevação dorendimento médio real (CURADO, 2011, p. 93).

Na área social, ações de combate à fome e àredução da desigualdade social iniciadas noGoverno Itamar, continuadas, algumas, no GovernoFHC, foram complementadas e aprofundadas noGoverno Lula. Tal como na área econômica,medidas importantes na área social foramimplementadas no início do governo; entre elas:criação do Ministério Extraordinário de SegurançaAlimentar e Combate à Fome, reinstalação doConsea e instituição do programa Fome Zero.8

Ao referido ministério, coube formular e coordenarimplementação da política nacional de segurançaalimentar e nutricional com objetivo de garantir, noâmbito do território nacional, o direito humano àalimentação.9

O Consea, composto de representantes dasociedade civil organizada, do governo e deobservadores, ainda funciona como instrumento dearticulação entre governo e sociedade civil, naproposição de diretrizes e ações na área daalimentação e nutrição sob a coordenação doMinistério. A quantidade de ministros de Estado(19), juntamente com o leque de representação dasociedade civil organizada (representação de váriasarticulações de movimentos sociais, universidade epesquisadores) no Consea, indica a relevância queeste colegiado assumiu no Governo Lula (BRASIL,2004).

O programa Fome Zero, também sobcoordenação desse Ministério, reuniu um conjuntode ações públicas de combate à fome, como:Cartão Alimentação (distribuído às famílias paracompra de alimentos); Programa de Aquisição deAlimentos (com compras públicas dirigidas para aagricultura familiar); restaurantes populares emvárias cidades; e envolvimento da sociedade civilnas atividades do programa (BRASIL, 2003).

Em 2004, foi extinto o Ministério Extraordináriode Segurança Alimentar e criado o Ministério doDesenvolvimento Social e Combate a Fome (MDS);uma tentativa acertada do Governo em conferirmaior importância à área imprimindo-lhe um caráterde desenvolvimento social, ao invés de assistênciapontual e fragmentada, como vinha sendo feito.

Nessa linha, o MDS articulou um conjunto de

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políticas sociais, algumas que vinham do GovernoFHC e outras novas, em um amplo programadenominado Bolsa Família,10 que incorporou asações do Fome Zero e unificou as transferências derenda por meio de um único cartão magnético parasaques de repasses financeiros do governo àsfamílias em situação de insegurança alimentar,beneficiadas pelo programa,11 o qual condiciona obenefício ao cumprimento de contrapartidas dafamília no uso, acesso e assiduidade aos serviçosde saúde, educação e assistência social.

As condicionalidades têm como objetivo odesenvolvimento das famílias, ou seja, ações quepossibilitam aos beneficiários lutarem contrasituação de pobreza e vulnerabilidade social. Nessesentido, na educação, as crianças e adolescentesdas famílias cadastradas no Bolsa Família, comaté 15 anos, devem estar matriculadas e ter, nomínimo, 85% de frequência escolar (BRASIL,2011b).

Na saúde, os pais ou responsáveis pelascrianças menores de sete anos devem levá-las paratomar as vacinas recomendadas, pesar, medir efazer exames frequentemente. As gestantes e/oumães que amamentam devem participar do pré-natal e ir às consultas na unidade de saúde e,sobretudo, continuar o acompanhamento da suasaúde e do bebê, pós-parto, e ainda participar dasatividades educativas promovidas pelas equipes desaúde sobre aleitamento e alimentação saudável.

Na assistência social, crianças e adolescentescom até 15 anos, em risco ou retiradas do trabalhoinfantil (Programa de Erradicação do TrabalhoInfantil), devem participar dos Serviços deConvivência e Fortalecimento de Vínculos doprograma e obter frequência escolar mínima de85% da carga horária mensal. Essascondicionalidades dão ao programa umaconcepção de cuidado de bem-estar às famílias pormeio da efetivação de direitos sociais básicos,afastando a concepção de puro e simplesassistencialismo nas críticas ao programa.

Recentemente o MDS, por oportunidade dos 11anos do Bolsa Família, apresentou avaliaçãodestacando resultados positivos obtidos ao longodesse período:

[...] redução da mortalidade infantil entre zero eseis anos em 58% por causas relacionadas àdesnutrição; [...] redução em 51% no déficit deestatura média das crianças beneficiárias doBolsa Família; [...] no ensino médio, a taxa deabandono dos beneficiários do Bolsa Família é de7,4% ante a média nacional é de 11,3%; [...] noensino fundamental, a taxa de abandono foi de

2,8% para os beneficiários do programa,enquanto a média nacional era de 3,2% e; [...] 1,7milhão de famílias [deixaram o Bolsa Famíliavoluntariamente por ter melhorado sua renda](BRASIL, 2014c, n.p.).

Esses resultados se relacionam ao atendimentocom ações de vários outros programas de proteçãosocial criados e executados no MDS, constituindoo que é chamado de rede de proteção social; entreeles,

[...] proteção social básica; proteção socialespecial; erradicação do trabalho infantil;enfrentamento da violência contra crianças eadolescentes; sistema nacional de atendimentosocioeducativo ao adolescente em conflito com alei; Projovem; renda mensal vitalícia por Idade,renda mensal vitalícia por invalidez; benefício deprestação continua, da assistência social àpessoa idosa (BRASIL, 2011b, n. p.).

As políticas sociais dos governos do presidenteLula tiveram continuidade no Governo Dilma e forammais aprofundadas focando no grupo de família queainda viva na extrema pobreza, cujos membrostenham renda per capita de até R$ 77,00 por mês.Para atender a esse segmento da população, ogoverno de Dilma criou o plano Brasil SemMiséria,12 que articula ações de 22 ministérios,coordenados pelo MDS, em beneficio às vítimas damiséria. Após três anos de funcionamento doPlano, o MDS divulgou um balanço com resultadosde programas e ações do Brasil Sem Miséria: (a)Pronatec, programa de capacitação técnica dejovens para acesso ao mercado de trabalho, cujosdados do governo indicam que, entre 2011 e 2014,teve “1,319 milhões de matriculas”; (b)microemeprendedor individual, onde “9,2% sãoempreendedores oriundos do bolsa família”; (c)programa crescer, que faz empréstimo a jurosreduzidos com orientação técnica para pessoas debaixa renda e que “fez 9,4 milhões de operações”;e (d) programa economia solidária, presente “em2.275 municípios, com 10.925 empreendimentos”(BRASIL, 2014a, p. 8-10).

O resultado geral dessa política sistemática dedesenvolvimento social do Estado brasileiro nosúltimos 11 anos é uma sensível redução dadesigualdade social, da pobreza absoluta egarantia das condições básicas essenciais dealimentação à população mais empobrecida.Olhando a evolução do Índice de DesenvolvimentoHumano (IDH) do Brasil, índice que mensura odesenvolvimento das pessoas em relação ao PIBde um país, percebe-se, nos últimos 12 anos, umcrescimento; por exemplo: em 2000, o IDH era0,669; em 2005, subiu para 0,710; em 2010, atingiu

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0,726 e chegou, em 2012, a 0,730. Houve umaprogressão, ainda que lenta, mas continua, que fezo Brasil saltar da categoria de país médio para paísde alto desenvolvimento humano, mas está aindana 85ª posição no ranking mundial dos paísesdesenvolvidos (OLIVEIRA, 2013).

O maior impacto das políticas sociais nosgovernos de Lula e Dilma foi diminuição da pobrezaextrema. Dados da PNAD apresentam a evoluçãodesse fenômeno:

[entre os] anos de 2002 e 2012, a pobreza decaiu57,4% no Brasil. Em termos absolutos foram 22,5milhões de pessoas que deixaram a condição depobreza (extrema), uma vez que passou de 39,3milhões de brasileiros vivendo com até 140 reaismensais per capita de rendimento domiciliar em2002 para 16,7 milhões de brasileiros em 2012(FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO, 2013, p. 2).

Com base na PNAD de 2013, o índice de Gini,que mensura a desigualdade, foi de 0,495 noBrasil, que indica desconcentração de renda econsequente diminuição da desigualdade social(IPEA, 2014).

4 Considerações finais

Ao longo dessa exposição ficou claro que ofenômeno da desigualdade social tem trajetóriainsistente no Brasil. O Estado brasileiro, em cadamodo de produção (colonial, escravista,capitalista), tratou a desigualdade social, emgrande medida, com indiferença. Somente a partirda modernização do Estado, nos anos 1930, foique a questão começou ter a atenção, cominstituição dos direitos sociais do período getulista.Nos governos autoritários, entre 1964 e 1985, asdesigualdades sociais foram tratadas como casode polícia e somente com a redemocratizaçãopolítica dos anos 1980, com o Brasil submerso emuma profunda crise social, com a mobilização dasociedade e uma postura flexível dos governos nosanos 1990 foi que o Estado incorporou uma agendapública sobre a fome, a pobreza e a miséria.

A partir do governo de Itamar, passando pelo deFHC, aprofundado pelo de Lula até o governo deDilma, o Estado mudou da indiferença e da questãode polícia, ao lidar com a questão da fome epobreza extrema, para política de desenvolvimentosocial. Em cada um desses governos, ao seumodo, pode-se dizer que houve avanços que foramse tornando cumulativos. A postura do Estadoquanto à pobreza, à fome e à miséria começou amudar com o governo de Itamar, pela atuação dasociedade civil, que fez surgir o Consea, atitudeessa que levou o Governo a reconhecer a

responsabilidade do Estado com a fome e apobreza. No Governo FHC, em que pese amudança no foco da questão para uma visãoneoliberal, teve continuidade e as primeiraspolíticas de transferência de renda foramimplementadas. Os governos de Lula e Dilma nãosó deram continuidade às políticas detransferências de renda como criaram novas,envolveram a participação da sociedade, as trêsesferas de governo e instituiu um ministério paraarticular diferentes ações e programas em umapolítica de desenvolvimento social, com a tarefa(o ministério) de coordenar, debater, articular,propor e executar políticas e programas sociais,dando-lhes caráter de política de desenvolvimentosocial ao invés de assistencialismo.

Contudo, a atuação desses governos que temcolocado o Estado como indutor de ações dediminuição da fome, da pobreza extrema e dasdesigualdades sociais ainda deixa muito a desejar.Primeiro, pelo conceito de pobreza, em que asdiscussões e atitudes de todos esses governosassumem o conceito numa visão matemática;pobre, para eles, é quem tem renda per capita deaté R$ 154,00, e extremamente pobre, isto é,miserável, quem vive com renda per capita de 0 aR$ 77,00 por mês (valores atuais). O conceito depobreza relaciona-se a vários aspectos objetivos esubjetivos, não somente à renda, mas à falta decondições de acesso a serviços públicos eprivados, insuficiência nas condições econômicaspara acesso a bens culturais, bens matérias eautoestima. Segundo, ao longo de 20 anos (deFHC a Dilma) das políticas sociais, o número de14.145.274 famílias atendidas no Bolsa Família éainda muito grande (CARTA CAPITAL, 2014). Istopode indicar baixa eficácia dessas políticas esignifica que o processo de melhoria das condiçõeseconômicas dessas famílias é lento, requercombinação com outras políticas para dareficiência na distribuição de renda, para além doque é feito com empreendedorismo, microcrédito,formação técnica etc.; o Estado, nesse ritmo,poderá levar séculos para erradicar a pobreza.Terceiro, os níveis ainda altos de desigualdadesocial, conforme apresentados acima, pelosíndices de Gini e IDH, indicam necessidade deacelerar o processo de distribuição de renda noPaís; e não há como redistribuir renda em um paístão desigual como o Brasil se não houver políticasque distribuam renda de quem tem mais para quemtem menos ou não tem. Quarto, para as políticas

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sociais não ficarem apenas nos programas degovernos, dependendo do humor de cada gestor, eefetivamente tornarem-se políticas de Estado dedesenvolvimento social (que equivaleria àconstrução do Estado de Bem-Estar social), serianecessário que a política social fosse um direitoconstitucional.

Retomo, por fim, à linha geral da nossadiscussão de que a educação de qualidade éconsiderada suficiente para criar condições deoportunidades na redução das desigualdadessociais; porém, devido aos elevados níveis dedesigualdades sociais e econômicas do Brasil, osefeitos lentos das atuais políticas de redistribuiçãode renda, as enormes diferenças econômicasregionais, a educação somente não é suficientepara reduzir significativamente as desigualdades,na velocidade que o problema exige, e, se for,levará muito tempo, cinco ou mais gerações paraequilibrar o processo de desenvolvimentoeconômico com justiça social; daí a necessidadede combinar várias políticas com a educação paraacelerar a redução das desigualdades, tais como:política de valorização do salário dos trabalhadores;investimentos e melhorias na educação; política degeração de emprego qualificado e renda; política desaúde com atendimento prioritário aos setoresmenos favorecidos; aproveitamento dos nichos dedesenvolvimento econômico; e, principalmente,uma política de desenvolvimento e crescimentoeconômico associada à justa política de(re)distribuição de renda.

Combater mais rapidamente a pobreza, aextrema pobreza e favorecer uma expressivadiminuição das desigualdades sociais eeconômicas exigem medidas de aprofundamentodas políticas sociais, maior participação dasociedade e transição de um Estado de benefíciose transferências de renda para um Estado de bem-estar social, que o Brasil, até o momento, aindanão experimentou

Notas: (1) O auxilio moradia concedido recentemente pelo ConselhoNacional de Justiça (CNJ) para todos os juízes do País novalor de R$ 4.377,00; decisão válida inclusive para juízesque têm moradia própria, não deixa de ser umainstitucionalização de privilégio esta categoria de servidorpúblico. O salário de um juiz em início de carreira é deaproximadamente R$ 24.117,00, em um país onde o saláriomínimo é R$ 724,00 (e grande maioria da população não temnem o equivalente a essa renda para viver) e onde mais de14 milhões de famílias estão no Programa Bolsa Família - umaajuda do Estado porque elas têm renda inferior a R$ 154,00por mês (BRASIL, 2011a).

(2) “Entre 1993 e 2005 foram arrecadadas 30.351 toneladasde alimentos em todo o Brasil, beneficiando 3.035.127famílias. Eentre 2006 e 2010 foram distribuídos 2.300.000brinquedos e 500.000 livros em todo o País.” (AÇÃO DACIDADANIA, 2014, n.p.). (3) O problema da fome no Brasil foi amplamente discutido porJosué de Castro, entre os anos 1930 e 1960, quando, comopesquisador, escreveu o clássico livro “Geografia da Fome”,publicado em 1946. Foi a partir da luta incansável do médicoJosué e de suas pesquisas que a fome foi desnaturalizada epassou a ser um vista como um problema social e não umfenômeno da natureza (cf. CASTRO, 1992). (4) A Loas (lei n. 8.742, de 7 de dezembro de 1993) foisancionada pelo presidente Itamar Franco para orientar asações da Secretaria de Assistência Social e, como oConsea, resultou de ampla discussão e mobilização dasociedade brasileira para o efetivo combate à pobreza. A leipropunha romper com o modelo tradicional de assistênciasocial pautado em entidades prestadoras de serviços oufilantrópicas na medida em que colocava a assistência socialno campo das políticas públicas, regida, portanto, porprincípios universalizantes de direitos. No Governo Lula, elafoi reeditada para atender às necessidades do MDS(BRASIL, 1993).(5) O artigo 1º do Regimento Interno do CDES o define comoórgão colegiado de assessoramento direto e imediato doPresidente da República, com a missão de propor “I- [...]políticas e diretrizes específicas, voltadas aodesenvolvimento econômico e social, produzindo indicaçõesnormativas, propostas políticas e acordos de procedimento; II- apreciar propostas de políticas públicas e de reformasestruturais e de desenvolvimento econômico e social que lhesejam submetidas pelo Presidente da República, com vistas àarticulação das relações de governo com representantes dasociedade civil organizada e a concertação entre osdiversos setores da sociedade nele representados”(BRASIL, 2003).(6) Tais eixos foram desenvolvidos com base no seguintediagnóstico do CDES: “extrema desigualdade social, inclusivede gênero e raça, com crescente concentração de renda eriqueza, parcela significativa da população vivendo napobreza ou miséria, diminuição da mobilidade social; II.Dinâmica da economia insuficiente para promover aincorporação do mercado interno potencial, suportarconcorrência internacional e desenvolver novos produtos emercados; III. Infraestrutura logística degradada, não-competitiva, promotora de desigualdades inter-regionais,intersetoriais e sociais; IV. Inexistência de eficaz sistemanacional público/privado de financiamento do investimento,estrutura tributária irracional, regressiva e penalizadora daprodução e do trabalho; V. Insegurança pública e cidadã,justiça pouco democrática, aparato estatal com baixacapacidade regulatória/fiscalizadora; VI. Baixa capacidadeoperativa do Estado, dificuldade para gerir contenciososfederativos, desequilíbrios regionais profundos,insustentabilidade da gestão de recursos naturais” (BRASIL,2010, p. 13-14).(7) Os investimentos têm como fontes empresas estatais,empresas privadas e bancos oficiais.(8) O programa Fome Zero foi concebido pelo InstitutoCidadania de São Paulo, em 2001, lançado em 16 de outubro,Dia Mundial da Alimentação, objeto de proposta da campanhaeleitoral a presidente de 2002, do presidente Lula, implantadoa partir de 2003, com objetivo de combater a fome e suascausas estruturais e garantir a segurança alimentar aosbrasileiros. O programa envolveu a participação das trêsesferas de governo: federal, estadual e municipal. Dadosestatísticos oficiais estimavam que no Brasil, em 2002,existiam 54 milhões de pessoas passando fome; destas, 24milhões viviam em situação abaixo da linha de pobreza, namiséria (BRASIL, 2005).(9) O direito à segurança alimentar e nutricional da pessoahumana não é constitucional, ele não está inscrito naConstituição brasileira de 1988, mas é garantido pelosdiversos acordos internacionais dos órgãos da Organizaçãodas Nações Unidas, em que o Brasil é signatário (BRASIL2005).

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(10) O parágrafo único do artigo 1º da lei n. 10.836, de 9 dejaneiro de 2004, de criação do Bolsa Família, apresenta ajunção das ações de transferência de renda nesseprograma: “[...] especialmente as do Programa Nacional deRenda Mínima vinculado à Educação - Bolsa Escola [...), doPrograma Nacional de Acesso à Alimentação - PNAA [...], doPrograma Nacional de Renda Mínima vinculada à Saúde -Bolsa Alimentação [...], do Programa Auxílio-Gás [...] e doCadastramento Único do Governo Federal [...].”(11) Atualmente, o Bolsa Família beneficia mais de 14 milhõesde famílias em todos os estados da Federação. O valor dobenefício é variável; o básico é R$ 77,00, podendo chegar amais de R$ 350,00, acrescendo ao básico o valor variável; ovariável para jovem e para superação da extrema pobreza,com limite de até cinco benefícios por família. Têm direito aobeneficio, a família com renda per capita de até R$ 154,00 eas famílias consideradas extremamente pobres, com rendade 0 a R$ 77,00, que recebem um benefício a maisincorporado ao cartão Bolsa Família (BRASIL, 2014b).(12) Conforme o artigo 4º do decreto n. 7.492, de 2 de junho de2011, que criou o Plano Brasil Sem Miséria, os seus objetivossão: “I - elevar a renda familiar per capita da população emsituação de extrema pobreza; II - ampliar o acesso dapopulação em situação de extrema pobreza aos serviçospúblicos; e III - propiciar o acesso da população em situaçãode extrema pobreza a oportunidades de ocupação e renda,por meio de ações de inclusão produtiva.”

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* Professor do Departamento de Ciências Sociais/CCHL/UFPI e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Sociologia/UFPI. Doutor emSociologia pela Universidade Federal dePernambuco/UFPE.

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CLASSE TRABALHADORA E ESPAÇOURBANO: o surgimento do bairro Vila Operáriaem Teresina(PI) (1928-1950)José Maurício M. dos Santos* e Solimar Oliveira Lima**

Resumo: o presente artigo se filia ao campo da História Social do Trabalho no esforço de investigar a relaçãoentre a classe trabalhadora e o direito à moradia na cidade de Teresina (PI) na primeira metade do século XX.O objetivo central é estudar a história da formação do bairro Vila Operária e os sujeitos envolvidos no seuprocesso de constituição; para isso, usamos algumas fontes como relatórios governamentais, atas daCâmara Municipal de Teresina, livro de memória e entrevistas com antigos moradores do bairro.Palavras-chave: Teresina. Classe trabalhadora. Vila Operária

Abstract: this Article if affiliation to the field of Social History of Labor, in an effort to investigate therelationship between the working class and the right to housing in the city of Teresina in the first half of the20th century. Our main objective is to study the history of the formation of the district Workers’ Village. Forthis we will use some sources such as Government Reports, Book of Minutes Mayor of Teresina, book ofmemory and interviews with former residents of the neighborhood.Keywords: Teresina. Working Class. Workers Village.

1 Introdução

A história da Vila Operária de Teresina, capitaldo Piauí, começou em 1928, ano da assinatura deum decreto pela prefeitura que autorizou aconcessão de um terreno para os operários, depoisda linha férrea e do bairro Mafuá, na região centro-norte da cidade. É importante destacar que algunstrabalhos, mesmo o objetivo central não sendo ahistória da Vila Operária, já deram algumascontribuições historiográficas sobre o assunto, aexemplo dos trabalhos de Francisco AlcidesNascimento (2002), Ana Maria Bezerra Nascimento(2008) e Ana Cristina da Costa Lima (2009).

Segundo Francisco Alcides Nascimento (2002,p. 219), “só na década de 1930 foram tomadas asprimeiras iniciativas no sentido da construção deVilas Operárias na cidade de Teresina.” Estainformação é importante porque realmente sóencontramos comprovação da construção decasas, no espaço que viria a ser a Vila Operária,durante a década de 1930.

Ana Maria Bezerra do Nascimento (2008) afirmaque o bairro Vila Operária foi criado seguindo omodelo das vilas operárias de outras cidadesbrasileiras; mas ao se verificar o processo deconstrução do bairro percebemos muitasparticularidades. A primeira é que ao contrário devárias vilas operárias que surgiram pelo Brasil afora, a Vila Operária de Teresina não foi construídapela iniciativa privada de industriais, mas foiestimulada pelo poder público municipal. A segundaparticularidade é que a prefeitura doou apenas o

terreno e os próprios trabalhadores fizeram o resto,desde a abertura das ruas à construção das casas.Destaca-se ainda que a maioria das casas era detaipa e coberta de palha, ou seja, em condiçõesprecárias de moradia, diferente de muitas outrasvilas operárias que foram construídas em outraspartes do País. Sobre o surgimento da VilaOperária e os sujeitos sociais envolvidos, AnaCristina da Costa Lima (2009, p. 27) destaca:

Com base na fala do morador, percebemos que aconstrução do bairro Vila Operária se deu sob aintervenção administrativa do Estado, queautorizou a ocupação da área e a elaboração deuma planta com a nomeação das ruas, noentanto, coube aos operários o esforço físico efinanceiro para que as ruas fossem abertas e asprimeiras casas, construídas.

O modelo de Vila Operária adotado em muitascidades brasileiras, com planejamento econstrução a partir de uma ação privada e dotando-as de uma estrutura básica de equipamentosurbanos (creches, clubes, hospitais), parece,portanto, não se assemelhar ao processo desurgimento da Vila Operária teresinense.

Neste sentido, o incentivo para construção daVila Operária de Teresina partiu do poder públicomunicipal com a doação de um terreno localizadodistante cerca de dois quilômetros e meio da regiãocentral da cidade. A ideia de higienização do lar econtrole sobre o cotidiano do operário parece quenão era parte dos objetivos do poder público queidealizou a Vila, como acontecia em outrasexperiências no País. (RAGO, 1985). O motivo paraa construção da Vila estava mais ligado ao

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afastamento das famílias do centro da cidade, alvode embelezamento com a abertura de novas ruas,resultando em uma valorização das áreas quereceberam esses melhoramentos.

Até as três primeiras décadas do século XXpode-se dizer que Teresina era uma cidadeconcentrada, tomando emprestado o conceito deCaldeira (2000), onde a maioria da populaçãoresidia no que se poderia chamar de área centralda cidade (entre o Troca-troca e a igreja SãoBenedito), convivendo, no mesmo espaço, casasde telha e casebres de palha. No entorno docentro, ou seja, em terrenos próximos à regiãocentral surgiram bairros como Palha de arroz,Barrinha, Barrocão e Cajueiro; porém, a partir dosanos de 1930, com o avanço do crescimento dacidade e a valorização das áreas centrais, que tevecomo consequência projetos urbanos que abriramnovas ruas e avenidas, a cidade foi crescendo paraa periferia. Com isso, os trabalhadores que mora-vam nessas regiões mais centrais, que passaram aser objeto de valorização imobiliária motivada pelaespeculação das novas áreas urbanas, tiveram quemigrar cada vez para mais longe do centro,resultando no surgimento de bairros como;Vermelha, São Pedro, Monte Castelo, Ilhotas (naregião sul), Vila Operária, Matinha, Por Enquanto,Matadouro, só para citar alguns. Aqui, a outraforma de cidade, centro-periferia, evidencia-se, poisamplos segmentos da população trabalhadora, porconta da valorização dos terrenos, migraram pararegiões mais distantes da região central da cidade.

2 A classe trabalhadora e a luta por moradia: ocaso da Vila Operária em Teresina

O nome Vila Operária é claramente uma referên-cia às experiências habitacionais que estavamsendo implantadas desde o final do século XIX emoutras regiões do País e no mundo. De acordo comrelatório da prefeitura de 1936, os terrenos da VilaOperária doados pela prefeitura foram legalizadosnaquele período. O relatório confirma o ano de 1928como sendo o marco inicial da doação dos terrenospara a construção do bairro, quando afirma que“fica o prefeito autorizado a mandar expedir títulosde posse de lotes concedidos aos operários pelalei nº 60, de 15 de Maio de 1928.” E, no mesmodocumento, também foi dada a autorização para aconstrução de posto médico, farmácia e mercadopúblico; porém, a construção desses serviços ficoucondicionada a “quando existirem, pelo menos,vinte e cinco casas de telhas, na vila operária.”

(TERESINA, 1936b, p. 61), o que demonstra que amaioria das casas do bairro tinha situação precária,construídas com palha e taipa.

Segundo depoimento do operário Antônio Sales(apud NASCIMENTO, F., 2002), a Vila Operária eraformada por casas simples, geminadas, e quetinha, no início, apenas uma igreja, uma praça e ocentro social.

Chama atenção a participação que aorganização operária Aliança Federativa dosObreiros do Piauí teve no processo de construçãoda Vila Operária. A Aliança Federativa era umaentidade mutualista que foi criada em 1905 paraprestar assistência social aos seus associados.O interessante é que essa entidade teve umaparticipação efetiva na construção do bairro, o quefica evidente quando foi sancionada a lei n. 39, de16 de maio de 1935, onde diz que “a AliançaFederativa dos Obreiros do Piauí entregará aprefeitura a cópia da Ata de sorteio de que trata alei nº 51 de 16 de Maio de 1935” e já “com asalterações havidas entre os possuidores dos lotesde terrenos.” (TERESINA, 1936a, p. 61). O controlesobre os critérios de distribuição dos lotes, no qualprevaleceu o sorteio, ficou, portanto, sob aresponsabilidade da Aliança Federativa. Assim,podemos considerar que a construção de um bairrooperário em Teresina foi uma reivindicação real domovimento operário na cidade, o que veio a seconcretizar já no final dos anos de 1920 com adoação dos terrenos pela prefeitura.

A sede da Aliança Federativa também estavalocalizada na Vila Operária, pois o mesmo relatóriode 1936 registra a doação de dois terrenoslocalizados no bairro para a entidade “destinados aconstrução dos prédios da sede e da cooperativada mesma associação.”; e ainda ressalta que “areferida associação fica obrigada a instalar noprédio [...] uma escola noturna para adultos.”(TERESINA, 1936c, p. 39) Na época, era comumas organizações operárias garantirem o funciona-mento de escolas, tanto para os associados comopara os filhos dos operários, diante da ausência daoferta de educação pública pelos governos.Conforme relato de Dona Maria Rodrigues (2013),moradora do bairro desde 1944, as condições demoradia da Vila Operária eram bastante difíceis:

[...] era mesmo o pessoal pobre que morava aquique fazia suas casinha, depois foi aumentando,foi melhorando, aí foi fazendo a casinha melhor.[...] era uma aqui outra acolá, era tudo casinha véa,tinha muito terreno vago. [...] Era só ostrabalhadores, pessoa pobre mesmo. Casa depalha, feita de taipa, aí foi morando, ajeitando.

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Sobre o serviço de luz elétrica e águaencanada, ela falou: “Tinha não. Depois foi com otempo que botaram, tudo era na lamparina. Eradifícil. Tudo era na lamparina, tinha unscandierozim que eles acendiam no poste.”(RODRIGUES, 2013). De forma simples e lúcida,Dona Maria foi descrevendo com riqueza de deta-lhes a situação na qual encontrou o bairro quandolá chegou em meados da década de 1940, com ainexistência de condições mínimas de moradia,casas de palha afastadas umas das outras,ausência de luz elétrica e de água encanada.

Ana Maria Nascimento (2008) destaca que osmoradores da Vila Operária eram principalmenteoperários artífices da construção cívil, sapateiros,funileiros, alfaiates, torneiros, marceneiros, ferreirose ouríves, que trabalhavam em suas oficinas ou emoutros estabelecimentos fabris de Teresina.Inclusive, alguns operários da fábrica de fiaçãoconstruíram suas casas e foram morar na vila. Issopode ser explicado porque muitos operários quemoravam ao redor da fábrica tiveram suas casasremovidas pela prefeitura para a abertura deavenidas; e isso aconteceu no mesmo período deconstrução da Vila (LIMA, I., 2002). Em seu livro dememórias, “Teresina descalça”, Orgmar Monteiro(1987) relata como se deu o processo de “botaabaixo” realizado pela prefeitura, quando váriascasas de trabalhadores que habitavam a região,próximo à fábrica de fiação, cederam lugar àconstrução de duas grandes avenidas.

Recebendo todo o apoio da Fábrica [Fábrica deFiação e Tecidos Piauiense], principalmente doEngº Raimundo Arêa Leão ou Mundico para osíntimos, seu presidente, promoveu um bota abaixona abertura das ruas Benjamim Constant eCampos Sales, essas no trecho da Baixa dasÉguas na direção leste para oeste até o muro dafábrica na primeira, e ao rio na ultima (MONTEIRO,1987, p. 285)

Para esta pesquisa, não se conseguiu mensurara real relação da Fábrica de Fiação e TecidosPiauiense com a construção da Vila Operária; noentanto, Dona Maria confirmou que eram muitos osmoradores do bairro que trabalhavam na Fábrica deFiação e Tecidos e em outras profissões, comosapateiros e pedreiros:

Tinha umas que trabalhavam na fiação... Quetinha a fiação onde hoje é ali o Paraíba... é afiação. Uma fábrica de tecido que tinha aqui...trabalhavam na fiação. E os outros mesmo erapessoa empregado, a pessoa que costurava,tinha uns sapaterim, que naquele tempo não tinhaassim. [..] Pedreiro. Naquele tempo não tinhaesses emprego assim (RODRIGUES, 2013)

A construção da Vila pode ter sido a soluçãoencontrada para o problema habitacional desses

operários, já que muitos que trabalhavam na fábricapassaram a morar na Vila. É preciso aprofundar aspesquisas para confirmar a relação entre aremoção das famílias operárias do entorno daFábrica de Fiação e Tecidos Piauiense e aconstrução da Vila; tarefa que fica para outraspesquisas a serem realizadas.

O depoimento de Antônio Vieira Sales (apudNASCIMENTO, F., 2002, p. 219), ex-operário esindicalista da construção civil, revelou em detalhescomo ocorreu a criação do bairro:

Uma área de terreno bem ali começando naAugusto Ferro pra lá, todas aquelas ruas ali, estaplanta eu acho que ainda deve está aí pela casado Narciso [...] Nós executamos aquilo,compreendeu? Aquelas ruas, na planta, dado peloLuis Pires Chaves para a gente fazer a vilaoperária.

Quando o operário afirma que nós executamosaquilo, deixa explícito que participou da construçãoda Vila Operária; e afirma que o terreno para aconstrução das habitações foi concedido nogoverno do prefeito Luis Pires Chaves (1932-1935),já durante o governo do presidente Getúlio Vargas.É interessante que o decreto para a construção daVila Operária, como ficou confirmado, data de1928, durante o governo do prefeito Anfrísio Lobão(1925-1929), porém, a memória que permaneceupara Antônio Sales (apud NASCIMENTO, F., 2002)é que foi no governo de Luis Pires Chaves que oterreno foi doado aos operários; certamente porquenesse governo a construção efetiva do bairro teveinício.

Francisco Alcides Nascimento (2002, p. 219)caracteriza a construção da Vila Operária como um“ordenamento da cidade, realizado de formaautoritária e excludente” que estava associado aoafastamento da população trabalhadora do centrode Teresina, tendo em vista que a área onde foiconstruída a vila localizava-se após a linha férrea,em uma região isolada e distante da região centralda cidade.

No depoimento, Antônio Sales (apudNASCIMENTO, F., 2002, p. 220) disse que:

Todas aquelas ruas nós abrimos [...] quando agente arranjava um dinheirinho dava umempurrão, né? [...] quando já tinha aberto asveredas com os nomes das ruas, de acordo coma planta, fizemos uma missa [...] para chamar aatenção do povo que ninguém acreditava que agente fizesse, era mata maciça. Tuncunzal,compreendeu?

Pode-se inferir, portanto, que, além de terparticipado da construção da Vila desde a aberturada mata para a construção das ruas,possivelmente, Antônio Vieira Sales também tenha

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morado no bairro que ajudou a construir. Esseindício pôde ser observado quando ele afirmou que“quando a gente arranjava um dinheirinho dava umempurrão, ne?”, falando supostamente daconstrução da sua casa. Depois de limparem aárea, o terreno foi dividido em lotes e distribuídoaos operários. Outro fato evidente no relato do lídersindical Antônio Sales é que, mesmo que o decretodoando o terreno tenha sido assinado em 1928, foisomente a partir de 1932 que a Vila Operáriapassou a ser erguida - primeiro, com a limpeza doterreno e, depois, com a abertura de ruas e aconstrução das casas de palha e taipa.

Com a saída de Leônidas Mello do governoestadual e a entrada de Rocha Furtado (1947-1950), pertencente à União Democrática Nacional(UDN), os lotes deixaram de ser distribuídos,conforme afirmou o ex-sindicalista. É importanteregistrar que Antônio Vieira Sales, assim como oferreiro Ney Baumann, era um sindicalista queapoiava as ações do governo estadual, fazia partedo campo do sindicalismo “amarelo”, ou seja, eraum aliado do Governo Vargas. Ele foi presidente doSindicato dos trabalhadores da construção civil efez parte da direção do Centro Proletário deTeresina - este ultimo fundado em 1904.

As atas da Câmara Municipal de Teresina dadécada de 1930 revelam um pouco das característi-cas do bairro e dos problemas enfrentados pelostrabalhadores que lá moravam. No pleito eleitoral de1936, quatro operários foram eleitos vereadores,dentre eles, o ferreiro e líder sindical Ney Baumann,que permaneceu como vereador até novembro de1937, quando o golpe instalou o regime autoritáriochamado de Estado Novo, que dissolveu osparlamentos em todas as esferas de governo. Apóso fechamento da Câmara Municipal de Teresina,Ney Baumann, que era aliado do governo, foiindicado prefeito de Campo Maior.

3 O líder sindical e vereador: Ney Baumam e aVila Operária

Nas atas da Câmara Municipal, estãoregistrados os discursos e as proposições deações para dotar a Vila Operária de alguns serviçospúblicos, como escolas, campo de futebol etransporte coletivo. Durante o ano de 1936, um dosassuntos que foi pauta das discussões da CâmaraMunicipal foi o transporte público. Teresina cresciasua zona urbana, novas casas e bairros surgiramnas zonas periféricas da cidade e logo o transportepúblico se tornou uma necessidade para os amplos

setores da população que precisavam se deslocarpela cidade.

A distância de alguns bairros para o centro erarazoável, o que trouxe a necessidade de apopulação ter acesso ao transporte coletivo para selocomover para chegar ao trabalho e demaisafazeres. Durante os anos de 1920, foi inauguradoum sistema de transporte público por meio dobonde; no entanto, o serviço não durou muitotempo (NASCIMENTO, F., 2002). Já na década de1930, com a massificação do automóvel, o ônibuspassou a ser uma alternativa de transporte público.A ata afirma que:

Foi lida também uma mensagem do Sr. Dr.Prefeito Municipal sobre a empresa de auto-onibus, pedindo autorização para contractar comquem melhores vantagens oferecer, medianteconcorrência publica, a realização do serviço detransportes nesta capital, pois segundo chegouao seu conhecimento a empresa de auto-onibus,que actualmente faz o serviço de transportes emTeresina, deseja ausentar-se por falta de umasubvenção por parte do município (TERESINA,1937, p. 11).

Nesse período, foi indicado pelo interventorcomo prefeito de Teresina o Dr. Lindolfo Monteiro,que assumiu o governo no ano de 1935. Pelofragmento citado acima, já no ano de 1937,Teresina contava com um sistema de transportepúblico prestado por uma empresa privada, que, porcausa de supostas dificuldades financeiras ereclamando da falta de incentivo financeiro por parteda prefeitura, abandonou a exploração do serviço;e, por isso, o prefeito solicitou que a Câmaraabrisse nova licitação para contratar outra empresapara assumir o serviço de transporte público dacidade. O sistema contava com apenas três ônibusda marca Ford, comprados com finanças daprefeitura. Sobre o assunto está registrado em ataque:

O Vereador Raimundo Ney Baumann disse queem nome dos quatro operários da Camaradesejava e requeria que o contrato a ser lavradoou a lei a ser elaborada a respeito, ficassecontatada a obrigação do contratante a ter linhaspermanentes para os bairros Cajueiros e VillaOperaria, ou, pelo menos, suas imediações, poisexactamente nesses lugares é que mora o maiornumero de proletários (TERESINA, 1937, p. 11).

Duas interpretações deve-se fazer do discursodo vereador Baumann: o primeiro é que, já em1937, a Vila Operária contava com uma quantidaderazoável de habitações e de famílias operárias; asegunda inferência é que a antiga empresa nãotinha linhas circulando por esses bairros dossubúrbios, causando a reclamação da populaçãoque ali residia. Outro projeto apresentado por NeyBaumann destinado a dotar a Vila Operária de

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serviços públicos foi a construção de um escola.Baumann defendeu que o nome da escola levasseo nome de Pires Chaves, que foi prefeito deTeresina e, no seu governo, deu-se início àconstrução de casas na Vila Operária.

O Vereador Raimundo Ney Baumannapresentou um projecto mandando construir umgrupo escolar na praça principal da Villa Operária,que se denominará Grupo Escolar Pires de Castroe abrindo credito de Rs. 12:000$000, para occorreras despesas com o mesmo serviço. [...] Quequanto ao nome de Pires Chaves para o GrupoEscolar que será construído na Villa Operária, nãoé favor, é a justa e sincera homenagem a que PiresChaves tem direito pelos seus relevantes serviçosprestados aquela Villa, ao operariado que hojepossue terreno n’aquele local (TERESINA, 1936, n.p).

Percebe-se, portanto, uma preocupação doverador Ney Baumam de dotar alguns bairrosoperários, especialmente a Vila Operária, de algunsequipamentos urbanos que melhorassem a vidados trabalhadores. Conforme Dona Maria Rodrigues(2013), quando foi morar na Vila Operária, já “tinhao Dom Severino [escola], que era bem ali na ruaAmazona, aí nessa alameda Parnaíba.” DomSeverino é uma escola localizada no bairro e que,possivelmente, foi a primeira escola pública da VilaOperária, porque, como ela mesma afirmou, “[...]quando eu cheguei aqui já tinha essa escolinha lá.”

Segundo Daniel Sólon, o analfabetismo afetavaa grande maioria da população teresinense,notadamente os trabalhadores e seus filhos. Noartigo “Os sons que vêm do subúrbio”, ele afirmaque “o recenseamento geral de 1950 revelava que47.463 dos 76.402 moradores de Teresina (comidade acima de 5 anos), não sabiam ler, nemescrever. Dentro da zona urbana da capitalpiauiense, dos 43.830 moradores nesta faixa etária,apenas 24.832 eram alfabetizados.” (BRANCO;SOLON, 2011, p. 69); portanto, mais de 40% dapopulação de Teresina era analfabeta. Eram poucasas escolas, principalmente na periferia, e, por isso,algumas associações operárias como o CentroProletário, mantinham suas próprias escolas paraeducar os associados e seus filhos.

4 Conclusão

Acredita-se que este breve texto contribuiu paraaprofundar as reflexões sobre as particularidadeshistóricas do surgimento da Vila Operária emTeresina. A primeira conclusão a que chegou é queo surgimento da Vila Operária foi resultado de uma

intervenção do poder público municipal na políticahabitacional, ao contrário de muitas vilas operáriasde outras regiões do País. A Vila Operária surgiu,portanto, como um projeto de afastamento dapopulação das regiões centrais da cidade. Ficouclaro também que a construção do bairro e ocontrole sobre quem teria acesso à moradia ficousob a tutela da organização operária AliançaFederativa dos Obreiros do Piauí, e isso leva arefletir sobre a força que o movimento operário tinhapara defender os interesses dos trabalhadores einterferir nas políticas públicas, sem entrar nomérito da dependência e independência daorganização frente ao Estado, o que acaba porevidenciar que a questão da moradia era umareivindicação importante do movimento operárioteresinense no período

ReferênciasBRANCO, J. V. C.; SOLON, D. V. Os sons que vêm do subúrbio:amplificadoras e sociabilidades na periferia de Teresina nos anos 50.In: BRANCO, J. V. C.; SOLON, D. V. Histórias em poliedros: cultura ,cidade e memória. Teresina: Edufpi, 2011. p. 55-78.CALDEIRA, T. P. R. Cidade de muros: crime, segregação e cidadaniaem São Paulo. São Paulo. Edusp. 2000.LIMA, I. M. M. F. Teresina: urbanização e meio ambiente. Scientia etSpes, Teresina, v. 1, n. 2, p. 181-206, 2002.LIMA, A. C. C. Práticas de devoção a Nossa Senhora do PerpétuoSocorro na Vila Operária, Teresina - PI. 2009. 213 f. Dissertação(Mestrado em História do Brasil) - Programa de Pós-Graduação emHistória, Universidade Federal do Piauí, Teresina, 2009.MONTEIRO, O. Teresina descalça: memória desta cidade para deleitedos vekhos habitantes e conhecimento dos novos. Fortaleza: [s.n.],1987.NASCIMENTO, A. M. B.. Trabalhadores e trabalhadoras no fio dahistória das práticas e projetos educativos no Piauí (1856-1937). 2008.158 f. Dissertação (Mestrado em História do Brasil) - Programa dePós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Piauí,Teresina, 2008.NASCIMENTO, F. A.. A cidade sob o fogo: modernização e violênciapolicial em Teresina (1937-1945). Teresina: Fundação MonsenhorChaves, 2002.RAGO, M. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar. Brasil 1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.RODRIGUES, M. T. Depoimento concedido ao pesquisador JoséMaurício Moreira dos Santos. Teresina, 27 de novembro de 2013.TERESINA (Piauí). Ata da Câmara Municipal de Teresina. Arquivo daCâmara Municipal de Teresina, Teresina, 22 maio 1936.TERESINA (Piauí). Ata da Câmara Municipal de Teresina. Arquivo daCâmara Municipal de Teresina, Teresina, 23 abr. 1937.TERESINA (Piauí). Relatório Governamental da Prefeitura Municipal deTeresina. Arquivo Público do Piauí, Teresina, 16 maio 1936a.TERESINA (Piauí). Relatório Governamental da Prefeitura Municipal deTeresina. Arquivo Público do Piauí, Teresina, 22 jun. 1936b.TERESINA (Piauí). Relatório Governamental da Prefeitura Municipal deTeresina. Arquivo Público do Piauí, Teresina, 25 jun. 1936c.

* Graduado em História, especialista em históriana área, “Estado, Movimentos sociais e Cultura”pela UESPI, mestrando do programa de Históriado Brasil da UFPI e professor da rede pública.** Professor da Universidade Federal do Piauí, doDepartamento de Ciências Econômicas,programa de Pós-graduação em História e Núcleode Pesquisas sobre Africanidades eAfrodescendência.

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OS (DES)CAMINHOS DA ASSOCIAÇÃOINTERFEDERATIVA: o caso do ConsórcioRegional de Saneamento do Sul do PiauíJoão Soares da Silva Filho* e Jaíra Maria Alcobaça Gomes**

Resumo: este artigo busca analisar a experiência de associação intermunicipal no estado do Piauí, a partirde levantamento bibliográfico, dados secundários e análise documental de material do Consórcio Regional deSaneamento do Sul do Piauí, implementado sob a égide da Lei de Consórcios Públicos. A Carta de intençõesapresentada foi assinada por 36 municípios dos territórios de desenvolvimento Tabuleiros do Alto Parnaíba eChapada das Mangabeiras.Palavras-chave: Cooperação interfederativa. Consórcios públicos. Intermunicipalidades.Abstract: this paper seeks to analyze the experience of municipal association in the state of Piaui, fromliterature, survey indicators in official bodies and analysis of documentary material Consortium RegionalSanitation South of Piauí, implemented under the aegis of the Public Consortia Law. The letter of intent waspresented signed by 36 municipalities of the territory development boards Alto Parnaíba and ChapadaMangabeiras.Keywords: Cooperation interfederativa. Public consortia. Intercommunalities.

1 Introdução

As experiências de associação voluntária demunicípios têm se convertido ao longo das últimasdécadas no novo paradigma que se propõe a levaros municípios - dos mais diferentes portes - a tercondições de prestar bens e serviços públicos comeficiência e alcançar os níveis de desenvolvimentodesejáveis, considerando o momento histórico emque as municipalidades avançaram nas esferas depoder, sem, no entanto, obter por suas própriascompetências o volume de recursos suficientespara atender à necessidade de infraestrutura e àsdemandas sociais crescentes.

O processo de descentralização efetivou-secom a Constituição de 1988, que define comocompetências municipais a legislação eorganização de serviços públicos locais, justificou-se, pela expectativa de incremento de fontes dereceita, na função alocativa exercida com maioreficiência, na redução da rigidez burocrática e naflexibilidade administrativa.

Nesse novo modelo, propõem-se novasinstitucionalidades a partir da concepção de gestãosolidária e de instrumentos de alcance de objetivoscomuns; daí se investigar o instrumento deconsórcio público, tomando-se como referência osetor de saneamento, em que o poder centralincentiva fortemente a gestão associada dos entesfederados por meio de convênios de cooperação edos consórcios.

O primeiro consórcio público de saneamento doBrasil, o Consórcio Regional de Saneamento do

Sul do Piauí (Coresa Sul do PI), tem na suaconcepção as feições representativas desse novomodelo, tendo sido amplamente divulgado comouma experiência exitosa pela literatura corrente,1

sem, no entanto, apresentar resultadossubstanciais.

Neste atigo busca-se analisar a experiência deassociação interfederativa no Piauí a partir delevantamento bibliográfico, levantamento deindicadores em organismos oficiais e análisedocumental de material do Coresa Sul do PI; e estáestruturado em cinco seções: na segunda, discute-se o processo de descentralização da gestão, comdestaque ao movimento pós-1988; na terceiraseção, apresenta-se a concepção dos consórciospúblicos a partir do seu arcabouço legal e das suasformas de implementação; na quarta, apresenta oprocesso de gestação do Coresa Sul do PI ebusca-se traçar um panorama da situação atual;finaliza, na quinta seção, com as conclusões quepuderam ser depreendidas ao longo da pesquisa.

2 A Descentralização da Gestão Pública

O advento da descentralização da gestãopública não é um fenômeno novo. Registram-se, aolongo do processo de formação e consolidaçãopolítica brasileira, momentos de maior ou menorpartição de competências e atribuições entre opoder central e as unidades subnacionais. Talfenômeno, reconhecido num contexto dedistribuição de competências decisórias, não seefetiva em um processo pacífico, justamente por

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mudanças profundas nos núcleos de poder, o quedificulta a sua efetivação, principalmente nocontexto do Estado brasileiro, marcado, no seuprocesso de formação histórica, social eeconômica, por concepções autoritárias ecentralizadoras.

A partir da Constituição Federal de 1988 (CF/1988), a questão da autonomia dos entesfederados se fortaleceu e o município - enquantounidade política, territorial e culturalmente definida -encontrou um momento favorável aoreconhecimento e ampliação do seu espaço deatuação. Garantiu-se, portanto, a redefinição dequestões de ordem política, administrativa efinanceira através de amplas reformas que gerarammaior autonomia aos governos subnacionais(PEDREIRA, 2006).

Segundo Giambiagi e Além (2008, p. 324), oBrasil tem tendências municipalistas que foramreconhecidas pela Carta Magna:

[...] os municípios foram reconhecidos comomembros da federação, postos em condições deigualdade com os estados no que diz respeito adireitos e deveres. Em particular, o sistema detransferências constitui-se em um incentivo àproliferação de municípios.

Além desse fator econômico, os autoresargumentam que a descentralização pode sermotivada por questões culturais, políticas,institucionais e geográficos.

Um forte argumento em favor desse modelo,considerando a função alocativa do setor público, éa necessidade de responder mais prontamente àsdemandas sociais, que são mais claramentepercebidas numa escala municipal - onde osproblemas de fato se concretizam. Nesse caso, aspolíticas locais e regionais propiciariam maioresperspectivas de atendimento aos anseios daspopulações. Para Ribeiro e Guedes (2001, p. 51),esse movimento também objetiva “superar a rigidezburocrática da administração direta, contandoentão com entidades de maior flexibilizaçãoadministrativa que, portanto, fossem maiseficientes na atividade econômica do Estado.”

Segundo Lima (2010), sob a égide das lutassociais dos anos de 1970 e 1980, o processo dedescentralização fez-se acompanhar danecessidade de partição do processo decisório, emque a sociedade civil, normativamente, é chamadaa integrar instâncias da gestão pública e do seucontrole, derivando novos modelos de planejamentoe intervenção urbana, que ocorrem, principalmente,no nível de governos locais.

No entanto, as distorções do modelo aparecemna medida em que

A Constituição de 1988 aumentou os recursosfiscais disponíveis dos estados e municípiossem, entretanto, definir com clareza as novasatribuições dessas esferas de governo. Forçadospelas novas circunstâncias, estados e,principalmente municípios, expandiram seusgastos, com destaque para os serviços de saúdee educação. A questão é que, tendo em vista quenão houve um processo organizado detransferência de encargos, a descentralização“forçada” de algumas despesas sociais gerouimportantes distorções quanto ao atendimentodas demandas da população, havendo em muitoscasos uma falta de atendimento ou umasuperposição de responsabilidades (GIAMBIAGI;ALÉM, 2008, p. 332).

Instaurado o novo regime federativo, asdificuldades econômicas, o calendário político e oagravamento da crise fiscal não permitiram o seufortalecimento (REZENDE, 2011). Os entesfederados esperavam a maior autonomia financeiramais com o intuito de gastar do que decompetência para instituir e cobrar tributos. Assim,sem o incremento na sua base tributária, a receitada maioria dos estados e municípios cresceu àsexpensas das transferências.

Considerando a sua heterogeneidade detamanho, organização e contexto econômico dosmunicípios, dificuldades tendem a aparecer a partirdo momento em que as novas responsabilidades,principalmente no âmbito social, são assumidaspelas diferentes unidades que estão em situaçõesmuito dispares.

3 Os Consórcios Municipais no Brasil

Os fundamentos basilares da RepúblicaFederativa partem do princípio da cooperação entreos entes, descrito no parágrafo único, do artigo 23da CF/1988, com as modificações dadas pelaemenda constitucional n. 53, de 19 de dezembrode 2006. No entanto, o cenário político-econômicoque se observa na atualidade apresenta - em suamaioria - práticas pouco solidárias, uma vez quelutam por recursos limitados, concorrendo entre si.Observam Abrucio e Couto (1996, p. 46):

Os dois primeiros parâmetros da reforma doEstado no âmbito municipal - a questão fiscalfederativa e a desigualdade econômica entre osmunicípios - apontam para a exigência de seremestabelecidos mecanismos de cooperação entreas unidades de governo. O fato é que a atualescassez de recursos tem sido enfrentada nãoatravés da cooperação, mas sim pela buscacompetitiva - e até mesmo predatória - derecursos. A única forma pela qual torna-sepossível alterar este quadro é a institucionalizaçãode mecanismos que incentivem a açãocooperativa.

Os mecanismos de cooperação existem no

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Brasil desde o século XIX, como se observa naConstituição Estadual de São Paulo de 1891, ondejá se previa, no seu artigo 56, que “Asmunicipalidades poderão associar-se para arealização de quaisquer melhoramentos, quejulguem de comum interesse, dependendo, porem(sic), da aprovação do Congresso do Estado asresoluções que nesse caso tomarem.”

Ao longo do século XX, outras modalidadesforam se estruturando a partir da pactuação dasrepresentações subnacionais, principalmenteatravés de agências, associações, convênios decooperação e consórcios, dentre outras.

Em todo o território nacional, no ano de 2011, oInstituto Brasileiro de Geografia e Estatística(IBGE), a partir da pesquisa “Perfil dos municípiosbrasileiros 2011”, aponta que 2.903 municípiosintegram algum tipo de consórcio intermunicipal, oque corresponde a 52,17% do total de entesmunicipais federados. A pesquisa detectou asprincipais áreas: saúde (2.288); meio ambiente(704); turismo (456); saneamento básico (426);desenvolvimento urbano (402); educação (280);cultura (248); habitação (241); assistência edesenvolvimento social (232); transporte (211);emprego e trabalho (143) (IBGE, 2012).

Na atualidade, essa é uma das modalidadesmais comuns de associação. Através dosconsórcios públicos, muitos municípios têm seagregado com o objetivo de potencializar as suascapacidades de prestação de bens e serviçospúblicos, através de ganhos de escala, quegarantam o desenvolvimento socioeconômico e agarantia de direitos sociais, uma vez que podem seconstituir para atuação em diversas áreas dagestão pública.

Por consórcio público entende-se umaassociação de dois ou mais entes da federaçãopara a realização de objetivos de interesse comum.Trata-se, portanto, de uma parceria voluntária.Legalmente, conforme o Decreto n. 6.017, de 17 dejaneiro de 2007, é considerado uma

[...] pessoa jurídica formada exclusivamente porentes da Federação, na forma da Lei no 11.107,de 2005, para estabelecer relações decooperação federativa, inclusive a realização deobjetivos de interesse comum, constituída comoassociação pública, com personalidade jurídicade direito público e natureza autárquica, ou comopessoa jurídica de direito privado sem finseconômicos (art. 2º, I).O arcabouço legal que prevê a figura do

consórcio público compõe-se, basicamente, da CF/1988, no seu artigo 241; da emenda constitucionaln. 19, de 4 de junho de 1998, no que alterou a

redação do artigo 241 da CF/1988; da lei n. 11.107,de 6 de abril de 2005 (Lei de Consórcios Públicos eda Gestão Associada de Serviços Públicos); e doDecreto n. 6.017/2007, que regulamentou a lei n.11.107/2005.

Um consórcio pode se construir em umacondição de cooperação horizontal (entes damesma esfera) ou cooperação vertical (entes dediferentes esferas), sempre obedecendo aoprincípio da subsidiariedade. Na sua formatação eimplantação, sinteticamente, Campos et al. (2012)apresentam as seguintes instâncias/etapas: (a)protocolo de intenções (documento inicial doconsórcio, devendo ser publicado e subscrito peloschefes do Poder Executivo); (b) ratificação(aprovação do Poder Legislativo); (c) assembleiageral; e (d) elaboração de estatuto e regimentointerno.

De acordo com Batista (2011), os principaisargumentos apontados como favoráveis à suaformação são:a) instrumentalizar os entes federados a operar asmúltiplas escalas do projeto nacional dedesenvolvimento;b) permitir a descentralização de recursos técnicose financeiros e promover a regionalização eterritorialização de políticas públicas;c) promover o fortalecimento gerencial eadministrativo dos municípios, dos estados/distritofederal e do Governo federal;d) agilizar a execução de projetos, baratear custos,dar maior transparência à aplicação de recursospúblicos;e) ampliar a capacidade contratual dos consórciospúblicos, inclusive na captação de recursos.

Embora se reconheça as vantagens daassociação, não se deve ignorar as limitações queesse tipo de experiência apresenta. Aspectostécnicos muitas vezes podem ser inviabilizados porquestões políticas. Assim, o sucesso de umaassociação não se garante somente pela suaviabilidade técnica, econômica, social e ambiental.A constituição dos consórcios deve viracompanhada de uma gestão eficiente e efetiva,que garanta o alcance dos objetivos propostos.Lamparelli (2001, p. 229), citando Fontes, afirma:

A consolidação dos consórcios intermunicipaisexige mais do que bons estatutos sociais ou umaorganização administrativa eficiente e eficaz. Épreciso a vontade real dos prefeitos que oscompõem para que questões políticas partidáriasnão interfiram, ou interfiram o menos possível, noseu desenvolvimento e fortalecimento. Torna-senecessário que os Executivos municipaisadquiram consciência do espaço maior em que

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se inserem para transformar em realidade osomatório de suas forças.

Aponta-se, portanto, a formação dos consórcioscomo o padrão do novo modelo de gestãointerfederativa, com o forte estímulo do podercentral, que, inclusive, dá prioridade a esse tipo naobtenção de recursos federais.2 Nele, busca-sesuperar as dificuldades já apontadas e associar asparcerias solidárias a questões maiores, como doordenamento territorial e do desenvolvimentoeconômico.

4 O Coresa Sul do Piauí: concepção,institucionalização e investimentos

4.1 O desenho e a institucionalização do CoresaSul do Piauí

O Coresa Sul do PI foi concebido a partir doPrograma de Modernização do Setor Saneamento(PMSS), implementado no âmbito da SecretariaNacional de Saneamento Ambiental, vinculada aoMinistério das Cidades (MCidades).

O PMSS nasceu com o intuito de estimular areestruturação institucional e a melhoria daeficiência dos serviços públicos de saneamento,aperfeiçoando a gestão e buscando a ampliação dacobertura, com sustentabilidade financeira equalidade dos serviços (BRASIL, 2006a).

No Piauí foi firmado o Acordo de CooperaçãoTécnica entre o MCidades e o Governo do Estadopara assistência técnica do PMSS à reestruturaçãodos serviços de saneamento ambiental do estado.As análises técnicas concentram-se na companhiaestadual Água e Esgotos do Piauí S/A (Agespisa),que, mediante os seus resultados financeiros eoperacionais - historicamente deficientes -,conduziram à proposta de reestruturação não só daCompanhia, mas de se promover uma reformainstitucional mais ampla nos serviços desaneamento do Piauí (BRASIL, 2006a).

Esses estudos iniciais culminaram, a pedido doGoverno do Estado, na proposição de um novoplanejamento institucional e na indicação deimplantação de um novo modelo de gestão dosserviços de água e esgotos.

De acordo com o MCidades (BRASIL, 2006a),Esta nova fase iniciou-se com a elaboração doestudo de cenários para prestação de serviços desaneamento ambiental no Estado do Piauí. Oestudo analisou a viabilidade técnica, logística efinanceira de modelos alternativos de gestão dosserviços, a partir de dados dos sistemas de águade todas as sedes municipais do estado, tendoconcluído que o modelo institucional maissustentável e adequado à realidade socioeconô-mica do Piauí combina as seguintes soluções:

(i) limitação da área de atuação da Agespisa àcapital, aos municípios maiores e circunvizinhos,criando condições mais favoráveis para viabilizar asustentabilidade da empresa;(ii) divisão do restante do território estadual em 4macrorregiões, ajustadas à concepção deplanejamento regional da Secretaria dePlanejamento do Estado do Piauí (SEPLAN/PI);3

(iii) criação de 4 consórcios regionais desaneamento (norte, leste, sul e sudeste),possibilitando a cooperação dos municípios decada região entre si e com o estado, promovendoa gestão associada e as economias de escalanecessárias à sustentabilidade dos serviçosmunicipais, por meio de um novo modeloinstitucional;

(iv) prestação dos serviços no nível local realizadadiretamente pelas prefeituras municipais.

Organizados os estudos de viabilidade, propôs-se a criação do Coresa Sul do PI, que viria a ser oprimeiro consórcio público de saneamento doBrasil, implementado sob a égide da Lei deConsórcios Públicos (lei n. 11.107/2005). O seuProtocolo de Intenções foi assinado pelo chefe dopoder executivo estadual e pelos chefes do poderexecutivo municipal da macrorregião Sul, quecorresponde aos territórios de desenvolvimentoTabuleiros do Alto Parnaíba e Chapada dasMangabeiras, que incorporam 36 municipalidades:Alvorada do Gurguéia, Antônio Almeida, AvelinoLopes, Baixa Grande do Ribeiro, Barreiras do Piauí,Bertolínia, Bom Jesus, Canavieira, Colônia doGurguéia, Corrente, Cristalândia do Piauí, CristinoCastro, Curimatá, Currais, Eliseu Martins, Gilbués,Guadalupe, Júlio Borges, Jerumenha, Landri Sales,Manoel Emídio, Marcos Parente, Monte Alegre doPiauí, Morro Cabeça no Tempo, Palmeira do Piauí,Parnaguá, Porto Alegre do Piauí, Redenção doGurguéia, Riacho Frio, Ribeiro Gonçalves, SantaFilomena, Santa Luz, São Gonçalo do Gurguéia,Sebastião Barros, Sebastião Leal, Uruçuí(SEPLAN, 2013).

Uma vez que as leis de ratificação do Protocolode Intenções foram aprovadas nas instânciaslegislativas estaduais (Lei Ordinária n. 5.501/2005)e de 30 municípios4 - superando o número mínimode 20 municípios exigido no Protocolo -, esancionadas pelos respectivos chefes do PoderExecutivo, o Coresa Sul do PI passou a existirjuridicamente, tendo sido instalado em 17 defevereiro de 2006, na cidade de Bom Jesus, com arealização da Assembleia Estatuinte, em quecompareceram o governador do estado e osprefeitos dos 30 municípios consorciados. No anode 2008, os municípios signatários Baixa Grandedo Ribeiro, Bertolínia, Jerumenha e Ribeiro

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Gonçalves incorporam-se ao Coresa Sul do PI,após a ratificação pelas suas câmaras legislativas.Assim, o Consórcio passou a ter o número de 35membros. Os municípios de Eliseu Martins e SãoGonçalo do Gurguéia não ratificaram o Protocolo deIntenções e, portanto, não se tornaram associados(BRASIL, 2006b).

4.2 Breve caracterização dos municípiosintegrantes do Coresa Sul do Piauí

O problema mais significativo que se podelevantar sobre o Coresa Sul do PI é que o objetivode se constituir um consórcio é obter ganhos deescala - econômico-financeiros - para resolverproblemas das comunidades locais. A população aser assistida, em 2010, alcançou o número de273.529 pessoas (8,77% da população piauiense),das quais 167.727 (61,3%) vivem no meio urbano e105.802 (38,7%) no meio rural (IBGE, 2013).

Do conjunto dos 36 municípios, em 2010, 26deles têm populações inferiores a 10.000habitantes. Apenas três municípios têm populaçõesentre 20.000 e 26.000 habitantes: Corrente(25.407), Bom Jesus (22.629) e Uruçuí (20.149)(PNUD, 2013).

O Coresa Sul do PI circunscreve uma área de87.088,4 km2, que corresponde a 34,6% da área doestado (Tabela 1).

Nos territórios desse Consórcio, verifica-se umforte contraste social e econômico; são populaçõespobres (ou empobrecidas), uma vez que a região é,economicamente, a mais visada pelo setor privado,em particular pelo agronegócio, por ser conhecidacomo a última fronteira agrícola do País, e ariqueza não é bem distribuída. Nela, aindapersistem a agricultura e a pecuária tradicionais desubsistência, apesar do avanço do agronegócio.Em 15 municípios, o percentual da populaçãopobre é superior a 50%.

Município Área (km2) IDH-M Renda

per capita (R$)

Percentual de

pobres (%)

Alvorada do Gurgueia 2.139,93 0,578 203,23 56,77 Antônio Almeida 654,76 0,620 293,53 33,76 Avelino Lopes 1.301,85 0,554 218,97 50,65 Barreiras do Piauí 2.037,32 0,557 260,79 42,95 Bom Jesus 5.491,19 0,668 501,14 31,29 Canavieira 1.809,82 0,583 209,47 46,03 Colônia do Gurguéia 432,12 0,628 291,37 33,09 Corrente 3.062,40 0,642 378,39 40,16 Cristalândia do Piauí 1.208,76 0,573 204,49 58,48 Cristino Castro 1.856,71 0,566 307,32 40,60 Curimatá 2.362,76 0,607 285,52 40,77 Currais 3.171,22 0,542 168,68 54,66 Gilbués 3.508,45 0,548 285,45 53,13 Guadalupe 1.024,07 0,650 426,79 20,89 Júlio Borges 1.308,11 0,582 179,61 54,96 Landri Sales 1.198,49 0,584 266,01 41,99 Manoel Emídio 1.625,73 0,573 222,62 50,16 Marcos Parente 778,15 0,590 295,66 35,32 Monte Alegre do Piauí 2.428,24 0,578 217,23 53,45 Morro Cabeça no Tempo 2.124,37 0,542 150,52 60,65 Palmeira do Piauí 2.029,69 0,557 278,54 45,73 Parnaguá 3.297,46 0,575 211,44 53,38 Porto Alegre do Piauí 1.142,41 0,563 228,65 39,30 Redenção do Gurguéia 2.478,69 0,589 255,92 48,55 Riacho Frio 2.231,51 0,541 161,99 62,65 Santa Filomena 5.306,80 0,544 216,61 53,49 Santa Luz 1.191,62 0,588 228,71 48,31 Sebastião Barros 1.018,35 0,536 189,25 60,70 Sebastião Leal 3.125,53 0,562 198,01 52,02 Uruçuí 8.488,15 0,631 364,39 29,70 Baixa Grande do Ribeiro* 7.841,76 0,564 225,94 47,37 Bertolínia* 1.230,32 0,612 325,94 32,82 Jerumenha* 1.701,14 0,591 275,19 34,55 Ribeiro Gonçalves* 3.994,41 0,601 274,79 42,23 Eliseu Martins** 1.095,86 0,595 370,70 38,25 São Gonçalo do Gurguéia** 1.390,24 0,560 281,43 51,86

Tabela 1 - Área total, índice de desenvolvimento humano, renda percapita e percentual de pobres, segundo os municípios signatários doProtocolo de Intenções do Coresa Sul do PI. 2010

Fontes: PNUD, 2013; IBGE, 2013.* Municípios que ratificaram o protocolo de intenções após a instalação do Coresa Sul do PI.** Municípios que não ratificaram o protocolo de intenções e não se tornaram associados.

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Estima-se que os municípios do Coresa Sul doPI teriam uma renda média per capita da ordem deR$ 262,62; no entanto, os municípios de BomJesus, Guadalupe, Corrente e Uruçuí integram o roldas 20 unidades administrativas do estado commaiores rendas, com valores, respectivamente, deR$ 501,14 (4ª), R$ 426,79 (6ª), R$ 378,39 (13ª) eR$ 364,39 (18ª) (PNUD, 2013).

Essa região, que se localiza em uma zona detransição onde predomina o bioma cerrado, ainda éassolada por sérios problemas de abastecimento e,por vezes, de disponibilidade hídrica, apesar da suariqueza em águas superficiais, onde se destacam aexistência de rios como Parnaíba, Uruçuí-Preto,Uruçuí-Vermelho e Gurgueia; além de sistemas derepresamento, como as barragens de BoaEsperança e Algodões II (SEPLAN/PI, 2013).

4.3 Investimentos e resultados do Coresa Sul doPiauí

Os investimentos iniciais previstos no CoresaSul do PI eram da ordem de R$ 33.653.514,67, dosquais, R$ 31.573.160,35 seriam de recursosfederais oriundos do orçamento do Programa deAceleração do Crescimento, da Fundação Nacionalde Saúde (Funasa) e do MCidades (NUNES,2007).5 A contrapartida do consórcio seria da ordemde R$ 2.080.354,32; tais recursos serviriam paraimplantação de sistemas de abastecimento deágua, construção da sede do Consórcio eaquisição de laboratório móvel.

Os contratos entre a União e o estado do Piauípara intervenções nos sistemas de abastecimentode água nos municípios que integram o Coresa Suldo PI estão sob a responsabilidade da Gerência deFilial Desenvolvimento Urbano e Rural-Teresina/PI(GIDUR/TE), da Caixa Econômica Federal (CEF).

Segundo Diniz e Melo (2013), constam, naGIDUR/TE, dois contratos firmados para execuçãode sistemas de abastecimento: de números0218090-94 e 0320640-08. O primeiro contrato -0218090-94 - é o mais amplo deles e foi assinadoem 10 de setembro de 2007, onde seriambeneficiados 27 municípios integrantes do CoresaSul do PI.6 Os valores previstos para repasse pelaUnião eram de R$ 28.179.000,00, ao que seagregaria R$ 1.674.000,00 de contrapartida doGoverno do Estado. Por força da Portaria MCidadesn. 656/2010, esses valores foram reduzidos paraR$ 26.770.050,00 de repasse e R$ 1.408.950,00 decontrapartida.

A vigência desse Contrato expirará em 30 de

novembro de 2014, tendo sido prorrogada por duasvezes. Cerca de seis anos após a sua assinatura,foram liberados apenas R$ 11.766.026,75 e,segundo a GIDUR/TE, a execução física das obrasatinge 41,75%. Para os municípios de Barreiras doPiauí, Corrente, Gilbués, Parnaguá, Porto Alegre doPiauí e Santa Filomena não houve liberações, logo,nenhuma obra foi iniciada.

Ainda conforme os autores supracitados, osegundo contrato - 0320640-08 - foi firmado em 31de dezembro de /2010 e atende aos municípios deBaixa Grande do Ribeiro, Bertolínia, Jerumenha,Ribeiro Gonçalves e Cristalândia do Piauí. O valordo Investimento total é de R$ 6.000.000,00, dosquais R$ 5.700.000,00 é oriundo de repasse eR$ 300.000,00 deve ser repassado pelo Governo doEstado. Em 32 meses, nenhuma obra nessescinco municípios foi iniciada, uma vez que nãoforam apresentados à CEF nenhum resultado dosprocessos licitatórios.

Segundo Nunes ([2013]), uma das grandesdificuldades de implementação dos projetos é aanálise da CEF. A superintendência do Consórcioconsidera que os constantes questionamentos doagente financeiro quanto a licitação e mediçõesfazem paralisar os processos e liberação derecursos, exigindo reformulação dos projetos, comalterações de preços, gerando desentendimentosentre o agente repassador, o Governo, asprefeituras e as empresas contratadas.

A superintendência do Coresa Sul do PI registraque, do conjunto de obras previstas para os 34municípios consorciados, apenas Júlio Borges eMorro Cabeça no Tempo tiveram as suas etapasconcluídas. Isso se deu via recursos oriundos doOrçamento Geral da União, por meio de emendaparlamentar, repassada pela Funasa. Um balançode 2012, revela que apenas nos municípios deAlvorada do Gurgueia, Sebastião Barros eCristalândia do Piauí haviam obras em andamento(NUNES, [2013]).

A situação é preocupante em praticamentetodos os municípios. Tem-se que o Coresa Sul doPI ainda não conseguiu avançar no alcance do seuobjetivo de prestar serviços de saneamentoambiental com qualidade e transparência, uma vezque estão longe de se concretizarem os meiospara o cumprimento das metas planejadas. Asjustificativas para a agonia do Coresa Sul do PIforam de várias ordens. A principal delas foi a faltade recursos de contrapartida do Estado e datransferência dos sistemas de saneamento

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34informe econômicoAno 16, n. 33, dezembro 2014

administrados pela Agespisa na região. Os municí-pios também tiveram suas restrições orçamentáriasque limitaram o impulso do Consórcio.

Destacam-se ainda vários erros de projeto, coma necessidade de intensas intervenções e revisõespara aprovação dos projetos junto aos repassado-res de recurso, em particular à CEF. Os processoslicitatórios de parte significativa dos projetos nãoforam atrativos para o setor privado, com algunsprocessos dados como vazios (NUNES, [2013]).

Pode-se destacar ainda as questões políticaslocais, uma vez que os recursos não chegavamdiretamente aos municípios. Os seus gestoresforam se desestimulando ao longo do processo,uma vez que não seriam eles próprios osexecutores das obras, o que certamente seconverteria em capital político. Esse desestímuloalimentou o desgaste do Consórcio.

O Coresa Sul do PI pode ser considerado hojecomo uma experiência que não funcionou, querseja pela dificuldade institucional, quer seja peloviés político, ou ainda pela pouca capacidadeassociativa dos municípios piauienses. Destaca-se,entre os elementos mais substanciais, a suagênese totalmente destituída da premissa básicade formação de um consórcio: o voluntarismo.Esse modelo verticalizado, aceitável em outrocontexto político, não se legitimou pela vontade dosgovernos municipais em se articular em torno deproblema(s) comum(ns) e necessidades coletivas.A negociação não se conduziu num jogo de forçasmais justo, mas na imposição do Governo Centralpara fazer expandir o seu projeto maior para o setorde saneamento.

As instalações físicas da sede do Coresa, nomunicípio de Bom Jesus, ainda não funcionam e sedegradam pela ação do tempo devido à desarticula-ção dos entes. Um concurso feito em 2007,oferecendo 31 vagas, só aprovou 17 candidatos;destes, apenas quatro foram contratados, devido àslimitações de recursos financeiros (NUNES, [2013]).

Importa ainda registrar a dificuldade de acesso ainformações sobre o Consórcio, em que pesemtodos os instrumentos de publicização hojedisponíveis. O sítio do Coresa Sul do PI, que seriauma fonte razoável (e não exclusiva) de informa-ções, não apresenta informações consistentes ouatualizadas; situação análoga ao do Portal doGoverno do Estado do Piauí.

5 Conclusão

O processo de descentralização política e fiscalverificado com a nova Constituição federal foi fruto

de uma tendência municipalista fortementearraigada na conformação política brasileira, commovimentos de maior ou menor partição de poderque acompanhou o conturbado caminho rumo àdemocracia.

Ditadas as novas regras - dos direitos e deveres- aos entes federados, percebeu-se a incapacidadede muitos municípios, em especial os de pequenoporte, de responder a contento às demandassociais e econômicas que a sua população exigia.Muitas unidades administrativas buscaram emdiferentes alternativas voluntárias e solidáriasmecanismos para prestar melhores bens e serviçospúblicos, em condições mais eficientes sob osaspectos econômico-financeiro e ambiental.

O Governo federal fortaleceu esse movimento aoeditar uma série de instrumentos que deram novascompetências às parcerias intermunicipais ouinterfederadas, privilegiando a modalidade dosconsórcios públicos, dotando-lhes de maioresgarantias jurídicas e espaços privilegiados deacesso a recursos da União. Tal instrumento foioferecido ao estado do Piauí, através do PMSS,como a alternativa mais razoável a resolver oproblema histórico do acesso aos serviços desaneamento de qualidade na região sul do estado.

Intriga - embora não surpreenda - o caso doCoresa Sul do PI pela sua natureza quasecompulsória, formado verticalmente, a partir de umaorientação do poder central, indo de encontro àfilosofia do modelo associativo de vontadespróprias, proposto pela figura do Consórcio.Vendeu-se aos prefeitos uma ideia sem observarque as práticas solidárias entre os entes exigidasnão haviam sido culturalmente desenvolvidas eacumuladas; daí a pactuação e contratação sembases consistentes que fizeram dispender recursosfinanceiros da sociedade, dissipar energia dosentes e conduzir ao descrédito da população local.

Mais do que alcançar os objetivos de ganhos deescala - econômico-financeiros - para prestarserviços de saneamento ambiental com qualidade etransparência, importa lembrar que um consórcio(ou qualquer outra modalidade de prestação deserviços públicos) é constituído para resolverproblemas das comunidades locais. Assim, deve-se observar mais o que está descrito na definiçãoinstitucional do Coresa Sul do PI (2013, n.p.): o seuobjetivo “é melhorar a qualidade de vida dapopulação do Sul do Piauí.”

O saneamento, vital para a manutenção dascondições de bem-estar das pessoas, serve nesse

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momento como um exemplo sintomático da(in)capacidade governamental de se articular,planejar, executar e promover o bem comum nessaregião, no estado e no País.

O histórico do Coresa Sul do PI revela umapolítica pouco articulada, frágil e engessada, que -passado o momento da euforia - não se fazacompanhar de grande interesse dos prefeitosmunicipais, do estado e da União. Exemplo disso éa redução de recursos através de portariaministerial, a ausência de contrapartida do governoestadual e a descrença dos chefes dos executivoslocais que ignoram as ações conjuntas e tendem aretornar às velhas práticas de individualmentebarganhar junto aos governos estadual e federalobras para os seus municípios, em um movimentocontrário ao de agregação proposto pelo modelo deassociação municipal ou interfederada.

É necessário se retomar as negociações para oreestabelecimento do Consórcio, a fim de que oconjunto de recursos já liberados e o montanteainda passível de aplicação tenha o uso correto.

Atualmente, esse processo tem pouca força noâmbito local e estadual. Caberia, à União, atravésdo MCidades, cuidar daquilo que começou eatender às expectativas que criou, não só nasgestões municipais, mas na vida dos cidadãos,carentes de respostas aos seus problemascrônicos, como é o caso do saneamento básico

Notas: (1) Como exemplos, cf. publicações recém-editadas: BATISTA (2011) e CAMPOS et al.(2012).(2) Cf. o artigo 18, I, §1º, da lei n. 12.305, de 2 de agosto de 2010, que institui a PolíticaNacional de Resíduos Sólidos.(3) As quatro macrorregiões obedeceriam ao novo mapa de planejamento econômico doestado, incluindo os 11 territórios de desenvolvimento, assim distribuídas: 1ª Norte,com os territórios Planície Litorânea, Cocais, Carnaubais e Entre Rios, com sedeproposta em Campo Maior; 2ª Sudeste, com os territórios Tabuleiros dos Rios Piauí eItaueiras e Serra da Capivara, com sede proposta em Canto do Buriti; 3ª Leste, com osterritórios Vale do Sambito, Vale do Rio Guaribas e Vale do Canindé, com sede propostaem Picos; e 4ª Sul, com os territórios Tabuleiros do Alto Parnaíba e Chapada dasMangabeiras, com sede proposta em Bom Jesus.(4) Em 2008, os municípios de Baixa Grande do Ribeiro, Bertolínia, Jerumenha e RibeiroGonçalves aprovaram nas suas câmaras legislativas as suas leis municipais,ratificando o Protocolo de Intenções e incorporando-se formalmente ao Coresa Sul doPI. Os municípios de Eliseu Martins e São Gonçalo do Gurgueia não o ratificaram enão se tornaram associados.(5) O coronel da reserva do Exército e engenheiro civil Raimundo Elias Alves Nunes foio primeiro superintendente do Coresa Sul do PI, no período de agosto de 2006 a janeirode 2010 (NUNES, 2007).(6) O contrato 0218090-94 não prevê projetos nos municípios de Cristalândia do Piauí,Júlio Borges e Morro Cabeça no Tempo.

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* Economista, mestre e doutorando emDesenvolvimento e Meio Ambiente pelo Prodema/UFPI e professor do Decon/UFPI.** Economista, doutora em Economia Aplicada pelaEsalq/USP, professora do Prodema/Tropen/UFPI e doDecon/UFPI.

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O IMPACTO DA REPUTAÇÃO NAAVALIAÇÃO DA QUALIDADE PERCEBIDADO SERVIÇO: uma proposta analítica paraempresas de consultoria empresarialChristiane Bischof dos Santos*, Cristiano Molinari Bispo**, Heitor Takashi Kato*** eTomas Sparano Martins****

Resumo: A proposta do presente artigo é articular sobre os efeitos que a reputação de empresas deconsultoria podem gerar na qualidade percebida dos serviços profissionais prestados neste âmbito. Duasperspectivas de avaliação serão consideradas: a expectativa e a percepção da qualidade do serviço sob oponto de vista do cliente. Para este fim, sugere-se como instrumento de medição o SERVQUAL, adequando-o a este tipo de serviço. Os resultados visam acrescentar um novo olhar para nossa compreensão dasrelações estabelecidas na prestação serviços profissionais.Palavras-chave: Reputação. Qualidade percebida. Serviços profissionais.Abstract: The purpose of this article is articulate about what effects the reputation of consulting firms cangenerate on the perceived quality of professional services rendered under this scope. Two perspectives ofassessment will be considered: the service quality expectation and perception from the customer point ofview. With this goal, it is suggested SERVQUAL as the measuring instrument adapted to this type of service.The results aim to add a new look to our understanding of the relationships established in renderingprofessional services.Keywords: Reputation. Perceived quality. Professional services.

1 Introdução

A análise da qualidade de serviços tem sidoamplamente discutida e a literatura referente aosmétodos utilizados é abundante. Como exemplodesta metodologia o conhecido modeloSERVQUAL (PARASURAMAN; ZEITHAML;BERRY, 1988). No entanto, anterior à medição daqualidade percebida do serviço, há algunselementos relacionados ao contexto e à cultura emque se inserem os prestadores de serviço quepodem impactar diretamente na avaliação realizadaposteriormente à execução do serviço.

O escopo do artigo delimita-se à avaliação deprestação de serviços de consultoria, observandoatributos reconhecíveis tanto à empresa quanto àfigura do consultor, doravante denominados deprestadores.

Entende-se que reputação e experiência sãoelementos antecedentes à escolha da empresaprestadora do serviço ou do profissional que prestao serviço. Ou seja, um profissional pode ter vastaexperiência, ter uma boa reputação e mesmoassim prestar um serviço que, no olhar docontratante, não seja bem avaliado. A questão éque a experiência e a reputação são elementos que

certamente geram a expectativa de que a qualidadedo serviço seja boa, embora não a garanta.

Contudo, a confrontação destas variáveis aosresultados obtidos por meio de avaliação daqualidade percebida pode ser um exercíciointeressante, pois, caso a experiência e areputação sejam percebidas como altas, acredita-se que este fato pode impactar tanto na geração daexpectativa como no resultado final de percepção.

Destarte, a questão é: o cliente, já tendoescolhido a empresa ou o profissional, pode ter seujulgamento sobre a expectativa alterado devido areputação e experiência da empresa ou profissionalescolhido? Se isto for verdade, os hiatos entre oesperado e o percebido poderão ser maiores paraempresas ou profissionais com grande experiênciae reputação, caso a qualidade do serviço não sejatão melhor quanto à exigência adicional do cliente.

2 Referencial teórico

2.1 Serviços profissionaisComparado a um produto manufaturado, o

serviço tem uma característica predominantementeintangível. Logo, medidas de satisfação eperformance para serviços são dificultadas. Como

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conseqüência desta situação aparentemente semcontrole, o cliente então tem a percepção de umrisco maior associado.

Segundo Shostack (1987), todo serviço podeser analisado quanto à complexidade ou àdivergência. Complementarmente, caracteriza-sepela sua intangibilidade, incapacidade deestocagem, indivisibilidade e variabilidade(EIGLIER, 1983). A complexidade de um serviçopode ser definida ao analisar o número de passosrequeridos para realizá-lo, bem como suas inter-relações. Já a divergência é caracterizada pelo graude customização do serviço prestado.

Serviços do tipo “profissionais” apresentam altasdivergência e complexidade, uma vez que envolvemquantidade significativa de julgamento, descrição eadaptação às mais diversas situações.2.2 Reputação

Para Albrecht e Zemke (2002), existe algo maisque o valor intrínseco de determinado produto. Sãonecessárias várias outras contribuições no jogo deatração, tais como a reputação do serviço,deixando claro que os serviços não são umavantagem competitiva, mas a vantagemcompetitiva.

Em vista da intangibilidade característica daprestação dos serviços, destaca-se nisto umpotencial fator de risco para as organizações, vistoque, devido à dificuldade em avaliar os resultados ea impossibilidade de mensurar a satisfação antesdo consumo, o cliente é fortemente influenciadopelas informações de terceiros, bem como pelareputação do prestador de serviços. Inegavelmente,a reputação pode ser considerada como um destesfatores intangíveis a serem considerados no setorde serviços profissionais; atua como fonte devantagem competitiva, com características únicas edifíceis de serem imitadas (FOMBRUN, VAN RIEL,1997). Os autores citados ainda complementamque reputações são percebidas externamente esaem do controle direto dos prestadores deserviços e leva tempo para que uma reputação sejaformada nas mentes dos observadores. Uma vezconfrontados com informações negativas,observadores e possíveis usuários do serviçopodem mudar sua avaliação quanto à reputação dedeterminado prestador de serviços.

Lippmann (2007) analisa a reputação sob oponto de vista da pesquisa de marketing (maisespecificamente em relação ao estudo da imagemde marca) e atribui significados cognitivos e afetivosàs informações recebidas sobre um determinado

objeto de análise. No caso dos serviçosprofissionais, o objeto ou produto em análise seriao próprio desempenho do prestador do serviço emrelação à sua habilidade em entregar resultadosvalorosos. Nesta mesma linha, no caso de serviçosde consultoria, a reputação pautar-se-ia nodesempenho e na postura do próprio consultor.

Drazen (2000, p. 168) argumenta que “Nautilização corrente, ‘reputação’ frequentementerefere-se às crenças gerais relacionadas adeterminadas características de grupos ouindivíduos.” A reputação pode então ser definida emtermos das ações que se espera que um agentetome. Como sistema coletivo, a reputaçãoconsolida-se como uma importante ferramentasocial de sinalização e indicação do que pode serpositivo ou negativo, principalmente quando não épossível reconhecer previamente os atributos dapessoa com a qual será necessário estabelecer umrelacionamento (RÊGO, 2010).

Segundo Grönroos (1993), a reputação e acredibilidade fazem parte do conjunto de critériosda boa qualidade percebida do serviço. Para esteautor, os clientes acreditam que as operações doprestador de serviço merecem sua confiança, valemo dinheiro pago e que representam o bom nível dedesempenho e valores que podem sercompartilhados entre clientes e o prestador deserviços (critérios relacionados à imagem). Estevalor estimado da “marca” do serviço de boareputação reflete-se inclusive no brand equity, aobuscar o preço adequado, pois reduz-se aincerteza do comprador (AAKER, 1998; SAXTON;DOLLINGER, 2004).2.3 Qualidade de serviço e métodos de avaliação

A crescente importância do setor de serviçosimplica na necessidade de se empreender esforçosem relação à mensuração da qualidade nosserviços prestados.

Segundo Averous e Averous (1998), a relaçãoentre clientes e prestadores de serviços pode seranalisada sob dois universos diferenciados. Omodelo básico é apresentado conforme Figura 1.

A palavra avaliação, no sentido mais geral,consiste em atribuir valor a algo (AGUILAR;ANDER-EGG, 1994). Nesta acepção, o termoavaliação refere-se ao ato ou efeito de avaliar, ouseja, conferir valor, manifestar-se em relação aalguma coisa, sem compromisso, no entanto, como fundamento desse juízo ou com um métodoespecífico.

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Quando se trata, contudo, de avaliar serviços ouprogramas, o que corresponde a situar a avaliaçãono campo das modalidades de intervenção social e,consequentemente, das ciências sociais, recorre-se à utilização de “procedimentos que, apoiados nouso do método científico, servem para identificar,obter e proporcionar a informação pertinente ejulgar o mérito e o valor de algo de maneirajustificável” - a chamada avaliação em sentidoestrito ou avaliação sistemática (AGUILAR;ANDER-EGG, 1994, p. 23).

Diversos pesquisadores têm dedicado esforçosnesta área, buscando aprimorar sua conceituaçãoe desenvolver técnicas de medição. Grönroos(1993) e Parasuraman, Zeithaml e Berry (1985)foram precursores ao propor modelos de mediçãode qualidade do serviço. Além desses autores,podem-se encontrar na literatura vários outrosmodelos propostos para avaliar a qualidade emserviços, durante e após a experiência de aquisiçãode serviços. No entanto, dentre todos, o maisconhecido e utilizado em estudos especializados éo SERVQUAL (PZB).

Na mesma linha do modelo apresentadoconforme Figura 1, Parasuraman, Zeithaml e Berry(1985) propuseram que as percepções do clienteda qualidade de serviço são uma função dadiferença entre o serviço esperado e daspercepções do serviço atualmente fornecido. Osautores estabeleceram então a abordagemSERVQUAL que consiste em duas seçõescontendo 22 itens cada, a primeira mede asexpectativas do serviço pelo cliente e a segunda,

as percepções do cliente quanto a uma companhiaparticular no setor. Esta abordagem foi refinada emoutro estudo com os mesmos autores(PARASURAMAN; BERRY; ZEITHAML, 1991) eresultou em algumas questões adicionadas eoutras que precisaram ser reescritas. No entanto,os autores recomendam utilizar o questionário porcompleto, pois, enquanto a reescrita de algunsitens a fim de adaptá-los a ocasiões específicas éapropriada, a exclusão de alguns itens pode afetara integridade da escala. Por outro lado, os autoresargumentam que a adição de itens específicos aocontexto pode ser realizada desde que mantenhaformato similar à abordagem SERVQUALexistente.

3 Procedimentos metodológicos

Como o cliente desenvolve sua expectativa deum serviço de excelência? Isto talvez dependa dotipo de empresa que o cliente tem conhecimento,ou que mantém algum tipo de relação, ou que tempossibilidade de contratar. Consoante estapremissa, duas questões podem ser realizadas:a) questão 1: se um cliente conhece, relaciona-seou tem condições de contratar as melhoresempresas, será que seu padrão de empresa deexcelência (expectativa) não seria maior do queoutro cliente que não tenha estas características?b) questão 2: se um cliente conhece, relaciona-seou tem condições de contratar as melhoresempresas, será que sua avaliação do serviçoprestado (percepção) não seria maior do que outrocliente que não tenha estas características?

Figura 1 - Modelo de relacionamento entre serviços e clientes

Fonte: Averous e Averous (1998).

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Se apenas a questão 1 for verdadeira, os gaps(hiatos), neste caso, tenderão a ser maiores paraos clientes que têm maior conhecimento,relacionamento ou condições para o caso de umserviço ter sido prestado, digamos, dentro damédia, gerando um sentimento de frustração. Outrapossibilidade seria somente a questão 2 serverdadeira, o que aumentaria também o gap, masde forma inversa.

Ou seja, há várias possibilidades. A Figura 2procura ilustrar isto com um cliente que conhece,relaciona-se ou tem condições de contratar umprestador com experiência/reputação nível 10 eoutro somente nível 4. Para cada caso, observam-se as possibilidades de influência destaexperiência/reputação sobre: a expectativa epercepção simultaneamente; somente sobre apercepção; e somente sobre a expectativa. Paracada caso, os hiatos (gaps) são calculados.

Na Figura 2, pelo fato de um cliente podercontratar a firma com reputação em um nível fictício10, sua expectativa geral foi estimada em 8. Comoa percepção da qualidade foi 5, o hiato foi de -3. Jáno caso de um cliente apenas poder contratar afirma com experiência/reputação 4, sua expectativageral pode até ser 5, mas como a qualidadepercebida foi 4, o hiato foi de -1. Neste contexto,sugere-se que a frustração da empresa com maiorreputação pode ser maior devido à maiorexpectativa gerada inicialmente.

Em relação à mensuração da reputação,Iasbeck (2007) sugere a criação de meiospermanentes e monitoráveis de resposta imediatado público, isto é, o levantamento e tratamento dosfeedbacks dados pelo público usuário, sejam elespositivos (comentários e sugestões), sejamnegativos (críticas e reclamações).

Sugere-se realizar a avaliação da reputação daempresa por meio de entrevistas junto aospotenciais usuários de determinado serviço, tantoem relação à empresa avaliada como aconcorrentes. A partir das informações com ospotenciais clientes, faz-se o levantamento dasprincipais empresas que são contatadas para oenvio de cotações e efetiva prestação de serviços.As entrevistas então consistiriam em procurarevidenciar por que a escolha desta e não daquelaempresa, levando em consideração prerrogativas decredibilidade necessárias na prestação dosserviços.3.1 Avaliação da expectativa e da percepção

O modelo SERVQUAL mostra-se apropriado aoavaliar comparativamente a expectativa e apercepção. Para isso, faz uso de um questionárioaplicado antes e depois da execução do referidoserviço. No entanto, verifica-se que no caso dosserviços profissionais, em especial um serviço deconsultoria empresarial, muitos dos itensrelacionados na escala não são diretamenteaplicáveis, tendo em vista a intangibilidadecaracterística deste serviço. Poder-se-ia entãopropor que algumas questões fossemdesconsideradas, no entanto, segundo os próprioscriadores do instrumento, não é aconselháveleliminar questões, mas sim adaptá-las pois,conforme os criadores da metodologia, itenseliminados podem afetar a integridade da escala.Propõe-se desta forma, focar o próprio consultor ea disposição de recursos (materiais, websites).

A reformulação das principais questões existen-tes no SERVQUAL (considerando a versão apósrefinamento) está sugerida conforme o Quadro 1.

4 Conclusão

A avaliação proposta visa verificar qual oimpacto da reputação de empresas de consultoriana expectativa e percepção da qualidade do serviçoprestado. Procura-se desta forma evidenciar seimagens pré-concebidas da organização podemlevar a frustrações quanto à qualidade percebida doserviço prestado. Sugeriu-se aplicar este modelo aempresas de consultoria e treinamentoempresarial, tendo em vista que há poucos estudossobre este setor específico do serviço profissional.Adicionalmente, ao considerar a intangibilidade ecomplexidade presentes neste tipo de serviço,sustenta-se que a reputação é um fator essencialpara a consolidação da empresa no mercado.

Para a avaliação da reputação, sugere-se arealização de entrevistas em profundidade com a

Figura 2 - Determinação dos hiatos existentes entreexpectativa e percepção em relação à reputação

-4

-2

0

2

4

6

8

10

12

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Empresa maior reputaçao

Empresa menor reputação

Fonte: Sugerido pelos autores.

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40informe econômicoAno 16, n. 33, dezembro 2014

Quadro 1 - SERVQUAL adaptado ao contexto de serviços de consultoria empresarial.

Fonte: Parasuraman, Berry e Zeithamml (1991); adaptado pelos autores.

Expectativa Percepção 1 Consultorias excelentes disponibilizam

websites modernos A empresa de consultoria XYZ possui um website moderno.

2 Consultorias excelentes situam-se em escritórios com bom aspecto.

A consultoria XYZ situa-se em um escritório com bom aspecto.

3 Colaboradores de consultorias excelentes devem apresentar uma postura adequada.

Os colaboradores da consultoria XYZ apresentam postura adequada.

4 Materiais associados ao serviço (panfletos, banners) são visualmente agradáveis.

Materiais associados ao serviço da consultoria XYZ são visualmente agradáveis.

5 Quando consultorias excelentes se propõem a realizar algo em determinado prazo, certamente as farão.

Quando a consultoria XYZ compromete-se a realizar algo em determinado prazo, ela o faz.

6 Quando clientes têm algum problema, as consultorias excelentes demonstram sincero interesse em auxiliá-los.

Quando você tem um problema, a consultoria XYZ demonstra sincero interesse em auxiliá-lo

7 Consultorias excelentes realizarão o serviço de forma correta já na primeira vez.

A empresa de consultoria XYZ realiza o serviço de forma correta já na primeira vez.

8 Consultorias excelentes executarão o serviço no prazo em que se comprometeram.

A consultoria XYZ executa seus serviços no prazo em que se comprometeu.

9 Empresas de consultorias excelentes insistirão na prestação de serviços sem falhas.

A consultoria XYZ insiste em prestar serviços sem falhas.

10 Colaboradores de consultorias excelentes informam aos seus clientes exatamente quando o serviço será executado.

Os colaboradores da consultoria XYZ informam exatamente quando os serviços serão realizados.

11 Colaboradores de consultorias excelentes prestarão o serviço prontamente.

Os colaboradores da consultoria XYZ prestam prontamente o serviço.

12 Colaboradores consultorias excelentes estarão sempre à disposição para auxiliar seus clientes.

Os colaboradores da consultoria XYZ sempre estão à disposição para lhe auxiliar.

13 Colaboradores de consultorias excelentes nunca estarão ocupados demais para responder às demandas de seus clientes.

Os colaboradores da consultoria XYZ nunca estão ocupados demais para responder a suas demandas.

14 O comportamento dos colaboradores de consultorias excelentes instigará confiança em seus clientes.

O comportamento dos colaboradores da consultoria XYZ instiga confiança em seus clientes.

15 Clientes de consultorias excelentes sentir-se-ão seguros em suas transações.

Você se sente seguro nas transações com a consultoria XYZ.

16 Colaboradores de excelentes empresas de consultoria serão corteses com os clientes.

Os colaboradores da consultoria XYZ são corteses com você.

17 Colaboradores de excelentes empresas de consultoria terão conhecimento para responder questões dos clientes.

Os colaboradores da consultoria XYZ têm conhecimento para responder às suas questões.

18 Excelentes empresas de consultoria darão a seus clientes atenção individual.

A consultoria XYZ presta atenção individual a você.

19 Excelentes empresas de consultoria trabalharão em horários convenientes a seus clientes.

A consultoria XYZ opera em horários que são convenientes para todos seus clientes.

20 Excelentes empresas de consultoria terão colaboradores atenciosos aos clientes.

Os colaboradores da consultoria XYZ lhe dão atenção personalizada.

21 Excelentes empresas de consultoria consideram profundamente os maiores interesses dos clientes.

A consultoria XYZ demonstra considerar profundamente seus maiores interesses.

22 Colaboradores de excelentes empresas de consultoria compreenderão as necessidades especificas de seus clientes.

Os colaboradores da consultoria XYZ compreendem suas necessidades especiais.

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ReferênciasAAKER, D. A. Marcas: Brand Equity gerenciando ovalor da marca. São Paulo: Negócio, 1998.AGUILAR, M. J.; ANDER-EGG E. Avaliação de serviçose programas sociais. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.ALBRECHT, K.; ZEMKE, R. Serviço ao cliente. Rio deJaneiro: Campus, 2002.AVEROUS, B.; AVEROUS, D. Mesurer et manager laqualité de service: la méthode CYQ. Paris: Insep,1998.DRAZEN, A. Political economy in macroeconomics.Princeton: Princeton University Press, 2000.EIGLIER, P.; LANGEARD, E. Marketing of services.New York:McGraw Hill, 1983.FOMBRUN, C; VAN RIEL, C. The reputationallandscape. Corporate Reputation Review, v.1, n. 2, p.5-13, 1997.GRÖNROOS, C. Marketing: gerenciamento e serviços:a competição por serviços na hora da verdade. Rio deJaneiro: Campus, 1993.IASBECK, L.C.A. Imagem e reputação na gestão daidentidade organizacional. Organicom, a. 4, n. 7,2007.LIPPMANN, W. Public Opinion. Sioux Falls, SD: NuVision, 2007. Disponível em: <http://books.google.com.br/books?id=KMQ4yxaeR3oC&printsec=frontcover&dq=public+opinion+Lippmann&source=bl&ots=WXT7ONhzZE&sig=IwYCauBqiVMnPH2iJa-VtlMdaKc&hl=pt-BR&ei=P7HhTJ2iKoH-8Aa4pLn0Dw&sa=X&oi=book_result&ct=result&resnum=4&ved=0CDEQ6AEwAw>. Acesso em:16 nov. 2010.PARASURAMAN, A.; BERRY, L.L.; ZEITHAML, V.A.Refinement and reassessment of the SERVQUALscale, Journal of Retailing, New York, v .67, n. 4, p.420-450, 1991.

*Mestre em Administração pela PUC-PR em 2006,doutoranda em Administração pela PUC-PR,bolsista Capes-PDSA. 18312-12-8. Consultora paraempresas automotivas.** Mestre em Administração pela PUC-PR em 2004,doutorando em Administração pela PUC-PR,bolsista pela Fundação Araucária.*** Doutor em Administração pela FGV-EASP,professor titular da PUC-PR.****Doutor (2012) e Mestre (2004) em Administraçãopela PUC-PR. Atualmente é professor nos cursos deespecialização na área de estratégia daUniversidade Positivo e da PUC-PR.

PARASURAMAN, A., ZEITHAML, V. A., BERRY, L. L. Aconceptual model of service quality and itsimplications for future research. Journal of Marketing,Chicago, n. 49, n. 4, p. 41-50, 1985.PARASURAMAN, A., ZEITHAML, V. A., BERRY, L. L.SERVQUAL: A multiple-item scale for measuringcustomer perceptions of service quality. Journal ofRetailing, New York, 64, n. 1, p. 12-40, Spring-1988.RÊGO, A. R.; O crescente valor da reputaçãocorporativa no ambiente mercadológico. In:CONGRESSO BRASILEIRO CIENTÍFICO DECOMUNICAÇÃO ORGANIZACIONAL E DE RELAÇÕESPÚBLICAS, 4., 2010, Porto Alegre. Anais... PortoAlegre, 2010.SAXTON, T.; DOLLINGER, M. Target reputation andappropriability: picking and deploying resources inacquisitions. Journal of Management, v. 30, n. 1,p.123-147, 2004.SHOSTACK, G.L.: Service Positioning ThroughStructural Change, Journal of Marketing; Chicago, v.51, n. 1, p. 34-43, Jan. 1987.

finalidade de evidenciar por que a escolha de deter-minados serviços de consultoria e não outros. Apartir destes resultados, pode-se definir ou catego-rizar um grau de reputação relativo a determinadogrupo de empresas de consultoria considerado.

Em seguida, sugeriu-se o SERVQUAL para adevida avaliação da expectativa e da percepção daqualidade de algumas empresas deste setor. Noquestionário sugerido, algumas questões foramreformuladas a fim de melhor se adequarem ao tipode serviço analisado.

Tendo em mãos os resultados obtidos tanto dasentrevistas como da aplicação do SERVQUAL,resultados comparativos podem ser estabelecidos.Algumas limitações em relação ao tamanho daamostra escolhida, bem como a enorme gama deserviços prestados por consultorias empresariaispodem afetar a precisão dos resultados obtidos.Portanto, sugere-se delimitar o tipo de consultoriaou treinamento prestado e o grupo de clientesenvolvidos a fim de minimizar este viés

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O MUNDO PÓS-QUEDA DO MURO DEBERLIMZilneide de Oliveira Ferreira*

Resumo: o objetivo deste ensaio é apresentar um panorama mundial pós-1989, ano que marcou o fim daGuerra Fria e da ordem internacional bipolar, com a queda do Muro de Berlim, símbolo da divisão do mundoem dois sistemas: capitalismo e socialismo.Palavras-chave: Queda do Muro de Berlim. Fim da Guerra Fria. Panorama mundial pós-1989.Abstract: the purpose of this essay is to present a global picture post-1989, year which marked the end of theCold War and the bipolar international order, with the fall of the Berlin Wall, symbol of the world’s division intotwo systems: capitalism and socialism.Keywords: Fall of the Berlin Wall. End of the Cold War. Global picture post-1989.

1 Introdução

Após a Segunda Guerra Mundial na Europa,com o Acordo de Potsdam,1 realizado em 1945pelos vencedores da guerra (Estados Unidos, ReinoUnido e União Soviética), a Alemanha foi divididaem quatro zonas de ocupação, controladas, cadauma delas, por uma das quatro potências aliadas.Posteriormente, as zonas não soviéticas se unirame adotaram o regime capitalista, passando a vigerdois regimes: o capitalista, na Alemanha Ocidental,e o socialista, na Alemanha Oriental; mas nãosomente na Alemanha, pois esta polaridade ficouevidente na disputa de poder entre os EstadosUnidos e a então União Sovética, levando ao queficou conhecido como Guerra Fria, que findou há 25anos, em 9 de novembro de 1989, com a queda doMuro de Berlim, símbolo da divisão do mundo emdois sistemas: capitalismo e socialismo.

Neste contexto, o objetivo deste ensaio éapresentar um panorama mundial pós-1989, anoque marcou o fim da Guerra Fria e da ordeminternacional bipolar (Estados Unidos e UniãoSoviética), com a queda do Muro de Berlim.Inicialmente, de forma sucinta, apresentam-se osantecedentes que levaram à queda do Muro deBerlim; em seguida, as causas capitais desteevento e um panorama mundial pós-queda do Murode Berlim.

2 Antecedentes

Em 1939, havia um mundo multipolar com seteimportantes potências [Alemanha, Itália, Japão,Inglaterra, União Soviética, França e EstadosUnidos]. Após a “Segunda Guerra Mundial,restaram apenas duas superpotências: os EstadosUnidos e a União Soviética.” (NYE JR., 2009, p. 145).

Em que pesem as grandes perdas decorrentesda Segunda Guerra Mundial, na época, a União

Soviética saiu politicamente fortalecida e osEstados Unidos militar e economicamente.

A Alemanha foi dividida em quatro setores deocupação controlados, cada um, por um dospaíses aliados: Estados Unidos, Reino Unido,França e União Soviética (RIBEIRO, 2014). As trêsprimeiras potências se uniram e adotaram o regimecapitalista (liderado pelos Estados Unidos),formando a Berlim Ocidental; o lado soviético deBerlim (socialista) deu origem à Berlim Oriental.

[...] a humanidade mergulhou no que se podeencarar, razoavelmente, como uma TerceiraGuerra Mundial, embora uma guerra muitopeculiar. Pois, como observou o grande filósofoThomas Hobbes, “a guerra consiste não só nabatalha, ou no ato de lutar: mas num período detempo em que a vontade de disputar pela batalhaé suficientemente conhecida” [...]. A Guerra Friaentre EUA e URSS, que dominou o cenáriointernacional na segunda metade do Breve SéculoXX, foi sem dúvida um desses períodos(HOBSBAWM, 1995, p. 223).

Grosso modo, a Guerra Fria é a denominaçãodada ao período histórico de disputas estratégicase conflitos indiretos de várias ordens (política,militar, tecnológica, econômica, social e ideológica)entre os Estados Unidos e a União Soviética, entreo final da Segunda Guerra Mundial e a dissoluçãoda União Soviética.

Conforme Almeida (2009), a Guerra Fria seestendeu desde 1946, quando fracassou aConferência de Paris, a qual deveria aplicar asdecisões de Yalta e Potsdam quanto àreorganização democrática da Europa, até 1991,quando se desfez, por autoimplosão, o regimesocialista. A Guerra Fria foi o elemento que definiuas relações internacionais em grande parte dasegunda metade do século XX (ALMEIDA, 2009).

Em termos objetivos, a Guerra Fria teve comopeculiaridade o fato de não haver perigo iminente deoutra guerra mundial, pois, “apesar da retórica

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apocalíptica de ambos os lados [Estados unidos eUnião Soviética], mas sobretudo do ladoamericano, os governos das duas superpotênciasaceitaram a distribuição global de forças” no finalda Segunda Guerra Mundial - havia um equilíbrio depoder desigual não contestado em sua essência.A União Soviética controlava ou exercia influênciapredominante em uma parte do globo, “a zonaocupada pelo Exército Vermelho e/ou outrasForças Armadas comunistas no término da guerra -e não tentava ampliá-la com o uso de força militar.”Os Estados Unidos, por sua vez, exerciam controlee predominância sobre o resto do mundo capitalistae assumiram o que restou “da velha hegemoniaimperial das antigas potências coloniais. Em troca,não intervinha na zona aceita de hegemoniasoviética” (HOBSBAWM, 1995, p. 223).

Em 1948, Berlim estava dividida em duaszonas, a ocidental e a soviética. Em represália aoPlano Marshal, Stalin instituiu o Bloqueio deBerlim, fechando todas as estradas (de rodagem eférrea) que ligavam Berlim à Alemanha Ocidental,“na tentativa de fazer com que os aliadosocidentais desistissem de sua parte na cidade”(SCHILLING, 2014, n.p.), impedindo também quealimentos, materiais e suprimentos chegassem àzona ocidental. Diante disso, “Estados Unidos,Reino Unido, França, Canadá, Austrália, NovaZelândia e vários outros países começaram umaimensa ‘ponte aérea para Berlim’, fornecendoalimentos e outros suprimentos à parte da cidadecontrolada pelo Ocidente.” (RIBEIRO, 2014, p. 1).Os Estados Unidos lançaram a Berlin Airlift, quetransportou milhares de toneladas de alimentospara os berlinenses e que durou 11 meses, de 25de junho de 1948 a 12 de maio de 1949(SCHILLING, 2014).

No final da Segunda Guerra Mundial, depois daocupação soviética na Europa Oriental, a maioriada população que vivia nas áreas recém-adquiridasdo bloco oriental aspirava à independência e àsaída dos soviéticos (THACKERAY, 2004). Onúmero de pessoas da Alemanha Oriental queemigraram para a Alemanha Ocidental quasedobrou entre 1950 (197.000 pessoas) e 1953(331.000); uma das razões dessa emigração foi omedo de uma sovietização mais intensa com asações de Stalin, em 1952 e no início de 1953(RIBEIRO, 2014). Conforme Voltaire Schilling(2014), esse processo migratório que ocorreu de1949 a 1961 é explicado não somente peladiferença do regime (capitalista), mas também pela

extraordinária recuperação econômica do ladoocidental: o milagre econômico dos anos1950-1960, resultado dos grandes complexosindustriais e trabalhadores especializados.

3 A Queda do Muro de Berlim

Antes, ainda que brevemente, faz-se misterdiscorrer sobre a construção do Muro de Berlim.A mesma teve início em agosto de 1961, pela entãoRepública Democrática Alemã (Alemanha Oriental),separando a área capitalista da área socialista.

O ojetivo da construção do Muro de Berlim eradeter o constante fluxo migratório, pois, entre 1949e 1961, mais de 2,6 milhões de soviéticos fugirampara o lado ocidental. Inicialmente, a barreira foilevantada com arame farpado, depois se tornouuma monstruosidade arquitetônica e, quando ficoupronto, seu cinturão externo media 155 km e ointerno 43 km, e nele foram instaladas 302 torresde observação, expondo a absoluta insensibilidadedas autoridades soviéticas. O muro “resultou de umprevisível processo de isolamento, seguido deenclausuramento dos alemães orientais, que já searrastava desde 1952”, ano em que a fronteira entreas duas Alemanhas foi definitivamente fechada(SCHILLING, 2014, n.p.).

Avançando no tempo, em fevereiro de 1986,Gorbachev lançou os programas Glasnost(transparência política) e Perestroika(reestruturação econômica); o primeiro visava“combater a corrupção e a ineficiênciaadministrativa dentro do Estado soviético, comoparte de um projeto maior de abertura política” e osegundo, “aumentar a produtividade da economiado país” (RIBEIRO, 2014, n.p.), mas

[...] apenas tornou mais visíveis problemas que hámuito vinham se acumulando: a ineficiência daeconomia, engessada por um planejamentoexcessivamente centralizado; o peso doscrescentes gastos militares; a inflexibilidade deuma burocracia estatal de proporçõesmonstruosas, que procurava controlar eregulamentar cada atividade produtiva. ParaGorbachev, só haveria futuro para o socialismo setal estrutura fosse inteiramente reformulada(RIBEIRO, 2014, p. 3).

Gorbachev também passou a gradualmentereduzir a ajuda econômica aos países do LesteEuropeu, bem como a retirar de lá várias das tropassoviéticas (RIBEIRO, 2014).

Conforme Nye Jr. (2009, p. 170), tanto a políticainterna como a política externa de Gorbachevpromoveram “numerosas ações que aceleraramtanto o declínio soviético existente quanto o fim daGuerra Fria.” Em 1985, quando assumiu o poder,

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“Gorbachev tentou disciplinar o povo soviético comouma maneira de superar a estagnação econômicaexistente”, mas não obteve êxito e lançou aPerestroika e a Glasnost, cujos resultados estãoespostos acima. A política externa de Gorbachev,denominada por ele de “novo pensamento”, tambémcontribuiu para o término da Guerra Fria e tinhadois elementos importantes; um deles (ante aameaça nuclear) consistia no conceito desegurança comum, “no qual o clássico dilema dasegurança é superado com a união paraproporcionar segurança”; o outro foi “sua opinião deque o expansionismo é normalmente mais caro doque benéfico.”

O controle soviético sobre um império na EuropaOriental estava custando demais eproporcionando muito poucos benefícios, e ainvasão do Afeganistão foi o desastre mais caro.Não era mais necessário impor um sistema localcomunista como um meio de assegurar asegurança nas fronteiras soviéticas (NYE JR.,2009, p. 171).

Em 1989, os “ciudadanos de Alemania del Este”foram às ruas exigir reformas democráticas.As autoridades hesitaram em disparar ou não sobrea multidão. Moscou anunciou que suas tropas naEuropa Oriental não participassem de qualquerrepressão. A intensidade das manifestações foi-semultiplicando e resultou na queda do Muro deBerlim. Em poucos meses, um após outro, osregimes comunistas na Europa foram varridos(RAMONET, 2014, n.p.).

Resumindo, Ramonet (2014) aponta que pelomenos três fatos capitais ocorridos durante adécada de 1980 levaram à queda do Muro deBerlim:a) as greves de agosto de 1980, na Polônia, quedemonstravam uma contradição fundamental: aclasse trabalhadora se opunha a um supostoEstado operário e suposto partido da classeoperária. A teoria oficial sobre a qual o comunismode Estado se baseva desmoronou;b) em março de 1985, em Moscou, o lançamentoda Perestroika e da Glasnost, visando à reforma docomunismo soviético;c) em junho de 1989, em Pequim, na véspera deuma visita de Gorbachev, milhares demanifestantes que exigiam reformas semelhantesàs realizadas na União Soviética foram reprimidosmilitarmente pelo governo chinês, resultando emcentenas de mortos na Praça da Paz Celestial e nacondenação internacional do regime em Pequim.

Simbolicamente, a queda do Muro de Berlínmarcou o fim da Guerra Fria, assim como o fim -

embora a União Soviética não se tenha dissolvidoaté dezembro de 1991 - do comunismo autoritário,mas não o fim da aspiração de milhões de pobres aviver dignamente em um mundo justo e igualitário(RAMONET, 2014).

Caiu o Muro de Berlim, entretanto levantaram-seoutros muros (ORTEGA, 2014; RAMONTE, 2014).

4 O Mundo após a Queda do Muro de Berlim

Com a queda do Muro de Berlim, mas nãosomente por isso, o mundo mudou,2 emboranaquele tempo não se divisasse com clareza queforam plantadas muitas das sementes do que tinhaocorrido naquele quarto de século, e que seguiriaocorrendo. A queda do Muro em si gerou uma sériede eventos: (a) o colapso da União Soviética doisanos depois (1991) - que, segundo Vladimir Putin,foi a maior catástrofe geopolítica - e o colapso daIugoslávia; (b) a unificação da Alemanha e da aindaincompleta Europa, com o euro e o alargamento; e(c) os anos de unipolaridade dos Estados Unidos(ORTEGA, 2014).

O sistema socialista entrou em colapso devidoà própria deterioração interna e não por ofensiva docapitalismo, uma vez que os Estados Unidosestavam em recessão profunda após aSegunda-feira Negra, em Wall Street, dois anosantes, em 1987 - embora a interpretação que se dêseja a de que, no enfrentamento entre o socialismoe o capitalismo, este se tenha imposto - pornocaute. O erro fatal foi que, ao perder seu “melhorinimigo”, por uma relação de força constanteforçando o capitalismo a autorregular e moderarseus impulsos, deixou-se arrastar por seus pioresinstintos. Esquecendo a promessa de fazer omundo se beneficiar dos “dividendos da paz”,Washington impôs em toda parte, em altavelocidade, o que acreditava ser a ideia triunfante:a globalização econômica; ou seja, a extensãopara todo o planeta dos princípios ultraliberais:financeirização da economia, desrespeito pelo meioambiente, privatização, liquidação dos serviçospúblicos, insegurança no emprego, marginalizaçãodos sindicatos, concorrência brutal entre osfuncionários em todo o mundo, deslocalizaçõesetc. - um retorno ao capitalismo desenfreado(RAMONET, 2014, n.p.).

Em 1989 se lançou (de forma definitiva), doCentro Europeu de Pesquisa Nuclear, na internet -que havia nascido antes -, a Rede, ou seja, aWWW (então com outro nome, Enquire), quetantas coisas tem mudado e que se abriu ao

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público em 1993, em uma revolução que guardacerto paralelismo com a de Gutenberg e aimprensa há quase seis séculos. A Rede temrevolucionado a maneira de nos relacionar, para osmuitos e para os poucos, com uma multiplicaçãodos atores e uma difusão do poder que também osradicais têm aproveitado. E alguns deles, comoAl-Qaeda, têm sua origem então (ORTEGA, 2014).

Em 1989, os soviéticos se retiraram doAfganistão, o que pouco depois deu passagem àconquista do poder no país pelos talibãs e OsamaBin Laden - monstro, em parte, gerado peloOcidente -, ao 11 de Setembro (2001) e a tudo oque veio depois, incluindo o Estado islâmico, quetentou se intalar entre o Iraque e a Síria. Mastambém cresceu a Frente Islâmica de Salvação naArgelia, à qual um golpe de Estado pouco depoisimpediu de chegar ao poder. 1989 também marcouo regresso das questões religiosas ao centro dapolítica em uma parte do mundo (ORTEGA, 2014).

A nova onda democrática que não se limitaria àEuropa, também chegaria pouco depois à Áfricado Sul, com o fim do Apartheid. Também houve arepressão e matança de Tiananmen, e o renovadoimpulso da China por modernizar sua economia eglobalizar-se, evitando o colapso que a UniãoSoviética havia experimentado. O termo“globalização” se extendeu com o fenômeno querepresentava (e que também estava por trás docolapso da União Soviética). Pode-se dizer queentão se acelerou a entrada de 3.000 milhões denovos capitalistas, como apresentou ClydePrestowitz, de produtores e consumidores naeconomia mundial, algo positivo mas que temcolocado riscos maiores aos velhos paísescapitalistas. Outra coisa que aconteceu foi que ocapitalismo, ou o mercado, após 1989-1991deixou de ter alternativas. Hoje se enfrentammodelos de capitalismo, mas não se coloca emquestão o mais básico (ORTEGA, 2014, n.p.,grifos do autor, tradução nossa).

Ainda conforme Ortega (2014), citando SaskiaSassen, o fim da Guerra Fria foi muito mais queuma expansão do mercado, pois lançou uma dasfases econômicas mais brutais da era moderna, ea crise atual contém características que sugeremque o capitalismo financeirizado atingiu os limitesde sua própria lógica para esta fase; embora nãoesteja nada claro o que pode vir depois.

No plano militar, Washington demonstrou suahiperpotência, por exemplo, com a invasão doPanamá, a Guerra do Golfo, a ampliação daOrganização do Tratado do Atlântico Norte (Otan),a guerra de Kosovo, a marginalização daOrganização das Nações Unidas (ONU). Após osatentados de 11 de setembro de 2001, GeorgeBush e seus “falcões” decidiram castigar econquistar o Afeganistão e o Iraque. A ajuda aospaíses pobres do Sul foram reduzidas e foi lançada

uma cruzada contra o “terrorismo internacional”utilizando-se de todos os meios, inclusive osmenos nobres, como vigilância generalizada,tortura, “desaparecimento”, prisões secretas,cárceres ilegais, como Guantânamo. O balanço foidesastroso: nenhuma vitória militar real, umaimensa derrota moral e uma grande destruiçãoecológica, sem que os principais perigos tenhamsido eliminados. A ameaça terrorista não desapare-ceu, a pirataria marítima agravou-se, a Coreia doNorte dotou-se de armas nucleares, o Irã poderiafazê-lo e o Oriente Médio seguiu sendo um barril depólvora (RAMONET, 2014, n.p., tradução livre).

Depois do colapso do regime socialista, emâmbito global, o capitalismo despontou comosistema político-econômico mundial e vários paísesse aproximaram do mundo capitalista visandoingressar nesse sistema e alcançar uma integraçãono mercado.

O mundo passou a ser multipolar. Variosgrandes países (Brasil, Rússia, Índia, China,Sudáfrica) fizeram alianças à margem daspotências tradicionais. Na América do Sul, Bolívia,Equador e Venezuela exploram novas vias dosocialismo. O G-20, por causa da crise econômicamundial, confirma que os países ricos do Norte nãopodem por si sós resolver grandes problemasmundiais (RAMONET, 2014).

A divisão dos países - socioeconômica e política(Teoria dos Mundo) - passou a ser entre paísesdesenvolvidos (do Norte) e subdesenvolvidos e emdesenvolvimento (do Sul), devido às diferenças queos separam, respectivamente: riqueza e pobreza; enão mais em Primeiro, Segundo e Terceiro Mundo.

A partir dos anos 1990, comércio internacional,direitos humanos e meio ambiente também setornaram questões-chave no mundo, uma vez quedizem respeito à toda a humanidade e não a umpaís isoladamente ou a determinado grupo. No Riode Janeiro, em 1992, na II Conferência das NaçõesUnidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento,foram difundidas as noções de desenvolvimentosustentável, incompatibilidade entre crescimentodemográfico ilimitado e planeta finito, subordinaçãoda tecnologia à ecologia, poluição e pobrezaprovocadas pelo consumo incontido e necessidadede medidas locais e globais para a proteção domeio ambiente. Em 1993, em Viena, aII Conferência das Nações Unidas sobre DireitosHumanos difundiu a implementação de medidasnacionais, interação e ação conjunta dos órgãos eagências da ONU e de órgãos globais e regionais

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visando fomentar uma cultura comum e universalsobre direitos humanos. Em 1994, ocorreu aRodada Uruguai do Gatt (Acordo Geral deComércio e Tarifas), que instituiu a OrganizaçãoMundial do Comércio para regulamentar os fluxosde bens, serviços e propriedade intelectual entre ospaíses e solucionar controvérsias a respeito(SENADO FEDERAL, 2013).5 Conclusão

Neste artigo, buscou-se apresentar umpanorama do mundo pós-queda do Muro de Berlim,porém, nestes últimos 25 anos ocorreram muitastransformações, tornando-se impossível enumerá-las e/ou aprofundá-las. Os diversos meios decomunicação, cotidianamente, têm-nas divulgado.Assim, pelo que se tem visto, vivido, tomadoconhecimento e pelo exposto, pode-se concluircom as palavras de Ramonet, abaixo.

A oportunidade histórica que constituía a quedado Muro de Berlim foi desperdiçada. O mundo dehoje não está melhor. A crise climática que pendesobre a humanidade é um perigo mortal e a somadas quatro crises atuais (alimentar, energética,ecológica e econômica) dá medo. Asdesigualdades têm aumentado e a muralha dodinhero é mais imponente que nunca: a fortuna das500 pessoas mais ricas é superior a das 500milhões de pessoas mais pobres. O muro quesepara o Norte e o Sul permanece intacto: a mánutrição, a pobreza, o analfabetismo e a situaçãosanitária que se tem deteriorado, particularmentena África; para não se falar do muro tecnológico.Ademais, tem-se levantado novos muros: como oedificado por Israel contra os palestinos; ou o dosEstados Unidos contra os migranteslatinoamericanos; ou os da Europa contra osafricanos etc. Quando decidiremos destruir de umavez para sempre todos esses muros da vergonha?(RAMONET, 2014, tradução livre)

Notas:(1) cf. DEUTSCHE WELLE, 2014.(2) Conforme Cruz (2001, p. 32), “O episódio que trouxe àconsciência de todos o fato de que o mundo havia mudadofoi a Guerra do Golfo.”, pois a operação militar dos EstadosUnidos em um ponto tão nevrálgico do planeta seriaimpensável. A Rússia assistia ao bombardeio de Bagdá e aintercepção dos mísseis iraquianos pela televisão; “mesesdepois, em meio à crise nacional aguda, tentativa frustradade golpe no Estado promovida por aparatchicsdesesperados apressava a desintegração do Estadosoviético.” Assim, inaugurava-se um período singular, poispela “primeira vez na história um Estado se via elevado àcondição de supremacia mundial não contestada.” Sobre as

ReferênciasALMEIDA, P. R. O Brasil e as relações internacionais no pós-Guerra Fria. In: LADWIG, N. I.; COSTA, R. S. (Org.). Vinteanos após a queda do muro de Berlim. Palhoça: Unisul,2009. p. 15-38.CRUZ, S. C. V. Evolução geoplítica: cenários e perspectivas.Texto para Discussão, Rio de Janeiro, n. 1611, maio 2011.Disponível em: <http://www.ipea.gov.br>. Acesso em: 03nov. 2014.DEUTSCHE WELLE. 1945: Conferência de Potsdam.Disponível em: <http://www.dw.de/1945-confer%C3%AAncia-de-potsdam/a-593737>. Acesso em: 04nov. 2014.HOBSBAWM, E. A era dos extremos. São Paulo: Companhiadas Letras, 1995.NYE JR., J. S. Coopoeração e conflito nas relaçõesinternacionais. São Paulo: Gente, 2009.ORTEGA, A. 1989, mucho más que el Muro de Berlín. ElEspectador Global, Madrid, 04 nov. 2014. [online]. Disponívelem: <http://www.blog.rielcano.org>. Acesso em: 04 nov.2014.RAMONET, I. EL día que cambió el mundo. Le MondeDiplomatique, n 185, nov. 2014. [online]. Disponível em:<http://www.eldiplo.org>. Acesso em: 04 nov. 2014.RIBEIRO, M. A ascensão e os 25 anos da queda do Muro deBerlim. 09 nov. 2014. Disponível em: <http://www.sul21.com.br>. Acesso em: 08 nov. 2014.SCHILLING, S. O muro de Berlim. Disponível em: <http://educaterra.terra.com.br>. Acesso em: 06 nov. 2014.SENADO FEDERAL. Instituto Legislativo Brasileiro - ILB.Relações internacionais: teoria e história. (Material didáticoda plataforma do curso de capacitação à distância realizadopela autora em 2013).THACKERAY, F. W. Events that changed Germany. Westport:Greenwood Press, 2004.

relações de poder no sistema internacional que emergiramapós o fim da Guerra Fria, seu grau de permanência, comoocorreram as interações no interior dessa situação/ordenamento, qual sua dinâmica e que tendência evolutivaela manifesta, cf. CRUZ, 2011, p. 33-36.

* Economista, Mestra em Ciência Política pelaUniversidade Federal do Piauí.

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INTERNO E INTERNACIONAL: fronteiras,continuidades ou semelhanças? Notas sobreGramsci e Waltz relacionadas ao Terceiro DebateTeórico em Relações InternacionaisRodrigo Duarte Fernandes dos Passos*

Resumo: o objetivo do texto é propor uma breve discussão sobre eventuais semelhanças, igualdades ediversidades envolvendo o plano interno e o plano internacional a partir de um cotejo crítico envolvendo umabrevíssima apresentação de formulações teóricas de Antonio Gramsci e Kenneth Waltz.Palavras-chave: Gramsci. Waltz. Teoria das Relações Internacionais.

Abstract: the aim of this text is to provide a brief discussion on possible similarities, equal formulations anddifferences concerning internal level and international level from a critical comparison between a briefpresentation of Antonio Gramsci’s and Kenneth Waltz theoretical formulations.Keywords: Gramsci. Waltz, International Relations Theory.

1 Introdução

A literatura acadêmica em RelaçõesInternacionais convencionou chamar de TerceiroDebate1 a contenda teórica entre formulação degrande impacto a partir de 1979, o realismo ouneorrealismo ou realismo estrutural de KennethNeal Waltz (1924-2013) e seus críticos. Partindodesta advertência inicial, coloca-se como objetivoda presente reflexão o cotejo entre algumasformulações do acadêmico norte-americanomencionado e do comunista italiano AntonioGramsci (1891-1937).

É sabido que Gramsci serviu de fonte e deinspiração para diversas formulações que Waltz nocontexto do referido debate, notadamente a teoriacrítica conforme seus princípios enunciados porRobert W. Cox e outros autores, normalmenterotulados como gramscianos e neogramscianos2

dentro da vertente conhecida como teoria crítica.Dentro das discussões que ensejaram o referidodebate, sabe-se, por motivos cronológicos e pelamorte de Gramsci em 1937, que nunca houve umacontenda direta entre ambos. Porém, dado opretexto de que houve e ainda há enorme onda deestudos gramscianos nas humanidades e nopróprio campo teórico das Relações Internacionais,um breve cotejamento entre os dois autores seriaponto digno de consideração neste tema.

Não é o objetivo do texto tratar das leituras einterpretações de Gramsci conforme os diferentesteóricos críticos, mas sim buscar elucidar algunsaspectos sobre o plano internacional elaboradospelo prisioneiro de Mussolini pertinentes ao temário

do Terceiro Debate em questão a partir, tantoquanto possível, de algumas fontes primárias desua obra pré-carcerária e carcerária. Evidentementeque tal empreitada na perspectiva gramscianademandaria esforço e espaço de grandeenvergadura; por isso, nosso foco recairáprincipalmente sobre alguns parágrafos do cadernocarcerário 13, notadamente o parágrafo 17, emfunção de sua centralidade e relevância do ponto devista da metodologia histórica adotada por Gramscicomo critério fundamental dentro de sua obracarcerária. Acrescente-se também o fato de que osautores neogramscianos referidos usam, na suagrande maioria, edições limitadas da obra docomunista italiano, o que inviabiliza o contato comformulações relevantes de sua obra carcerária parao temário internacional.3

Além disso, a abordagem por boa parte dessesautores suscita uma inacuracidade com omarxismo gramsciano dentro daquilo que sepoderia chamar de paroquialismo, em uma livreinterpretação de Quentin Skinner (1969). Por outraspalavras, a abordagem gramsciana fica prejudicadaem vista destes autores se apropriarem do universointelectual que lhes é familiar, distanciando-se emmuitos aspectos de elaborações fundamentais docomunista italiano.4

É neste sentido que se pretende contribuirmodestamente - lançando elementos para futuraspesquisas - na presente reflexão relacionando-a dealgum modo ao Terceiro Debate: um contrapontogramsciano em suas fontes originais que permitamelucidá-lo de modo mais acurado em relação a

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algumas formulações centrais de Kenneth Waltz.No que refere a Waltz, usar-se-á formulações

contidas em seus dois principais livros: “O Homem,o estado e a guerra” (WALTZ, 2004) - cuja redaçãoterminou em 1954 - e “Teoria das RelaçõesInternacionais” (WALTZ, 2002) - cuja publicaçãooriginal na língua inglesa data de 1979. Tambémnão é o objetivo tratar deste autor de modoexaustivo, mas reconstruir aspectos centrais deseu argumento para o cotejamento que se intentadesenvolver neste texto e a busca de uma respostaao problema central do mesmo.

A questão central que orienta o presente texto éa seguinte: em conformidade com os autoresmencionados, o plano internacional tem a suaespecificidade que o aparta do âmbito interno dosEstados ou possui continuidades que denotamigualdades ou semelhanças entre os dois níveis, ouainda ambos se relacionam em alguns aspectos dealgum modo?

A hipótese que acompanhará a exposição doargumento consiste na pertinência da argumenta-ção gramsciana de um vínculo das relaçõesinternacionais com o plano interno ao nível de umarelação lógica com as relações sociais fundamen-tais, isto é, as devidas especificidades em umatotalidade orgânica. A totalidade em questão envol-ve o âmbito endógeno dos países com as devidasespecificidades e o plano do além-fronteiras para aexplicação de tais níveis. Tal pertinência colocauma objeção à explicação waltziana, focada naexplicação internacional em termos sistêmicoscomo apartada da política interna dos Estados,resultando na separação dos diferentes níveis deanálises ou imagens (WALTZ, 2004).

O texto percorre os seguintes momentos comvistas a uma resposta ao problema central exposto:uma relação entre as formulações teóricas preco-ces e tardias de Waltz demonstrando a centralida-de de três autores em seu raciocínio: Durkheim(2000), Rousseau (2002) e Lakatos (1987). Taisfontes embasam a sua abordagem sistêmica deuma abordagem teorética centrada nos aspectossistêmicos do plano internacional. Posteriormente,um esboço gramsciano centrado para a indagaçãoproposta e uma elaboração crítica às assertivaswaltzianas, buscando demonstrar o vínculo orgâni-co na perspectiva das devidas especificidades emcontexto de totalidade e historicidade abordando osplanos interno e internacional. Por fim, a conclusãoresume os principais argumentos e lança questio-namentos para futuras investigações e reflexões.

2 As primeiras formulações de Waltz e suaposterior sistematização teórica: o interno esua irrelevância para a teoria do além-fronteiras

As três imagens ou níveis de análiseconstituíram o primeiro esboço de Waltz nos anos50 do século XX para tratar de uma teorização dasrelações internacionais em torno da seguinteindagação central: quais as causas das guerras?

A primeira imagem foi associada àsimperfeições da natureza humana como causa dosconflitos bélicos, tendo Baruch de Espinosa (1632-1677) como expoente da reflexão sobre o tema ofilósofo. Um tema tão vago, amplo e subjetivo comoa natureza humana poderia suscitar as maisdiferentes interpretações sem que pudessematender às questões metodológicas centraisenunciadas por Kenneth Waltz. Isto é, um filtrofocado na reflexão psicológica e filosófica sobre anatureza da individualidade humana não respondeàqueles aspectos indicativos da linha de raciocínio,do filtro dos dados e informações para umaelaboração científica de modo objetivo, sem pré-conceitos ou juízos de valor prévios.

Em outras palavras, Waltz estabeleceu comocritério para sua linha de raciocínio o que elechama de imagens; algo como uma espécie defiltro, um método para buscar responder à suaindagação ou para separar aquilo que é pertinentepara as relações internacionais na enorme massade fenômenos que constitui a realidade além dasfronteiras. A despeito dos diferentes filtros ouimagens priorizarem certos aspectos e explicaremaspectos importantes dos fenômenos no além-fronteiras, nem todos tratam de modo adequadodas causas da guerra.

Dito de outra forma no que refere à primeiraimagem, estabelecer uma conexão, um ponto emcomum entre as causas das guerras no além-fronteiras e toda a avaliação sobre o entendimentoda natureza do homem demandaria adentrar pontosnão objetivos, impossíveis de serem constatados eobservados por todos. Tal é o cerne da dificuldadeno que concerne a abordagens no âmbito dapsicologia e da filosofia. Neste ponto e nas demaisetapas da argumentação waltziana, é central alinha de argumento da sociologia clássica de ÉmileDurkheim (2000) referente ao seu conceito de fatosocial, talvez mais do que o próprio Waltz dênotícia em seus textos.

Veja-se o conceito do sociólogo francês. O fatosocial corresponde a

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[...] toda maneira de agir fixa ou não, suscetível deexercer sobre o indivíduo uma coerção exterior ouentão ainda, que é geral na sua extensão de umasociedade dada, apresentando uma existênciaprópria, independente das manifestaçõesindividuais que possa ter (DURKHEIM, 2000, p.52).

Seriam exemplares da perspectiva durkheimianade fato social geradora de uma coerção externasobre o indivíduo e extensiva a toda a umasociedade: o direito, a moral, a moda, o mercado, aeducação, o suicídio, a religião e a solidariedade.5

Uma manifestação fenomênica que atingisse umindivíduo no plano explicativo da psicologia ou deuma definição de cunho filosófico não se encaixarianesta linha de raciocínio.

Valer-se de uma abordagem afim ao tema daidentificação do caráter bom ou mau da naturezahumana remete, com a definição acima em mente,àquilo que Waltz (2004) formula aludindo aDurkheim: não se pode conceituar ou explicarnenhuma forma social através do fator psicológico.Tal nível de elaboração e reflexão guarda um pontode contato com a vagueza e indefinição que asabordagens de cunho filosófico sobre a naturezahumana que Spinoza empreende. Por outraspalavras, distintas abordagens nesses campos deconhecimento podem ensejar as mais distintasinterpretações, com diferentes juízos de valor ouassertivas de cunho subjetivo, parcial e pessoal.Ou seja, o entendimento de uma natureza humanaboa ou má é algo passível de ser compreendidosem uma conclusão única. Sendo a naturezahumana bondosa ou perversa, não há apossibilidade de se constituir uma avaliação maisprecisa se o indivíduo tomado isoladamente éresponsável pelo curso dos fatos que leva a todotipo de belicismo.

A despeito de uma eventual importância detodos os aspectos de ordem psicológica e filosóficapara a compreensão da causalidade das guerras,Waltz percebe a insuficiência da primeira imagempara dar conta de sua indagação central. Afinal, os“eventos a serem explicados são tantos, e tãovariados, que a natureza humana possivelmentenão pode ser o único determinante” (WALTZ, 2004,p. 102).

A título de conclusão parcial, pode-se reter queo plano interno a partir da perspectiva dosindivíduos e sua natureza não têm uma importânciapara a explicação do nível internacional.

Passa-se, então, a outro filtro para tomar porbase outro nível analítico ou imagem. A segundaimagem versa sobre a natureza dos diferentes

governos das sociedades. O autor paradigmáticopara tal filtro seria Immanuel Kant (1724-1804).

Para o filósofo prussiano, a trajetória humanauniversal, mediada inclusive por conflitos violentos,apontaria para uma perspectiva finalista resultantede uma federação de repúblicas. Entende-serepública aqui de modo distinto da definiçãotradicional. Um governo republicano na acepçãokantiana é aquele que separa o poder executivo dopoder legislativo proporcionando uma natureza demoderação, de publicidade do direito - inclusive dostratados entre os distintos Estados -, pontosidentificados com o anseio dos cidadãos (KANT,1989). Assim, não há o interesse por parte doscidadãos das repúblicas mencionadas na medidaem que se identificam tais iniciativas como prejudi-ciais aos seus próprios interesses. A repúblicaidentificada com tal ideário seria, em tese, o melhorgoverno para eliminar as causas das guerras.

Contudo, há uma restrição. Ela apontanovamente para a linha de raciocínio posta pelaassertiva metodológica durkheimiana do fato social.Um fato social independe dos juízos, preferênciaspessoais, prenoções, preconceitos e congêneres.É um fato exterior a todos os indivíduos em dadasociedade de modo absolutamente distanciado, emperspectiva objetiva de se produzir umconhecimento sociológico científico. Isto não secoaduna com análise do que seja um governo bomou ruim ou com qualquer preferência ou avaliaçãosobre a melhor forma de condução política de umdado Estado. Qualquer que seja a orientação oudesignação dada a este ou aquele governo, haverápadrões de continuidade na história apontando paraa possibilidade e a prática das guerras porque nãohaverá consenso sobre a natureza moderada de umgoverno e seu eventual nexo com a origem dasguerras. Associar um governo moderado a umaguerra será objeto de avaliação, no mínimo,controversa. Alguns concordarão e outrosdiscordarão na análise de diferentes governos, suaseventuais naturezas moderadas e seus nexos coma origem dos conflitos bélicos interestatais. Tudoisto leva à conclusão parcial de que se tornaquestão secundária se o governo ou o Estado sãodemocráticos, liberais, capitalistas, socialistas,fascistas etc. Objetivamente, a despeito de algumacapacidade explicativa, tal imagem se mostrainsuficiente para a questão central levantada porWaltz.

Isso posto, depreende-se também a lacunaexplicativa do plano atinente aos governos e suas

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respectivas orientações, formatos. Portanto,percebe-se também a vicissitude do filtro dasegunda imagem. A título de conclusão parcial,Waltz descarta qualquer relevância de maior montapara a explicação da origem das guerras e dacompreensão do plano internacional da primeira eda segunda imagens; segue a tradição da maioriados autores realistas que separa e desvincula oplano interno dos Estados para a compreensão dasrelações internacionais. Não há objetividade nosargumentos atinentes à esfera doméstica nosentido de se pensar e avaliar o planointernacional.6 Do ponto de vista metodológico, taltese se coaduna com a sociologia de ÉmileDurkheim, ampliando o raciocínio do sociólogofrancês pensado inicialmente para os indivíduos. Nocaso da discussão sobre as causas das guerras,ele é deslocado para os Estados. Ao invés deindivíduos tomados isoladamente em perspectivade cunho psicológico ou filosófico, a linha deraciocínio faz o mesmo com os Estadosconsiderados separadamente em linha deraciocínio que leva às duas imagens já explanadas.

Passa-se à terceira imagem, simbolizada pelofilósofo genebrino Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). A imagem em questão reproduz aperspectiva de uma anarquia internacional,conforme os intérpretes do filósofo em questão. Oargumento rousseauniano tem como ponto departida um Estado identificado com seusconcidadãos, que contempla a vontade geral detoda a sociedade.

Conforme Rousseau (2002), mesmo que oconjunto dos Estados fosse efetivamente legítimocom seus governos e contemplassem o bemcomum, o interesse de todos os cidadãos - avontade geral -, eles não estariam imunes aoambiente de um estado de natureza sem regras esem autoridade no além-fronteiras. Trata-se,portanto, de uma ambiente no além-fronteiraspropício ao risco e á manifestação da violênciainterestal. Uma vez que não há no contextointernacional uma autoridade superior quereproduza o Estado e sua ação soberana no interiorde seu território, até mesmo os bons Estados,laudatórios da vontade geral, sucumbem ao meiono qual estão inseridos.

Este é o cerne do argumento de Waltz parasustentar a pertinência da terceira imagem para asrelações internacionais e para o diagnóstico de queum ambiente anárquico no além-fronteiras somentepode pôr fim às guerras com o eventual advento de

um governo mundial (WALTZ, 2004). Assim, Waltzcoloca em evidência uma explicação sistêmica doambiente dos estados quando alude ao primado doestado de natureza na sua conduta. O sistemainternacional ou a estrutura com sua feiçãoanárquica molda a ação dos Estados individual-mente, retomando metodologicamente a assertivadurkheimiana sobre o papel exterior e coercitivo dofato social frente a todos os indivíduos.

Este resumo de sua formulação primeva serviude base para a sua sistematização que referenciouo debate teórico internacionalista a partir de 1979.

Dentre outros pontos, Waltz acrescentou à suaformulação mais tardia o refinamento de umcomponente epistemológico, isto é, referente ànatureza do conhecimento ou da teoria científicacom a qual se lida. Tomou a formulação de umateoria científica na perspectiva da unidadeepistêmica conhecida como programa de pesquisaou programa de investigação, cunhada por ImreLakatos (1987). O nome desta unidade epistêmicaé sugestivo. Em se tratando de um programa, éuma sequência de distintas teorias sobre umdeterminado campo do conhecimento científico. Talsequência pode ser cumulativa - na medida em quea sua capacidade explicativa evolui com novasformulações ou com novas elaborações que dãoconta de novas dificuldades apresentadas pelabase empírica - ou degenerativa, quando asucessão de teorias não consegue avançar emtermos de capacidade de resolução de problemaspostos pela empiria ou não formula novos avançosteoréticos adequados aos desafios científicospostos ao programa.

Na sua teorização de 1979, Waltz (2002) a vêcomo progressiva na medida em que entende sersua perspectiva sistêmica de teoria dotada demelhor capacidade explicativa que as teoriasreducionistas. As teorias reducionistas seriamaquelas que vinculariam a origem das guerras àredução explicativa da natureza do homem e dosgovernos dos Estados. Waltz, portanto, identificaum refinamento da capacidade explicativa, bemcomo uma ampliação de compreensão da baseempírica na sequência lógica da passagem dasteorias reducionistas para as teorias sistêmicas.Verifica-se um raciocínio similar à sua elaboraçãoprimeva de 1954, embora nela não haja menção àperspectiva epistemológica de Lakatos. Nesteargumento, é observado um aumento decapacidade explicativa ao se tomar como ponto departida a insuficiência da primeira e da segunda

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imagem7 sucedida da terceira imagem como níveladequado.

Do ponto de vista metodológico, Waltz mantéma ampliação da perspectiva metodológicadurkheimiana. Ou seja, raciocina de modo análogoa Durkheim: um fato social molda coletivamente aconduta de todos os indivíduos e na mesma linha osistema internacional molda a ação dos Estadosem perspectiva de tendência ao equilíbrio emtermos de suas capacidades de poder e açõesbélicas. A partir do que Waltz entende ser aexperiência histórica, a estrutura, o sistemainternacional tem no equilíbrio um princípiopermanente de sua configuração (WALTZ, 2002).

Para uma conclusão parcial, depreende-se quenão há grande relevância do interno para aexplicação sistêmica do plano internacional. Emvista da preeminência da terceira imagem e dasteorias sistêmicas, o plano interno é um pontosecundário no esforço teorético de Waltz para acompreensão de aspectos essenciais das relaçõesinternacionais voltadas ao seu caráter anárquico,identificado com a manifestação e o riscopermanente da ocorrência de guerras.

3 Gramsci: o historicismo absoluto da relaçãológica e orgânica do interno com o externoem ritmos distintos de desenvolvimento noplano global

Existe quase nada em comum envolvendoGramsci e Waltz. Há que se clarear que aperspectiva histórica de Gramsci não é a de Waltz.Não é compatível com o marxismo gramsciano aaceitação de uma anarquia internacional comoretrato ampliado de uma natureza humana interes-seira, egoísta, belicosa e imutável que transferesuas características para o além-fronteiras nasações dos Estados. A historicização absoluta deGramsci teria espaço eventualmente para umequilíbrio na ação política entre os Estados, desdeque colocado na sua singularidade na relação deforças envolvendo o conflito de grupos sociais efrações de classe no plano internacional por trásdos Estados. No mesmo sentido da historicizaçãoabsoluta, a incorporação, “tradução”8 de Maquiavelao construto de Gramsci rechaça a formulação darepetição da história e da inerente naturezahumana imutável e ambiciosa do secretárioflorentino. Ainda nesta perspectiva, historicizar umaformulação ou categoria implica em discuti-la nonexo das transformações históricas, sem um únicosignificado ou definição (GRAMSCI, 1975).

Na esquematização waltziana, os Estadossempre tenderam e tenderão ao equilíbrio de modoesquemático. No registro waltziano, a experiênciahistórica é pautada pela repetição; pontototalmente excludente com a perspectiva deGramsci.

Ademais, a perspectiva epistemológica deWaltz calcada no programa de pesquisa deLakatos (1987) incorre em enorme anacronismo,uma ausência de lastro histórico específico. A fimde não alongar-se muito neste ponto, bastaconsiderar a cronologia dos autores que emblemamcada uma das três imagens.

Do ponto de vista lakatosiano, é aceitável umareconstrução racional da história da ciência demodo que um programa de pesquisa ouinvestigação tenha uma sequência cumulativa. Éexatamente o que ocorre no esboço waltziano deuma perspectiva lakatosiana referente às trêsimagens. A reconstrução racional de Waltz podecontemplar uma certa cronologia, na medida emque Espinosa viveu entre 1632 e 1677. Sucede-o nasegunda imagem, Immanuel Kant, que viveu entre1724 e 1804 e teve sua obra lapidar “Para a pazperpétua” publicada em 1795. A terceira imagem,por sua vez, está associada a Rousseau, que viveuentre 1712 e 1778 e publicou “Do contrato social”,em 1762. É sabido que Kant fora leitor deRousseau e não o inverso, sem falar que acronologia das obras jamais autorizaria argumentode que a obra de Rousseau melhor responderiaproblemas não solucionados na obra de Kant. É opróprio Kant quem dá notícia em seu “Ideiauniversal de um ponto de vista cosmopolita”. Porexemplo, Kant (1989) escreve que uma ideia deuma federação de Estados rumo a uma pazduradoura seria algo digno do escárnio deRousseau. Tal lógica, portanto, incorre emanacronismo histórico.

Voltando à análise de Gramsci, vários pontospoderiam ser registrados a fim de clarear suaperspectiva metodológica. Para os propósitos destetexto, registre-se a unidade orgânica entre local,regional, nacional e internacional considerando-seas especificidades destes planos.

Mencione-se alguns trechos importantes daobra carcerária e pré-carcerária de Gramscivoltados ao esboço de uma resposta ao problemaenunciado no início deste artigo. Em primeiro lugar,a curta, mas relevante formulação de sua obra pré-carcerária datada de 1919: “O capitalismo é umfenômeno histórico mundial e seu desenvolvimento

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desigual significa que as nações não podem estarno mesmo nível de desenvolvimento econômico aomesmo tempo” (GRAMSCI apud MORTON, 2007, p. 1).

Em segundo lugar, um trecho do parágrafo 3, docaderno carcerário 13, provavelmente, conformeFrancioni (1984), escrito em março de 1935:

As relações internacionais precedem ou seguem(logicamente) as relações sociais fundamentais?Indubitavelmente seguem. Toda inovação orgânicana estrutura modifica organicamente as relaçõesabsolutas e relativas no campo internacional,através de suas expressões técnico-militares. Atémesmo a posição geográfica de um Estadonacional não precede, mas segue (logicamente)as inovações estruturais, ainda que reagindosobre elas numa certa medida (exatamente namedida em que as superestruturas reagem sobrea estrutura, a política sobre a economia, etc.). Deresto, as relações internacionais reagem passivae ativamente sobre as relações políticas (dehegemonia dos partidos) (GRAMSCI, 2000, p. 20,grifos do autor).

Em terceiro lugar, o trecho que tomará maiorênfase da análise; e por isso se justifica sua longareprodução. Trata-se do caderno 17 do parágrafo13, também elaborado possivelmente em março de1935:

Na história real, estes momentos implicam-sereciprocamente, por assim dizer horizontal everticalmente, isto é, segundo as atividadeseconômico-sociais (horizontais) e segundo osterritórios (verticalmente) combinando-se ecindindo-se variadamente: cada uma destascombinações pode ser representada por umaprópria expressão organizada econômica epolítica. Deve-se ainda levar em conta que estasrelações internas de um Estado-Naçãoentrelaçam-se com as relações internacionais,criando novas combinações originais ehistoricamente concretas. Uma ideologia, nascidanum país mais desenvolvido, difunde-se empaíses menos desenvolvidos, incidindo no jogolocal das combinações. (A religião, por exemplo,sempre foi uma fonte dessas combinaçõesideológico-políticas nacionais e internacionais; e,com a religião, as outras formaçõesinternacionais, como a maçonaria, o Rotary Club,os judeus, a diplomacia de carreira, que sugeremrecursos políticos de origem histórica diversa e osfazem triunfar em determinados países,funcionando como partido político internacionalque atua em cada nação com todas as suasforças internacionais concentradas; mas religião,maçonaria, Rotary, judeus, etc., podem serincluídos na categoria social dos “intelectuais”,cuja função, em escala internacional, é a demediar entre os extremos, de “socializar” asdescobertas técnicas que fazem funcionar todaatividade de direção, de imaginar compromissose alternativas entre as soluções extremas). Estarelação entre forças internacionais e forçasnacionais torna-se ainda mais complexa porcausa da existência, no interior de cada Estado,de várias seções territoriais com estruturasdiferentes e diferentes relações de força em todosos graus (assim, a Vendéia era aliada das forçasreacionárias internacionais e as representava noseio da unidade territorial francesa; assim, naRevolução Francesa, Lyon representava umaconexão particular de relações, etc.) (GRAMSCI,2000, p. 42-43).

Dos trechos acima, alguns pontos podem serdestacados. Além do reconhecimento de umaunidade global do capitalismo no início do séculoXX, Gramsci reconhece que os graus dedesenvolvimento das forças da produção da vidasão distintos, variam ente si. Portanto, nacompreensão da totalidade e das especificidadesem termos de história, o capitalismo expressadistintas temporalidades em termos dodesenvolvimento das forças de produção da vida.

Um segundo ponto remete ao entendimento deque não há uma extensão idêntica do plano internopara o âmbito internacional. Neste último, tem-seque este plano segue logicamente as relaçõessociais fundamentais porque há no plano internouma unidade orgânica entre Estado e sociedadecivil, supereestrutura e estrutura, aparelhocoercitivo e lócus das relações sociais eeconômicas que incidem sobre o que há além dasfronteiras. Não se separam as transformações doplano interno daquelas de ordem técnica e militarno plano externo, assim como não se separaguerra e política; tampouco se desconsideraaqueles aspectos referentes à geografia e o aoespaço físico que possibilitam esse nexo lógicoentre interno e externo, bem como asmanifestações desiguais constantes no âmbito docapitalismo global. Seguir logicamente não é areprodução em iguais termos, até porque não há,conforme Gramsci, uma sociedade civil e umEstado mundiais. Se existe tal unidade no planointerno dos países, o mesmo não pode ser aplicadoao além-fronteiras. Os tempos, as velocidades detransformação histórica no plano global e localpodem diferir muito. Neste ponto, seguirlogicamente acompanha estar atento para taispossibilidades, uma vez que as reações passiva eativa a tais transformações passam por taisdiferenças entre o plano interno e o plano externo.A busca pela hegemonia (direção com maisconsenso e menos força no âmbito ético-político,moral, intelectual) envolve o conflito entre diferentespartidos no sentido lato (grupos sociais, classes esuas frações) também no nexo entre o âmbitoendógeno e o âmbito exógeno dos Estados.

Avaliando a rica formulação do trecho citado doparágrafo 17 do caderno 13, pode-se chegar avárias formulações. A questão do espaço, dageografia, é ponto importante a ser consideradocomo nexo de causalidade em conjunto com asrelações econômicas e sociais. Isso produz váriaspossibilidades em termos de diversidade histórica

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quando em termos de particularidade histórica seconsidera as diferentes combinações envolvendo osplanos interno e externo. Isso remete a ideias quepodem ter seu nascedouro em países de maioravanço econômico e repercutir em países de menorexpressão neste aspecto. Estas ideias e suarespectiva difusão por forças que atuam no âmbitoda busca de construção do consenso (que nãodeve ser confundido com unanimidade ou ausênciade conflitos e cisões) dentro dos Estados em suassociedades civis sugerem a formação de partidos(não como organização política, mas em sentidomais amplo, lato) de alcance internacional. Osgrupos e classes sociais associados à religião e àmaçonaria podem desempenhar o papel deintelectuais. Não se tem em mente a definiçãocomum de intelectual. A definição gramscianaconsidera que todos os homens são intelectuais, adespeito de somente alguns desempenharem talfunção no sentido de organizar a vida e suareprodução em conformidade com uma dadaconcepção de mundo.

As múltiplas possibilidades dos conflitosenvolvem a atuação destas forças no planointernacional com os seus desdobramentos noâmbito doméstico. Tal atuação consideradesigualdades e especificidades na suaconcretização em face das distintas possibilidadesreferentes às combinações com o plano espacial, alocalização e o papel que a inserção de cadaagente coletivo exerce na relação com a suaposição no espaço de cada país.

O que Gramsci chama à atenção remete àsvárias possibilidades em termos de relações deforça na construção dos conflitos históricos queconsideram uma miríade de combinaçõesenvolvendo os mais distintos aspectos relacionadosàs relações econômicas e sociais, os grupos eclasses sociais, as questões técnicas, políticas,militares, geográficas nas suas mais diferentespossibilidades em termos de diferenciaçãoenvolvendo os planos interno e externo. Note-seaqui não haver um padrão único envolvendo osEstados, até porque eles não são por si sósagentes. Há grupos, frações, que agem envolvendoos Estados, ponto distinto da formulação de Waltz.

Ainda que Waltz (1986) tenha argumentado quesua preocupação não se direcionou para adinâmica do funcionamento interno de um Estadoe, por isso, não se preocupou com uma teoria doEstado e sim uma teoria das relaçõesinternacionais, tal argumento não encontra eco na

formulação gramsciana do parágrafo acima aludido.O fato de forças nacionais atuarem em

combinação com forças internacionais, seja comono caso da maçonaria, da religião etc., implica naunidade teórico-prática que subjaz a qualquer açãopolítica. A ação prática daqueles quedesempenham o papel de intelectuais parte de talentendimento. O intelectual como indivíduo ouagrupamento ou classe ou fração, para Gramsci,guarda uma unidade teórico-prática ainda que elepossa somente ver a si próprio apenas naperspectiva prática. Não há cisão entre teoria eprática nem entre interno e externo. O nexodialético entre todos estes pontos, cuja separaçãosó é concebível metodologicamente, vai muito alémde uma mera teoria das relações internacionais eincide como uma concepção teórico-prática maisampla, global, com as devidas especificidades,conflitos, contradições etc.

Portanto, não há má teorização única para ointerno e o externo conforme Gramsci, tampoucoum único padrão que possa caracterizar, a rigor,uma teoria gramsciana das relações internacionais.Há, sim, nexos indissolúveis entre interno e externocalcados em particularidades históricas e conflitosde grupos, classes que aspiram pela hegemonia nointerior das sociedades e em contexto ampliado,internacional. Tudo isso com devidos nexoslógicos, sem necessariamente um único formato.Há desenvolvimento diverso, diferentes ritmos dasdimensões da produção da vida, considerando ariqueza da materialidade social, aí inclusa aquestão da geografia.

4 Conclusão

Buscou-se mostrar ao longo deste artigo, demodo sucinto, a irrelevância dos aspectos internospara aquela vertente que serviu de referência para omais recente debate teórico no campo deconhecimento das relações internacionais. Deacordo com tal perspectiva, não há nexo lógicoentre o plano interno e o nível internacional naabordagem de Kenneth Waltz.

Por outro lado, a partir da perspectiva marxistade Gramsci e um cotejo crítico com o neorrealismode Waltz, buscou-se mostrar que há na formulaçãodo comunista italiano um nexo lógico, não idênticodentro das mais distintas possibilidades entre asdiversas forças que atuam em conflito por trás dosEstados e no interior dos mesmos.

Em vista deste resumo, colocam-se algumasquestões para discussões futuras. Até que ponto a

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referência metodológica de Waltz calcada noretrato ampliado de uma sociedade no interior deum Estado não reforça a tese da necessidade donexo lógico entre interno e externo com as devidasespecificidades entre ambos, ainda que o autornorte-americano não reconheça tal relação? Comoconfigurar as diferentes temporalidades entreinterno e externo de modo mais específico nacompreensão da análise da relação de forçasconforme Gramsci?

Após esta brevíssima argumentação que estámuito longe de encerrar a discussão proposta,entende-se que avançar nestes pontos contribuiriaainda mais para verificar fronteiras e continuidadesentre o interno e o internacional

Notas:(1) Consulte-se a respeito, Halliday (1999).(2) Consulte-se, por exemplo, Cox (1981), Murphy (1994) eRupert (1995).(3) Os limites em questão apontam para a impossibilidade decaptar o movimento de elaboração de Gramsci de sua obracarcerária com a constatação de textos de primeiro redação,segunda redação e redação única. Além disso, as ediçõeslimitadas referidas contêm um agrupamento arbitrário detrechos de textos de Gramsci que dão a falsa impressão deum formato sistemático, que efetivamente não houve na suaobra carcerária. Palmiro Togliatti, o Secretário-Geral doPartido Comunista da Itália, o primeiro a publicar tais edições,dispôs os textos de forma a passar a imagem de um Gramscistalinista, dentre outros pontos adequados à tática eestratégia do partido a partir dos anos 50 do século XX. Asedições em língua inglesa consultadas pelos autores“gramscianos” ou “neogramscianos” possuem perfilsemelhante às edições compiladas originalmente por Togliattiou são traduções dessas mesmas edições do dirigente doPartido Comunista da Itália. Para os propósitos deste texto,usar-se-á como referência e citação de trechos traduzidos aedição brasileira (organizada por Carlos Nelson Coutinho)dos cadernos carcerários. Ela contempla apenas aquelestextos que Valentino Gerratana – organizador da ediçãocrítica italiana dos Cadernos carcerários (GRAMSCI, 1975)classificou “B” e “C”, respectivamente, textos de redaçãoúnica (os quais Gramsci teve uma única escrita) e textos desegunda redação (que ele fez segunda escrita dos mesmoscom reelaboração de seu conteúdo ou não). A ediçãobrasileira em questão não contempla os textos de primeiraredação, que Gerratana classificou como “A”. Ainda que sejauma limitação metodológica nos estudos gramscianos, optou-se nesta reflexão por contemplar textos da edição brasileirareferida e suas traduções. Considera-se a edição deCoutinho melhor do que as edições temáticas e antologiaspublicadas na Itália, nos países de língua inglesa e no Brasil.Sobre o ecletismo e a inacuracidade de Cox e alguns autoresneogramscianos com relação ás formulações de Gramsci eseu estatuto epistemológico, consultar Passos (2013).(4) A título de exemplificação, consulte-se o trabalho de Saad-Filho e Ayers sobre a formulação eclética de Cox que adistancia em boa medida do marxismo com o uso decategorias em registro keynesiano e institucionalista (SAADFILHO; AYERS, 2008).(5) Definida como um conceito sociológico referente ao padrãode sociabilidade, de divisão do trabalho, valores e naturezado direito no interior de uma sociedade específica.(6) Um relevante autor realista que vai nesta direção éMorgenthau (2003).(7) A rigor, Waltz sustenta que a análise de Kant referente àsegunda imagem é melhor de que a de Espinosa referente àprimeira: “A análise de Kant, apesar de em alguns aspectosser semelhante à de Espinosa, é a um só tempo maiscomplexa e mais sugestiva” (WALTZ, 2004)

(8) Tradução ou tradutibilidade ou traducibilidade é aressignificação de um autor, conceito ou categoria a umadada particularidade histórica e cultural de modo nãomecânico, sob outros prismas. A tradução de diversascategorias e autores por Gramsci busca situá-los em termosde uma ressignificação compatível com o materialismohistórico. Ver a respeito em Baratta (2004).

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* Professor da Universidade Estadual Paulista(Unesp), campus de Marília, e da UniversidadeEstadual de Campinas (Unicamp). Pós-Doutorandopelo Instituto de Economia da Unicamp e bolsista dePós-Doutorado Sênior pelo CNPq.

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POPULAÇÃO ADULTA E SITUAÇÃO DERUA NO MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO:as políticas públicas e os serviços sociaisIrene Serafino*

1 Introdução

O presente artigo traz algumas reflexões acercadas políticas públicas e dos serviços voltados parapopulação adulta em situação de rua na cidade doRio de Janeiro. No específico, tentou-se conhecer ofuncionamento da rede dos serviços e a relaçãocom os possíveis usuários.

Este trabalho é o resultado de uma pesquisa decampo, feita para a dissertação de mestrado naUniversidade de Bolonha, realizada na cidade doRio de Janeiro entre abril e dezembro de 2011.Durante o trabalho de campo, foram utilizadastécnicas específicas como a observação direta e odiário de campo; e foram também realizadasentrevistas diretas com assistentes sociais quetrabalham no Centro de Referência de AssistênciaSocial, localizado na região central da cidade doRio de Janeiro, e com os próprios usuários dosserviços.

Resssalta-se que cada pessoa entrevistadaassinou o termo de consentimento livre eesclarecido. Os módulos compilados foramentregues ao Departamento de Serviço Social daUniversidade Federal do Piauí. Para nãocomprometer as pessoas envolvidas, escolheu-semanter o anonimato das mesmas; portanto, osentrevistados são identificados com um número,especificando se são técnicos(as) oumoradores(as) de rua. No total, a amostra foicomposta por 7 técnicos(as) profissionais dosServiços Sociais e 9 moradores(as) de ruaadultos(as). No especifico, foram 5 assistentes

Resumo: a partir das reflexões sobre as políticas publicas para a população em situação de rua e a realidadeque ela vive no centro do Rio de Janeiro, este trabalho, expõe a situação dos serviços sociais viabilizados paraassistir as pessoas que se encontram em situações de forte exclusão social e mostra a rede dos ServiçosSociais e a interlegação entre eles e ações mais coercitivas gerenciadas pela Secretária de Ordem Pública.Palavras chaves: Exclusão social. Serviços sociais. Ordem pública.

Abstract: from reflections on the public policies for homeless and the reality that they lives in the center of Riode Janeiro, this work exposes the situation of social services made to assist people who are in situations ofstrong social exclusion and shows the network of Social Services and interrelation between them and morecoercive actions managed by the Secretary of Public Order.Key words: Homeless. Social Services. Public Order.

sociais: 3 responsáveis pelo Serviço Social daPrefeitura em que operam, 1 psicóloga do ServiçoSocial da Prefeitura e 1 dos fundadores daassociação Organização Civil de Ação Social(Ocas).1 Dos 9 moradores de rua adultos que vivemno centro do Rio de Janeiro, 7 homens e 2,mulheres; sendo que 6 foram encontrados nosServiços Sociais que frequentavam e 3 foramconhecidos em outras circunstâncias.

Este artigo, depois de identificar algumascaracterísticas da população em situação de rua noBrasil e os pontos essenciais da legislaçãonacional voltada para esta população, aborda arealidade dos serviços gerenciados pela prefeiturada cidade do Rio de Janeiro e mostra como osserviços voltados para esta população sedesenvolveram nos últimos anos, resaltando asambiguidades presentes no gerenciamento, àsvezes integrado com ações de repressão.

2 A população em situação de rua

A condição de vida da população em situaçãode rua é uma das formas mais extremas deexclusão social, presente em todos os Estadosmodernos, e passa por um processo dedesafiliacíon (CASTEL, 2009), que implica atrinômia expulsão, erradicação e privação. NoBrasil, a população em situação de rua estápresente na maioria das cidades, contudo, eles seconcentram em maior número em grandesmetrópoles, como São Paulo, Belo Horizonte,Recife e Rio de Janeiro.

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No caso da cidade do Rio de Janeiro(ESCOREL, 1999; PREFEITURA DO RIO DEJANEIRO, 2007, 2008; SILVEIRA, 2008), apopulação em situação de rua é composta porcrianças, jovens, adolescentes, adultos, homens,mulheres e idosos. Dentre esses, são recorrentesa dependência química, problemas psiquiátricos,desemprego e abandono, problemáticas que muitasvezes acentuam-se e causam a mesma situaçãode rua. As pesquisas evidenciam ainda que háinteiras famílias que moram na rua e a maioriadelas tem uma longa história de rua que envolvemais de uma geração. A população em situação derua possui, portanto, perfis extremamentediferentes que indicam e confirmam a multiplicidadee complexidade desse fenômeno. Assim, muitosmoradores de rua compartilham históricosmarcados por processos de exclusão no âmbito dotrabalho, da educação, da habitação, da saúde, dosistema político, assistencial e social. ConformeCastel (2009), é preciso levar em conta o processode desafiliacíon como auge de um processomarcado por exclusões que se somaram ao longoda vida da pessoa: para essas pessoas, a rua nãoé uma escolha; torna-se uma estratégia desobrevivência.

3 As políticas públicas: legislação e práticas

No Brasil, as políticas públicas para apopulação em situação de rua são bastanterecentes. Em alguns estados, elas ou estão emfase de implantação ou foram recentementeimplantadas. A referência para a implementaçãodos serviços é o decreto n. 7.053, de 23 dedezembro de 2009 (BRASIL, 2009), na segundagestão do Governo Lula (2003-2010), que instituiu aPolítica Nacional para a Inclusão da População emSituação de Rua. Além de definir os princípiosnorteadores desta política, esta legislaçãoestabelece, dentre as diretrizes fundamentais, quea atuação dos serviços sociais, deve ser voltadapara a promoção de direitos civis, políticos,econômicos, sociais e culturais das pessoas,respeitando a dignidade, as diferenças de raça,idade, nacionalidade, gênero, orientação sexual ereligiosa, com atenção especial às pessoas comdeficiência; define ainda que a responsabilidadepela elaboração e financiamento dos serviços é dopoder público e que a implantação deve serarticulada e integrada entre os diversos níveis degoverno com a participação da sociedade civil. Opoder público deve, portanto, formar e financiar a

rede de serviços voltados à assistência e àproteção dos direitos da população em situação derua, gerenciando esses serviços de forma integradaentre os níveis de atuação: federal, estadual,municipal.

Mesmo diante do previsto no decreto n. 7.053,no que se refere a princípios e diretrizes dessapolítica nacional, a prefeitura da cidade do Rio deJaneiro, até o final da realização do trabalho quedeu origem a este artigo, não formalizoucompromisso com vistas à adequação do serviço.Para discutir o assunto, alguns conselheirosmunicipais de partidos da oposição ao governomunicipal instituíram a comissão especial paradiscussão de políticas públicas para populaçãoadulta em situação de rua para discutir e denunciaras políticas públicas atuadas com a população emsituação de rua pela prefeitura do Rio de Janeiro. Acomissão solicitou ao prefeito a assinatura de umdocumento que formalize o compromisso dessaprefeitura para aderir ao decreto n. 7.053 e pararespeitar os objetivos e as diretrizes da PolíticaNacional para a Inclusão da População emSituação de Rua.

A falta de alinhamento legislativo do municípiocom a referida política nacional é também um dospontos principais do confronto atual existente entrea prefeitura da cidade do Rio de Janeiro e omovimento social Associação dos Catadores daPopulação em Situação de Rua do Estado do Riode Janeiro (ACPRURJ), o Fórum Permanente daPopulação Adulta em Situação de Rua (MUÑOZ,2009) e as associações que trabalham com osmoradores de rua.

Os órgãos políticos do Rio de Janeiro nãoparecem estar intencionados em respeitar osprincípios do decreto n. 7.053 e as ações domunicípio ainda estão centradas em medidaspaliativas, punitivas e de afastamento das pessoasdo centro da cidade. Conforme destaca Dantas(2007, p. 67):

[...] o perfil da assistência à população emsituação de rua no município do Rio de Janeiro écaracterizado pela descontinuidade dosprogramas implementados, atuação nãosuficientemente integrada entre os diferentessetores governamentais envolvidos, tensa relaçãodo governo com as organizações da sociedadecivil e tendência ao exercício de práticas punitivase de isolamento. Persistem ainda ações decaráter paliativo e higienista e a implementaçãode ações pautadas pela perspectiva da segurançapública, com a retirada forçada da população [emsituação de rua] para abrigos e albergues.

Mesmo esses pontos negativos na cidade doRio de Janeiro, depois da Política Nacional de

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Assistência Social (PNAS) de 2004, que define aslinhas de ação e as competências de cada órgãofederado no Sistema Único de Assistência Social(SUAS), os serviços de assistência social dacidade foram redefinidos e reorganizados paraadequá-los à normativa de 2004 (BRASIL, 2011). Jáantes da PNAS, existiam os abrigos, mas após apromulgação dela implantaram melhorias nascondições de acolhimento. No município, aprioridade foi para o enfrentamento das carênciasestruturais da cidade e os serviços públicos maisprecários. Os investimentos para os serviçosvoltados à população em situação de rua forampoucos, porém, proporcionaram importantesmelhorias, conforme pode ser observado no trechoda entrevista a seguir:

Houve investimento, houve melhorias, mas [osserviços para a população em situação de rua]não era prioridade. E o fato de não ser prioridadedeterminava que a quantidade de serviço fossemuito pequena, em número de abrigos, deassistentes sociais que trabalhavam nessesserviços. Antes [de 2004], no serviço deabordagem nem tinha assistentes sociais(Técnico T6).

De 2004 a 2008, alguns serviços voltados àpopulação em situação de rua tiveram reduzidamelhoria na qualidade de sua estrutura. Porém,conforme um assistente social entrevistado, após aeleição do novo prefeito do Rio de Janeiro, EduardoPaes, em 2009, a situação ficou ainda pior:

Em 2009 entrou um novo governo, um novoPrefeito, Eduardo Paes. Já na campanha eleitoraldizia que em cem dias ia acabar com o problemade moradores de rua na cidade. A gente [osassistentes sociais] ficou (sic!) muito preocupadapensando “vai matar todo mundo”. Porque ou elenão sabia o que estava falando ou ia matar todomundo (Técnico T6).

As medidas utilizadas para “controlar” asituação da população em situação de rua, tiveramum traço majoritariamente repressivo, com aadoção de medidas de caráter de ordem pública ecom a atuação frequente de ações denominadascomumente de choque de ordem, com a expulsãodas pessoas das ruas à força, conforme expressououtro assistente social entrevistado:

O choque de ordem é uma questão atual,direcionado pela Secretaria de Ordem Pública,não de assistência. Foi o prefeito atual querecomeçou essas ações. Não que essassituações não ocorressem, mas atualmente asoperações são maciças (Técnico T5).

É importante destacar que após 2008 as açõesde recolhimento indiscriminado deixaram de serpontuais e focalizadas em áreas específicas dacidade. Portanto, após a ascensão ao poder doreferido prefeito, foi criado um projeto denominado

Projeto Rio Acolhedor, gerenciado pela Secretariade Ordem Pública, que, conforme trecho daentrevista abaixo, sistematizou as operações:

Essas formas de repressão versus população derua já aconteciam antes, mas eram situaçõesmuito pontuais para tirar um determinado grupode uma praça, mas não era uma rotina, não eranormal que isso acontecesse; até porque aprópria Secretária de Assistência era contraria aisso [essa tipologia de intervenção] e erarespeitada [pelos outros órgãos administrativos epelos políticos]. Com Eduardo Paes, a Secretáriade Ordem Pública, especialmente, mas também aguarda municipal e também as subprefeituras, asadministrações regionais (RA), todo mundo ficouquase que em uma caça às bruxas. Todo mundotinha que tirar os moradores de rua em qualquerlugar onde eles estivessem. Então se passou arecolher as pessoas desenfreadamente (TécnicoT6).

Com frequência, as ações repressivas atuadaspelo Projeto Rio Acolhedor separam as pessoasrecolhidas dos seus pertences e dos seus pontosde referências, causando-lhes constrangimento elevando-as a situações ainda mais desesperadoras.Após essas medidas, é comum encontrar aindamais moradores de rua vagando pela cidade àprocura de novos serviços e de outros lugares parase fixarem e protegerem-se. Obviamente, essascondições fazem com que as pessoas em situaçãode rua procurem novas alternativas para comer,lavar-se, ganhar dinheiro e, portanto, tornarem-semais visíveis ao restante da população, causandomaiores transtornos. Em síntese, essas medidasagravam ainda mais as condições de vida dapopulação de rua, fato que requer a necessidade deajudas, cada vez mais diversificadas, exigindo maistempo para as intervenções de assistência social,dificultando a saída dessas pessoas das ruas. Umdos principais resultados destas ações foi retirar aspessoas das áreas da cidade de maior circulaçãoturística, afastando-as nas periferias da zona nortee oeste, deixando-as em situações de abandono evulnerabilidade ainda pior:

A pessoa é recolhida daquele lugar e é levada porum lugar mais distante e, nesse lugar maisdistante, ela não conhece o segurança da área,ela não conhece o comerciante, ela não conhecea dona que vai levar comida para ela no final dodia, ela não tem relações. Ela também não éconhecida daquelas pessoas que moram nessenovo lugar; então, ela passa de alguma forma aincomodar aquelas pessoas. Isso da uma ideiado que a problemática aumentou, mas na verdadea pessoa só saiu de um lugar para outro. E apessoa começa a rodar a cidade toda e a demorarainda mais para sair da situação de rua, porque asituação dela vai piorando. Esses recolhimentospioraram também a qualidade dos abrigos,porque tiveram que hospedar muitas maispessoas [...] as ações de recolhimentocomeçaram a desorganizar muito a vida daspessoas na rua, porque antes as pessoas

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estavam lá no centro ou na zona sul com seuscarrinhos, catando as suas coisas, conseguindojuntar um dinheiro para poder sair da rua. Derepente [em seguida a essas ações], eles perdemo carrinho, eles perdem os documentos, elesperdem tudo o que eles estavam juntando e elesvoltam para uma situação pior do que já estavam(Técnico T6).

4 Serviços sociais/serviços de ordem pública

Para compreender melhor a estrutura dosserviços sociais voltados à população em situaçãode rua do Rio de Janeiro, foi construído umesquema (Figura 1), onde estão retratadas asinstituições que desenvolvem ações relacionadasao atendimento de demandas dessa população.

A área delimitada representa o centro da cidade(AP1) e corresponde à área da pesquisa empírica.Outros serviços fora da AP1 foram visitados, masapenas para se ter uma ideia do funcionamento dosistema na sua complexidade.

Na Figura 1, os serviços assistenciais foramidentificados com diferentes cores. Com a cor verdefoi indicada a Central de Recepção para Adultos eFamílias Tom Jobim (CRAF Tom Jobim), quecoordena e gerencia os CREAS2, os CREAS POP3

e os abrigos. Com a cor roxa, foram indicados os14 CREAS da cidade que, no âmbito dos serviçospara a população adulta em situação de rua,desenvolvem um trabalho de abordagem cotidianopelas ruas da cidade. Em azul-claro, foramidentificados os dois CREAS POP; em laranja, oserviço de atendimento sanitário Estratégia Saúdeda Família para População em Situação de Rua(ESF POP RUA); em azul-escuro, o restaurantepopular Garotinho; em marrom, o órgão queviabiliza a documentação - (Detran Central doBrasil); e em vermelho, todos os abrigos da rede.

Ao longo da pesquisa de campo, porém, foiindividuado também outro tipo de serviço voltadopara a população em situação de rua, que transfereos moradores de rua exclusivamente para o abrigochamado Centro de Acolhimento João ManoelMonteiro. No que refere a este abrigo, é importantedestacar que, apesar de o mesmo ser oficialmenteincluído entre os serviços da Secretária deAssistência, sua organização é realizada peloProjeto Rio Acolhedor, evidenciado em cinza naFigura 1, e, portanto, este serviço é gerenciadopela Secretaria de Ordem Pública.

5 A combinação dos serviços. Assistênciasocial ou repressão?

Para dar uma maior compreensão acerca dofuncionamento dos serviços e da real situação dasações desempenhadas por ambas as secretarias,é importante ressaltar que há casos em que existeuma colaboração entre as secretarias e, muitasvezes, os assistentes sociais, que trabalham pelaSecretaria de Assistência Social, que têmobrigação de participar das ações de ordempública, repressivas e coercitivas. Nessesmomentos, parece haver uma intenção política demisturar os papéis e as ações dos diversosserviços, pois, nessas ações, que envolvemtambém as equipes da Secretaria Municipal deAssistência Social, fica difícil distinguir quem éresponsável pelas operações de ordem pública. As

Fonte: a autora, com base no Centro de ReferênciaEspecializado de Assistência Social (2011), entrevistasdiretas e diário de campo.

Figura 1 - A rede dos serviços da Prefeitura do Riode Janeiro para a população adulta em situação derua

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equipes do Projeto Rio Acolhedor usam os coletesdas equipes de abordagem dos CREAS, com aidentificação “Assistentes Sociais da Secretária deAssistência Social”, situação que provoca grandeconfusão e equívocos junto à população emsituação de rua e também junto à opinião pública.

Entre os moradores de rua entrevistados,apenas dois, os quais fazem parte do movimentosocial ACPRURJ, não confundiram o serviço deabordagem dos CREAS com o chamando Choquede Ordem. Os demais associam as equipes doProjeto Rio Acolhedor com as equipes dos serviçossociais, conforme explicitado no trecho dessaentrevista: “Acho que o serviço social é bom. Ajuda!Mas dessa maneira de pegar pelo braço, que mexingou, aí eu não quero mais.” (Moradora S9).Entre os entrevistados ficou explícito que essapercepção produziu uma desconfiança, que levouao distanciamento de muitos deles com vínculoshistóricos já constituídos com os serviços sociaisda prefeitura do Rio de Janeiro. Em geral, oafastamento deles ocorria por medo de seremdenunciados e, portanto, serem localizados pelasequipes do Choque de Ordem. Conforme relatadono diário de campo em 12 de novembro de 2011, asequipes são constantemente trocadas:

Parece que a população em situação de rua nãoconsegue sempre identificar as diferenças entreas equipes de abordagem dos CREAS e asequipes do Projeto Rio Acolhedor. Comfrequência, pelos comportamentos, parece queeles acham serem a mesma coisa. A Prefeituraparece querer confundir os dois serviços.

A hipótese da intenção política de confundir osserviços das duas secretarias foi tambémevidenciada por um morador de rua que participa domovimento social ACPRURJ. Segundo ele, assedes do CREAS POP e do Projeto Rio Acolhedorcoincidem: “Foi feito só um CREAS POP e ele estána mesma sede das forças do Choque de Ordem. Aprópria guarda municipal que massacra eles [osmoradores de rua] no dia a dia, tem sede noCREAS POP, e identifica as lideranças nos grupospara tirá-lo” (Morador S7).

A desconfiança está presente também entremuitas associações do terceiro setor que já nãocolaboram com os serviços sociais municipais epreferem não compartilhar mais as informaçõescom eles. O temor das associações é que tambémos CREAS participem, com os dados e asestatísticas que têm, denunciando, ao Projeto RioAcolher, que não respeita os direitos humanos dapopulação em situação de rua e os lugares deconcentração dessas pessoas:

Hoje em dia, a gente está em uma situação muitodifícil por causa da posição da Prefeitura que atuano acolhimento compulsório, que tira as pessoaso direito de estar na rua. As mesmas instituições[do terceiro setor] presentes no território desdequando há essa política estão com pé atrás com agente e não querem trabalhar com a gente. Agente poderia nortear e identificar o que é precisono território e sugerir o que desenvolver, mas nãoconseguimos. As instituições [do terceiro setor]acham que, como somos da assistência social daPrefeitura, trabalhamos da mesma forma que oChoque de Ordem (Técnica T3).

Esse medo das instituições do terceiro setorparece ter fundamentos concretos, pois as equipesdos CREAS têm obrigação de participar das açõesmais importantes desenvolvidas pelo Projeto RioAcolhedor, conforme relato no diário de campo em13 de junho de 2011:

Conforme as informações denunciadas pelosassistentes sociais que participaram do encontrodo Conselho Regional de Serviço Social (CRESS),os CREAS, que devem enviar os dados coletadosà Secretária Municipal de Assistência, têm aobrigação em participar de algumas operações doProjeto Rio Acolhedor, para legitimar elas e paraencaminhar as pessoas recolhidas para a rededos serviços sociais. Durante as operações osassistentes sociais permanecem dentro da Kombiesperando.

Mesmo que todos os assistentes sociaisentrevistados tenham denunciado e criticado asações do Projeto Rio Acolhedor, e mesmo nãoconcordando com as ações implementadas pelomesmo, são obrigados a presenciar as operaçõesdesenvolvidas durante as madrugadas:

[...] atualmente a equipe de abordagem do CREASestá lutando para ser desvinculada dasoperações [do Projeto Rio Acolhedor],denunciando por meio de relatórios tentandoincomodar e fazer entender que ou vão mudar atipologia de abordagem ou eles não nos chamam.E se chamarem a gente vai denunciá-los, mas agente ainda não conseguiu [se desvincular daatividade] (Técnica T3).

Por um lado, as assistentes sociais e oseducadores das equipes de abordagem dosCREAS que devem participar das operaçõesdenunciam as situações em que os direitos daspessoas não são respeitados. Por outro, aslegitimam, de fato, com suas presenças nasoperações. Esse é um dos grandes motivos quelevaram as/os assistentes sociais a desejarem seafastar das ações repressivas e não quererem maispresenciá-las. Porém, ao serem obrigados aparticipar das mesmas, escolheram contestá-las,denunciando-as por meio de seus relatóriostécnicos, onde contrastam as medidas violentaspresenciadas:

A postura da Prefeitura [da Secretaria de OrdemPública] é de ir, pegar, levar e daí jogar fora. Agente [equipe de abordagem do CREAS] tentacontrolar, que não levem os documentos, e tenta

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garantir os direitos mínimos dos meninos [...]. Agente falava: espera aí, se leva a pessoa tem quelevar os pertences dela também [...]. A gente nãoquer trabalhar assim, mas a gente agora vai atémesmo para controlar, para garantir que osdireitos daqueles usuários sejam defendidos: nãolevar documentação, não bater. Há situações emque é preciso intervir (Técnica T3).

Até alguns profissionais da comunicação,quando abordam acerca das operaçõesdesenvolvidas pelo Projeto Rio Acolhedor,identificam os profissionais envolvidos comoassistentes sociais. Na Figura 2, pode-se verificarcomo os funcionários da Secretaria de OrdemPública são identificados, pelos jornalistas, comosendo assistentes sociais.

Alguns assistentes sociais relataram que nãoparticiparam diretamente das ações gerenciadaspela Secretaria de Ordem Pública e, quando foramobrigados a participar, ficaram esperando aspessoas recolhidas nas Vans, para preencher aficha de identificação de cada uma. Os/asprofissionais ressaltaram que durante essas açõessão utilizadas, de maneira indevida, as siglas daSecretaria da Assistência Social, mesmo quandoesta não está envolvida com as operações. Asassistentes sociais evidenciaram também que oporte físico dos “assistentes sociais” que atuamnas operações do Projeto Rio Acolhedor é parecidocom o de agentes policiais. Acrescentaram que amaioria das assistentes sociais da cidade sãomulheres e que nunca utilizam a força para atenderas pessoas.

Durante o encontro do Conselho Regional deServiço Social que aconteceu dia 13 de Junho2011, discutiu-se acerca do modo como ocorre orecolhimento e da maneira como o serviço utiliza,de forma indevida, os coletes e as Vans daSecretaria de Assistência Social. Nessa reunião,tomou-se a decisão de encaminhar uma carta àsemissoras de comunicação, denunciando asituação, destacando que os profissionais queparticipam ativamente das operações, usando aforça, não são as assistentes sociais quetrabalham na Secretaria de Assistência Social.

6 Conclusão

Apesar das dificuldades apontadas, a rede dosserviços sociais da cidade do Rio de Janeiro temvindo a aumentar e os profissionais dos serviçosassistenciais procuram desenvolver ações nosentido de melhorar as condições de vida dapopulação em situação de rua, abrigando-a porperíodos definidos, desenvolvendo projetospersonalizados ou criando relações e grupos,conforme o decreto n. 7.053. É importante ressaltarque, todavia, as ações repressivas desenvolvidasno âmbito do Projeto Rio Acolhedor tornam otrabalho de assistência social ainda mais difícil.

Como visto ao longo deste artigo, este estudoidentificou dois tipos de serviços organizados pelaprefeitura do Rio de Janeiro: os serviçosassistenciais gerenciados pela Secretária deAssistência Social e os “serviços” de controle erepressão gerenciados pela Secretaria de OrdemPública. Portanto, se, por um lado, existe umaimportante rede de serviços sociais onde trabalhamprofissionais especializados que desenvolvemserviços assistenciais, educativos e de cura para apopulação em situação de rua, por outro lado, aSecretaria de Ordem Pública age de formarepressiva e violenta e recolhe de forma indébitaestas pessoas, desrespeitando os direitos delas

Fonte: Coletivo Desentorpecendo a Razão (2011)

Figura 2 - Ação do Projeto Rio Acolhedor; a confusãodos serviços

Nota:(1) OCAS” saindo das ruas é uma associação do terceirosetor que publica uma revista mensal homônima, distribuídapelos moradores de rua.(2) Centro de Referência Especializado de Assistência Social.(3) CREAS POPulação de rua são centros de convivênciacomunitária voltados à população em situação de rua.

ReferênciasBRASIL. Decreto n. 7.053, de 23 de dezembro de 2009.Diário Oficial da União, Brasília, 24 dez. 2009, p. 16.Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Decreto/D7053.htm> Acesso em: 05dez. 2011.

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PREFEITURA DO RIO DE JANEIRO. Levantamento dapopulação em situação de rua na cidade do Rio de Janeiro.Cadernos de Assistência Social, Rio de Janeiro, v. 11, 2007.PREFEITURA DO RIO DE JANEIRO: Levantamento dapopulação em situação de rua na cidade do Rio de Janeiro.Cadernos de Assistência Social, Rio de Janeiro, v. 18, 2008.SILVEIRA, F. E. Pesquisa nacional sobre a população emsituação de rua: sumário executivo. Rio de Janeiro: Sagi,2008. Disponível em: <http://www.mds.gov.br/backup/arquivos/sumario_executivo_pop_rua.pdf>. Acesso em: 14nov. 2011.

* Graduação em Serviço Social na Universidade deBolonha – IT (2008), mestrado em Serviço Social ePolítica Social na Universidade de Bolonha – IT(2012) e doutoranda em Sociologia na Universidadedo Porto.

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A NOVA CENA DA AIDS: um panorama atualque se comunica sobre a doença no BrasilMaria Helena Almeida Oliveira* e Francisco de Oliveira Barros Junior**

Resumo: quem fala e o que se fala sobre como o Brasil enfrenta sua quarta década de Aids é o que sepretende apresentar neste artigo, que tem foco na comunicação para os jovens, cujos índices decontaminação pelo HIV ainda se mostram prevalentes e até mesmo crescentes em alguns segmentos. Deum lado, o Estado que atua para cumprir metas com a agenda internacional para o controle da doença, para2015; de outro, a voz de ativistas históricos que ressoam o discurso do retrocesso na política de Aids; e, nocerne a população, os jovens, para os quais se dirigem campanhas e que sinalizam não se interessaremtanto assim pela nova cena da Aids.Palavras-chave: Aids. Comunicação. Estado. Jovens.

Abstract: who speaks and what about talks how the Brasil is facing its fourth decade of Aids, is what in thisarticle intends to present, which focuses on communication for young people whose rates of HIV infection,show still prevalent and even increasing in some segments. On one hand, the State acts to accomplish goalswith the international agenda for disease control, 2015; on the other, the voice of historical activists whichresonates that has a reverse in Aids policy; and, among these, the population, young peoples, to whom theyare addressed and campaigns that signal are not interested, so much so, the new scene of Aids.Keywords: Aids. Communication. State. Young.

1 Introdução

Ao entrar em sua quarta década, a síndrome daimunodeficiência adquirida (acquiredimmunodeficiency syndrome - Aids) volta a ocuparposição de destaque no noticiário mundial; eavanços nos campos biomédico e farmacológicosão registrados na impressa internacional. NoBrasil, país que já foi referência para o mundo porseu programa de política pública para tratamentode pessoas portadoras de HIV e doentes de Aids, ofinal de 2013 parece ter sido definido como um novomarcador para destacá-lo na ponta do alcance dasmetas de controle da epidemia. As mudanças nosprotocolos de definição para distribuição de modouniversal do coquetel de medicamentosantirretrovirais a todos que forem detectados com ovírus - independentemente da condição decontagem de células CD4, as responsáveis pelaresposta à imunidade - foram divulgadas como umgrande avanço do Programa Nacional de Aids, porparte do governo federal, enquanto as organizaçõesda sociedade civil engajadas na luta contra a Aidsdemonstraram reticências com as novidadesapresentadas. Tudo isso serviu, sem dúvida, paradar, outra vez, visibilidade à Aids como assunto namídia, pois, ao que parecia, o tema estavaencoberto pela aparente mudança na face dadoença, que surgiu como uma sentença de mortenos anos 1980, atravessou os anos 1990 em meio

aos estigmas dos comportamentos desviantes e dorisco, para chegar aos anos 2000 como umadoença controlável e aparentemente esquecida.

Como 2015 é o marco da agenda do ProgramaConjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids(ONUSIDA) para se chegar a atingir a meta deatender, mundialmente, com terapia antirretroviral15 milhões de soropositivos, e o início do planopara se atingir o fim da pandemia, com infecçãozero por HIV e morte zero por Aids, alcançandouniversalmente 25,9 milhões de pessoas quenecessitam de terapia antirretroviral em todo omundo, isso parece ter reacendido a chama dointeresse da mídia, e não apenas a noticiosa, mastambém a da indústria do entretenimento, em falarde Aids outra vez. Do cinema de Hollywood àsnovelas da Rede Globo, a Aids esteve na tela, oque já não se via com frequência há algum tempo.

Por outro lado, o governo brasileiro, através doMinistério da Saúde investe, a cada ano, cerca deR$ 15 milhões (AGÊNCIA DE NOTÍCIAS DA AIDS,2014) em campanhas de prevenção ao HIV,concentrando a exibição nas datas próximas aocarnaval e a 1º de dezembro, Dia Mundial de LutaContra a Aids; porém, abre novas frentes dedivulgação, para além da mídia tradicional,aplicando parte dos esforços de comunicação nainternet, especialmente, no site de relacionamentoFacebook (ATITUDE AIDS, 2014), onde, desde

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novembro de 2012, mantém uma página própriapara as campanhas e para a divulgação do uso dacamisinha.

Os movimentos da publicidade e doentretenimento são importantes pontos de análisepara se compreender como o País organiza suasestratégias de atuação sobre as políticas públicasde prevenção ao HIV e combate à Aids, tendocomo foco para esta observação as ações dacomunicação produzida pelo governo, por meio doMinistério da Saúde - isto, porque se entende e opresente artigo pretende demonstrar que érelevante se ter a comunicação como parte nãoapenas instrumental das políticas públicas, mascomo um objeto pertinente ao planejamento integraldo que ali está disposto.

Válido é pensar que por meio da comunicaçãose pode contribuir para incrementar a participaçãodos cidadãos usuários dos serviços públicos, que,pelo conhecimento, sejam possibilitados de pensar,dialogar e agir com alguma consciência sobre osfatos. Desse modo, faz-se pertinente pensar odireito à comunicação como um direito humano,que - ao se seguir a referência de Bobbio (1992),que divide o direito em gerações - pode serconsiderado como um direito de quarta geração,onde se incluem os chamados direitosrepublicanos, como o direito ao patrimônio cultural,ambiental, aos recursos públicos. O direito àcomunicação é de toda a sociedade, contempla odireito à informação e vai além dele: “É umacomunicação que se ocupa da viabilização dodireito social coletivo e individual ao diálogo, àinformação e expressão” (DUARTE apudBRANDÃO, 2012, p. 20).

É isso, por exemplo, que se busca encontrar nomomento por um estudo em construção noprograma de doutorado de políticas públicas, doCentro de Ciências Humanas e Letras, daUniversidade Federal do Piauí, cujo objetivo geral éavaliar como as estratégias de comunicaçãoadotadas, neste século XXI, nas políticas públicasde Aids alcançaram os sujeitos para os quais foramdirigidas; no caso, os do segmento dasjuventudes - assim mesmo, visto em suapluralidade como a complexidade da própriaconceituação do termo em si exige (GIL CALVO,2011); e é pelas vozes de alguns desses sujeitos,representados por jovens universitários de Teresina,capital do Piauí, por meio de toda a diversa gamade sentidos por eles produzidos, que serãoavaliadas as estratégias de comunicação presentes

nas políticas públicas de Aids no País; sendoimportante ressaltar que, de acordo com o “Boletimepidemiológico de Aids” (BRASIL, 2013b), é nafaixa etária de 14 a 25 anos que há incremento decontaminação pelo HIV.

Diante desse cenário, o presente artigo faz umlevantamento do panorama de como se encontra odebate sobre o que se está comunicando acercada Aids, trazendo as vozes do poder oficial e dasociedade civil organizada; isso para compreenderem melhor instância a relevância do direito àcomunicação, em que pese o seu sentido deformação cidadã pela capacidade dialógicapossibilitada pelo acesso à participação comosujeito; no caso, os jovens.

Entende-se que, ao se reconhecer e seapropriar dos conteúdos comunicacionaispresentes nas políticas públicas de comunicaçãopara a Aids, esses jovens seriam melhorespreparados para capturar as mensagens ereproduzir em suas vidas as noções alitransmitidas. Entretanto, crê-se na hipótese deque, apesar do volume de comunicação sobre otema, os jovens não estão atentos ao que acontecena cena atual da Aids, embora guardem noimaginário muitos dos estigmas (GOFFMAN,1975 )originais que marcaram os primeiros anos dadoença.

2 O que se fala e o que se faz sobre a Aids deagora

“Para viver melhor é preciso saber!” Faça o testede Aids, ensinava o governo brasileiro na campanhado dia 1º de dezembro de 2013, para, em seguida,anunciar a novidade sobre a ampliação da oferta detratamento com antirretrovirais, coquetel demedicamentos que impede a proliferação do vírusHIV, a todas as pessoas notificadas com ainfecção pelo mesmo, independentemente darelação com a contagem de células CD4. O avançona política pública de combate à epidemia de Aids,no Brasil, era celebrado junto com a data mundialde luta contra a doença, que se alonga por quasequatro décadas. Na ocasião, para comemorar ofato, no site do Ministério da Saúde (BRASIL,2013a), foram postados vídeos de honoráveisrepresentantes dos mais importantes órgãosligados à pesquisa e às políticas de prevenção ecombate ao HIV e à Aids no Brasil e no mundo,com mensagens que ressaltavam a importância dopioneirismo brasileiro em se manter à frente nabusca pelo controle da doença.

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Segundo o Ministério da Saúde (FOLHA DE S.PAULO, 2013b), 313 mil pessoas recebem asdrogas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) eoutras 100 mil devem se beneficiar da ampliaçãoem 2014. Ao todo, cerca, de 718 mil pessoas têmHIV no País. A iniciativa é parte do orçamento deR$ 1,3 bilhão do Ministério da Saúde destinadopara a Aids, em 2014. Em 2013, o orçamento foi deR$ 1,2 bilhão, sendo R$ 770 milhões para remédioscontra doenças sexualmente transmissíveis. OMinistério também anunciou que um teste quedetecta o vírus por meio de uma amostra de salivaseria vendido por R$ 8,00 nas farmácias a partir defevereiro de 2014.

Para o infectologista Artur Timermam (FOLHADE S. PAULO, 2013b): “O único problema daestratégia [...] é o possível uso irregular dessasdrogas, o que pode levar à resistência”. Estudosdemonstram que se uma pessoa tomar remédiosde forma irregular, pulando doses, por exemplo, elapode selecionar uma população mais resistente dovírus e ter problemas com o tratamento.

Para corroborar esse pensamento, têm-se osresultados do levantamento feito pelo Instituto deInfectologia Emílio Ribas, que apontam que 20%dos adolescentes com Aids acompanhados pelohospital abandonaram o tratamento em 2012.Como causas principais para a desistência de umem cada cinco dos jovens que deveriam seguir setratando estavam o preconceito com a doença e anegligência dos pais (FOLHA DE S. PAULO,2013a).

Na contrapartida das notícias oficiais sobre oavanço do programa brasileiro de combate ao HIV eà Aids, há as falas de renomados sujeitosparticipantes da história social da Aids no Brasil,entre os quais Mário Scheffer, presidente do Grupopela Vidda, organização não governamental (ONG)que teve papel relevante nas conquistas daspessoas vivendo com HIV e Aids no País nasdécadas de 1980 e de 1990. Para Scheffer (apudABIA, 2012), no momento em que se chega a 30anos de Aids, o tempo é de avaliar a posição doBrasil, tanto do Estado como da sociedade civilorganizada.

“Há, de fato, uma esperança cada vez maior sobrea possibilidade de encontrarmos a cura. Noentanto, o Brasil encontra-se parado em relação atais questões. O governo se omite de tratar aquestão como deveria ser com políticas maisincisivas.” [...] “De um lado, temos um governo quetem se omitido na questão da Aids, o que temimplicado, inclusive, em perda de competênciatécnica e de expertise de um país que já foireferência mundial no tratamento da doença. Do

outro lado, há uma diminuição do protagonismopolítico da sociedade civil. Não apenas as portasdo governo estão fechadas para nós. Faltatambém pessoal do lado de cá. E, muitas vezes,sem gente não conseguimos pleitear e começarprojetos. É uma crise de participação” [...](SCHEFFER apud ABIA, 2012, n.p.).

A reflexão acima foi feita em 2012, por ocasiãodas comemorações dos 25 anos da AssociaçãoBrasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA), tambémuma ONG/Aids decisiva nas lutas em favor dascausas ligadas à vida com HIV e Aids no Brasil. Aotempo em que o governo brasileiro noticiava, comoretrocitado, durante o Dia Mundial de Luta contra aAids de 2013, as mais recentes diretrizes dapolítica pública de combate ao HIV e à Aids, outravez, foi Mario Scheffer, em artigo publicado com oinfectologista Caio Rosenthal, no jornal Folha de S.Paulo (SCHEFFER; ROSENTHAL, 2013), quemtrouxe a voz da sociedade civil organizada emreflexão sobre as medidas anunciadas.

Naquele momento, a comunicação oficialnovamente se voltava para a ênfase na divulgaçãoem massa sobre a necessidade de se fazer o testepara detecção do vírus, mote da campanha do 1ºde dezembro de 2013, além da própriadeterminação de se pôr à disposição um teste defarmácia a preço acessível, como já referido nesteartigo. Sob o título “Aids no Brasil, oportunidadesperdidas”, o artigo alertava para o que os autoresconsideravam retrocessos do Brasil no combate àAids, mesmo diante de tantos avanços surgidos nocampo biomédico:

É bem possível que muitos de nós aindaestejamos vivos para assistir ao fim da epidemiada Aids.[...] Ganha força a ideia da cura funcionalda Aids. [...] Hoje, quem faz o teste, descobre quetem HIV e recebe o tratamento [...] assim como jáé possível o uso controlado de antirretroviraisantes ou depois do sexo sem proteção [...]. Secombinadas com a massificação do uso depreservativos, essas estratégias fariam cairdrasticamente o número de infectados e demortes. [...] Nos últimos anos, no entanto, o Brasilnão só perdeu essas oportunidades comoimprimiu retrocessos no seu outrora respeitávelprograma de combate à Aids (SCHEFFER;ROSENTHAL, 2013, n.p.).

O ponto central de tal ocorrência, de acordocom os especialistas, encontra-se com o objeto deestudo da pesquisa que origina este artigo, umavez que,

Por falta de campanhas adequadas, o uso depreservativos só diminui. Desde 2006, as taxas demortalidade voltam a crescer e, em algumasregiões, superam as da década de 1980. Trintamortes e cem novos casos são registrados todosos dias no país” (SCHEFFER; ROSENTHAL, 2013,n.p.).Comunicação a qual também deve ser pensada

em amplitude maior do que somente quanto a

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publicidade ou propaganda1 de massa dascampanhas, mas que deve estar presente nosambientes de contato com os usuários dosserviços de saúde, atuando em conjunto com aprestação de atendimento médico e farmacológicoou que seja parte dos planejamentos de açõesestratégicas, para chegar aos diversos públicos,conseguindo alcançar resultados mais eficazes,por exemplo, quanto à redução da subnotificaçãode portadores do vírus; até mesmo porque apropaganda em si não pode ser vista somentecomo força econômica, mas deve ser pensadacomo algo que ocasiona profundas implicaçõessociais e individuais, pois, como afirma RobertLeduc (1986, p. 373), a propaganda

É um fenômeno social no sentido de que agesobre o conjunto do grupo social e se integra nocontexto da vida cotidiana de cada um. Alémdesses efeitos econômicos e comerciais, apropaganda tem igualmente incidências de ordemsocial, portanto de ordem estética e moral. Ela seune às outras forças sociais das quais é, aomesmo tempo, o espelho e catalisador.

As campanhas publicitárias são uma parte dasestratégias de comunicação para prevenção do HIVque se juntam a outras tantas, como, por exemplo,a divulgação de notícias sobre a antecipação dotratamento com coquetel antirretroviral paraqualquer pessoa soropositiva, assim como asconvocações para a testagem rápida. Expor essasinformações na mídia, dar visibilidade aosassuntos, requer preparação de um círculo deatores que inclua desde o SUS, todo seuaparelhamento, gestores, profissionais,equipamentos e tudo que se fizer necessário paraque ele funcione, como outros setores, como aprópria imprensa, que é, em boa medida,despreparada para lidar com assuntos complexoscomo o HIV e a Aids.

A notícia que foi divulgada por ocasião do 1º dedezembro de 2013 pegou de surpresa gestoresestaduais e municipais, como foi possível constatarem participação como palestrante de um fórumpelo Dia Mundial de Luta Contra a Aids, emTeresina (PI), em 1º de dezembro de 2013, no qualparticipavam representantes de municípios dointerior do estado, assim como de ONGs Aids, bemcomo representantes da gestão estadual. Estesdisseram ter tomado conhecimento das medidas,anunciadas,pelo então ministro da SaúdeAlexandre Padilha por meio da imprensa, quandoeste anunciou as novidades durante cerimônia delançamento da campanha publicitária pelo 1º dedezembro, no Rio de Janeiro; ocasião mesma que

provocou, também, ponderações de Scheffer eRosenthal, cuja preocupação era o descompassoentre as medidas e as condições de efetividadepara executá-las. Diziam, na ocasião, que:

Recente diretriz nacional que antecipa o começodo tratamento da Aids prevê o deslocamento demilhares de novos pacientes para as unidadesbásicas de saúde, que não estão preparadas paraum atendimento que exige experiência eespecialização. A oferta antecipada demedicamentos depende também do diagnósticoprecoce. Infelizmente, as iniciativas de testagemdo HIV buscam holofotes, do Carnaval ao Rock inRio, mas deixam de identificar novos casos. Osmais atingidos pela epidemia seguem semacesso ao teste (SCHEFFER; ROSENTHAL, 2013,n.p.).

As críticas dos médicos ainda se voltaram aoprograma de produção de medicamentosgenéricos, uma das referências da política decombate à Aids que o Brasil apresentou ao mundo,e contestaram as análises oficiais sobre oscaminhos da epidemia de Aids, hoje concentrada eurbana, ao contrário do que se previa, e alertaramsobre o ressurgimento da doença (SCHEFFER;ROSENTHAL, 2013, n.p.).

Outras vozes também se fizeram ouvir naquelemomento em que, aparentemente, a Aids voltou àcena com uma visibilidade que lhe parecia haversido desfocada depois que perdeu força omovimento social dos anos 1980 e 1990. AAssociação Brasileira de Saúde Coletiva organizou- no VI Congresso Brasileiro de Ciências Sociais eHumanas em Saúde - uma mesa em que sediscutiu a quarta década de epidemia da Aids emque se abordou o esgotamento da ênfase nacamisinha como método de prevenção. Em matériapublicada no site da entidade, intitulada “‘O mantrada camisinha se esgotou’, avaliam especialistas”,Flaviano Quaresma (2013) aponta haverunanimidade de pensamento entre os debatedoresde que, como estratégia discursiva para prevenção,a camisinha não serve mais e há a necessidade deuma proposição de novas políticas públicasenvolvendo outras perspectivas estruturais cujaprevenção seja vista de modo amplo e quecontemple as práticas biomédicas ecomportamentais. Sobre a comunicação que se faza respeito do tema, a matéria de Quaresmadestaca a fala de Veriano de Souza Terto,professor, pesquisador da Aids, da UniversidadeFederal do Rio de Janeiro, e ativista da ABIA, quelembrou da campanha feita pelo governo federal em1995, considerada a mais ousada até hoje, em queum homem conversava com seu pênis, o “Bráulio”.2

O repórter destacou em determinado fragmento do

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texto que o pesquisador pontuou que:“Hoje não se fala mais em sexo como na épocado ‘Bráulio’, que nos orientava a olhar para opênis numa relação de diálogo. E as propagandasque tentam uma abordagem mais próxima desseobjetivo são vetadas, substituídas outransformadas em discursos moralistas.” [...]“Desde sempre as pessoas tomam decisões ecriam formas próprias de gerenciar o risco. E issovem acontecendo a partir do momento em que seinstaurou um ‘cansaço’ do discurso dopreservativo. [...]. (QUARESMA, 2013, n.p.).

A redundância praticada pela propaganda deAids, com o imperativo do slogan Use Camisinha,sendo reprisada ao longo de mais de três décadas,realmente parece ter-se amalgamado à noção deuma vida que segue sem Aids, com camisinha emdisponibilidade e sem atenção para a relação entreuma coisa e outra; algo que a pesquisa emcomunicação há tempos se ocupa em analisarsobre os efeitos do que é midiatizado, não de formalinear e pontual, mas em longo prazo. A hipótesedo agenda setting (SHAW, 1979), por exemplo,cabe para avaliar como, a despeito de 30 anos decampanha sobre Aids, nos tempos que correm, osjovens passaram quase que a ignorar esse tema.

Considerando que a audiência não é passivaaos meios e que há limites de poder dos últimossobre a primeira, vale trazer o agenda setting pararessaltar que existe mais a se considerar nasubjetividade da comunicação de Aids do quecampanhas. Em linhas gerais, o que a hipótese doagendamento demonstra é que a prática dos meiosde comunicação atua sobre a forma como aspessoas tomam conhecimento da realidade socialatravés do que é divulgado pelos media. O efeitonão é pontual, mas em longo prazo, como numprocesso, sendo o mais interessante que, aotempo em que a mídia influencia por suasespecificidades, a audiência por modosdiferenciados - o envolvimento daí surgido - ampliaa comunicação fora do circuito estrito à mídia, oque faz circular, com maior dinamismo, ainformação e a comunicação pelos mais diversoscampos de convivência entre as pessoas(HOHLFELDT, 1997).

Se já não se fala de Aids fora da sazonalidadedo carnaval, se não há mais notícias em destaqueque alimentem as discussões cotidianas entre oscírculos de referência social sobre a questão, se aescola e a família não se abrem ao diálogo sobre otema central e outros que lhes são transversais, senão há mais com o que se preocupar (pois o Brasildemonstra que tudo está controlado com seuprograma de combate à doença), se os espaços de

atendimento e prestação de serviços de saúdeseguem rotinas ordinárias quanto aosprocedimentos relativos à testagem, diagnóstico etratamento de soropositivos, se no imagináriosocial viver com Aids passou a ser algo que nãorepresenta consequências, como, então, interpelarsujeitos jovens, vivendo uma fase da vida marcadapor tantas transformações e interesses múltiplos, aincluírem em seu rol de interesses os cuidadoscom a prevenção para o sexo seguro tendo comomotivação não contrair o HIV nem adoecer de Aids?

A despeito da divulgação em massa sobre o usoda camisinha e sua distribuição gratuita, quando sechega aos números sobre seu uso, a realidade édiferente. Recente pesquisa demonstrou que 34%dos jovens entre 14 e 20 anos não usam opreservativo; e este número cresce nas meninas(FALCÃO, 2014).

Não se pretende pôr na comunicação,particularmente em uma ação de publicidade, aresponsabilidade por mudanças de atitudes tãosubjetivas e prenhes de valores como é aprevenção para a prática sexual, mas, sem dúvida,as formas e os meios de comunicação possuemrelevância significativa na organização dopensamento, na produção dos sentidos, naformação dos repertórios discursivos que podemlevar as pessoas a melhorarem suas condições decompreensão, convivência e negociação com assituações enfrentadas quanto aos riscos, nãoapenas em relação ao sexo, mas também, àsdrogas - claro que, nestas, incluindo componentesainda mais específicos de serem trabalhados emse tratando dos dependentes; daí porque éimportante incluir esses temas junto com ossujeitos e as comunidades na discussão sobreprevenção.

É isso que se quer refletir em ter acomunicação como direito humano na perspectivaadotada neste artigo, a qual busca contemplar assubjetividades contidas nessa relação ecompreende ser possível o fortalecimento dacidadania por meio da capacidade dialógicafomentada pelo acesso e pela participação nosdebates dos temas sociais, neles incluído o vivercom HIV e Aids.

O direito à comunicação - utilizando-se dopensamento de Jürgen Habermas (1997, p. 418),para quem “à medida que a comunicação serve aoentendimento [...] pode fazer possível a açãocomunicativa” - pode ser considerado como meiode fortalecer as relações dos indivíduos no espaço

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público, seja pela força argumentativa praticadaentre cidadãos, seja na relação destes com aesfera pública abstrata protagonizada pela mídia,como se pode exemplificar a partir da mobilizaçãopela causa dos direitos às pessoas vivendo comHIV/Aids.

É importante ressaltar que foi a mobilização queelevou a vida com HIV e Aids no Brasil ao patamarde qualidade que se viu ser referência mundial, masque demonstrou com o passar dos anos setransformar em arrefecimento, como já registradona fala de Mário Scheffer (ABIA, 2012). Situaçõesrecentes demonstram o contrário, como exemploda campanha de carnaval de 2012 que, depois depronta e aprovada, foi vetada pela presidente DilmaRousseff, por meio do Ministério da Saúde, quemandou retirar do seu site oficial o vídeo de umcasal de jovens gays em cena de beijo, sendoalertados sobre a necessidade de uso dacamisinha. Esta campanha, segundo a versãooficial, deveria se restringir à exibição em espaçosfechados frequentados por homossexuais. O queficou, afinal, para ser veiculado em rede nacional deTV aberta foi uma campanha baseada em númerose o reforço do conselho de que “Sem camisinhanão rola!”.

Assim, viu-se intervenções de esferasgovernamentais para além do campo dacomunicação, dissonantes dos discursosproeminentes nas falas dos representantes dasorganizações civis de luta contra a Aids, comopode ser visto em trechos retrocitados neste artigo,transformarem o curso do exercício do direito àcomunicação e, desse modo, bloquearem aexpressão, que poderia ampliar o debate acerca doque está em plano mais aprofundado na questão dainfecção pelo HIV na população de jovens gays.

Ao longo de mais de 30 anos, como citado, adespeito de todo o investimento que o País tenhafeito em distribuição de preservativos ou nadivulgação e disseminação do teste para odiagnóstico do HIV, são recorrentes os problemasenfrentados quanto ao uso da camisinha comoprática usual nas relações sexuais ou quanto àsubnotificação de pessoas portadoras do vírus.Estima-se que cerca de 718 mil habitantes do Paísvivam com HIV e Aids e, desses, 144 mil nãotenham sido diagnosticados (BRASIL, 2013b).Entre 2005 e 2011, foram mais de seis milhões detestes produzidos por laboratórios públicosnacionais, oferecidos pelo SUS, como parte deuma das mais significativas ações estratégicas

para ampliação da testagem do HIV para ampliaçãodo diagnóstico precoce em populações em maiorvulnerabilidade, a estratégia “Fique Sabendo“, queteve início em 2003 (BRASIL, 2012).

Em relação à distribuição de preservativos, noPaís, a população tem acesso gratuito aos mais de450 milhões de preservativos que são distribuídosao ano. Em 2008, a instalação de uma fábrica depreservativos masculinos em Xapuri, no Acre,garante a produção das camisinhas brasileiras,com produção de 100 milhões de unidades por ano,além de ser, o Brasil, “o maior compradorgovernamental de preservativos do mundo”(BRASIL, 2012, p. 2). Das milhões de camisinhasem circulação no território nacional, a grandemaioria é usada pela população jovem, pois há umaprevalência da Aids nessa faixa etária,particularmente entre os jovens homossexuais, oque levou o governo federal a explicitar sua atençãoespecífica ao segmento, como em trecho doboletim sobre ações estratégicas para Aids, de2012, que, sobre jovens gays, ressalta:

[...] Quando há uma comparação desse grupo comos jovens em geral, a chance de ter um jovem gayestar infectado pelo HIV é aproximadamente 13vezes maior. O governo federal vem investindo emplanos específicos para as populações emsituação de maior vulnerabilidade, como o Planode Enfrentamento da Epidemia de Aids e das DSTentre população de Gays, HSH e Travestis e emprojetos específicos para essa população(BRASIL, 2012, p. 2).

É relevante retomar o veto da presidente DilmaRousseff à campanha para o carnaval do mesmoano, 2012, voltada para jovens gays, pois que seidentifica a paradoxal postura das instituiçõesnacionais ao se detectar a relação de incidência deHIV em parte da população, a referência a planos eprojetos específicos para essa população e,paralelamente, ter uma ação no sentido contrário. Adicotomia presente nas políticas públicas para Aidsno que tange aos protocolos normativos, àsrecomendações discursivas e às práticas exercidaspontualmente, por meio das ações decisórias dagestão pública, há muito é tema de debate entre osque atuam nas diversas esferas que compõemesse campo.

3 Entre um lado e o outro, os que estão nocentro são jovens

Como dito, o Brasil ainda demonstra crescimen-to em infectados na juventude, mesmo com todasas campanhas. Para o ex-ministro AlexandrePadilha, o problema não é de falta de informação.

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Para ele,

[...] o crescimento da taxa de jovens gays,bissexuais masculinos e travestis infectados nopaís está ligado à falta de compromisso com aprevenção, e não à ausência de informação: maisde 80% desse grupo sabe que preservativo éimportante, mas só 50% usa na primeira relaçãosexual [com o companheiro] - e o índice cai aindamais quando eles partem para relaçõesduradouras (PADILHA apud QUEIROZ, 2012, n.p.).

Dilatando a visão sobre o assunto para umhorizonte que contemple a possibilidade de seentender as dificuldades de prevenção como algoalém do compromisso e da responsabilidadeindividual, como determina o ministro, a questãosobre os motivos dessa tendência à infecção entrejovens de todos os gêneros propala-se em tantasoutras que ensejam uma imediata associação coma comunicação presente nas políticas públicas, asquais reduzidas ao planejamento do modeloverticalizado da política de saúde nacional(OLIVEIRA, 2007), diminui sua capacidade comoagente de promoção da cidadania.

Para além da atual caracterização da Aids e desua relação com os jovens, as ações decomunicação promovidas pelo governo brasileiroparecem não ter avançado no diálogo com eles,numa linguagem que os impacte e os sensibilizede modo mais direto. Do mesmo modo que atrajetória da Aids percorreu caminhos diversos aolongo dos últimos 30 anos, tempo de suaexistência viva na história social, também astrajetórias juvenis foram se modificando no tempo enos espaços. Uma e outra não se definem por simesmas, ao contrário, são atravessadas por umadiversidade de situações, de contextos e deconceitos que lhes conferem representaçõesvariadas.

Historicamente, asseveram Levi e Schmitt(1996, p. 8-9):

[...] as sociedades sempre “construíram” ajuventude como um fato social intrinsecamenteinstável, irredutível à rigidez dos dadosdemográficos ou jurídicos [...] ou - melhor ainda –como uma realidade cultural carregada de umaimensidão de valores e de usos simbólicos, e nãosó como um fato social simples, analisável deimediato. [...]pertencer a determinada faixa etária –e à juventude de modo particular - representa paracada indivíduo uma condição provisória. Maisapropriadamente, os indivíduos não pertencem agrupos etários, eles os atravessam.A comunicação sobre Aids para os jovens,

nessas três décadas, por outro lado, demonstroucircunscrições que talvez possam ter geradoressonância aquém do desejado na adesão dosjovens às mensagens públicas de prevenção para oHIV e o viver em tempos de Aids, e, não obstante,

ter influenciado sobremaneira as representaçõessociais que as juventudes construíram acerca dovírus e da doença.

4 Conclusão

Ao retornar à cena midiática nesta segundadécada do século XXI, a Aids se faz outra vezvisível, mas o interesse agora é diferente do quelevou ao clamor social em tempos atrás. Não seimpressionam os jovens, nem mesmo os adultos,agora se movimentam os organismos públicos embusca do controle, principalmente dos custosfinanceiros e, claro, dos custos humanas que apandemia já demandou ao longo de suapermanência.

O Brasil, na visão da sociedade civil ativista naluta contra a doença, perdeu as oportunidadesconquistadas nos anos de 1990 quando saiu nafrente pela referência de questões cruciais aoenfrentamento do avanço do HIV, com ganhos nocampo dos medicamentos genéricos, dadistribuição gratuita de terapia antirretroviral, detestagens sorológicas e qualidade do sangueusado em bancos de transfusões; e retrocedeu nocampo social, com vetos a campanhas depublicidade, investimentos em repetidas fórmulasde comunicação verticalizada e centralizada,redução da participação dos movimentos sociais.

Na versão oficial, o País segue seu programa decombate à Aids na busca do cumprimento dasmetas para 2015 e investe em incentivo paratestagem rápida, início precoce do tratamentoantirretroviral, uso de preservativos e incremento dauniversalidade de distribuição do coquetel anti-HIV,como prega a cartilha da Unaids).3

Em meio a isso, está a população, em especialos jovens, que representam cerca de 51 milhões debrasileiros e que na epidemia de Aids aparecemcomo um segmento vulnerável, cujos índices deinfecção pelo HIV se manifestam prevalentes ecrescentes. Jovens que demonstramdistanciamento ampliado do tema Aids vez que nãoforam sensibilizados a agendarem tal assunto emseus cotidianos. O que daí virá em suas trajetóriasfuturas só o tempo irá concluir, vez que são essaspessoas que hoje, como os sujeitos da pesquisaora em construção encontram-se na faixa etáriados 17 aos 25 anos, que daqui a pouco tempoestarão no auge da vida produtiva.

O panorama atual da Aids no país faz emergirreflexões acerca de posturas entre a participaçãodo Estado e da sociedade civil organizada na

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condução de questões de interesse da população.Com o debate, ganham visibilidade, voltam àagenda e podem repercutir em ganhos sociais.Assim, relevante é olhar Comunicação como umdireito humano, garantido a sujeitos diversos e quedevam ser capazes de participar dos diálogossobre o que às suas vidas se refere

Notas:(1) Neste artigo, os termos publicidade e propaganda sãoconsiderados equivalentes, embora alguns autores admitamcontextualizações como a propaganda ter um emissorclaramente identificado enquanto na publicidade isso nemsempre acontece (PREDEBON et al., 2004) ou quando seobserva a diferenciação dos vocábulos (SANT´ANNA,2002).(2) cf. FOLHA DE S. PAULO, 1995.(3) cf. ONUSIDA, 2013.

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* Profa. Msc. e coordenadora dos Cursos dePublicidade e Propaganda e de Jornalismo doCentro Unificado de Teresina (Ceut) e doutorandaem Políticas Publicas pela Universidade Federal doPiauí (UFPI). [email protected].** Prof. Dr. do Departamento de Ciências Sociais edo Programa de Pós-Graduação em PolíticasPúblicas da Universidade Federal do Piauí (UFPI)[email protected].

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OS INTELECTUAIS DOS ANOS 1950 E OSRUMOS DA EDUCAÇÃO NO BRASILDiana Patricia Ferreira de Santana*

Na forma de uma dissertação, pretendemosexpor, neste trabalho, uma leitura acerca do temados intelectuais nos anos 50, do século XX, e arelação de suas ideias com os rumos da educaçãono Brasil. O fio condutor desta leitura é baseadonos resultados apresentados por Anísio Teixeira(1969a) em “Política, industrialização e educação”,por ocasião dos Encontros Regionais deEducadores Brasileiros, nos quais o autor ofereceuum sumário das pesquisas e análises do volume“O industrialismo e o homem industrial”.1 A teseque nos orienta afirma, grosso modo, que aestratégia condutora do processo deindustrialização2 nos diferentes países reflete o tipode elite que comanda a transformação e, por essarazão, assume diferentes aspectos em função daspeculiaridades de cada país. Adverte-nos Teixeira(1969a, p. 182) que

O processo de industrialização é terrivelmentedinâmico e, de certo modo, implacável eirreversível. Se a elite que o estiver comandandonão se revelar capaz, será muito provavelmentedestruída e substituída pela elite nova que se vierformando à sombra dos erros da primeira. Aliás,toda fase de transição é fase de luta entre o velhoe o novo [...].Surge então uma primeira pergunta: Qual o tipo

de elite à frente da industrialização no início dosanos 1950 no Brasil? Ainda: quais eram suasideias? Como essas ideias afetaram a educação?Sob os escombros de qual elite ela se ergueu?

“Escrever a história significa atribuir aos anos asua fisionomia” (BENJAMIN apud KONDER, 2000,p. 355). Ao evocar esta frase de Walter Benjamim,Leandro Konder (2000), em “História dosintelectuais nos anos cinqüenta”, procura revelar, apartir dos historiadores brasileiros, a fisionomiadaquela década, recuperando algumascaracterísticas do ambiente cultural brasileiro; econclui ser o fim da década uma fisionomia maisanimadora que seu início, pois havia poucaexpectativa em relação ao novo e o passadoteimava em se perpetuar.

Esboçaremos esse panorama num primeiromomento e, em seguida, investiremos na tentativade responder às questões acima colocadas.

No cenário internacional, o País assistia àsdisputas entre norte-americanos e soviéticos

(o que se costumou denominar “guerra-fria”) etambém às tensões internas desses países nasucessão de seus líderes; à frente da igrejacatólica, tínhamos um papa rígido e conservador(Papa Pio XII); além de crises e açõesrevolucionárias em Cuba, que em 1958 conseguiuse desvencilhar do imperialismo norte-americano econquistar sua independência. E o Brasil? Quaiseram as tensões internas que animavam o povobrasileiro?

De acordo com Konder (2000), no início dadécada de 1950, o Brasil possuía aindaaproximadamente 64% dos habitantes vivendo nocampo. Getúlio Vargas, que exercera o poderditatorialmente na década anterior, assumiudemocraticamente em 1950 o comando do País,mas viria a se suicidar em 1954 em meio a umaenorme crise nacional. Para piorar, a equipebrasileira de futebol, mesmo jogando em casa,perdera para o time do Uruguai e fora derrotada naCopa do Mundo. Apesar do quadro desolador,surgiu uma esperança com a eleição de JuscelinoKubitschek em 1955. Um projeto dedesenvolvimento prometia, entre outras coisas, tiraro Brasil de sua condição subdesenvolvida e colocá-lo no patamar de outras nações em plenodesenvolvimento. Uma linha de importantesintelectuais brasileiros se mobilizou para apoiá-lo e,entre as diversas linhas que propunham umainterpretação da história brasileira, surgiu a linhadesignada por nacional-desenvolvimentismo.Em 14 de julho de 1955, foi criado, sob o Ministérioda Educação e Cultura, o Instituto Superior deEstudos Brasileiros (ISEB), com o intuito depromover o projeto desenvolvimentista a partir deuma ideologia nacionalista identificada com osanseios das massas populares. Entre osintelectuais que compunham essa linha destaca-mos: Álvaro Vieira Pinto, Roland Corbisier, NelsonWerneck Sodré, Guerreiro Ramos, Hélio Jaguaribe,Cândido Mendes, entre outros. Cabe esclarecer,neste momento da história, as classes queestavam à frente desse processo. Entretanto, faz-se necessário apontar preliminarmente as orienta-ções teóricas que motivaram esses intelectuais esuas expectativas em relação à nação.

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Segundo Caio Navarro de Toledo (1997), oRegulamento Geral do ISEB privilegiava a pesquisae o trabalho teóricos. Para o presidente emexercício, Juscelino Kubitschek, era tarefa dainstituição “formar uma mentalidade, um espírito,uma atmosfera de inteligência para odesenvolvimento” (TOLEDO, 1997, p. 42). Num dosslogans isebianos do desenvolvimento, RolandCorbisier parafraseava Lenin nos seguintes termos:“Se é verdade, como já se disse, que não hámovimento revolucionário sem teoria do movimentorevolucionário, não haverá desenvolvimento sem aformulação prévia de uma ideologia dodesenvolvimento nacional” (TOLEDO, 1997, p. 46).

O sentido de ideologia para os isebianos (comexceção de Nelson Werneck Sodré) não tinhacaráter negativo, não significava falso pensamentoe nem algo vinculado ao discurso da classedominante. Para os isebianos, a ideologia dodesenvolvimento desempenharia um papel ativo natransformação da sociedade, pois seria ela a únicacapaz de unificar os interesses gerais da naçãoindependentemente da classe. Justifica-se anecessidade de forjar tal ideologia em razão daspróprias possibilidades contidas no atual processohistórico das nações subdesenvolvidas.

Segundo Vieira Pinto (apud TOLEDO, 1997, p.44-45), no interior dessas formações sociais, asideologias não estão superadas, pois “tudo ésubdesenvolvido no subdesenvolvimento”; cabe,assim, forjar novas ideologias. Isto porque odesenvolvimento nacional não ocorre casualmente.As condições materiais estavam dadas e aconsciência de que o destino da nação deveriapassar pelo desenvolvimento, segundo Vieira Pinto,não era imposta às massas, mas procedia delas.Diz Toledo (1997, p. 47):

As transformações ocorridas no interior daestrutura semicolonial (ou subdesenvolvida) - eque permitem a emergência da consciência crítica- não a conduzirão necessariamente ao estágiosuperior do desenvolvimento. Só a ideologia dodesenvolvimento permitirá que aquelas mudançasassumam a feição de processo (onde haja clarezae precisão das metas e fins visados), conduzindo,promovendo e incentivando um desenvolvimentonacional integrado, harmonioso e sem grandesdisparidades internas.Nesta situação, não poderia haver luta de

classes. A ideologia do desenvolvimento deveriarepresentar as diversas classes e, por essa razão,só poderia ter por conteúdo o nacionalismo. Estaé uma das razões para insuficiência, nos textosisebianos, de qualquer reflexão teórica acerca dasclasses sociais. A emergência de uma naçãoautônoma precedia, historicamente, a luta de

classes. Para Cândido Mendes (apud TOLEDO,1997, p. 149), trata-se de um “princípio de condutatática”. Neste ínterim, o nacionalismo não é só aapologia do amor à terra e respeito aos símbolosnacionais, é, antes, nas palavras de GuerreiroRamos (apud TOLEDO, 1997, p. 149), “[...] oprojeto de elevar uma comunidade à apropriaçãototal de si mesma, isto é, de torná-la o que afilosofia da existência chama ‘um ser para si’.”

De acordo com Caio Navarro de Toledo (1997),as orientações dos intelectuais isebianos possuemdificuldades teóricas das mais diversas, desde oecletismo às más interpretações de ideias que, aoserem transplantadas de suas fontes filosóficaspara o contexto da realidade brasileira, napretensão de alçar o patamar da crítica, revelaram-se mistificadoras e equivocadas.

Uma das teses mais difundidas que ficoucomprometida sustentava que o desenvolvimentoda nação subdesenvolvida só se realizaria após orompimento radical com a nação imperialista.

Assim, ao entender a luta de classes como umestágio posterior, uma etapa na qual a nação jáestaria liberta do imperialismo e em plenodesenvolvimento, não se aperceberam de que essedesenvolvimento industrial se faz pela vinculação ealiança da classe dominante dos paísesmetropolitanos com a burguesia industrial dospaíses subdesenvolvidos numa relação dedependência. Conforme esclarece Toledo (1997, p.179):

Particularmente, Vieira Pinto e R. Corbisierjulgavam que só haveria (efetivamente)desenvolvimento nacional caso este seprocessasse sem contradições (semdesequilíbrios regionais e sem agravamento dastensões sociais). Tais autores, na sua euforiadesenvolvimentista, pareciam desconhecer que odesenvolvimento capitalista – quer ele se verifiquena periferia ou nos “países centrais” – serásempre gerador de contradições, dedesigualdades e de disparidades regionais. [...][N]ão levaram na devida conta uma das “leis” docapitalismo periférico: a plena compatibilidadeentre dependência e desenvolvimento.Isto significa que desenvolvimento e

emancipação não caminham juntas e que osubdesenvolvimento, nas palavras de Theotonio dosSantos (apud TOLEDO, 1997, p. 182), “não é umestado atrasado e anterior ao capitalismo, masuma conseqüência dele e uma forma particular dedesenvolvimento; o capitalismo dependente.”

A classe hegemônica que conduzia o processode industrialização (ou desenvolvimento) no Paísera, portanto, a burguesia industrial que se atrelavaao capital estrangeiro. Segundo Toledo (1997, p.187), “A ideologia formulada pelo ISEB estaria,

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assim, marcada fundamentalmente por umainspiração intelectualista e de classe média.”

Em “Política, Industrialização e Educação”,Anísio Teixeira (1969a) expõe de modo resumidocinco tipos de elites que têm conduzido nosdiversos países a marcha da industrializaçãopromotora do desenvolvimento. São elas: a elitedinástica, a da classe média, a dos intelectuaisrevolucionários, a dos administradores coloniais e ados líderes nacionalistas. “A elite dinástica oferececontinuidade; a classe média, escolha individual;os intelectuais revolucionários, alta velocidade deindustrialização; e os líderes nacionais, aintegridade e o progresso da nação.” (TEIXEIRA,1969a, p. 193).

Segundo o educador, em nosso processo dedesenvolvimento ocorre uma mistura dessas elites.Possuímos o setor aristocrático, o setor liberaldemocrático de classe média e o gruponacionalista. Os isebianos dividem essas classesbasicamente em dois setores: o setor tradicional(parasitário), onde se abrigam a classe latifundiária,a burguesia mercantil e a classe média nãoprodutiva, juntamente com a parcela não produtivado proletariado; e o setor moderno (produtivo), queabriga a burguesia industrial, a classe médiaprodutiva e a parcela produtiva do proletariado. Dostrês grupos sugeridos por Anísio Teixeira, só osegundo tem uma doutrina (a liberal-democrática),mas, como a doutrina é aberta, a confusão e aobscuridade permeiam a relação entre seus líderes.Os demais são dominados por interesses esentimentos. Nas suas palavras:

Entre a difícil doutrina liberal e o emocionalismonem sempre lúcido do nacionalismo, opensamento político brasileiro se refugia emexpedientes intelectuais e conjurações deinteresses. Falta à cena nitidez e definição. Poristo mesmo, o desenvolvimento brasileiro se vemfazendo com uma carga de contradições tãogrande e resistências tão implacáveis ao seufuncionamento lógico que, se não receio a suaparada, receio a sua ruptura, devido ao jogo deprogressos e regressos que vem provando ealimentando sua grande confusão Ideológica(TEIXEIRA, 1969a, p. 194-195).

Embora, numa primeira visada, possa parecerlógico que nosso desenvolvimento estivesse maisatrelado à elite de classe média, Anísio Teixeiraconclui que a nossa classe média é reacionária,não tem a mentalidade típica dessa elite e, comoconsequência, nosso desenvolvimento está “muitomais sob a influência do espírito dinástico epaternalista, que herdamos do Estado Novo e agorarecebe a propulsão do combustível nacionalista[...]” (TEIXEIRA, 1969a, p. 196). Em “Os donos do

poder” (de 1958), Raimundo Faoro (apud KONDER,2000), ao procurar compreender a origem doconservadorismo brasileiro, afirma que nossaherança patrimonialista portuguesa adaptou-se tãoeficaz e perversamente às nossas condições quedemonstra enorme versatilidade em se perpetuar,seja no capitalismo ou no socialismo. Opatrimonialismo, segundo o autor (apud KONDER,2000), torna problemática a mobilização dasmassas que ou se submetem às liderançaspaternalistas ou caem nas armadilhas daburocracia que obstaculizam sua organização.

Em meio a tudo isto, a educação, que écondição essencial para a formação do cidadãoque vive sob os auspícios de uma democracialiberal, fica relegada a segundo plano. Ao invés decontribuir para dar luz à mentalidade atrasada daclasse média e promover a manutenção e coesãodo tecido social, tende a preservar os valorestradicionais, reservando às elites o acesso quedeveria ser estendido a todos. Nesse contexto, asuniversidades desempenham um papel quaseinexistente em relação à industrialização; e aostrabalhadores é destinada uma educação elementarmais identificada com um adestramento técnico.Voltando aos tipos de elites elencadas por Teixeira,analisemos que tipo de educação está associada acada uma delas:

A elite dinástica, visando acima de tudo, preservara tradição, oferece educação, apenas aos poucose, especialmente, a grupos seletos e destinadosa constituir a elite governante. A ênfase é emeducação humanística e na formação jurídica,com restritas facilidades para a educaçãocientífica [...]. O característico do comportamentoeducacional da classe média é a sua crença naeducação como instrumento fundamental dejustiça social e de mobilidade vertical, comenfraquecimento das fronteiras e divisões declasse. Das cinco elites, são a da classe média ea dos intelectuais revolucionários queefetivamente acreditam em educação. Ambasdistribuem a educação a todos. Ambasconsideram a educação essencial aodesenvolvimento econômico. Ambas ligam oprocesso educacional, as escolas e asuniversidades ao desenvolvimento industrial.Ambas fazem da educação o método de ascensãosocial. Já fizemos acaso algo disto? Nada, porcerto. Apenas falamos e cansamos de falar emtudo isto (TEIXEIRA, 1969a, p.197/202).Para o educador, permanecemos aristocráticos

e nacionalistas quanto à condução de nossapolítica educacional. Ela reproduz nossa elite, quenão é nova, mas continua a ser a velhareminiscência do aristocratismo apoiado no clamornacionalista gigante pela própria natureza.

A profecia é a da continuidade do ensinofavorecendo uns poucos e das “falsas campanhasde alfabetização para ‘dopar’ a consciência

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nacional cada vez mais incomodamente despertapara a sua tragédia educacional” (TEIXEIRA, 1969a,p. 203). Anísio adverte ainda que se quisermosempreender uma política educacional segundo osmoldes da elite de classe média, baseada numasociedade democrática, devemos insistir naeducação para todos e cada um, pois interessatransformar não apenas alguns homens, mastodos. “Todas as outras formas de sociedadeprecisam de alguma educação, mas só ademocracia precisa de educação para todos e namaior quantidade possível [...].” (TEIXEIRA, 1969b,p. 220). Para Teixeira, a relação entre educação edemocracia é intrínseca; pois só uma educaçãoconduzida intencionalmente e planejada para esseregime político e social é capaz de realizá-la. Aescola, em sua origem, é uma instituiçãoconservadora e destinada a poucos, ela nãonasceu com a democracia; sempre foi um privilégiopara poucos, aqueles que tinham posses. “Ademocracia, assim, não é algo especial que seacrescenta à vida, mas um modo próprio de viverque a escola lhe vai ensinar.” (TEIXEIRA,1969b, p.215).

Iniciamos este trabalho evocando WalterBenjamim, procurando expor de modo muitofragmentário as principais ideias que animaram osintelectuais dos anos 1950 num momento muitopeculiar de nossa história. Vimos que nem sempreo ideário filosófico caminha a par das mudançasreais que se processam no bojo da sociedade, masque afetam significativamente nossas instituições.Mostramos, neste trabalho, como essedescompasso pôde ser percebido na esferaeducacional; estender tais análises a outrasesferas da vida pública é algo que escapa ao nossoobjetivo. Gostaria de concluí-lo evocando Benjaminmais uma vez para que suas palavras permaneçamecoando em nossas consciências e maispreparados para os perigos vindouros:

Articular historicamente o passado não significaconhecê-lo “como ele de fato foi”. Significaapropriar-se de uma reminiscência, tal como elarelampeja no momento de um perigo. [...] O perigoameaça tanto a existência da tradição como osque a recebem. Para ambos o perigo é o mesmo:entregar-se às classes dominantes, como seuinstrumento. [...] O dom de despertar no passadoas centelhas da esperança é privilégio exclusivodo historiador convencido de que também osmortos não estarão em segurança se o inimigovencer. E esse inimigo não tem cessado devencer (BENJAMIN, 1994, p. 224-225)

Notas:(1) Anísio Teixeira (1969a) destaca a importância dos estudosconduzidos pelos economistas Clark Kerr, John T. Dunlop,Frederick Harbinson e Charles A. Myers do Inter UniversityStudy of Labor Problems in Economic Development. Estefoi o último volume publicado (até a sua época) entre 12livros e dezenas de trabalhos científicos.(2) Embora haja uma diferença entre industrialização edesenvolvimento, não a exploramos neste trabalho. Ao falarem industrialização, entendemos todo conjunto complexo deestruturas que ela mobiliza numa sociedade e quechamamos de desenvolvimento.

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* Docente do Instituto Federal de Tecnologia de SãoPaulo, Campus de Bragança Paulista (SP).Doutoranda em Educação pela Unicamp/SP.

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1 Introdução

Em 1975, Foucault (1998) publicou sua primeiraobra da fase genealógica de suas pesquisas; faseem que se afastou das preocupaçõesepistemológicas que permearam suas obrasarqueológicas dos anos de 1960 e passou a terpreocupações políticas. A obra em questão é“Vigiar e punir”. Dentre as diversas questões queesta obra nos traz, uma merece destaque; são osdispositivos disciplinares e seu poder de produzirsubjetividades que favorecem o modelo desociedade capitalista dominante. Segundo opensador francês, a sociedade disciplinar pode serdefinida como um tipo de sociedade que secaracteriza por um tipo específico de poder sobre oindivíduo; poder que funciona e se exerce em rede.Em suas malhas, os indivíduos não só circulam,mas estão na posição de exercer este poder esofrer sua ação; os indivíduos são constituídos pordispositivos disciplinares que surgiram na segundametade do século XVII e foram se prorrogando atéos dias atuais.

O objetivo do presente artigo é apresentar comoatuam esses dispositivos disciplinares sobre osindivíduos conforme as análises de Foucault ecomo, ao longo dos últimos séculos, as disciplinasse normatizaram aumentando, assim, o seu poderde disseminação no conjunto das sociedadesmodernas.

2 A Modernidade e o poder disciplinar

Em “Vigiar e Punir”, Foucault (1998) fazreferências às sociedades modernas como sendosociedades marcadas pelo momento histórico dasdisciplinas; é o momento em que nasce uma artedo corpo humano, que visa não unicamente aoaumento de suas habilidades, tampouco aprofundarsua sujeição, mas visa à formação de um indivíduoque, quanto mais se torna economicamente útil,mais se torna obediente. Com as disciplinas,forma-se uma política de coerções; sãoefetivamente um trabalho sobre o corpo, umamanipulação calculada de seus elementos, gestos

de seu comportamento. O corpo humano entra emuma maquinaria de poder que o esquadrinha, odesarticula e o recompõe. Nasce um modoespecífico de domínio sobre o corpo dos outrosque, de certo modo, visa a alma e o controle damente - é o que caracteriza o momento históricodas disciplinas.

A disciplina fabrica assim corpos submissosexercitados, corpos “dóceis”. A disciplina aumentaas forças do corpo (em termos de utilidade) ediminui estas mesmas forças (em termospolíticos de obediência). Em uma palavra: eladissocia o poder do corpo; faz dele por um ladouma “aptidão”, uma “capacidade” que ela procuraaumentar; e inverte por outro lado a energia, apotência que poderia resultar disso, e faz delauma relação de sujeição estrita. Se a exploraçãoeconômica separa a força e o produto do trabalho,digamos que a coerção disciplinar estabelece nocorpo o elo coercitivo entre uma aptidãoaumentada e uma dominação acentuada(FOUCAULT, 1998, p. 119).Uma característica dos métodos disciplinares é

a atenção minuciosa ao detalhe: “disciplina é umaanatomia política do detalhe” (FOUCAULT, 1998, p.120); foi o que quis dizer Foucault na obra de 1975,na qual encontramos caracterizadas todas asminúcias de detalhes presentes nos procedimentosdisciplinares e que fazem parte de instituiçõescomo quartéis, escolas, fábricas e hospitais.Ressalte-se que esses procedimentos disciplinaresatendem a interesses capitalistas, estendendo-sedo interior destas instituições para toda asociedade, ao fazerem crescer a docilidade e autilidade em todos os espaços da sociedade,conforme a obra famosa se encarregou de mostrar.Foucault apresenta três mecanismos principais deatuação dos dispositivos disciplinares presentesnas instituições aqui citadas, encarregadas dosprocessos disciplinares. Esses mecanismos são: avigilância hierárquica e permanente, a sançãonormalizadora e o exame. Como cada um dessesmecanismos atua é o que encontramos no capitulode “Vigiar e punir” dedicado à disciplina e quepasso a resumir brevemente.

Começamos com a vigilância hierarquizada.Esta, segundo Foucault (1998), é contínua efuncional, supõe um dispositivo que induz efeitos

OS DISPOSITIVOS DISCIPLINARES E ANORMALIZAÇÃO DAS SOCIEDADESMODERNAS SEGUNDO MICHEL FOUCAULTRosilene Maria Alves Pereira*

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de poder pelo uso do olhar que funciona como meiode vigilância e coerção. A perfeição de tal aparelhodisciplinar permite, através de um único olhar, tudover em conjunto e permanentemente. Com talaparelho, o poder disciplinar torna-se um sistemaintegrado de tal modo que o indivíduo não consegueescapar de seus efeitos. Nesta rede integrada devigilância, todos os indivíduos são vigiados;independente da função exercida, cada indivíduoisoladamente ou em grupo é vigiado e vigilante;todos, indistintamente, sofrem efeitos de poder eexerce poder sobre os outros. Todos estãoigualmente sujeitos à vigilância e ao controledisciplinar.

Quanto à sanção normalizadora, é o segundoinstrumento e é descrito por Foucault (1998) comosendo uma penalidade perpétua que atravessatodos os pontos e controla todos os instantes davida nas instituições disciplinares, seja um quartel,uma escola, um hospital, uma fábrica ou sejaqualquer outra instituição; não visa uma expiaçãonem mesmo a repressão, visa estabelecer umanorma, um padrão de normalidade que funcionacomo princípio de coerção, e produz a penalidadeda norma, que tem o poder de estabelecer umafronteira entre o normal ou anormal. Ficaestabelecido com a normalização que osindivíduos, apesar das diferenças individuais,tendem à homogeneidade. Nesta perspectiva, odiferente é visto como sendo o anormal, o fora dolugar ou o sem lugar na sociedade; este é o casodas minorias.

O último instrumento disciplinar descrito porFoucault (1998) é o exame. Este combina astécnicas da hierarquia que vigia e a sanção quenormaliza; é ao mesmo tempo um controlenormalizante e uma vigilância que permitequalificar, classificar e punir. É através do exameque o indivíduo é visualizado e classificado, sejaem uma escola, hospital ou outras instituições; éatravés dele que se produz um saber sobre osindivíduos e se exerce um poder invisível sobreestes mesmos indivíduos. O exame, juntamentecom suas técnicas documentárias, transformaaquilo que seria um privilégio ser observado emsuas características individuais em um meio decontrole e um método de dominação. Isso se dáatravés do poder que o especialista tem declassificar, padronizar, tachar, corrigir, retificar ecombater aquilo que discrepa e é consideradodesviante. Enfim, o exame, com suas transcrições,funciona como um processo de objetivação e

sujeição e fixa de modo ritual e científicoindividualidades que, nesse caso, não significamuma exaltação de traços pessoais e sim afabricação de individualidades normalizadas a partirda combinação de traços, aptidões e capacidadesdemonstradas; e que passam a significar a verdadeproduzida para aquele indivíduo. No curso de 1974no Collège de France, no livro ontitulado “Osanormais” (FOUCAULT, 2002), encontramos maisanálises sobre o poder de verdade e de controleque tem o exame.

Com a caracterização destes dispositivosdisciplinares, que atuam em conjunto sobre osindivíduos com o objetivo explícito de contermultiplicidades e tornar os indivíduos o maispadronizado, dócil e útil possível, Foucault (1998)argumenta que visa diagnosticar um acontecimentohistórico, que é a formação da sociedadedisciplinar que atende a uma conjuntura históricabem conhecida: o começo do século XVIII, com agrande explosão demográfica e os problemas queesta acarreta com o aumento da populaçãoflutuante. Um dos objetivos da disciplina é fixar econter diferenças. Vale ressaltar que grupos maishomogêneos são mais fáceis de controlar edominar.

3 A normalização das disciplinas nassociedades atuais

Apoiando-se em Foucault principalmente a partirda obra “Vigiar e punir”, François Ewald (1993), em“Foucault: a norma e o direito”, apresenta umaimportante articulação entre o dispositivo da normae a ordenação jurídica das sociedades modernas.É a norma, no sentido de normal, que, ao lado dalei, é responsável pela disciplina no conjunto dapopulação. Aqui, a norma é apresentada como umdispositivo de saber e poder que regula, ordena eadministra a vida da população em espaços maisamplos que os espaços institucionais e reclusosdas disciplinas. Em relação a esta articulaçãodisciplina e norma, Ewald considera as disciplinascomo o primeiro conjunto de práticas da norma, nosentido moderno do termo, como foi descrito naobra de 1975, que no decorrer dos séculos XVII eXVIII se difundiram pelo conjunto do corpo social.

Segundo Ewald (1993), a primeira forma dedifusão da norma se deu quando a função dasdisciplinas foi invertida. Esperava-se antes que elasneutralizassem perigos, que fixassem populaçõesinúteis ou agitadas, que evitassem osinconvenientes das aglomerações.

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Pensa-se, então, que as disciplinas desempenhamum papel positivo no sentido de fazer crescer autilidade dos indivíduos. A inversão se deu com apassagem das disciplinas como bloqueiointeiramente voltadas para funções negativas, istoé, deter o mal, romper comunicações, para asdisciplinas como mecanismo - estas sendocapazes de produzir as demandas positivas dasociedade.

A segunda modalidade de inversão do papel dasdisciplinas, Ewald (1993) a denominou como sendouma redução ou estabilização dos termos de seusmecanismos; este fenômeno é explicado comosendo um processo que se foi desencadeando àmedida que os estabelecimentos disciplinares semultiplicaram e os mecanismos disciplinaresutilizados nesses espaços institucionais passarama ter certa tendência a se desinstitucionalizarem ea saírem das fortalezas fechadas onde funcionavampara circularem em estado livre por toda asociedade. O poder está em toda parte. Estaconhecida afirmação de Foucault, segundo Ewald,quer dizer que a sociedade disciplinar não é umasociedade do enclausuramento generalizado; é, aocontrário, uma sociedade das disciplinas em todaparte.

Quanto à normatização, a terceira modalidadede difusão é considerada a mais importante navisão de Ewald (1993), isto porque, como foi dito, éa difusão do normativo que possibilita as duasmodalidades anteriores. Como ele afirma:

A norma ou normativo é ao mesmo tempo aquiloque permite a transformação da disciplinabloqueio em disciplina mecanismo, a matriz quetransforma o negativo em positivo, e vaipossibilitar a generalização disciplinar comoaquilo que se intitui em virtude dessatransformação. A norma é precisamente aquilopelo qual e mediante o qual a sociedadecomunica consigo própria a partir do momento emque se torna disciplinar. A norma articula asinstituições disciplinares de produção de saber,de riqueza, de finanças, homogeneíza o espaçosocial, se é que não o unifica (EWALD, 1993, p.83).

4 Conclusão

Conforme o exposto, há umacomplementaridade entre a norma e as disciplinas.Estas, à medida que se disseminaram nasociedade, tornaram-se normativas. Este foi odiagnostico feito por Foucault e complementado porEwald. O importante acontecimento damodernidade foi sem dúvida a normatização dasdisciplinas, um fenômeno que vem tomando contade todo o espaço social e das instituições, antes

tidas como disciplinares. Escolas, exército,fábricas e hospitais tornaram-se redundantes. Oque ocorre é que, além das instituições quetradicionalmente são disciplinares, têm-se outrosespaços que se utilizam dos mesmos mecanismoscaracterizados em “Vigiar e punir”, como avigilância e a normalização - o que se pode dizer domodo de vida, em modernos condomínios, sejamde luxo ou populares? O que dizer da busca poruma verdade científica sobre si mesmo e umaetiqueta de normal? Finalmente, o que dizer davalorização da dimensão produtiva, como a únicarelevante, em detrimento de outras dimensões davida? Os dispositivos disciplinares produzemindivíduos produtivos e maleáveis, conforme asnecessidades das modernas sociedades.

O que Foucault apontou como uma espécie decontradição da modernidade é que esta, ao tempoem que defendeu as liberdades, inventou asdisciplinas, com suas técnicas de produção deindividualidades maleáveis e fáceis de dominar. Aocontrário do que o ideal das luzes sempre pregou(a liberdade e os laços contratuais), os modernoscriaram os laços disciplinares

ReferênciasFOUCAULT, M. Vigiar e punir. 18. ed. Petrópolis: Vozes,1998.FOUCAULT, M. Os anormais: curso no Collège de France.São Paulo: Martins Fontes, 2002.EWALD, F. Foucault: a norma e o direito. Lisboa: Veja, 1993.

* Professora do Departamento de Filosofia da UFPI,Doutora em Filosofia pela Universidade Federal deMinas Gerais.

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