6 a 19 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT 12 � TEMA VIVER EM TEMPOS DE VÍRUS Roberto Vecchi Helder Macedo HELDER MACEDO Inglaterra Saudades do Brexit Agora é de bom tom bater-lhes (aos enfermeiros) distantes palmas agradecidas. Gente que inclui uma percentagem considerável de imigrantes. Os que o Brexit tenciona mandar às urtigas Odeio cruzeiros marítimos. Essas falsas viagens para parte nenhuma que as agências turísticas (ia escre- ver funerárias) costumam anunciar nesta altura do ano como quaren- tenas primaveris de fim de vida. E que consistem basicamente em casais geriátricos em prenúncios de viuvez partirem de um porto para voltarem ao porto de partida. Como se fosse possível regressar de outras vidas que houvesse de per- meio, se outras pudesse ter havido. Mas agora muitos nem regressam, ficam de quarentena intransitiva. E portanto agora, nesta confinada Londres primaveril – com sol, ca- lor, céu azul, ruas sem carros e sem gente, árvores como mastros flori- dos soprados por frescas brisas que parecem vindas do mar – tenho pensado muitas vezes no oportuno aviso do Álvaro de Campos, no Opiário: “Esta vida de bordo há-de matar-me,/ são dias só de febre na cabeça/ e por mais que procure até que adoeça/ já não encontro a mola pra adaptar-me”. Mas também é verdade, como ele também diz, que “os ingle- ses são feitos pra existir: a gente deita um vintém e sai um deles a sorrir”. E de facto, quando vou à rua para o meu passeio diário e aproveito para gastar os possíveis vinténs nas lojas que ainda haja abertas, lá os vejo, se não neces- sariamente a sorrir por detrás das máscaras protetoras, certamente a fazerem equânimes filas de quilómetros (bom, está bem, de centenas de metros com inter- valos de dois metros) em volta do quarteirão do supermercado local. Desisto e regresso ao meu con- finamento. Porque também já se sabe, porque o Álvaro de Campos Luís Pitarma O enfermeiro português a que Boris Johnson agradeceu também avisou, que “o comissário de bordo é velhaco”. Que é como quem diz, não se sabe o que vai acontecer até ao fim desta viagem para parte nenhuma. Exceto, é claro, que a partir de certa idade morre-se muito. E também que são os mais pobres de qualquer idade que tendem a morrer antes dos mais ricos de qualquer idade. Prevê-se, em todo caso, que para os sobreviventes vai haver uma re- cessão económica tão severa quanto foi a grande depressão de há quase um século. Mas quem se vai lixar não serão, por exemplo, os meus simpáticos vizinhos em calafeta- da quarentena, mas os sacrificiais trabalhadores que neste momento sustentam a vida do resto da popu- lação. O chamado pessoal auxiliar, como se o seu “auxílio” não fosse fundamental para a sobrevivência de todos. POR EXEMPLO, OS DESPROTEGI- DOS ENFERMEIROS e enfermeiras nos hospitais superlotados e mal equipados do Serviço Nacional de Saúde. Essas mesmas e esses mesmos que, antes da crise, já eram tão mal pagos que por vezes tinham de recorrer às sopas dos sem abrigo para sobreviverem. A desigualdade económica na Inglaterra é a maior da Europa. Sim, mas agora, todas as quintas-feiras às 20 horas, é de bom tom ir à porta de casa para lhes bater distantes palmas agradecidas. Até o primeiro-ministro Boris Johnson foi à porta dele, antes de o levarem para o hospital e ter sido salvo com o auxílio dessa gente marginalizada por governos como o dele. Gente ROBERTO VECCHI Itália ‘Claustrosofias’ Uns 12 anos atrás, num pro- jeto de investigação dedicado à literatura do cárcere, usei um neologismo “claustrosofia” que tentava definir melhor a relação entre conhecimento e confina- mento carcerário. Era na verdade uma simples lexicalização de um livro interessante e problemático de um pensador conservador, Carl Schmitt que, durante a detenção pelo seu envolvimento com o nazismo, recolheu alguns escritos publicados no volume Ex capti- vitate salus. A ideia de um “saber da cela” surge com evidência nos muitos escritos que foram pro- duzidos em regime de detenção, de Gramsci a Mandela. O termo, claustrosofia, tornou-se uma ferramenta útil para pensarmos melhor nos Papéis da prisão, de Luandino Vieira, e teve um certo êxito em teses defendidas em algumas universidades de língua portuguesa. Como acontece com a crítica abstrata, nunca pensei que o ter- mo pudesse encontrar um apego tão autobiográfico, a reflexão sobre o saber no espaço fechado (felizmente doméstico), em tem- pos como os atuais, de isolamento devido à Covid19. Que saber sur- girá das longas semanas em casa que, em Itália, a partir do começo de março se tornaram prescritivas para todos? O vírus está a criar, falo de um dos contextos euro- peus mais afetados pelo contágio, pela contabilidade assustadora de doentes e mortos, um sentimen- to de vulnerabilidade profunda. Reinscreveu todos no lugar de vítima, mas de um perpetrador desconhecido, até pouco definível. clássicos da política moderna, não basta: é necessário que o soberano garanta também a possibilidade da felicidade. A GRANDE DISCUSSÃO EM ITÁLIA hoje é quando (e como) será reati- vada uma reaproximação da nor- malidade. Sem pensar que a ideia do retorno poderá nunca concreti- zar-se. O que faz que todos mergu- lhemos num poço nostálgico. Qual será o conhecimento resultante desta fragmentação que vivemos? Quem leciona diariamente de casa, como eu, talvez possua antenas mais orientadas para enxergar o futuro próximo. O nosso trabalho de professores está garantido sem grandes diferenças pela migração que ocorreu do formato presen- cial àquele online. Percebe-se no entanto que a relação com os alunos curiosamente mudou, mais próxima na maior distância. Há uma expectativa forte de encontro na sala virtual, há uma procura de contacto, de eliminação de muros e distâncias. Parece paradoxal, mas a dependência total da técnica que nos torna mais vulneráveis funda outras possibilidades de estarmos juntos mesmo que separados. Online os alunos perdem timidez e hesitações e tornam-se mais ágeis e dialógicos. O vírus está a criar, falo de um dos contextos europeus mais afetados pela contabilidade assustadora de doentes e mortos, um sentimento de vulnerabilidade profunda O termo recorrente, “distan- ciamento social”, metaforiza uma condição que altera as relações humanas em profundidade. É suficiente ir às ruas, nos serviços essenciais, para percebermos que o distanciamento não é uma condição sofrida, mas procu- rada. É a primavera dos medos e dos silêncios das ruas, esta. O que sobreviverá deste distan- ciamento inédito e normativo, sempre mais entranhado nas relações, é cedo para dizer. Mas haverá muitas mais distâncias no horizonte que nos aguarda. Alguns teimam em pensar num horizonte utópico, pelas fraturas que favorecem as regenerações, outros pelo contrário alimentam ideias distópicas e negativas que perpetuarão as distorções atuais. Conservar a vida, como dizem os