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1 MARIANA LINHARES PEREIRA RESENDE RAPENSANDO DISCURSIVAMENTE O IMAGINÁRIO SOBRE A RESISTÊNCIA EM A MARCHA FÚNEBRE PROSSEGUE UFF Instituto de Letras 2012
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INSTITUTO DE LETRAS - Universidade Federal Fluminense

Mar 25, 2023

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Khang Minh
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Page 1: INSTITUTO DE LETRAS - Universidade Federal Fluminense

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MARIANA LINHARES PEREIRA RESENDE

RAPENSANDO DISCURSIVAMENTE O IMAGINÁRIO SOBRE A

RESISTÊNCIA EM A MARCHA FÚNEBRE PROSSEGUE

UFF

Instituto de Letras

2012

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MARIANA LINHARES PEREIRA RESENDE

RAPENSANDO DISCURSIVAMENTE O IMAGINÁRIO SOBRE A

RESISTÊNCIA EM A MARCHA FÚNEBRE PROSSEGUE

Dissertação de Mestrado, apresentada ao

Curso de Estudos da Linguagem da

Universidade Federal Fluminense, como

requisito parcial para a obtenção do título

de Mestra.

Orientadora: Profa. Dra. Bethania Sampaio

Corrêa Mariani

Linha de Pesquisa: Teorias do texto, do discurso e da interação.

2012

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MARIANA LINHARES PEREIRA RESENDE

Rapensando discursivamente o imaginário sobre a resistência em

A Marcha Fúnebre Prossegue

Dissertação apresentada ao Curso de Estudos

da Linguagem do Instituto de Letras da

Universidade Federal Fluminense, como

requisito parcial para obtenção do título de

Mestra em Letras. Área de concentração:

Estudos de Linguagem.

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________________

Profa. Dra. Bethania Sampaio Corrêa Mariani – Orientadora (UFF)

___________________________________________________________

Profa. Dra. AngelaBaalbaki (UERJ)

___________________________________________________________

Profa. Dra. Vanise Medeiros (UFF)

Suplentes:

___________________________________________________________

Profa. Dra. Lúcia Ferreira (UNIRIO)

___________________________________________________________

Prof. Dr. Maurício Beck (UFF)

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4

À minha mais que amada mamãe, Carmen Regina; ao meu mais

que amado papai, Marco Antonio; ao meu mais que amado

maninho, Marcelo Resende; à minha preciosa vovó Flora

Fernandes; a um companheiro de longa caminhada, André Lee e

a todas e todos que, direta ou indiretamente, emanaram boas

vibrações para que este dia especial fosse finalmente alcançado.

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Para aquelas pessoas que conquistaram tantas coisas maravilhosas como eu conquistei,

não há a mínima possibilidade de não agradecer àqueles que participaram dos

momentos vitoriosos e dolorosos, também, se se pretender não incorrer no erro da

ingratidão. Por isso, existem muitos agradecimentos a serem feitos. Tantas são essas

figuras especiais merecedoras de minha lembrança, que é justificável um eventual

esquecimento não proposital.

Agradeço, primeiramente, àquela força que nos move, nos faz sentir que a vida vale a

pena, que faz o sol aquecer nossas manhãs, por vezes frias; que faz a lua pratear o nosso

céu providencialmente apagado, para que as estrelas possam brilhar; que nos dá a beleza

das montanhas e o frescor das águas de rios e mares. Essa força superior – só pode ser

superior, porque até mesmo nós, seres que se julgam a forma mais inteligente de que se

tem conhecimento comprovável, não somos capazes sequer de imaginar a

potencialidade dela – que permite que tenhamos uma capacidade tão grande de amar, o

mais sublime dos sentimentos.

Em segundo lugar, agradeço aos responsáveis diretos não só por me permitirem residir

neste mundo, como também por me ensinarem todos os valores com os quais, hoje,

procuro viver minha vida. Foram essas duas magníficas figuras, essenciais em todos os

possíveis sentidos do termo, que me deixam como exemplo a necessidade de amar,

acima de tudo, e de sempre buscar fazer o melhor para ajudar sempre, seja quem for ou

em que situação estiver. Essas duas exemplares figuras, ensinaram-me – e continuam a

ensinar, dia após dia – tantas coisas, que é impossível descreveraqui, ou em qualquer

outro lugar, todo o sentimento de gratidão e amor que lhes devoto. Assim,

reconhecendo que é praticamente impossível não ser clichê nem piegas nessa hora,

agradeço aos meus mais que amados papai e mamãe, pessoinhas que tanto admiro, em

primeiro lugar.

Em terceiro lugar, agradeço aos auxílios diretos e indiretos de meu mais que amado

maninho, Marcelo Resende, mais conhecido como Xelo, que, mesmo distante

fisicamente a maior parte do tempo, fornece-me incessantemente muitos ensinamentos e

um suporte emocional inestimável; ao meu querido companheiro que, comigo,

percorreu um longo caminho, compartilhando alegrias e dores, celebrando o nosso

amado Vasco, a nossa indignação com a sociedade tal como está constituída, os nossos

momentos de rap, e construindo as pontes que nos levarão a uma sociedade socialista,

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mas de quem o tempo, esse senhor de nossas vidas e de nossa história, acabou me

afastando, André Lee; à minha mais do que querida e admirada orientadora que soube,

com seu tato, paciência e muito, mas muito conhecimento, carinho e sabedoria, permitir

que esse momento, tão ansiosamente aguardado, pudesse finalmente se concretizar, a

agora designada “minha professora”, com esse pronome possessivo constituindo parte

obrigatória da expressão, Bethania Mariani; à minha muitíssimo amada vovó, a quem

muito admiro pele exemplo de dedicação, força e coragem que representa, e com quem

tenho algumas boas diferenças conceptuais, Flora Fernandes; à minha amadíssima

madrinha, Luiza Maria, que deu um suporte todo especial e com ímpar dedicação nos

momentos mais delicados; enfim, a toda a minha família e amigos que, juntos,

formaram um gigantesco envoltório de bons pensamentos e energia positiva para que eu

pudesse, hoje, colher os frutos dessa árvore plantada há tantos anos.

Por fim, agradeço por todas as dificuldades que me encontraram – e ainda encontram –

em momentos felizes, pois elas me ensinaram – e continuam a ensinar – que não se

passa por essa vida incólume e que sempre, sempre, por mais que não sejamos capazes

de compreender isso num primeiro momento, podemos aprender e, assim, sair mais

preparados para enfrentar a próxima queda. Não nos esquecendo nunca de que jamais

estamos sós e de que todos os momentos por que passamos são merecedores de

agradecimento.

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SUMÁRIO

1. SOB O EFEITO DE INTRODUÇÃO .............................................................11

1.1 Por que o rap, o grupo facção central e a análise de discurso de escola francesa?

Ensaiando uma explicação ..............................................................................................12

1.1.1 O que no rap? Delimitando o tema ....................................................................18

1.1.2 Vale a pena trabalhar com o rap? Um efeito de justificativa .............................19

1.1.3 Por que a análise de discurso? “Escolhendo” uma teoria ...................................24

1.1.4 Como trabalhar com música: as especificidades e os procedimentos de ajuste do

material ...........................................................................................................................28

1.2 Sobre o caminho a ser trilhado ...........................................................................32

1.2.1 Da definição do tema e da teoria às hipóteses de pesquisa ................................34

1.2.2 Novas hipóteses surgem pelo caminho ...............................................................35

1.2.3 Discutindo os antigos e os novos objetivos ........................................................37

2 QUADRO TEÓRICO-METODOLÓGICO DE REFERÊNCIA ..............43

2.1 A análise de discurso “de linha francesa”: história, sentido e linguagem na

história dos estudos da linguagem ..................................................................................43

2.2 Noções teóricas mobilizadas ..............................................................................50

2.2.1 Sujeito, sentido e ideologia: das formações discursivas ....................................50

2.2.2 Das formações imaginárias e das condições de produção .................................60

2.2.3 Dos gestos de interpretação ................................................................................65

2.2.4 Do silêncio e do silenciamento ...........................................................................67

2.3 Discutindo a resistência na/para a teoria do discurso .........................................70

2.4 Dispositivo analítico e os procedimentos de dessuperficialização ....................77

3 AS ANÁLISES: O RAP E AS MARCAS DE RESISTÊNCIA ....................79

3.1 “Eu tô fazendo o que o sistema quer”: formações imaginárias, discursivas e

posições-sujeito ..............................................................................................................90

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3.2 Língua fluida e língua imaginária: a construção da resistência à língua, na

língua.............................................................................................................................100

3.2.1 A negação .........................................................................................................102

3.2.2 A adversativa ....................................................................................................110

3.2.3 A condicional ....................................................................................................116

3.2.4 A causal ............................................................................................................119

3.3 Considerações finais sobre as análises .............................................................122

3.3.1 Ameaça .............................................................................................................129

3.3.2 Causa .................................................................................................................130

3.3.3 Tempo ...............................................................................................................131

4 SOB O EFEITO DE CONCLUSÃO: CONSIDERAÇÕES FINAIS E

PROVISÓRIAS ..........................................................................................................134

5 BIBLIOGRAFIA ............................................................................................138

6 ANEXOS ..........................................................................................................142

6.1 As letras das músicas do álbum A Marcha Fúnebre Prossegue (Facção Central,

2001) utilizadas na pesquisa .........................................................................................142

6.1.1 Dia comum (L2) ................................................................................................142

6.1.2 A guerra não vai acabar (L3) ............................................................................143

6.1.3 A marcha fúnebre prossegue (L4) ....................................................................143

6.1.4 Aqui são teus cães (L5) .....................................................................................144

6.1.5 Desculpa, mãe (L6) ...........................................................................................145

6.1.6 Sei que os porcos querem meu caixão (L7) ......................................................146

6.1.7 O show começa agora (L8) ...............................................................................147

6.1.8 Tensão (L9) .......................................................................................................147

6.1.9 De encontro com a morte (L10) ........................................................................148

6.1.10 Eu tô fazendo o que o sistema quer (L11) ........................................................149

6.1.11 Discurso ou revólver (L12) ...............................................................................150

6.1.12 Sem luz no fim do túnel (L13) ..........................................................................151

6.1.13 Apologia ao crime (L14) ...................................................................................152

6.1.14 Justiça com as próprias mãos (L15) ..................................................................153

6.1.15 A paz tá morta (L16) .........................................................................................154

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RESUMO

A presente pesquisa, que se filia ao escopo teórico da Análise de Discurso da escola

francesa, objetiva analisar o funcionamento do rap underground, a partir de um corpus

constituído por letras de músicas do álbum A marcha fúnebre prossegue, produzido no

ano de 2001, pelo grupo paulista de rap Facção Central, com base nas noções de língua

imaginária e língua fluida (Orlandi, 2002) e de ordem e organização da língua (Orlandi,

1996). Partimos do conceito de resistência proposto por Pêcheux (1980). A hipótese que

norteou as análises foi a de que esse sujeito enunciador, o rapper, resiste ao sentido de

língua, tal como a gramática procura estabelecer; de trabalho, tal como a formação

ideológica capitalista busca sedimentar e de movimento musical, tal como a mídia tenta

cristalizar. As pistas com as quais trabalhamos o material foram as formas que,

gramatical e linguisticamente, marcam os efeitos de causa, adversidade, condição e

negação, chamadas de conjunções coordenativas ou subordinativas e de advérbios.

Passamos, ainda, por uma breve análise das denominações, a fim de que pudéssemos ter

acesso aos sentidos sobre o outro representado no discurso do rap underground do

grupo Facção Central. A análise permitiu que verificássemos a existência de duas

matrizes de sentidos, ou formações discursivas, em relação de oposição: a da barbárie e

a questionadora. Permitiu também verificar que o sujeito-rapper, embora no fio

discursivo se signifique de modo oposto aos sentidos historicamente sustentados como

“oficiais”, devido à interpelação ideológica e ao funcionamento do inconsciente, se cole

aos sentidos da FD da barbárie, contra a qual deveria se opor. Assim, embora resista a

alguns sentidos da FD da barbárie, o discurso do rap underground produzido pelo

Facção Central não é capaz de romper com a formação ideológica que domina seus

processos de identificação: a ideologia capitalista, na sua realização neoliberal.

Palavras-chave: Análise de Discurso; resistência; imaginário; hip hop; resistência à

língua; língua fluida; língua imaginária.

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ABSTRACT

This research, under the scope of the french school of Discourse Analysis, aims to

analyze the underground rap operation, based on a corpus constituted by song lyrics

from the album A marchafúnebreprossegue, released in 2001, by a rap crew from São

Paulo called Facção Central, with the theoretical contribution of some concepts

proposed by Orlandi: imaginary language and fluid language (2009),and language order

and language organization (1996). The concept of resistance, proposed by Pêcheux

(1980), is the point from where we have started our studies. Our analysis were guided

by the hypothesis that the enunciator-subject, the rapper, resists to the meaning of

language, such as grammar establishes; of work, such as the capitalist ideological

formation tries to determine; and, finally, of musical movement, such as media tries to

dictate. Our clues were the forms that, linguistically and grammatically, show the

effects of cause, adversity, condition and denial, known as coordinative and

subordinating conjunctions and adverbs.We went through a quick analysis of some

designations, in order to access the built meanings about the other one, described on the

underground rap produced by Facção Central crew. The analysis allowed to verify the

existence of two patterns of meanings, also called discursive formation, which

maintains a conflicted relationship between them: barbarism and questioning discursive

formations. The analysis also allowed to see that the rapper-subject, although from

inside of the discursive line, means himself conflicting to the historically sustained as

“official” meanings, due to the ideological interpellation and to the unconscious

operation, sticks himself to the meanings originated from the barbarism formation,

against what he should stand. Thus, although resists to some meanings of the barbarism

formation, the underground rap speeches we have analyzed, produced by Facção

Central, are not able to disrupt with the ideological formation, which rules their

identification processes: the capitalism ideology, under the neoliberalism way.

Key-words: Discourse Analysis; Resistance; Imaginary; hip hop; Resistance to

language; Fluid language; Imaginary language.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 ………………………………………………………………………p. 49

Figura 2 ............................................................................................................p. 50

Figura 3 ............................................................................................................p. 64/65

Figura 4 ............................................................................................................p. 96

Figura 5 ............................................................................................................p. 126

Figura 6 ............................................................................................................p. 127/128

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1. SOB O EFEITO DE INTRODUÇÃO

Essa mediação, que é o discurso, torna possível tanto a permanência e a continuidade quanto o

deslocamento e a transformação do homem e da realidade em que vive.

(Orlandi, 2003)

Não caia na armadilha, siga a minha apologia

Mesmo de barriga vazia, esquece a jóia da rica

Não caia na armadilha, siga a minha apologia

Sua missa de sétimo dia tá de importado na avenida.

(Facção Central, 2001)

“Eu sou periferia”, me diz um deles. Ele não disse “Eu sou da periferia” (em que periferia seria apenas

uma localização) mas “Eu sou periferia”. Ele e a periferia se confundem. Identificação de um e outro

(outros). O lugar (não-lugar social), o ser, a coisa.

(Orlandi, 2004)

Mediação e discurso. Permanência e transformação. Apologia e periferia. Ao ler

os excertos trazidos acima sob a forma de epígrafes, esses foram os significantes que

mais se destacaram e que se mostraram relevantes para entrar no assunto desta

dissertação. Esses significantes são centrais não apenas no que concerne ao trabalho

com o discurso enquanto o objeto da teoria cujo quadro teórico fundamentou o estudo,

mas também, e especificamente, com o que a presente pesquisa procura discutir: é

possível pensar em resistência enquanto um projeto potencialmente transformador –

revolucionário mesmo – que o rap (rythmandpoetry, ou, em língua brasileira1, ritmo e

poesia) constrói discursivamente, a partir das produções discursivas pertencentes ao

heterogêneo movimento/cultura hip hop, em que muitos sentidos se repetem e muitos se

deslocam? De que maneira tal possibilidade se marcaria linguística e discursivamente,

se se tomarem as produções discursivas do grupo paulista de rap, Facção Central, em

seu álbum A marcha fúnebre prossegue, como objeto empírico de análise? E, caso se

trate mesmo de um movimento de resistência, como é construído discursivamente

aquilo a que essas produções estariam resistindo? Com essas primeiras indagações,

considera-se aberta a discussão que envolve Análise de Discurso, resistência, periferia e

rap.

1A expressão ‘língua brasileira’ foi utilizada para situar teoricamente a oposição que representa em

relação à designação ‘língua portuguesa’, que pode vir acompanhada da expressão ‘do/no Brasil’. Assim, apresentamos uma posição identificada à da analista de discurso que propõe a expressão: EniOrlandi (2002).

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1.1 POR QUE O RAP, O FACÇÃO CENTRAL E A ANÁLISE DE DISCURSO?

ENSAIANDO UMA EXPLICAÇÃO

Ignorados pela mídia. Sempre a piada.

Na música nacional passa em branco, não é nada.

Apenas é considerada música de ladrão,

diversão de menores, artistas sem expressão.

(Facção Central, 1995)

Quando pensamos no porquê de ousar pesquisar as produções discursivas e os

gestos de interpretação engendrados pelo grupo de hip hop Facção Central, tendo como

fundamentação teórica a Análise de Discurso de linha francesa, logo nos vem à cabeça

uma palavra: desafio. E esse desafio tem a ver com dois aspectos fundamentais que

serão discutidos nos próximos parágrafos: de um lado, o corpus; de outro, o quadro

teórico de referência.

Com relação ao corpus, ou seja, naquilo que se refere às letras das músicas do

grupo Facção Central2, o desafio é o de lidar com a paixão tanto pela música – em suas

diversas manifestações rítmicas, melódicasetc. – quanto pelo movimento representado

pelo hip hop, do qual o rap (“música de ladrão”, que “não é nada”, “passa em branco”)

é um dos elementos e com o qual o primeiro contato ocorreu após os vinte anos de idade

– até então, os ouvidos estavam acostumados com muita bossa nova, tropicalismo, funks

carioca e internacional, pagodes e sambas, com a dita MPB (música popular brasileira)

– seja lá o que essa designação queira representar –, com algum rock e algum pop. Mas

nunca, a não ser muito de longe, durante vinte anos de existência, estes ouvidos haviam

se encontrado com as composições musicais que reúnem, por um lado, uma enfática

contestação à nossa sociedade neoliberal brasileira, oriunda de uma recente (re)abertura

política e herdeira de longos processos de colonização e de ditaduras; e, por outro, uma

2 As letras das músicas estão disponibilizadas como Anexo (item 6) ao final desta dissertação. Elas serão

designadas pela letra “L” seguida pelo número da faixa musical, em conformidade com a organização do próprio encarte do CD A marcha fúnebre prossegue (2001). É imprescindível destacar aqui que a primeira faixa do referido álbum fonográfico é uma montagem feita a partir de “recortes” de falas (orais) de repórteres e apresentadores dos mais variados noticiários e programas de auditório de diferentes emissoras de televisão. Trata-se, portanto, de uma arrumação de enunciados orais, postos em circulação pelos meios de radiodifusão – rádio e televisão –, quando da censura imposta ao álbum Versos Sangrentos (2000), de autoria do grupo Facção Central. Isso quer dizer que não será considerada, para efeito de análise, a faixa denominada Introdução, a qual seria representada neste trabalho como L1.

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produção poético-musical cuja proposta é, conforme sugeriu Baalbaki3 ao participar da

banca de avaliação do projeto desta dissertação, “narrar”, como se cada composição

musical do álbum funcionasse como um capítulo de um romance, ou como um canto de

uma epopeia clássica, as mazelas produzidas socialmente sob as mais diversas formas

de exclusão – social, política, econômica, geográfica... –, emprestando sua voz para a

fala daquela grande parcela da população brasileira que convive com um silenciamento

social e historicamente construído, silenciamento que não poderia/deveria ser

questionado pelos membros dessa grande parcela.

Existe, portanto, em nossa sociedade excludente, uma relação de opressão que

lhe é constitutiva e na qual se opõem opressor e oprimido. Essa relação lembra uma

consideração feita por Orlandi (2009), para quem a linguagem é um lugar de debate, de

conflito. Pensar em rap supõe pensar em linguagem e debate, pois esse espaço

discursivo tende a se marcar pela polêmica. Do mesmo modo, pensar em conflito supõe

pensar em divisão. E foi pensando na divisão social de classes – tomada no sentido

materialista histórico da expressão, que remete à luta de classes entre proletariado e

burguesia – que acabou sendo produzida uma identificação quase que imediata com tal

modo de significar a opressão, engendrado por esses sujeitos que se dizem ocupar social

e discursivamente o lugar (social) e a posição (discursiva) do oprimido.

É preciso considerar, entretanto, uma vez que se está propondo adentrar o

imaginário construído pelos processos de significação de um movimento que se

autoproclama questionador, que

O que chamamos realidade é resultado da construção /

rememorialização cotidiana de concepções de mundo que não se

inauguram nos sujeitos, mas que se concretizam em suas práticas sem

que haja percepção crítica deste processo. A realidade, portanto, não

é algo dado, um mundo externo, mas, sim, algo que resulta da

necessária significação com que o homem, ser simbólico, investe

suas práticas sociais e linguageiras. (Mariani, 1996: p. 27, grifos

nossos)

Portanto, embora o sujeito que enuncia, o rapper,discursivize-se enquanto um

“retrato da guerra civil brasileira, da carnificina rotineira” (L3), não se trata aqui de um

sujeito que tenha o poder de se projetar para “fora” do funcionamento ideológico que o

3 Refiro-me à professora DrªAngelaBaalbaki, da Faculdade de Letras da Universidade Estadual do Rio de

Janeiro (UERJ).

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coloca enquanto origem de seu dizer (esquecimento nº 2 descrito por Pêcheux). No

caso, o próprio sujeito está funcionando como um exemplo da interpelação ideológica:

não há essa realidade objetiva passível de ser “apreendida objetivamente”, como se

fosse um dado, natural, portanto, que estivesse disponível para ser captado pelas lentes

de sua câmera, sob a forma de um retrato.

Estar no campo do discurso implica considerar a língua em sua incompletude, a

linguagem como sujeita a falhas e equívocos e uma relação não-direta entre

pensamento-palavra-mundo. Implica reconhecer que na língua há comunicação e não-

comunicação (Pêcheux, 1988 [1975]) e que a língua, a língua nacional, é objeto

simbólico que “reclama” sentidos (Orlandi, 2009) .

Uma outra implicação direta, que é de extrema relevância para o modo como o

tema foi trabalhado nesta dissertação, é a de que aqui não se produziu um estudo

sociológico do “fato social” representado pelo heterogêneo movimento hip hop no

Brasil. Além disso, não se trata também de assumir um determinado conteúdo como

verdadeiro, que serviria de “parâmetro” para o julgamento de outros conteúdos – como

se os argumentos levantados necessitassem de “comprovações” para se sustentarem

enquanto verdadeiros ou falsos. Trata-se, sim, de compreender como esses textos – que,

devido a sua especificidade passarão a ser denominados “letras de música” –produzidos

numa materialidade musical – o que implica necessariamente especiais condições de

produção diferentes de um material estritamente escrito –, significam os sujeitos dos

quais os rappers se colocam enquanto porta-vozes, assim como de que maneira

significam seu outro. Quem são esses porta-vozes? Que imagem eles constroem de si?

Que imagem constroem daqueles cujas vozes eles portam? Que imagem constroem dos

outros a quem se dirigem? Essas e muitas outras questões foram levantadas e são de

extrema importância para o caminho que fora trilhado durante as pesquisas na busca por

respostas, ainda que provisórias.

Assim, no que se refere ao corpus, pode-se afirmar ser esta escolha fruto de um

casamento entre a paixão pela música, enquanto produtora/produto da arte; e da arte,

enquanto espaço de contestação, de desestabilização dos universos ideal e

imaginariamente estabilizados, do questionamento: dá-se aí o encontro entre o hip hop

(movimento artístico, político e social) e o Facção Central (grupo que procura manter-se

firme no propósito de, ao produzir rap, questionar, sair do espaço do mesmo que a

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indústria cultural de massa (?) cultivou anos a fio, sempre com o objetivo de aumentar

seus lucros). O propósito ao qual o Facção Central, enquanto grupo de rap, procura

manter nos faz retornar ao início do movimento, quando seu objetivo era mais a crítica

social e menos o dinheiro que o rapper pode ganhar ao “vender sua ideologia” (SD47)4.

Nesse sentido, é valido trazer a contribuição teórica de Bulhões (1999) que, pensando a

relação entre artista, memória e identidade no Brasil, comenta a afirmação de

WolfangWelsch, para quem “no meio da hiperestetização, há a necessidade de áreas

esteticamente baldias”, dizendo que

Evidenciando os aspectos mais torpes e baixos da realidade, alguns

artistas querem trazer de volta a humanidade perdida num afã de

falsas pretensões. Eles rompem radicalmente com os padrões

tradicionais de um belo idealizado, expondo o feio, o tosco, o abjeto.

Estes artistas abdicam dos caminhos fáceis para jogar com o público,

mesmo contra sua vontade, nas profundidades do inferno. (Bulhões,

1999: p. 93)

E, mesmo levando em consideração que nesse trecho a autora busca significar as

produções estéticas de artistas plásticos, pode-se fazer uma ponte com as produções

discursivas do rap pesquisadas neste trabalho, sempre tendo em mente que o meio

material, enquanto condição de produção do discurso, é constitutivo do sentido, ou seja,

que diferentes meios – no caso, artes plásticas e rap – significam diferentemente. A

aproximação – a tal ponte – se dá no que concerne ao movimento de contestação que se

encontra representado tanto em uma quanto em outra produção artística. Nesse sentido,

é possível pensar os rappers do grupo Facção Central como sujeitos que, cantando “a

carnificina rotineira”, “rompem radicalmente com os padrões tradicionais de um belo

idealizado” (Bulhões, op. cit.) e instauram um novo espaço de significação, marcando-

se por formulações que resistem à “logica de uma cultura unitária e homogeneizadora”

(Bulhões, op. cit.) construída pelo processo de globalização e de massificação da

cultura.

Ocorre que a paixão e a academia, ou seja, o sentimento passional e o espaço

institucional em que a discussão aqui proposta está sendo travada, não fazem parte da

mesma ordem: a primeira está historicamente relacionada ao descontrole, este,

assistemático por convenção, remonta à emoção (pathós, palavra de origem grega que,

em língua brasileira, podemos traduzir por „doença‟, „mal‟); a segunda é historicamente

4 (SD47) significa, conforme mostraremos no capítulo 2, uma das sequências discursivas analisadas nesta

dissertação.

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construída – e concebida – como o espaço da sistematicidade, da cientificidade, da

razão, do mensurável. A implicação direta dessa constatação é a de que não se faz

ciência apenas com uma dose cavalar de paixão (emoção). O que significou a

necessidade de se buscar uma “razão”, um motivo acadêmico-social que justificasse a

escolha do tema. A procura teve um fruto satisfatório quando, ao pesquisar a

bibliografia de estudos acadêmicos sobre o hip hop no Brasil, encontrou-se apenas um

que usou as produções do grupo Facção Central como material de pesquisa, estudo esse

desenvolvido sob um quadro teórico concernente à disciplina História. Assim,

considerando-se inclusive o trabalho cuja pesquisa se centra no hip hop e que é

fundamentado nos pressupostos teóricos da Análise de Discurso da Escola Francesa,

não se encontrou um estudo sequer que se dê sob essa fundamentação teórica e o rap

produzido pelo grupo Facção Central. Isso quer dizer que a presente dissertação pode

estar representando a primeira vez em que se conjugam Análise de Discurso e Facção

Central num mesmo estudo. Tal conjugação pode significar o início de um processo de

deslocamento na lógica que coloca em relação de sinonímia hip hopnacional e

RacionaisMC’s ou Mv Bill, estes últimos assaz recorrentes em pesquisas brasileiras que

tematizam o hip hop.

Contudo, todas essas considerações remetem apenas ao primeiro aspecto

fundamental do desafio anteriormente citado. Ou seja, há ainda que se considerar o

segundo aspecto, a saber, a definição do arcabouço teórico para a condução da pesquisa:

por que a Análise de Discurso de Escola Francesa?

Uma primeira e rápida resposta que vem à cabeça remonta ao aspecto

questionador que sustenta a escolha do corpus, isto é, precisava-se de uma teoria cujo

quadro nocional condissesse com a desestabilização de que se falou quando se discorreu

sobre o primeiro aspecto. Nesse sentido, decidiu-se pela Análise de Discurso devido

principalmente ao fato de que ela busca a desconstrução das raízes que sustentam o

óbvio do sentido, que sustentam a evidência enquanto ponto de partida do(s)

movimento(s) em direção à compreensão da/na linguagem. E, toda escolha, enquanto

movimento de seleção, implica cortes. Cortaram-se, portanto, todas as possibilidades de

lidar com uma língua sistemática, homogênea e apreensível enquanto matéria objetiva

ou enquanto instrumento do qual os homens, no papel de interlocutores, ou seja, de

emissores e receptores, utilizar-se-iam para comunicar uma mensagem. Também não se

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pensou em funções da linguagem, mas, como mostraremos mais adiante, em

funcionamento linguístico-histórico.

A Análise de Discurso mostrou-se, desde o primeiro contato, ainda nos tempos

de graduação, uma teoria que abraça a causa da contestação, por ter sido, ela própria,

consequência de um questionamento teórico dentro dos estudos de linguagem no final

da década de 1960, e porque ela traz, em seu fundamento, a negação da literalidade

enquanto princípio de funcionamento da língua(gem). E questionar a literalidade,

procurando compreender os processos discursivos que produzem – determinados –

sentidos sob a materialidade significante da língua, é imprescindível quando se buscam

discutir determinadas produções sociais – no caso, o rap – sem cair no encantamento

das soluções sociológicas, para as quais os sentidos são imanentes, e que são baseadas

na noção de linguagem enquanto instrumento transparente de comunicação, separada da

exterioridade e “fora” do alcance do funcionamento ideológico. Dessa forma, pôde-se

sair do lugar-comum construído para significar as produções do movimento hip hop,

sobretudo quando se toma por corpus de pesquisa as letras de músicas de um

representante da “corrente” conhecida como rap underground.

Essa expressão “underground” foi empregada por Lippold e Santos (2004) para

destacar uma determinada parcela dos grupos de rap que se contrapõem à lógica de

mercado instaurada pelo estabelecimento de um novo filão na indústria fonográfica.

Propõe-se aqui que o Facção Central pertence a essa determinada parcela, porque o

grupo utiliza uma gravadora independente e se opõe a uma outra gigantesca parcela de

grupos de rap que representam o seu oposto, ou seja, aqueles grupos que estão sob a

égide de uma espécie de “cartel” de gravadoras que “comandam” a indústria

fonográfica, a partir da relação de “comando” que estas mantêm sobre a produção dos

artistas que se submetem a tais critérios de trabalho, em nome, principalmente, de

dinheiro e de fama, e que são denominados, no estudo de Lippold e Santos (2004), pelo

termo “comercial”. Foi interessante trazer essa distinção porque ela implica diretamente

a posição discursiva da qual o sujeito produz suas formulações. Implica, ainda,

processos de identificação com determinados lugares sociais que se contrapõem

frontalmente aos rappers que só querem estar na mídia, ainda que para isso necessitem

de negar sua origem favelada e de interditar sua voz questionadora em nome de dinheiro

e fama. Veremos mais adiante que essa divergência coloca em conflito duas posições

discursivas – uma, a dominante, que é a mercadológica e outra, poder-se-ia dizer

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dominada, que é a questionadora –, cuja disputa ainda não gerou uma ruptura total, por

parte de uma dessas posições, com a formação discursiva que as domina. A relação de

tensão pode até estar bastante acirrada, mas ainda não foi suficiente para instaurar uma

nova formação discursiva. Na seção em que discutimos essas relações, procuramos

abordar o(s) possíveis porquê(s).

1.1.1 O QUE NO RAP: DELIMITANDO O TEMA

A rima é a palavra no maior significado

Adversária da frieza de um dicionário

Não tem fãs: tem seguidores.

Impostores gravam cenas como atores.

A rima sofre com a censura. Foi caluniada

Por quem ri do verbo e não crê na força da palavra.

Mas o dia da igualdade tá chegando, seu doutor.

Mas o dia da igualdade tá chegando, seu doutor.

(G.O.G, 2004 )

Retomando o parágrafo introdutório desta dissertação, o tema aqui proposto é a

problematização da construção da resistência enquanto projeto do rap nas manifestações

discursivas do grupo Facção Central, especificamente, nas letras das músicas que

compõem o álbum A marcha fúnebre prossegue (2001). Problematizar implica que não

se tomará como certa, pelo menos não neste momento, a hipótese de que existe tal

projeto. Tanto o ponto de partida quanto as estratégias “elaboradas” por esse sujeito

que, segundo nossa hipótese, posiciona-se resistindo a algo, assim como o porquê dessa

resistência, foram postos em discussão. Para tanto, procurou-se, trabalhando com a

materialidade significante da língua, ou seja, não tomando o sentido como imanente à

forma (material) e remetendo as formulações ao conjunto do já-dito, do não-dito e do

que pode e deve ser dito, deslocar a compreensão sobre o rap dito underground para um

terreno outro que não o(s) já delimitado(s) pelas políticas de estabilização de um

determinado sentido, da “frieza de um dicionário”, que poderia ser “apreendido”, a

partir de uma análise de “conteúdo”. E esses processos de estabilização dos sentidos são

movimentos em direção a um silenciamento da “força das palavras”, silenciamento que

se dá a partir de calúnias e censuras à rima, “a palavra no maior sentido”.

Assim, a definição do corpus desta pesquisa tem um motivo que necessita de ser

enfatizado: o fato de que se trata de um álbum que foi produzido após a proibição das

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veiculações do videoclipe e da música “Isso aqui é uma guerra”, pertencente ao álbum

Versos sangrentos, lançado no ano de 2000. O grupo Facção Central, devido ao

lançamento da música citada, chegou a ser indiciado por incitação e apologia ao crime

e, mesmo depois de apreensões de materiais de vídeo e áudio em redes de venda; de

multas e constrangimentos legais às empresas concessionárias do ramo da radiodifusão

que se propuseram a veicular os materiais; de muitas idas e vindas do grupo à delegacia

de repressão ao crime organizado; de responder judicialmente – ou seja, em juízo –; e de

não ter sido condenado, ao final dos processos, decidiu não se “submeter” a essa visível

política local de silenciamento (Orlandi, 1993) e produziu uma espécie de resposta, cuja

tentativa de expressão se encontra já no título do álbum, no qual se pode notar,

inclusive, como esses sujeitos procuram significar sua produção musical: A marcha

fúnebre prossegue. (grifo nosso) Nesse caso, o artigo definido, como dizem os

gramáticos normativos da língua portuguesa (no Brasil, pelo menos), não apenas

funciona definindo o nome, como também o significa enquanto informação já conhecida

que está sendo retomada. Desse modo, o sintagma nominal “marcha fúnebre” retoma

alguma informação anterior utilizada para significar as produções musicais desse grupo.

A presença de um verbo no presente do indicativo funciona estabelecendo uma relação

de atemporalidade. Além disso, trata-se de um verbo que indica movimento para frente.

Nesse sentido, pode-se dizer que a marcha fúnebre irá seguir prosseguindo,

ininterruptamente, ainda que promotores e demais agentes da “justiça” procurem encher

o caminho do grupo de empecilhos e de contratempos. Isso já diz muito sobre o modo

como o grupo se posiciona discursivamente.

1.1.2 VALE A PENA TRABALHAR COM O RAP? UM EFEITO DE

JUSTIFICATIVA

Tem muito mano em cena que não entendeu a importância do hip-hop.

Rap, não importa o estilo, a quebrada, o cantor: é a música da favela, é a voz do mais sofrido, dos sem

voz.

(Facção Central, 2003)

No que tange ao aspecto de concepção desta dissertação, nesta seção de

introdução estão sendo apresentados, detalhadamente, os motivos que concorreram para

a elaboração desta proposta. Nesse sentido, e dando continuidade ao que foi trazido nos

primeiros item e subitem, encontram-se, a seguir: a memória do projeto, na qual se

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pautaram, entre outras coisas, as condições de produção desta proposta; a perspectiva da

pesquisa com o objeto teórico discurso e com o objeto empírico, as letras de música do

álbum A marcha fúnebre prossegue, do grupo de rap Facção Central, enquanto material

significante sobre o qual a análise incidiu; e o quadro teórico que servirá de referência –

a Análise de Discurso elaborada por Pêcheux (França, finais da década de 60 do século

passado) – para a discussão do tema já mencionado.

A ideia que deu origem a esta proposta de pesquisa surgiu a partir do

cruzamento de, pelo menos, dois fatores, ambos da esfera pessoal. Um deles está mais

relacionado ao âmbito acadêmico; o outro, mais próximo da relação estabelecida entre a

pesquisadora e a poesia, relação esta com a qual a presente exposição será iniciada.

A poesia – ou a dinâmica poética – enquanto presença/percepção, na vida desta

estudante, é da ordem da imposição. Explicação: não há um só momento em que a

poesia não se faça presente, inclusive quando a ela não é concedida, de maneira

consciente – e raramente o é –, um espaço para sua aparição. Em outras palavras, ser da

ordem da imposição é impor-se presente quando dela nada se espera. Assim ela

“funciona”: aparições inesperadas, mas, nem por isso, recusadas. E a poesia também é

onipresente, uma vez que marca sua presença em qualquer situação: desde um pôr-do-

sol contemplado da janela da sala (de aula, de casa...) até uma espécie de composição

musical cujo nome a carrega sob a forma de uma sigla (rap [sigla, em inglês] = ritmo e

poesia [em língua brasileira]).

Com relação ao âmbito acadêmico, foi possível, nessas pouco mais de duas

décadas dedicadas à educação formal – divididas entre os ensinos fundamental, médio e

superior –, reparar que não há muito espaço, na instituição escolar, para que se coloque

em perspectiva aquilo que se constrói historicamente como “produção marginal”, sendo

esta frequentemente discutida sobre as mesmas bases: a de um conteudismo que apenas

reproduz, sem deslocar, a discussão, de modo a buscar promover uma “repetição

empírica” (Orlandi, 1996) – permanência, paráfrase – e a evitar conceder espaço a

novos sentidos possíveis, aos deslocamentos, enfim, às ressignificações – ou “repetições

históricas” (idem, 1996).

Isso quer dizer que há um movimento, dentro da academia enquanto espaço de

“produção do conhecimento”, que expõe as veias da contradição à qual está submetida,

movimento esse que tanto procura cercear a constituição e a formulação de novos

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sentidos quanto constitui um lugar privilegiado onde essa significação se mantém

controlada, de modo que aquelas produções discursivas cujos autores e/ou

leitores/ouvintes estejam relacionados, em maior ou em menor grau, a alguma forma de

marginalidade, sejam interditadas em sua circulação, a partir de mecanismos como os de

ridicularização do diferente, de “adversarialização” do contrário e, sobretudo, de

negação do outro.

Diz Orlandi (2004), ao discutir a relação entre pichação, grafite e escola no

“espaço” urbano, que

(...) a educação tem, de direito, de ser o instrumento graças ao qual

todo indivíduo, numa sociedade, possa ter acesso a qualquer tipo de

discurso – verbal, não verbal, escrito, oral, erudito, popular. Mas ela

segue, na sua distribuição, as linhas marcadas pelas distâncias,

oposições e lutas sociais. Todo sistema de educação é uma maneira

política de manter ou modificar a apropriação dos discursos com

os saberes e os poderes que levam junto. (Orlandi, 2004: p. 117,

grifos nossos)

E Orlandi continua, trazendo Foucault (1975), para dizer que este nos “aponta

também para a maneira de exercer a crítica: colocar em questão a nossa vontade de

verdade; restituir ao discurso seu caráter de acontecimento; restaurar a soberania do

significante” (Orlandi, 2004, grifos nossos). É disso que se trata esta dissertação: de

uma crítica a determinadas posições ideologicamente marcadas de passividade diante de

um suposto caráter objetivo da língua, posições essas que se revestem de neutralidade

científica, neutralidade que dicotomiza e opõe sujeito e objeto e que toma a língua como

instrumento para comunicar. Nesse sentido, com o objetivo de mostrar como o quadro

teórico-metodológico de referência selecionado para esta pesquisa se comporta

teoricamente diante das questões da língua e do exercício da crítica, buscou-se

novamente uma contribuição teórica em Orlandi (2009 [1999]), a qual explica, com

relação ao funcionamento da linguagem para a Análise de Discurso, que

Para a Análise de Discurso, não se trata apenas de transmissão de

informação, nem há essa linearidade na disposição dos elementos

da comunicação, como se a mensagem resultasse de um processo

assim serializado: alguém fala, refere alguma coisa, baseando-se em

um código e o receptor capta a mensagem, decodificando-a. Na

realidade, a língua não é só um código entre outros, não há essa

separação entre emissor e receptor, nem tampouco eles atuam numa

sequência em que primeiro um fala e depois o outro decodifica etc.

(...) Desse modo, dizemos que não se trata de transmissão de

informação apenas, pois, no funcionamento da linguagem, que põe

em relação sujeitos e sentidos afetados pela língua e pela história,

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temos um complexo processo de constituição desses sujeitos e

produção de sentidos e não meramente transmissão de informações.

São processos de identificação do sujeito, de argumentação, de

subjetivação, de construção da realidade etc. (...) A linguagem

serve para comunicar e para não comunicar.As relações de

linguagem são relações de sujeitos e de sentidos e seus efeitos são

múltiplos e variados. Daí a definição de discurso: o discurso é efeito

de sentidos entre locutores. (Orlandi, 2009 [1999]: p. 21, grifos

nossos)

O problema é que essa tendência à interdição do novo, ou à manutenção do

mesmo, à permanência, acaba assumindo uma direção oposta ao próprio

desenvolvimento das teorias que estudam não apenas a língua(gem), mas também das

que se referem ao campo do discurso. Basta para isso perceber os movimentos que

muitas dessas teorias fizeram – e continuam a fazer – para abarcar o heterogêneo, o

diferente, em suas fundamentações. Fato que aparece de maneira clara quando, por

exemplo, se consideram tanto, globalmente, a Análise de Discurso de base pecheuxtiana

quanto, especificamente, as noções de sujeito – da ideologia e do inconsciente – e de

discurso – construto teórico da disciplina.

No que tange à marginalidade, noção de extrema relevância para esta

dissertação, trata-se de um termo que foi apontado para destacar ao menos dois

possíveis sentidos: primeiro, o de estar à margem daquilo que se constrói como

“centro”; em segundo lugar, o de estar à margem da lei5. Essa “marginalidade”, então,

entra como uma implicação, resultante de uma determinante política de seleção

[exclusão vs. inclusão] que caracteriza a sociedade dividida em classes nas quais são

produzidas – ou das quais resultam – os processos de resistência. E é nesse ponto de

confronto, de disputa, característico de nossa formação social que produz/reproduz a

desigualdade, a opressão e a segregação, que a abordagem se concentrou. Isso porque o

mesmo movimento que faz calar faz falar; o mesmo movimento que oprime cria as

5 No livro intitulado “O desafio de dizer não”, Lagazzi fala sobre a lei e o direito, a partir das

considerações que faz do trabalho de Miaille (1980), que: “(...) a especificidade do Direito atual está na ‘abstração’ e na ‘generalidade’ através das quais ‘a expressão das relações sociais se realiza.’ A lei está calcada na indeterminação e por isso ela adquire a generalidade necessária para se aplicar a todo e qualquer cidadão. Teoricamente, ‘a lei deve mostrar-se como estando acima dos interesses pessoais ou de grupos’ (Orlandi, 1986a), pronta para ser aplicada a todo e qualquer infrator. ‘Todos os homens são iguais perante a lei’. É nessa máxima que se fundamenta o Direito e a Justiça, levando-nos a acreditar na imparcialidade da jurisprudência, no fim dos privilégios. ‘Todos têm os mesmos direitos e deveres’. A Justiça sustenta-se, pois, por esse engodo teórico, uma vez que a desigualdade entre os homens, marcada pelo modo de produção, não se desfaz em nenhum outro lugar.” (Lagazzi, 1988: p. 41, grifos nossos)

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bases para a resistência a essa opressão. É precisamente aí que a pesquisa foca sua

atenção6.

Portanto, dois processos foram elencados no sentido de darem conta da

motivação pessoal responsável pela elaboração da proposta de pesquisa: de um lado, a

questão da opressão/resistência enquanto movimentos opostos e, em certa medida,

concomitantes, que, contrários, estão diretamente relacionados à questão dos processos

de identificação e da formação de identidades; de outro, a música, enquanto um som

melodioso, acompanhado ou não de significantes linguísticos, mas repletos de matéria

simbólica sempre sujeitas à interpretação. Eis aí a conjunção de interesses que, ao se

cruzarem, forneceram as bases fundamentais desta pesquisa.

Uma consequência direta de tal “constatação” é que algumas das noções teóricas

mais caras a esta pesquisa são as de sujeito e sentido, formações discursivas e

imaginárias, além das de sujeito-autor, outro, língua fluida e língua imaginária,

político, urbano e periferia.

Logo, pode-se dizer que a presente proposta busca problematizar a construção da

resistência como projeto nas manifestações discursivas produzidas dentro de um

domínio caracterizado como um dos elementos que compõem o movimento hip hop,

isto é, o rap, a partir da observação das marcas significantes linguísticas e do

funcionamento discursivo, tomando, como materialidade, as letras das composições

musicais do grupo Facção Central, especificamente as contidas em um determinado

álbum: A marcha fúnebre prossegue. É nesse sentido que encontram-se apontados, a

seguir, três fatores que justificam a escolha do tema/teoria. Vale lembrar que esses

fatores, embora tenham sido muito significativos, não são os únicos nem constituem o

todo das possibilidades motivadoras.

Em primeiro lugar, trata-se de um anseio pessoal da pesquisadora-autora deste

trabalho de procurar saber se há e, em havendo, como se constrói, a partir da produção

discursiva do rap do/no Brasil – pelo grupo Facção Central –, esse ambiente de protesto

que significa o movimento de que faz parte.

6 Repare que o termo “sua” foi utilizado de modo proposital, a fim de criar uma ambiguidade entre a

retomada do termo pesquisa, como um adjunto adnominal, e a possibilidade de estabelecer uma interpelação ao leitor: sua atenção = atenção do leitor. Note que hoje, na língua brasileira, já há uma espécie de ‘equivalência’ entre os pronomes de segunda e de terceira pessoa. Isso faz com que não seja mais tão produtiva a diferença entre tais pronomes e que os interlocutores já reconheçam nas desinências de terceira pessoa um chamado, uma interpelação a quem ouve/lê.

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Depois, trata-se de um interesse em compreender quais marcas linguísticas

(Orlandi, 1996), em suas formas empírica, abstrata (abordagens logicista ou sociologista

da língua) e material (abordagem discursiva), participam das construções semânticas

desse denominado ambiente de protesto, para que se possam apontar alguns dos efeitos

de sentido possíveis produzidos a partir do seu engendramento.

Por fim, e não menos importante, existe a questão do desejo de contribuir para o

preenchimento dessa espécie de lacuna existente nas pesquisas7 que versam sobre o

material linguístico com o qual se trabalhará, qual seja, o das letras das músicas de

determinado álbum produzido pelo grupo Facção Central, sob a fundamentação teórica

da Análise de Discurso de base pecheuxtiana.

1.1.3 POR QUE A ANÁLISE DE DISCURSO? “ESCOLHENDO” UMA

TEORIA

Assim, os “erros”, as “incompreensões” não são fruto do “mau” uso da língua, mas revelam que faz

parte de sua ordem própria expor-se à história e, com isso, aos “desentendimentos...”

(Baldini, 2009)

Este trabalho, no entanto, não se pretende o primeiro passo dado em direção à

interlocução entre academia e “marginalidade” – aspecto já mencionado aqui –,

compreendendo-se esta como o conjunto de produções discursivas cuja circulação se

restringe a determinados e fechados espaços sociais que não gozam o “privilégio” de

serem legitimados socialmente, ficando restritas a alguns poucos e determinados

espaços, e tendo baixa – ou nenhuma – penetração – ou ressonância, circulação – em

outros. Dessa forma, este estudo não pode ser encarado como o início, origem dessa

interlocução. E isto é preciso ficar claro, afinal, muitas têm sido as tentativas de se

pensar as manifestações, aceitas ou não enquanto arte, da favela e da periferia, sejam

essas tentativas, mais frequentemente, no sentido da reprodução e da permanência de

um determinado sentido tomado como o único possível, sejam elas, menos

7 Interessante observar que apenas uma, dentre todas as pesquisas acadêmicas consultadas, cujas

indicações constam da bibliografia, pesquisas essas que abordam o hip hop, cita o grupo sobre cujas letras este trabalho se apoia. Trata-se de uma monografia de especialização em História, que versa sobre a identidade do povo afrodescendente e as formas de resistências por ele construídas, no Brasil. Entre as formas eleitas pelos autores está justamente o rap: LIPPOLD, Walter G. R., SANTOS, João B. A música rap e o processo de resistência cultural afro-brasileira. (Especialização). FAPA: Porto Alegre, 2004. Não foram encontradas, durante as buscas bibliográficas, produções que cruzem Facção Central e Análise de Discurso.

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frequentemente, com objetivo de produzir novos olhares, novos conhecimentos,

modificando, assim, a relação que se procura estabelecer entre significante e sentido e

promovendo, portanto, a mudança, a ressignificação, a transformação da relação que os

sujeitos estabelecem com os sentidos.

Pode-se dizer, contudo, que se trata apenas de mais uma janela a ser aberta para

o diálogo possível com esse rico mundo de potencialidades, até bastante visitado, mas

pouco “escutado” – e com muito a ser mostrado –, chamado periferia. E periferia não

apenas num sentido geográfico-espacial, local para onde são empurradas as massas

trabalhadoras das cidades, mas também, e principalmente, como uma maneira de

significar os sujeitos e pela qual estes se significam (cf. epígrafe p.3). Isso quer dizer

que não se assumirá aqui uma posição de suposta neutralidade, como se a análise

pudesse ser produzida “fora” da ideologia, de modo a apenas descrever objetivamente o

conteúdo, a partir do qual se pudessem produzir avaliações e julgamentos. Quer dizer

também que se procurou não jogar dentro dos preceitos do maniqueísmo que insiste em

separar, estabilizar e transformar em categorias absolutas e discretas o „bem‟ e o „mal‟,

tomados como critérios de valoração argumentativa. É nesse sentido que se pode

afirmar que não se trata de ser “imparcial” diante de um objeto, como se fosse possível

separar prática discursiva de assujeitamento; muito menos se trata de etiquetar as

produções discursivas com rótulos de „boas‟ ou de „más‟ e advogar em favor da causa

“escolhida”.

Trajano (2010), em sua dissertação de mestrado intitulada Etos na poesia

combatente dos menestréis do rap: por uma análise das imagens discursivas no grito

marginal do hip hop brasileiro, dedica um subcapítulo para discutir a relação entre

centro e periferia, discussão extremamente relevante tanto para aquela quanto para a

presente pesquisa, uma vez que ambas buscam analisar essas produções musicais

caracteristicamente urbanas.

Não satisfeito com a pouca clareza com que é trabalhada a noção de periferia,

Trajano (2010), que se interessou em “investigar os discursos produzidos por

integrantes de uma esfera social determinada: o gueto” (p. 30), foi buscar na teoria da

Análise Institucional, especificamente no pesquisador francês Remi Hess (2001), um

suporte teórico que o permitisse avançar numa conceituação de periferia mais próxima à

necessidade que seu estudo apresentou: a necessidade de discutir a relação entre centro

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e periferia, para compreender o funcionamento dos discursos produzidos pelos rappers

anteriormente citados, pesquisados por Trajano.

Hess e sua teoria dos impulsos auxiliaram Trajano a elaborar a seguinte noção de

periferia, que utilizaremos nesta dissertação, fazendo, claro, a desterritorialização do

conceito do terreno da análise institucional e reterritorializando-o na análise de discurso.

Nesse sentido, e compreendendo que a teoria com que Trajano trabalha, devido a seu

recorte epistemológico, não faz uso de aparatos teóricos como ideologia e forma-sujeito,

podemos considerar como basilar para as nossas análises a seguinte noção de periferia:

A linha de raciocínio que vimos seguindo até aqui nos autoriza a

chamar de comunidade periférica cada espaço onde as desigualdades

e violências sociais se exibem, tal como relatado nos raps. Por fim,

tratar-se-á de periferia o lugar de reprodução de impulsos, em que

estão inseridas inúmeras comunidades periféricas. Por quê? Simples.

Classificar um polo como centro e outro como periferia é reconhecer

que as tramas do mundo se erigem em dois tipos de lugares, em que

habitam duas espécies de sujeitos, e só. Não nos satisfazemos com

isso. (Trajano, 2010: pp. 40-41, itálicos do autor)

Apontamos esses elementos, para mostrar que a periferia é um exemplo de

noção complexa, que, para ser trabalhada discursivamente, seriam necessárias as

considerações de aspectos bastante relevantes, como a questão dos impulsos que são

“emitidos” em direção ao centro e que modificam/são modificados por esse centro.

Mecanismo que acontece também na periferia, que recebe impulsos do centro, impulsos

esses que modificam e que são modificados pela periferia. Vemos aí uma semelhança

bastante forte com o funcionamento de uma formação discursiva e da forma-sujeito

correspondente: existe uma administração de sentidos possíveis, que autorizam e

legitimam determinadas produções de significação, mas não outras. É aí que a ideologia

se mostra um conceito central (e pouco explorado por Trajano): sem compreendermos

seu funcionamento, não seria possível reconhecermos que existem sentidos que

perpassam formações e que comparecem nos sentidos administrados por outras

formações discursivas. Esses movimentos são descritos por Trajano, mesmo que não

possuam essa “metalinguagem” própria à teoria do discurso.

Tendo tudo isso em mente, pode-se dizer que não se considerará o “conteúdo”

das letras de rap para com elas concordar ou delas discordar, mas que se buscará na

materialidade significante linguística, em sua opacidade semântica, dessas produções as

marcas que permitirão apreender como funcionam discursivamente, quais efeitos de

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sentido estão sendo engendrados e de que maneira esse engendramento se dá na/para a

ordem do discurso. Para tanto, é preciso não ignorar, em momento algum, o fato de que

essa “margem” é historicamente determinada, que ela não possui contornos fixos e que

só é margem porque há aquilo historicamente construído como centro. Dessa forma,

pode-se compreender que essas fronteiras estão em contínua reconfiguração no espaço

simbólico e que as bases estruturais que sustentam a existência de tal divisão nunca

cessam de funcionar.

As próximas seções desta dissertação trazem quais podem ser consideradas as

marcas da resistência do sujeito nas manifestações discursivas produzidas pelo rap no

Brasil enquanto um projeto de produção de identificações entre sujeitos e sentidos para

o movimento8hip hop. Cabe ressaltar que o tema da resistência, embora um assunto

frequentemente estudado dentro do escopo teórico da Análise de Discurso francesa,

talvez por estar diretamente relacionado ao próprio surgimento desse campo

epistemológico, foi pouco explorado – nas pesquisas bibliográficas realizadas,

encontrou-se apenas uma dissertação que empreendeu um estudo parecido, no qual se

pretendeu contrastar as manifestações artísticas do samba e do rap enquanto

movimentos de resistência engendrados por habitantes das periferias urbanas9 –, quando

se pensa em pesquisas que trazem as produções discursivas do hip hop brasileiro como

materialidade a ser analisada. Mariani (1996) nos diz que, sob a perspectiva discursiva,

de acordo com Pêcheux, a resistência

É a possibilidade de, ao dizer outras palavras no lugar daquelas

prováveis ou previsíveis, deslocar sentidos já

esperados.Éressignificar rituais enunciativos, deslocando processos

interpretativos já existentes, seja dizendo uma palavra por outra (na

forma de um lapso, um equívoco), seja incorporando o non sens, ou

simplesmente não dizendo nada. (Mariani, 1996: p. 26, grifos

nossos)

8 Ou cultura. A escolha de um ou outro termo tem implicações fundamentais para o entendimento da

dinâmica do hip hop. Esses diferentes termos, ‘movimento’ ou ‘cultura’, significam diferentemente o hip hop para o grupo que os utiliza. Alguns autores debruçaram-se sobre essa diferença, a fim de buscarem se posicionar a respeito dela. Nesta dissertação, essa questão será discutida no ponto sobre as condições de produção. 9 Trata-se da seguinte dissertação: REIS, Soraya M. O RAP na mídia : discurso de resistência?(Mestrado)

Universidade de Taubaté, São Paulo: 2007. Sob o quadro teórico da Análise de Discurso, Reis (2007) toma como objeto empírico as produções discursivas de O Rappa e Racionais MC’s.

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Após uma abrangente pesquisa bibliográfica entre recentes – e não tão recentes

assim – produções acadêmicas, ficou patente que o tema escolhido é ainda menos

explorado se se levar em conta o cruzamento entre os estudos da resistência nas

produções discursivas do hip hop brasileiro e o corpus sobre o qual a análise incidirá: as

letras das músicas constantes do álbum A marcha fúnebre prossegue, produzido pelo

grupo de rap Facção Central, no ano de 2001.

Portanto, mostra-se importante à atualização das noções teóricas, a serem

trabalhadas na próxima seção, sobretudo daquelas mobilizadas especificamente para

este estudo, haver novas propostas de análise, nas quais estejam incluídos temas já

trabalhados – no caso, as marcas da resistência – em um corpus ainda não visitado – ou

seja, as letras das músicas de um álbum do grupo Facção Central. Nesse sentido, esta

dissertação poderá contribuir não só para o crescimento acadêmico-intelectual dos

envolvidos diretamente na pesquisa – a pesquisadora, sua orientadora, o programa [pós-

graduação stricto sensu] e a linha de pesquisa [teorias do texto, do discurso e da

interação] na qual aquelas estão inseridas –, mas também, quiçá principalmente, para o

aprimoramento da teoria que a fundamenta.

1.1.4 COMO TRABALHAR COM MÚSICA: AS ESPECIFICIDADES E OS

PROCEDIMENTOS DE AJUSTE DO MATERIAL

”A narrativa do rap tem um aspecto de fábula porque coloca o bem contra o mal, um contra o outro, o

que tende a acirrar os ânimos num país desigual como o Brasil. Mas aí o problema é mais social do que

musical.” (Luiz Tatit, )

O trabalho com a música é complexo e mobiliza determinados aspectos que,

para o objetivo que se pretende alcançar nesta pesquisa, não se fizeram pertinentes em

primeira instância. Isso quer dizer que, mesmo considerando a importância desses

elementos para a composição das dinâmicas de produção e de apreciação musical, não

estiveram na linha de frente da discussão elementos como melodia, ritmo, arranjo,

acorde, enfim, nada além das letras e de um ou outro momento na composição em que

são utilizados sons como os de tiro (representados, ou não, na materialidade linguística

sob a forma, por exemplo, de onomatopeias). Nesse sentido, entende-se que a

denominação “composição musical” remete à conjunção de elementos formadores que

ajudam a significar o aspecto musical, mas entende-se igualmente que, nesta discussão,

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30

não cabe considerar elementos outros que não as letras que compõem essas músicas. A

consequência direta dessa consideração faz-se perceber a partir da própria designação

que será utilizada neste trabalho sempre que se objetivar remeter ao corpus desta

pesquisa: letra de música (principalmente para diferenciá-la de texto, que é uma outra

materialidade simbólica). Assim, o sintagma nominal preposicionado “letra de música”,

sintagma esse que é produto – e que produz – um recorte necessário à pesquisa,

remeterá, doravante, ao que comumente é designado por “canção” ou “composição

musical” ou “música”...

A fim de que se pudesse trabalhar com um corpus composto por letras de

músicas de um grupo que não possui uma página virtual onde elas estejam publicadas

de forma mais fidedigna e cujos encartes dos álbuns fonográficos não as trazem, foram

dados dois passos distintos e complementares, que serão descritos a seguir:

1. Num primeiro momento, a partir de uma página virtual

(www.terra.com.br/musica) onde ficam hospedadas letras de músicas as mais

diversas, dos mais variados grupos, bandas e artistas solo, e de publicação aberta

a qualquer contribuição que qualquer indivíduo com acesso à rede pode dar –

uma espécie de wikipedia do mundo musical – e livre da necessidade de

copyright, foram conseguidas as “bases” das letras de música com as quais se

trabalhou nesta pesquisa.

2. Depois, com essas letras à mão, compararam-se os textos publicados no referido

sítio virtual com o que era pronunciado nas músicas, ou seja, procedeu-se a um

cotejo entre o que estava escrito e o que se podia ouvir no álbum gravado pelo

grupo.

A esses dois momentos distintos e complementares para a obtenção das letras de

música, seguiram-se outros dois, já concernentes ao tratamento que se fez necessário

para a sistematização do trabalho. É o que se segue:

1. Com as letras já aparentemente “conferindo” com o que o grupo canta nas

músicas, e com base, tanto na lógica gramatical de funcionamento da pontuação,

quanto das pausas e entonações demonstradas no que se podia ouvir das

canções, procedeu-se à versificação dessas letras. Isso quer dizer que, embora a

composição musical não coincida com a forma de um poema, operou-se uma

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“poemificação” dessas letras, de modo a possibilitar a observação dessas, a

partir de versos e estrofes. Optamos por esse viés, porque

2. consideramos que a música, enquanto materialidade, está mais próxima à forma

de um poema (métrica, ritmo etc.) do que da prosa.

3. Uma vez estando em formato de poemas, com uma pontuação que procura

representar, na escrita, os aspectos gramaticalmente tomados como

“extralinguísticos”, tais como entonação, pausa breve, pausa longa, exclamação,

interrogação etc. pertencentes ao nível da oralidade, buscou-se proceder a uma

espécie de formatação dos significantes, sempre privilegiando aquilo que é

possível ser discernido ao ouvir as músicas. Mas, ao contrário do que propunha

Saussure, um elemento sonoro pode se sobrepor a outro, o que pode produzir um

terceiro significante totalmente distinto daqueles que o originaram. Isso tem

como consequência direta o fato de que pode haver discrepância de significantes

sonoros e escritos, o que procurei diminuir ao máximo por meio de uma

incansável conferência entre aquilo que escutava e aquilo que estava fixado pela

escrita de outrem. Ou seja: com base no que era cantado pelos intérpretes nas

músicas gravadas – e depois da versificação construída aqui –, houve uma

tentativa de aproximar o “cantado” do “escrito”. Isto significa, também, que os

chamados “erros gramaticais”, como as ausências de concordância nominal ou

verbal, não foram “consertados”, uma vez que sua não consideração significaria

um apagamento dessas marcas significantes, o que traria consequências

indesejáveis ao propósito desta pesquisa: trabalhar as formas de resistência

engendradas a partir das produções discursivas do grupo Facção Central, no

álbum A marcha fúnebre prossegue.

A música é um espaço privilegiado de produção de polissemia. Isso porque é

constituída de sons, verbais ou não, e porque esses sons precisam ser interpretados

(injunção à interpretação diante de um objeto simbólico). Saussure, de acordo com o

Curso de Linguística Geral (2006 [1916]), estabelece, como segundo princípio da

natureza do signo linguístico, que, “por oposição aos significantes visuais (...), os

significantes acústicos dispõem apenas da linha do tempo; seus elementos se

apresentam um após o outro; formam uma cadeia.” Ao estabelecer tal princípio,

Saussure nega a possibilidade de polissemia ao significante, tomado em si mesmo –

evidentemente, colocando-se de forma coerente com o corte que precisou promover a

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fim de constituir seu objeto, a língua, e a disciplina que se encarrega de seu estudo, a

linguística. Além disso, ele silencia a possibilidade de formação de novos significantes

a partir da “confusão” entre vocábulos (significantes acústicos). Diz-nos Cavaliere

(2005), a respeito dos vocábulos fonológicos, num capítulo destinado à prosódia –

“parte da fonologia (...) referente aos caracteres da emissão vocal que se acrescentam à

articulação propriamente dita dos sons da fala”:

Um erro ortográfico muito comum nas classes de primeiras letras

diz respeito à grafia “sair derrepente”, por “sair de repente”, ou

“telefone condefeito”, por “telefone com defeito”. O equívoco

denuncia um fato inequívoco: para o falante, certos grupos de

força, assim entendidos como conjuntos de palavras que se

pronunciam sem pausa, são interpretados como se fossem um

único vocábulo. (Câmara Jr., s.d.: p. 322 apud Cavaliere, 2005: p.

132, grifos nossos)

“Erro ortográfico”, “equívoco”, “interpretados”. É muito relevante olharmos

bem de perto esses significantes constantes da citação acima, porque não apenas eles,

mas toda a formulação está estreitamente relacionada ao que explicamos anteriormente:

trata-se de um gesto de interpretação colocar as músicas do álbum A marcha fúnebre

prossegue em forma de versos, ou, utilizando-nos da nomenclatura que optamos por

adotar durante a pesquisa, em forma de „letra de música‟. Além disso, “o múltiplo e o

incompleto se articulam materialmente: a falha e a pluralidade se tocam e são função do

não fechamento do simbólico” (Orlandi, 1995). E os sons são símbolos. As palavras

escritas também. Diante deles, nós fomos impelidos a interpretar, a conferir sentido ao

que ouvia/lia, sujeitando-nos aos possíveis “erros” e “equívocos” suscitados pelos

“vocábulos fonológicos” – que, ao contrário do que postula a afirmação de Cavaliere,

segue produzindo equívocos mesmo após esse momento [escolar?] das “primeiras

letras” –, a fim de que pudéssemos tornar acessível o material com o qual decidi

trabalhar, ou seja, o corpus da pesquisa. Foi a partir desse material, resultado dos

procedimentos descritos anteriormente, que conduzi as análises.

Orlandi (1995) afirma, sobre o trabalho do analista de discurso, que

(...) a AD trabalha não só com as formas abstratas mas com as formas

materiais da linguagem. E todo processo de produção de sentidos se

constitui em uma materialidade que lhe é própria. Assim, a

significância não se estabelece na indiferença dos materiais que a

constituem, ao contrário, é na prática material significante que os

sentidos se atualizam, ganham corpo, significando particularmente.

(idem, 1995: p. 35, grifos nossos)

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e esse aspecto dos processos de significação e de sua intrínseca relação com o material

que o constitui também é necessário de se frisar, uma vez que esta pesquisa se insere no

escopo teórico da Análise de Discurso francesa.

1.2 SOBRE O CAMINHO A SER TRILHADO

Não é possível organizar, prever e planejar tudo – muito do que “escolhemos” resulta de injunções

históricas e inconscientes as quais, às vezes, apenas no “só-depois” conseguimos fazer a leitura.

(Mariani, 1996)

Este projeto, além de apontar para o futuro, lança-se também ao passado, porque

possui uma história, ou, utilizando-nos de um conceito bastante caro à Análise de

Discurso, este projeto possui uma memória. Ele não nasce da simples necessidade de

cumprir uma tarefa obrigatória para obtenção de um aval de qualidade para o

prosseguimento do curso de pós-graduação stricto sensu em Estudos de Linguagem da

Faculdade de Letras da Universidade Federal Fluminense. Considerando-se aqui como

memória do projeto o conjunto de situações acadêmicas e pessoais que contribuiu para o

seu surgimento antes mesmo que a ele se pudesse nomear dissertação.

Ele é o resultado de vários fatores que aqui serão entendidos como condições de

produção. Essas condições são precisamente o contato com a teoria do discurso que deu

base à pesquisa – análise de discurso de linha francesa –, e um grande interesse – alguns

diriam fixação – pelo movimento em discussão, o hip hop brasileiro, especificamente,

pelo rap.

O primeiro se deu em circunstâncias normais de aprendizagem, numa aula sobre

teorias linguísticas, no segundo ano do curso de graduação na Faculdade de Letras desta

Instituição. Tal contato com essa teoria do discurso que tem como base o materialismo

histórico-dialético – originado da leitura que o filósofo Michel Pêcheux, personagem

conhecido como o formulador dos primeiros trabalhos em Análise de Discurso, em

1967, fez de Louis Althusser –, apresentou alguns efeitos de resposta para anseios até

então bastante silenciados, reprimidos e secundarizados, principalmente devido às

insistentes tentativas de categorização objetiva e completa da língua, presentes na

grande maioria dos estudos da linguagem, que, tomando a língua enquanto sistema

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estável, não abarcavam teoricamente os lapsos, os equívocos10

, enfim, as chamadas

“irregularidades” – que a Análise de Discurso compreende como constitutivas das

línguas –, entendendo-os, assim, como „erros‟ e „ruídos‟ que atrapalham a

„comunicação‟.

É por essa razão que, quando se apresentaram alguns textos introdutórios sobre a

Análise de Discurso durante a aula de Linguística III (teorias lingüísticas), certas

questões acerca do funcionamento da língua(gem) se esclareceram e muitas, mas muitas

outras surgiram. E, como já dizia Paulo Freire (1996), filósofo e educador que pensava a

Educação no Brasil do século XX a partir do materialismo histórico-dialético, em seu

livro Pedagogia da Autonomia, é preciso transformar a curiosidade ingênua em

curiosidade epistemológica. E é isso o que se pretende alcançar: dar consequência

científica a uma originalmente curiosidade ingênua.

O segundo contato, decisivo para a escolha do tema desta pesquisa, foi com

alguns produtos do movimento – ou cultura – hip hop brasileiro. Essa relação de maior

proximidade com o hip hop foi proporcionada por uma pessoa bastante próxima, que já

tinha a sua própria história – e sua memória – com o movimento e que se dedicou a

apresentar os discursos presentes nas letras de rap, dentre outros, dos grupos Racionais

MC‟s, G.O.G., Face da Morte, MV Bill e Facção Central. Este último grupo é,

inclusive, a fonte material das práticas discursivas que serão analisadas, sobretudo

devido a dois motivos principais: por um lado, à sua característica de procurar “dizer

exatamente o que acontece” – embora não seja essa a maneira de a AD compreender a

língua –; por outro, ao fato de que, em pleno século XX, num Brasil pós-ditadura militar

e com quase doze anos de vigência da constituição mais progressista de que se tem

notícia na história do país, a Carta Magna de 1988, esse mesmo grupo ter sido indiciado

por incitação ao crime, pelo Ministério Público do Estado de São Paulo (GAECO),

instituição responsável pelo combate ao crime organizado, e proibido de veicular o clipe

nas emissoras de televisão – vale lembrar que, no Brasil, as emissoras são

concessionárias do Estado – de uma de suas composições, a música Isso aqui é uma

guerra. Ou seja, de o grupo ter “sentido na pele” o peso da mão do Estado nesse atual

estágio da luta de classes no Brasil.

10

Entendido como o enunciado que é simultaneamente ele mesmo e outro. Essa noção de equívoco está ligada à de incompletude, constitutiva das línguas, com base na qual se afirma que “tudo não se pode dizer”. (J.-C. Milner, 1987: 19)

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1.2.1 DA DEFINIÇÃO DO TEMA E DA TEORIA ÀS PRIMEIRAS

HIPÓTESES DE PESQUISA

“Os primeiros quinze minutos de fama chegaram no ano 2000, quando a Justiça paulista censurou a

exibição do videoclipe Isso Aqui é uma Guerra, na MTV, que acatou a censura. A música está no terceiro

CD, Versos Sangrentos, de 1999.”

(Luiz Maklouf Carvalho, 2007)

A hipótese que norteou o primeiro momento da pesquisa, momento esse que teve

seu ápice na elaboração do projeto de dissertação, foi a de que as letras de rap

funcionam, sim, como discurso de resistência, mas que, como todo movimento histórico

inscrito na língua, essa resistência não se dá de maneira uniforme, nem sem

contradições. Enquanto a resistência na história se faz com lutas, guerras, revoltas, na

língua ela se dá, sobretudo, na capacidade de dizer o que se procura silenciar, em

assumir novas posições e em resgatar as posições já desautorizadas para restaurar a

legitimidade dos outros sentidos possíveis que são recolocados em disputa, na cena do

jogo das relações de força (poder).

Porém, após esse projeto inicial, a pesquisa continuou e novas hipóteses

surgiram, não para negar nem desconsiderar a anterior, mas para a ela darem

prosseguimento teórico. Portanto, não se pode dizer que a resistência, enquanto

movimento inscrito na língua e na história, parou de produzir falhas e tomou o aspecto

de uma uniformidade. Na realidade, as hipóteses que serão descritas no próximo item

tomam esta como princípio e seguem em direção a uma forma de complementá-la.

Deixar esse ponto claro é fundamental para “avançar” (n)a pesquisa.

1.2.2 NOVAS HIPÓTESES SURGEM PELO CAMINHO

Nas origens do hip hop, o grafite, um dos pilares do movimento, era uma arte que sobrevivia na

ilegalidade e chegou a se tornar uma das suas maiores inspirações. Essa condição de fora da lei

contribuiu, entre tantas outras, para reconhecer no hip hop sua contingente marginalidade.

(Araújo, 2003)

Como o próprio título do item anterior sugere, aquela foi a hipótese da qual se

partiu no início dos estudos que se propôs empreender. Após alguns meses de pesquisa,

esse ponto de partida deu lugar a novas formulações. Uma delas é a de que o sujeito

enunciador, estando submetido ao funcionamento ideológico e à ilusão de completude

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do dizer, produz um movimento de resistência utilizando-se de várias estratégias

linguístico-discursivas no sentido de deslocar o que representa, em sua própria produção

discursiva, aquilo que, nas/pelas práticas discursivas de seu outro, é construído como

evidência. Em outras palavras, esse sujeito enunciador – o rapper – resiste deslocando

os gestos de significação que tentam literalizar o sentido social construído sobre o

favelado.

Outras duas hipóteses podem ser levantadas, como uma espécie de consequência

da primeira: de um lado, com Pêcheux (1978), pode-se pensar na figura do sujeito

enunciador como ocupando o lugar de um porta-voz do favelado; de outro, com Orlandi

(2008), é possível considerar que, apesar de estar inscrito num espaço discursivo em que

predominaria a polêmica, em sua relação tensa entre paráfrase e polissemia (entre o

mesmo e o diferente), se se tomar a proposta de questionamento como básica para o

movimento hip hop, o sujeito autor procura conter a significação de modo a estabilizar o

sentido, o que acaba por instaurar um espaço discursivo autoritário. Cabe lembrar que

não se pensa em discurso polêmico e em discurso autoritário enquanto tipos estanques e

discretos, mas enquanto funcionamentos em relação de tendência, assim, tratar-se-ia de

um discurso que tende para o autoritário (ou seja, à contenção da reversibilidade).

Corroborando para a sustentação das hipóteses acima elencadas, encontram-se

enumeradas, abaixo, onze formas materiais utilizadas pelo grupo Facção Central,

enquanto sujeitos que resistem, a partir de observação cuidadosa da materialidade

linguística das letras pertencentes ao álbum A marcha fúnebre prossegue:

1. Existência de um excesso de estruturas que funcionam como negação /

desacordo e/ou produzem efeito de privação/ausência ou encadeiam ideias de

causa/consequência (conjunções como “mas”, “porque”, “por isso”, “nem” e

advérbios como “não”);

2. Há uma clara saturação no preenchimento gramatical do sujeito. Pode-se pensar

na seguinte proporção: um sujeito gramaticalmente indeterminado ou inexistente

cujo preenchimento discursivo é acessível (ou seja, sujeito que pode ser

preenchido discursivamente) para cada nove sujeitos gramaticais simples

(preenchidos sintaticamente);

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3. Uso frequente, ao final das letras, do advérbio “infelizmente”, como tentativa de

produzir um efeito de insatisfação do sujeito no que tange à certeza de um final

trágico para quem trilha o mundo do crime;

4. Funcionamento discursivo do “é só”, que produz tanto um efeito de exclusão e

de segregação quanto o de um sujeito que não existe gramaticalmente;

5. A expressão reiteradamente utilizada, nas diversas letras, “uma pá de”, que

funciona como um adjunto adnominal indicador de grande quantidade (tal como

“um monte de”, “uma porção de”, “muitos”, “inúmeros”);

6. A produção de efeitos de exagero a partir de construções hiperbólicas. Pode-se

pensar nesse excesso como uma forma de se opor simbolicamente à ausência de

mínimas condições materiais objetivas necessárias a uma vida “digna”;

7. Inserção de formulações que remetem a enunciados de certa formação discursiva

e que vêm atualizadas no fio discursivo de outra FD. Ou seja, numa letra de

música que pretende representar uma cena de sequestro relâmpago, encontram-

se as posições do sequestrador em confronto com as do sequestrado. Observa-se

um exemplo dessa antecipação da posição do outro (no caso, da posição do

sequestrado) pelo sujeito-rapper (enquanto porta-voz do favelado), nas seguintes

formulações: “Não nego minha culpa no menino faminto, / Em vez de cesta

básica, comprei relógio suíço. / Contratei vigia, lancei carro blindado, / Mas,

se o ladrão tá no banco, não é só eu que sou culpado.”)

8. Produção de um efeito em que um sujeito mata simbolicamente, ao som de tiros

(onomatopeias ou mesmo a reprodução sonora do tiro), o outro;

9. O significante “aqui” funciona gramaticalmente ora como pronome pessoal de

primeira pessoa (do singular ou do plural), ora como advérbio locativo, ora

como objeto dativo (de atribuição, p. e., “para nós”);

10. “Ceder” quase que exclusivamente a voz ao favelado (seja ele um traficante, um

menino-soldado do tráfico, um viciado, um trabalhador qualquer uma mãe...),

que pode se expressar na voz ativa; e transformar aquele que tem “voz social” –

o empresário rico, o político, o playboy, a madameetc. – em objeto ou em

ouvinte-virtual (aquele a quem o sujeito enunciador se dirige).

11. Uso recorrente de expressões que objetivam produzir um efeito de insulto e/ou

de xingamento, efeito esse que está diretamente relacionado a quem ouve/lê.

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Essas formas materiais parecem funcionar, na produção discursiva do grupo de

rap Facção Central, como modos de resistir às políticas de silenciamento às quais estão

submetidos tanto os seus membros (do grupo ora estudado) quanto aqueles aos quais

esses procuram representar quando tomam a palavra. Mas, ao tomar a palavra, esse

sujeito porta-voz da favela/periferia, porque não há ritual sem falha, ou seja, porque sua

identificação com os favelados não é plena e não há reversibilidade de lugares sociais,

acaba atualizando formulações de enunciados que não têm sua matriz na formação

discursiva da qual procura retirar seus sentidos. Vale lembrar que, no que concerne ao

funcionamento da “interpelação ideológica dos indivíduos em sujeitos” descrito por

Pêcheux (1990 [1980]), que relaciona essa interpelação ao funcionamento metafórico,

essencial para o movimento histórico dos sentidos,

(...) levar até as últimas consequências a interpelação ideológica como

ritual supõe o reconhecimento de que não há ritual sem falha,

desmaio ou rachadura: “uma palavra por outra” é uma definição (um

pouco restritiva) da metáfora, mas é também o ponto em que o ritual

chega a se quebrar no lapso ou no ato falho. (Pêcheux, 1990 [1980]:

p. 17, grifo nosso, itálico do autor)

Nesse sentido, há, no próprio movimento de produção do novo, algo que se

mantém, que se estabiliza, e essa estabilidade se caracteriza, no fio discursivo das letras

de música em questão, pela assunção de um imaginário com o qual se propõe

confrontar. Colocamos exemplos dessas (des)estabilizações de (efeitos de) sentido no

terceiro capítulo, que fora dedicado às análises.

1.2.3 DISCUTINDO OS ANTIGOS E OS NOVOS OBJETIVOS

É na linguagem que o sujeito se constitui e é também nela que ele deixa as marcas desse processo

ideológico.

(Lagazzi, 1987)

O hip hop, um movimento “nascido na Jamaica e „criado‟ nos Estados

Unidos"11

, aparece nas terras brasileiras por volta da década de 80 e tem seu

crescimento e sua circulação circunscritas sobretudo às periferias das grandes

11

Expressão utilizada por Heloísa Buarque de Holanda, coordenadora do Programa Avançado de Cultura Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em seu artigo A política do hip hop nas favelas brasileiras (s.d., disponível em <<http://www.inesc.org.br/biblioteca/textos/Le%20monde%20-%20%20Heloisa%20Buarque.pdf>>).

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metrópoles, como Rio de Janeiro e São Paulo. Esse movimento de raízes negras – existe

ainda uma discussão interna dos membros que já extravasou para as discussões

acadêmicas e que diz respeito à caracterização dessa prática social enquanto cultura ou

enquanto movimento – é caracteristicamente urbano. Aqui se trabalhou com a

designação de „movimento‟ e, no momento de discutir as condições de produção

apontaremos o porquê, movimento esse que inclui expressões em artes plásticas

(graffiti); em dança (break); e em música (rap, sigla da língua inglesa que, em língua

brasileira, significa ritmo e poesia), com o mixador e apresentador, MC (outra sigla da

língua inglesa que, em língua brasileira, significa Mestre de Cerimômia).

No Brasil, um dos representantes mais conhecidos e mais tradicionais, no que

tange às questões de identidade e à combatividade características dos protestos em

forma de canção nascidos na Jamaica, é o Facção Central, cuja formação inicial

aconteceu em 1989 (ainda na década em que o movimento desembarcou no Brasil), em

Glicéria, zona central de São Paulo. A história do grupo está no capítulo sobre as

condições de produção. Mas cabe antecipar que Glicéria é uma região extremamente

pobre – caracterizada pela ausência das políticas públicas básicas do Estado, o que

significa condições indignas de sobrevivência –, de onde o grupo, cujos membros são

moradores da área, não saiu mesmo depois da “fama”, escolha comum a diversas

personalidades (artistas, atletas etc.) de origem favelada.

Interessante é observar, sobre a questão das favelas, o aspecto de que esses

espaços geográficos – e culturais – estão conquistando cada vez mais olhares para as

suas condições, sendo elas, ou não, postas como protagonistas nesse processo de

chamada à atenção da sociedade não-favelada. Este estudo, nesse sentido, pode apontar

para uma nova forma de compreender os movimentos de constituição da discursividade

sobre si – a favela – e sobre o seu outro, a não-favela, assim como pensar de que forma

se dá a construção do(s) processo(s) de identificação pelo morador dessas localidades, o

favelado, frente aos desafios de sobreviver.

E, para que esse objetivo seja alcançado, é preciso levar em conta “uma proposta

em que o político e o simbólico se confrontam” (Orlandi, 2002). É necessário lançar

mão de uma abordagem teórica que considere a história, que procure desnaturalizar os

sentidos que se tendem a homogeneizar, sob a facilidade/fragilidade da evidência. É

preciso haver um olhar que contemple a língua enquanto espaço intrinsecamente

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relacionado a disputas ideológicas e inconscientes. Necessário se faz considerar as

relações de força entre posições, as contradições entre o lugar de onde se enuncia e a

posição que se defende. E isso só é possível se se compreender que a exterioridade é

constitutiva da própria língua. É da história que surgem os sentidos. É a interpelação

pela ideologia, enquanto estrutura-funcionamento histórico, que constitui o sujeito,

iludindo-o de que ele é sempre já-sujeito e origem de seu dizer e dos sentidos. Essas são

compreensões basilares para o trabalho com o discurso do rap que aqui se propõe.

Vale ressaltar, também, o fato de que o pesquisador tem uma obrigação com a

sociedade, qual seja a de agregar valor social à sua pesquisa, devolvendo-a, com seus

resultados menos ou mais conclusivos, à sociedade, para que esses novos

conhecimentos possam promover maior desenvolvimento nos mais diversos campos da

vida em sociedade. Nesse sentido, a pesquisa que ora se empreende poderá ser utilizada

como mais uma nova forma de abordar um tema tão caro à população brasileira: a

construção da identidade do favelado frente ao projeto de homogeneização cultural, por

meio da cultura de massas. Resgatar do silêncio que a massificação da cultura promove

o projeto de resistência – bem ou mal sucedido – do movimento hip hop significa

resgatar o projeto de construção identitária tão intimamente relacionada a ele. O

movimento quer ter voz. Não para cantar as coisas bonitas que passam na novela das

seis da Rede Globo. Mas para criar um espaço de discussão política sobre assuntos

extremamente delicados das perspectivas de vida – quiçá de sobrevivência – dos

moradores da favela. É esse o papel da academia, enquanto instituição da pluralidade de

pensamento: dar voz àqueles que são calados cotidianamente e devolver a possibilidade

de ele pensar, sob novas perspectivas, a sua própria condição / construção social. A

respeito do papel do pesquisador e do professor de escola, diz Orlandi:

O que se tem proposto, em geral, em termos de escola, tem como

ponto de partida e de chegada a classe média.

(...)

Não penso que se trata – para a solução desse problema – de um

simples esforço de cooperação. Trata-se de uma luta social que

não se resolve através de programas escolares produzidos pela

classe média. Com a resposta da educação democrática, pode-se

dizer que as classes populares estão na escola. No entanto, o direito

que elas têm é o de aprender formas legítimas da cultura

dominante. E as suas formas como ficam? Têm ficado como

alternativas. Alternativas para quem? Não para as classes

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populares, pois, para elas, essas formas não são alternativas, são

principal, isto é, são a sua própria identidade cultural. (Orlandi, 1996:

pp. 92-93, grifos nossos)

Por isso, e considerando-se que o trabalho científico precisa de se imbuir de um

sentido social, que deve contribuir para o seu próprio avanço, bem como para o

desenvolvimento da sociedade; e considerando-se tudo o que foi dito nesta proposta até

agora, pode-se perceber quais as importâncias desta: colocar em questão o imaginário

construído – e em constante (re)construção – sobre o movimento hip hop tanto para o

favelado quanto para seu outro, o não favelado, com vistas à promoção de uma

consequente ampliação não só do horizonte de valores humanos e culturais do

pesquisador em sua, no mínimo, dupla face de pesquisador/educador, mas também do

compromisso da pesquisa científica com a produção e circulação de conhecimentos

necessários à transformação das práticas sociais.

Nesse sentido é que os objetivos pensados, quando da elaboração do projeto de

dissertação – portanto, ainda numa fase inicial do trabalho –, possuíam o intuito de

fundamentar a pesquisa. Assim, a discussão que se produziu naquele momento é assaz

importante para que se possa observar o “avanço” que o aprofundamento deste estudo

representa. E é devido a esse fato que apresentaremos a seguir os referidos objetivos,

bem como mostraremos os “novos” objetivos aos quais se pôde chegar a partir da

continuidade dos estudos.

À época da confecção do projeto de dissertação, elaboraram-se três objetivos

gerais e dois específicos: Os gerais eram: a) resgatar a memória do hip hop no Brasil; b)

resgatar a memória da resistência no Brasil; e c) estabelecer relações entre movimento

hip hop no Brasil e resistência. Os específicos, por outro lado, dividiam-se em: a)

analisar e compreender a construção do imaginário sobre o movimento hip hop no

Brasil; e b) analisar as marcas linguísticas que constituem o discurso da resistência.

Num primeiro olhar, já se podem perceber alguns problemas nesses objetivos,

sobretudo quando se levam em consideração as limitações espacial e temporal relativas

à produção de uma dissertação de mestrado: um estudo consequente de questões como

memória da resistência no Brasil e memória do movimento hip hop no Brasil

demandam muita pesquisa – sobretudo social e antropológica – que não são possíveis

desenvolver neste momento, neste espaço. Isso implica a inviabilidade de se alcançar o

terceiro objetivo geral: estabelecer uma relação entre hip hop e resistência.

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Contudo, no que concerne aos dois específicos, há uma grande possibilidade de

esses continuarem a representar os objetivos desta pesquisa, embora não sem um ajuste

essencial a um deles: “o imaginário sobre o movimento hip hop no Brasil” deve dar

lugar a “o imaginário sobre o rap no Brasil”. Isso porque o movimento hip hop,

conforme bem frisado anteriormente, é um conjunto de quatro elementos (break dance,

graffiti, rap e mastersofceremony [MCs]), três dos quais (break dance, graffiti e másters

ofceremony [MCs]) não serão objeto deste trabalho, embora sirvam como “material de

apoio” para a compreensão das condições de produção do discurso do rap. Outro

detalhe, fundamental para que se pudesse pensar nesses objetivos, diz respeito à questão

do locativo no Brasil: pensar o rap como uma produção nacional, implica tanto

considerar necessariamente as diversificadas produções, nos diferentes cantos deste

país, rotuladas sob a mesma etiqueta de rap nacional quanto as diferenças e

convergências que podem ser observadas entre as produções que se realizam nesse país

e as de outro(s) país(es). Novamente há um impasse: não existe forma de dar a devida

atenção a um assunto tão complexo quando a questão central da pesquisa que aqui se

propõe desenvolver não é essa. Nesse sentido, uma nova delimitação necessitou ser

elaborada: não se trata de rap no Brasil, mas de rap do grupo Facção Central. Dessa

forma, as contribuições sobre o “comportamento social” do rap no Brasil estão restritos

a alguns apontamentos centrais para a discussão acerca do estabelecimento do rap neste

país, assim como uma “fonte” de produções à qual se possam remeter as produções do

grupo objeto deste estudo (Facção Central).

Com todas essas considerações feitas, pode-se passar para a descrição dos novos

objetivos, a saber:

1. Geral:

a. Verificar o funcionamento de estruturas na/da língua imaginária e

na/da língua fluida, tais como o funcionamento discursivo das marcas

“não”,“mas / só (que)”, “se”, “pois / porque”.

b. Distinguir ordem e organização da língua no modo de funcionamento

discursivo das letras do álbum em questão (A marcha fúnebre

prossegue)

2. Específicos:

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43

a. Pensar os processos de produção de identificação do sujeito a partir

das marcas significantes presentes no fio discursivo das letras de rap

do grupo Facção Central;

b. Relacionar essas marcas significantes de produção de identificações

do sujeito com as formações discursivas e com a resistência ao

“preenchimento” do lugar social reservado a esse sujeito no

imaginário construído socialmente.

Portanto, partindo da análise desses processos de produção de identificação do

sujeito com determinados sentidos e da relação que estes mantêm com determinadas

formações discursivas e com o imaginário construído pela mídia, poder-se-á contribuir

teoricamente tanto para a Análise de Discurso de escola francesa, quanto para a

ressignificação de estruturas gramaticais como as de sujeito inexistente.

Mariani (2007), em um texto que tematiza a questão do preconceito linguístico

segundo uma perspectiva discursiva, contribui diretamente para o modo como se pode

pensar essa “relação vacilante” (idem) de identificação – ou de não-identificação – do

sujeito falante com a língua nacional, relação essa de extrema relevância para a

discussão que ora se trava, pois a partir dela se podem tecer considerações acerca da

resistência à língua, na língua, por exemplo.

Nesse sentido, mostraremos, no momento das análises, que existe uma relação

vacilante tanto entre o sujeito e a língua quanto entre esse mesmo sujeito e as

instituições responsáveis pelo controle e manutenção dessa língua, como é, por

exemplo, o caso da educação. Mostraremos que a escola e a educação, como um todo,

sofrem um deslocamento considerável de sentido a partir da posição ocupada pelo grupo

enquanto porta-voz da favela/periferia, mas como, ao mesmo tempo, permanece um fio

central que liga os diferentes sentidos socialmente creditados a esses significantes: o de

transmissão de conhecimento. Como já citado anteriormente, isso significa que o

mesmo (ou seja, a transmissão de saberes) contém o diferente (a que saberes essa

transmissão se relaciona).

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2. QUADRO TEÓRICO-METODOLÓGICO

A Análise do Discurso que reinscreve suas questões a cada prática analítica, em um movimento de

compreensão da teoria em sua relação à prática.

(Baalbaki, 2010)

Muito já se mencionou, neste início de dissertação, acerca do quadro teórico-

metodológico que fundamenta esta pesquisa. Contudo, faz-se necessário conduzir uma

discussão mais detalhada sobre a contribuição teórica representada pelos estudos da

Análise de Discurso de escola francesa, enquanto espaço de ressignificações

epistemológicas nos campos dos estudos de linguagem e das ditas ciências humanas e

sociais – espaço esse que tem, na figura do filósofo francês M. Pêcheux (ou Thomas

Hebert, seu pseudônimo, segundo o também filósofo P. Henry (1997: 13)), seu

“formulador original”, e na figura da professora brasileira da Universidade Estadual de

Campinas, E. Orlandi, sua “formuladora inaugural” –, a fim de que, a partir das noções

teóricas dessa “disciplina de entremeio” (Orlandi, 2009 [1999]) mobilizadas, se possam

alcançar os objetivos apresentados.

2.1 A ANÁLISE DE DISCURSO “DA ESCOLA FRANCESA”:

HISTÓRIA, SENTIDO E LINGUAGEM NA HISTÓRIA DOS

ESTUDOS DA LINGUAGEM

(...) a historicidade – e não a história – é o modo de entrar no discursivo, não se trata da cronologia ou

evolução, mas da produção simbólica ininterrupta que organiza, na linguagem, sentidos para as relações

de poder presentes em uma formação social, produção esta sempre afetada pela memória do dizer.

(Moreira, 2009)

O referencial teórico que fundamenta a presente pesquisa é, como já fora dito, o

da Análise de Discurso da escola francesa, campo em que se destacam enquanto figuras

“inaugurais”, conforme mencionado, os estudiosos Michel Pêcheux (França) e

EniOrlandi (Brasil), mas cujo desenvolvimento apenas se abre a partir deles; a

ancoragem metodológica será a qualitativa, ou seja, aquela que se fundamenta em

estudos de características descritivas, a partir de pesquisas bibliográficas e documentais.

Situada num corte epistemológico que articula linguística, materialismo

histórico-dialético e teoria do discurso, tudo isso atravessado por uma teoria da

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45

subjetividade de natureza psicanalítica12

, a Análise de Discurso se propõe a estudar a

língua onde esta funciona: no movimento da história. É por esse motivo que o objeto da

análise de discurso é, como o próprio nome já diz, o discurso. Para alcançar essa meta, a

teoria do discurso, inaugurada em 1969, em meio à efervescência dos estudos

estruturalistas, coloca em jogo as noções de ideologia e de inconsciente. Mas não o faz

num movimento de simples recorta-e-cola. A fim de que essa disciplina do entremeio se

constituísse, foi preciso considerar as contradições entre esses campos – materialismo

histórico-dialético, psicanálise e lingüística – e mesmo as contradições internas que cada

um carrega. Com relação a essas características da Análise de Discurso, afirma Orlandi:

[...] essa nova forma de conhecimento coloca questões para a

Linguística, interpelando-a pela historicidade que ela apaga, do

mesmo modo que coloca questões para as Ciências Sociais,

interrogando a transparência da linguagem sobre a qual se

assentam. Dessa maneira, os estudos discursivos visam pensar o

sentido dimensionado no tempo e no espaço das práticas do

homem, descentrando a noção de sujeito e relativizando a

autonomia do objeto da Linguística. (Orlandi, 2003: p. 16, grifos

nossos)

Mas não basta dizer que o objeto teórico da Análise de Discurso é o discurso, se

não se compreender como a Análise de Discurso desterritorializa esse conceito para

produzir um objeto próprio à teoria. O discurso, para essa disciplina, é efeito de sentido

entre locutores (Pêcheux, 1969). E o sujeito formula a partir de um lugar social,

identificando-se com determinada posição ideológica, ocupando certa posição-sujeito

referente a uma determinada formação discursiva. Importante considerar que, para se

constituir sujeito, o indivíduo é interpelado pela ideologia. Essa ideologia, colocada em

prática por meio das formações ideológicas, materializam-se no discurso produzindo

sentidos nas diversas formações discursivas. Fica mais fácil compreender esse jogo de

relações se se tomar como base uma das constatações fundamentais da Análise de

Discurso: o discurso é a materialidade específica da ideologia, e a língua é a

materialidade específica do discurso (Orlandi, 1999).

12

PÊCHEUX E FUCHS apud MOREIRA, 2009

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46

É necessário, ainda, esclarecer alguns pontos sobre o sujeito e sua constituição:

está dissimulado para esse sujeito o funcionamento do histórico imbricado ao

funcionamento dos processos de produção dos sentidos, com os quais esse sujeito se

identifica, sob a ilusão de ser ele próprio a origem de seu dizer e sob a ilusão da

evidência dos sentidos. As estruturas-funcionamentos, ideologia e inconsciente, atuam

duplamente, fazendo funcionar dois esquecimentos que são a base desse sujeito: o

esquecimento número um, que diz respeito à ilusão do sujeito enquanto origem de si

mesmo e que produz um efeito de evidência segundo o qual “eu sou eu”, em que o

sujeito se reconhece enquanto origem de si mesmo, podendo, portanto, assumir um

lugar social e uma posição, quando toma a palavra, mesmo sendo esse movimento não

transparente para o sujeito; e o esquecimento número dois, que responde pela ilusão de

que o sujeito é origem daquilo que diz, porque, ao ser interpelado pela ideologia, o

sujeito se filia a redes de dizeres, formações discursivas, que funcionam como matrizes

de sentidos para esse sujeito e donde o sujeito tem a ilusão de retirar o sentido daquilo

que produz enquanto formulação. Orlandi (2009 [1999]) denomina esse esquecimento

nº 2 de “esquecimento enunciativo”, por ser da ordem da enunciação. É exatamente esse

o funcionamento da ideologia: apagar suas marcas por meio da produção de evidências,

através dos processos de identificação entre sujeito e sentido. Por isso, diz-se que sujeito

e sentido se constituem ao mesmo tempo.

E é devido a esses esquecimentos que se pode dizer que a Análise de Discurso é

uma teoria do assujeitamento: o sujeito é interpelado inconscientemente e

ideologicamente para se constituir. Nessa interpelação, ele se filia a determinada(s)

formação(ões) discursiva(s) para que seu dizer possa fazer sentido. Sentido esse que,

para o sujeito, assujeitado, torna-se evidente, o único possível, mas que, por trás de sua

opacidade, remete a diversas memórias e a diversas possibilidades de realização.

Mas, a partir de Grigoleto (2005), recordamos uma passagem em Courtine, para

quem essas formações discursivas não são noções fechadas. Assim, relacionando

formações discursivas (FD), modalidades subjetivas e movimento de (des)identificação

do sujeito com o sentido, ela discorre:

Com o avanço de algumas noções teóricas dentro da teoria

materialista do discurso, é possível pensar a partir de Courtine

(1981), por exemplo, a noção de FD [formação discursiva] numa

outra perspectiva. Já não se trata de um todo complexo com

dominante, mas de uma FD com fronteiras instáveis, onde é possível

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a reconfiguração, a transformação e, por que não, a ruptura.

(Grigoleto, 2005: p. 65, grifos nossos)

Por conta de todas essas questões levantadas, pode-se perceber que não se deu,

aqui, um foco ao conteúdo – como se os sentidos fossem únicos e verdadeiros – das

letras de rap, como o pretendeu o Ministério Público do Estado de São Paulo, quando

indiciou o grupo Facção Central por incitação ao crime. Partimos do princípio teórico

de que existem muitos outros sentidos além dos que se podem antecipar. Apenas uma

análise mais criteriosa e detalhada, com respaldo nos dispositivos teórico e analítico,

pode contribuir para uma discussão mais qualificada sobre os processos de construção

identitária e, possivelmente, de resistência, que estão materializadas nessas letras.

Desejou-se, portanto, a partir da pesquisa, problematizar esses efeitos de evidência

produzidos para os sentidos relacionados ao rap, por meio da desnaturalização da

relação palavra-sentido, relação essa que diversas teorias do texto tentam colocar como

unívoca, silenciando todos os outros sentidos possíveis.

No texto que introduz a leitura do livro Discurso e textualidade, Orlandi

(Lagazzi-Rodrigues e Orlandi, 2006) afirma que

A Análise de Discurso tal como a conhecemos no Brasil – na

perspectiva que trabalha o sujeito, a história, a língua – se constitui no

interior das conseqüências teóricas estabelecidas por três rupturas

que estabelecem três novos campos de saber: a que institui a

lingüística, a que constitui a psicanálise e a que constitui o

marxismo.Com a linguística ficamos sabendo que a língua não é

transparente; ela tem sua ordem marcada por uma materialidade que

lhe é própria. Com o marxismo ficamos sabendo que a história tem

sua materialidade: o homem faz a história, mas ela não lhe é

transparente. Finalmente, com a psicanálise é o sujeito que se coloca

como tendo sua opacidade: ele não é transparente nem para si

mesmo. (Orlandi, 2006: p. 13, grifos nossos)

Tais considerações, que colocam em relevo o campo no seio do qual se constitui

essa disciplina de entremeio (Orlandi, 2009 [1999]), para a qual a exterioridade e

historicidade são constitutivas da linguagem, enquanto sistemática e assistemática, são

de grande importância, porque ilustram com maiores detalhes o quadro epistemológico

da teoria em questão, cujos principais elementos serão discutidos nos próximos

capítulos.

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A Análise de Discurso possui, assim, como toda teoria, instrumentos de

metodologia, a fim de que se possa proceder às análises. São instrumentos

extremamente complexos, que usualmente não são definidos a priori, pois mantêm

estreita relação com o tipo de material em análise. No entanto, há a necessidade de se

construir arquivos, a partir dos quais se compõem os corpora, cujos cortes estão

relacionados diretamente com os objetivos da análise.

A noção de arquivo é basilar em Análise de Discurso, pois, sem compô-lo, não

se pode proceder às análises. M. Pêcheux (1997), em seu artigo Ler o arquivo hoje,

explica que arquivo, em Análise de Discurso, é, num sentido lato sensu, um “campo de

documentos pertinentes e disponíveis sobre uma questão”. Mas a Análise de Discurso

não trabalha com aplicação da teoria e, sim, com interpretações a partir dela, e essa

noção de Pêcheux foi, então, rearticulada por Mariani (2010):

Um arquivo, qualquer que seja, representa uma instituição que

congrega em seu funcionamento aspectos políticos, técnicos,

jurídicos e éticos. Em qualquer arquivo se inscreve a historicidade

de uma política de silenciamento13

resultante das condições

históricas e ideológicas de sua institucionalização e de sua inserção

nas redes de memória. [...] Podemos pensar, então, que nos arquivos

se inscrevem sintomas da época em que foram organizados e é

com esses sintomas que um pesquisador se depara. (Mariani, 2010:

s/p, grifos nossos)

Essa rearticulação da designação que Pêcheux confere à noção de arquivo traz

consigo pelo menos duas implicações. A primeira diz respeito à característica de não-

completude de um arquivo: o pesquisador não pode ter a ilusão de que trabalhará a

partir de fontes históricas que “refletem” o pensamento de uma época. Há sempre, como

resultado do embate das relações de poder inscrito nas línguas, um ou mais sentidos

objetos de silenciamento, ao mesmo tempo em que há a eleição de um (ou mais)

sentido(s) a ser preservado como “o(s) verdadeiro(s)”. A segunda concerne à questão da

ilusão da completude dos materiais: o pesquisador não deve acreditar que possui nas

mãos todos os documentos relativos a determinado assunto, produzidos e postos em

circulação em determinada época. Esse acesso irrestrito a todos os materiais não passa

de uma ilusão (teórico-metodológica). Ainda assim, o pesquisador não pode se

13

Neste momento de sua elaboração textual, Mariani cita um trabalho de Orlandi, As formas do silêncio no movimento dos sentidos (2004 [1993]), que também foi utilizado para a confecção desta dissertação e que, portanto, consta da bibliografia deste.

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contentar em não buscar o máximo de documentos para a sua pesquisa, a fim de que sua

pesquisa se torne o mais abrangente possível acerca do tema trabalhado.

Em termos metodológicos, cabe ressaltar que o corpus empírico, a ser analisado

é constituído pelas letras das músicas que compõem o álbum, produzido pelo grupo

paulista de rap Facção Central, A marcha fúnebre prossegue (2001). Foram observadas,

no modo de construção dessas letras de música, o que chamamos de marcas linguísticas,

ou seja, foi feita a dessuperficialização das letras (busca de desfazer as evidências

produzidas pelo „esquecimento enunciativo‟, ou seja, da ordem do linguístico) a partir

da remissão dessas construções à memória dos discursos de resistência, à das músicas

em geral, à das músicas de rap em específico e às condições – situacionais em sentido

restrito e, em sentido amplo, histórico – em que essas músicas foram produzidas. Esse

processo permitiu a construção do corpus discursivo. Remetendo-se, então, essas

formulações ao conjunto de enunciados historicamente significados, pôde-se proceder à

análise, a partir da qual determinados gestos de leitura proporcionaram a compreensão

de determinados sentidos para esses discursos, a partir de um lugar teórico no qual há

espaço para a discussão sobre as relações de força e de poder inscritas na língua. Sobre

esse dispositivo de dessuperficialização das marcas linguísticas, propõe Orlandi (1987: )

o seguinte esquema:

Figura 1

Nós, diante de nosso corpus discursivo, relemos esse esquema de Orlandi e

propomos, à guisa de ilustração, com base nos conceitos mobilizados:

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Figura 2

E, no que tange à questão da completude e da exaustividade em pesquisa, cabe

frisar o seguinte aspecto relativo à perspectiva da Análise de Discurso, trazido pelas

palavras de Mariani (1996):

Para a AD, a exaustividade e a completude, mitos integrantes das

análises empíricas, são critérios que não se colocam. A depreensão

das regularidades enunciativas (...) não necessitam de um acúmulo

quantitativo de dados. Em AD, é a noção de fato discursivo que

traz conseqüências para a análise, pois permite que se trabalhe com as

noções de processo de produção de linguagem e acontecimento.

(Mariani, 1996: p. 52, grifos nossos)

Esses “mitos” tentam dar conta da incompletude, característica intrínseca às

práticas discursivas. Eles funcionam produzindo efeitos de sentido de plenitude,

segundo os quais tudo se pode dizer – relação com a língua – e tudo se pode recuperar –

relação com a história. As teorias que partem desses pressupostos, de transparência da

língua e da história, não as relacionam ao funcionamento ideológico, e não

compreendem a possibilidade de movimento dos sujeitos, que resistem aos sentidos

produzidos pelos significantes que buscam significá-los. Nesse sentido, a pesquisa em

Análise de Discurso representa exatamente uma resistência ao efeito de sentido de

plenitude comum a outros campos do conhecimento: a regularidade enunciativa, e não a

exaustividade, orienta as pesquisas para esta teoria, e é a partir desses pressupostos que

se propôs a realização do presente estudo.

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2.2 NOÇÕES TEÓRICAS MOBILIZADAS

O sujeito é, portanto, um efeito do processo sem sujeito, uma ilusão que, no interior do discurso, pode

ocupar diferentes posições.

(Lagazzi, 1987)

Após uma visão geral sobre a teoria do discurso, abordagem assaz necessária

para a continuidade de nossa pesquisa, neste momento apresentaremos algumas noções

que se mostraram essenciais para a condução das análises e que já começam a compor o

nosso objeto analítico, uma vez que as análises são feitas a partir de instrumentos

teóricos. A escolha por esses e não outros instrumentos traz implicações não apenas

para a condução, mas também, e principalmente, para o sentido que as análises tomam

em direção ao resultado, mesmo que provisório, da pesquisa. Nesse sentido, dividimos

este subitem em cinco momentos, que estão apresentados a seguir.

2.2.1 SUJEITO, SENTIDO E IDEOLOGIA: DAS FORMAÇÕES

DISCURSIVAS

“Taddeo explica que não é ele quem fala na música, mas os personagens que cria, com cenários e

narrativas ficcionais. Se o narrador é um assaltante de banco, falará como um. Se é uma vítima de

seqüestro, fará esse discurso. Se é um bandido arrependido pedindo perdão à mãe, o melodrama

cresce.”

(Luiz Maklouf Carvalho, 2007)

A primeira noção extremamente relevante para a condução das análises – assim

como para a própria teoria do discurso – é a de ideologia, na sua relação com o sujeito e

com o sentido. Retomamos a discussão iniciada anteriormente, a fim de aprofundá-la. A

Análise de Discurso compreende ideologia não como falseamento da realidade, ou

como uma máscara que encobre as situações de linguagem e que deve ser extraída a fim

de que se chegue à verdade dos sentidos. A ideologia é, sim, entendida como uma

estrutura-funcionamento que interpela o indivíduo em sujeito, e que produz a ilusão

necessária (evidência) de um sujeito sempre já lá (Pêcheux, 1988 [1975]) para que este

possa se reconhecer enquanto sujeito e tomar a palavra. É a partir dessa noção de

ideologia que se compreende o funcionamento das evidências, do óbvio – daquele

sentido que não pode ser outro, que só pode ser aquele –, o qual se institui como o único

possível.

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O funcionamento da ideologia também se relaciona com a memória, não no

sentido que os psicólogos e médicos a utilizam – como uma instância psicológica –, mas

como trabalha, por exemplo, Mariani (1996)

(...) nada é neutro nem transparente em termos de prática

discursiva: os sentidos se produzem em formações discursivas, são

regulados por rituais sócio-históricos, são mobilizados

interdiscursivamente enquanto exterioridade que afeta

constitutivamente o sujeito. No entanto, a ideologia da

transparência dos sentidos na linguagem comparece sempre e de

diferentes maneiras,produzindo o efeito de literalidade, ao mesmo

tempo em que apaga o processo de imposição hegemônica de uma

determinada interpretação. (Mariani, 1996: p. 67, grifos nossos)

produzindo um esquecimento necessário, a fim de que o sujeito possa se entender como

origem de si mesmo, colocando-se como dono de seu dizer. É com a interpelação

ideológica do indivíduo em sujeito que se constitui, simultaneamente, o sentido para

esse sujeito, a partir do funcionamento a que se denomina, em Análise de Discurso, de

“processo de identificação”. Daí que Orlandi (2009 [1999]) reiteradamente afirma que

sujeito e sentido constituem-se mutuamente.

E esse sentido se filia a determinada formação discursiva (FD), à qual esse

mesmo sujeito, atravessado pelo inconsciente e pela ideologia, identificou-se para

significar. A forma-sujeito pode ser compreendida como a posição-sujeito dominante

em uma FD. Portanto, uma mesma FD não comporta apenas uma posição-sujeito, mas

várias, com as quais mantém algum tipo de ligação semântica, mesmo que não sejam

coincidentes.

Mas, de acordo com Pêcheux, essa evidência do sujeito está diretamente

relacionada à evidência do sentido, uma vez que sujeito e sentido constituem-se

mutuamente pelo processo de interpelação/identificação (entendida como um processo).

É o que se pode apreender do seguinte trecho:

Ora, eis o ponto preciso onde surge, a nosso ver, a necessidade de uma

teoria materialista do discurso; essa evidência da existência

espontânea do sujeito (como origem ou causa de si) é

imediatamente aproximada por Althusser de uma outra evidência

presente, como vimos, em toda filosofia idealista da linguagem, que é

a evidência do sentido. (Pêcheux, 1988 [1975]: p. 153)

E, ao dar continuidade à sua elaboração, Pêcheux retoma a formulação de

Althusser, destacando nela algumas partes que dizem respeito diretamente a essa

evidência do sentido – “inclusive aquelas que fazem com que uma palavra „designe uma

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coisa‟ ou „possua um significado‟” – e a sua relação com o pressuposto da transparência

da linguagem.

O segundo elemento destacado, mas não menos importante para as análises aqui

propostas, é a noção de formação discursiva já mencionada: não sendo possível haver

sentido sem que haja interpretação (Orlandi, 1996), os sujeitos são instados a

interpretar, a significar. Isso faz com que, ao dizer, o sujeito se filie a determinadas

redes de sentido, que recortam o dizível (que, em Análise de Discurso, é denominado

interdiscurso). A essas redes de sentido, a teoria em questão dá o nome de formações

discursivas. As formações discursivas trazem para a materialidade discursiva – a língua

– as formações ideológicas, que representam as tensões entre as posições que os sujeitos

das forças sociais assumem no discurso. Nesse sentido, tem-se a seguinte afirmação de

Pêcheux:

Chamaremos, então, formação discursiva aquilo que, numa formação

ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura

dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que

pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um

sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa, etc.

(Pêcheux, 1995 [1975]: p. 160, grifos do autor)

Importante é enfatizar o fato de que esses recortes do interdiscurso, as formações

discursivas, não possuem fronteiras estanques, de delimitação precisa e definitiva. Esse

foi o primeiro entendimento de formação discursiva, no momento em que se

elaboravam as bases teóricas da Análise de Discurso, por Pêcheux (1969), na década de

70 do século XX. No entanto, já no início dos anos 80 do mesmo século, J.-J. Courtine

(2009 [1981]), em sua tese intitulada “O discurso comunista endereçado aos cristãos”,

contribui para uma ampliação no horizonte desse conceito. Elabora-se, assim, uma

compreensão de formação discursiva como recortes “porosos”, que permitem ao sujeito

se movimentar entre diversas posições relativas a diferentes FDs. A possibilidade de se

movimentar entre essas diferentes posições deixa o sujeito mais próximo ou mais

distante dos sentidos “administrados” pela forma-sujeito da formação discursiva à qual

se refere. Pensando nessas distâncias e aproximações entre posições discursivas,

Pêcheux (1988 [1975]) propõe as modalidades subjetivas, com base nas quais podem-se

observar desde uma reduplicação entre o sujeito e a forma-sujeito dessa FD,

teoricamente denominado como identificação, até um recobrimento parcial, existindo

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assim uma abertura para questionamentos e dúvidas, que a teoria reconhece como

contra-identificação. Mas esse sujeito pode mesmo não se reconhecer mais nas posições

administradas por tal formação discursiva, desidentificando-se com ela, ao mesmo

tempo em que se identifica com uma nova rede de sentidos. Acontece que esse

deslocamento não se dá de forma consciente, nem plena, pois o sujeito continua a

manter uma relação com as formações discursivas das quais se desidentificou, seja por

negar os sentidos anteriores, seja por promover silenciamentos em relação a eles, mas

constantemente referindo-se a tais sentidos.

Esses movimentos do sujeito, que pode aderir ou se posicionar contra, ou que

pode, ainda, se desidentificar de determinada matriz de saber, importaram muito para a

presente pesquisa, pois é a partir dessa possibilidade de movimentos que se podem

compreender as modalidades de resistência de um sujeito aos sentidos dominantes.

É nessa resistência, produzida pelo movimento do sujeito em relação aos

sentidos possíveis e entre as diferentes formações discursivas que, segundo a hipótese

levantada, entende-se estarem inseridas as produções discursivas que instauram isso que

designamos de imaginário de protesto. E esse protesto se materializa no fio discursivo

dessas produções, sendo possível, portanto, analisar esse confronto historicamente

constituído entre sentidos produzidos em diferentes formações discursivas e que

remetem a diferentes formações ideológicas. Nas letras das músicas do grupo Facção

Central, encontramos muitas marcas da formação ideológica socialista, o que contrasta

com a formação ideológica capitalista na qual estão inseridos e da qual também

carregam determinadas marcas (enunciados do discurso jurídico burguês da igualdade

perante a lei são exemplos de como o discurso capitalista moderno está marcado no fio

discursivo das produções do Facção Central).

Mas o que estamos aqui a mostrar é que, para além de esse sujeito-rapper se

identificar com sentidos que poderíamos chamar de contra-hegemônicos(pensemos em

hegemonia de acordo com o que nos diz Almeida:

Hegemonia é uma combinação de liderança (ou direção moral)

com dominação. É exercida através do consentimento e da força,

da imposição e da concessão, de e entre classes e blocos de classes e

frações de classes. Esta pode se dar de forma ativa, como vontade

coletiva, ou se manifestar de forma passiva, através de um apoio

disperso ao grupo dirigente/dominante. (Almeida, 2003, apud

Miranda, 2011, grifos nossos)

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Entendamos contra-hegemonia14

,, conforme nos afirma Miranda,

[...] o emprego maior ou menor da coerção ou do consenso será

mediado pela conjuntura, onde classes antagonistas podem criar

condições de desestabilizar as classes hegemônicas. Gramsci afirma

ainda que os órgãos de opinião pública (jornais e associações) têm um

papel destacado nesse processo, na construção do consenso. Vale

lembrar que tais órgãos possuem capacidade de disseminar e

multiplicar os valores do consenso hegemônico. Por isso, o pensador

italiano dá importância à luta política, sobretudo, na sociedade civil,

na construção de valores antagônicos aos da classe que detém a

hegemonia (a luta pela hegemonia deve articular todos os níveis da

sociedade: a base econômica, a superestrutura política e a

superestrutura ideológica).

ele se contra identifica com a organização suposta de sua própria língua, língua a partir

da qual ele enuncia. E, ao contra identificar-se com tal organização, esse sujeito-rapper

ocupa uma nova posição (que podemos relacionar com um movimento característico de

hesitação pelo falante, que Mariani (2009) designa por meio da expressão “relação

vacilante”, mas que não para aí, porque, na relação vacilante, tal como proposto pela

autora, o sujeito precisa ocupar uma posição na formação discursiva que reconhece uma

certa organização de língua como a correta, organização essa que se confronta com uma

outra, concebida como errada. E nesse confronto, esse sujeito da relação vacilante vai

ocupar a posição de quem “fala errado”, mas precisa/quer aprender a “fala correta”.

Uma posição que o sujeito-rapper não ocupa em parte alguma do corpus da pesquisa,

sujeito esse que se engaja nesse processo de resistir à organização gramatical

normativo-escolar da língua e que passa a produzir sentidos a partir de outra posição,

relativizando, de certa forma, tal organização preconizada, no caso, pela gramática

normativa, a partir da educação escolar/formal).

Com respeito às diversas maneiras de se relacionar com a língua, Orlandi (1988)

nos diz que a análise de discurso se interessa pela “ordem material”, pela questão da

relação entre sujeito e sentido, que se constituem histórica e mutuamente:

Ao se passar da instância da organização para a da ordem, se passa

da oposição empírico/abstrato para a instância da ordem material em

que o sentido não é conteúdo, a história não é contexto e o sujeito

não é origem de si. Expliquemo-nos: o que interessa ao analista de

discurso não é a organização (forma empírica ou abstrata) mas a

14

Trata-se de um conceito elaborado por Antonio Gramsci, membro fundador do Partido Comunista Italiano, autor dos conhecidos Cadernos do Cárcere. Nasceu na última década do século XIX e veio a falecer antes da metade do século XX (1891-1937). Informações obtidas a partir do site: http://www.marxists.org/portugues/gramsci/index.htm .

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ordem do discurso (forma material) em que o sujeito se define pela

sua relação com um sistema significante investido de sentidos sua

corporeidade, sua espessura material, sua historicidade. (Orlandi,

1988: p. 49, grifos nossos)

Ao levarmos em conta a opacidade da língua, estamos nos posicionando frente a

uma demanda que existe nos estudos de língua(gem) sobre a questão dos sentidos (e a

literalidade). Como já fora mencionado, para a análise de discurso, sentido e sujeito

constituem-se mutuamente, e mais: o sentido não tem como origem nem a imaginação

do falante nem os ouvidos de quem ouve. Quando Pêcheux (1969) institui discurso

como o objeto da Análise de Discurso e o define como sendo “efeito de sentido entre

locutores”, está postulando que o sentido está diretamente relacionado ao processo de

identificação – ou não – pelo sujeito. Ele está postulando, também, que nenhum desses

sujeitos implicados são donos, cada um, de uma parte do sentido, mas, sim, que aquilo

que é dito, frente à necessidade de interpretação pelo sujeito, produz determinado efeito

em cada um dos interlocutores, isso porque pensamos a literalidade como efeito também

(um sentido que se cristaliza historicamente como o único, silenciando outros possíveis,

sem que, no entanto, esses outros possíveis sejam permanentemente apagados. Ficam

“resquícios” e esses resquícios significam).

“Tudo não se diz”, nos diz Milner em O amor da língua (1987), e isso tem

diversas implicações, dentre as quais a de que não se pode tudo dizer, apesar de

vivermos sob a ilusão da onipotência da língua e do sujeito. Completude do dizer,

completude do sentido, completude do sujeito. Ilusões necessárias para a interpretação e

inexoráveis ao sujeito, que acredita ser senhor do que diz – e do que ouve, do que lê...

Mas Pêcheux (1969) vai nos dizer que essa incompletude é “produtiva”, porque é por

causa dela que os sujeitos e os sentidos podem se movimentar e tornarem-se outros. São

os espaços e as lacunas, as faltas, enfim, que permitem ocorrer os processos de

identificação, contra identificação e desidentificação do sujeito com o sentido. Nós, na

posição de analistas de discurso, não somos alheios a esse processo assujeitador que a

língua nos impõe para que possamos significar. E isso tem como consequência,

sobretudo, o fato de que estamos sujeitos a nos identificar com um ou com outro

sentido, embora estejamos, enquanto analistas, trabalhando “no limite da interpretação”

(Orlandi, 2009 [1999]), a fim de que possamos compreender como se dão os processos

de construção dos sentidos possíveis e como eles se relacionam entre si e com a

memória.

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57

Assim, podemos dizer que estamos diante de um outro movimento: o de dar

sentido às produções significantes que atravessam esse sujeito-rapper, ao formular suas

letras, produções essas às quais tal sujeito nem sempre tem acesso de modo consciente.

Ele precisa estar inserido, até determinado limite, nessa organização imposta pela

“gramática” e por todos os sujeitos “autorizados” a decidir sobre o funcionamento da

língua, a fim de que seus supostos ouvintes – aqueles sujeitos imaginados pelo sujeito-

autor como “destinatários” de suas produções, no momento em que produz seu discurso

(mecanismo da antecipação) – tenham o mínimo de condições de interpretar aquilo que

ouvem. Mas estar inserido na lógica gramatical não é suficiente para esse sujeito-rapper

“passar sua mensagem” e ser “entendido”. Isso porque, para a Análise de Discurso,

existe um elemento central chamado ideologia. Sendo próprio da ideologia “dissimular

sua própria existência no interior mesmo do seu funcionamento, produzindo um tecido

de evidências „subjetivas‟, devendo entender-se este último adjetivo não como „que

afetam o sujeito‟, mas „nas quais se constitui o sujeito‟.” (Pêcheux, 1988 [1975]). Isso

desloca inteiramente o olhar sobre tal produção discursiva: saímos do terreno do

certo/errado em gramática para o repetir/deslocar na ordem da língua.

Para dar um exemplo de como funciona uma identificação entre sujeito e

sentido, podemos observar os sentidos da palavra “vítima”, que aparece algumas vezes

em diferentes letras de música do álbum em análise. Se não tomamos o sentido como

transparente, evidente, precisamos nos perguntar: para o sujeito-autor dessas letras de

música, qual sujeito preenche essa posição discursiva de vítima? Após uma cuidadosa

observação do funcionamento dessa palavra, vemos que há, pelo menos, duas posições

distintas – e, diríamos, opostas – que significam diferentemente essa mesma palavra: de

um lado, na letra (L2), essa “vítima” está funcionando como um sinônimo para um

refém em um assalto a banco, ou seja, esse termo encontra seu sentido a partir de uma

posição discursiva que coloca o assaltante de banco como o vilão e os

usuários/funcionários do banco, feitos de reféns durante tal assalto, como vítimas. “A

vitória é tentada de forma violenta / o sucesso dependente de um fracasso, de um

caixão/ de um malote na mão, de uma fuga rápida, de um dia de sorte / um Deus

dividido por duas orações / uma vítima ajoelhada implora pela vida / o ladrão,

nervoso, trêmulo, não quer algema da polícia”. Já na letra de música (L4), a palavra

„vítima‟ recobre uma outra posição discursiva, retirando seu sentido de uma matriz

bastante diferente da primeira matriz: trata-se, aqui, do “moleque do pipa”, aquele

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garoto favelado que não tem seus direitos básicos à educação, saúde, moradia garantidos

e que “opta” por seguir a vida do/no crime: “Sou homem pra dizer que o moleque do

pipa / esquecido um dia troca tiro com a polícia / não simulo sentimento pra vender CD

/ não vou falar de paz vendo a vítima morrer”.

Assim, a partir de apenas uma palavra e de duas letras de músicas (L2 e L4),

conseguimos observar como o sentido não se dá a priori, como ele acaba construindo

sua referência histórica e discursivamente: no primeiro caso, ou seja, na (L2), tem-se

uma referência para a palavra vítima construída a partir do imaginário sustentado,

sobretudo, pela formação ideológica capitalista, segundo a qual as posses materiais – no

caso, dinheiro, joias e ações, por se tratar de um banco – são entendidas como bens mais

valiosos do que a própria vida de outrem – e esse outrem tem cor, endereço e lugar

social determinados, ou seja, não se trata de qualquer outrem. Dessa forma, a vítima é

quem é assaltado e “perde” seu dinheiro para o assaltante de banco, o vilão.

Temos aí um exemplo de polissemia discursiva, porque observamos que há um

outro sentido para essa mesma palavra, sentido esse que tem sua referência construída

na letra de música L4, a partir da qual se pode notar uma outra possível filiação do

sujeito, filiação que se conflita frontalmente com a primeira, porque desloca o foco do

imaginário que a sustenta: mais próxima da formação ideológica socialista, para a qual a

vida é mais importante do que os bens materiais, a vítima, na letra em questão, é aquele

sujeito excluído dos direitos sociais, direitos esses tantas vezes reiterados em textos

jurídicos e falações de políticos em palanques eleitorais. Neste momento, estamos

diante de uma redefinição na rede parafrástica de sentidos outros que não são

autorizados a ressoar dentro dessa formação, a qual se contrapõe à primeira, onde o

mesmo processo, mas na direção inversa, ocorre: se na primeira posição – posição que

pode apontar para a existência de uma formação discursiva específica –, temos a

construção discursiva de vítima como sinônimo de funcionário/cliente do banco; na

segunda posição, tem-se essa mesma palavra construindo discursivamente um sinônimo

para excluído social.

Esse conflito de sentidos parece nos remeter a duas matrizes de sentidos opostas,

o que pode nos levar a conhecer duas possíveis formações discursivas distintas.

Historicamente, no Brasil, já se sabe em qual possível formação discursiva se encontra o

sentido que predomina para a construção do imaginário social sobre vítima. Nesse

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59

ponto, exatamente, podemos ver mais uma forma de o Facção Central resistir aos

sentidos postos como dominantes (lembrando que um sentido dominante não apaga os

outros sentidos possíveis, apenas os silencia, mas, mesmo sob esse silenciamento, os

outros sentidos continuam ressoando, continuam deixando sua marca ao ponto de

poderem mesmo – e esse é um resultado possível do movimento da história – chegar a

serem “eleitos” como o sentido original, literal, sobrepujando-se aos que antes estavam

em condições de silenciá-los): em seu álbum, especificamente naquele com que estamos

trabalhando, existe uma construção discursiva para vítima que se opõe, que disputa

espaço na construção do imaginário constituído sobre tal palavra.

É dessa segunda matriz, ou seja, desse outro sentido de vítima não hegemônico,

sentido que resiste e que disputa espaço na construção do imaginário social, que o grupo

Facção Central acaba por portar a voz, voz essa que passa por vários processos de

desqualificação15

e de silenciamento disponíveis pelos diferentes aparelhos de Estado,

no momento atual da luta de classes: o apagamento do político, nessas circunstâncias, é

o ingrediente principal da formação ideológica capitalista para que essa desqualificação

e esse silenciamento sejam possíveis, admissíveis e reprodutíveis. É reinserindo o

político na cena das discussões, sobretudo, a respeito da “função social” da arte, mais

especificamente da música, que o Facção Central mostra sua contra-identificação com

relação a uma possível formação discursiva da música.

Sustentamos essa posição com base na própria noção de contra-identificação,

que é o espaço da dúvida, do questionamento, do não recobrimento total da forma-

sujeito de tal FD pelo sujeito/sentido, sem que se alcance um ponto em que esse

questionamento represente uma ruptura entre o sujeito e a FD à qual se filia: embora

ainda dentro do espaço de construção musical (supondo a existência de uma formação

discursiva da música), esse sujeito desloca sentidos, construindo novas referências para

as mesmas palavras, disputando esses sentidos com os sentidos hegemônicos dentro de

tal FD, embora não rompa com ela.

Mas, para que essa disputa de sentidos seja possível, o grupo ocupa uma posição

discursiva divergente da ocupada pela forma-sujeito de uma possível primeira matriz de

sentidos. Repare que essa divisão ordinária de primeira e segunda matrizes de sentido

15

A desqualificação do discurso do outro funciona sob a égide da política do silêncio, a qual, conforme Orlandi, “se define pelo fato de que ao dizer algo apagamos necessariamente outros sentidos possíveis, mas indesejáveis, em uma situação discursiva dada.” (Orlandi, 1997: p. 75)

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60

leva em conta o comparecimento da palavra nas duas letras de música citadas: L2 e L4.

Uma vez que primeiro aparece, em L2, a construção de um sentido de vítima mais

próxima ao sentido hegemônico, designamos esse processo de identificação como sendo

o primeiro. Por fim, uma vez que somente depois, ao seja, na L4, irá aparecer a

construção do sentido que entendemos como oposto ao primeiro, o de vítima enquanto

excluído social, designamos tal processo de identificação como sendo o segundo.

Assim, em L2 temos a primeira matriz e, em L4, a segunda. Portanto, ao invés de

encontrar-se posicionado ao lado dos que procuram incessantemente pelo lucro a

qualquer preço (preço, geralmente, de uma vida), o sentido mais fortemente difundido

na matriz em questão, o Facção Central busca se posicionar ao lado dos que não

conseguem, mesmo trabalhando, alcançar o mínimo de condições necessárias para

usufruir de uma vida menos miserável e mais plena de oportunidades. Vale lembrar que,

para a formação ideológica capitalista, existe um discurso fundante que insere o

trabalho em seu centro, porque, segundo essa formação, o trabalho “enobrece” o homem

(já dizia Gonzaguinha, talvez produzindo um efeito de ironia, na música “Um homem

também chora”, do álbum Alô, alô, Brasil [1983]16

: “e sem o seu trabalho, um homem

não tem honra, e sem a sua honra se morre, se mata”).

No entanto, esse discurso, fundante em nossa sociedade, a respeito do trabalho,

dissimula o próprio funcionamento do capitalismo: a obtenção do lucro a partir da

exploração do homem pelo homem. Interpretamos aqui, portanto, que não basta

“trabalhar” para obter uma vida plena de oportunidades e pautada pela democracia, tão

cantada pelos defensores do sistema político-econômico-social capitalista. Vivemos

numa sociedade estruturada de tal forma que, se um homem não trabalhar explorando

outro homem, para, do trabalho deste, retirar seu lucro [daquele], o homem não estará

dentro do rol dos contemplados pelos bens materiais, bens esses que seriam a “garantia”

de uma existência menos sofredora. E o Facção Central busca portar justamente a voz

desse explorado ou do excluído desse sistema, um sistema que funciona, também,

excluindo parcelas consideráveis da população dos “direitos sociais” de emprego,

habitação, educação, saúde e lazer.

É nesse momento que acreditamos que a ideologia dominante (da formação

ideológica capitalista) mostra mais a sua força: quando se dissimula no discurso de

16

Disponível no site: www.gonzaguinha.com.br, acesso em 02/04/2012.

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61

quem supostamente estaria em conflito com ela. Ao se confrontar, sem se desprender

dessa matriz de sentidos, o Facção Central acaba por repetir em suas formulações

sentidos outros que, no fio discursivo, afirma procurar combater. Esse processo, pelo

próprio funcionamento ideológico, não é consciente nem pleno. Essas marcas do

discurso da formação capitalista nas formulações do Facção mostram que existem

falhas no ritual ideológico.

Essas “falhas”, ideológica e inconscientemente produzidas, por serem da ordem

da língua, às vezes podem ser notadas e, assim, sofrer processos de “correção” por parte

dos sujeitos, que estão imersos nas ilusões da completude do sentido e na evidência de

que são a origem de seu dizer. Nas tentativas de “corrigir”, no entanto, ressoam

resquícios de silenciamentos que podem produzir, como resultado, o contrário daquilo

que se “pretendia” consertar, pois, no momento mesmo em que são produzidas essas

correções, são colocados em jogo determinados sentidos que passam a ser possíveis,

embora indesejáveis. Nesse sentido, podemos dizer que se trata de tentativas de “suprir”

uma falha, de calar uma falta, tentativas que acabam falando e produzindo outros

sentidos, novos efeitos de evidência. E o Facção Central, tomado como um sujeito que

se encontra assujeitado à ideologia e ao inconsciente, não está livre dessas contradições.

Assim, quando nega um enunciado de outra posição discursiva, a partir da mesma

matriz ou de uma matriz de sentido diferente, traz para sua produção de significação a

possibilidade do diferente, que, no caso, seria a reprodução de um sentido

compreendido como dominante, ao invés de resistir a ele.

2.2.2 “A GUERRA NÃO VAI ACABAR”: DAS FORMAÇÕES

IMAGINÁRIAS E DAS CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO

“Os palavrões se tornam necessários em determinados trechos, para demonstrar o grau de revolta.

Colocados de forma adequada, eles dão a dimensão da gravidade, e da seriedade do tema que está sendo

abordado”.

(Carlos Eduardo Taddeo, 2006)

Neste momento da dissertação, a discussão se centra ao redor dessas duas noções

extremamente relevantes para a pesquisa. A apresentação de ambas noções encontra-se

já no texto considerado inaugural para os teóricos da Análise de Discurso pêcheuxtiana:

Análise Automática do Discurso, publicado em 1969.

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62

Inserido numa proposta de apresentação geral dessa teoria que ainda dava seus

primeiros passos, Pêcheux (1969) mostra, a partir de uma análise sobre os

funcionamentos dos esquemas psicofisiológicos, de natureza comportamentalista (base

skinneriana), aos quais denomina “esquema reacional”, e dos esquemas por ele

designados como “informacionais”, cujas referências o filósofo vai buscar em Jakobson;

que essas teorias silenciam alguns atores importantes quando se pensa a linguagem a

partir do prisma discursivo.

Primeiro, então, trazemos o seguinte trecho, retirado da tradução brasileira dessa

obra inaugural, excerto que mostra como Pêcheux trabalhou essa questão do

silenciamento de aspectos intrinsecamente relacionados à produção discursiva.

Esta representação tem o inconveniente de anular o lugar do

produtor de (S) e do destinatário de (R): esta anulação

éperfeitamente legítima quando a estimulação é física (por exemplo,

uma variação de intensidade luminosa) e a resposta orgânica (por

exemplo, uma variação da resposta E.E.G.); neste caso, comefeito, o

experimentador ésomente o construtor de uma montagem que

funciona independentemente dele, extraídos os artefatos

experimentais. Em uma experiência sobre o "comportamento

verbal", ao contrário, o experimentador é uma parte da montagem,

qualquer que seja a modalidade de sua presença, física ou não, nas

condições de produção do discurso-resposta: em outras palavras, o

estímulo só é estírnulo em referência à situação de "comunicação

verbal" na qual se sela o pacto provisório entre o experimentador e seu

objeto. (Pêcheux, 1997 [1969]: p. 80, grifos nossos, itálicos do autor)

Observa-se, nesse trecho, que Pêcheux já traz a expressão “condições de

produção” para se referir a essa experimentação sobre o “comportamento verbal” em

que o sujeito, a partir de seu lugar de fala, já se marca no discurso, mesmo não estando

fisicamente presente. E essa marca é constitutiva da própria produção discursiva. Uma

marca que produz, reproduz e desloca o sentido no imaginário. Imaginário em que esse

sujeito se movimenta, inclusive a partir do mecanismo da antecipação (noção que será

explicada e desenvolvida nas próximas páginas).

Nas páginas seguintes, Pêcheux vai mostrar o que o “esquema informacional”

silencia nesse jogo de significação/interpretação. Abaixo, segue um excerto retirado

dessa mesma tradução, excerto esse de extrema relevância para a elaboração teórica da

noção de formações imaginárias e que se refere diretamente ao esquema

comunicacional de Jakobson, que também segue reproduzido abaixo:

Page 63: INSTITUTO DE LETRAS - Universidade Federal Fluminense

63

O esquema torna-se então:

[L]

D

A -------------------------- B

R

com, respectivamente:

A: o “destinador”,

B: o “destinatário”,

R: o “referente”,

[L]: código linguístico comum a A e B,

--: o “contato” estabelecido entre A e B,

D: sequência verbal emitida por A em direção a B.

Observemos que, a propósito de "D", a teoria da informação,

subjacente a este esquema, leva a falar de mensagem como

transmissão de informação: o que dissemos precedentemente nos faz

preferir aqui o termo discurso, que implica que não se trata

necessariamente de uma transmissão de informação entre A e B mas,

de modo mais geral, de um "efeito de sentidos" entre os pontos A e B.

(Pêcheux, 1997 [1969]: pp. 81-82)

Assim, Pêcheux se contrapõe, ao mesmo tempo, tanto às tendências

psicologistas quanto às comunicacionais. E conclui, formulando uma hipótese, da

seguinte maneira:

Nossa hipótese éa de que esses lugares estão representados nos

processos discursivos em que são colocados em jogo. Entretanto,

seria ingênuo supor que o lugar como feixe de traços objetivos

funciona como tal no interior do processo discursivo; ele se encontra

ai representado, isto é, presente, mas transformado; em outros

termos, o que funciona nos processos discursivos éuma série de

formações imaginárias que designam o lugar que A e B se

atribuem cada um a si e ao outro, a imagem que eles se fazem de

seu próprio lugar e do lugar do outro. Se assim ocorre, existem nos

mecanismos de qualquer formação social regras de projeção, que

estabelecem as relações entre as situações (objetivamente

definíveis) e as posições (representações dessas situações). Acrescentemos que é bastante provável que esta correspondência

não seja biunívoca, de modo que diferenças de situação podem

corresponder a uma mesma posição, e uma situação pode ser

representada como várias posições, e isto não ao acaso, mas segundo

leis que apenas uma investigação sociológica poderá revelar.

(Pêcheux, 1997 [1969]: pp. 82-83, grifos nossos, itálicos do autor)

Trata-se do mecanismo de antecipação, em que o sujeito produz uma imagem de

seu interlocutor e essa imagem está diretamente relacionada aos sentidos que estarão em

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jogo nesse momento de interlocução, porque é a partir do efeito que procura produzir

para seu interlocutor que o sujeito diz A ou diz B. Vale a pena lembrar o que Orlandi

diz sobre tal mecanismo:

(...) todo sujeito tem a capacidade de experimentar, ou melhor, de

colocar-se no lugar em que seu interlocutor „ouve‟ suas palavras.

Ele antecipa-se assim a seu interlocutor quanto ao sentido que

suas palavras produzem. Esse mecanismo regula a argumentação,

de tal forma que o sujeito dirá de um modo, ou de outro, segundo o

efeito que pensa produzir em seu ouvinte. (Orlandi, 2009 [1999]: p.

39, grifos nossos)

Na sequência, o referido filósofo francês elabora um quadro com as formações

imaginárias, supostas – e, na nossa compreensão, acabam até regendo tal processo – em

todo processo discursivo.

E, com o intuito de finalizar essa primeira apresentação teórica a respeito das

formações imaginárias, adquire extrema relevância, para este estudo, reproduzir o

quadro elaborado por Pêcheux e mencionado anteriormente, porque nos deixa

contemplar de maneira mais aproximada como se dá no discurso esse mecanismo de

antecipação e o que ele coloca em jogo nos processos discursivos. Assim, relendo o

quadro e preenchendo-o com os sujeitos em jogo na análise que estamos produzindo:

QUADRO DAS FORMAÇÕES IMAGINÁRIAS

Expressão que designa as

formações imaginárias

Significação das

expressões

Questão implícita cuja

“resposta” subentende a

formação imaginária

correspondente

A

B

IR (R) Imagem do lugar de rapper

para o sujeito rapper

“Quem é o rapper para

falar assim ao rapper?”

IR (B)

Imagem do lugar do

ouvinte para o sujeito

rapper

“Quem é o ouvinte para

que o rapper lhe fale

assim?”

IB (B)

Imagem do lugar de

ouvinte para o sujeito

ouvinte

“Quem é o ouvinte para

que o rapper fale assim?”

IB (R) Imagem do lugar de “Quem é o rapper para que

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rapperpara o sujeito

ouvinte

fale assim ao ouvinte?”

Legenda: IR = sujeito-rapper

IB = sujeito-ouvinte

R = rapper

B = ouvinte

Figura 3

Importante lembrar que, em nossa análise, estamos nos centrando sobre as

imagens que o sujeito rapper faz do rapper e nas do que o sujeito rapper faz de seu

ouvinte, uma vez que nosso corpus se constitui de músicas presentes em um álbum do

grupo Facção Central. De repente, num outro momento, poderemos dar prosseguimento

a essa pesquisa e buscar outras vozes, como as midiáticas, jurídicas etc. e analisar outros

sujeitos e posições, mas, neste momento, apenas estamos lidando com as vozes e

posições discursivas produzidas pelo Facção Central.

Mas as condições de produção não se esgotam na formulação teórica acerca das

formações imaginárias, embora estas sejam consideradas elemento constitutivo

daquelas. De acordo com Orlandi (2009 [1999]), as condições de produção

“compreendem fundamentalmente os sujeitos e a situação. Também a memória faz parte

da produção do discurso. A maneira como a memória „aciona‟, faz valer, as condições

de produção é fundamental (...).” (Orlandi, idem: p. 30). Em seguida, a autora afirma

que se podem considerar tanto a situação em sentido estrito – e, aí, têm-se “as

circunstâncias da enunciação” –, quanto em sentido amplo, o qual inclui “o contexto

sócio-histórico, ideológico”.

Com base em todo esse aparato teórico e no corpus de que esta pesquisa se

utiliza, podemos agora pensar quais as condições de produção e quais imagens estão em

jogo nas letras das músicas que procuramos analisar. Nesse sentido, podemos começar

pelas condições de produção em sentido amplo, ou seja, nos aspectos sócio-históricos,

ideológicos, que estão colocados.

Os textos analisados inscrevem-se numa conjuntura histórica bastante definida:

são produzidas nas favelas de São Paulo, durante o final da década de 90 e o início dos

anos 2000. Orlandi nos lembra de que não se veem “nos textos os „conteúdos‟ da

história”, mas que aqueles “são tomados como discursos, em cuja materialidade está

inscrita a relação com a exterioridade” (Orlandi, 2009 [1999]: p. 68). Então, a partir de

observarmos o próprio fio discursivo, podemos ter contato com o momento da história

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em que a sociedade se encontra: podemos vislumbrar desde o estágio do

desenvolvimento social, político, econômico, até o do desenvolvimento tecnológico.

No caso do Facção Central, quando produz o álbum A marcha fúnebre

prossegue, no ano 2000, existem pistas nas próprias letras de música que deixam

perceber em qual época tal narrativa foi construída (temos, por exemplo, menção ao

então presidente da república, Fernando Henrique Cardoso [mais presente nas letras sob

a sigla FHC], ao salário de então [R$ 151,00], ao preço de um jornal [R$ 0,50] e mesmo

à moeda utilizada na época e que dura até hoje: o Real [R$]). Estamos falando, portanto,

de um período pós-ditadura militar (que, no Brasil, durou oficialmente duas décadas:

1964-1984) e de um mundo pós-queda do muro de Berlim (e, utilizando-nos de uma

expressão trabalhada por Francis Fukuyama17

, um mundo pós “fim da história”). De um

mundo que conhecera a ideologia socialista, mas cujos países – as classes dominantes

dos mesmos – “optaram” pela ideologia capitalista.

2.2.3 DOS GESTOS DE INTERPRETAÇÃO

“Esse tipo de proposta musical e cultural - principalmente um rap engajado e pesado como o do Facção

Central - redimensiona a forma como a população da periferia trabalha com a sua auto-estima. É o

primeiro gênero musical de massa em que os grupos excluídos rompem uma barreira cultural a partir de

uma produção própria, e não de uma concessão que vem de fora.”

(Frederico Oliveira Coelho, 2006)

Para começar este ponto, é imprescindível que apresentemos um breve esboço

do que a teoria da Análise de Discurso, a partir dos estudos conduzidos por Orlandi

(2009 [1999]), conceitua como „gesto de interpretação‟. Para tanto, fomos a um livro de

caráter introdutório sobre esta teoria, livro cujos trechos já foram inclusive mencionados

em outros momentos desta dissertação, e no qual a autora trabalha tal noção. Vale a

pena destacar, antes de fazermos a apresentação, que, para Pêcheux (1983), a análise de

17

Emseuartigopublicadonumarevistanorte-americana, no verão de 1989, artigoque, posteriormente, deuorigem a um livrointitulado “O fim da história?”, essepesquisador da Johns Hopkins University, dizque: “What we may be witnessing is not just the end of the Cold War, or the passing of a particular period of postwar history, but the end of history as such: that is, the end point of mankind's ideological evolution and the universalization of Western liberal democracy as the final form of human government.” (grifo nosso) Disponível em << http://www.wesjones.com/eoh.htm>> acesso em 02/04/2012.

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67

discurso se encontra num batimento contínuo entre a descrição e a interpretação e que,

para Orlandi (2009 [1999]), os objetos simbólicos reclamam sentidos. Sendo a língua

considerada um objeto simbólico, existe uma injunção à interpretação, ao significar.

Portanto, a teoria se faz num permanente batimento entre descrição e interpretação e

cabe ao analista de discurso trabalhar nesse entremeio. Diz a autora:

(...) o estudo do discurso distingue-se da Hermenêutica. A Análise do

Discurso visa compreender como os objetos simbólicos produzem

sentidos, analisando assim os próprios gestos de interpretação que

ela considera como atos no domínio do simbólico, pois eles

intervêm no real do sentido. A Análise do Discurso não estaciona

na interpretação, trabalha seus limites, seus mecanismos, como

parte dos processos de significação. Também não procura um

sentido verdadeiro através de uma „chave‟ de interpretação. Não há

esta chave, há método, há construção de um dispositivo teórico. Não

há uma verdade oculta atrás do texto. Há gestos de interpretação que

o constituem e que o analista, com seu dispositivo, deve ser capaz

de compreender. (Orlandi, 2009 [1999]: p. 26, grifos nossos)

Essa expressão, diz Orlandi, é utilizada como uma espécie de contraponto

teórico que a análise de discurso propõe à expressão “atos de fala”, de John Austin e

Searle.

Bem mais adiante, já na segunda parte do livro, próxima ao final, encontra-se

um parte do texto em que a autora vai explicar que existem “dois momentos da análise”

(Orlandi, idem) nos quais a interpretação aparece:

a. em um primeiro momento, é preciso considerar que a

interpretação faz parte do objeto da análise, isto é, o sujeito que

fala interpreta e o analista deve procurar descrever esse gesto de

interpretação do sujeito que constitui o sentido submetido à

análise;

b. em um segundo momento, é preciso compreender que não há

descrição sem interpretação, então, o próprio analista está

envolvido na interpretação. Por isso é necessário introduzir-se um

dispositivo teórico que possa intervir na relação do analista com

os objetivos simbólicos que analisa, produzindo um deslocamento

em sua relação de sujeito com a interpretação: esse deslocamento

vai permitir que ele trabalhe no entremeio da descrição com a

interpretação. (Orlandi, 2009 [1999]: p. 60)

Então, Orlandi mostra que o papel do analista de discurso não é o de se colocar

de fora do funcionamento ideológico – como se isso fosse possível – não sendo

possível, portanto, ao analista assumir uma suposta neutralidade, mas o de atravessar “o

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68

efeito de transparência da linguagem, da literalidade do sentido e da onipotência do

sujeito”, a fim de que se possa relativizar essa posição em que se encontra, diante da

interpretação. E completa, dizendo que “por isso é que dizemos que o analista de

discurso, à diferença do hermeneuta, não interpreta, ele trabalha (n)os limites da

interpretação”. (Orlandi, idem: p. 61)

Nesse sentido, sempre relacionando os gestos de interpretação à posição do

analista de discurso, Orlandi (op. cit.) mostra que

Fatos vividos reclamam sentidos e os sujeitos se movem entre o real

da língua e o da história, entre o acaso e a necessidade, o jogo e a

regra, produzindo gestos de interpretação. De seu lado, o analista

encontra, no texto, as pistas dos gestos de interpretação, que se tecem

na historicidade. (Orlandi, op. cit.: p. 68)

Assim, temos que primeiro, a expressão “gestos de interpretação” desloca os

sentidos já fixados na expressão “atos de fala”, do terreno de um teoria linguística para

o da teoria do discurso. Ao falar “gesto”, a análise de discurso demonstra sua

proximidade com a teoria psicanalista lacaniana e, ao dizer “interpretação”, a teoria do

discurso desloca o foco da dicotomia língua vs.fala, instaurada desde Saussure, para a

dialética que dinamiza a relação entre descrição e interpretação, cujo batimento é a base

para a prática da análise de discurso.

2.2.4 DO SILÊNCIO E DO SILENCIAMENTO

Quando o homem, em sua história, percebeu o silêncio como significação, criou a linguagem

para retê-lo.

(Orlandi, 1997)

Orlandi (1997), em seu estudo sobre as formas do silêncio, nos diz que o silêncio

não é o vazio, a ausência de sentido, mas a base da significação. Diz-nos, também, que a

fala é um recorte nesse silêncio, um recorte que dá direção aos sentidos possíveis,

possibilidades que povoam esse espaço saturado. Nas palavras da autora,

A hipótese de que partimos é que o silêncio é a própria condição da

produção de sentido. Assim, ele aparece como espaço “diferencial” da

significação: “lugar” que permite à linguagem significar.

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69

O silêncio não é o vazio, o sem-sentido; ao contrário, ele é o indício

de uma totalidade significativa. Isto nos leva à compreensão do

“vazio” da linguagem como um horizonte e não como falta. (Orlandi,

1997: p. 70, itálicos da autora)

Trata-se, portanto, do silêncio fundador: esse silêncio constitutivo, que significa

e que permite a significação na/pela linguagem. Tal concepção de silêncio, como

fundador, desloca os sentidos construídos sobre o silêncio ao longo da história dos

estudos da língua e da linguagem. A autora lembra, por exemplo, que não se deve

confundir silêncio com ausência de palavras, de sons ou de sentidos. Para Orlandi

(idem), o silêncio é um “acontecimento essencial da significação, ele é matéria

significante por excelência”, porque atravessa as palavras, não ficando, apenas, entre

elas. E a autora ainda ressalta a importância de não “traduzirmos” o silêncio em

palavras, porque trata-se de ordens distintas e, ao traduzir, está-se reduzindo esse caráter

múltiplo do silêncio.

Além dessa definição de silêncio enquanto constitutivo, a autora também propõe

uma divisão que é bastante produtiva para a nossa pesquisa. Diz Orlandi que, “além do

silêncio fundador, [...] há a política do silêncio, que, por sua vez, tem duas formas de

existência ligadas: a) o silêncio constitutivo e b) o silêncio local”. Mais adiante, a autora

continua sua explicação sobre essa distinção entre política do silêncio (silenciamento) e

silêncio fundador, afirmando que:

A diferença entre o silêncio fundador e a política do silêncio é que a

política do silêncio produz um recorte entre o que se diz e o que

não se diz, enquanto o silêncio fundador não estabelece nenhuma

divisão: ele significa em (por) si mesmo.

Determinado pelo caráter fundador do silêncio, o silêncio constitutivo

pertence à própria ordem de produção do sentido e preside

qualquer produção de linguagem. Representa a política do silêncio

como um efeito de discurso que instala o antiimplícito: se diz “x” para

não (deixar) dizer “y”, este sendo o sentido a se descartar do dito. É o

não-dito necessariamente excluído. Por aí se apagam os sentidos que

se quer evitar, sentidos que poderiam instalar o trabalho significativo

de uma “outra” formação discursiva, uma “outra” região de sentidos.

O silêncio trabalha assim os limites das formações discursivas,

determinando consequentemente os limites do dizer. (Orlandi,

idem: pp. 75-76, grifos nossos)

A autora mostra também que a própria fala é um lugar de silenciamento, ou seja,

de produção do silêncio, o que significa na prática que, ao dizer a palavra/expressão

“X”, não se está dizendo a palavra/expressão “Y” e que essa “escolha” do sujeito por

uma ou outra palavra/expressão significa sua filiação a uma e não outra região de

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70

sentidos. Podemos dar um exemplo desse silenciamento a partir de sequências retiradas

de nosso corpus: para retomar um discussão já iniciada anteriormente, podemos dizer

que o sujeito-rapper utiliza, como título de seu álbum (que também intitula uma música

desse mesmo álbum), a expressão “a marcha fúnebre”, para significar “música” ou

“produção musical”. Será?

Não podemos afirmar categoricamente que “marcha fúnebre” remeta somente à

memória do dizer sobre música. Temos que admitir que há a possibilidade de uma

remissão à memória da história do grupo, do silenciamento sofrido por ele e da forma

como esse sujeito significa a posição discursiva de um rapper. Dessa maneira, ao dizer

“marcha fúnebre”, não se está dizendo – ou seja, está-se silenciando, deixando no

campo do não-dito – outras formas, que não conseguiriam produzir tal efeito produzido

pela expressão efetivamente realizada.

As expressões “a produção musical” ou “as nossas músicas”, ou mesmo “a

batalha musical” são possíveis, mas não realizadas, e silenciadas, no momento em que o

grupo decidiu usar “a marcha fúnebre”. O que quer dizer que, ideológica e

inconscientemente, a expressão “escolhida” significa mais para o grupo do que qualquer

outra possível expressão. Se não, vejamos: falar “marcha” cala, por exemplo, o

corriqueiro que caracteriza o verbo “andar” e recupera uma memória de exército e, por

exército, a memória da ditadura. Vemos a metáfora funcionando aí e, por deslocamento,

uma remissão à memória do período ditatorial em que o país fora comandado por

militares (exército). E, ao trazer essa memória da ditadura, esse sujeito resiste ao

imaginário de que o sistema capitalista é essencialmente democrático, discurso com que

o sujeito pode se identificar e reproduzir – não sem as contradições inerentes à ordem da

língua. Dizer “fúnebre” cala os sentidos produzidos pelos termos “felicidade”,

“alegria”, “contentamento”, ou seja, sentimentos e emoções frequentemente

relacionados à contemplação da arte musical.

Esse conceito de silenciamento é muito relevante para a nossa pesquisa, porque

nos ajuda exatamente a vislumbrar os limites do dizer, dizer esse afetado pela censura

local sofrida pelo grupo Facção Central, no álbum antecessor do escolhido para este

trabalho. Ao formular, então, o sujeito acaba projetando esse “outro” imaginário e

confrontando-o com aquele que podemos dizer ser dominante na nossa formação social

capitalista “emergente”. Assim, vê-se bem quais sentidos são silenciados, porque não

podem/devem ressoar no discurso que produzem. Por exemplo, por se colocar enquanto

representante da periferia/favela, mesmo quando “cede” a voz aos seus “inimigos”, seus

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71

outros, não é possível deslocar a “responsabilidade/culpa” para outro sujeito que não

sejam aqueles que, social e historicamente, (re)produzem a desigualdade de direitos e

que são, justamente, esses “inimigos”, esses “outros”. O que pretendemos dizer com

isso é que as formulações que comparecem na letra de música L9, intitulada Tensão, na

qual o sujeito narra um sequestro-relâmpago de um casal rico por bandidos, encontram

sua sustentação no discurso com o qual os rappers se identificam. Podemos observar tal

administração de sentidos a partir de construções como “não nego minha culpa no

menino faminto” ou “Mas, se o ladrão tá no banco, não é só eu que sou culpado”. Isso

é uma forma de silenciar seu outro: colocar “na boca do outro” sentidos que fazem parte

do discurso de um.

2.3 DISCUTINDO A RESISTÊNCIA NA/PARA A TEORIA DO

DISCURSO

E o que é a resistência, em termos discursivos? (...) É ressignificar processos interpretativos já

existentes, seja dizendo uma palavra por outra, seja incorporando o non sens, ou simplesmente, não

dizendo nada.

(Mariani, 1996)

Diz o Dicionário da Língua Portuguesa Houaiss, em sua versão eletrônica (3.0

de 2009), que os significados para a palavra resistência, substantivo feminino, podem

ser

1. ato ou efeito de resistir; 2. qualidade de um corpo que reage

contra a ação de outro corpo (...) 3. o que se opõe ao movimento de

um corpo (...) 5. capacidade de suportar a fadiga, a fome, o esforço

(...) 6.recusa a submeter-se à vontade de outrem; oposição, reação.

(...) 7. fig.aquilo que causa embaraço, que se opõe (...).18

18

Este verbete também foi consultado no Míni Houaiss Dicionário da Língua Portuguesa (2004, 2. ed. – revista e aumentada). Nesse dicionário, estão elencados outros significados, que não comparecem na versão eletrônica, utilizada na citação. Comparecem, na versão míni, os seguintes significados, não elencados na versão eletrônica, ou elencados de maneira diferente: “(...) 4. defesa contra um ataque 5. fig. recusa de submissão à vontade de outro 6. fig. reação a uma força opressora 7. fig. qualidade de quem demonstra firmeza 8. fig. vigor moral; determinação(...)” Interessante notar que, embora na versão eletrônica o significado de número 5 seja considerado não-figurado, literal, na versão míni o mesmo significado número 5 aparece marcado como figurado (fig.).

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72

Todas essas direções de sentidos sejam elas consideradas pelo Instituto

organizador do dicionário como figurado, ou não, são de extrema relevância para o que

este capítulo se propõe a discutir.

Mas antes, cabe elaborar algumas considerações acerca do que o dicionário nos

traz: em primeiro lugar, é interessante observar que existe uma divisão explícita na

apresentação das definições, em que vem marcada a posição do sujeito-autor desse

verbete, ao separar o que compreende como sentido figurado (observe a designação fig.

antes da apresentação do significado em questão) e como não-figurado (não vem

marcado por nenhuma designação, silêncio que reafirma a posição discursiva ocupada

pelo sujeito-autor: ao não ser marcado, esse sentido aparece como literal, evidente. Para

nós, enquanto analistas de discurso, vale lembrar, a literalidade é um efeito); depois,

podemos observar que as mesmas definições que comparecem na parte dos significados

não-figurados (literais, de acordo com a posição ocupada pelo sujeito-autor do

dicionário) também estão presentes para delimitar os sentidos figurados. Isso tem a ver,

sobretudo, com a circularidade característica do funcionamento do dicionário (Honório,

2002). Essa circularidade acaba desfazendo as fronteiras até então estabelecidas entre o

sentido não-figurado e o chamado sentido figurado, exatamente porque retoma palavras

e expressões já utilizadas na produção das definições “literais” durante a produção das

definições figuradas. Observemos os seguintes pares: reage – reação; se opõe –

oposição; suportar a fadiga – recusa a se submeter.

Se pensarmos em termos da relação do sujeito com o sentido, ou seja, em termos

de identificação, podemos observar que o sujeito-rapper se relaciona com a sua língua

materna, que vem a ser a língua oficial e nacional do país em que vive, recusando-se a

se submeter à organização imposta pela/os gramática/os, opondo-se a ela/es, resistindo,

mas não rompendo de vez com tal organização, uma vez que, apesar de recusar

determinados aspectos organizacionais, não deixa de produzir suas músicas de dentro do

sistema da língua portuguesa – sistema, aqui, sendo compreendido a partir da noção

trabalhada por Saussure e trazida até nós por meio do Curso de Linguística Geral, 1916.

Se o sujeito-rapper não mais se reconhecesse falante da língua portuguesa, ou melhor,

da língua brasileira (Orlandi, 2002), estaria produzindo seu discurso em outra língua.

Como essa ruptura total não ocorre, mas ocorre um certo nível de recusa a determinados

aspectos da organização preconizada pela gramática da língua, podemos dizer que há

uma contra-identificação entre falante (sujeito-rapper) e língua (brasileira).

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73

Nossa hipótese é a de que a resistência – com as características mencionadas –

se marca na língua a partir do uso de advérbios de negação, vocativos, formas verbais

no presente do indicativo e no gerúndio, hipérboles, metáforas... Entendemos, também,

que o sujeito-rapper ocupa uma posição de “oposição”, de “defesa contra um ataque”,

de “recusa de submissão”, quando recusa a organização da língua e “fere a gramática

normativa”, produzindo dizeres que não se inserem na dita norma da escrita, tais como

ausência de concordâncias nominal e verbal, subordinadas adjetivas sem conjunção

integrante e com gerúndio, faz uso excessivo dos ditos “estrangeirismos”, faz uso das

chamadas “gírias”, não faz correlação temporal nem obedece às regências nominal e

verbal etc. É claro que esses aspectos podem ser observados a partir da compreensão de

que se trata de uma produção oral, que não tem pretensão de seguir as regras

gramaticais da escrita, mas, ainda assim, podemos entender essa produção como uma

tomada de posição, no caso, uma posição de sujeito que, dentro da formação discursiva

que abrange as normas da língua portuguesa no/do Brasil, resiste a algumas delas.

Talvez isso seja um processo de resistência ao “elitismo” que relaciona a educação da

língua ou mesmo a educação em geral ao poder econômico, numa sociedade

extremamente desigual como é a sociedade brasileira. Elitismo esse que surgiu junto

com a criação das primeiras faculdades no país e que também se relaciona intimamente

com a questão da gramática e dos gramáticos no Brasil. Afinal, não é qualquer favelado

que pode ocupar um lugar social de prestígio em relação à língua que “nasceu” falando.

Esse papel do sério (Orlandi, 2009 [1985]), do autorizado a falar sobre a língua não

cabe ao favelado, cuja educação não necessariamente passa pelas cadeiras dos colégios

ou das universidades formais. No entanto, ou talvez, por isso, esses sujeitos resistem,

recusando-se a uma organização linguística que significa – traduz, quiçá – para eles essa

desigualdade social com a qual não são coniventes e que, pela produção musical,

procuram modificar. Uma vez que não podem ocupar “legitimamente” uma posição

autorizada para falar da língua, fazem-no no próprio fio discursivo, a partir da assunção

de uma postura de resistência.

Nesse momento, vale a pena relembrarmos da posição de João Guimarães Rosa,

literato brasileiro do século XX, que também utilizava em suas obras uma outra

organização da língua que não aquela “reconhecida” pelos gramáticos, mas nem por

isso menos rica. Em nível de regras gramaticais, ele esbanjava criatividade e

desobediência.

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74

Fique aqui esclarecido que não queremos comparar e igualar um e outro gestos,

porém é válido lembrar que ambos estão resistindo, mesmo não ocupando a mesma

posição discursiva, à forma-sujeito dessa formação discursiva que administra os

sentidos possíveis para a língua portuguesa do/no Brasil.

Após passarmos rapidamente pelo dicionário, pensarmos um pouco a relação

entre o verbete e as posições discursivas do sujeito-rapper e de Guimarães Rosa, é hora

de trazermos a contribuição de Pêcheux sobre o assunto resistência em Análise de

Discurso:

As resistências: não entender ou entender errado; não “escutar” as

ordens; não repetir as litanias ou repeti-las de modo errôneo, falar

quando se exige silêncio; falar sua língua como uma língua

estrangeira que se domina mal; mudar, desviar, alterar o sentido

das palavras e das frases; tomar os enunciados ao pé da letra;

deslocar as regras na sintaxe e desestruturar o léxico jogando com as

palavras...

E assim começar a se despedir do sentido que reproduz o discurso

da dominação, de modo que o irrealizado advenha formando

sentido do interior do sem sentido. (Pêcheux, 1980: p. 17, grifos

nossos)

“Não escutar as ordens”, “falar quando se exige silêncio”, “mudar, desviar,

alterar o sentido das palavras e das frases” também são gestos que produzem um efeito

de resistência pelo sujeito-rapper aos sentidos instituídos como hegemônicos em nossa

sociedade. Observamos isso quando nos deparamos, por exemplo, com palavras tais

como “vítima”, cuja referência é construída discursivamente, pelo sujeito-rapper, de

forma bastante conflitante com o que historicamente a formação ideológica capitalista

procura significar.

Existe um silenciamento do político – divisão de sentidos –, na produção

discursiva da formação capitalista, em favor do administrativo. Diz-nos Orlandi (2004:

p. 34) que, na nossa sociedade do sujeito-de-direito, fortemente significado pelos

sentidos da cidade, o administrativo se sobrepõe ao político. Isso significa que a divisão

de sentidos não é desejada, pois a formação ideológica capitalista precisa administrar os

sentidos, fundando-se sobre o efeito de literalidade, para que as leis possam funcionar. E

sabemos que a obediência a essa figura que sustenta o funcionamento do Estado, a lei,

está inteiramente calcada no jogo ideológico de reconhecimento e legitimação, baseado

no par comando-obediência (Lagazzi, 1987): a relação imposta pelo sistema jurídico,

que faz funcionar a ideologia segundo a qual há uma liberdade irrestrita do sujeito. Com

Pêcheux (1988 [1975]), sabemos que é próprio da ideologia se dissimular no interior

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mesmo de seu funcionamento, no momento em que o sujeito se constitui – e os sentidos

para ele –, ou seja, no momento mesmo da interpelação. E é com o objetivo de

administrar essa multiplicidade de posições-sujeito e de sentidos que o Estado procura

silenciar a relação do sujeito com o sentido, buscando tornar único o sentido, buscando

cessar os movimentos do sujeito e, com isso, silenciar também o que, para nós da

Análise de Discurso, é inerente à língua: o político, a divisão dos sentidos. É, pois,

necessário que se produza apenas um sentido para determinada palavra. E que esse

sentido funcione, univocamente. Indo nessa direção é que a memória social é

hegemonicamente posta como linear e homogênea, pela formação ideológica capitalista.

Contudo, Mariani, retomando Pêcheux (1999 [1984]), afirma que

A memória é não-linear, lacunar, mas seu efeito é apresentar

sentidos que se querem unívocos e estabilizados no fio do discurso. O histórico e o linguístico significam de modo não transparente,

formam uma rede de significância, tecida de ambiguidades, de

repetições, de equívocos, conflitos etc. Os sentidos que constituem a

memória são muitos, mas aparecem como literais, unívocos. Mas

como o esquecimento é constitutivo da memória, o próprio lembrar

pode produzir outras direções de sentido. (Mariani, 1996: p. 42, grifos

nossos)

Os sentidos não são únicos, não sendo, portanto, únicas as posições que os

sujeitos podem ocupar no discurso. Mas é necessário, para a formação ideológico-

jurídica, que esses sujeitos sejam intercambiáveis, conforme nos diz Lagazzi (1988) ao

retomar Pêcheux (apudHaroche, 1984):

(...) através da indeterminação, o logicismo mecaniza a lei,

descontextualizando sua aplicação: „todo aquele que X, então Y‟.

Pêcheux nos mostra que estruturas sintáticas do tipo „aquele que VN‟

sofrem um „esvaziamento do objeto fora da função‟, o que leva à

indeterminação ou não-saturação, possibilitando a generalização

„todo aquele que VN”, “qualquer um que VN”. A causa é apagada

para que se observe apenas a consequência jurídica, ou seja,

apaga-se o social e o histórico para que a ordem se mantenha a

qualquer custo. É esse apagamento que sustenta a formação

ideológica-jurídica, possibilitando que a lei se coloque como igual

para todos. (Lagazzi, 1988: p. 42, grifos nossos)

E Lagazzi segue, lembrando que existe uma injustiça na proibição de distinções

pessoais por esse funcionamento da lei, que coloca os sujeitos como intercambiáveis,

porque apagam-se os contextos e generaliza-se. A autora diz que “o justo é a

possibilidade do diferente. (...) Os privilégios resultam das relações coercitivas

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decorrentes do modo de produção e é contra elas que as leis deveriam atuar.”19

Destacamos essas sentenças, porque elas significam bastante para a questão da

resistência de que estamos a tratar.

Na contradição em que se encontra o sujeito-rapper, e na qual todos os sujeitos

acabam se encontrando, sob a “evidência” da unidade do ser – o primeiro esquecimento

ideológico, segundo Pêcheux (1988 [1975]) –, esse sujeito, inserido na formação

ideológica capitalista, portanto, sujeito às “relações coercitivas decorrentes do modo de

produção” capitalista, por vezes, posiciona-se discursivamente a favor da “igualdade

perante a lei”, o que equivale a dizer que, às vezes, o sujeito-rapper mostra um “menor”

grau de resistência à ordem estabelecida, apresentando uma posição quase que

reduplicada da forma-sujeito capitalista, a do sujeito-de-direito, recobrindo-se e aos seus

sentidos sob a sombra dessa forma-sujeito capitalista, porque busca a igualdade perante

a lei.

Lênin, um dos revolucionários da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas de

1917, não era um acadêmico no sentido estrito, desses que produzem de dentro das

universidades, contudo, era um estudioso e profundo conhecedor das teorias de Marx e

Engels e da teoria das formações sociais. Esse Lênin revolucionário publicou um livro

baseado num discurso proferido em maio de 1919, livro esse intitulado “Como iludir o

povo – com os slogans de liberdade e igualdade”. Nesse livro, ele nos diz que – e isso

tem tudo a ver com a questão da forma-sujeito capitalista e a contradição do sujeito-

rapper ao se mostrar, às vezes, alinhado com um princípio burguês, que remonta ao

período revolucionário francês do século XVIII e ao ideário da “fundação” dos direitos

do homem –

Engels tem toda razão quando afirma que o conceito de igualdade é

um preconceito estúpido e absurdo, separadamente da abolição de

classes. Alguns professores burgueses tentaram convencer-nos dum

conceito de igualdade pelo qual todos seríamos iguais. Tentaram

atribuir aos Socialistas este absurdo por eles inventado. Mas, na sua

ignorância, não sabiam que os Socialistas, e especialmente os

fundadores do moderno Socialismo Científico, Marx e Engels, tinham

afirmado: a igualdade é uma frase oca a não ser que por igualdade

se entenda a abolição de classes. Só destruindo as classes haverá

igualdade. (Lênin, 1979 [1919]: p. 33, grifos nossos)

Por isso, podemos considerar que, ao se posicionar como um reivindicador da

igualdade social, o sujeito-rapper acaba se filiando a uma rede de sentidos com a qual

19

Lagazzi, 1988:p. 43.

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procura se confrontar quando critica o fato de que os bens materiais, o lucro, estão

acima do valor de uma vida, uma vida que, conforme dissemos lá atrás, tem cor,

endereço e lugar social determinados. Nesse caso, quando se identifica com o discurso

da igualdade dentro do capitalismo, o sujeito-rapper passa a pertencer ao rol dos

“iludidos”, se tomarmos a afirmação de Lênin como parâmetro para balizar nossa

compreensão de socialista: igualdade só com a abolição das classes, ou seja, fora das

bases do capitalismo.

Outra necessária e produtiva consideração acerca da resistência é a sua relação

com a censura, proposta por Moreira (2009). A partir da leitura que fez sobre as formas

do silêncio em Orlandi (1995 [1992]), aquela propôs que se trata de dois polos atuantes

numa mesma região de sentidos: “mas se a censura impede que o sujeito ocupe certas

posições no discurso, ela sempre traz no espaço mesmo de seu funcionamento a

resistência, o outro sentido; censura e resistência, enfim, „trabalham na mesma região

de sentidos‟.”

Pensando as condições de produção do Compact Disk (CD) cujas letras de

música são analisadas neste trabalho, temos que partir da memória da censura local

sofrida pelo grupo contra o CD anteriormente construído, para compreendermos o título

“A marcha fúnebre prossegue”. No latim clássico, de acordo com Saraiva (1927:

p.950), temos que a palavra pro – sim, na língua latina clássica, ou seja, naquela língua

que latinistas como Saraiva e Faria consideram como o latim usado durante o período

que compreende I a.C. – II d.C., designado pelo adjetivo clássico, o que hoje a língua

portuguesa reconhece enquanto contração “não-autorizada” gramaticalmente entre a

preposição para e o artigo determinado masculino singular o ou como prevérbio em

palavras como próclise, no latim clássico se tratava de uma palavra –, preposição que

podia funcionar como prevérbio, indicava “posição ou direção para diante”, sentido

reiterado pelo Moderno Dicionário da Língua Portuguesa Michaelis 2000 (2000: p.

1699), que relaciona como significado para tal palavra/partícula o seguinte: “significa

antes, adiante”. Discursivamente, a palavra prossegue remete para uma memória de fim

de caminho, de impedimento para a continuação de uma caminhada, mas remete a fim

de negá-la.

Ao utilizar-se do prevérbio pro, o sujeito-rapper se contra-identifica com esse

impedimento, com essa censura, e se reafirma, significando também sua identificação

com uma posição discursiva outra que não aquela da “obediência” suposta pela

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78

formação ideológica capitalista do sujeito de direitos – e deveres. Ele não para. E não

apenas segue, mas prossegue. Segue em frente, adiante: resiste.

2.4 DISPOSITIVO ANALÍTICO E OS PROCEDIMENTOS DE

DESSUPERFICIALIZAÇÃO

A exterioridade do discurso (...) não está fora, nem separada do que está dentro; daí ser chamada de

constitutiva.

(Ferreira, 1994)

Estamos aqui, de acordo com o esquema proposto por Pêcheux e Fuchs (2010

[1975]), diante de um processo de dessintagmatização linguística, ou seja, do nível da

língua e de sua organização (Orlandi, 2009 [1999]). Este nível, o da dessintagmatização

linguística (ou „dessuperficialização‟, segundo os supracitados autores franceses),

(...) remete à existência material da língua, caracterizada pela estrutura

não-linear dos mecanismos sintáticos e mais profundamente por tudo

aquilo sobre o que se exerce o „esquecimento nº 2‟. (Pêcheux e Fuchs,

2010 [1975]: p. 180)

Isso significa, conforme já explicamos, que estamos no nível do esquecimento nº

2, ou seja, no nível do esquecimento que remete à ordem da enunciação (Orlandi, 2009

[1999]):

O esquecimento número dois, que é da ordem da enunciação: ao

falarmos, o fazemos de um maneira e não de outra, e, ao longo de

nosso dizer, formam-se famílias parafrásticas que indicam que o

dizer sempre podia ser outro. Ao falarmos “sem medo”, por

exemplo, podíamos dizer “com coragem”, ou “livremente” etc. (...)

Ela estabelece uma relação “natural” entre palavra e coisa. Mas

este é um esquecimento parcial, semi-consciente e muitas vezes

voltamos sobre ele, recorremos a esta margem de famílias

parafrásticas, para melhor especificar o que dizemos. É o chamado

esquecimento enunciativo e que atesta que a sintaxe significa: o

modo de dizer não é indiferente aos sentidos. (Orlandi, 2009

[1999]: p. 35, grifos nossos)

A sintaxe significa, como nos afirma Orlandi (id., ibid.). Esta foi a pista que

seguimos para recortar as letras do rap e, assim, delimitar as sequências discursivas. O

conceito de recorte foi proposto por Orlandi (1984) como forma de organizar o trabalho

da AD:

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O recorte é uma unidade discursiva. Por unidade discursiva,

entendemos fragmentos correlacionados de linguagem e situação.

Assim, um recorte é um fragmento de situação discursiva. (...)

Pretendemos que a ideia de recorte remete à polissemia e não à de

informação. (Orlandi, 1984: p. 14)

Dessuperficializar implica, portanto, recortar sequências discursivas. Estas SD‟s,

definidas conforme Courtine (1981), são “sequências orais ou escritas de dimensão

superior à frase” (Courtine, [1981]: p. 25). O conjunto de SD‟s corresponde ao nosso

corpus discursivo. Nesse corpus, observamos, para fins de análise, especificamente, o

funcionamento linguístico-discursivo das seguintes marcas: as denominações, a

negação, as orações adversativas, as condicionais e as causais, como veremos no

próximo capítulo.

Com esse procedimento de recorte, encontramos mais de duzentas sequências

discursivas, divididas de forma bastante desproporcional entre as quatro marcas formais

analisadas. Isso porque as marcas de negação comparecem também nas sequências

utilizadas para analisar as outras marcas. Só com a negação, encontramos cerca de cento

e quarenta marcas. Já com todas as outras marcas juntas, encontramos setenta e nove

sequências, ou seja, a negação é bastante presente no nosso corpus, apesar de estar

quase sempre acompanhada de uma conjunção subordinativa ou coordenativa.

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3. O RAP E AS MARCAS DE RESISTÊNCIA

A Análise de Discurso não procura o sentido “verdadeiro”, mas o real do sentido em sua materialidade

linguística e histórica.

(Orlandi, 2009 [1999])

Após os procedimentos de dessuperficialização dos textos – recortes em

sequências discursivas –, procedimentos esses que objetivaram possibilitar a observação

e discussão das regularidades nos processos de produção dos sentidos, que se produzem

na/pela materialidade da língua, pôde-se perceber as marcas com e pelas quais esse

sujeito-rapper (se) significa. E, uma vez que ao analista de discurso cabe a tarefa de

trabalhar (n)o limite da interpretação (Orlandi, 2009 [1999]), produzindo um batimento

necessário entre descrição e interpretação, procurou-se depreender o funcionamento

discursivo e interpretar os processos de significação inscritos na ordem da língua

(Orlandi, 1996).

Nesse sentido, as pistas/construções sobre as quais incidiram as análises foram

as das denominações (substantivos, adjetivos e construções adjetivas), as das negações

(polêmicas), as causais e explicativas e as condicionais, pois, a partir dessas, é possível

não apenas observar como o sujeito-autor constrói sentido para/sobre seu lugar social,

mas também a relação que mantém com o complexo das formações discursivas e suas

formas-sujeito. Dizendo de outra maneira, foi possível pensar como esse sujeito se

posiciona discursivamente, lembrando que num mesmo texto o sujeito pode ocupar

diversas posições, sendo o sujeito autor o responsável pelo efeito de “unidade” que o

texto produz.

Dessa forma, foi possível relacionar o que o sujeito diz com o que ele não diz,

com o que poderia ter sido dito de outro modo e com o que é dito em outro lugar. Com

base nesses funcionamentos – negação, causa, condição, explicação e denominação –,

buscou-se compreender como o sujeito se relaciona com seu dizer e como constrói

discursivamente essa (ideia de) resistência. Para isso, dividiu-se este item em quatro

subitens, nos quais se discutiram desde a relação do sujeito com a língua até a própria

noção de língua, a partir das noções teóricas propostas por Orlandi (2002) de língua

imaginária e língua fluida e da compreensão discursiva de preconceito linguístico,

formulada por Mariani (2007).

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No entanto, para nós, é interessante neste momento, esticarmos um pouco mais o

ponto, para podermos adentrar na discussão sobre as marcas com as quais trabalharemos

a seguir. Por isso, torna-se necessário observarmos de que modo linguistas como Mário

Perini (1978),Ingedore Koch (1987) e Garcia (1978) vêm trabalhando a questão das

relações entre frases, relações essas referentes ao sentido, o que, na divisão proposta no

corte epistemológico da fundação da linguística enquanto ciência, estaria no campo da

Semântica. Uma vez que nesta dissertação estamos trabalhando com a semântica

discursiva ou teoria do discurso, esse corte epistemológico apontado acima não se

coloca, não havendo, portanto, essa separação mecânica entre sintaxe e sentido.

Estamos buscando apreender como são produzidos os efeitos de sentido que as

construções sintáticas – ou mesmo sintático-pragmáticas – colocam em jogo quando da

sua formulação. Mesmo com essa distância teórico imposta pelas diferenças entre o

gerativismo, a linguística textual e a análise de discurso, considerando que estamos

introduzindo a análise das sequências discursivas que possuem elementos

gramaticalmente conhecidos como conjunções – aquelas palavras utilizadas para unir

orações, imprimindo à relação interfrástica determinadas direções de sentido –

coordenativas (mas, só que) e subordinativas (pois, porque, se).

Nesse sentido, sobre essas marcas linguísticas, diz-nos Perini (1996):

As conjunções que nos interessam no momento são subordinativas,

porque sua função é a de inserir uma oração (a subordinada) dentro de

outra oração (a principal). Na presente análise, o termo conjunção se

aplica apenas às “conjunções subordinativas” da gramática

tradicional; as “conjunções coordenativas” serão denominadas

coordenadores. Assim, podemos dizer que as conjunções são itens

léxicos que, colocados imediatamente antes de uma oração, formam

com ela um sintagma que é termo de alguma oração maior (no

capítulo 13, o leitor encontrará um estudo mais detalhado das

conjunções). Uma conjunção pode ser apresentada graficamente como

uma palavra (que, quando) ou como um grupo de palavras (visto que,

se bem que, sempre que). Conjunções deste último tipo funcionam de

certo modo como palavras únicas, pois suas partes não têm

independência sintática; e, a se levar em conta apenas a sintaxe,

poderiam ser grafadas sem espaço, como uma única palavra. No

entanto, a ortografia reflete o fato de que as partes dessas conjunções

têm alguma independência fonológica, pois conservam cada uma seu

acento próprio. (Perini, idem: p. 139)

A primeira observação a fazer é a de que Perini separa essas marcas em dois

grupos distintos. Somente à subordinação se pode nomear conjunção, restando, para as

coordenativas, o nome de “coordenadores”. Depois, ele explica que um conjunção,

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portanto estamos no nível das orações subordinadas, pode ter apenas um item lexical –

um termo – ou ser composto por vários itens lexicais – mais de um termo – e aproveita

para mostrar que há uma certa equivalência funcional entre essas duas possibilidades de

realização da conjunção. A terceira observação que podemos fazer sobre a citação

acima é a que concerne à falta de explicação sobre o que Perini entende por

“coordenadores”. Fomos, então, ao décimo terceiro capítulo, ao qual o autor faz

referência, para saber como o autor trabalha a questão. Vimos que se trata de um

capítulo, inserido na divisão da gramática, que é responsável por apresentar a discussão

acerca das classes de palavras, o que nos levaria a antecipar que haveria uma abordagem

mais próxima de uma análise morfológica stricto sensu. No entanto, apesar de não partir

de uma discussão semântica, também não se atém à morfologia, mas abre uma

discussão no nível morfossintático:

Distinguiremos dois tipos principais de conectivo; o primeiro tem

como função sintática alterar a classe de um SN ou de uma oração –

ou, mais precisamente, acrescentar-se um SN ou a uma oração,

formando um sintagma maior que pertence a outra classe que não SN

ou O. A esses chamaremos conectivos subordinativos. O segundo

tipo tem como função sintática juntar dois (ou mais) constituintes de

mesma classe, formando o conjunto um constituinte maior que

pertence à mesma classe dos constituintes conectados. Esses são os

conectivos coordenativos. (Perini, idem: p. 333)

Quando, por fim, aborda a questão dos “coordenadores”, especificamente, faz uma

observação incompleta, mas que nos interessa:

Coordenador é uma palavra que liga dois constituintes de mesma

classe, formando o conjunto um constituinte da mesma classe que os

dois primeiros.

Os coordenadores mais típicos (e também os mais bem comportados)

são e eou. Outras palavras tradicionalmente classificadas como

“conjunções coordenativas” se assemelham a essas, mas apresentam

também diversas idiossincrasias que estão por estudar: mas, pois, nem,

que, porque e várias outras. (Perini, idem: p. 335)

Koch faz um caminho semelhante ao percorrido por Perini, no sentido de que

começa sua discussão a partir de um olhar sobre a gramática tradicional para, então,

apresentar as dificuldades que essa mesma gramática produz, ao se fixar no aspecto

formal. No capítulo de número seis, intitulado “As relações interfrásticas”, a autora traz,

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como primeiro subitem, a questão da subordinação e da coordenação. Afirma ela, já no

início do capítulo, que

Os problemas com que se depara o estudioso ao tentar explicar os

conceitos de coordenação e subordinação, isto é, a questão da

dependência ou independência entre orações, decorrem do fato de se

adotarem critérios meramente sintáticos ou formais. Toda oração ou

conjunto de orações veicula significados; forma e conteúdo – como

também a maneira pela qual são veiculados – são conceitos solidários,

que não podem e não devem ser desvinculados no estudo da

linguagem humana. Foi por isso que se fez sentir a necessidade de se

incorporar à teoria linguística os componentes semântico e

pragmático: o funcionamento global de uma língua só pode ser

devidamente explicado por um estudo integrado dos três

componentes. (Koch, 1987: p. 111, grifos da autora)

Vemos que Koch (1987) começa relacionando coordenação e subordinação à

dependência e independência entre orações. Acrescenta que os problemas encontrados

pelos estudiosos ao trabalharem com as relações de subordinação e de coordenação

advêm da adoção, pela gramática tradicional, de “critérios meramente sintáticos ou

formais”. Ela entende que forma e conteúdo são “conceitos solidários” e que existe a

necessidade de incorporação, pela “teoria linguística” – reparemos que ela coloca toda a

expressão no singular –, dos “componentes semântico e pragmático” – pensando na

contribuição de cada uma dessas linhas para o estudo da língua(gem) humana, podemos

interpretar a consideração desses componentes como sendo o reconhecimento da

importância que têm os significados e a situação de interlocução, com sujeitos e cena,

para se alcançar o objetivo da teoria linguística, que seria o de explicar o

“funcionamento global de uma língua”.

No parágrafo seguinte, Koch (op. cit.) nos mostra que essa divisão tradicional

entre dependência e independência entre orações é insuficiente e, até certo ponto,

contraditória, uma vez que existe uma relação de interdependência entre as orações, “de

tal modo que qualquer uma delas é necessária à compreensão das demais” (Koch, idem:

p. 111). Novamente aqui, porém utilizando-se de uma construção bem diferente, a

autora aciona a memória do “sentido global do texto”, bem como o de texto como sendo

o resultado final de uma tessitura, em que várias linhas se combinam, são dependentes

entre si e formam um tecido.

Contudo, esses dois parágrafos não trazem exatamente o modo como a autora

conceitua as conjunções – se é que essa designação que ela usa para se referir às marcas

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que queremos analisar. Na realidade, a autora percorre diversos estudos e estudiosos do

tema, indo desde a gramática de Port-Royal até Othon Moacir Garcia, passando por

Borba, Bally e Ducrot.

Após nos apresentar vários exemplos que, segundo Koch (1987), “poderiam ser

acrescentados aos de Borba e de Othon Moacir Garcia” (Koch, idem), a autora abre um

parágrafo em que discute sobre a validade da divisão tradicional entre orações

coordenadas, subordinadas e justapostas:

Em cada conjunto, encontramos orações que se costumam classificar

de coordenadas, de subordinadas e de justapostas. No entanto, todas

elas exprimem a mesma relação semântica, que exige,

necessariamente, a presença dos dois membros. Portanto, não há

autonomia entre elas, nem é lícito falar de oração principal e oração

subordinada, já que se pode inverter a forma de combinação do

binômio sem alterar a relação. Assim, em todo e qualquer período

composto por duas ou mais orações, verifica-se que há entre elas

uma interdependência, visto que a presença de cada uma delas é

necessária para veicular o significado pretendido. O simples fato

de o locutor apresentá-las em um só período, já significa uma

opção, que tem, portanto, consequências na constituição do

sentido.Se é verdade que, em muitos dos exemplos citados, a

primeira oração pode ser enunciada independentemente, o

acréscimo da segunda vem trazer um novo significado a todo o

conjunto; ela ora é responsável pela introdução de relações

semânticas como as de causa/consequência, meio/fim,

condição/condicionado, etc.; ora encadeia-se sobre a primeira, como

fator de progressão do discurso, sendo portadora de valores

pragmáticos de extrema relevância que a relacionam não só com

aquela, mas também com a própria enunciação. (Koch, op. cit.: p. 114,

grifos nossos, itálicos da autora)

Nesse parágrafo, Koch mostra que o sentido “global” está diretamente

relacionado à construção do conjunto: “se é verdade que, em muitos dos exemplos

citados, a primeira oração pode ser enunciada independentemente, o acréscimo da

segunda vem trazer um novo significado a todo o conjunto”. No que tange a essa

questão de relações entre orações e sentido global, Koch se aproxima bastante da

concepção da análise de discurso, porque relaciona sentido com o modo como se

formula o enunciado, modo esse que não é indiferente para os processos de produção de

sentido(s). Mas a autora se afasta novamente, quando não considera em seu corte

epistemológico as contribuições que as teorias das ideologias e do inconsciente

trouxeram para a discussão sobre sentido, sujeito e língua. Além disso, é importante

frisar, linguística textual não entende o discurso como um objeto teórico, como é o caso

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da análise de discurso, mas como a linguística entende, ou seja, como um termo

equivalente, senão como sinônimo, ao termo fala.

Antes de passarmos para o tratamento dessa questão dado pela Análise de

Discurso, queremos trazer a discussão proposta por Othon Moacir Garcia, a partir da

sua obra Comunicação em prosa moderna (1978), referência também para o

desenvolvimento das análises das conjunçõespoise se, marcas que apontam para os

efeitos de causa e de condição.

Logo no início, especificamente no primeiro capítulo, desse que é um de seus

livros mais conhecidos, diz Garcia, no que tange às orações coordenadas e

subordinadas:

1.4.1 Coordenação e subordinação: encadeamento e hierarquização

Num período composto, normalmente estruturado – isto é, não

constituído por frases de situação ou de contexto –, as orações se

interligam mediante dois processos sintáticos universais: a

coordenação e a subordinação. A justaposição, apesar de

legitimamente abranger uma e outra, é ensinada no Brasil como

variante da primeira, e a correlação, como variante da segunda.

(Garcia, idem: p. 16)

Vemos, já de saída, que: a) trata-se de um trabalho teórico que se enquadra no

escopo da teoria da comunicação; b) há uma divisão central entre articulação de orações

“processos sintáticos universais”: coordenação e subordinação; c) há uma nova

categoria, ainda não mencionada por nenhum outro dos dois linguistas pesquisados: a

correlação – que, segundo o autor, seria uma variante da subordinação tanto quanto a

justaposição seria uma variante da coordenação. Parece-nos, portanto, que estamos

diante de um trabalho que está situado, se é que podemos afirmar isso, numa interface

entre linguística e teoria da comunicação20

. Veremos mais adiante, neste mesmo

capítulo, as implicações teóricas, para as análises, das diferenças entre essa linha e a

Análise de Discurso.

Seguindo o assunto dos “processos sintáticos”, Garcia afirma, sobre a

coordenação, que

20

Na contracapa do livro, em sua sétima edição, há um artigo de autoria de Paulo Rónai, no qual se pode ler: “COMUNICAÇÃO EM PROSA MODERNA se caracteriza por uma abordagem revolucionária do problema da expressão. Em vez de partir do material disponível que oferecem os textos, de classificá-lo e rotulá-lo, o autor toma como ponto de partida as ideias que reclamam comunicação.” (grifos nossos)

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Na coordenação (também dita parataxe), que é um paralelismo de

funções ou valores sintáticos idênticos, as orações se dizem da mesma

natureza (ou categoria) e função, devem ter a mesma estrutura

sintático-gramatical (estrutura interna) e se interligam por meio de

conectivos chamados conjunções coordenativas. É, em essência, um

processo de encadeamento de ideias(...). (Garcia, idem: pp. 16-17)

Sabemos, com esse parágrafo sobre as orações coordenadas, que Garcia

conceitua essa relação sintática como sendo “um paralelismo de funções ou valores

sintáticos idênticos” e que as orações desse tipo são interligadas por meio das

conjunções coordenativas. O autor finaliza essa primeira conceituação falando sobre a

“essência” da relação coordenativa, que seria “um processo de encadeamento de ideias”.

Nos parágrafos seguintes, Garcia se detém a dissertar sobre as conjunções

coordenativas, sempre mostrando exemplos. O interessante nessa parte do capítulo é o

último parágrafo anterior ao parágrafo em que trata da subordinação. Ali, o autor coloca

a questão da dependência entre orações como critério para a divisão entre os processos

subordinativos e os coordenativos. Esta é a primeira vez, desde que introduziu o

assunto, que o autor utiliza esse critério para diferenciar esses funcionamentos

sintáticos. Ao mesmo tempo, nesse parágrafo, Garcia questiona tal critério, dizendo que

As explicativas e conclusivas, mais até do que as adversativas,

estabelecemtão estreitas relações de mútua dependência entre as

orações por ela interligadas, que a estrutura sintática do período

assume características de verdadeira subordinação (...). (Garcia,

idem: p. 19, grifos nossos)

Quanto à subordinação, diz-nos Garcia que a característica desse tipo de relação

sintática entre orações é a “desigualdade de funções e de valores sintáticos” (idem: pp.

19-20). Isso demonstra que o autor está partindo do mesmo critério utilizado para

introduzir a discussão sobre coordenação. Mas, logo na continuação, o autor adentra a

seara da dependência entre as orações num período composto. Novamente, como já

vimos em Koch e em Perini, está em jogo aqui não só a questão da dependência

sintática, mas também a da dependência semântica. Por fim, inserida na discussão sobre

a dependência de sentido (semântica), está a discussão sobre a completude do sentido e,

com base nesse critério semântico, o autor diferencia oração de frase, aproveitando para

mostrar que nem sempre uma e outra coincidem, uma vez que a última tem sempre

sentido completo e definido. Vejamos:

Na subordinação (também chamada hipotaxe), não há paralelismo

mas desigualdade de funções e de valores sintáticos. É um processo de

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hierarquização, em que o enlace entre as orações é muito mais estreito

do que na coordenação. Nesta, as orações se dizem sintática, mas nem

sempre semanticamente, independentes; naquela, as orações são

sempre dependentes de outra, quer quanto ao sentido quer quanto ao

travamento sintático. Nenhuma oração subordinada subsiste por si

mesma, i.e., sem o apoio de sua principal (que também pode ser outra

subordinada) ou da principal do período, da qual, por sua vez, todas as

demais dependem. Portanto, se não podem subsistir por si mesmas, se

não são independentes, é porque fazem parte de outra, exercem função

nessa outra. Isto quer dizer que qualquer oração subordinada é, na

realidade, um fragmento de frase, mas fragmento diverso daquele que

estudamos nas frases de situação ou de contexto (...). “Se achassem

água por ali perto” é uma oração, mas não uma frase, pois nada nos

diz de maneira completa e definida; é apenas uma parte, um termo de

outra (“beberiam muito”), na qual exerce a função de ajunto adverbial

de condição”. (Garcia, idem: pp. 19-20)

Contudo, é somente quando abre o subitem seguinte, intitulado Falsa

coordenação: coordenação gramatical e subordinação psicológica que Garcia vai

realmente centrar sua discussão sobre os processos sintáticos de subordinação e

coordenação a partir do critério semântico, utilizando como apoio argumentativo a

questão da autonomia (do grego αυτονομία, que, segundo o Houaiss, na sua versão

eletrônica, é definido como “direito de reger-se segundo suas próprias leis”) do sentido.

Damos agora, novamente, espaço às palavras do autor:

1.4.2 Falsa coordenação: coordenação gramatical e subordinação

psicológica

Segundo a doutrina tradicional e ortodoxa – como já assinalamos –, as

orações coordenadas se dizem independentes, e as subordinadas,

dependentes. Modernamente, entretanto, a questão tem sido encarada

de modo diverso. Dependência semântica mais do que sintática

observa-se também na coordenação, salvo, apenas, talvez, no que diz

respeito às conjunções “e”, “ou” e “nem”. Que independência existe,

por exemplo, nas orações “portanto, não sairemos”? e “mas ninguém o

encontrou”? Independência significa autonomia, autonomia não

apenas de função mas também de sentido. Que autonomia de sentido

há em qualquer desses dois exemplos? Nenhuma, por certo. A

comunicação de um sentido completo só se fará com o auxílio de

outro enunciado: “Está chovendo; portanto, não sairemos”; “Todos o

procuraram, mas ninguém o encontrou”. (Garcia, idem: pp. 20-21)

O que Garcia entende por subordinação psicológica é a insinuação, que não se

realiza gramaticalmente como uma estrutura subordinativa, de uma ideia relacional

entre orações. E dá um exemplo, retirado de Rocha Lima, que pode ser interessante para

entendermos esse funcionamento dos sentidos subjacentes às conjunções (no caso do

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quer...quer, uma conjunção coordenada alternativa): “Irei, quer queiras, quer não

queiras. equivale a Irei, se quiseres ou (e) mesmo que não queiras.” (p. 23). Essa

subordinação psicológica o autor classificou como concessivo-condicional. E, na

continuação desse exemplo, o autor questiona a definição da gramática tradicional de

orações coordenadas:

Portanto, quando se diz que as orações coordenadas são da mesma

natureza, cumpre indagar: que natureza? lógica ou gramatical? As

conjunções coordenativas que expressam motivo, consequência e

conclusão (pois, porque, portanto) legitimamente não ligam orações

da mesma natureza, tanto é certo que a que vem por qualquer delas

encabeçada não goza de autonomia sintática. O máximo que se poderá

dizer é que essas orações de “pois”, “porque” (dita explicativa) e

“portanto” são limítrofes da subordinação. Em suma: coordenação

gramatical mas subordinação psicológica.

Por isso, muitas vezes, um período só é aparentemente coordenado.

(Garcia, idem: p. 23)

Interessante notar a observação feita pelo autor quando da abertura do subitem

intitulado Outros casos de falsa coordenação. Nesse parágrafo inicial, ele faz uma

análise que relaciona a construção da justaposição (ou “coordenação assindética”, ou

seja, sem conjunção) com o sentido. E seria muita ousadia afirmar que nesse parágrafo o

autor mostrou uma veia de analista de discurso, ao colocar em jogo a pontuação, ao

comparar excertos e funcionamentos e ao procurar mostrar o que, na teoria, chamamos

de efeito de sentido de causa / consequência? Vejamos o que ele diz:

1.4.3 Outros casos de falsa coordenação

Este tipo de justaposição – também dito coordenação assindética – é

muito comum nas descrições sumárias:

O céu se derrama em estrelas, a noite é morna, o desejo sobe da terra

em ondas de calor. (Jorge Amado, São Jorge dos Ilhéus, p. 118)

Ou nas narrativas breves:

O grito da gaivota terceira vez ressoa a seu ouvido; vai direto ao lugar

donde partiu; chega à borda de um tanque; seu olhar investiga a

escuridão, e nada vê do que busca. (J. de Alencar, Iracema, XII)

No primeiro exemplo, as orações estão separadas por vírgula,

inclusive as duas últimas, com o que o autor parece insinuar que não

arrolou todos os aspectos do quadro descrito, deixando a série como

que aberta, em virtude da omissão de um e entre as duas últimas

orações. No segundo, as unidades estão separadas por ponto-e-vírgula,

salvo as duas últimas, que vêm ligadas pela conjunção “e”, com a qual

o autor parece “fechar” a série, como se tivesse enumerado todos os

detalhes dignos de menção. (Garcia, idem: p. 24)

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Então, depois de todo esse levantamento bibliográfico sobre as conjunções, a

subordinação e a coordenação, a partir das teorias gerativista, linguística textual e

argumentativa, é necessário que voltemos novamente nossos olhos sobre a discussão

travada por Pêcheux a respeito desses temas. Para isso, buscamos o apoio no seu livro,

publicado em 1975, Semântica e discurso. Nessa obra, o filósofo francês trabalha as

noções conhecidas pelos nomes de subordinação e coordenação a partir de outra

teorização, que está mais próxima daquilo que conhecemos como subordinada adjetiva

restritiva e subordinada adjetiva explicativa, mas que não deixa de ter seu contato com

as relações entre orações citadas acima: articulação e encaixe.

O encaixe é discutido a partir do trabalho de Paul Henry sobre o pré-construído

– noção importantíssima para a condução de nossas análises, neste capítulo. Diz, então,

Pêcheux (2010 [1975]), após expor as contradições observadas na teoria de Frege:

Foi isso que levou P. Henry a propor o termo “pré-construído” para

designar o que remete a uma construção anterior, exterior, mas sempre

independente, em oposição ao que é “construído” pelo enunciado.

Trata-se, em suma, do efeito discursivo ligado ao encaixe sintático.

Nessa perspectiva, a “ilusão” de que fala Frege não é o puro e simples

efeito de um fenômeno sintático que constitui uma “imperfeição da

linguagem”: o fenômeno sintático da relativa determinativa é, ao

contrário, a condição formal de um efeito de sentido cuja causa

material se assenta, de fato, na relação dissimétrica por

discrepância entre dois “domínios de pensamento”, de modo que

um elemento de um domínio irrompe num elemento do outro sob

a forma do que chamamos “pré-construído”, isto é, como se esse

elemento já se encontrasse aí. Especifiquemos que, ao falar de

“domínio de pensamento”, não estamos querendo designar conteúdos

de pensamento fora da linguagem, que se encontrariam na linguagem

com outros conteúdos de pensamento: na verdade, todo “conteúdo de

pensamento” existe na linguagem, sob a forma do discursivo.

(Pêcheux, idem: p. 89, grifos nossos, itálicos do autor)

No que tange à articulação de enunciados – note-se que o termo enunciado aqui

tem um uso específico que remete à teoria da análise de discurso, uma outra construção

teórica. Em Indursky (1997), vemos a seguinte explicação acerca dessa noção,

explicação que se apoia na leitura de M. Foucault (1969) e de Courtine (1980):

Courtinerafirma Foucault ao apontar o enunciado |E| como elemento

do saber próprio a uma FD, ao mesmo tempo que lhe atribui um outro

estatuto. Para Courtine, o enunciado consiste em um esquema geral

que governa a repetibilidade no interior de uma rede de

reformulações. O autor entende por rede de formulações o conjunto

estratificado (não sintagmatizado) de formulações que consiste nas

formulações possíveis de |E|. Trata-se de uma dimensão vertical e

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interdiscursiva, onde os objetos se formam como preconstruídos. As

diferentes redes de formulações que se estabelecem em uma FD são

responsáveis pelo processo discursivo da FD em questão. Os

enunciados articulam-se entre si, no interior dessa rede, estabelecendo

a referência dos elementos do saber de uma FD. (Indursky, idem: p.

36)

E Pêcheux (idem: p. 101)nos diz que

(...) na verdade, acabamos de reconstituir o mecanismo da relativa

“explicativa”, que tem como característica essencial o fato de

constituir, em si mesma, o que Frege chama um pensamento, isto é,

um elemento saturado, por oposição à relativa “determinativa”, e ao

efeito de pré-construído correspondente estudado mais acima:

podemos ser mais precisos, ao observar que a proposição explicativa

(que, como saliente Frege, pode, entre outras possibilidades, se

parafraseada por uma subordinada introduzida por “porque”) intervém

como suporte do pensamento contido em uma outra proposição, e isso

por meio de uma relação de implicação entre duas propriedades, α e β,

relação essa que enunciamos sob a forma “o que é α é β”. Daremos a

essa relação o nome de efeito de sustentação, destacando que é ela que

realiza a articulação entre as propriedades constituintes. (Pêcheux,

idem: p. 101)

Parece-nos estar o filósofo discutindo estritamente sobre as orações

subordinadas adjetivas determinativas (ou restritivas) e explicativas, ou seja, a

impressão que nos passam esses dois capítulos é a de que está Pêcheux fixado apenas no

funcionamento das subordinadas. Mas, mais adiante, no capítulo seguinte ao da última

citação, ele afirma:

Procuramos desenvolver ao máximo a concepção idealista que ameaça

a “teoria do discurso”, a partir de diversos pontos de ataque, que

podem ser resumidos da seguinte maneira: o primeiro desses pontos

diz respeito a uma interpretação formalista dos mecanismos

linguístico discursivos do encaixe (determinação) e da articulação de

enunciado; interpretação que leva ao segundo ponto, que consiste num

acobertamento da oposição ciências / ideologias pelo par idealista

Lógica (= ciência) / Matemática. (Pêcheux, idem: p. 121)

Portanto, estamos falando de um outro lugar teórico, que, como vimos dizendo

repetidamente, possui um objeto próprio – o discurso –, bem como instrumentos

teóricos próprios, dentre os quais estão as noções acima apontadas: articulação e

encaixe. É, logo, desse ponto que partimos para conduzir nossas análises. Saindo as

posição gramatical e reinserindo a questão da ideológica da contradição, e da luta de

classes, que caracterizam a sociedade capitalista em que as letras foram produzidas e

postas em circulação e que serão trabalhadas neste capítulo, poderemos observar como

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se dão os funcionamentos discursivos, para daí chegarmos ao processo discursivo, a fim

de que possamos contemplar os embates ideológicos ali em jogo.

3.1 “EU TÔ FAZENDO O QUE O SISTEMA QUER”: FORMAÇÕES

IMAGINÁRIAS, POSIÇÕES-SUJEITO E

FORMAÇÕESDISCURSIVAS

“(...)o rap assumiu o lugar da canção de protesto e é, hoje, a única música de contestação. É um gênero

que tem fôlego para crescer. Sua importância não está em revelar a realidade da periferia - já que toda

música revela uma realidade -, mas em ser uma forma de expressão, de convencimento e de persuasão

para os seus ouvintes.”

(Luiz Tatit, 2007)

No álbum A marcha fúnebre prossegue, cujas letras estamos analisando,

encontramos uma tentativa do sujeito-autor de dar unidade e homogeneidade às

divergentes posições de sujeito que nessas letras comparecem. Se, em um momento,

esse sujeito se coloca próximo de uma posição revolucionária (ver L12 – Discurso ou

revólver), em outro momento, esse mesmo sujeito se posiciona mais distante desse viés

revolucionário e mais próximo de uma posição reformista, mais dentro do sistema

capitalista jurídico, porque enxerga nas leis do Estado sua referência de justiça (em L3:

“não tem inquérito pra TV que tem a vadia nua/ novela das 6, 7, 8, sem ministério nem

censura/ só o meu rap é nocivo pro sistema hipócrita”). Esta heterogeneidade de

posições caracteriza o material que temos nas mãos. Mas essa também é uma

característica dos textos, enquanto unidades de significação, textos que têm, sob a figura

do autor, a produção do efeito de unidade, de homogeneidade. Autor de acordo com a

função descrita por Foucault (2008 [1971]):

Em contrapartida, na ordem do discurso literário, e a partir da mesma

época [desde o século XVII], a função do autor não cessou de se

reforçar: (...) eis que, agora, se lhes pergunta (e exigem que

respondam) de onde vêm, quem os escreveu; pede-se-lhe que revele,

ou ao menos sustente, o sentido oculto que os atravessa; (...). O autor é

aquele que dá à inquietante linguagem da ficção suas unidades, seus

nós de coerência, sua inserção no real. (Foucault, idem: pp. 28-9)

Interpretando essa passagem essencial para o que vimos dizendo sobre a

heterogeneidade de posições discursivas até aqui, podemos dizer que é o sujeito

investindo na função de autor que confere ao texto, um bólido de sentidos (Orlandi,

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92

2009), seu fio central, sua linha condutora, seu efeito de homogeneidade e “seus nós de

coerência”.

No entanto, não são apenas diferenças de posições discursivas que encontramos

ao analisar as letras. Encontramos, também, embates entre formações discursivas

distintas, o que podemos observar a partir das disputas de sentido travadas sobre, por

exemplo, as palavras vítima, vitória, herói, justiça. Será que essa possibilidade de

vislumbrar duas ou mais formações discursivas demonstram a existência de um

esgarçamento tal das relações de identificação desse sujeito-autor com as diferentes

posições, que chega ao nível de uma ruptura quase total, ao ponto de uma

desidentificação mesmo com sentido A, ao mesmo tempo em que ocorre um

estreitamento na relação desse mesmo sujeito-autor e o sentido B, ou seja, é possível

observar a ocorrência de uma “nova” identificação, agora com outra matriz de sentido,

ou formação discursiva? Poderemos, ou não, chegar a uma afirmação dessa natureza

após as análises.

Segundo nossas análises, na posição de sujeito rapper, podemos observar que

são produzidas, ao menos, seis diferentes imagens do lugar de rapper, as quais

denominamos do seguinte modo, “respondendo” à pergunta subjacente “quem sou eu

para lhe falar assim?”:

IAR (R1) = “sou” o mensageiro de um futuro trágico

IAR (R2) = “sou” o porta-voz da favela/periferia

IAR (R3) = “sou” o arrependido, lamentoso

IAR (R4) = “sou” a vítima

IAR (R5) = “sou” o revoltado sanguinário

IAR (R6) = “sou” o revolucionário

Cada uma dessas imagens comparece, geralmente, mais de uma vez em cada

domínio (cada domínio significando cada letra de música que, nesta dissertação,

marcamos com a letra L em maiúsculo seguida do número que representa a faixa da

música no álbum, p.e.: L5) e, em mais de um domínio.

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De acordo com o efeito de sentido que é produzido em determinado domínio, pode-

se observar a prevalência de uma ou outra imagem. É o caso, p.e., da L10, intitulada De

encontro com a morte, em que a imagem que comparece com maior força é a Ia(A)1, ou

seja, a do mensageiro de um futuro trágico. Além disso, cada imagem possui um

funcionamento específico, que permite “identificá-la”:

a) A IAR (R1) se constrói a partir da presença de uma forma verbal perifrástica para

construir o futuro do presente, na qual o verbo auxiliar é sempre o verbo ir

conjugado – o que confere um efeito de inexorabilidade ao verbo principal, que

aparece no infinitivo –, ou mesmo apenas com o verbo conjugado no futuro do

presente simples.

SD1: “A fome e a miséria mostram o fruto que a sociedade vai colher” (L2)

Podemos afirmar, considerando o silêncio constitutivo, que ao dizer “vai” +

“colher” (verbo) o sujeito-rapper não está dizendo “pode colher” ou “quer

colher”. Ele não modaliza: afirma categoricamente, assevera: “vai”.

b) A IAR (R2), a que denominamos de porta-voz da favela/periferia – não é muito

difícil de perceber que, nas letras, produz-se uma mesma referência para essas

duas palavras: lugar e modo de ser –, vem construído a partir de verbos e

pronomes substantivos ou adjetivos na primeira pessoa do singular ou do plural,

seguidos de expressões que remetem a favela/periferia.

SD2: “Sou periferia em cada célula do corpo” (L7)

Vale a pena lembrar aqui que “periferia” funciona enquanto um atributo de um

sujeito, e não enquanto o lugar de origem desse sujeito, que viria designado pela

expressão composta pela locução preposicionada “de” + “nome do lugar” (p. e.,

“da periferia”).

c) O tom de lamento e arrependimento da IAR (R3) tem origem na construção

baseada num embate entre um passado possível mas irrealizado e um presente de

dificuldades. Trata-se de um confronto entre o ideal e a realidade e tudo isso se

marca a partir de verbos no pretérito perfeito e imperfeito, normalmente em

construções que utilizam marcas de oposição, como, por exemplo, as orações

negativas e as coordenadas adversativas, havendo, ainda, um caso de concessiva.

SD3: “Meu coração de ódio queria paz, acredite! Mas agora sou eu e o atirador

de elite.” (L10)

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Entre o querer (verbo volitivo, de vontade), do campo do hipotético, e a cena da

realidade, há um “mas” que marca a distância existente: a direção argumentativa

(veremos essa questão no subitem 3.2) é dada pelo sentido da oração encabeçada

pela conjunção adversativa, o que mostra que o sujeito se identifica com a “cena

da realidade”, argumento decisivo se comparado com a “vontade” representada

pelo verbo querer no imperfeito do indicativo, presente na oração anterior.

d) A IAR (R4), vítima, constrói-se, sobretudo, com orações na voz passiva com ou

sem agente expresso; com a marca da terceira pessoa tanto do singular quanto do

plural.

SD4: “O moleque do pipaé transformado num homicida.” (L2)

Veja que o verbo na voz passiva mostra que o sujeito da passiva, entendido

como aquele que sofre a ação verbal, é “o moleque do pipa”: há aí uma inversão

completa do sentido de “escolha” e de “vontade”, se pensarmos no sentido que o

discurso dominante impregna e cristaliza a respeito da infância na favela. Aqui,

colocando-o como objeto de uma ação, o sujeito-rapper desloca a

responsabilidade da “escolha” individual para um outro lugar, um lugar

coletivamente instituído: o da figura do Estado, metaforizado pelos termos

Brasil e país, que aparecem preenchendo o papel de sujeito em diversas outras

formulações, e que podem ser recuperados como o agente da passiva (ou sujeito

da ativa), discursivamente.

e) Na IAR (R5), a imagem do revoltado sanguinário se produz a partir de palavras e

expressões que remetem a situações comumente consideradas violentas. Essas

expressões podem ou não conter palavras como sangue e/ou suas derivadas.

SD5: “Virei o ladrão com a faca, que mata com frieza.” (L6)

Mesmo estando o verbo virar na primeira pessoa da singular (do pretérito

perfeito do indicativo), na voz ativa, o que cria a expectativa de que o sujeito age

sobre algo, o próprio entendimento desse verbo nos permite perceber a transição

subjacente: virar > tornar-se > transformar-se em... Esse fato expõe que houve

um processo de transformação produzida por algo/alguém sobre esse sujeito

(eu), que se estranha e se descobre como ladrão, cuja característica é “matar com

frieza”. Observemos que a escolha do verbo, conhecido gramaticalmente como

“de ligação”, porque ligaria o sujeito ao seu atributo, denuncia que esse sujeito

gramatical não se vê responsável pela prática moral e juridicamente entendida

como ilegal (“matar”).

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f) A imagem IAR (R6) tem uma simetria de funcionamento com a IAR (R5) e se

marca por palavras e expressões que remetem a um cenário de revolução, com

conclamação a uma ruptura radical.

SD6: “O Brasil não aceita pobre revolucionário, o marginalizado defensor do

favelado.” (L7)

É interessante observar que o termo revolucionário é definido como “o

marginalizado defensor do favelado”, expressão que sucede o termo, separados

uma do outro por vírgula. Podemos recuperar como o Facção Central se define:

“representante do barraco”, ou seja, como porta-voz do favelado / morador da

periferia. Discursivamente, então, temos um deslocamento do significado de

revolucionário, que desliza do transformador radical da sociedade para o

“marginalizado defensor do favelado”, ou seja, para um sujeito que questiona a

ordem estabelecida, posicionando-se ao lado daqueles que precisam de defesa

(favelados). Facção Central se coloca, assim, na posição de revolucionário,

porque é o marginalizado porta-voz dos favelados.

Nesse sentido, resumindo todas essas imagens, e cruzando-as com os domínios

(letras de música), obtivemos o seguinte quadro (repare que o sinal de + aparece para

marcar a presença da imagem no domínio e que o sinal de – aparece para marcar sua

ausência):

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QUADRO IMAGENS X LETRAS

Ia(A)1 Ia(A)2 Ia(A)3 Ia(A)4 Ia(A)5 Ia(A)6

L2 + - - + - -

L3 + + - + + -

L4 + - + - + -

L5 + - - + + -

L6 + - + + + -

L7 + + + + + +

L8 + + - - + -

L9 + - + + + -

L10 + - + + + -

L11 + + + + + -

L12 - - - + + +

L13 + + + + + -

L14 + + + + - -

L15 + + - + + -

L16 - + - + - -

Figura 4

Este quadro nos deixa ver, por exemplo, que os domínios L11 e L13 são bastante

parecidos em relação às imagens que o sujeito-rapper faz da posição de um rapper.

Interessante perceber que, justamente, nessas letras intituladas Eu tô fazendo o que o

sistema quer e Sem luz no fim do túnel respectivamente, não aparece a imagem do

revolucionário. Outra constatação a que se pode chegar observando esse quadro é que a

imagem mais presente não é a do revolucionário, que comparece em apenas dois

domínios, mas a do mensageiro de um futuro trágico e a da vítima. Essas constatações

são interessantíssimas, porque podem permitir a observação das posições que esse

sujeito ocupa no discurso e quais as contradições que são produzidas a partir de cada

uma dessas posições.

A imagem do outro também é construída. Trata-se da imagem que o sujeito-

rapper faz daquele a quem ele fala, ou seja, Ia(B). Como pudemos mostrar, esse outro é

sempre uma antecipação produzida pelo sujeito-autor, antecipação essa que é

constitutiva das condições de produção desse discurso, uma vez que o sujeito-autor

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produz seu material sonoro necessariamente imaginando (antecipando) um interlocutor

(virtual, que pode ou não corresponder ao “real”, ou seja, àquele que efetivamente

lê/ouve suas letras/músicas), e esse interlocutor não aparece representado de uma forma

marcada, com “falas” representativas, a não ser na letra L9 (Tensão), na qual o sujeito-

rapper “narra” um sequestro relâmpago e “cede” voz ao pensamento/fala do

personagem que sofre esse assalto (personagem que representa esse outro, mas que não

é esse outro!). Nesse âmbito, foi possível encontrar algumas marcas presentes no fio

discursivo que nos permitem vislumbrar quem seria esse outro a quem o eu/nós da

posição de sujeito-rapper se opõe. Para isso, buscamos sobretudo as denominações.

Nesse sentido, recortamos essas denominações das sequências discursivas (SD) com

base principalmente em sintagmas nominais (artigos, pronomes/substantivos, adjetivos).

Esses sintagmas ocupam tanto a posição gramatical de sujeito como de objeto

direto/indireto e de vocativo (ou seja, a quem o sujeito-rapper antecipa como sendo o

seu interlocutor).

Encontramos as seguintes denominações, cuja enumeração está dividida entre as

diferentes letras:

L2: o policial contente

L3: promotor, a classe rica, empresário na Cherokee, doutor, TV sensacionalista,

sistema porco, sistema hipócrita, empresário rico, país falso moralista, tia da mansão,

filho da madame, empresário bem sucedido.

L4: gambé [policial], o dono da empresa, cuzão [que vive no condomínio e que limpa o

rabo com dinheiro], o dono do jato, filho da puta, playboy, madame, arrombado que me

critica, gambé porco, a burguesa.

L5: rica de Mitsubishi, a vaca, boy, gambé do DENARC, um boy tá de Ferrari, outro

[boy] é dono de avião, moleque do condomínio, um cu de Audi, velha.

L6: mãe

L7: desgraçado, o Brasil, rimador da alegria, favela, os porcos, mídia, vaca rica, quem

me faz roubar o executivo, dono do iate.

L8: algum cu, algum rico, socialite, a cadela rica, um político cínico, essa vaca, modelo

puta, pagodeiro, sertanejo, quem acende charuto com nota de 100 reais, a puta de

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megafone, apresentador cuzão falso moralista, quem faz comercial contra a violência é

o mesmo que quer o sangue pra ganhar audiência, arrombado de blindado.

L9: dono do jato, coroa, sua piranha.

L10: lambe-saco de boy, o sistema, tia, o menino de olho azul.

L11: puta rica, viúva histérica, o boy cuzão, o boy tem clube no campo e conta no

exterior, cuzão que come caviar e lagosta, o dono da mansão, a BMW da burguesa

vadia, boy porco de olho azul, quem tem tudo na mesa, dono de empresa, madame de

chofer.

L12: Hitler, FHC, capitão do mato, professor, o Presidente, o inimigo.

L13: país do caralho

L14: a rica cheia de joia, o boy de rolexcherokee vidro fumê, refém milionária.

L15: o monstro do horário político que com a dor do indefeso compra mercedes e

coloca obra de arte valiosa na parede, vadia, um porco que faz o macarrão do lixo ser

meu almoço, a cadela rica, o prego do condomínio, o dono do porche que também tem

um jato que vai pra Cali noite e dia, o branco articulado e bem vestido que não saca o

cano mas rouba até nos estados unidos, réu, autor intelectual do massacre na favela,

engravatados filhos da puta, político porco.

Vemos, então, um grande número de designações, assim como podemos

observar muitas repetições. Quando o ouvinte antecipado pelo sujeito-rapper é um

policial, ou seja, quando o ouvinte imaginado pelo rapper é um sujeito que representa a

força policial, as designações podem ser: „o policial contente‟; „gambé‟ („porco‟, „do

DENARC‟); „os porcos‟; „os lambe-saco de boy‟. Se considerarmos que a regularidade

está na qualificação depreciativa dos membros da corporação policial, podemos também

considerar que „o policial contente‟ produz um efeito de ironia, na qual o sujeito-rapper

encaminha a argumentação na direção oposta daquela que poderia ter seguido,

promovendo um desencontro semântico com relação à expressão utilizada. Ou seja, diz-

se uma coisa, a fim de significar o seu oposto. Diz-se „o policial contente‟, para

significar „o policial preocupado‟, adjetivo que aparece expresso na continuação do

verso onde se encontra tal expressão “irônica”.

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Da mesma forma, podemos proceder com o imaginário construído em relação

aos outros „outros‟ desse grupo de letras de músicado Facção Central. Podemos

observar que, para se referir à classe – no sentido de luta de classes marxista, entre

proletários, aqueles que podem apenas vender sua força de trabalho, e burgueses, ou

detentores dos meios de produção de capital – oposta àquela da qual faz parte, o sujeito-

rapper enuncia as expressões: „a classe rica‟; „empresário na Cherokee‟; „doutor‟;

„empresário rico‟; „tia da mansão‟; „filho da madame‟, „empresário bem sucedido‟; „o

dono da empresa‟; „cuzão [que vive no condomínio e que limpa o rabo com dinheiro]‟;

„o dono do jato‟; „filho da puta‟; „playboy‟; „madame‟; „arrombado que me critica‟; „a

burguesa‟; „rica de Mitsubishi‟; „a vaca‟; „boy‟; „um boy tá de Ferrari‟; „outro [boy] é

dono de avião‟; „moleque do condomínio‟; „um cu de Audi‟; „velha‟; „vaca rica‟; „dono

do iate‟; „algum cu‟; „algum rico‟; „socialite‟; „a cadela rica‟; „essa vaca‟; „modelo

puta‟; „quem acende charuto com nota de 100 reais‟; „a puta de megafone‟; „arrombado

de blindado‟; „dono do jato‟; „sua piranha‟; „tia‟; „o menino de olho azul‟; „puta rica‟;

„viúva histérica‟; „o boy cuzão‟; „o boy tem clube no campo e conta no exterior‟; „cuzão

que come caviar e lagosta‟; „o dono da mansão‟; „a BMW da burguesa vadia‟; „boy

porco de olho azul‟; „quem tem tudo na mesa‟; „dono de empresa‟; „madame de

chauffeur‟; „a rica cheia de joia‟; „o boy de Rolex, Cherokee vidro fumê‟; „refém

milionária‟; „vadia‟; „um porco que faz o macarrão do lixo ser meu almoço‟; „a cadela

rica‟; „o prego do condomínio‟; „o dono do Porche que também tem um jato que vai pra

Cali [Colômbia] noite e dia‟; „o branco articulado e bem vestido que não saca o cano

mas roubam até nos Estados Unidos‟; „réu‟; „autor intelectual do massacre na favela‟;

„engravatados filhos da puta‟.

Nessas designações, a primeira coisa a se notar é que existe uma designação para

cada um dos elementos que compõem as famílias mononucleares burguesas:

denominações para as mulheres, para os maridos e para os filhos. Sendo essas

designações, assim como para os policiais, também de qualificação depreciativa,

podemos verificar algumas regularidades nas significações, como é o caso das

denominações para os membros do sexo feminino: „vaca‟, „vadia‟, „puta‟, „piranha‟,

„cadela‟, todas formando um campo semântico de desprestígio, de desvalorização.

Há, nas referências à prole dos membros dessa outra classe, a dos possuidores de

bens e de meios de produção, as seguintes designações: „boy‟, „menino de olho azul‟, „o

boy de Rolex, Cherokee vidro fumê‟, „playboy‟, „filho da madame‟, „moleque do

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condomínio‟. Essas designações promovem um corte bastante específico, mesmo que

tomemos as característica citadas como metonímias do tipo: „o boy’, designação voltada

para o sexo masculino, também pode ser uma referência à denominação não expressa

„girl’ (meninos e meninas dessa outra classe, inimiga dos pobres e favelados); „o

menino de olho azul‟ pode ser referido a todas as outras cores de olhos claros, comuns

aos nativos de países do hemisfério norte, que, política e economicamente falando,

remetem à memória da riqueza, a posses, a bens materiais, portanto, referir-se a„o

menino de olho azul‟ é fazer um corte em relação aos meninos de olhos escuros, cores

comuns nos países do hemisfério sul, países política e economicamente

“subdesenvolvidos”, sobretudo devido às centenas de anos durante as quais foram/são

explorados e alienados de suas riquezas, o Brasil é um exemplo de país do hemisfério

sul que também se caracteriza pelo “subdesenvolvimento” social, político, econômico...

As outras designações se referem à figura paterna dessas famílias, herdeiras do

patriarcalismo, sistema de organização familiar em que o “pai” é o provedor, aquele que

gere a família também no âmbito econômico, além de possuir o poder de decisão sobre

questões de outras naturezas além da financeira, afinal, no capitalismo, que sobrevive

do funcionamento das famílias mononucleares, cada membro da família tem uma

função específica no que concerne à reprodução-perpetuação do sistema. Também nas

designações dessas figuras patriarcais, encontramos depreciação e um corte de classe:

„empresário (na Cherokee, rico, bem sucedido)‟, „dono (de empresa, do jato, de avião,

do iate, do Porche que também tem um jato que vai pra Cali [Colômbia] noite e dia)‟,

„doutor‟, „branco articulado e bem vestido que não saca o cano mas roubam até nos

Estados Unidos‟, „engravatados filhos da puta‟, „autor intelectual do massacre na

favela‟, „cu de Audi‟, „cuzão‟, „prego do condomínio‟.

Dizemos que há resistência nessas construções discursivas de referência sobre a

classe burguesa, porque esse sujeito-rapper procura não reproduzir as “evidências” que

a memória social capitalista brasileira tenta impor: o rapper inverte essa “lógica”,

alçando como a “vítima” não o empresário que sofre um assalto, o que a mídia e as

peças publicitárias procuram fixar de modo estereotipado, mas aquele que já nasce

rejeitado pelo sistema capitalista, aquele que não serve sequer para compor o que os

capitalistas chamam de exército de mão-de-obra reserva, aqueles que não tem seus

direitos mínimos garantidos, aqueles que moram em favelas, em condições degradantes

de sobrevivência, aqueles cujo núcleo familiar é majoritariamente composto por muitas

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crianças e poucos ou nenhum pai, aquele para quem a escola é apenas um sonho

distante, porque ou ela não existe, ou possui um formato tal que o inclui excluindo.

Lembremos, neste momento, que estamos nos referindo aos direitos burgueses, cuja

semente foi plantada no final do século XVIII, com as revoluções liberais francesa e

estadunidense, principalmente. Enfim, com essa inversão de importâncias, colocando o

„empresário bem sucedido‟ no banco dos „réu‟s, o sujeito-rapper resiste e acaba por

participar de um outro imaginário, não um instaurado por ele, mas um outro imaginário

que produz sentidos, apesar de não passar nas telas da TV, sentidos com os quais esse

sujeito se identifica. Portanto, trata-se de um imaginário outro, de onde esse sujeito

retira seus sentidos para (se) significar. Isso não quer dizer, no entanto, que não haja

contradições nesse/para esse sujeito. Na verdade, tanto essas contradições existem como

elas serão mostradas na parte em que apresentamos as análises das marcas de negação,

de adversidade, de causalidade e de condicionalidade. Nas negações, sobretudo, vemos

de forma bastante clara como essa contradição se dá, pois ali o sujeito acaba assumindo

como seu o imaginário contra o qual procura lutar e que conseguimos observar no

funcionamento das designações aqui elencadas. Esse sujeito parte de outros enunciados

para formular, enunciados esses que constroem previamente um imaginário

“reformista”, de sustentação do capitalismo, e não de ruptura com tal sistema. Mas tudo

isso só será melhor mostrado e exemplificado mais adiante.

3.2 LÍNGUA FLUIDA E LÍNGUA IMAGINÁRIA: A CONSTRUÇÃO DA

RESISTÊNCIA À LÍNGUA, NA LÍNGUA

Porque a língua, tal como a intuí por aquela experiência no contato com os índios, é sem limites. Como

um imenso rio, como um Xingu, que os olhos não abrangem, não seguram, não limitam. Fluida.

(Orlandi, 2009 [1985])

Língua fluida e língua imaginária são duas noções teóricas pensadas e

elaboradas por Orlandi (2009 [1985]), quando de uma „pesquisa de campo fora dos

parâmetros da chamada Linguística Antropológica‟, com índios Xerente e Assurini. O

primeiro aspecto a se destacar é o de que essas noções se deram a partir de um

cruzamento entre a posição de alguém que teoriza e de alguém que inicia um olhar

sobre a história das teorias. Outro não menos relevante aspecto é o de língua, o objeto

teórico construído pela linguística, que acaba por se firmar enquanto um campo

científico a partir da publicação das ideias de Saussure no livro de Sechehaye e Bally

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(1916) chamado de Curso de Linguística Geral. Esse objeto teórico foi proposto a partir

da dicotomia saussureana de língua x fala. A primeira, um fenômeno social, possuidora

de uma estrutura que pode ser descrita, suscetível à regularização, à sistematicidade, à

teorização, capaz de unidade. A segunda, incapaz de unidade, considerada resto por

possuir caráter individual, não sujeita à classificação, não sujeita à análise. A noção de

sistema e de sistematicidade que desenham conceitualmente uma linha que separa

língua de fala, para Saussure. E Orlandi (2009 [1985]) mostra que Chomsky segue o

mesmo caminho, por via de outra teorização, a da teoria da sintaxe, e dicotomiza

competência e desempenho, elencando o primeiro como objeto teórico. Assim, como

aponta Orlandi, ambos veem na unidade um elemento central para suas respectivas

teorias.

Mas a teoria do discurso, por não se tratar de uma teoria de língua, tal como a

linguística pensa a língua, propõe um outro corte epistemológico, e constrói, como

objeto teórico, o discurso. Isso, isoladamente, já promove um deslocamento nas

teorizações, deslocamento esse que propicia novos modos de se relacionar com a língua:

Para a teoria do discurso a língua tem sua unidade, sua própria

ordem, com a diferença que não é um sistema perfeito, nem uma

unidade fechada: a língua é sujeita a falhas e é afetada pela

incompletude.Ela é, como diz P. Henry (1975) „relativamente

autônoma‟. Como tenho dito muitas vezes, o lugar da falha e a

incompletude não são defeitos, são antes a qualidade da língua em sua

materialidade; falha e incompletude são o lugar do possível. Daí a

diferença, a mudança, o equívoco. (Orlandi, 2009 [1985]: p. 12, grifos

nossos.)

Assim, temos que a língua é lugar do possível, da mudança, do equívoco e não

apenas da reprodução. Nesse sentido, podemos dizer, com Pêcheux (1975), que a língua

é o lugar da reprodução-transformação, transformação via deslocamentos de sentidos.

Isso tudo nos permite pensar na língua como lugar de resistência.

Contra essa possibilidade de resistência, de deslocamento, de transformação,

temos a língua imaginária, essa que é suscetível à sistematização, objeto de teorização,

que tende a ser sanada de toda e qualquer possibilidade de “erro”. E o poder da

resistência está exatamente naquilo que seria o inanalisável, o inclassificável, o

ilimitado da língua fluida, aquela que escapa às tentativas de teorização e que “resta”,

que não cabe em fórmulas, que se movimenta:

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Em nosso imaginário (língua imaginária) temos a impressão de uma

língua estável, com unidade, regrada, sobre a qual, através do

conhecimento de especialistas, podemos aprender, termos controle.

Mas na realidade (língua fluida) não temos controle sobre a língua

que falamos, ela não tem a unidade que imaginamos, não é clara e

distinta, não em os limites nos quais nos asseguramos, não a

sabemos como imaginamos, ela é profundidade e movimento

contínuo.Des-limite. (Orlandi, 2009 [1985]: p. 18, grifos nossos)

Como veremos mais adiante, quando confrontarmos conceitos propostos pela

gramática tradicional, pela semântica argumentativa, pela linguística textual e,

finalmente, pela análise de discurso, poderemos observar com mais atenção como se dá

essa tentativa de conter a língua, de aprisioná-la dentro de fórmulas que, na língua

fluida, não são totalmente possíveis. Veremos, por exemplo, como uma chamada

conjunção condicional prototípica pode funcionar produzindo um efeito de sentido de

causa. Veremos, também, como há outras formas conjuntivas que auxiliam na produção

de um sentido de oposição, mas que não se encontram elencadas nas gramáticas na

seção sobre conjunções adversativas. Tudo isso afeta e é afetado pela língua imaginária,

e se produz na mobilidade da língua fluida.

3.2.1 A NEGAÇÃO

Uma das marcas mais expressivas nas produções discursivas com as quais se

trabalha nesta dissertação é a negação. Presente de maneira constante em todas as

músicas, seja por meio de prefixos com sentido de privação (“in-felizmente”; “im-

potência” – L2), seja por meio de advérbios (“não” – L2), preposições (“sem” – L2) e

conjunções (“nem” – L3), as formas de negação chamaram a atenção de imediato.21

Porém, para fins desta pesquisa, recortamos apenas sequências discursivas que

contivessem a negação construída com o advérbio “não” explicitado. Mas, para poder

caminhar pela trilha das negações, é necessário, primeiro, pensar sobre o que elas nos

trazem discursivamente, e não apenas linguisticamente.

Encontramos mais de cento e quarenta sequências discursivas, que estão

relacionadas abaixo:

SD1: O ladrão nervoso, trêmulo, não quer algema da polícia.

21

Neste trabalho, optamos por não retomar as análises que Ducrot (1992) faz sobre a negação, uma vez que o nosso quadro teórico da análise de discurso discute a negação por outro caminho, como veremos a seguir.

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SD2: O moleque esquecido no fundão da periferia vai cansar de pedir

esmola, de não ver comida na panela (...), vai arrumar um revólver,

tentar resolver seus problemas através do sangue da cabeça de um

gerente de banco.

SD3: Censurou o clipe, mas a guerra não acabou.

SD4: Não é assim, promotor, que a guerra vai acabar.

SD5: Não tem inquérito pra TV que tem a vadia nua.

SD6: A justiça não quer ouvir que o moleque que o pai dá as costas

pode invadir seu apê, derrubar sua porta.

SD7: Não sou eu que coloco o mano lá no banco, estorando o gerente,

saindo trocando.

SD8: Eu não preciso estimular o latrocínio, nem o sequestro

relâmpago de um empresário rico.

SD9: O Brasil não dá escola, mas dá metralhadora.

SD10: O Brasil não dá comida, mas põe crack na rua toda.

SD11: Não vem me colocar de bode expiatório, país falso moralista, é

você que quer velório.

SD12: E quem não olha pro moleque sem infância, no morro, oitão na

cinta, sangue na mente, apetitoso.

SD13: Não é desculpa pra revolta, porque não é seu filho.

SD14: O seu [filho] tá de Audi, alimentado e bem vestido. Vai se

tornar empresário bem sucedido. Não vai precisar gritar “assalto!” em

nenhum ouvido.

SD15: Não queria o moleque com a faca na mão, ajoelhando o tio

grisalho, querendo seu cartão.

SD16: Queria só rimar choro de alegria, mas na favela não tem

piscina, armário com comida.

SD17: Cuzão que não concorda com o holocausto brasileiro vive no

condomínio, limpa o rabo com dinheiro.

SD18: Ladrão trocando, pra não ser preso.

SD19: No céu não tem Deus, só o helicóptero da polícia,

descarregando a traca no fugitivo da delegacia.

SD20: Não vou rimar felicidade no meu rap, se aqui, filho da puta, a

marcha fúnebre prossegue.

SD21: Meu relato é sanguinário, playboynão vai curtir.

SD22: Não simulo sentimento, pra vender CD.

SD23: Não vou falar de paz, vendo a vítima morrer.

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105

SD24: Não iludo o casal, dirigindo feliz à pampa.

SD25: Caixão lacrado não estimula o verso alegre.

SD26: Sem pai de família gritando “assalto!”, ou sendo feito de

escravo, com 1-5-1, por mês, de salário, que não enche nem metade

do carrinho no mercado.

SD27: [1-5-1, por mês, de salário] Não paga luz e água, o aluguel do

barraco.

SD28: Cuzão dá o malote, herói não sobrevive.

SD29: Não tenho futuro.

SD30: Não sou jogador. Sou, na cena do crime, o principal ator.

SD31: Boy, quando ouvir “assalto!”, não precisa chorar, apenas são

teus cães adestrados pra matar.

SD32: Sem negociação, comigo é só terror. Não cumpriu minha

exigência, a vítima sente a dor.

SD33: Na agência bancária, vou tirar nota A. Se o gerente não

colaborar: pá! pá! Miolo no ar!

SD34: Aprendi que não é justo eu na caixa de papelão, enquanto um

boy tá de Ferrari e o outro é dono de avião.

SD35: Papai Noel, eu não sou um bom menino! Eu busco o conforto

através do latrocínio.

SD36: Fui adestrado pra roubar seu dinheiro, velha! Não pra encher

panela, mas pra ter carro, fumar pedra.

SD37: Mãe, não dei valor pro teu sonho, sua luta.

SD38: Não fui seu orgulho: diretor de empresa.

SD39: Não mereci sua lágrima no rosto, quando chorava, vendo a

panela sem almoço.

SD40: Enquanto você juntava aposentadoria, esmola, pra não ter

despesa, eu tava no bar, jogando bilhar, bebendo cognac, bêbado.

SD41: Não atravessa o meu caminho.

SD42: Se não, vou te matar.

SD43: O Brasil não aceita pobre revolucionário.

SD44: Ameaça não intimida.

SD45: Eduardo não faz tremer.

SD46: Fala mal de mim, rimador da alegria. Pelo menos não sou puta.

SD47: Não vendi minha ideologia.

SD48: Não traí minha história, minha raiz no cortiço.

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106

SD49: Oficial de justiça não apreendeu meu cérebro. Dentro e fora da

cadeia: locutor do inferno.

SD50: Um careca de jaqueta: aqui é rapper Facção. Não vai te dar

notícia com o sangue da vaca rica.

SD51: Cuzão não entendeu.

SD52: Rap não é campeonato.

SD53: Pra vender CD, não precisa do meu fracasso.

SD54: Não me deram faculdade pra eu me formar doutor, então, a rua

me transformou no demônio rimador.

SD55: Enquanto meu corpo não virar carniça, eu tô no rádio, no

vídeo, lançando minha ofensiva.

SD56: O moleque decapitado no esgoto, no lixo, é só uma estatística,

um furo jornalístico, banal pro circo do falso moralismo, não abala a

cadela rica nem um político cínico.

SD57: Não somos só notícia, número de estatística.

SD58: A puta de megafone, no palco, gritando, não sabe o que é

fome, só entende de tamanco.

SD59: Não é o Stalone metralhando o segurança, é outro excluído,

querendo vingança.

SD60: A minha história não tem maquiagem.

SD61: O meu ponto de vista não é feito pra vendagem.

SD62: Eu não agrado gambé nem arrombado de blindado.

SD63: O boynão quer meu bem. Só quer minha pistola.

SD64: Quem quer tá no condomínio, vivo e feliz, não pede paz só

quando tem defunto no Jardins.

SD65: Não tem como gritar nem dar alarme.

SD66: Por que não fui morar na Europa?

SD67: Talvez seja algum moleque que eu não dei esmola.

SD68: Cala a boca, doutor. Não dá mais nem um pio!

SD69: Se não, te mando com tua vaca pra puta que o pariu!

SD70: Diferente de você, não tenho BMW. Só um cômodo no

barranco que, com a chuva, tá soterrado.

SD71: Teu filho vai pra escola com vigia, detector, enquanto o meu

não tem aula nem professor.

SD72: Não uso grife, sapato italiano.

SD73: Eu nãotô na moda. Nem etiqueta tem nos meus pano.

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SD74: Por isso, seu sangue não me comove.

SD75: Aí, coroa,não me tira!

SD76: Então, cuzão, dá um tempo. Fica quieto! Talvez, se der sorte,

não vai parar no necrotério.

SD77: Então, por que não estraçalham a cabeça do político?

SD78: Não nego minha culpa no menino faminto.

SD79: Mas, se o ladrão tá no banco, não é só eu que sou culpado.

SD80: Não chora pelo carro! Seguro paga outro!

SD81: Não acredito que eu cheguei nesse ponto!

SD82: Por que não me matou no lugar dele?

SD83: Não previ a vadia da mãe implorar:

SD84: Pelo amor de Deus, não morre!

SD85: Sei que vou morrer, não posso fugir!

SD86: Só não quero mais moleque morrendo assim.

SD87: Hoje não tem aula.

SD88: O professor não veio.

SD89: Querendo brinquedo, um carinho de alguém, não paulada na

cara, do monitor da FEBEM.

SD90: Não queria um rifle FAO aos doze anos.

SD91: Eu não queria achar que o herói era o assaltante de banco.

SD92: Aí, moleque, não faz o que o sistema quer.

SD93: Não borbulha sua vida, nessa porra de colher.

SD94: O menino de olho azul não vai passear no domingo.

SD95: Sem ilusão: não tem colete nem carro.

SD96: O Brasil não se comove, se sou eu que peço o passe.

SD97: Não dá futuro roubar o carro forte.

SD98: Não arrisque sua vida pela porra do malote.

SD99: É triste saber que minha mãe não vou ver mais.

SD100: Eu não sou fictício, sou monstro agressivo.

SD101: O boy cuzão que só vê morte pela sky, no sofá, não foi pra

Europa, agora assiste meu desejo de matar.

SD102: Agiliza os dólares, os diamantes, se não, arranco teu coração,

te afogo no rio de sangue.

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SD103: Ódio lapidado por um pai bêbado, porco, que batia na minha

mãe, porque não podia comprar o almoço.

SD104: Pra mim, não tem Cherokee nem iate, nem restaurante cinco

estrelas, nem Audi.

SD105: Não quero ser igual o tiozinho do bairro, que trampaquartenta

anos, pra passar fome aposentado.

SD106: Cuzão que come caviar e lagosta não sabe o que é viver um

minuto nessa porra.

SD107: Quando o filho dele chorar, sem ter nada no prato, não vai pra

rua implorar de mão estendida.

SD108: Seu chip no peito não vai me segurar.

SD109: Se não blindar o coração, não tem cooper na praça.

SD110: Se não por armadura, não tem surfe na praia.

SD111: Me diz se não parece filme do seu DVD.

SD112: Preferia tá na escola, na biblioteca, no shopping, comprando

pra minha filha uma boneca, ter cartão de crédito, cheque cinco

estrela, não tá matando alguém pra por o leite na geladeira.

SD113: Suplicar pro gambé derrubando sua porta não bater na sua

mulher, não atirar nas suas costas.

SD114: Caminho um: a voz do povo, aqui, não é a voz de Deus.

SD115: Entendeu por que não tem escola pra você?

SD116: Não adianta ser milhões, se não somos um.

SD117: Discurso ou revólver? Não interessa a opção.

SD118: Não acredito na paz, no futuro.

SD119: Não quero vassora igual meu pai. Vou ser tipo os manos da

rua.

SD120: Não canto esperança, porque não vendo ilusão.

SD121: País do caralho! Não me deixa ter um carro.

SD122: Não tem livro na favela, biblioteca.

SD123: Quatro da manhã, esmagado no busu até o centro, pra, no

final do mês, não ter um grão de alimento.

SD124: Pro meu povo não tem arquiteto, juiz ou empresário.

SD125: Não queria te ver na maca, cuspindo sangue, quase morto.

SD126: Não seja só mais um número de estatística, um corpo no bar,

vítima de outra chacina.

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109

SD127: É embaçado saber que a propaganda na TV de carro, casa

própria, não foi feita pra você.

SD128: Entendo o motivo. Sou fruto da favela. Sei bem qual a dor de

não ter nada na panela.

SD129: Não caia na armadilha, siga a minha apologia. Mesmo de

barriga vazia, esquece a joia da rica.

SD130: Quem não quer ter uma casa com piscina?

SD131: Só que o conforto não vem através do revólver.

SD132: O gambénão quer saber o seu motivo.

SD133: Não interessa se é pro remédio da sua mãe, pra fumar crack

ou beber champagné.

SD134: Por isso, não tem um de nós no Congresso, na Câmara. Aqui

é só ladrão em estado vegetativo, na cama.

SD135: Não faça os porcos aplaudirem mais um noia analfabeto.

SD136: O sistema tem que chorar, mas não com você matando na rua.

SD137: Eu não sou louco. Se pá, é muito pouco.

SD138: Não se preocupa! A tortura é só um método usado pra

investigar, reprimir, no sistema carcerário.

SD139: O choque no saco que te faz tremer faz parte do currículo de

quem não tem o que comer.

SD140: O boy acha que quem merece a morte é o que grita “assalto!”,

o que grita “dá a chave! Sai do carro!”, não o branco articulado e bem

vestido, que não saca o cano, mas roubam até nos Estados Unidos.

SD141: Cuzão na TV diz que urna não é pinico. Que voto consciente

muda o cenário político.

SD142: Quem põe almoço embaixo da blusa, no mercado, não tem

pra ler jornal nem cinquenta centavos.

SD143: Não vejo mais crianças felizes brincando no parque. Agora

estão com ódio no peito, com uma doze ou fumando crack.

SD144: Aqui não existe formatura. Só vejo pulso algemado, corpo

decapitado, no mato.

Das muitas formas de entrada e de exploração desse farto material, uma possível

é a divisão das sequências a partir do sujeito gramatical que comparece no intradiscurso

(fio discursivo): primeira, segunda ou terceira pessoa do discurso. Esta, no entanto,

apesar de ter sido considerada primeiro, não foi a escolha final. Escolhemos mesmo o

critério da negação polêmica (Indursky, 1997). Sob esse critério de corte, analisamos as

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110

seguintes sequências: SD4, 5, 7, 8, 9, 10, 13, 14, 20, 22, 23, 24, 28, 38, 47, 48, 52, 57,

60, 61, 72, 78, 79, 90, 91, 97, 98, 114, 118, 120, 122, 125, 131 e 135.

Pensando o discurso, a negação trabalha o pré-construído, que, de acordo com

Pêcheux (2009 [1975]), ao retomar Henry (1997 [1969]), designa “o que remete a uma

construção anterior, exterior, mas sempre independente, em oposição ao que é

„construído‟ pelo enunciado.” E, quando se fala em pré-construído, não há como não

passar pela noção de interdiscurso, definido por Orlandi (2009 [1999]), em sua

retomada teórica de Pêcheux (2009 [1975]), como “aquilo que fala antes, em outro

lugar, independentemente”. A autora, associando o interdiscurso à noção de memória

discursiva e voltando à de pré-construído, mencionado acima, afirma ainda que se trata

d‟“o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-

construído, o já-dito que está na base do dizível, sustentado cada tomada de palavra.”

Segundo ela, é o interdiscurso que “disponibiliza dizeres que afetam o modo como o

sujeito significa em uma situação discursiva dada.” Portanto, ao falar de pré-construído,

estamos falando de uma memória que não cessa de produzir sentidos, esteja o sujeito se

posicionando a favor, esteja ele questionando ou, mesmo, posicionando-se contra tal

sentido.

E a negação é uma marca linguística que demarca bem esse “debate” com o pré-

construído, porque o retoma, muitas vezes no próprio fio discursivo, para que o sujeito

se oponha, resista a esse saber anterior. Dessa forma, quando temos uma sequência

discursiva do tipo “Eu NÃO preciso estimular o latrocínio” (SD8), o sujeito-rapper

adentra uma região de sentidos que aciona uma memória a respeito da censura sofrida

pelo grupo – indiciado por incitação ao crime.

Ao usar o pronome pessoal do caso reto na primeira pessoa do singular e ocupar

essa posição no fio discursivo, embora essa pessoa do discurso pudesse ser retomada

pela via da terminação verbal indicativa exatamente da primeira pessoa do singular,

cria-se um efeito de reforço da ideia de que não é esse sujeito que, ao cantar, incentiva

um ato compreendido como ilícito, legalmente falando, e repreensível, sob a ótica

moral, em uma sociedade que privilegia a propriedade privada e em que a figura do

jurídico aparece como administrador supremo das relações sociais (judicialização),

como é o caso dessa conjuntura político-econômico-social em que esse sujeito está

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111

inserido: sociedade capitalista moderna. O advérbio “não”, dessa maneira, representa

uma resistência, por exemplo, ao que fora colocado nos autos do processo aberto contra

o grupo – memória da censura. O sujeito resiste e nega que a sua produção musical

possa ser o estopim para um paiol que, de acordo com as formulações do próprio

rapper, está sempre prestes a explodir. Sabemos disso observando a continuação dessa

sequência, que diz, dois versos à frente: “O Brasil não dá escola, mas dá metralhadora.

O Brasil não dá comida, mas põe crack na rua toda.” Não vamos adentrar a discussão

sobre o papel da adversativa neste momento, mas olhemos para o termo que ocupa,

gramaticalmente, a posição de sujeito dessa oração, expresso duas vezes seguidas:

Brasil. Termo, inclusive, antecedido por um artigo determinado masculino singular,

conhecido pelos gramáticos como um determinante de nome.

Portanto, temos, ao mesmo tempo, uma negação a uma memória sobre o Facção

e a instauração de uma nova memória a respeito d‟o Brasil, esse que não dá escola, esse

que não dá comida, e que pode muito bem ocupar o lugar de sujeito numa versão

afirmativa da sequência que estamos analisando.

Discursivamente, então, este é um efeito que a construção do Facção Central

apresenta: “O Brasil estimula o latrocínio”. Fácil notar a ausência de um verbo auxiliar

nessa sequência hipotética: isso se dá pelo fato de que o verbo “precisar”, um

modificador do verbo “estimular” e que proporciona um efeito de necessidade, de dever,

é possivelmente mais um recurso do sujeito para resistir ao pré-construído que sustenta

o dizer materializado no fio discursivo. É um verbo que, discursivamente, corrobora o

sentido de que algo não é necessário de ser feito, ao mesmo tempo em que confere um

efeito de sentido de desprezo a esse mesmo algo. Isso porque existem outros fatores,

externos a esse sujeito, que são capazes de produzir sozinhos o resultado de estimular o

latrocínio.

3.2.2 A ADVERSATIVA

As marcas gramaticais que funcionam “ligando” as orações produzem

determinados efeitos de sentido e orientam a direção argumentativa. É o caso, por

exemplo, daquilo que a gramática denomina de conjunção. Buscamos em Bechara

(2006), seu posicionamento acerca das adversativas, sempre tendo em mente que tal

explicação gramatical, devido mesmo ao seu corte epistemológico, não contempla a

questão semântico-discursiva do efeito de sentido. Diz Bechara (idem) que “enlaça a

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112

conjunção adversativa unidades apontando uma oposição entre elas. As adversativas

por excelência sãomas, porém e senão.” Veja que não há aqui sequer uma menção à

marca que decidimos analisar (“só(que)”). Embora a explicação de E. Bechara não nos

seja suficiente, porque não recobre a questão da significação propriamente dita, apesar

de usá-la como critério de classificação, há nela um elemento central para aquilo que

dissemos mais acima sobre as possíveis formações discursivas em jogo: oposição.

No nosso caso, a conjunção que interessa para a análise é o “mas”, que

normalmente marca uma oposição entre proposições, ideias, argumentos etc. e que

também comparece nas letras do álbum analisado sob a forma de “só (que)” (o que

indica um possível deslocamento no efeito de sentido, mas esse deslocamento,

conforme veremos mais adiante, não é suficiente para desfazer o efeito de oposição que

“une” sintática e semanticamente essas duas conjunções). Embora a marca “mas”seja a

mais frequente (praticamente a única utilizada) nas letras do grupo, a forma “só (que)”,

que aparece pouquíssimas vezes, também funciona produzindo um efeito de oposição,

de quebra de expectativa, na orientação argumentativa. Nesse sentido, com tal marca,

temos os seguintes exemplos, recortados da letra L14:

SD145: Quem não quer ter uma casa com piscina? Um cargo bom ao

invés de comer lixo? Um carro importado último modelo esportivo?

Só queo conforto não vem através do revólver, do sangue da refém

milionária, temendo a morte.

SD147: É embaçado saber que a propaganda na TV, de carro, casa

própria não foi feita pra você. Saber que pra ter arroz, feijão, frango

no forno, tem que pegar um oitão e desfigurar um corpo. Entendo o

motivo, sou fruto da favela. Sei bem qual a dor de não ter nada na

panela, de dividir um cômodo de dois metros em cinco, um quarto

sem luz, água, sem sorriso. Só que, truta, o crime é dor na delegacia.

Choque, solidão, agonia.

E. Guimarães (1987), ao falar sobre o funcionamento semântico-argumentativo

da conjunção “mas”, e baseando-se em exemplos retirados de um texto sobre o

Pantanal, propõe a seguinte hipótese:

(293) L-E1 ((Eo-A ------) r) mas (B -------) ~r)) ---------) ~r

Ou seja, o locutor diz B --------) ~r de uma perspectiva (E1) e diz A

------) r de outra perspectiva (Eo). E a perspectiva E1 é

predominante, dando, portanto, a direção da progressão textual.

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Assim, também para os recortes commas, deve-se considerar a

polifonia da enunciação. Neste caso específico, poderíamos

considerar que E1 é a perspectiva de L, enquanto que Eo é a

perspectiva de Lp. Esta duplicidade de perspectivas é que explica

como o texto vai se construindo na direção da perspectiva de E1, mas

vai se construindo um sentimento de adesão à necessidade de revolta

dos brasileiros. Ou seja, pela convivência de perspectivas opostas o

texto se constrói numa direção e busca a adesão do leitor para a

direção oposta à da sua própria construção. Ou seja, o texto se

constrói na perspectiva de L (na direção de o povo não se revolta) e

busca uma adesão, do alocutário-enquanto-pessoa, à revolta deste

locutor-enquanto-pessoa (o povo deve se revoltar). Coloco aqui o deve

como parte do resultado argumentativo do todo. Assim, vemos como o

jogo de representações do sujeito da enunciação tem aqui seu valor

argumentativo próprio que se cruza com a orientação argumentativa.

(Guimarães, 1987: p. 120, grifos nossos)

Embora estejamos num outro lugar teórico em relação a Guimarães, sua

explicação acerca do funcionamento semântico-argumentativo do “mas” é bastante

interessante para a nossa análise das SD145 e 146, porque mostra que a produção do

efeito de sentido desejado é o da oração que possui a conjunção, ou seja, o sujeito-

rapper começa apresentando um argumento considerado socialmente hegemônico para,

então, mudar a direção e apresentar o argumento que irá constituir a base do efeito de

sentido desejado.

Temos, assim, com Guimarães, a questão da direção argumentativa e, com

Bechara, a questão da oposição. A partir disso, podemos observar que o “só (que)”das

SD145 e SD146 produz um efeito de resistência, primeiro porque joga uma força maior

sobre o argumento da posição de sujeito contrária ao crime como forma de conquistar

uma moradia e um meio de transporte mais dignos. Se observarmos que é socialmente

construído para ser hegemônico o sentido de que a pobreza leva ao crime, notaremos aí

a resistência de que falamos, porque o sujeito reconhece que esse saber circula, mas não

concorda com ele, mesmo que esse sujeito seja “fruto da favela”. Existe aí uma quebra

de expectativa, um elo quebrado na corrente da inexorabilidade presumida. Além disso,

esse sujeito resiste também à língua, quando se recusa à organização que a gramática

tradicional da língua portuguesa busca administrar como a “correta”, não reconhecendo

essa gramática como sua referência de organização de língua, e usa o “só (que)” a fim

de produzir um efeito de oposição, semelhante ao produzido pelo uso do “mas”, como

dissemos no início deste item.

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114

Fora isso, existe uma disputa de sentidos entre a Posição de Sujeito 1 (PS1), para

a qual o crime seria o caminho para conseguir o “sucesso” de uma vida mais digna; e a

PS2, que se marca pela presença do “só (que)”e que nega esse pré-construído de crime

como solução, ao retomar seu sentido no fio discursivo, instaurando uma nova memória,

a partir da negação desse pré-construído. Assim, esse “só (que)”não marca, na realidade,

uma fronteira entre duas FDs opostas, mas, sim, uma disputa entre posições de sujeito

dentro de uma mesma FD. Em termos de interpelação ideológica, podemos dizer que,

em PS2, o sujeito se contraidentifica com os sentidos da posição PS1, que defende o

crime como saída para o descaso com que o Estado trata a parcela da população que tem

menor (ou nenhum) acesso a uma vida digna. E ele se contraidentifica de PS1 por meio

da oposição “só (que)”acompanhada da negação subsequente. Mas não rompe com esse

enunciado organizador da FD a que pertencem, e segundo o qual a pobreza deve ser

evitada. As posições se opõem apenas no tocante ao modo como essa evitação se dá: a

PS1 propõe que essa saída se dá via crime, já a PS2, não.

SD145a: Quem não quer ter uma casa com piscina? Um cargo bom ao

invés de comer lixo? Um carro importado último modelo esportivo?

Mas o conforto não vem através do revólver, do sangue da refém

milionária, temendo a morte.

SD146a: É embaçado saber que a propaganda na TV, de carro, casa

própria não foi feita pra você. Saber que pra ter arroz, feijão, frango

no forno, tem que pegar um oitão e desfigurar um corpo. Entendo o

motivo, sou fruto da favela. Sei bem qual a dor de não ter nada na

panela, de dividir um cômodo de dois metros em cinco, um quarto

sem luz, água, sem sorriso. Mas, truta, o crime é dor na delegacia.

Choque, solidão, agonia.

Observemos a proximidade do efeito de sentido produzido em SD145 e SD146 e

em SD145a e SD146a. Em todas as formulações, a PS2 permanece oposta à PS1, e o

argumento mais forte continua sendo o de PS2, ou seja, contrário ao crime. Este pode

ser considerado, assim, um terceiro efeito de resistência possível de ser compreendido a

partir da mesma SD145, mas trata-se de uma resistência a uma memória que permeia

todo o CD e que está relacionada à censura sofrida quando da publicação do CD

anterior (Versos Sangrentos, 2000), ao qual o álbum aqui analisado procura “dar uma

resposta”: a memória de incitação ao crime. Ao fortalecer o argumento de que o crime

não é o caminho para o “sucesso”, o sujeito ocupa uma posição discursiva que resiste ao

que lhe fora imputado anteriormente, ou à PS1.

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Selecionamos, para observação, um total de vinte e quatro sequências

discursivas, recortadas das letras L2, L3, L4, L5, L6, L8, L9, L10, L11, L13, L14 e L15,

e que contêm tanto a marca opositiva tradicionalmente reconhecida “mas”, quanto a não

tão conhecida, mas já citada, “só (que)”.

SD147: O policial contente sopra o cano do revólver, mas, no fundo,

no fundo, preocupado, pois sabe que, amanhã ou depois, o moleque

esquecido no fundão da periferia vai cansar de pedir esmola, de não

ver comida na panela, de ver sua mãe só de camiseta furada, chinelo,

chorando com seus irmãos famintos no colo, vai arrumar um revólver,

tentar resolver seus problemas através do sangue da cabeça de um

gerente de banco e vai ser mais um favelado, no caixão preto doado,

sem flores e sem velório.

SD148: Censurou o clipe, mas a guerra não acabou.

SD149: Destaque da TV sensacionalista, que filma sem pudor o

trabalho da perícia contando buraco no crânio do corpo do boy morto

pela Glock que o sistema porco põe no morro. Mas, pra mim, é 286,

quando falo do sangue que escorre do pescoço do vigia.

SD150: Não tem inquérito pra TV que tem a vadia nua: novela das 6,

7, 8, sem ministério nem censura. Só o meu rap que é nocivo pro

sistema hipócrita.

SD151: O Brasil não dá escola, mas dá metralhadora.

SD152: O Brasil não dá comida, mas põe crack na rua toda.

SD153: Queria só rimar choro de alegria, mas na favela não tem

piscina, armário com comida.

SD154: Fui adestrado pra roubar seu dinheiro, velha. Não pra encher

panela, mas pra ter carro, fumar pedra.

SD155: Sonhou com emprego, mas o diabo me quis descarregando

ferro.

SD156: O boy não quer meu bem, só quer minha pistola. Quer me ver

com fome, inofensivo, na sua porta, pedindo esmola, um trocado

qualquer. Com ódio, revoltado, mas beijando seu pé.

SD157: O sonho da minha coroa era me ver com diploma e bíblia,

mas o Brasil me dá o cano que faz seu parente virar carniça.

SD158: Contratei vigia, lancei carro blindado, mas, se o ladrão tá no

banco, não é só eu que sou culpado.

SD159: Doente pela pedra apertei o gatilho da PT, mas nenhum

jurado vai entender, nenhum juiz vai me absolver.

SD160: Sei que vou morrer, não posso fugir. Só não quero mais

moleque morrendo assim.

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SD161: Eu não queria achar que o herói era o assaltante de banco,

mas que cuzão que condena foi lá pra ensinar?

SD162: Queria ser advogado, mas perdi pra rua.

SD163: Meu coração de ódio queria paz. Acredite. Mas agora sou eu

e o atirador de elite. Tá a dez metros da janela e atira muito bem. Vai

matar a vítima do crack e seu refém.

SD164: Preferia tá na escola, na biblioteca, tá no shopping,

comprando pra minha filha uma boneca. Ter cartão de crédito, cheque

cinco estrela. Não tá matando alguém, pra por o leite na geladeira.

Mas o que o sistema quer sou eu com fome, atirando na madame de

chauffeur.

SD165: No céu tem fogo, mas não é festa junina.

SD166: É embaçado saber que a propaganda na TV de carro, casa

própria não foi feita pra você. Saber que pra ter arroz, feijão, frango

no forno, tem que pegar o oitão e desfigurar um corpo. Entendo o

motivo. Sou fruto da favela. Sei bem qual a dor de não ter nada na

panela. De dividir um cômodo de dois metros em cinco, um quarto

sem luz, água, sem sorriso. Só que, truta, o crime é dor na delegacia.

Choque, solidão, agonia.

SD167: Quem não quer ter uma casa com piscina? Um cargo bom, ao

invés de comer lixo? Um carro importado último modelo esportivo?

Só que o conforto não vem através do revólver, do sangue da refém

milionária, temendo a morte.

SD168: O sistema tem que chorar, mas não com você matando na rua.

O sistema tem que chorar, vendo a sua formatura.

SD169: O boy acha que quem merece a morte é o que grita “assalto!”,

o que grita “dá a chave! Sai do carro!”, não o branco articulado e bem

vestido que não saca o cano, mas roubam até nos Estados Unidos.

SD170: Cuzão na TV diz que urna não é pinico, que voto consciente

muda o cenário político, que é preciso investigar antes de votar. Mas

cadê biblioteca, escola pra eu me informar?

Observando essas sequências, podemos identificar alguns enunciados que

perpassam as formulações, dando a estas uma sustentação no dizível, a partir do

funcionamento do pré-construído. Pensamos em três enunciados bastante recorrentes:

E1: a pobreza leva invariável e inevitavelmente ao crime;

E2: o crime, independentemente da motivação, nunca compensa;

E3: o rico tem direitos jurídicos, mas os pobres e favelados não os tem.

Page 117: INSTITUTO DE LETRAS - Universidade Federal Fluminense

117

As formulações que remetem ao primeiro enunciado, E1, são as SD147, SD151,

SD152, SD154, SD155, SD157, SD160, SD161, SD164, SD165. Já aquelas formulações

que retomam o enunciado E2 são: SD159, SD166, SD167 e SD168. Quanto àquelas que

remetem ao enunciado E3, temos as seguintes sequências: SD148, SD149, SD150,

SD153, SD158, SD163 e SD169.

Chegamos a essas divisões, porque consideramos tanto o que está dito, ou seja, o

que aparece na formulação, no fio discursivo, quanto o que não está dito e está

sustentando tal tomada de posição do sujeito. Um exemplo desse procedimento é o que

segue: quando vemos a formulação “O sistema tem que chorar, mas não com você

matando na rua. O sistema tem que chorar vendo a sua formatura”, vemos, logo num

primeiro olhar, a repetição da oração “O sistema tem que chorar”. Essa repetição já é

uma primeira pista da posição que esse sujeito assume: há um deslocamento necessário

desse sujeito que chora. Se é considerado socialmente “normal” que o pobre chore, por

conta de todas as limitações socioeconômicas e políticas a que está sujeito, é produzida,

por meio do rap, uma recusa a essa “normalidade”, e o sujeito-rapper se vinga desse

papel social a ele reservado, mostrando que o “sistema” também está sujeito a pressão.

Nesse caso, a pressão social que pode produzir um “choro” por parte do Estado é a

“formatura de um favelado”, na educação formal, essa mesma que o Estado não provê a

uma enorme quantidade de moradores de favelas e periferias, não são corpos de pessoas

não-faveladas mortas espalhadas pelo chão, resultado de assaltos ou sequestros ou

mesmo de confrontos entre policiais e bandidos. É um sujeito social, política e

economicamente excluído, assumindo uma nova posição na engrenagem do sistema

capitalista, por meio de uma conquista: formar-se no ensino acadêmico formal. Nesse

sentido, esse gesto de se “formar doutor” seria o equivalente a um “tapa na cara”, que

seria suficiente para fazer com que um sistema excludente e opressor “chorasse”. Há,

assim, uma inversão de papéis: quem chora agora é o sistema capitalista que, segundo

seu princípio do lucro a qualquer custo, deveria estar funcionando de modo a produzir a

exclusão e a marginalidade, o desespero e o choro dos moradores da favela.

Page 118: INSTITUTO DE LETRAS - Universidade Federal Fluminense

118

3.2.3 A CONDICIONAL

A oração condicional é caracterizada pela presença de um dos conectivos

sintático-semânticos “se” e “caso”, mais comumente. Nas letras que compõem o corpus

desta pesquisa, não há a ocorrência da marca “caso”, para conferir o efeito de sentido de

condição. Existe o que podemos chamar de “onipresença” do conectivo “se”, para

marcar tal efeito.

Assim, na condicional, trabalhamos, sobretudo, com a conjugação de

possibilidades, no campo do hipotético. Processo que, segundo Garcia (1978), é um

pouco mais complexo. Vejamos qual a extensão dessa complexidade, que toma como

base a correlação modo-temporal dos verbos:

As orações subordinadas condicionais mais comuns podem expressar:

a) um fato de realização impossível (hipótese irrealizável), quando o

verbo da subordinada e o da principal estão em tempo perfectum,

i.e., tempo de ação completa (...);

b) um fato cuja realização é possível, provável ou desejável, quando

o verbo da subordinada e o da principal exprimem ação

incompleta, i.e., são tempos do infectum (...);

c) desejo, esperança, pesar (geralmente em frase exclamativa e

reticenciosa, em que a oração principal, quase sempre

subentendida, traduz um complexo de situações mais ou menos

indefinível ou não claramente mentado) (...). (Garcia, 1978: p. 75)

Mas o que nos interessa mesmo é a consideração que Garcia faz sobre o uso do

modo indicativo, o modo mais frequentemente usado nas formulações que estamos

analisando:

A conjunção condicional típica é “se”, que exige o verbo quase

sempre subjuntivo (futuro, imperfeito ou mais que perfeito). Mas

razões de ordem enfática podem levá-lo ao indicativo, sobretudo

quando a oração principal encerra ideia de ameaça, perigo, fato

iminente ou fato atuante no momento em que se fala: “Se não me

ouvem em silêncio, calo-me”; “Se não te acautelas, corres o risco de

ferir-te”; “Se não me ouves, como queres entender-me?”; “Se não

queres ir, não vás”. (Garcia, 1978: p. 75, grifos nossos)

Com essa explicação, e voltando ao suporte analítico que nossa teoria nos

proporciona, vemos que o efeito de ameaça é o mais constante nas formulações

condicionais, ou melhor, nas sequências discursivas que contêm a marca sintático-

semântica da condição.

Page 119: INSTITUTO DE LETRAS - Universidade Federal Fluminense

119

Mas é necessário apontar para uma construção com a marca “se” que até produz

um efeito de sentido de condição, mas que se aproxima mais fortemente de um efeito de

sentido de causa, como é o caso das SD171 e SD172, a seguir, nas quais o “se” pode ser

trocado pelo “porque” e, ainda assim, direcionar o sentido como que num efeito

parafrástico:

SD171: Se tem sangue, eu canto sangue.

SD171*: Eu canto sangue, porque tem sangue.

SD172: Se tem morte, eu canto morte.

SD172*: Eu canto morte, porque tem morte.

Voltando para as observações que antecedem a enumeração das sequências

discursivas que contêm a marca da condição, podemos dizer que, em alguns momentos,

é possível ver formulações em que o “se não” funciona de um modo bastante próximo,

para a produção do efeito de sentido de ameaça/aviso, das formas parafrásticas “caso

contrário” ou “ou, então” ou, mesmo, “ou, não sendo assim”, formas que podem se

revezar nas formulações provocando pouquíssima alteração no efeito de sentido que

produzem. Mais ou menos como se o sujeito-autor dissesse que “ou acontece isso, ou

haverá consequências”. Vejamos as sequências, recortadas das letras L3, L4, L5, L6,

L7, L8, L9, L10, L11, L12, L14 e L15:

SD173: Leva vigia, colete e blindagem pra ir pro restaurante, se não, é

viúva chorando e ômega zero no desmanche.

SD174: Não vou rimar felicidade no meu rap, se aqui, filho da puta, a

marcha fúnebre prossegue.

SD175: Que Deus deixe ele encontrar, madame, sua esmeralda, se

não, ele arranca seu coração na faca.

SD176: Na agência bancária, vou tirar nota A, se o gerente não

colaborar, pá! pá! miolo no ar!

SD177: Se eu for preso, a técnica da fuga está furada.

SD178: Não atravessa o meu caminho, se não, vou te matar.

SD179: Se tiver que morrer, aí, fazer o quê? Ameaça não intimida.

Eduardo não faz tremer.

SD180: A boca só se cala quando o tiro acerta! Se é isso o que eles

querem, então vem me mata!

SD181: Eu só sou um problema, se atravesso o vidro, pego a bolsa e o

toca-CD e atiro no ouvido.

Page 120: INSTITUTO DE LETRAS - Universidade Federal Fluminense

120

SD182: Cala a boca, doutor. Não dá mais nem um pio, se não, te

mando com tua vaca pra puta que o pariu.

SD183: Ia me entender,se visse sua filha na esquina.

SD184: Talvez, se der sorte, não vai pro necrotério.

SD185: Se pá, joga gasolina e risca o fósforo, sem dó!

SD186: Pela janela já escuta a sirene dos lambe-saco de boy, vindo na

febre de me transformar no troféu do PM herói. Se pá, minha coroa

vai ver no noticiário, meu corpo metralhado e o resgate juntando os

pedaços.

SD187: Aí, moleque, a vitória só vem se estudar ou trabalhar.

SD188: O Brasil não se comove se sou eu que peço o passe.

SD189: Agiliza os dólares, os diamantes, se não, arranco teu coração,

te afogo no rio de sangue.

SD190: Se não blindar o coração, não tem cooper na praça.

SD191: Se não por armadura, não tem surfe na praia.

SD192: Caminho um: a voz do povo, aqui, não é a voz de Deus. Se

tua casa é de caixote de feira, problema seu!

SD193: Se vier pro asfalto fazer passeata, aí o PM te mata, te faz

engolir bandeira e faixa.

SD194: Não adianta ser milhões, se não somos um.

SD195: Não interessa se é pro remédio da sua mãe, pra fumar crack

ou beber champagne. Se invadir o condomínio gritando “assalto!”,

caiu na armadilha. Até no teto vai ter seus pedaços.

SD196: O prego do condomínio tem que entender que, se tem pânico

em Alphaville, é porque você deu a PT.

Se relacionarmos essas formulações aos enunciados enumerados no ponto

anterior, em que discutimos as adversativas, veremos que remetem ao E1 as

formulações expressas pelas SD192 e SD196; que as que remetem ao E2 são: SD186,

SD187, SD195; e que as que remetem ao E3 são: SD182 e SD188. Mas, como se pode

perceber, das vinte e seis sequências encontradas, apenas em sete foi possível localizar

um enunciado que perpassa a formulação.

3.2.4 A CAUSAL

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121

As orações causais, de acordo com a gramática tradicional, são períodos

conectados por uma conjunção que une o efeito à sua causa. São orações subordinadas,

também segundo a gramática tradicional, sendo suas partes constituintes denominadas

“oração principal” e “oração subordinada causal”. A característica dessa segunda é a

presença do conectivo. A causal é um exemplo de oração subordinada adverbial, por

funcionar como um advérbio, ou locução adverbial, da oração principal.

As conjunções, termo pelo qual esses conectivos são designados nas gramáticas,

prototípicas das orações subordinadas adverbiais causais são o “porque” e o “pois”,

mas, claro, há um número considerável de outras formas e locuções que funcionam

proporcionando exatamente esse efeito de conjunção causal (“visto que”, “uma vez que”

etc. Ficaremos focados sobre as formas “porque” e “pois”, porque são essas as mais

presentes no material com o qual estamos trabalhando, sempre que se produz um efeito

de causa. Além dessa razão apontada, existe também o fato de que essas formas, como o

que observamos nas análises das adversativas e das condicionais, são praticamente

onipresentes (praticamente, porque, conforme foi possível notar no ponto anterior, há

algumas construções em que o conector é prototipicamente condicional, mas acaba

funcionando como um causal), apesar de aparecerem também as chamadas orações

reduzidas, introduzidas por “por” ou, mesmo, por “com”, conforme veremos nas

sequências localizadas.

Na causal, portanto, o direcionamento de sentido é tão patente quanto na

adversativa. Se nesta a progressão argumentativa mostra a legitimidade de um

argumento da primeira oração, ao qual se contrapõe na segunda, a partir da marca

opositiva “mas”; no primeiro caso, essa progressão parte da constatação de um fato –

interpretado e lançado na linguagem, por isso, esse fato de que falamos não é “a

verdade” nem único, mas, conforme dissemos, uma interpretação que, por estar na

língua, é também não-transparente, tendo sua opacidade específica para os sujeitos – e

segue em direção à sua causa, àquele evento que contribuiu decisivamente para que tal

efeito, apresentado na oração principal, se desse. Ou seja, a oração com a subordinada

adverbial causal é outra marca privilegiada de onde podemos contemplar a tomada de

posição discursiva do sujeito-autor que, no caso da nossa pesquisa, é o sujeito-rapper.

Page 122: INSTITUTO DE LETRAS - Universidade Federal Fluminense

122

Neste sentido, conseguimos localizar, dentre as letras de música L2, L3, L4, L5, L7,

L10, L11, L13, L14 e L15, quinze sequências discursivas, que encontram-se

reproduzidas a seguir:

SD197: O policial contente sopra o cano do seu revólver, mas, no

fundo, no fundo, preocupado, pois sabe que, amanhã ou depois, o

moleque esquecido no fundão da periferia vai cansar de pedir esmola,

de não ver comida na panela, de ver sua mãe só de camiseta furada,

chinelo, chorando com seus irmãos famintos no colo, vai arrumar um

revólver, tentar resolver seus problemas através do sangue da cabeça

de um gerente de banco e vai ser mais um favelado, no caixão preto

doado, sem flores e sem velório.

SD198: Não é desculpa pra revolta, porque não é seu filho.

SD199: Gambé porco que, pela tua cor, detona seu rosto.

SD200 e 201: O refém tá carbonizado, porque o sistema quer; porque

eu só existo, quando dou tiro na mulher, ou quando apareço

sanguinário no noticiário.

SD202: Por que eu não fui morar na Europa?

SD203: Eu tô ligado que a fome e o crack faz o bandido. Então, por

que não estraçalham a cabeça do político?

SD204: Doente pelapedra, apertei o gatilho da PT.

SD205: Ódio lapidado por um pai bêbado, porco, que batia na minha

mãe, porque não podia comprar o almoço.

SD206: Fez de mim o Lúcifer que o sistema quer, que pela pedra

deixa teu corpo pra perícia do gambé.

SD207: Não canto esperança, porque não vendo ilusão.

SD208: Quem sabe o excluído invada tua fazenda, te dê facada, te

ponha uma venda e, assim, você entenda que, por dinheiro, o ladrão

pega o galão de gasolina, incendeia a criança que seja sua família.

SD209: Por um real, um papel, uma grama, sempre por migalha, meu

povo desfigurado na ambulância.

SD210: Aqui é só ladrão em estado vegetativo, na cama ou na cadeira

de roda. Tiro na espinha, por um par de tênis, um risco de cocaína.

SD211: Nem parece o monstro do horário político que, com a dor do

indefeso, compra a mercedes, coloca obra de arte valiosa na parede.

SD212: O prego do condomínio tem que entender que, se tem pânico

em Alphaville, é porque você deu a PT.

SD213: Diferente de você, não tenho BMW. Só um cômodo no

barranco que, com a chuva, tá soterrado.

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123

Assim, se formos, como fizemos nos outros dois pontos, relacionar estas

sequências discursivas aos enunciados que localizamos, teremos, para E1 as SD197,

SD198, SD205, SD206, SD207, e SD209; para E2, as SD210 e SD 211; e, para E3, as

SD199, SD200, SD201, SD202, SD203 e SD212.

No próximo item, trazemos uma análise mais detalhada, tomando por base as

duas formações discursivas que conseguimos delinear, organizadas a partir de uma

formulação em que ambas posições comparecem, articuladas pela marca “mas”.

Mostraremos como a noção de articulação de enunciados nos foi central e como a

reprodução de um discurso de cunho reformista pode encontrar ressonância inclusive

nos sentidos de uma formação discursiva cujas formulações contêm, no próprio fio

discursivo, palavras e expressões que remetem à ruptura total com o sistema, com a

revolução.

3.3 CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE AS ANÁLISES

“Eu defino o rap como Revolução Através das Palavras.”

(William Domingues [Mandrake], 2006)

De acordo com o que vimos até aqui, podemos dizer que temos, então, duas

formações discursivas, sob a dominância de uma delas, e temos também que ambas

remetem à mesma formação ideológica capitalista, em sua vertente neoliberal. À

primeira formação discursiva denominamos FD da barbárie, para remetermos à

memória do enunciado “socialismo ou barbárie”, retomado por Rosa Luxemburgo22

, a

partir de Friedrich Engels23

, num período que antecede ao processo revolucionário russo

22

“Fundadora do Partido Comunista Alemão, Rosa Luxemburgo foi uma militante, dirigente, intelectual que lutou pelo socialismo contra o capitalismo durante toda a sua vida, até ser assassinada em 1919. Suas reflexões, suas ações políticas e sua compreensão da vida são fundamentais para o nosso entendimento da luta de classes.” <<https://www.expressaopopular.com.br/node/2031/>>, acesso em 08/07/2012, às 23h47. 23

Diz Rosa Luxemburgo, em seu livro intitulado A crise da social-democracia – Folheto Junius, distribuído

ilegalmente pela primeira vez em 1916, na Alemanha: “Friedrich Engels disse um dia: ‘A sociedade burguesa se encontra diante de um dilema: ou avanço para o socialismo ou recaída na barbárie.’ Mas o que significa “recaída na barbárie” no grau de civilização que conhecemos hoje na Europa? Até hoje nós temos lido estas palavras sem refletir sobre elas e nós as temos repetido sem perceber sua terrível gravidade. Lancemos um olhar ao nosso redor neste momento e nós compreenderemos o que significa a recaída da sociedade burguesa na barbárie. A vitória do imperialismo leva ao aniquilamento da civilização – esporadicamente durante o curso da guerra moderna e definitivamente se o período de guerras mundiais que se inicia agora vier a prosseguir sem entraves até suas últimas conseqüências.”

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124

de 1917, na Alemanha, em que barbárie funciona como metáfora para os estágios

superiores do desenvolvimento do capitalismo. Além disso, o termo também remete à

Grécia Antiga e àquilo que os gregos entendiam enquanto bárbaros: os estrangeiros que

não falavam a língua grega e que, para os gregos, portanto, só sabiam pronunciar bar

barbar, sons incompreensíveis aos helênicos. Dessa forma, então, estamos, ao mesmo

tempo, definindo esta FD como capitalista “orgânica” –numa tentativa de aproximação

conceitual com o termoorgânico, utilizado por Gramsci, quando elaborou a expressão

“intelectuais orgânicos”24

–, ou seja, como aquele conjunto de intelectuais – no nosso

caso, aquele conjunto de sentidos – que contribuem diretamente para a sustentação de

uma ideologia – no nosso caso, de uma FD –, porque analisam “a realidade” e publicam

suas teorias de forma a fundamentar a tal ideologia que se propõem a sustentar.

Estamos, portanto, definindo essa FD da barbárie, pensando-a como uma espécie de

“defensora” da manutenção da divisão social, que se reproduz embaixo do véu da

igualdade jurídica dos “direitos e deveres” entre os homens, ou seja, que sustenta a

divisão em classes a partir do silenciamento (política do silêncio) da desigualdade de

oportunidades e da propaganda da liberdade irrestrita a todos os homens (direitos

democráticos). Notamos que essa FD da barbárie mantém uma relação de dominância

sobre a outra FD encontrada, porque o discurso que a sustenta é atravessado pelos

enunciados do discurso oficial sobre o funcionamento da sociedade, além de esses

enunciados comparecerem nas formulações que seriam seu contraponto, ou seja, no

intradiscurso da segunda FD, com a qual a primeira FD, conforme dissemos, mantém

essa relação de dominância. Isso quer dizer que essas marcas ideológicas são tão fortes

e têm tanto poder de promover identificação, que atravessam as “fronteiras” da FD que

<<http://www.marxists.org/portugues/luxemburgo/1915/junius/cap01.htm>> acesso em 08/07/2012, às 23h53. 24

O Prof. Dr. Giovanni Semeraro, da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, um

estudioso dos escritos de Antonio Gramsci, retoma as palavras deste para mostrar como o filósofo italiano constrói essa proposta “conceitual” que denomina pela expressão “intelectuais orgânicos”: “Deixando de considerá-los de maneira abstrata, avulsa, como casta separada dos outros, Gramsci apresenta os intelectuais intimamente entrelaçados nas relações sociais, pertencentes a uma classe, a um grupo social vinculado a um determinado modo de produção. Toda a aglutinação em torno de um processo econômico precisa dos seus intelectuais para se apresentar também com um projeto específico de sociedade: ‘Todo grupo social, ao nascer do terreno originário de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria também, organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais que conferem homogeneidade e consciência da própria função não apenas no campo econômico, como também no social e político: o empresário capitalista gera junto consigo o técnico da indústria, o cientista da economia política, o organizador de uma nova cultura, de um novo direito etc. (Idem,

ibid., p. 1.513)’” <<http://www.scielo.br/pdf/ccedes/v26n70/a06v2670.pdf>>, acesso em 08/07/2012, às 23h31.

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125

a ela se opõe e penetram nos discursos que são produzidos enquanto uma proposta de

contraponto. Essa “penetração” é uma pista da contradição inerente aos processos

ideológicos de interpelação subjetiva.

À segunda formação discursiva demos o nome de FD questionadora, porque o

termo expõe a relação com a dúvida, com a pergunta, e, mais especificamente, a relação

com as modalidades subjetivas da contra-identificação e da desidentificação (Pêcheux,

1975). Essa outra FD, a questionadora, contrapõe-se à primeira, mantendo, com esta,

uma relação de subordinação, pois os sentidos daquela são de questionamento dos

sentidos desta, deslocando os sentidos de alguns lugares sociais já bem demarcados pela

FD da barbárie, sem, no entanto, romper com a estrutura político-econômico-social que

sustenta a ideologia capitalista, ou melhor, a “barbárie”. Apesar de estarmos nesta

pesquisa analisando apenas o material produzido e publicado pelo grupo Facção Central

e de que isso parece nos fornecer somente “um lado” dessas relações multilaterais que

podem ser construídas entre os diversos lugares sociais, temos acesso às diferentes e

conflitantes posições discursivas, porque o texto é uma materialidade não-transparente,

tal como a língua, e, embora seu efeito desejado seja o de uma homogeneidade, um

texto não é homogêneo, comportando no fio discursivo diversas posições discursivas,

assim como o autor está sujeito à interpelação ideológica e ao inconsciente, cujos

funcionamentos se dissimulam no interior do próprio funcionamento, o que produz as

ilusões da completude e da unidade, expondo como causa o movimento que é um efeito:

a autoria. Assim, ao negar, por exemplo – para citar uma das marcas que analisamos –,

o sujeito-autor traz para o fio discursivo sentidos do discurso do outro, que o atravessa,

e ao qual esse sujeito se posiciona contrariamente. Logo, a negação, especificamente a

negação polêmica (em suas possibilidades de relação com as formações discursivas:

interna, externa e mista) (Indursky, 1997), termo de origem grega (πολεμιος, α, ον:

inimigos, adversários de guerra) – coloca em contato duas posições que podem remeter

a duas diferentes formações discursivas (casos da negação externa e da mista, por

exemplo), delimitadas pela presença do advérbio de negação e uma marca de resistência

ou de questionamento “não”.

Como procedimento de delimitação dessas duas FDs, utilizamos a definição de

Pêcheux (1988 [1975]) sobre formações discursivas, segundo a qual a palavra muda de

sentido de acordo com a posição discursiva daquele que a emprega. O que significa que

a mesma palavra adquire sentidos diferentes se remetidas a diferentes formações

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126

discursivas. Então, buscamos três palavras (dentre as quatro que citamos no início do

capítulo) que nossa ajudaram a discernir tais matrizes de sentido: vítima, herói e vitória.

Esses três termos participam da construção do processo de inversão de valores e de

lugares sociais que sustentam /são sustentados pelos sentidos da(s) formação(ões)

discursiva(s) dominante(s). De uma maneira simplificadora e sintética o suficiente para

possibilitar uma rápida “visualização” desse jogo de inversões, a partir da concepção de

embate “mocinho vs. bandido”, produzimos o seguinte quadro:

JOGO DE INVERSÕES

Mocinho Bandido

Vítima Brasil / país (metáfora de Estado e de

Governo)

Favelado / morador da periferia Policial (polícia, por metonímia)

Sem opções (não tem acesso à escola

formal, não é empresário, mora num

barranco, sequestra, rouba, usa crack,

mata e morre por migalha)

Cuzão, playboy, aquele que tem opções

(tem acesso à escola formal, com vigia e

detector, vai se tornar empresário bem

sucedido, tem Cherokee e defende o

gambé [policial])

Figura 5

Reparemos que não há um rompimento com essa estrutura do um vs. outro, com

essa tendência de dicotomização, apenas uma inversão dos valores de um esquema que

funciona como pré-construído, porque dá sustentação ao dizer.

Indo nessa direção de esquematizar, encontramos uma sequência discursiva que

pode funcionar como organizadora das demais e que expressa bem essa divisão entre

FD da barbárie e FD questionadora:

SD16: Queria só rimar choro de alegria, mas na favela não tem

piscina, armário com comida.

Tal sequência fora recortada da letra de música L4, e a escolhemos por dois

motivos principais: primeiro, porque comparece, já como primeiro termo, um verbo de

expressão de vontade, volitivo, no pretérito imperfeito, um tempo verbal existente desde

a língua latina e que remete, simultaneamente, ao infectum, ou inacabado, e ao

irrealizável, além de se encontrar no passado (um passado que, conforme veremos, se

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127

conflitará com a realização no presente). Assim, o sujeito expõe a contradição

subjacente à máxima capitalista, segundo a qual “querer é poder”. E esse efeito é

produzido pelo emprego da conjunção adversativa “mas”, que quebra a expectativa do

interlocutor e introduz o argumento mais forte, definidor da posição assumida pelo

sujeito-autor: “MAS, na favela, não tem piscina, armário com comida”. Novamente,

reforça-se a ideia de que há uma contradição que subjaz à relação direta entre querer e

poder: a ausência de bens e produtos necessários à satisfação das necessidades básicas

(metaforizadas pela expressão “armário com comida”) e de um certo grau de conforto –

ou mesmo de sobrevivência, se se pensa em quem vive em regiões de extremo calor,

como são os casos de Cuiabá-MT ou de Teresina-PI – (metaforizado pelo termo

“piscina”) se sobrepõe sobre a possibilidade de vontade do sujeito, que se vê “obrigado”

– vide o conflito semântico produzido entre os termos “querer” e “precisar”,

extremamente produtivo no material pesquisado – a criar seus próprios meios.

Nesse sentido, organizamos as negações polêmicas e as adversativas da seguinte

forma:

FD da barbárie

MA

S

FD questionadora

“Queria só rimar choro de alegria” “na favela, não tem piscina, armário

com comida”

Herói = aquele que reage a um assalto,

para impedir o ladrão de ter sucesso

(L5)

Herói = assaltante de banco (L7)

Vitória = fruto do estudo formal (L10) Vitória = sair vivo e usufruir dos

frutos conquistados por meio do crime

(L2)

Vítima = possuidor de bens que é

assaltado, sequestrado ou morto, por

causa desses bens. (L2)

Vítima = menino que come cacto no

Norte. (L4)

Conforto vem através do revólver Não vem através do revólver

Favela = notícia, número de estatística Favela não é só notícia, número de

estatística

Ponto de vista expresso pela música

voltado para maiores vendas

Ponto de vista não é feito pra

vendagem

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128

Rico tem culpa no menino faminto Rico tem culpa no menino faminto

Rico também é culpado pelo ladrão que

está no banco

Rico também é culpado pelo ladrão

que está no banco

Futuro do pobre = roubar o carro forte Roubar o carro forte não dá futuro pro

pobre

Arriscar a vida pelo malote dá futuro

pro pobre

Arriscar a vida pelo malote não dá

futuro ao pobre

Voz do povo = voz de Deus Voz do povo não é a voz de deus

Acredita na paz, no futuro Não acredita na paz, no futuro

Canta esperança e vende ilusão Não canta esperança e não vende

ilusão

Tem livro e biblioteca Não tem livro nem biblioteca

Tem formatura Não tem formatura

Não é desculpa pra revolta acontecer

algo ruim com o filho do

favelado/pobre/marginalizado

É desculpa pra revolta, sim, acontecer

algo ruim ao filho do

favelado/pobre/marginalizado

Rima felicidade (até no rap) Não rima felicidade no rap, porque a

marcha fúnebre prossegue

A história, que não é minha, tem

maquiagem

A minha história não tem maquiagem

Figura 6

É possível observarmos dois aspectos desse quadro, com relação aos

movimentos contraditórios inerentes à interpelação subjetiva: o primeiro diz respeito às

construções discursivas da referência para os termos herói e vitória, que reforçam os

sentidos prévios e cristalizados sobre os rappers, sentidos esses que remetem à memória

da relação entre pobreza material e crime. O segundo refere-se ao fato de que ao

“preencher de palavras a fala do seu outro”, pelo mecanismo de antecipação, o sujeito-

rapper identifica a fala desse outro com a sua própria, e, por isso, acaba produzindo a

ocorrência dos mesmos sentidos nas duas FDs opostas: “O rico tem culpa no menino

faminto” e “O rico também é culpado pelo ladrão que está no banco”. É do senso

comum, no entanto, o entendimento de que essa responsabilidade pela desigualdade não

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129

é assumida pelos defensores do capitalismo neoliberal, sejam eles ou não possuidores de

patrimônios e/ou de bens de produção.

As conjunções causais e condicionais também funcionam como articuladores de

enunciados e não opõem, necessariamente, posições discursivas, tal como ocorre com as

negações polêmicas e com as adversativas. Tanto a causal quanto a condicional podem

trabalhar no âmbito de diferentes formações discursivas. A causal, por exemplo, parte

de uma formulação cujo efeito desejado é o de uma “constatação da realidade” para

articulá-la a outra formulação, que acaba por produzir um efeito de causa que permite a

ocorrência dessa “constatação”. Por exemplo, na

SD199: Gambé que, pela tua cor, detona seu rosto

temos uma construção que simula, cria o efeito de “constatação” (“gambé porco que

detona seu rosto”) e uma outra construção, que simula, cria um efeito de causa, ou seja,

simula um motivo que possa suscitar a ocorrência desse fato “colhido diretamente da

realidade” (“pela [por causa da] tua cor”). Percebemos que essa contração que resulta da

união entre preposição e artigo definido “pela” funciona como um articulador que

assume um papel semelhante ao da conjunção gramaticalmente prototípica “porque”.

Nessa relação entre causa e efeito, o efeito, ou aquilo a que denominamos de efeito de

constatação da realidade, pode remeter a um enunciado de uma formação discursiva

diferente daquela à qual a conjunção causal articula e que remete à formulação

produtora do efeito de causa.

Outro exemplo é o da SD207:

SD207: Não canto esperança, porque não vendo ilusão.

Nesse exemplo, quando o sujeito-rapper enuncia essa sequência, o termo

“porque” está articulando uma formulação que remete à FD da barbárie, pois “constata”

que o rapper não canta esperança. Não vender ilusão refere seus sentidos à FD

questionadora, pois joga com o fato de os rappers se entenderem enquanto porta-vozes

da favela, que atuam como questionadores da desigualdade intrínseca à sociedade, e que

utiliza a música como instrumento de questionamento, e não como (re)produção de uma

estética abonada pela formação ideológica dominante. E “Não vendo ilusão” está

acompanhado do articulador “porque”, o que participa da construção do efeito de causa

do fato de os rappers não cantarem esperança. Ou seja, o sujeito-rapper se identifica

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130

com a justificativa da constatação: ele reconhece que tal constatação participa do

imaginário sobre as produções do rap, mas não concorda com ela, negando-a e

posicionando-se do lado daquilo que ele mesmo constrói discursivamente como

“causa”. Outro aspecto da formulação que nos permite observar que o sujeito-rapper se

identifica com esse efeito de “causa” é o que diz respeito ao argumento que acompanha

o articulador “porque”, que poderia ter sido outro, como, por exemplo:

SD207*: Não canto esperança, porque não existe esperança.

Ou

SD207**: Não canto esperança, porque não sei cantar.

A partir dessas sentenças hipotéticas, percebemos que a articulação pode

acontecer de N maneiras diferentes e que cada uma dessas maneiras expõe de modo

igualmente diferente a posição discursiva assumida pelo rapper enquanto sujeito. Nesse

sentido, analisando a formulação efetivamente realizada pelo Facção Central, vemos

que a posição que o sujeito-rapper assume é a de um questionamento quanto ao papel

social da arte e sua relação com o mercado, essa instituição que afeta diretamente as

relações intersubjetivas e entre sujeitos e sentidos, participando diretamente dessa

interpelação subjetiva, exatamente porque é um dos elementos centrais que compõem a

formação ideológica capitalista neoliberal.

Quanto às construções cujas formulações são articuladas pelo articulador

condicional, destacamos, como primeira consideração, o fato de que estamos diante de

sentenças que remetem ao âmbito da possibilidade, da probabilidade, enfim, ao campo

do hipotético. De acordo com o que apresentamos anteriormente sobre as construções

com a marca da condicional, sabemos que podemos encontrar, além de hipóteses,

também ameaças. Há, ainda, que se destacar a possibilidade de a palavra se, considerada

pela(os) gramática(os) como forma prototípica da condicionalidade, estabelecer relações

de efeito-causa e de temporalidade. Essas possibilidades de articulação – os efeitos de

ameaça, efeito-causa e de temporalidade – definiram os nossos recortes em sequências

discursivas que aparecem, portanto, divididas entre esses três grupos. Relevante é

destacar que nem toda sequência discursiva que continha a palavra se pôde ser

interpretada como uma dessas três “categorias”, logo, não foram todas as sequências

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131

com a marca se que participaram de nossas análises. Observemos, então, como se

produzem discursivamente esses efeitos:

3.3.1 AMEAÇA

Linguisticamente marcado pelo modo verbal imperativo ou subjuntivo

combinado com o modo indicativo, nos tempos presente e futuro do presente.

Normalmente, o advérbio de negação não acompanha a conjunção se. Vejamos alguns

exemplos:

SD173: Leva vigia, colete e blindagem pra ir pro restaurante, se não

(caso contrário), é viúva chorando e ômega zero no desmanche.

SD175: Que Deus deixe ele encontrar, madame, sua esmeralda, se não

(caso contrário), ele arranca seu coração na faca.

SD182: Cala a boca, doutor. Não dá mais nem um pio, se não (caso

contrário), te mando com tua vaca pra puta que o pariu.

Discursivamente, existem alguns aspectos a serem apontados como o fato de que

esses três exemplos produzem um efeito de interlocução, tanto que nas duas

últimasSD‟s, o fio discursivo apresenta até um vocativo, um chamamento ao

interlocutor, a quem o sujeito-rapper estaria interpelando: doutor e madame. A própria

terminação verbal dos verbos presentes nas formulações que não possuem o articulador

se também denuncia essa característica da interlocução: segunda pessoa do singular do

imperativo presente (leva e cala). Além desse aspecto de interlocução, há também que

se destacar o efeito produzido pela expressão se não, que traz esse tom de ameaça e que

se aproxima, como dissemos anteriormente, do efeito produzido pelas expressões caso

contrário e ou, então.

3.3.2 CAUSA

Caracterizado linguisticamente pelo esvaziamento do valor condicional da

conjunção se e o consequente preenchimento com o valor causal, como se estivéssemos

diante de uma substituição entre as formas se e porque. O modo verbal também é o

indicativo.

SD174: Não vou rimar felicidade no meu rap, se aqui, filho da puta, a

marcha fúnebre prossegue.

SD188: O Brasil não se comove se sou eu que peço o passe.

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SD194: Não adianta ser milhões, se não somos um.

Diferentemente do primeiro grupo – efeito de ameaça –, neste não é possível

observar como ponto em comum um efeito de interlocução, porque dos três exemplos

citados, apenas o primeiro apresenta um vocativo. Além disso, em todos os exemplos a

terminação verbal não aponta para a segunda pessoa do discurso: dois verbos possuem

terminações de terceira pessoa, com o sujeito gramaticalmente expresso; o outro verbo

tem terminação de primeira pessoa do singular (eu).

Interessante observar como o efeito de hipótese esperado pelo interlocutor e

estabelecido pela(o) presença/uso da marca se é quebrado, para que se constitua, em seu

lugar, uma relação de efeito (“o Brasil não se comove”) e causa (“se/porque sou eu que

peço o passe”). Aqui também vemos que a posição discursiva assumida pelo sujeito-

rapper é a da formulação encabeçada pelo articulador. Isso significa que, no caso do

segundo exemplo citado, o sujeito-rapper se identifica a tal ponto com o marginalizado

que se utiliza da primeira pessoa do singular para promover esse efeito de denúncia, de

questionamento sobre a contradição inerente ao enunciado da “igualdade de direitos e

deveres entre todos os homens”, que sustenta a ideologia capitalista. Ele questiona não

apenas porque constrói uma negação polêmica no intradiscurso em que se produz o

efeito de “constatação da realidade”, como também porque define que o motivo de não

haver comoção por parte do Brasil é o de que se trata de ser esse marginalizado, de ser

esse pobre e favelado (referindo-se notadamente àquela parcela da população que sofre

com diversos mecanismos de silenciamento produzidos pelas / produtores das posições

histórica e discursivamente construídas e sustentadas ideologicamente como

“dominantes”, oficiais) estar pedindo o “passe” (jogada do futebol em que um jogador

de uma equipe passa a bola a outro jogador da mesma equipe).

3.3.3 TEMPO

Possui um funcionamento linguístico simétrico ao do se causal, descrito no

ponto 3.3.2, com a diferença que o efeito produzido é o de tempo e não o de causa.

Vejamos:

SD181: Eu só sou um problema, se(quando, no momento em que)

atravesso o vidro, pego a bolsa e o toca-CD e atiro no ouvido.

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SD187: Aí, moleque, a vitória só vem se(quando, no momento em

que) estudar ou trabalhar.

Novamente, estamos diante de uma quebra de expectativa: a palavra prototípica

da condicionalidade se vem esvaziada desse efeito de sentido, para ser “preenchida”

pelo efeito de temporalidade. Dessa forma, vemos que não é em qualquer momento que

o pobre/favelado é visto/compreendido enquanto um problema, mas apenas –

observemos o esforço produzido pelo advérbio só – quando comete um ato criminoso,

condenável, contra as posses / vidas alheias. Da mesma forma, não é sempre que se

alcança a “vitória”, mas apenas quando o sujeito estuda e/ou trabalha.

Pode-se notar que, apesar de estarem sendo formuladas pelo grupo de rap

Facção Central, que se coloca enquanto “representante do barraco”, e que deveria estar

referindo seus sentidos à formação discursiva do questionamento, está discursivamente,

no primeiro desses dois exemplos, remetendo à formação discursiva da barbárie, para a

qual há uma contradição subjacente ao enunciado “todos são iguais perante a lei”,

contradição essa que faz com que alguns sejam “mais iguais” do que outros. Ou seja,

embora represente o barraco, o sujeito-autor se identifica com os sentidos da formação

discursiva à qual estaria / deveria estar se contrapondo, quando repete, nas suas

formulações, sem promover deslocamentos, enunciados de outra formação: é preciso

haver um ato criminoso contra a vida/patrimônio de alguém que possui patrimônio para

que a situação daqueles que não possuem patrimônio (não moram no barraco) possa ser

problematizada; é preciso que se estude e/ou que se trabalhe para que se possa ter

condições de chegar à “vitória” – observemos, porém, que a forma de problematizar a

situação de um sujeito considerado criminoso é a condenação desse sujeito com base

num processo judicial normalmente conduzido de forma, muitas vezes, questionável,

com a subsequente provável condenação do réu, e que o estudo e o trabalho não são

necessariamente o visto no passaporte para o “sucesso” profissional e/ou material.

Assim, vemos como o sentido não é naturalmente “preso” à forma, ou,

retomando os termos de Saussure em Curso de Linguística Geral, como o “significado”

não está naturalmente preso ao “significante”. Isso quer dizer que existem processos de

sedimentação dos sentidos, sedimentação produzida historicamente e que (se) marca

(n)a língua. Processos que produzem efeitos, como o da literalidade, que, se aceitos

como verdade, propiciam reações autoritárias, como a proibição da veiculação de vídeos

e músicas pelos meios de comunicação, tal qual a censura promovida pelo Ministério

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Público paulista contra o Facção Central, seu álbum Versos Sangrentos e sua música,

conhecida no mundo fonográfico como carro-chefe, Isso aqui é uma guerra.

Nós, na posição de analistas de discurso, embora sujeitos ao funcionamento da

ideologia e do inconsciente, não podemos “cair” na facilidade dos efeitos de literalidade

produzidos pelos movimentos da história e “escolher” deliberadamente um lado para

defender. Contudo, nossas escolhas temáticas e teóricas deixam pistas dessas nossas

escolhas ideológica e inconscientemente orientadas.

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4. SOB O EFEITO DE CONCLUSÃO: CONSIDERAÇÕES FINAIS E

PROVISÓRIAS

“O Facção não é mais meu, nem do Dum-Dum. É de quem admira e acredita em nós.”

(Carlos Eduardo Taddeo, 2006)

Este momento de finalização de um trabalho de pesquisa, tal como todos os

outros processos de finalização, produz um sentimento duplo e contraditório que vai da

dor que a ilusão da completude promove até o alívio que o encerramento de uma fase

pode trazer. A ilusão da completude produz em nós essa sensação de que mais coisas,

sob mais aspectos, poderiam e deveriam ter sido ditas. Disto advém a dor da

interrupção, por mais que saibamos que tal interrupção pode ser apenas um pequeno

intervalo entre dois momentos de frutíferas pesquisas. O alívio também tem origem

nesse necessário intervalo, duramente conquistado após quase trinta meses de estudos.

No entanto, não basta descrever as sensações advindas desse momento final,

pois se faz necessário que retomemos alguns dos aspectos mais relevantes dessa

pesquisa e que apontemos em que nos auxiliaram as análises, a fim de que chegássemos

aonde chegamos. Nesse sentido, apresentaremos a seguir uma breve retomada e

terminaremos elencando algumas questões que, embora tenham sido feitas, não

puderam ser resolvidas e propondo outras questões que podem ser tema de próximos

estudos.

A nossa proposta, com essa pesquisa, foi a de buscar nas letras das músicas que

compõem o álbum produzido pelo grupo paulista de rap Facção Central e lançado no

ano de 2001, A marcha fúnebre prossegue, as marcas que funcionariam, segundo nossa

hipótese, enquanto marcas discursivas de resistência. Para tanto, foi necessário que

produzíssemos o material com o qual trabalharíamos e, assim, procedemos à

poemificação das letras. Durante os procedimentos de poemificação, algumas

características dessas letras chamaram a nossa atenção por conta de uma presença

numerosa ou pela regularidade: a negação, a adversão, a condicionalidade e a

causalidade. Estas tornaram-se, então, as pistas a partir das quais decidimos recortar as

sequências discursivas. Isso porque o material é composto por formulações produzidas

apenas pelo grupo Facção Central, o que poderia produzir um efeito de homogeneidade

de posições discursivas, embora a língua, como sabemos, seja um lugar de conflito. E,

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136

ao trabalhar com oposições, causa e condição, poderíamos vislumbrar como se dão

esses embates e que posições são essas, além de podermos compreender de que modo as

identificações entre sujeito e sentido se ocorrem.

Com a hipótese de que esse sujeito enunciador, o Facção Central, após sofrer um

processo de silenciamento local – censura (Orlandi, 1997) – decide reafirmar sua

posição questionadora da ordem estabelecida e resistir aos sentidos de justiça, de

igualdade e de liberdade, que são centrais na ideologia capitalista, partimos para a

elaboração dos objetivos, que incluíam desde a verificação do funcionamento das

marcas da negação adversão, causa e condição na língua imaginária e na língua fluida,

até distinguir ordem e organização da língua no modo de funcionamento das letras do

álbum escolhido, passando por pensar os processos de produção de identificação

subjetiva a partir das marcas significantes e por relacioná-las à resistência que o sujeito

produz ao dever de preencher determinado lugar social que lhe fora social e

imaginariamente designado.

Então, com os recortes em mãos e o olhar direcionado sobre as questões

levantadas, passamos para as análises. Verificamos que esse sujeito-rapper comparece

nas letras produzindo seis imagens de si (mensageiro de um futuro trágico, porta-voz da

favela/periferia, arrependido/lamentoso, vítima, revoltado sanguinário e revolucionário)

e representando o seu outro de maneira hiperbólica, “convidando” esse outro a

comparecer no intradiscurso a partir de vocativos frequentes e, por fim, “calando” esse

outro, a partir da saturação produzida pelas constantes falas representativas (aquelas que

não são as falas do outro, mas que se encontram representadas no intradiscurso das

formulações do sujeito-rapper). Sabemos, contudo, que o funcionamento ideológico é

dissimétrico e permite compreender como sentidos da formação discursiva da barbárie

podem comparecer, reproduzidos e sem deslocamentos, nas formulações que remetem à

formação discursiva questionadora – sua oposta.

Tais formações discursivas, não presentes na hipótese da pesquisa, mas

subjacentes a ela, foram pensadas a partir da definição de Pêcheux (1988 [1975]),

segundo o qual a palavra adquire seu sentido da posição discursiva daquele que a

emprega. Vimos que três palavras têm sua referência construída de maneira diferente e

que essa diferença remete a duas posições distintas e antagônicas, em disputa: vítima,

vitória e herói. Definimos, então, duas matrizes donde as palavras/expressões podiam

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137

retirar seus sentidos: formação discursiva questionadora e formação discursiva da

barbárie. Explicamos os motivos dos nomes e mostramos por que acreditamos que

ambas se relacionam sob a dominância da segunda sobre a primeira e sob o âmbito da

mesma formação ideológica: a capitalista neoliberal.

Percebemos, com tudo isso, que o sujeito até resiste contra a ordem estabelecida,

primeiro porque “escolhe” produzir suas letras de dentro do movimento hip hop; depois,

porque não reconhece a organização da língua brasileira como onipotente e cânone,

apesar de estar inscrito nela para (se) significar; também porque não hesita em (ab)usar

(d)a opacidade que a ordem da língua permite que se produza, utilizando, para tanto,

siglas, xingamentos, gírias; e, finalmente, porque desloca a centralidade do trabalho

enquanto a única maneira moral e licitamente possível de se conquistar uma vida mais

digna. Mas esse sujeito-rapper não consegue romper de vez com a ideologia capitalista,

porque reproduz o desejo de ter igualdade real de direitos, de usufruir dos luxos e

confortos que a sociedade capitalista pode produzir, de não deslocar o sentido de escola

enquanto espaço de “transformação da sociedade”, quando reproduz o sentido que o

valor do sufrágio tem para a manutenção/transformação das esferas política, econômica

e social do Brasil. Mesmo diante dessas contradições, inerentes ao sujeito, o sentido da

resistência chega a se sobrepor ao sentido da reprodução de valores, porque, ainda que

seja pouco ou insuficiente para a transformação radical da sociedade, questionar é um

dos passos de maior importância, porque ajuda a desestabilizar as bases sobre as quais

as evidências são produzidas/sustentadas. E questionar as evidências é um passo para a

desnaturalização da relação palavra-sujeito-sentido, em direção à construção de novas

bases.

Essa foi, enfim, a proposta deste trabalho: desestabilizar as bases sobre as quais

se desenvolvem o preconceito contra o movimento hip hop (sobretudo com relação à

vertente underground, a que eu “rebatizaria” de roots, porque se propõe a manter as

raízes da proposta originária do movimento), pois se trata de um movimento de origens

nos negros e marginalizados; desestabilizar as bases sobre as quais se institui a língua

imaginária, mostrando que a gramática, enquanto instrumento de contenção da fluidez

da língua, não é capaz de descrever e prescrever todas as possibilidades da ordem da

língua; desestabilizar a evidência de que, no capitalismo, é possível existir igualdade de

oportunidades e de que é possível “vencer” na vida (profissional e financeira,

sobretudo) através unicamente do trabalho (o mesmo que produz a mais-valia, o

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excedente, o lucro do dono dos meios de produção e dos especuladores); por fim,

desestabilizar essa certeza de que as letras das músicas do grupo de rap Facção Central

estimulam, incentivam ou incitam a realização de atos criminosos. Acreditamos, nesse

momento, que as essas tarefas foram cumpridas e que próximos estudos poderão se

propor a trabalhar com o mesmo material e aproveitar as pistas que, por uma opção

teórica e, até certo ponto, pragmática, uma vez que existe um tempo máximo a ser

cumprido, acabaram não sendo seguidas neste momento.

A resistência, conforme vimos a partir de Pêcheux (1980), pode se dar sob as

formas de falar quando não é permitido, de calar quando se obriga a falar, de falar

“errado”, de não “entender” as ordens etc. A nossa hipótese se confirmou, pelo menos

em parte, porque observamos que o sujeito-rapper resiste ao deslocar sentidos sobre a

organização da língua, ao deslocar a centralidade do trabalho (exploração do homem

pelo homem, em conformidade com a formação ideológica sob a qual se dão essas

relações intersubjetivas). Confirmou-se, também, a hipótese de que se trata de um

discurso tendencialmente autoritário, porque o espaço reservado ao outro, no

intradiscurso do Facção Central, é saturado de sentidos vindos da formação discursiva

questionadora. Em parte, por outro lado, a hipótese se deparou com as contradições do

sujeito, que apontaram para um funcionamento ideológico fácil de ser observado:

repetições de sentidos contra os quais o sujeito procura se confrontar, no fio discursivo,

sem referi-los a uma outra matriz de sentidos, ou seja, sem promover deslocamentos.

Existiram, conforme se pôde observar até aqui, várias formas de abordar o tema

da resistência com o material que recortamos. A nossa forma foi essa apresentada. Só

mesmo o tempo e os novos estudos que com ele certamente advirão poderão mostrar se

este trabalho conseguiu abrir os caminhos que se propôs a abrir.

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139

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Page 143: INSTITUTO DE LETRAS - Universidade Federal Fluminense

143

6. ANEXOS

6.1 As letras do álbum A marcha fúnebre prossegue (Facção Central, 2001) utilizadas

na pesquisa

<http://www.baixandolegal.org/2009/06/faccao-central-a-marcha-funebre-prossegue.html>

i. Dia comum (L2)

Um helicóptero preto a poucos metros do chão,

um barulho ensurdecedor de sirene, carro

derrapando,

armas sendo engatilhada, vidro estilhaçado,

repórter, sangue, violência, ódio, dor,

perda, sensação de impotência,

frações de segundos,

o céu ou o inferno,

a solidão da sela, ou o carro zero.

A casa própria,

A vitória é tentada de forma violenta,

o sucesso dependente de um fracasso, de um

caixão,

de um malote na mão, de uma fuga rápida, de um

dia de sorte,

um Deus dividido por duas orações,

uma vítima ajoelhada implora pela vida.

O ladrão nervoso tremulo não quer algema da

polícia

a fome e a miséria mostram o fruto que a sociedade

vai colher:

sanguinário, raivoso, armado.

O moleque do pipa é transformado no homicida,

que como animal faminto busca o cofre,

como se fosse a presa morta ensangüentada,

o carro preto e branco chega,

o homem bom, o homem da lei, que só atira na

cabeça de pobre,

só dá tapa na cara, só derruba porta de barraco,

o filho da dona Maria qualquer da periferia

agora engrossa o número da estatística

das tentativas frustradas, fracassadas

de vitória na vida do crime.

O filho da imigrante lavadeira sangra perto da porta

giratória.

Ninguém chora, risadas, alívio,

a cena de terror tem contorno de heroísmo

e novela de final feliz.

O policial contente sopra o cano do seu revolver,

mas no fundo, no fundo, preocupado,

pois sabe que amanhã ou depois

o moleque esquecido no fundão da periferia

vai cansar de pedir esmola,

de não ver comida na panela,

de ver sua mãe só de camiseta furada, chinelo,

chorando com seus irmãos famintos no colo.

Vai arrumar um revólver,

tentar resolver seus problemas através do sangue da

cabeça de um gerente de banco,

e vai ser mais um favelado, no caixão preto doado,

sem flores e sem velório

Infelizmente, a Marcha Fúnebre Prossegue.

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ii. A guerra não vai acabar (L3)

Aí, promotor, o pesadelo voltou,

Censurou o clipe, mas a guerra não acabou

Ainda tem defunto a cada 13 minutos,

Dez cidades entre as 15 mais violentas do mundo

Da classe rica ainda dita moda do inferno,

Colete à prova de bala embaixo do terno

No ranking do sequestro, 4º do planeta

51 por ano, com capuz e sem orelha

Continua apologia na panela do barraco

Ao empresário na cherokee desfigurado

180 mil presos, menor decapitado,

cabeça arremessada no peito do soldado

Sistema carcerário ainda é curso pra latrocínio

Nota 10 no ensino de queimar seguro vivo

Família amarrada, miolo pelo quarto

Hollow point no doutor pra ver dollar no saco

Destaque da tv sensacionalista

Que filma sem pudor o trabalho da perícia

Contando buraco no crânio do corpo do boy morto

Pela glock que o sistema porco põe no morro

Mas pra mim é 286, quando falo do sangue

que escorre do pescoço do vigia,

Dentro do carro forte, quanto descaso pra periferia

Transforma meu povo em carniça

Tem facção na pista

Sanguinário na rima

Refrão (4x)

Pode censurar, me prender me matar

Não é assim, promotor, que a guerra vai acabar

Não tem inquerito pra tv que tem a vadia nua

novela da 6, 7, 8 sem ministério nem censura

Só o meu rap que é nocivo pro sistema hipócrita

A justiça não quer ouvir que o moleque que o pai

dá as costas

Pode invadir seu apê, derrubar a sua porta

Matar seu parente pra pagar treta de droga

Se tem sangue, eu canto sangue

Se tem morte, eu canto morte

Relato que leva o ladrão pro cofre

Não sou eu que coloco o mano lá no banco

Estorando o gerente, saindo trocando

Foi na tv que eu vi parte da polícia deitada

Assistindo o resgate, dominada, desarmada

Delegada chorando, desistindo do emprego

Meu clipe „inda er‟ um sonho e é real o pesadelo

Eu não preciso estimular o latrocínio

Nem o sequestro relâmpago de um empresário rico

O Brasil não dá escola, mas dá metralhadora

O Brasil não dá comida, mas põe crack na rua toda

Não vem me colocar de bode expiatório

País falso moralista, é você que quer velório

Aí, tia da mansão, fazendo oração,

Esperando o contato do sequestrador em vão

Seu filho deve tá morto, quer saber por quê?

Combater violência aqui é me calar ou me prender

Refrão (4x)

E quem não olha pro moleque sem infância, no

morro

Oitão na cinta, sangue na mente, apetitoso

Homicídio, latrocínio, só profetiza o óbvio

Cercado pelo crack, a consequência é óbito

Vendo sua mãe catando fruta apodrecida

Rasgando o lixo, comendo o resto da burguesa

Galinha metida que, quando vê o da favela, pisa,

acelera,

Pra essa cadela só é gente quem tem lagosta na

panela

A criança vira um monstro com 13 no pente

Quando percebe que a propaganda de bike, video-

game

Playcenter, tênis, danone, Mclanche

É so pro filho da madame

Carboniza um corpo, desfigura o rosto

Quando vê que pra ele é so pipa, água de esgoto,

Não é desculpa pra revolta, porque não é seu filho

O seu tá de Audi, alimentado, bem vestido

Vai se tornar empresário bem sucedido

Não vai precisar gritar assalto em nenhum ouvido

Facção é só um retrato da guerra civil brasileira

Da carnificina rotineira

Assusta menos que o menor muito loco espalhando

seu miolo pelo visor do caixa eletrônico

Refrão (2x)

iii. A marcha fúnebre prossegue (L4)

Não queria o moleque com a faca na mão,

Ajoelhando o tio grisalho, querendo seu cartão.

Queria só rimar choro de alegria,

Mas na favela não tem piscina, armário com

comida.

É só gambé gritando “deita!” pro mano de escopeta,

Que na fita do pagamento fuzilou o dono da

empresa.

Cuzão que não concorda com o holocausto

brasileiro,

Vive no condomínio, limpa o rabo com dinheiro.

Quer o sangue do ladrão, bebendo seu uísque,

Protegido na ilusão, na grade da suíte.

Sua paz está no luto decretado pelo tráfico,

Comércio fechado tipo feriado.

Tá na bala perdida do fuzil varando sua porta,

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Explodindo teu mundo rosa, te pondo na cadeira de

rodas.

Na gravação do circuito interno do Bradesco,

Rouba banco querendo enterro, ladrão trocando pra

não ser preso.

No céu não tem deus, só o helicóptero da polícia,

Descarregando a traca no fugitivo da delegacia.

Aqui o corujão só passa bang-bang,

No fim do arco-íris, o dono do jato vomita sangue.

Leva vigia, colete e blindagem pra ir pro

restaurante,

Se não, é viúva chorando e Omega zero no

desmanche.

Não vou rimar felicidade no meu rap,

Se aqui, filho da puta, a marcha fúnebre prossegue.

Refrão (4x)

A paz tá morta desfigurada no IML,

A marcha fúnebre prossegue.

Tá rindo? Quer dançar, quer se divertir?

Meu relato é sanguinário, playboy não vai curtir.

Sou homem pra falar que o moleque do pipa,

Esquecido, um dia troca tiro com a polícia.

Não simulo sentimento pra vender CD,

Não vou falar de paz, vendo a vítima morrer.

Vendo no DP mano cumprindo pena,

Matando o seguro pra ter transferência.

Vendo a criança no norte comendo cacto,

Gambé desovando mais um corpo no mato.

Não iludo o casal dirigindo feliz à pampa,

Fora da blindagem, é um sonho a segurança.

Quando o portão automático da goma subir,

Prepara a senha do cofre pro ladrão abrir.

Que deus deixe ele encontrar, madame, sua

esmeralda,

Se não, ele arranca seu coração na faca.

A polícia vai chegar só pra fazer perícia,

Quando alguém se incomodar com o cheiro de

carniça.

No balcão, toma com limão pra esquecer o

desemprego,

E bater na mulher quando chegar a noite bêbado.

Desde as 4 da manhã e nem vaga pra lavar privada,

O mano perde a calma, mata a família e se mata.

Caixão lacrado não estimula verso alegre,

Aqui, filho da puta, a marcha fúnebre prossegue.

Refrão (4x)

Queria que a vida fosse igual na novela,

Jet-ski na praia, esqui na neve europeia.

Sem pai de família gritando assalto ou sendo feito

de escravo,

Com 1 5 1 por mês de salário.

Que não enche nem metade de um carrinho no

mercado,

Não paga luz e água, o aluguel do barraco.

Aqui, pro cidadão honesto ter um teto,

Só pondo o fogão na cabeça, invadindo o prédio.

Saindo na mão com PM do choque,

Sobrevivendo o tiro da reintegração de posse.

Pergunta pro tio do terreno invadido no escuro,

O que é um trator transformando sua goma em

entulho.

Arrombado que me critica me mostra o povo

sorrindo,

De carro, casa própria, churrasco no domingo.

Será que é miragem um mendigo que come osso,

Gambé porco que pela tua cor deforma seu rosto.

O menino com a 3 8 0 que rouba o carro e dá fuga,

deixando a burguesa mutilada, sem metade da nuca.

Quem vê violência só na tela da TV,

Só vai ouvir Facção e conseguir entender,

Quando tiver amarrado, dentro do porta mala,

Rezando pro ladrão não enfiar bala.

Quando trombar a dor, vai enxergar o verdadeiro

rap,

Aí o filho da puta vai sentir que a marcha fúnebre

prossegue.

Refrão (8x)

iv. Aqui são teus cães (L5)

[Dum Dum]

Filho da puta, aprendi tudo do jeito que me ensinou,

Coração petrificado, glock no doutor.

Ver o refém queimando vivo e dar risada,

Sem anestesia, arrancar seu dedo com a navalha.

Fechar o carro forte, atirar de AR15,

Cuzão dá o malote, herói não sobrevive.

Aprendi que o alarme da mansão é piada,

Resulta em empregada amarrada, velório na sala.

Seu adversário, o traficante da rua de baixo,

Seu sangue, a vitória é status pro reinado.

Sem boi pra rica de mitsubishi moscando na

avenida,

Vai relógio, carro, manda a vaca pro legista.

Não tenho futuro, não sou jogador,

Sou, na cena do crime, o principal ator.

Boy, quando ouvir assalto, não precisa chorar,

Apenas são teus cães adestrados pra matar.

Refrão (4x)

Ra-ta-tá vem escutar,

Aqui são teus cães adestrados pra matar.

[Eduardo]

Como um bom aluno, eu tô fumando crack,

Trocando tiro com o gambé do DENARC.

Sem negociação, comigo é só terror,

Não cumpriu minha exigência, a vítima sente a dor.

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Na agência bancária, vou tirar nota A,

Se o gerente não colaborar, pá pá: miolo no ar.

Minha formatura vai ser regada a champanhe,

Com o filho vendo eu atirando na cabeça da mãe.

Se eu for preso, a técnica de fuga tá furada,

Fogo no 2 1 3, várias estiletadas.

Vou com o diretor pra frente da câmera da globo,

Fazer o cachorro chorar, pedir socorro.

Sei que sou o diabo da sua cartilha,

Inimigo do Estado, seifador da classe rica.

Primeiro da classe, orgulho do professor,

O cão pronto pra matar que o Brasil adestrou.

Refrão (4x)

[Dum Dum]

Aprendi que não é justo eu na caixa de papelão,

Enquanto um boy tá de ferrari e o outro é dono de

avião.

Papai Noel, eu não sou um bom menino,

Eu busco o conforto através do latrocínio.

O vídeo vai ser 1 5 7; a TV, um furto,

Panetone da ceia, fruto de um furto.

No vestibular do inferno, deixou claro

Que sua ascensão vem na queda do empresário.

Por isso, eu vou pra moto enquadrar teu carro,

Atirar no teu peito, arrancar o motor, queimar

carcaça no mato.

Vou dar 5 gramas pro moleque do condomínio,

Pra ele ser meu cliente doente até o suicídio.

A filha roda a banca, cheira todas na danceteria,

E ainda um cú de audi quer pagar de moralista.

Ladrão bom é o que a polícia matou,

Esquecendo que aqui é o cão que ele mesmo

adestrou.

Refrão (4x)

[Eduardo]

A aula termina na cela fria da delegacia,

No povo contra povo, carnificina, chacina.

Te dão ódio, motivo, fuzil,

Pra você dar fuga a mil, tomando tiro da civil.

A lavadeira imigrante é a que sempre chora,

Vendo o filho sangrando na porta giratória.

O refém tá carbonizado porque o sistema quer,

Por que eu só existo, quando dou tiro na mulher.

Ou quando eu apareço sangüináreo no noticiário,

Arremessando a cabeça de outro presidiário.

Toda vez que o avião do boy traz um fuzil na

viagem,

Nasce mais um louco selvagem pra te fuzilar na

garagem.

Fui adestrado pra roubar seu dinheiro, velha,

Não pra encher a panela, mas pra ter carro, fumar

pedra.

Sem espanto, puta história, normal na favela,

Pro esquecimento, uma seqüela, astro do linha

direta.

Refrão (4x)

v. Desculpa, mãe (L6)

Mãe, não dei valor pro teu sonho, sua luta

Diploma na minha mão, sorriso, formatura

Não fui seu orgulho, diretor de empresa

Virei o ladrão, com a faca, que mata com frieza

Não mereci sua lágrima no rosto

Quando chorava vendo a panela sem almoço

Vendo a laje cheia de goteira

Ou a fruta podre que era obrigada a catar na feira

Enquanto você juntava aposentadoria, esmola pra

não ter despesa

Eu tava no bar, jogando bilhar

Bebendo conhaque, bêbado,

eu era o ladrão de traca a escopeta

Com a mãe implorando comida na porta da igreja

Todo Natal, você sozinha, eu na balada

Bancando vinho, farinha, pras mina da quebrada

Desculpa, mãe, pela dor de me ver fumando pedra

Pela glock na gaveta, pelo gambé pulando a janela

Refrão (2x)

(desculpa, mãe) por te impedir de sorrir

(desculpa, mãe) por tantas noites em claro, triste,

sem dormir

(desculpa, mãe) pra te pedir perdão, infelizmente é

tarde

(desculpa, mãe) só restou a lágrima e a dor da

saudade

Quantas vezes, no presídio, me visitou

No domingo, bolacha, cigarro nunca faltou

Vinha de madrugada, sacola pesada

Pra ser revistada pelos porcos na entrada

Rebelião, você no portão, temendo minha morte

Sendo pisoteada pelos cavalos do choque

Eu prometi que dessa vez tomava jeito

Tô regenerado, ouvi seus conselhos

Uma semana depois, eu na cocaína:

- Cala a boca, velha! Sai da minha vida!

- Eu vou cheirar, roubar, seqüestrar.

- Não atravessa meu caminho, se não vou te matar!

Saí pra enquadrar o mercado da esquina

Troquei com o segurança, tomei um na barriga

A Polícia me perseguindo, eu quase pra morrer

Só tua porta se abriu, pra eu me esconder

Refrão (2x)

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147

Os gambé vigiando o pronto-socorro

Eu na cama delirando, quase morto

Ferimento ardendo, coçando, infeccionado

A solução foi o farmacêutico do bairro

Que só veio por você, com certeza:

A heroína que pediu esmola no busão, com a receita

Deu comida na boca, comprou todos remédios,

Sonhou com emprego, mas o diabo me quis

descarregando ferro

Aí eu dei soco, chute, bati com tanto ódio:

- Preciso fumar, vai, mãe, dá o relógio!

Velha, doente, desafiando a madrugada

De porta em porta: - Alguém viu meu filho? Tô

preocupada!

Fim de semana foi farinha, curtição,

Só cheguei hoje e de prêmio te trombei nesse

caixão

Um vizinho ligou, que foi ataque cardíaco

Morreu na rua, atrás da merda do seu filho

Refrão (2x)

vi. Sei que os porcos querem meu caixão (L7)

[Eduardo]:

O boy queria que eu tivesse traficando,

Gritando assalto com uma nove pro caixa do banco.

Queimando a cara de um refém com cigarro:

- Dá a senha, filho da puta! Anda, desgraçado!

O Brasil não aceita pobre revolucionário,

O marginalizado defensor do favelado.

Fugi do controle, quebrei a algema,

Expandi meu veneno, meu ódio, minha crença.

Contaminei o povo, revolta incurável,

Terrorista verbal, discurso implacável.

Pega seu dinheiro e enfia no cu,

É caráter lapidado no sangue da zona sul.

Implantaram a liberdade de expressão assistida,

Pra rima agressiva do rapper homicida.

Desprendido de mídia, público do shopping,

Cuspo na sua TV, na sua porra de ibope.

Ativista ou artista, sou o próximo da lista,

Foda-se a censura, represália da polícia.

Se tiver que morrer, aí fazer o que?

Ameaça não intimida, Eduardo não faz tremer.

Fala mal de mim, rimador da alegria,

Pelo menos não sou puta, não vendi minha

ideologia.

Não traí a minha história, minha raiz no cortiço,

Prossigo minha missão, pra multi sou nocivo.

Invadi a mansão igual um rolo compressor,

O playboy se borrou com a verdade no televisor.

Denunciei sem medo a guerra civil brasileira,

Obrigado, favela, pelo FC na camiseta!

Oficial de justiça não apreendeu meu cérebro,

Dentro e fora da cadeia, locutor do inferno.

Sou periferia em cada célula do corpo,

Por isso, uma par de porco tá me querendo morto.

Refrão (2x)

Sei que os porcos querem meu caixão,

"Era a brecha que o sistema queria".

Sei que os porcos querem meu caixão,

"Avisa o IML: chegou o grande dia".

[Dum Dum]:

O preto favelado aterrorizou,

Chocou apavorou escandalizou.

O verso sanguinário conseguiu abalar,

Vem pagar um pau mídia vem me entrevistar.

Vou enfiar no teu rabo meu estereotipo de ladrão,

Um careca de jaqueta aqui é rapper facção.

Não vai te dar notícia com o sangue da vaca rica,

Filma o maloqueiro pedindo paz na periferia.

Surgiu uma par de herói querendo meu sangue

minha caveira,

Querendo flash na minha aba se tornar estrela.

Cuzão não entendeu rap não é campeonato,

Pra vender CD não precisa do meu fracasso.

Faço meu papel honro meu compromisso,

Semeio o ódio contra quem me faz roubar o

executivo.

Aqui é só outro mano sem boné sem estudo,

Sem currículo curso talvez sem futuro.

Entendeu dono do iate o apoio da favela,

Faço parte dela sou fruto da cela.

Não deram faculdade pra eu me formar doutor,

Então a rua me transformou no demônio rimador.

Enquanto meu corpo não virar carniça,

Eu to no rádio no vídeo lançando minha ofensiva.

Nem cherokee nem piscina nem modelo vadia,

Compram a atitude do mano do quarto e cozinha.

A traca verbal é um dois pra acionar,

É só o menino faminto chorar pro dum dum

descarregar.

Programado pra rimar buscar a igualdade,

Pra ser a ameaça pra sociedade.

Oficial de justiça não apreendeu meu cérebro,

Dentro e fora da cadeia locutor do inferno.

Sou periferia em cada célula do corpo,

Por isso uma par de porco tá me querendo morto.

Refrão (2x)

A boca só se cala quando o tiro acerta

- Se é isso que eles, querem então vem me mata!

- E pros filhos da puta que querem jogar minha

cabeça pros porco, aí, tenta a sorte, mano.

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vii. O show começa agora (L8)

Camisa branca, vela acesa, 7horas,

faixa, bandeira, o show começa agora.

algum rico ganhou a extrema unção do padre

chave pra socialite buscar publicidade

pede paz quando a bala estraçalha sua boca

ou quando a filha aparece morta no mato, sem

roupa

o moleque decapitado no esgoto, no lixo

é só uma estatística, um furo jornalístico

banal pro circo do falso moralismo

não abala a cadela rica, nem um político cínico

que no domingo tá de iate, rindo à vontade,

enchendo o cu de drogas, bebendo balantaines

a classe rica só lembra da periferia

quando quer farinha pra se acabar na danceteria

cadê a musica da paz? o gesto do artista?

quando o jato da Colômbia traz pro morro só

cocaína

sua pomba branca tá sangrando no barraco

em forma de chacina, com criança em pedaços

tira essa vaca do ar

modelo puta falando de nós

tá querendo ibope pra posar pra playboy

pagodeiro, sertanejo, vem vender CD:

a campanha do burguês tem cobertura da TV

dá pra se promover,

até pagar de santo

fingi que meu filho morre

cuzão que rebola tá se importando

Refrão (2x)

Não somos só noticia, número de estatística:

- Chora, playboy, com sangue da periferia!

Não somos só noticia, número de estatística:

- Cadê a campanha da paulista, na hora da

chacina?

A indignação passageira do boy é moda

deixa explícita sua atitude preconceituosa

só merece globo repórter, campanha da paz

quem acende o charuto com nota de cem reais

a puta de mega fone, no palco gritando,

não sabe o que é fome, só entende de tamanco

nunca viu criança estudando no chão,

acha que é cena de filme de ficção

não é o Estalone metralhando o segurança

é outro excluído querendo vingança

na mesa de restaurante, na hora do jantar,

duvido que algum cu para pra pensar

no tio doente, na caixa de papelão,

querendo sopa quente, um lixo que tenh‟ um pão

na criança de seis anos catando lata

no alcoólatra com a faca, mandando o filho pra

maca

ao degustar seu caviar, seu vinho italiano,

é numa bala no meu crânio que ele tá pensando

na policia invadindo, dando butinada

na pretinha grávida, buscando alguma arma

a censura do meu rap, a tropa de choque

me mostra que protesto é só quando boy morre

aqui é só flores no caixão e silêncio

ou bala de borracha e gás lacrimogêneo.

Refrão (2x)

Manchete na CNN vai queimar o turista

Então, presidente chora, rebola na entrevista

formula seu pacote cheio de medidas

contra o genocídio, luz da periferia

na Augusta, meio dia, controvérsia

na luz do sol, olho aberto, um buraco na testa

apresentador cuzão, falso moralista,

vai lucrar de novo com a desgraça da notícia

treta no palco: deficiente dá ibope

quarenta pontos pra emissora, no horário nobre

quem faz comercial contra a violência

é o mesmo que quer sangue pra ganhar audiência

A minha história não tem maquiagem

meu ponto de vista não é feito pra vendagem

eu não agrado gambé nem arrombado de blindado

aqui é facção, representante do barraco

o boy não quer meu bem, só quer minha pistola

quer me ver com fome, inofensivo, na sua porta,

pedindo esmola, um trocado qualquer,

com ódio e revoltado, mas beijando seu pé

eu só sou um problema, se atravesso o vidro,

cato a bolsa e o toca CD e atiro no ouvido

quem qué tá no condomínio, vivo e feliz,

não pede paz só quando tem defunto nos Jardins.

Refrão (2x)

viii. Tensão (L9)

[Dum Dum]:

Machucado, sangrando, sufocado,

Dentro do porta-mala do meu BMW.

Um ladrão no volante, rindo à toa,

Outro, com meu cartão e minha esposa.

Obrigando ela a sacar meu dinheiro no caixa,

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Com a mira laser nas costas, nove cromada.

Não tem como gritar nem dar alarme,

Já premedito flores, a benção do padre.

Por que não fui morar na Europa?

Grande merda essa blindagem, foi só abrir a porta

Que o monstro da notícia, que pra mim era fictício,

Pulou, deu coronhada, extremamente agressivo.

Talvez seja algum moleque que eu não dei esmola,

Fechei o vidro na cara:

- Tchau, porra! Sai fora!

Agora vejo o que resulta a barriga cheia de ar,

No filho da faxineira, cortando minha jugular.

Ações, imóveis, conta no exterior,

Quando o oitão tá na cabeça, nada disso tem valor.

Será que o fim vai ser igual filme: jornal, mulher

estuprada,

Com o marido assistindo e eles dando risada?

Cadê ação preventiva da porra da polícia,

Tão num bar comendo coxinha,

só vêm quando virem carniça.

Querem meu sangue pra encher uma panela vazia,

Esse é o preço pela indiferença, cobrado pela

periferia.

Refrão (2x)

O clima é tenso, a chance é muito pouca,

Vou terminar o dia c’ um tiro na boca.

Sente o ódio do diabo que você ajudou a criar,

Agora, dono do jato, é muito tarde pra chorar.

[Eduardo]:

Cala a boca, doutor! Não dá mais nem um pio.

Se não, te mando com tua vaca pra puta que o pariu.

Vai ter pivete órfão no Morumbi,

Caixão com alça de ouro assinada por mim.

Diferente de você, não tenho BMW,

Só um cômodo no barranco, que com a chuva tá

soterrado.

Teu filho vai pra escola com vigia, detector,

Enquanto o meu não tem aula nem professor.

Vai ser sequestrador, vai matar polícia,

E ainda adolescente vai pra mesa do legista.

Não uso grife, sapato italiano,

Eu não tô na moda, nem etiqueta tem nos meus

pano.

O sonho da minha coroa era me ver com diploma e

bíblia,

Mas o Brasil meu deu o cano que faz teu parente

virar carniça.

Por isso, seu sangue não me comove,

Por isso, invado a cobertura e abro o boy com a

nove.

Amarro a governanta, torturo a família,

Quero mais dinheiro:

Aí, coroa, não me tira!

Mataram a esperança, só deixam como herança

Uma doze com uma caixa de bala pra criança.

Ia me entender, se visse sua filha na esquina,

Por cinco conto, no hotel, dando a vagina.

Então, cuzão, dá um tempo, fica quieto!

Talvez, se der sorte, não vai pra necrotério.

Refrão (2x)

[Dum Dum]:

Os minutos passam, tensão extrema,

Será que a minha mulher errou a senha?

Me lembro que um deles é menor,

Sé pá, joga gasolina e risca o fósforo, sem dó.

Eu tô ligado que fome e crack faz o bandido,

Então, por que não estraçalham a cabeça do

político?

Não nego minha culpa no menino faminto,

Em vez de cesta básica, comprei relógio suíço.

Contratei vigia, lancei carro blindado,

Mas, se o ladrão tá no banco, não é só eu que sou

culpado.

A porta abre, um grita:

- Entra logo, vaca!

Tão dando coronhada.

- Porra! Ela tá grávida!

[Eduardo]:

Agora pensa duas vezes pra comprar o diamante,

Pra sua piranha usar uma noite só no restaurante.

Olha a cara dela toda ensanguentada,

Vê do que é capaz quem vive de migalha.

Investir em colete à prova de bala é ilusão,

Minha bala com teflon atravessa ele e seu coração.

Enquanto teu filho tiver na Disney e o meu no

reformatório,

É quatro cinco na sua boca, autópsia, velório.

Não chora pelo carro: seguro paga outro,

Cataram um boi:

- Sai fora!

Nasceram de novo.

Corre pro DP, chama seu policial,

Só por um milagre vão me ver no tribunal.

Refrão (2x)

ix. De encontro com a morte (L10)

Não acredito que eu cheguei nesse ponto

Tô com o refém chorando em cima do seu filho

morto

Manchei de sangue o quadro de Picasso

Fiz a torneira de ouro pingar lágrima no palácio

No que foi que o crack me transformou?

Me estranhei dando soco na cabeça do doutor

Fita dominada, já catando os eletrodomésticos

Page 150: INSTITUTO DE LETRAS - Universidade Federal Fluminense

150

Pivete do caralho gritou “morreu!”, no meu reflexo

Tiro à queima roupa, parou o coração

Promovi um velório, na suíte da mansão

Doente pela pedra, apertei o gatilho da PT

Mas nenhum jurado vai entender

Nenhum juiz vai me absolver

O pai grita:

- Por que não me matou no lugar dele?

Vendo carne do filho colada na parede.

Enquadrei na intenção de dólar no cofre

Não previ a vadia da mãe implorar:

- Pelo amor de Deus, não morre!

Se arrepender, não consta: o vizinho deu alarme

Pro Morumbi veio o exército, até a Swat

Pela janela, já escuta a sirene dos lambe saco de

boy

Vindo na febre de me transformar no troféu do PM

herói

Se pá, minha coroa vai ver no noticiário

Meu corpo metralhado, e o resgate juntando os

pedaços

Vai lembrar que eu bati nela pra fumar TV e o rádio

Vai dar graças a Deus de me ver no caixão lacrado

Refrão (2x)

Sei que vou morrer não posso fugir (3x)

Só não quero mais moleque morrendo assim

Eu era só outro moleque jogando bola

Descalço, fazendo gol, na porta da escola

Carente de incentivo, de um espelho

Hoje não tem aula, o professor não veio

Querendo brinquedo, carinho de alguém

Não paulada na cara, do monitor da FEBEM

Não queria um rifle FAO aos 12 anos

Eu não queria achar que o herói era o assaltante de

banco

Mas que cuzão que condena foi lá pra ensinar?

- Aí, moleque, a vitória só vem se estudar ou

trabalhar

- Aí, moleque, não faz o que o sistema quer;

Não borbulha sua vida nessa porra de colher!

Pelo contrário, deram cachimbo

Acionaram a contagem regressiva pro meu

homicídio

Derreti o meu tênis, relógio, jaqueta

A diversão da sexta virou uma doença

Agora oitão na padaria:

- Cala a boca, tia!

- Abre logo o caixa! Traz minha cara de alegria!

Entrei no hall da fama dos pedidos da polícia.

No papel, veio bica, dei cinco na barriga

Madrugada tem tiro, minha família vai tremer

Dar busca em hospitais, IML, DP.

Meu irmão revoltado de ver minha mãe chorar

Sonha com o juiz batendo o martelo pra me

condenar

Refrão (2x)

O menino de olho azul não vai passear domingo

O playcenter foi deletado pelo meu cachimbo

Que também roubou meu sonho de jogar no

Pacaembu

O craque perdeu pro crack, no Grajaú

- O que que eu faço? Acredito no negociador,

- Ou mato logo todo mundo e me mato, morô?

Sem ilusão, não tem colete nem carro

Vão me matar na viatura asfixiado

O Brasil não se comove, se sou eu que peço passe

Eu sou o ladrão doente ao boy na reportagem

- Aí, moleque, o crime é só desgraça!

- Choro na cobertura, choro na sua casa.

- Não dá futuro roubar um carro forte.

- Não arrisque a sua vida pela porra do malote!

É triste saber que minha mãe não vou ver mais

Nem beijar minha mina, nem ouvir “papai!”

- Quanto vale agora a merda desse cofre?

- Rubi, diamante, em troca da minha morte.

E o sistema dá o cachimbo pra beber seu sangue

Pra te ver morrendo no B.O., tentando pagar o

traficante

Meu coração de ódio queria paz, acredite!

Mas agora sou eu e o atirador de elite

Tá a dez metros da janela e atira muito bem.

Vai matar a vítima do crack e seu refém.

x. Eu tô fazendo o que o sistema quer (L11)

Pow pow o miolo voou, o boy caiu

Os gambé vieram a mil, farejando o sangue do tio

Que piada a blindagem, cerca elétrica

Se liga da seqüela, puta rica, viúva histérica

Eu não sou fictício, sou monstro agressivo

Que tá no noticiário, fazendo refém sangrar pelo

ouvido

Caí na armadilha, fiz pacto com o capeta

Trocaram minha caneta pela escopeta

Me colocaram num opala, debaixo da chuva de bala

A cento e oitenta, dando fuga da agência bancária

Me ensinaram que conforto só com o doutor morto

Com a sete meia cinco no pescoço

Por isso, eu toco o interfone, o zelador abre o

portão

Disfarçado de carteiro, caio pra dentro com a UZI

na mão

O boy cuzão que só vê morte pela sky, no sofá

Não foi pra Europa, agora assiste meu desejo de

matar

Agiliza os dólares, os diamantes

Se não, arranco teu coração, te afogo no rio de

Page 151: INSTITUTO DE LETRAS - Universidade Federal Fluminense

151

sangue

Quis ser advogado, mas perdi pra rua

Vim cobrar com juros meu sonho de formatura

Ódio lapidado por um pai bêbado, porco

Que batia na minha mãe, porque não podia comprar

o almoço

Fez de mim o lúcifer que o sistema quer

Que pela pedra deixa teu corpo pra perícia do

gambé

Refrão (4x)

Eu to fazendo o que o sistema quer

Pra mim não tem cherokee nem iate

Nem restaurante cinco estrelas, nem audi

Eu só como lixo, tomo tiro de investigador

Enquanto o boy tem clube de campo,

Conta no exterior

Então, fudeu, doutor, vou buscar a igualdade

De PT com adaptador de trinta, na crueldade

Não quero ser igual o tiozinho do bairro

Que trampa quarenta anos pra passar fome

aposentado

Nem igual minha mãe, doente, sem médico

Pedindo esmola com a receita, pra comprar o

remédio

Cuzão que come caviar e lagosta não sabe o que é

viver um minuto nessa porra

Pega o dono da mansão e põe no barraco,

Quando o filho dele chorar, sem ter nada no prato

Não vai pra rua implorar de mão estendida

Vai catar a BMW da burguesa vadia

Vai subir corrente, se pá, até os dentes

Vai ter festa no necrotério, o legista contente.

Seu chip no peito não vai me segurar

Vou deixar seus pedaços pro satélite rastrear

Se não blindar o coração, não tem cooper na praça

Se não por armadura, não tem surfe na praia

Quando for pro teatro ver Shakespeare com sua

mulher

Pá pá na cabeça, como o sistema quer

Refrão (4x)

Sou outro brasileiro favelado, sem sorte

Que vai morrer roubando o carro forte

Que vai estar agonizando, no chão do Itaú

Vendo a risada do boy porco de olho azul

Uma chance em um milhão de vencer como

bandido

100% de chance de mofar num presídio

História real da família da periferia

Vem conferir quantos tem passagem na polícia

Vê quantas mães tem santinho guardado

Do filho que por um real foi executado

Espantoso, surpresa, pra quem tem tudo na mesa

Fartura no armário é dono de empresa

Me diz se não parece filme do seu dvd

O ladrão encapuzado, invadindo o DP

O delegado metralhado no meio da rua

O caixa eletrônico na caçamba da perua

Na real é ódio, faca no coração

A busca a qualquer preço da ascensão

Preferia tar na escola, na biblioteca

Tar no shopping, comprando pra minha filha uma

boneca

Ter cartão de crédito, cheque cinco estrela

Não tar matando alguém pra por o leite na geladeira

Mas infelizmente o que o sistema quer

Sou eu com fome atirando na madame de chofer

Refrão (4x)

xi. Discurso ou revólver (L12)

A igualdade social é só em conto de fadas,

Felicidade é só em sonho, só em mágica.

Acredito na palavra ou na metralhadora.

Revolução verbal ou aterrorizadora.

Vamos queimar constituição com coquetel molotov,

Carro bomba no Congresso: tic tac, explode!

Suplicar pro gambé derrubando sua porta

não bater na sua mulher, não atirar nas suas costas.

Até quando comer resto, lavar banheiro,

Abrir o boy no meio na ilusão de dinheiro,

Ser exterminado como judeu em Auschwitz,

Mostrar pra Globo o que é viver no limite.

À custa Atlanta queimando na sua frente,

A SS agora veste o cinza da PM,

De braço cruzado, é só miolo espalhado no chão,

discurso ou revólver, tá na hora da revolução!

Refrão (2x)

Tá na hora de parar de mofar no presídio,

De estar no necrotério com uma par de tiros,

De ser o analfabeto comendo resto,

Viciado que o denarc manda pro inferno.

Fizeram da sua rua filial do Vietnã,

Deram rifles pras crianças, estupraram sua irmã,

Exilaram na favela o cidadão na teoria,

Oprimido, censurado, no país da democracia.

Te dão crack, fuzil, cachaça no buteco

Esse é o campo de concentração moderno.

Hitler, FHC, capitão do mato,

Bacharéis em carnificina, mestrado em holocausto,

Chega de bater palma tomando tiro, facada,

De prato vazio, vendo o boy suar na sauna

O sistema te quer no viaduto, com água na boca

Page 152: INSTITUTO DE LETRAS - Universidade Federal Fluminense

152

Com a garrafa cortada na mão, esperando a

Kombi trazer sopa

No chiqueiro do navio negreiro, consertar a

porta,

Morto pelo senhor do engenho com farda e pistola,

Que só em cabeça de pobre descarrega sua

munição,

Discurso ou revólver, tá na hora da revolução.

Refrão (2x)

Prevejo o mercado saqueado, bala de borracha,

Escudo do choque, tomando pedrada,

Guerra civil em praça pública:

- Socorro, professor!

Com sangue no rosto, mordida de cachorro,

Sem teto, sem terra, sem prespectiva,

Sem estudo, sem emprego, sem comida,

O pavil da dinamite tá aceso,

- Qual será o preço pra eu ter os meus direitos?

Sequestrar, atirar, queimar pneu na avenida,

Invadir a fazenda improdutiva,

Só jogamo ovo, por isso, nada mudou,

Quem sabe, o Presidente na mira do atirador.

Em São Paulo, trinta e cinco por dia.

- Chega! Tolerância zero.

Ou cavar trincheira, serial killer do planalto.

Continua em ação: discurso ou revólver, tá na hora

da revolução.

Refrão (2x)

A favor do inimigo: repressão, desinformação,

O domínio dos dois caminhos pra revolução.

Caminho um: a voz do povo, aqui, não é a

voz de Deus,

Se tua casa é de caxote de feira, problema seu.

Tanto faz sua filha no motel, ganhando trocado,

Tanto faz seu filho com a doze, matando vigia no

assalto.

Se vier pro asfalto fazer passeata,

Aí o PM te mata, te faz engolir bandeira e faixa.

Caminho dois: desconhecendo cenário político,

Onde jogar granada, quem é o nosso inimigo

- Entendeu por que não tem escola pra você?

Toma UZI e me diz quem tem que morrer,

Não adianta ser milhões, se não somos um,

Ação coletiva, objetivo comum,

Discurso ou revólver? Não interessa a opção.

Sem união, é impossível a revolução.

Refrão (2x)

xii. Sem luz no fim do túnel (L13)

A carniça no mato com mosquito, puta fedor

Me mostra que a luz no fim do túnel apagou

Não acredito na paz, no futuro

O som da metralhadora me traz um crânio com uma

pá de furo

Enquanto você tá sonhando com a justiça,

O moleque de doze troca tiro com a polícia.

Pega o boy, arranca os dentes, no sonho do

videogame

Toma 5 do PM, é enterrado como indigente.

Outro corpo na mansão, pra mim, é só o começo

Sangue, lágrima: dinheiro a qualquer preço.

Criança gritando, dor, desespero.

Vendo a mãe tomando facada, arrastada pelos

cabelos

No porta-malas com capuz, agora é só Jesus!

- Cadê a senha? Ou o padre abençoa a sua cruz.

Colaborou, falou dos filhos:

- Me deixa vivo, leva tudo.

Menor muito louco fez outra viúva de luto.

No céu tem fogo, mas não é festa junina,

É a favela de cima querendo ponto de cocaína.

Soldado do tráfico, carbonizado, rotineira paisagem

Ao futuro da criança sem cabeça, identidade

A vitrine do crime, com carro, ouro no pescoço

Atrai mais o moleque que o fogão sem almoço

Não quero vassoura igual meu pai, vou ser tipo os

manos da rua

Invadir o condomínio:

- Deita, filho da puta!

- Aí, tia, seu filho criado com afeto

Tá no chão da UTI, sonhando com o médico

Mijado, cagado, ferimento do tiro inflamado

Gritando “socorro!” pro enfermeiro,

Implorando pra ser medicado.

Eduardo, Dum Dum, Erick 12: Facção

Não canto esperança, porque não vendo ilusão.

Malote na mão, vigia no chão, pow, pow!

A luz do fim do túnel apagou.

Refrão (2x)

A luz do fim do túnel apagou

Caixão lacrado, glock no doutor

A luz do fim do túnel apagou

Malote na mão, vigia no chão, pow, pow!

País do caralho não me deixa ter um carro,

Um bom tênis comida, um salário.

Nascido pra passar fome, com mão na parede,

Pra sonhar com B.O. bem sucedido na Mercedes.

- FHC, pega sua arma, seu crack, e vai pro inferno!

- Põe bolha na colher e faz presença pro seu neto.

Quem sabe, o excluído invada sua fazenda

Te dê facada, te ponha uma venda, e assim você

entenda

Que, por dinheiro, o ladrão pega o galão de gasolina

Incendeia a criança que seje, sua família

Não tem livro na favela, biblioteca

Page 153: INSTITUTO DE LETRAS - Universidade Federal Fluminense

153

Sem centro cultural, só estilete na cara da cela

Quantos mais transformados em carniça, no mato

Decapitado, pulso algemado, torturado

Por um real, um papel, uma grama

Sempre por migalha, meu povo desfigurado na

ambulância

Condenados ao segundo grau, no máximo

A faxineira grita “assalto!” pro empresário.

Quatro da manhã, esmagado no busu até o Centro

Pra, no final do mês, não ter um grão de alimento.

Ninguém queria tá matando o gerente no banco

Nem no flat, proporcionando pânico.

É que uma hora cansa o cheiro de esgoto

O barraco na margem do rio, aonde boia um rato

morto

Pro meu povo não tem arquiteto, juiz ou empresário

É só o tio que vende bala e passa embaixo da

catraca

Ou o traficante, descarregando seu rifle FAO

Ou a puta, no motel, fazendo sexo oral.

Ou projeta uma escola, a cada 4 presídios,

- Deu 180 mil presos! Resultado atingido.

Só prevejo o boy chorando, cena de terror.

A luz do fim do túnel, pow, pow, apagou.

Refrão (2x)

xiii. Apologia ao crime (L14)

Não queria te ver na maca, cuspindo sangue, quase

morto,

No hospital com uma par de tiro, tomando soro.

Nem catando pioneer do Escorte,

Nem enrolando a língua, morrendo de overdose.

Esquece a doze, o cachimbo, a rica cheia de joia.

Já vi, por um real, bisturi de legista em muito noia.

Não seja só mais um número de estatística,

Um corpo no bar, vítima de outra chacina.

É embaçado saber que a propaganda na TV

De carro, casa própria, não foi feita pra você.

Saber que pra ter arroz, feijão, frango no forno

Tem que pegar um oitão e desfigurar um corpo.

Entendo o motivo, sou fruto da favela.

Sei bem qual a dor de não ter nada na panela,

De dividir um cômodo de dois metros em cinco,

Um quarto sem luz, água, sem sorriso.

Só que, truta, o crime é dor na delegacia,

Choque, solidão, agonia.

Te dão uma ponto quarenta, com silenciador e mira

Pra você estraçalhar com o caixa da padaria,

Da mercearia, drogaria,

Pra que um dia sua família reze sua missa de sétimo

dia.

O boy de rolex, cherokee vidro fumê,

É armadilha do sistema pra matar você

Refrão (2x)

Não caia na armadilha, siga a minha apologia:

Mesmo de barriga vazia, esquece a joia da rica!

Não caia na armadilha, siga a minha apologia:

Sua missa de sétimo dia tá de importado na

avenida.

Corrente de ouro, carro do ano, tudo ilusório.

Farinha, bicarbonato, velório.

Traficante, vi vários, com uma pá de funcionários

De BMW, dando dinheiro pra delegado,

Comemorando o ano novo, descarregando a traca

pra alto

Terminando sem um centavo, na doze do soldado.

De fuzil, granada, nove,

Nunca ninguém voltou com um malote do carro

forte.

Sempre o mesmo fim: mãe chorando no caixão

O mano planejando rebelião na detenção.

Mordida de cachorro, esculacho do GOE

Só quem tá lá dentro sabe o preço de matar o boy.

Sei que é muito pouco sonhar apenas com comida.

Quem não quer ter uma casa com piscina?

Um cargo bom ao invés de comer lixo?

Um carro importado último modelo esportivo?

Só que o conforto não vem através do revólver,

Do sangue da refém milionária, temendo a morte.

O gambé não quer saber seu motivo,

Quer sua cabeça na parede, igual um porco abatido.

Não interessa se é pro remédio da sua mãe,

Pra fumar crack ou beber champagné:

Se invadir o condomínio gritando “assalto!”,

Caiu na armadilha, até no teto vai ter seus pedaços.

Refrão(2x)

Querem você virando a cadeia, matando estuprador,

Exigindo o governador, o juiz corregedor.

Querem você, num Opala, metralhando um bar,

Chacina de número trezentos pro SPTV noticiar.

Por isso, não tem um de nós no Congresso, na

Câmara

Aqui é só ladrão em estado vegetativo, na cama.

Ou na cadeira de roda, tiro na espinha,

Por um par de tênis, um risco de cocaína.

Nossa vida vale menos que um real.

Aqui, pobre só presta pra doar orgão no hospital.

Por isso, vai pro colégio, tentar ser o arquiteto.

Não faça os porcos aplaudirem mais um noia

analfabeto.

Que bate na coroa pra fumar um rádio,

Da bonde em traficante, amanhece esquartejado.

Pega sua três-oito-zero e faz a planta do banco,

Atira no segurança, chuta o refém que tá chorando,

Cata o malote, esvazia o cofre,

Descarrega na cabeça do gerente sua nove.

Ou põe a roupa de carteiro, pra enganar o porteiro,

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154

Enquadrar o prédio inteiro e roubar joia, dinheiro,

Pras seis horas eu te ver no cidade alerta,

Algemado, com hematoma, tipo cachorro numa

cela.

O sistema tem que chorar, mas não com você

matando na rua.

O sistema tem que chorar vendo a sua formatura

Refrão (2x)

xiv. Justiça com as próprias mãos (L15)

De joelhos, aos meus pés, tá inofensivo,

Nem parece o monstro do horário político,

Que com a dor do indefeso compra a mercedes,

Coloca obra de arte valiosa na parede.

Eu tô aqui defendendo o interesse da favela

Que quer teu sangue pra preencher o vazio

da panela.

Vim fazer vingança, buscar indenização

Pro seu crime hediondo, justiça com as próprias

mãos.

- Tá aberta a seção. Começa o julgamento.

- Tenho provas contundentes pro seu sepultamento.

Oitão na cabeça:

- Fica quieta, vadia!

Transformou o muleque do pipa num sanguinário

homicida.

Pôs a menina de dez anos fazendo ponto,

Sem estudo, anal, oral, por quinze conto.

Na porta da escola, deu crack pro estudante.

A boca dele jorrou sangue na dívida com o

traficante.

- Cadê a verba do menor infrator queimando na tv,

Suficiente pra Harvard, pra FGV?

Invés de faculdade pro meu filho,

Abre seu crânio com uma M-16 trinta tiros.

Faz uma pá de futuro promissor feliz

Tá no banco dos réus, ouvindo a sentença do juiz.

- Quantas facadas merece um porco

Que faz o macarrão do lixo ser meu almoço?

Refrão (2x)

Pelo sangue da guerra civil,

Pela criança dormindo no frio,

Pow, pow,pow,pow

- Vai pra puta que o pariu!

Pelo noia morto do rio,

Invés de escola me deu um fuzil.

Pow, pow,pow,pow

- Vai pra puta que o pariu!

Agora chora igual nenêm sem mamadeira,

faminto,

A cada soco na cara:

- Por favor, me deixa vivo!

Vou dar choque, com a frieza do investigador.

Arrancar sua unha, igual no DP, doutor!

Vamu ver se corre sangue azul na veia do rico,

Quebrar seu dente, tipo choque no presídio.

Eu não sou louco, se pá, é muito pouco!

Tinha é que com uma .40 arrancar seu olho,

Pra você sentir o que o meu truta sentiu,

Quando sua guerra mandou seu rosto pra puta que o

pariu.

- Não se preocupa! A tortura é so um método

usado,

Pra investigar, reprimir, no sistema carcerário.

O choque no saco que te faz tremer

Faz parte do currículo de quem não tem o que

comer.

Também algema sem flagrante, cuspe na cara,

Civil pisando no pescoço, querendo granada.

Você treinou sua polícia pra ser minha inimiga,

Pra servir e proteger só a cadela rica.

Acabou a curtição na noite de Paris,

Sua torre Eiffel agora é coronhada no nariz,

Financiou suas férias, diversão no carnaval,

Com aposentado doente, sem leito no hospital.

Fez quem sonha com arroz pagar etilista

pro seu terno.

Só vejo uma condenação: a morte, no seu processo.

Refrão (2x)

O prego do condomínio tem que entender

Que, se tem pânico em Alphaville, é porque você

deu a PT.

Que o mano armado de doze é só um fantoche

Programado pra matar pelo dono do porche.

Que também tem um jato que vai pra gali noite e

dia

Pra abastecer de farinha toda periferia.

O boy acha que quem merece a morte é o que grita

“assalto!”,

O que grita “dá a chave! Sai do carro!”,

Não o branco articulado e bem vestido

Que não saca o cano, mas roubam até nos Estados

Unidos,

Cuzão na TV diz que urna não é pinico,

Que voto consciente muda o cenário político,

Que é preciso investigar, antes de votar.

Mas cadê biblioteca, escola pra eu me informar?

Quem põe o almoço embaixo da blusa do mercado,

Não tem pra ler jornal nem cinquenta centavos.

Só tem o palanque e o horário gratuito

Pra adivinhar que sigla tem menos ladrão no

partido.

Réu, você banhou de lágrimas seu mandato.

Me deu o crack e uma doze, cano cerrado.

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155

Como pena, vou explodir sua cabeça com ela,

Autor intelectual do massacre na favela.

Seu corpo vai ser exposto em praça pública,

E servirá de exemplo pra engravatados filhos da

puta.

- Aí, pra político porco, o veredicto é esse aqui,

mano: pow, pow!

Refrão (2x)

xv. A paz tá morta (L16)

Ontem, à noite, ouvi os tiros,

Sirene de polícia

Amanhece a rotina,

Me traz outra carnificina.

Em lágrima de mãe,

Filho ensangüentado.

Um bar em cada esquina,

Sempre caixão lacrado.

Não vejo mais crianças felizes brincando no parque

Agora estão com ódio no peito, com uma doze ou

fumando crack.

Invadindo as mansões,

Proporcionando o terror.

A luz no fim do túnel

Infelizmente, aqui se apagou.

Refrão (2x)

A paz tá morta,

Desfigurada no IML

Sangue no chão,

Revólver na mão,

A marcha fúnebre aqui prossegue

O moleque de dez anos segura o seu fuzil

Futuro soldado metralhado, no chão da injusta

guerra civil

Embaixo do viaduto,

Numa caixa de papelão,

Uma família dorme no frio,

Comeu resto achado no chão.

Aqui não existe formatura,

Só vejo pulso algemado

Corpo decapitado no mato,

Futuro desperdiçado.

Carbonizaram nossa paz,

Mataram a esperança,

Só deixam, como herança,

Uma glock pra criança.

Refrão (2x)