1 ÍNDICE ÍNDICE ............................................................................................................................ 1 SÍNTESE .......................................................................................................................... 3 INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 5 CAPÍTULO 1: CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA, SOCIAL E POLÍTICA ......... 7 1.1. Ruína da Monarquia .................................................................................................. 8 1.2. Implantação da República ....................................................................................... 11 1.3. Ditadura Militar de 1926 ......................................................................................... 19 CAPÍTULO 2: O LIBERALISMO ................................................................................ 22 2.1. Marcos históricos .................................................................................................... 23 2.2. Conceções de liberdade ........................................................................................... 26 2.3. Liberalismo: conceito pluridimensional .................................................................. 28 2.4. Falsa antinomia: a liberdade e a autoridade ............................................................ 29 2.5. Igualdade Jurídica versus Igualitarismo .................................................................. 30 2.6. Individualismo, jusnaturalismo e contratualismo ................................................... 33 2.7. Estado: uma necessidade e/ou uma ameaça ............................................................ 35 2.8. Negação das posições libertária e estatista ............................................................. 38 CAPÍTULO 3: O LIBERALISMO EM RAÚL PROENÇA ......................................... 41 3.1. Liberdade, o valor supremo .................................................................................... 41 3.2. Primado do Indivíduo: no epicentro da visão liberal de Raúl Proença ................... 46 3.3. Proença e a análise crítica da conjuntura política ................................................... 47 3.4. Interpenetração das doutrinas individualista e solidarista ....................................... 51 3.5. A liberdade e a reciprocidade .................................................................................. 53 3.6. Falsa contradição: Liberdade/Autoridade ............................................................... 54 3.7. Liberdade e Igualdade: falsa dicotomia .................................................................. 55 3.8. Repúdio da conceção rousseauniana de democracia ............................................... 58 3.9. Articulação entre o Liberalismo e o Socialismo ..................................................... 61
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político, bibliotecário, escritor e inflexível democrata), somos confrontados,
inevitavelmente, com um raciocínio que se encontra, não raras vezes, esparso e
aparentemente desconexo entre si. No entanto, é de um pensamento situado que se trata,
na medida em que surge vinculado às condições concretas da realidade, repercutindo as
suas tensões, dinamismos, pulsões e vicissitudes mais visíveis, mesmo que ainda hoje
algumas delas possam permanecer, em certa medida, atuais 1.
E, se todo o pensamento é situado, importa conhecer o enquadramento político,
social e histórico à luz do qual as ideias e atitudes do nosso autor ganharão maior
inteligibilidade.
Possuindo, todavia, algo de absolutamente originário e singular, a sua reflexão
insere-se naturalmente nos mais diversos condicionamentos epocais, referindo António
Reis que Raúl Proença é «Simultaneamente filho do seu tempo - doutrinário, político e
cultural - e em luta contra o seu tempo» 2.
Embora curta, a sua vida acompanhou o desenrolar de múltiplas transformações
da mais distinta natureza. Importa destacar que assistiu ao declínio e derrube da
monarquia liberal, à implantação e ulterior crise da 1.ª República, aos episódios de
interregno ditatorial (Ditadura de Pimenta de Castro e a experiência sidonista), à
1 O confronto entre a sua vida e as várias condicionantes históricas e epocais chegaria a atingir
dimensões tão heroicas quanto trágicas.
2 António Reis, Raúl Proença: Biografia de um Intelectual Político Republicano, vol. II,
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Temas Portugueses, Lisboa, 2003, p. 231.
8
instauração da Ditadura Militar, à emergência do autoritarismo do Estado Novo e, por
último, à frustração das várias tentativas de reposição do regime republicano.
1.1. Ruína da monarquia
Uma vez que as aspirações, ideais e promessas (liberdade e justiça social)
trazidas pelo revolucionarismo liberal se haviam frustrado, o regime da monarquia
constitucional estava moribundo, sobretudo após a crise de 1890, ameaçando sucumbir
a curto prazo.
Alguns dos principais fatores que, nos finais do século XIX, vieram debilitar a
imagem da monarquia, incentivando a reação hostil da oposição, foram a descrença
tanto dos monárquicos como dos republicanos nas instituições monárquicas vigentes,
originando uma profunda instabilidade política e governamental, bem como tensão
social 3. Com a degradação crescente das condições de vida e de trabalho (insuficiência
salarial e acréscimo do custo de vida), o surto da emigração e das greves intensificou-se.
De igual modo, o pauperismo, a fome, a insatisfação das classes baixas, o deficiente
desenvolvimento industrial e endividamento interno e externo, as múltiplas bancarrotas
e défices orçamentais, bem como a censura à imprensa, favoreceram a decomposição
progressiva do regime.
Mas, além disto, outras razões relevantes se perfilavam. O
pseudoparlamentarismo reinante, ou seja, a subordinação servil dos parlamentares aos
interesses das oligarquias e clientelas reinantes que os patrocinavam, o personalismo
entendido como sobreposição das personalidades às ideias 4 , o esbanjamento, a
ineficácia governativa ou administrativa na realização dos programas políticos, as
conspirações, o obstrucionismo deliberado à ação governativa, o défice programático
dos partidos, as múltiplas dissoluções do Parlamento, o falseamento e manipulação dos
resultados eleitorais, o caciquismo, as dissidências partidárias, a corrupção política,
assim como a cedência governativa perante o episódio do «Ultimato Inglês», foram
3 Veja-se Douglas Lanphier Wheeler, História política de Portugal de 1910-1926, trad. de J.O.M.
e Cristina Correia, vol. 213, Publicações Europa-América, Estudos e Documentos, Mem Martins, 1978.
Ao longo deste capítulo, esta é a obra que mais nos orientará, parecendo-nos apresentar uma descrição
histórica fiável e rigorosa, não subestimando, claro está, outras obras que tivemos em real consideração.
4 Equivale a dizer que não se seguem os homens pelo programa que defendem, mas o oposto, ou
seja, segue-se o programa pelos homens que o defendem.
9
alguns dos fatores que suscitaram, de forma inequívoca, o descontentamento, o
pessimismo e a frustração face à monarquia, contribuindo para impulsionar o grupo dos
que apoiavam a causa republicana. O declínio ou colapso do regime monárquico estava
mais do que justificado e as consequências não tardariam.
Nos primeiros anos do século XX, as dissidências partidárias resultaram na
fragmentação dos principais partidos monárquicos. Neste âmbito, o partido Regenerador
cindira-se nos partidos Nacionalista e Regeneradores Liberais, ao passo que do grupo
dos Progressistas proveio o dos Progressistas Dissidentes.
A satirização, caricaturização ou ridicularização políticas foram fenómenos
suplementares que acentuaram a desilusão crescente face à política nacional.
No artigo «A reunião regeneradora», Raúl Proença fustigou o mencionado
personalismo que dominava o sistema partidário monárquico 5.
A infiltração progressiva do republicanismo na sociedade portuguesa ficou a
dever-se, sobremaneira, à campanha republicana de forte propaganda contra a
monarquia moribunda.
A rápida republicanização de certos setores da sociedade portuguesa terá sido,
assim, o resultado tanto do ativismo republicano como do fracasso da Monarquia 6.
Além disto, o desfasamento e desconfiança dos próprios monárquicos face à frágil
monarquia davam um forte impulso à disseminação do ideário republicano 7.
Ilustre colaborador na propaganda dos ideais republicanos, Raúl Proença
desenvolveu na imprensa republicana da época, como se pode constatar, grande parte da
sua intensa intervenção cívica e «militantismo republicano» 8.
Entre 1906 e 1908, o eminente jornalista de ideias tornara-se militante do Partido
Republicano. Aos ideais defendidos pela monarquia contrapôs a exigência de liberdade,
assim como as noções de direitos cívicos e políticos. As promessas monárquicas
frustradas e as consequências funestas de muitas experiências governativas acabaram
por lhe inspirar profunda desilusão, encorajando-o a enaltecer a República.
Não sendo possível aos republicanos assegurar uma imediata vitória eleitoral,
por causa do caciquismo reinante que promovia a manipulação dos resultados eleitorais,
eles optaram, a par do referido propagandismo republicano, por um republicanismo
5 Veja-se Vanguarda, 8 de fevereiro de 1909.
6 Veja-se Douglas Lanphier Wheeler, História política de Portugal de 1910-1926, p. 68.
7 Esta desconfiança e indiferença aparece sublinhada também em Jorge Morais, Os Últimos Dias
da Monarquia: 1908-1910: da esperança de tréguas à instauração da República, Zéfiro, Sintra, 2009.
8 António Reis, Raúl Proença: Biografia de um Intelectual Político Republicano, vol. I,
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Temas Portugueses, Lisboa, 2003, p. 78.
10
radical e revolucionário. Em oposição aos processos eleitorais e evolutivos, a solução
golpista e conspirativa, que se tinha tornado a fórmula predominantemente aceite desde
o Congresso Republicano de Abril de 1909, estaria na origem de sucessivos
pronunciamentos e conspirações armadas para derrubar a monarquia. A Carbonária 9,
sob o impulso de Luz de Almeida, e a Maçonaria 10 deram um contributo decisivo para a
organização dos preparativos revolucionários.
Embora a experiência franquista (1906-1908) tivesse surgido, de início, imbuída
de um desígnio de inequívoco reformismo social, educativo e administrativo, bem como
de intenções liberais, plasmadas na promessa de liberdade de opinião e de imprensa,
foram inúmeros os fatores que, fazendo antever uma inflexão ditatorial, acabaram por
adensar o clima de agitação e hostilidade sociais, de animosidade e revolta dos
deputados republicanos oposicionistas 11 . A simpatia e o fascínio iniciais com que
muitos intelectuais e vários setores sociais a acolheram depressa começaram a esboroar-
se. Entre as múltiplas razões para o fracasso da experiência franquista 12, consideram-se:
a famosa questão dos adiantamentos feitos à família real a 30 de agosto de 1907, por
decreto ditatorial; a repressão política vigente; a aprovação, a 11 de abril de 1907, de
uma lei de imprensa que sujeitava também os diretores dos jornais (e não só os
jornalistas) à responsabilidade penal; a suspensão da Câmara dos Deputados, em 1907,
sem um prazo determinado para a sua reabertura; e, por último, a crise ou greve
académica coimbrã de março de 1907 13.
O apoio incondicional que D. Carlos dera a Franco, que ficou bem expresso
numa entrevista concedida a 11 de novembro de 1907, fizera dissipar, por completo, o
apoio dos dirigentes dos partidos monárquicos.
Devido aos inúmeros malefícios que se lhe reconheceu, a governação ditatorial
de João Franco acabou por beneficiar a causa da republicanização, sendo que muitos
dos monárquicos decidiram filiar-se no Partido Republicano.
9 Sociedade secreta com intuitos revolucionários, cujas origens remontam à segunda metade do
século XVIII, em França. Surgida em 1844 em Portugal, dela se serviu a Maçonaria para o assalto ao
poder, tendo desempenhado um papel fulcral no derrube da monarquia. 10 Sociedade secreta que surgiu historicamente eivada de fins altruístas, tendo, atualmente,
ramificações por todo o mundo.
11 Consulte-se António Reis, op. cit., vol. I, p. 77.
12 Observe-se como Douglas Lanphier Wheeler (Professor Emérito de História na Universidade
de New Hampshire, Durham) retrata a governação franquista: «censurou a imprensa, aprisionou os
oposicionistas e começou a pôr em prática as suas reformas por meio de decretos», tendo renunciado à
premissa elementar da aprovação parlamentar ou eleitoral (História política de Portugal de 1910-1926, p.
64).
13 Consulte-se António Reis, op. cit., vol. I, p. 76.
11
A agitação grevista operária em 1907 e o decreto de 20 de Junho desse mesmo
ano, de caráter mais repressivo que a lei de imprensa, provocaram duras reações. As
prisões arbitrárias de alguns dirigentes republicanos fizeram precipitar uma revolta
republicana a 28 de janeiro de 1908, que acabou por gorar-se. O decreto assinado por D.
Carlos a 31 de janeiro de 1908, que estipulava a deportação para as colónias dos que
comprometiam a ordem pública, descurando, deste modo, as imunidades parlamentares,
fez pressentir o regicídio. De igual modo, a politização das classes operárias urbanas,
que passaram a sentir-se estimuladas para a reivindicação da mudança política, teve
influência decisiva na eclosão da Revolução republicana 14.
Após o regicídio em 1908 e eliminado o franquismo, D. Manuel tentara
viabilizar uma solução governativa conciliatória, de timbre mais liberal, a que se
convencionou atribuir a designação de governo de acalmação 15 de Ferreira do Amaral.
Embora tivesse procurado assegurar a continuidade do regime monárquico, através de
determinadas concessões face às exigências dos republicanos, de modo a apaziguar
ânimos mais exaltados, esse esforço acabou por se revelar insuficiente.
1.2. Implantação da República
A 5 de outubro de 1910, o regime republicano sucedeu à decrépita monarquia.
Se bem que Raúl Proença tivesse feito a apologia do regime republicano,
assinalando a sua suposta superioridade moral e política, rebateu, no artigo «A Liga
Nacional de Instrução» 16, a tese do messianismo político, que, neste caso, consistia na
crença de que a República era a solução para todos os males, ideia veiculada pela
propaganda republicana.
Mas alguns republicanos pensavam o contrário, julgando que a mudança política
preveniria não só a perda das colónias africanas, como uma possível perda da
14 Consulte-se Douglas Lanphier Wheeler, op. cit., p. 55.
15 Jorge Morais, na obra Os Últimos Dias da Monarquia: 1908-1910: da esperança de tréguas à
instauração da República, deu especial destaque a esta experiência governativa. Jorge Morais é um
escritor português nascido em 1955, com inúmeros estudos e ensaios produzidos acerca do período de
transição da Monarquia para a República.
16 Veja-se Raúl Proença, A República, 21 de abril de 1908.
12
independência a favor de Espanha e ainda uma maior degradação entre os estados
europeus 17.
Esta crença messiânica na República despertou, de início, um entusiasmo, uma
esperança, uma euforia imensos em muitos portugueses, não só os das classes baixas
urbanas que viam na República a garantia de melhores condições sociais e económicas,
como da baixa classe média, mas também de alguns setores da elite urbana 18.
Estes sentimentos iniciais haveriam, contudo, de esmorecer gradualmente, à
medida que as inúmeras vicissitudes e acontecimentos políticos vinham desmentindo as
mais nobres e lídimas aspirações da República.
O descontentamento, o protesto e a reivindicação dos operários por melhores
condições culminaram, efetivamente, na organização de imensas greves entre 1911 e
1912. Apesar da sua ambição, os movimentos laborais que surgiram com o propósito de
velar pela situação dos trabalhadores não tardaram a ser vítimas de violenta repressão
governamental e policial.
Se a República tivesse cumprido as justas reivindicações dos operários por
melhores condições de vida, considerados uma das suas principais bases de apoio no
desmembramento da precedente monarquia, teria conseguido, com maiores
probabilidades, superar a forte convulsão social existente.
O anticlericalismo radical e virulento, consubstanciado na legislação do Governo
Provisório e impulsionado justamente pela ânsia de uma total secularização da vida,
esteve na origem não só da polarização da nação política, como também da alienação de
algum do seu apoio político 19.
Este republicanismo radical, a que normalmente se atribuía a designação de
jacobinismo, reagia, em particular, contra uma eventual transigência perante a liberdade
religiosa. Embora o Governo Provisório tivesse introduzido «alguma legislação mais
progressiva nos campos da educação (...), reforma agrária...» 20 , resvalou para
procedimentos assumidamente arbitrários e opressivos. A ação legisladora por meio de
decretos, sem a necessária aprovação parlamentar, foi perfeitamente reveladora de uma
flagrante viragem ditatorial.
Em novembro de 1911, após a cisão no seio do primitivo Partido Republicano
Português (PRP), criou-se a União Nacional Republicana (UNR), organizada pelos
17 Veja-se Douglas Lanphier Wheeler, op. cit., p. 59.
18 Idem, p. 81.
19 Idem, pp. 90-110.
20 Idem, pp. 95-104.
13
deputados republicanos mais conservadores e moderados, avessos tanto à legislação
promulgada pelos deputados republicanos radicais como a muitos dos atos do seu
Governo Provisório. O grupo republicano radical passaria a designar-se, doravante, o
partido dos Democráticos.
Em fevereiro de 1912, a UNR, em resultado de evidentes divergências
programáticas e de opinião, mas também de ambições pessoais dos dirigentes - males
que remontavam já ao regime monárquico -, fragmentou-se, tendo dado origem a dois
novos partidos republicanos: os Unionistas de Brito Camacho e os Evolucionistas de
António José de Almeida.
Interessa ressaltar que, apesar do derrube da Monarquia, não ficara dissipada,
por completo, a ameaça restauracionista. Entre 1911 e 1914, os republicanos tiveram de
enfrentar várias insurreições monárquicas, como é o caso da primeira incursão de Paiva
Couceiro, a 5 de outubro de 1911. Pese embora todas estas tentativas tivessem
malogrado, o ímpeto dos monárquicos não desfaleceu totalmente. Na verdade, só com o
fracasso das sublevações de Monsanto e da Monarquia do Norte (despoletadas em 1919)
diante das forças republicanas, foi imposta a derradeira derrota das expetativas
restauracionistas.
Apesar do mérito alcançado no saneamento de alguns dos problemas financeiros
que há muito faziam vacilar o país, tendo apresentado um orçamento equilibrado, o
primeiro governo de Afonso Costa, instituído a 9 de janeiro de 1913, debateu-se com
inúmeras convulsões, agitações laborais e uma violência pública intensa 21. Perante esta
realidade, o governo eleito não hesitou em reprimir as greves sindicalistas que ocorriam.
Ainda que tenha pretendido garantir o equilíbrio orçamental através da célebre «lei-
travão», que impedia o Parlamento de aprovar leis que implicassem o aumento das
despesas do Orçamento, e tenha feito aprovar uma ambiciosa reforma fiscal, não se
absteve de enveredar pela ação repressiva 22. Devido à oposição feita ao movimento
sindical, vítima de violenta repressão, e à reação clerical, muitos monárquicos e alguns
setores republicanos começaram a insurgir-se.
Vários grupos militantes republicanos designados como «vigilância popular» 23
semearam o pânico, a violência pública e o terror republicano, sob a orientação, por
21 Idem, p. 121.
22 Ver António Reis, op. cit., vol. I, p. 204.
23 Douglas Lanphier Wheeler, op. cit., p. 270.
14
vezes, da Carbonária, combatendo eventuais opositores ou ameaças à ordem republicana
estabelecida 24.
Os governos democráticos posteriores sentiram idênticas dificuldades em
superar a agitação laboral, até porque a repressão que vitimou as organizações anarco-
sindicalistas, sob cuja direção os movimentos operários atuavam, fez recrudescer a
mesma animosidade laboral.
O «obstrucionismo político-parlamentar» do setor oposicionista face ao partido
dominante (o dos denominados Democráticos) permitia bloquear os projetos deste
último, bem como obstruir a execução e aprovação das suas legislações 25 . Os
oposicionistas ao predomínio parlamentar dos democráticos, tendo abandonado a
adesão às fórmulas eleitoral, parlamentar ou constitucional, preconizaram, por seu turno,
a insurreição militar e os pronunciamentos, ou seja, a adoção de métodos e processos
golpistas, enquanto expedientes mais eficazes para a captura do poder, mudança
governativa ou alteração do rumo dos acontecimentos.
A partir de 1912, vemos começar a apoderar-se de Raúl Proença um sentimento
de desilusão 26 e descrença moral na alegada capacidade e eficácia da República em
realizar os seus intuitos de renovação nacional, a par do que António Reis chama
também uma «desilusão relativamente ao comportamento prático dos dirigentes
republicanos, depois da euforia da vitória da República» 27 . A credibilidade da
República começou cedo a deteriorar-se, à medida que o descontentamento de alguns
setores recrudescia.
Apesar deste sentimento emergente, Proença considera, em «Carta a um Amigo
do Brasil», que os governos republicanos, mesmo com todas as suas falhas, fizeram
«mais do que os últimos vinte anos de anarquia» 28.
Por seu turno, também António Sérgio, em carta a Raúl Proença, de 31 de
agosto de 1913, reportava-se ao «terror republicano» associado aos atos da «Formiga
Branca» e à «apologia carbonária do recurso à bomba». A esta «violência - sistema - e -
24 Segundo Douglas Lanphier Wheeler, estes grupos «reprimiram brutalmente os trabalhadores
nos conflitos laborais de 1910-1912» (in História política de Portugal de 1910-1926, p. 88).
25 Consulte-se António Reis, op. cit., vol. I, p. 439.
26 O triunfo das nações democráticas na Grande Guerra, mas também a derrota do projeto
sidonista e do restauracionismo monárquico em Portugal, deram a Raúl Proença uma esperança e alento
momentâneos.
27 António Reis, op. cit., p. 196.
28 Raúl Proença, Águia, 2.ª série, nº 19, julho de 1913.
15
gosto», escrevia, contrapunha a bem distinta «violência - recurso extremo» 29, cujo uso
sanciona.
Em 1914, a crise das instituições republicanas recrudescia, para tal tendo
contribuído as rivalidades pessoais e as divergências partidárias baseadas mais «em
função de questões pessoais do que em função de correntes reais de opinião» 30.
A pretexto do «Movimento das Espadas» 31, de 24 de janeiro de 1915, Manuel de
Arriaga empossou Pimenta de Castro a formar um novo governo. Composta, na sua
maioria, por militares, a nova liderança política veio a denotar um cunho
assumidamente ditatorial, anticonstitucional e autoritário, patente numa atuação privada,
várias vezes, da necessária sanção parlamentar. Esta experiência governativa constituiu
um primeiro golpe desferido sobre o funcionamento democrático das instituições
republicanas, agudizando a conjuntura de crise e adensando, mais concretamente em
Proença, um estado de pessimismo face à situação, levando-o a condenar a repressão
que a governação de Pimenta de Castro infligiu à supremacia do poder civil 32.
Em 1917, a Europa foi abalada por um conflito bélico de proporções outrora
inimagináveis. Muitos republicanos portugueses justificavam a necessidade do país
intervir na 1.ª Guerra Mundial devido ao receio perante a ameaça alemã à segurança das
colónias nacionais.
Enquanto partidário da intervenção portuguesa no conflito, Raúl Proença
acreditava que a conservação não só da liberdade e da dignidade, como ainda da
independência nacional e do território colonial, mas também do regime republicano,
dependia do triunfo da fação democrática.
Os efeitos da participação militar de Portugal no conflito foram, porém,
devastadores. Os esforços económicos que o país teve de suportar fizeram despertar a
hostilidade e divergência de alguns setores ou grupos oposicionistas, que já, antes, se
haviam insurgido contra a deliberação dos Democráticos em intervir no mesmo. Em
termos económicos e financeiros, a nação ficou mais débil e vulnerável, tendo-se
agravado a inflação, a carestia de géneros alimentícios e a dívida nacional. Todas estas
consequências acabaram por ter um papel relevante no agravamento da crise e no
posterior advento da Ditadura Militar de 28 de maio de 1926.
29 Citado por António Reis, op. cit., vol. I, p. 207.
30 Idem, p. 217. 31 Designação pela qual ficou conhecido um protesto de oficiais contra a transferência de um seu
camarada, o major monárquico Craveiro Lopes, por razões supostamente de natureza política.
32 Ver António Reis, op. cit., vol. I, p. 222.
16
Em 1917, a conjuntura social caraterizava-se pela agitação social, repressão de
greves, censura à imprensa, elevado número de mortes e baixas humanas na frente de
guerra, mas também pela carestia de vida e atuação do movimento operário e sindical.
Paralelamente, sobrevieram outras ameaças ou perigos para as instituições
republicanas ou democracias liberais. O fortalecimento do movimento sindical nas
principais nações industriais e a consolidação eleitoral dos partidos das classes
trabalhadoras criaram receio nas classes conservadoras, tendo impulsionado a
emergência do movimento fascista.
Além das baixas humanas na frente bélica e da frustração das classes médias
fragilizadas pela crise económica e financeira, a Grande Guerra promoveu o
recrudescimento dos nacionalismos e do impulso militarista, cuja valorização,
pressentida no Sidonismo 33, estaria na origem do trágico desfecho da 1.ª República 34.
Os nacionalismos extremos e o militarismo surgidos no pós-guerra
representaram uma ameaça à solidez e consolidação das democracias liberais e suas
instituições. Em reação, vários movimentos filosóficos despertaram na Europa (o
idealismo, personalismo 35, existencialismo) acentuando o valor e dignidade da pessoa
humana.
Abominando o estado de desordem e instabilidade social e política que imperava
na sociedade portuguesa, diversos setores da intelectualidade republicana e da juventude
universitária deixaram-se seduzir pelas ideologias e regimes autoritários que se vinham
implantando na Europa, como é o caso do fascismo italiano 36.
A grande imprensa portuguesa mostrava-se fascinada pelos aparentes sucessos
materiais e administrativos da governação de Mussolini, descurando, contudo, o pendor
assumidamente ditatorial de que esta última se revestira.
Organizado por Sidónio Pais, o golpe militar de 5 de dezembro de 1917 trouxe
consigo o forte desejo de derrubar o predomínio ou monopólio parlamentar e eleitoral
dos democráticos, que se revelavam cada vez mais impotentes para introduzir as
necessárias reformas para a resolução dos problemas nacionais.
33 Sob a liderança de Sidónio Pais, uma Junta Revolucionária, que integrou Machado Santos e
contou com o apoio dos unionistas e a importante colaboração do movimento sindical operário, tomou
posse do governo a 5 de dezembro de 1917, suspendendo o Congresso e demitindo o Presidente da
República Bernardino Machado.
34 Ver António Reis, op. cit., vol. I, p. 292.
35 Divergentemente da aceção antes veiculada, o personalismo é entendido, neste caso, como a
dimensão da pessoa humana.
36 Esta situação levou Raúl Proença a reiterar a censura ao défice ideológico do republicanismo
dominante.
17
Em vigor desde 7 de dezembro do mesmo ano até 14 de dezembro de 1918, o
Sidonismo, apelidado de «República Nova» 37, cedo resvalou para pretensões de teor
presidencialista e autoritário, com as quais não contemporizavam, de maneira alguma,
os republicanos mais convictos e inflexíveis. A partir de certa altura, a experiência
sidonista 38 passou a atuar com base em decretos legislativos que ignoravam a
necessidade de aprovação parlamentar.
Embora a 'República Nova' tivesse surgido com o propósito de renovar a
República vigente, foi incapaz de expurgá-la dos seus vícios ditos orgânicos. A
desordem civil e política, a elevada criminalidade, as diversas tentativas golpistas e as
greves continuavam a ser situações recorrentes.
Enquanto a nova geração de oficiais militares enaltecia a figura de Sidónio Pais
e aplaudia a experiência ditatorial do riverismo em Espanha, irrompiam, na Europa, as
ideologias ou vagas antiliberais e antidemocráticas 39.
De igual modo, a politização do exército foi um fator decisivo para a falência da
República. Descontente com as condições em que vivia e com a péssima reputação do
Congresso, este setor procurou tomar o poder e imiscuir-se nos assuntos políticos,
extrapolando, assim, o seu congénito papel de defesa da ordem e segurança nacionais.
Em resultado disto, a política tornou-se mais militarizada 40.
À crise do funcionamento das instituições republicano-liberais e às dificuldades
económicas e sociais resultantes da guerra somava-se a crise dos valores ideológicos e
ético-estéticos 41 . A crise do sistema de representação parlamentar impulsionou a
afirmação de correntes políticas e doutrinárias extremistas, tanto à esquerda como à
direita, com destaque para o movimento anarco-sindicalista, de um lado, e o Centro
Católico, a Cruzada Nun'Álvares e o Integralismo Lusitano 42, do outro. Apesar de
37 Assim se batizou o novo regime que Sidónio Pais pretendeu ver institucionalizado.
38 Convém realçar que, a partir do Sidonismo, considerado um dos episódios históricos que mais
fizeram abalar a República e que serviu de inspiração ao que veio a ser a Ditadura do Estado Novo, o
Exército passou a exercer uma maior influência sobre os dirigentes políticos e a sociedade. 39 Ver Douglas Lanphier Wheeler, op. cit., p. 225.
40 Idem, p. 278.
41 Interessa destacar que às investidas críticas lançadas por Raúl Proença, na segunda década do
século XX, ao mau funcionamento das instituições e aos comportamentos dos políticos seguiu-se a
censura à ofensiva doutrinária e estético-cultural que punha em causa os valores que defendia e promovia
o aparecimento das mais perigosas doutrinas antidemocráticas.
42 Importa ressaltar que a doutrinação do Integralismo Lusitano começara, a partir de 1915, a
infiltrar-se nos meios estudantis e militares, tendo desempenhado uma influência decisiva no desenrolar
dos acontecimentos políticos.
18
diferenças óbvias, todas estas correntes de direita proclamavam a «superioridade
política de uma alternativa autoritária e antiparlamentar» 43.
Ora, o período pós-guerra viu emergir, no campo estético-cultural, as ruturas
estéticas e culturais. O vanguardismo estético, consubstanciado no modernismo e
futurismo, inclinou-se para a adesão a «alternativas político-sociais extremistas, à direita
e à esquerda» 44 , que, estando inspiradas num vitalismo amoralizante, negavam os
valores racionalistas, naturalistas e humanistas, inerentes ao idealismo republicano-
liberal.
A partir de 1919, o espetro partidário alterou-se. Cisões partidárias deram
origem a novos partidos 45.
À medida que se pressentia o desfecho da República, as correntes integralista,
tradicionalista 46 e fascista alastravam-se a um maior número de setores da sociedade.
No grupo Seara Nova, fundado em 1921, grande parte do labor doutrinário de Raúl
Proença centrou-se no combate às doutrinas ou ideologias reacionárias antidemocráticas.
Depois do combate inicial contra o Integralismo Lusitano, voltou-se para o ataque ao
fascismo.
As sucessivas revoltas ou pronunciamentos reacionários (de 18 de abril e 19 de
julho de 1925), de claro pendor direitista, fizeram prenunciar o pior. Mesmo tendo
fracassado, estes episódios foram a expressão notória do descontentamento existente nas
Forças Armadas, bem como nas hostes nacionalistas e monárquicas, face à governação
vigente. O clima conspirativo, propício a uma solução ditatorial, crescera
profundamente. O descontentamento e desilusão não só dos setores operários,
desprezados nas suas reivindicações, como também das classes médias, privadas do seu
inicial poder de compra e desejosas de estabilidade e segurança, fizeram antever a
eclosão da Ditadura Militar.
43 António Reis, op. cit., vol. I, p. 296.
44 Idem, p. 293. 45 Numa penetrante denúncia da conjuntura política, Raúl Proença, em «A situação política»,
verberou o fracionamento e a indisciplina existentes no seio de cada agrupamento partidário: «já não há
partidos, mas partidos de partidos, facções de facções» (in Obra Política de Raúl Proença, vol. III,
Páginas de Política (3), Seara Nova, Lisboa, 1974, p. 74). No artigo «A Crise», já havia denunciado o
sectarismo partidário (O Norte, n.º 139, 11 de dezembro de 1914).
46 Os tradicionalistas preconizavam, em oposição à tradição liberal e ao demoliberalismo, a
restauração da monarquia como era antes de 1820, contrapondo às noções de individualismo e soberania
do povo as de autoridade, hierarquia e tradição. Ver Douglas Lanphier Wheeler, op. cit., p. 31.
19
1.3. Ditadura Militar de 1926
Em 28 de maio de 1926, um golpe militar derrubou a Primeira República
parlamentar, instalando uma Ditadura Militar.
Resultante do descontentamento face ao funcionamento do parlamentarismo
republicano, este regime autoritário emergente acabou por culminar na implantação do
Estado Novo Salazarista, o qual, vigorando de 1933 a 1974, fez triunfar as tendências
mais conservadoras, tendo dissolvido muitas das liberdades cívicas por que havia zelado
o precedente regime parlamentar.
No intuito de restaurar uma democracia republicana reformada, a oposição
republicana sobrevivente apoiou a via revolucionária, ou seja, a estratégia de derrube
violento da Ditadura, atitude que ficou conhecida como reviralhismo republicano. Mas,
se a Revolução de 3 de Fevereiro de 1927 e a Revolução do Castelo, a 20 de julho de
1928, não tiveram êxito, a Ditadura procurou reforçar os setores antiliberais e
fascizantes da sociedade, de modo a dissipar, por completo, qualquer intuito de
reposição democrática.
Compelido pelo regime persecutório e repressor da Ditadura Militar, o
panfletário Raúl Proença chegou ao exílio em 1927 47, tendo, aí, prosseguido o seu
combate doutrinário contra o novo regime. Colaborou na Liga de Paris (1927-1929),
protagonista da oposição republicana no exílio, e interveio, politicamente, no seu órgão
de difusão 'A Revolta'. Na série de artigos «Para um evangelho de uma acção idealista
no mundo real», dedicados à análise do livro de Julien Benda intitulado «La Trahison
des Clercs», iniciada a partir dos começos de 1928, o eminente republicano haveria de
retomar o seu labor doutrinário.
Entre 1927 e 1931, a conjuntura internacional transmitia sinais demasiado
ambivalentes. Os sucessivos desaires do reviralhismo haviam suscitado certa descrença
e pessimismo nos republicados mais convictos. Para o refluxo da oposição republicana
registado em 1929, contribuíra, em grande medida, o sucesso governativo de Salazar,
mas também a tendência aparentemente transicionista para um regime constitucional-
republicano dos governos de Vicente de Freitas e Ivens Ferraz.
A partir dos anos 30, assistiu-se ao triunfo e consolidação gradual das ditaduras
na Península Ibérica (Estado Novo em Portugal) e Europa (Mussolinismo e Nazismo).
47 Depois de um período de 60 dias em Madrid, rumou a Paris.
20
Com o governo de Domingos de Oliveira, começou a anunciar-se, em Portugal, a
viragem para a orientação cada vez mais antiliberal e autoritária da Ditadura, linha que
Salazar haveria de preconizar.
Embora fragilizada diante dos setores antiliberais e fascizantes que começavam
a impor-se no interior da Ditadura portuguesa, a oposição republicana recuperou algum
otimismo e esperança quanto a uma possível reposição do regime republicano, tendo
para tal contribuído a dissolução da ditadura riverista espanhola em 1930 e consequente
implantação da República no ano seguinte 48 . Além disto, a afirmação da corrente
trabalhista ou social-democrata nos países germânicos e escandinavos permitia reforçar
esse sentimento.
No entanto, a gorada revolta de 26 de Agosto de 1931 fez vacilar ainda mais a
oposição republicana, contribuindo, por conseguinte, para consolidar o setor antiliberal
da Ditadura. Mas se a França, a Inglaterra e os países escandinavos se erigiam em
baluartes democráticos, o Estado Novo salazarista, instituído em 1933, reforçava-se,
acelerando o desfalecimento absoluto da ofensiva reviralhista, o que acabou por suceder
com o fracasso do Plano Lusitânia de 1938.
Apesar de todas as ambições iniciais, a Ditadura Militar acabou por agravar a
instabilidade governativa, a incompetência e as despesas públicas, além de ter
fomentado a indisciplina militar e a corrupção.
Em novembro de 1931, a doença psíquica, que faria Raúl Proença sucumbir à
morte, apossou-se dele, tendo sido já antevista por alguns episódios passados de
excitação, todos eles fortemente marcados por um temperamento irascível, colérico e
impulsivo.
Faleceu a 20 de maio de 1941, em pleno auge do fenómeno salazarista, enquanto
o nazismo alemão avançava na Europa.
Apesar de breve, a sua vida foi uma das mais autênticas e fervilhantes
manifestações de ativismo republicano-democrático e empenhamento cívico, tendo no
alistamento como voluntário para o Corpo Expedicionário Português na primeira
Grande Guerra e na participação contra as sublevações de Monsanto e a Monarquia do
Norte (1919) uma das suas expressões mais visíveis.
48 Ver António Reis, op. cit., vol. II, p. 12.
21
De um heroísmo 49 e robustez moral 50 ímpares, Raúl Proença combinou, na
perfeição, a «ética do intelectual com a ética do cidadão consciente dos seus direitos e
disposto a bater-se, fisicamente se necessário, por eles» 51. Se a reflexão acerca do
Eterno Retorno foi fundamental para reforçar a crença na autonomia humana, o estudo
em torno da questão de Deus permitiu a Proença assumir um agnosticismo ético,
adequado a uma atitude viril e heroica perante a vida, incompatível com a ideia de um
Deus que premeia e sanciona os atos humanos. Nos artigos «A filosofia de Epicuro e a
concepção heróica da vida» e «Sobre a existência de Deus e a lealdade de consciência»
52, considera inconciliáveis a sua conceção heroica da vida e as ideias da existência de
Deus e da imortalidade da alma, sendo estas últimas dissuasoras de toda a auto-
exigência e dedicação éticas 53.
49 Porque assente na exaltação do sentido heroico da vida, a filosofia vitalista de Nietzsche, que
havia seduzido, durante as duas primeiras décadas do século XX, alguns meios intelectuais e até
anarquistas em Portugal, serviu ao ilustre democrata para condenar o pessimismo e decadentismo
reinantes nos finais do século XIX. 50 José Rodrigues Miguéis não se coibiu de realçar a robustez moral e mental de Raúl Proença (in
Uma Flor na Campa de Raúl Proença, Biblioteca Nacional, Lisboa, 1985, p. 9).
51 António Reis, op. cit., vol. I, p. 468.
52 Cf. Seara Nova, n.º 40, janeiro de 1925.
53 Consultar Anais das Bibliotecas e Arquivos, vol. I, n.º 4, outubro/dezembro de 1920.
22
2. O LIBERALISMO
Na sua génese, o Liberalismo assenta, acima de tudo, no elogio da liberdade. Se
dúvidas subsistissem quanto à sua suposta veracidade, bastaria uma breve incursão
pelos escritos de alguns dos mais ilustres pensadores liberais para desfazê-las de
imediato. John Locke é um dos insignes representantes da tradição liberal que
estabelecem os principais fundamentos ideológicos do Liberalismo. A liberdade, vista
como o "fundamento de tudo o mais que um homem possa ser ou ter» 54, é o valor
político que mais aplaude.
A doutrina liberal revela-se, entre outras coisas, no «intêresse pela livre
manifestação do pensamento» 55, pela liberdade de exame e de crítica. Em sintonia com
esta atitude de autêntica renúncia a fórmulas dogmáticas e impositivas, ela advoga o
respeito recíproco e tolerância perante a diversidade de opiniões e crenças.
Apesar da primazia atribuída à liberdade, há outros pressupostos axiológicos
com extensa relevância. Dentro deste domínio, a igualdade é, sem dúvida, uma das
tónicas dominantes em toda a perspetiva liberal 56. A par da fraternidade, estas duas
categorias políticas básicas são constitutivas da 'trilogia' reguladora e inspiradora da
Revolução Francesa de 1789.
Embora possa passar-nos despercebido, muitos dos pressupostos que orientam a
política contemporânea são herdeiros diretos da mundividência liberal: a primazia da
54 John Locke, Segundo Tratado Do Governo, Fundação Calouste Gulbenkian, Coimbra, 2008, p.
46.
55 Theodore Meyer Greene Liberalismo: teoria e prática, trad. de Leonidas Gontijo de Carvalho,
vol. 5, Ibrasa, Coleção Clássicos da Democracia, São Paulo, 1963, p. 31. Theodore Meyer Greene (1897-
1969) foi professor de Filosofia, tendo inúmeras obras e artigos de jornal escritos. Além disto, foi
conferencista.
56 Adiante, teremos a oportunidade de desenvolver a questão da nítida correlação entre ambos os
conceitos.
23
liberdade; a igualdade encarada como idêntica dignidade e liberdade; a posse de direitos
individuais; a noção de acordos, pactos ou contratos como elementos decisivos na
resolução dos conflitos resultantes da confrontação entre as liberdades dos indivíduos,
entre muitos outros.
2.1. Marcos históricos
Para uma maior compreensão acerca da herança, alcance e impacto do
Liberalismo, importa que sejam enunciados alguns dos seus mais relevantes e
significativos antecedentes históricos. Como podemos constatar a seguir, são diversas as
circunstâncias que ajudaram a impulsionar a sua concreta afirmação.
As aspirações liberais tiveram eco em múltiplos acontecimentos históricos. Na
verdade, episódios como a 'Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão'
e as primitivas constituições americana e francesa, bem como as diversas e sucessivas
revoluções liberais que despontaram ao longo do século XIX, foram o reflexo visível da
profunda ânsia de disseminação do ideal liberal.
De certo modo, a origem do Liberalismo político parece remontar à Reforma
Protestante e às revoluções liberais ulteriores. Antes disto, numa altura em que
começava a despontar, na Europa, o surto absolutista, a Magna Carta (documento que os
barões feudais ingleses impuseram ao rei João, em 1215, de forma a limitar o seu poder)
foi um dos primeiros prenúncios das futuras exigências liberais.
De inegável importância, o movimento de secularização, ocorrido no fim da
Idade Média, promoveu a dissolução do imperialismo religioso, reivindicando, ao invés,
a «soberanía del individuo» 57.
A Reforma Protestante perfila-se, com efeito, entre os acontecimentos mais
importantes no longo percurso de consolidação das ideias liberais. Este acontecimento
promoveu, na esfera religiosa e espiritual, a valorização da liberdade de consciência,
tendo rompido, por conseguinte, com a tradição, a superstição, a rigidez, a hierarquia, a
autoridade e o dogma religiosos, todas elas noções que o catolicismo havia hipertrofiado
57 André Vachet, La ideología liberal, trad. de Pablo Fernández Albaladejo, Valentina Fernández
Vargas, Manuel Pérez Ledesma, vol. 22, Editorial Fundamentos, Colección Ciencia, Série Historia,
Madrid, 1972, p. 59.
24
58 . Tendo desintegrado a função totalizadora e organicista da Igreja, favoreceu o
atomismo individualista.
Para além destes, destacam-se muitos outros agentes que deram um contributo
decisivo para a ascensão gradual da doutrina liberal.
No plano intelectual, o cartesianismo, à semelhança do que a Reforma
Protestante tinha feito, insurgiu-se contra as noções de tradição, autoridade e dogma,
contrapondo-lhes, em alternativa, os conceitos de livre exame e livre-pensamento.
O individualismo, que apareceu após a dissolução da conceção organicista da
sociedade nos finais da Idade Média, e o racionalismo foram, indiscutivelmente, dois
dos movimentos que anunciaram o liberalismo.
No âmbito moral, Kant inaugurou uma moral fundada na estrita autonomia
individual. A origem da lei moral, à qual os indivíduos devem submeter-se, radica na
autonomia humana. Demarcando-se do princípio da heteronomia, isto é, a sujeição a
obrigações e imperativos oriundos do plano exterior, o pensador alemão declarou que
«uma vontade livre e uma vontade submetida a leis morais são, por conseguinte, uma só
e mesma coisa» 59.
No domínio social, o desencanto, a repugnância e o descontentamento populares
face ao absolutismo régio foram sentimentos que fizeram acelerar o advento do
Liberalismo, do parlamentarismo e do constitucionalismo. Todos estes movimentos
trouxeram consigo a vontade firme de conter e refrear os ímpetos absolutistas,
autocráticos e despóticos inerentes a um poder político que se encontrava destituído de
qualquer fiscalização e controlo populares.
Dominantes na Europa, as monarquias absolutas dirigiam o destino coletivo dos
povos de forma arbitrária. Secundadas, em certa medida, na conceção medieval da
origem divina do poder (o poder provém de Deus), elas não tinham de se justificar
perante os súbditos e nem estavam dependentes da sua contínua legitimação ou
aprovação. De facto, uma das principais caraterísticas do Liberalismo primitivo foi o
inicial impulso para a resistência contra um poder assaz opressor e ameaçador.
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), a Declaração de
Direitos da Virgínia (1776) e a Declaração de Independência Americana foram cruciais,
58 Consulte-se André Vachet, op. cit.
59 Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes, trad. de Filipa Gottschalk, Lisboa Editora,
Lisboa, 1998, p. 122.
25
na medida em que consagram a liberdade e a igualdade de direitos. Fazem referência,
concretamente, a direitos inalienáveis e imprescritíveis dos indivíduos.
De acordo com Fernando Valera, a 'Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão' é o documento que constitui o «principio, fundamento y origen del liberalismo
político» 60. Trata-se, com efeito, do depositário mais completo dos direitos liberais,
condensando, de modo embrionário, os valores e as premissas que haveriam de ser
melhor desenvolvidas e teorizadas nas várias constituições liberais em vigor nos países
democráticos.
Num dos seus artigos, o referido documento proclama que «Todos nascemos e
permanecemos iguais em direitos», vincando a já mencionada igualdade de direitos.
Desta forma, o Liberalismo emergente representava a contestação da controversa noção
de privilégios políticos.
Com repercussões avassaladoras ao nível da dissolução dos privilégios políticos,
a Revolução Francesa foi um dos acontecimentos mais marcantes na história da doutrina
em estudo. Considerando o impacto decisivo que teve ao nível da mentalidade e vida
social e política de então, o seu ideário converteu-se rapidamente na «esencia y
inspirácion de todas las constituciones redactadas por los parlamentos de las modernas
democracias» 61. No entanto, na sua ação, não se absteve de recorrer a um radicalismo
revolucionário, responsável por ter cometido, não raras vezes, as maiores crueldades. A
fase do Terror, dirigida por Robespierre, foi disso perfeitamente ilustrativa 62.
A introdução da representatividade política foi um facto histórico de importância
incalculável, na medida em que veio a favorecer a expressão da vontade e soberania
populares, vistas como um dos pressupostos essenciais das correntes liberal e
democrática. Despojada do cariz autocrático e arbitrário, por meio do qual o
absolutismo régio visava submeter os indivíduos, a lei tornou-se a expressão da vontade
geral.
Para a doutrina de que nos ocupamos agora, a soberania política, retirada ao
monarca absoluto, pertence ao povo. Somente dele poderá provir a necessária
legitimação de todo o exercício governativo. Embora continue a pertencer à autoridade
60 Fernando Valera, Liberalismo, vol. IV, Gonzalo Julián, Cuadernos de Cultura, Valencia, 1930,
p. 9. Em termos metodológicos, optámos por manter, nas múltiplas transcrições efetuadas, a aparência do
texto original.
61 Ibidem.
62 No momento de focarmos as principais caraterísticas da conceção liberal de Raúl Proença,
iremos notar a sua aversão face ao radicalismo virulento e feroz do jacobinismo republicano.
26
política a função de reger a comunidade, só lhe é reconhecida total legitimidade para
fazê-lo se ela tiver sido consentida e outorgada previamente pelos súbditos. Portanto,
mesmo não governando diretamente, é o povo, enquanto conjunto dos súbditos, que
entrega a função executiva a indivíduos a quem caberá representar e defender os seus
interesses.
Como afirmava Montesquieu, a divisão da soberania em poderes distintos tinha
o propósito de limitar e fiscalizar o exercício político. Reconhecendo que «todo o
homem que possui poder é levado a dele abusar», este pensador recomendou que, «para
que não se possa abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o poder
limite o poder» 63.
2.2. Conceções de liberdade
O termo liberdade pode ser encarado de diversas formas 64. Georges Burdeau,
por exemplo, enuncia duas conceções fundamentais de liberdade: a «liberdade-
autonomia» e a «liberdade-participação» 65.
A primeira, bem próxima do registo liberal, identifica-se com a autonomia e
resistência face à prepotência e exacerbamento do poder político. A segunda, por sua
vez, diz respeito à participação dos cidadãos no poder político, a fim de «o impedir de
lhes impor medidas arbitrárias» 66, reconhecendo a enorme fragilidade da primeira das
noções.
A este respeito, Maurice Duverger fez especial alusão à distinção estabelecida
por Benjamin Constant, que pôs em contraste, justamente, a conceção moderna de
63 Montesquieu, O Espírito das Leis, trad. de Cristina Murachco, Martins Fontes, São Paulo,
1993, p. 170.
64 No capítulo «O Socialismo», a questão das várias conotações alegadamente implicadas no
conceito de liberdade será, de novo, retomada. Nessa ocasião, insistiremos na liberdade como sinónimo
de libertação face, especificamente, aos diversos constrangimentos económicos e à situação de carência
material.
65 Consulte-se Georges Burdeau, O Liberalismo, trad. de J. Ferreira, vol. 22, Publicações Europa-
América, Colecção Biblioteca Universitária, 1979.
66 Idem, p. 10.
27
liberdade («As liberdades são resistências») e o que ele denominava de noção antiga
(«participação activa no poder colectivo» 67, nas decisões coletivas).
Relativamente à conceção que faz repousar a liberdade sobre o direito de
participação na vontade geral, André Vachet considera que ela «implica la socialización
del individuo y el estatismo» 68.
Importa realçar que às duas anteriores vem somar-se uma terceira aceção: a
noção de libertação, mais concretamente face à opressão económica. Quando a
iniciativa individual se mostra impotente para eliminar as desigualdades e servidões
económicas existentes, é comum exigir ao poder político que intervenha a fim de
libertar os indivíduos e estabelecer a justiça e a liberdade efetivas. Se o Liberalismo,
num primeiro momento, desconfia e reage contra a autoridade estatal, numa fase
subsequente, transforma-a em «instrumento de criação de uma liberdade efectiva» 69.
Maurice Duverger é também um dos autores que dão destaque à liberdade como
libertação e «supressão das alienações (..) das penúrias...» 70. Interessa sublinhar que,
também para o Socialismo, é ao Estado que compete esse papel libertador. Para além
desta, Duverger ressalta uma outra noção de liberdade: a «liberdade-florescimento» 71.
Significa esta que todos estarão em condições de desenvolverem a sua individualidade,
desde que disponham de todas as condições materiais necessárias.
Reinhold Zippelius, na obra «Teoria Geral do Estado», alerta para a necessidade
de não identificar o conceito de liberdade do Liberalismo com o conceito democrático
de liberdade. Se o primeiro «designa a liberdade do status negativus, ou seja, o espaço
de liberdade de actuação individual face ao Estado», o segundo, por seu turno, diz
respeito ao «status activus, ou seja, à liberdade de participação na formação da vontade
comum» 72. Acrescenta que ambas «as liberdades não convergem necessariamente»,
uma vez que a «maioria democrática pode exercer uma tirania muito pouco liberal» 73.
67 Maurice Duverger, Introdução à Política, trad. de Mário Delgado, vol. 1, Editorial Estúdios Cor, Colecção Ideias e Formas, 1964, p. 290.
68 André Vachet, op. cit., p. 172.
69 Georges Burdeau, op. cit., p. 13.
70 Maurice Duverger, op. cit., p. 291.
71 Idem, p. 291.
72 Reinhold Zippelius, Teoria Geral do Estado, trad. de Karin Praefke-Aires Coutinho, 3ª Edição,
Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1997, p. 375. Reinhold Zippelius foi Professor Emérito de
Filosofia do Direito e Direito Público na Universidade de Erlangen-Nuremberg, APemanha.
73 Ibidem.
28
2.3. Liberalismo: conceito pluridimensional
É comum associar ao Liberalismo três grandes dimensões: política, económica e
religiosa. Todas elas constituem, em boa verdade, espaços de desenvolvimento e
afirmação individuais.
Do ponto de vista político, o Liberalismo procurou pôr em marcha uma
liberalização, a fim de derrubar o absolutismo e o imperialismo dos poderes políticos.
Professando uma atitude de resistência e desconfiança perante um governo que excede
os limites das suas funções, encara a «libertad como la afirmación de la autonomía y de
la independencia del individuo en relación a la autoridad política y social» 74.
Neste contexto, importa recordar Montesquieu, para quem o abuso do poder era
a tendência natural do exercício governativo.
Ultrapassando a dimensão estritamente política, o Liberalismo estendeu-se,
igualmente, ao âmbito económico, tendo desaguado, conforme indica Theodore Greene,
num «libertismo econômico do laissez-faire» 75 . Exigiu, acima de tudo, a máxima
liberdade para as iniciativas económicas, mas com o mínimo de controlo e intervenção
governamentais. Sob a orientação do critério da livre concorrência, impulsionador da
iniciativa ou empresa individual, fez da busca do lucro o seu valor mais elevado.
Em todo o caso, apesar de ter privilegiado a liberdade de iniciativa no campo
económico, esta segunda variante acabou por dar azo, conforme é referido na obra
"Teoria Geral do Estado", à «formação de concentrações de capital e de empresas bem
como cartéis» 76 , constituindo verdadeiros adversários do princípio básico da
concorrência. Como explica o seu autor, a «liberdade foi utilizada para limitar a
liberdade» 77.
Com base na conhecida máxima «laissez faire, laissez passer», a doutrina liberal
repudia inteiramente a noção de protecionismo económico, que interfere na livre
concorrência, para além do mercantilismo, que propunha a regulamentação da vida
económica por parte do Estado.
Para além das referidas variantes política e económica, é possível destrinçar uma
terceira categoria: o Liberalismo religioso. Distinta das restantes, esta modalidade
74 André Vachet, op. cit., p. 193.
75 Theodore Greene, op. cit., p. 218.
76 Reinhold Zippelius, op. cit., p. 380.
77 Ibidem.
29
procurou levar a cabo a secularização, com a finalidade de dissipar o domínio e o
império da transcendência.
Com o advento do Liberalismo, é inaugurada uma nova antropologia, baseada na
promoção da emancipação humana face à teologia e transcendência. Proclamando a
soberania absoluta do indivíduo, esta última variante visa libertá-lo de uma ética da
dependência e obediência ao sobrenatural.
2.4. Falsa antinomia: a liberdade e a autoridade
Para o Liberalismo, as noções de liberdade e autoridade/lei não são antitéticas,
mas complementares. Distanciando-se do raciocínio que crê, erradamente, que ambos os
conceitos são inconciliáveis e se excluem mutuamente, ele acentua a sua profunda
correlação. De facto, o respeito pela liberdade e direitos recíprocos dos outros
indivíduos requer a intervenção da autoridade para disciplinar e conter os impulsos
predatórios e arbitrários das liberdades individuais. Segundo André Vachet, «la ley y la
igualdad ante la ley, constituyen la condición de liberdad en el Estado» 78. Em total
divergência com o entendimento libertário, para o Liberalismo, «la libertad no puede
confundirse con la licencia y la anarquia, sino que exige la sumisión armoniosa a un
orden» 79. Na génese desta ideia, John Locke afirma, na obra «Segundo Tratado do
Governo», que «um estado de liberdade não é um estado de licenciosidade» 80.
Contrariamente ao que poderia presumir-se de início, a ênfase posta na noção de
liberdade não pressupõe a assunção das convicções e interpretações anarquistas. Na
sequência do raciocínio anterior, a doutrina liberal exige a aplicação de leis que
determinem restrições a uma liberdade desenfreada e desvairada 81.
Relativamente a esta problemática, Montesquieu, na obra «O Espírito das Leis»,
esclarece que a «liberdade política não consiste em se fazer o que se quer»,
78 André Vachet, op. cit., p. 172.
79 Idem, p. 102.
80 John Locke, op. cit., p. 36.
81 Como veremos adiante, é a preocupação com a reciprocidade e intersubjetividade que constitui
a razão principal para a proposta de uma liberdade que «supone, necesariamente, una disciplina» (in
André Vachet, La ideología liberal, p. 170).
30
acrescentando, em complemento, que a «liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis
permitem» 82.
Importa assinalar, todavia, que a premissa da autoridade jamais se confunde com
o autoritarismo, considerado «a própria antítese do liberalismo» 83. Segundo Fernando
Valera, ela própria está condicionada por determinados constrangimentos legais, pelo
que «debe emanar de la nácion y actuar dentro de ciertos límites» 84.
Assim sendo, a recusa de um determinismo implacável, que mutila a
espontaneidade, a criatividade, a liberdade ou a própria responsabilidade humana, bem
como de uma espontaneidade ilimitada, está incluída entre as caraterísticas mais
determinantes do Liberalismo.
2.5. Igualdade Jurídica versus Igualitarismo
A tentativa de conciliação entre a liberdade e a igualdade envolve, em teoria,
muitas dificuldades. Se «la igualdad supone identidad y cierta conformidad asegurada
por una reglamentación general», a liberdade implica, por seu turno, «la diferenciación
y a la afirmación de particularismos» 85 . Esta suposta ambivalência é meramente
aparente, porque «la igualdad liberal aparece tan inseparable de la libertad» 86. Dito de
forma análoga, a igualdade liberal é ela mesma condição e garantia de liberdade.
A este respeito, Rousseau afirma, na obra «O Contrato Social», que a «liberdade
não pode subsistir sem» 87 a igualdade.
Em total desacordo com o pressuposto do igualitarismo social e económico, que
preconiza uma semelhante condição social, bem como uma repartição completa e
idêntica dos recursos materiais disponíveis, a igualdade definida pelos liberais reside,
principalmente, na noção de posse de uma semelhante «dignidade e valor intrínsecos,
qualquer que seja sua raça ou credo, sua capacidade inata ou adquirida, sua formação e
82 Montesquieu, op. cit., p. 170.
83 Theodore Meyer Greene, op. cit., p. 78.
84 Fernando Valera, op. cit., p. 13.
85 André Vachet, op. cit., p. 203.
86 Idem, p. 176.
87 Jean-Jacques Rousseau, O Contrato Social, trad. de Leonaldo Manuel Pereira Brum, vol. 95,
3.ª ed., Publicações Europa-América, Colecção «Livros de Bolso Europa-América», Mem Martins, p. 57.
31
actual posição social» 88 . Neste sentido, André Vachet afirma expressamente que a
«concepción liberal de la igualdad supone la ausencia de cualquier igualitarismo social
y justifica el individualismo» 89.
Do mesmo modo que condena o igualitarismo social e económico, devido às
suas pretensões declaradamente uniformizantes, a doutrina liberal reprova a completa
uniformidade de opiniões.
Definida como igualdade de direitos, especialmente no direito à liberdade, a
igualdade liberal não visa anular as diferenças individuais provenientes do exercício
diferenciador da liberdade. Com efeito, a desigualdade em termos de capacidades,
virtudes, méritos pessoais e papéis sociais mantém-se totalmente legítima.
Em consonância com as afirmações anteriores, Bernard Crick esclarece que a
igualdade que a Revolução Francesa consagrara «não era uma igualdade económica,
mas uma igualdade de estatuto enquanto cidadãos» 90.
Rousseau, um dos ilustres representantes da corrente liberal, embora admita que
as desigualdades físicas e intelectuais entre os indivíduos sejam naturais, realça a
igualdade jurídica. Na obra «Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade
entre os homens», o proeminente pensador político refere conceber «na espécie humana
duas formas de desigualdade: uma, a que chamo natural ou física, porque estabelecida
pela natureza, e que consiste na diferença de idades, saúde, de forças do corpo e de
qualidades do espírito ou da alma; a outra, que pode denominar-se desigualdade moral
ou política(...)» 91 . Acrescenta, ainda, que esta última «consiste nos diferentes
privilégios de que gozam alguns em prejuízo dos outros, como o ser-se mais rico, mais
honrado, mais poderoso(...)» 92.
Pela importância atribuída à igualdade jurídica, o Liberalismo é uma doutrina
que não se coíbe de condenar, de forma veemente, alguns dos elementos que ameaçam
fazer ruir aquele princípio: os privilégios políticos e os monopólios económicos. Uma
vez consagrada a existência de direitos iguais para todos, o princípio da igualdade
jurídica traduz-se numa feroz reação contra todo e qualquer privilégio. A apologia de
88 Theodore Meyer Greene, op. cit., p. 164.
89 André Vachet, op. cit., p. 181.
90 Bernard Crick, A Democracia, trad. de Carla Hilário Quevedo, 1.ª edição, Edições Quasi, Vila
Nova de Famalicão, 2006, p. 58.
91 Jean-Jacques Rousseau, Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os
homens, trad. e prefácio de José Pecegueiro, vol. 1, Livraria Athena, Colecção Devir, Porto, 1964, p. 25.
92 Ibidem.
32
uma igualdade de oportunidades para todos é, em si mesma, a clara contestação do
regime de privilégios 93.
Ciente das debilidades de uma liberdade meramente formal, Theodore Greene
assinala «que as liberdades civis e políticas pouco significam se se divorciam da
segurança e das oportunidades de ordem econômica» 94. Sem um mínimo de bem-estar,
as pessoas dificilmente conseguem fruir as mais elementares liberdades políticas e civis.
A este respeito, Maurice Duverger assinalou a 'alienação política', manifesta na
privação de direitos políticos: «As liberdades políticas, reais para uma burguesia que
tinha meios para as exercer, eram formais para o proletariado» 95.
Para além de tudo quanto se disse, a problemática da igualdade jurídica faz
intervir as noções de reciprocidade, alteridade e intersubjetividade, pressupondo uma
exigência de profundo respeito pela liberdade de todos 96. Em total sintonia com a
valorização destes três conceitos, Theodore Greene declara expressamente que «não há
direitos humanos sem respeito aos correspondentes deveres do homem» 97.
De igual modo, Fernando Valera sustenta que, para o Liberalismo, a «libertad
consiste en hacer todo lo que no perjudique a otro; por lo tanto, el ejercicio de los
derechos naturales de cada uno no tiene más límite que los límites que afianzan a los
demás miembros de la colectividad el goce de iguales derechos» 98.
Se «La teoría política liberal culmina en el famoso laissez faire, laissez passer
de Gournay», que visa assegurar o «máximo de libertad al individuo» 99, não deixa,
porém, de adotar uma conceção de Estado que procura impedir que os indivíduos se
prejudiquem mutuamente.
93 A respeito do tema dos 'privilégios', interessa assinalar a inflexão oligárquica e plutocrática
que o Estado liberal sofreu na sua evolução histórica. Ela foi, de facto, uma das maiores contradições em
que o Liberalismo burguês se viu envolvido.
Se, no plano dos objetivos, este tipo de organização social e política desejava a eliminação dos
privilégios políticos, proporcionando a todos iguais direitos e liberdades políticas e civis, a realidade
haveria, contudo, de o desmentir. Como se verificou, a liberdade de uns foi beneficiada em detrimento da
de outros. Com o favorecimento exclusivista dos interesses burgueses em prejuízo de outros, fazendo
também depender o exercício dos direitos políticos da posse e riqueza material, a referida organização
acabou por desembocar num conservantismo flagrante, avesso a todo e qualquer intuito de transformação da estrutura social vigente.
94 Theodore Greene, op. cit., p. 219.
95 Maurice Duverger, op. cit., p. 290.
96 Como veremos adiante, Raúl Proença destacou-se por abraçar uma conceção de Liberalismo
que combina as noções de liberdade individual e reciprocidade, erigindo o conceito de 'Cada Um'.
97 Theodore Greene, op. cit., p. 192.
98 Fernando Valera, op. cit., p. 12.
99 André Vachet, op. cit., p. 199.
33
Apesar da valorização primária da liberdade, a doutrina liberal procura conciliar
a defesa das liberdades ou direitos individuais, intrínsecos à natureza humana, com as
exigências de vida comunitária e, particularmente, com o respeito dos direitos dos
outros indivíduos e a definição de interesses comuns imprescindíveis à convivência
humana.
2.6. Individualismo, jusnaturalismo e contratualismo
As filosofias individualista, jusnaturalista e contratualista são referências
correntes na teorização liberal. Torna-se impossível ter uma perceção clara acerca do
significado do Liberalismo, se o desligarmos dos laços íntimos que mantém com elas.
Sendo uma das premissas fundamentais da ideologia liberal, o individualismo,
que aparece após a dissolução da conceção organicista da sociedade, nos finais da Idade
Média, proclama a «afirmación del individuo y su superioridad sobre todo mecanismo
colectivo, lo cual justifica la preferencia dada a la libertad individual sobre las
estructuras colectivas» 100 . No entanto, para o Liberalismo, isto não significa que a
sociedade seja uma realidade meramente atomística.
Do jusnaturalismo há a destacar a noção de direitos naturais, prévios a todo e
qualquer pacto social. Os indivíduos, pelo simples facto de o serem, possuem um
conjunto específico de direitos (liberdade, igualdade, propriedade, direito à vida, entre
outros). Em virtude das pretensas inviolabilidade e sacralidade reconhecidas aos direitos
naturais, a doutrina liberal conferia permissão ao soberano de poder dispor deles
somente se os seus titulares o consentissem.
Para além da liberdade e igualdade, um dos direitos com ampla ressonância na
mundividência liberal é o direito à propriedade. Conforme é possível constatar, a
'Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão' consagra o direito natural de todos os
cidadãos à propriedade, contrariando, implicitamente, a noção de monopólios.
Para John Locke, um dos pilares do Liberalismo, o fundamento histórico da
propriedade privada recai sobre o trabalho exercido sobre as coisas da natureza. É o
trabalho que, retirando as coisas do estado comum em que a natureza as havia colocado,
100 Idem, p. 73.
34
«faz com que se transformem em propriedade daquele que o exerceu» 101. Uma breve
incursão pela obra «Segundo Tratado Do Governo» iria, por certo, diluir possíveis
dúvidas.
Do contratualismo há a realçar a noção de pacto social. Por uma necessidade
imperiosa de defesa e proteção dos seus direitos naturais, os indivíduos decidiram unir-
se. Como ordem artificial, a sociedade civil é o resultado do consentimento dos
indivíduos.
Em clara alusão a John Locke, para quem o poder político era «oriundo de um
pacto ou contrato social, firmado por homens naturalmente livres» 102, Eduardo Soveral
reitera que a finalidade do contrato social para os indivíduos consistiu em «ver
defendidas a sua liberdade e a sua fazenda...» 103. John Locke insiste, na obra «Segundo
Tratado Do Governo», que «a origem das sociedades políticas está no consentimento
daqueles que a ela aderem e a constituem» 104.
Na obra «O Contrato Social», Jean-Jacques Rousseau, um dos autores que
melhor personificam a corrente contratualista, refere que os «homens atingiram aquele
ponto em que os obstáculos que prejudicam a sua conservação no estado de natureza
levam a melhor(...)», acrescentando que «não dispõem de outro meio para se conservar
que não seja o de formarem, por agregação, uma soma de forças que possa levá-los a
vencer(...)» 105. Sublinha, em seguida, que o «encontrar uma forma de associação que
defenda e proteja com toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado(...)»
constitui «o problema fundamental de que o contrato social dá a solução» 106.
Na medida em que funda a origem do Estado na referida necessidade de
conservação dos direitos naturais, o contratualismo consagra, com efeito, a
anterioridade, precedência e preeminência do individual sobre o coletivo.
101 John Locke, op. cit., p. 58.
102 Eduardo Soveral, Sobre os valores e pressupostos da vida política contemporânea e outros
ensaios, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Colecção Estudos Gerais. Série Universitária, Lisboa, 2005,
p. 37.
103 Idem, p. 381.
104 John Locke, op. cit., p. 125.
105 Jean-Jacques Rousseau, O Contrato Social, p. 23.
106 Ibidem.
35
2.7. Estado: uma necessidade e/ou uma ameaça
Contrariamente ao que seria de supor, a doutrina liberal põe em relevo a noção
de imprescindibilidade do Estado 107. Segundo ela, compete à entidade estatal permitir
que cada um possa «desenvolver sus infinitas potencias creadoras en un medio
armónico de paz y justicia» 108.
Em estreita conexão, o individualismo, o jusnaturalismo e o contratualismo são
filosofias políticas absolutamente indissociáveis da mundividência liberal, conforme
tivemos oportunidade de sublinhar. Na verdade, foi o desejo de proteger os direitos
naturais que conduziu os indivíduos à criação da sociedade civil. A este respeito, é
digno de atenção o Artigo 2.º da 'Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão': o
«objectivo de toda a sociedade política é a conservação dos direitos naturais e
imprescindíveis do homem, a saber: a liberdade, a segurança, a propriedade e a
resistência à opressão».
No preâmbulo à constituição de 1793, refere-se que o Estado deve assegurar
proteção e segurança aos indivíduos, aos seus direitos e propriedades. É justamente a
impotência dos esforços individuais para assegurar a paz, a proteção da vida, da saúde e
dos bens individuais que conduz ao reconhecimento da necessidade do poder político.
Para John Locke, figura tutelar do Liberalismo, o «governo civil é o remédio
adequado para os inúmeros e graves inconve-nientes do estado de natureza(...)» 109.
Noutro passo, este autor explica que o «principal fim que conduziu à união dos homens
em sociedade e à sua submissão a um governo, foi a preservação das suas
propriedades» 110.
A respeito da mesma problemática, Theodore Greene afirma que o governo deve
empenhar-se em promover o bem-estar público, «sem recorrer a uma arregimentação
iliberal e sem entregar-se a um paternalismo que, afinal, desencoraja a iniciativa privada
e, por isso mesmo, adversa ao interêsse do liberal pela responsabilidade individual» 111.
A discussão em torno da questão do paternalismo e assistencialismo estatais não
é completamente descabida. Nos dias de hoje, em que o tema da austeridade económica
107 A noção de necessidade do Estado será retomada mais adiante, quando pusermos em foco a
doutrinação de Proença.
108 Fernando Valera, op. cit., p. 68.
109 John Locke, op. cit., p. 42.
110 Idem, pp.143 e 144.
111 Theodore Greene, op. cit., p. 221.
36
marca os ritmos e rotinas diárias das pessoas, para além de dominar a agenda política de
diversos governos nacionais, o debate em torno dos benefícios sociais concedidos pelo
'Estado Social' adquire particular relevância e foco de interesse.
Surgido para proporcionar aos mais necessitados e carenciados condições
mínimas de vida, esta entidade tende a promover uma situação em que as pessoas, sob a
sua tutela e amparo, se demitem das suas responsabilidades individuais. Apesar das
múltiplas prestações sociais asseguradas pela referida organização, são muitos os
críticos que reprovam as suas políticas assistencialistas por incrementarem uma certa
preguiça e inércia individuais.
Embora se reconheça a importância do Estado, está-se longe de admitir que isso
pressupõe a negação da constante necessidade de repensar e fiscalizar os seus
procedimentos e práticas.
Uma das problemáticas nucleares em toda a reflexão de ordem política diz
respeito às permanentes tensões entre as tendências liberais e as tendências totalitárias
dos Estados. As sociedades contemporâneas debatem-se com desafios vários, mais
concretamente com a tentativa de encontrar o equilíbrio perfeito entre posições mais
permissivas e abstencionistas, por um lado, e mais autoritárias e estatistas, por outro.
Esforçam-se, continuamente, por encontrar o «justo meio entre uma tutela totalitária por
um lado e, por outro, uma liberalização excessiva» 112 focada no egoísmo individual. Se,
por um lado, pretendem proporcionar a cada um «o máximo de desenvolvimento
individual e empresarial, bem como restringir e controlar a acção do Estado» 113, por
outro, reconhecem a necessidade de intervir, de forma a restringir o egoísmo individual
e harmonizar os interesses em conflito.
Num Estado que tudo permite, é razoável admitir que a liberdade individual fica
vulnerável e mais exposta a ameaças externas. No caso de um Estado de pendor
autoritário, a liberdade individual torna-se, provavelmente, objeto de opressão e coação.
Relativamente à questão do Estado, André Vachet ressalta as «actitudes
contradictorias del liberalismo, que vacilan entre el temor y la necesidad del Estado...»
114. Paradoxalmente, a «sociedad y el Estado pueden ser concebidos como instrumentos
de liberacion», sendo, assim, «complementarios de la libertad», ao mesmo tempo que
constituem «un posible peligro para esta libertad (...), su límite necesario» 115. O mesmo
112 Reinhold Zippelius, op. cit., p. 381.
113 Idem, p. 380.
114 André Vachet, op. cit., p. 201.
115 Ibidem.
37
autor prossegue: «Así, dialécticamente, el Estado aparece como la condición y la ruina
de la libertad» 116.
Marcado por esta ambiguidade fundamental, o pensamento político liberal
procura proteger e assegurar a independência dos indivíduos face às permanentes
ameaças de invasão e coação, proclamando, em simultâneo, a necessidade do Estado
para proteger o indivíduo da agressividade e conflitualidade.
Os direitos naturais do indivíduo, que John Locke e Montesquieu defendem
como limite à atuação ou intervencionismo estatal, são, paradoxalmente, «los que, en el
pensamiento de Hobbes y Rousseau, exigen la creación de la sociedad, y en el de Locke,
el establecimiento del Estado» 117. Em «O Contrato Social», Rousseau afirma, com toda
a clareza, que a associação civil surge para assegurar a segurança e a paz, elementos que,
no estado de natureza, eram precários e incertos, devido a uma situação de permanente
guerra e rivalidade entre os homens.
Apesar da finalidade individualista da sociedade, porque resultante da
necessidade de conservação dos interesses individuais, que estão sob constante ameaça
no estado de natureza, os indivíduos continuam a procurar restringir e delimitar a sua
ação.
A despeito das assumidas intenções individualistas subjacentes ao contrato
social, André Vachet adverte para o facto de Jean-Jacques Rousseau ter precipitado a
emergência de «una concepción orgánica de la sociedad que supera ampliamente el
individualismo» 118. Tendo promovido a socialização do indivíduo e a tentação estatista,
«se ha podido acusar a Rousseau, con bastante exactitud, de presagiar, pese a su
individualismo, los regímenes colectivos masificados» 119.
116 Ibidem.
117 Idem, p. 124.
118 Idem, p. 131.
119 Idem, p. 172.
38
2.8. Negação das posições libertária e estatista
A par de tantas outras caraterísticas já assinaladas, o Liberalismo rejeita
perspetivas diametralmente opostas como o abstencionismo estatal e o estatismo 120. A
este respeito, Fernando Valera adianta que a «libertad económica no se logrará, en
opinión de los individualistas, ni ausentándose el Estado de su deber, como pretenden
los abstencionistas, ni socializando - en realidad estatificando - la tierra y la riqueza;
antes bien, es misión del Estado velar por que cada hombre sea libre de poseer y
desfrutar lo que con su esfuerzo...» 121.
Em bom rigor, a filosofia liberal demarca-se quer do capitalismo cego, que causa
miséria e deteriora a dignidade humana, quer de uma socialização integral de todos os
bens, que potenciaria a emergência de um novo despotismo.
Deve-se desfazer a presunção de que o Liberalismo consagra a existência de
uma dicotomia irresolúvel entre o indivíduo e a sociedade. No entanto, é possível
antever, à partida, um dilema na tentativa de conciliar a iniciativa privada e a exigência
de cooperação social, uma vez que se a busca da primeira poderá desembocar num
individualismo implacável e extremo (que, alheio a restrições de qualquer ordem,
potencia a exploração, opressão e escravidão humanas), a procura da segunda poderá
conduzir à suspensão, ainda que, na melhor das hipóteses, temporária, das liberdades.
No seu cerne, a doutrina liberal assenta, fundamentalmente, no repúdio quer das
doutrinas libertárias, quer das estatistas ou comunitaristas excessivas.
Distancia-se, portanto, da aceitação de uma liberdade totalmente egoísta e
anárquica, derivada de um individualismo libertário, cujo exercício teria como corolário
mais imediato a violação da liberdade alheia. Uma liberdade e iniciativa privada assim
concebidas colidiriam com as exigências de solidariedade, cooperação, responsabilidade
e colaboração sociais, inerentes à própria vivência dentro de uma qualquer coletividade.
Considera-se, com efeito, que um individualismo exagerado conduz, irreversivelmente,
ao isolamento e desfaz a solidariedade.
120 Na conceção liberal de Raúl Proença, são notórias as semelhanças e afinidades com esta
posição. Em antecipação ao que será dito em momento oportuno, interessa reter, para já, que o ilustre
republicano recusou-se a aderir ao abstencionismo estatal e ao estatismo. As suas convicções liberais
impediram-no de transigir quer com um Estado que se abstém de intervir na regulação e arbitragem dos
conflitos entre os indivíduos, não garantindo a todos a necessária proteção dos seus direitos, quer com
uma entidade que tudo regula e coordena, sem escrúpulo algum em retirar iniciativa e liberdade aos seus
cidadãos.
121 Fernando Valera, op. cit., p. 66.
39
Simultaneamente à condenação da posição libertária, a perspetiva liberal afasta-
se do princípio da socialização extrema e do totalitarismo. Consubstanciada numa
integração ou absorção totais do indivíduo na sociedade, a socialização extrema
culminaria, inevitavelmente, na amputação e repressão da individualidade.
Geralmente, é comum associar ao Liberalismo a proposta de um minimalismo
estatal, que determina uma ação estatal exígua ou restrita, confinada praticamente a
funções de preservação e defesa dos direitos e liberdades, bem como de criação de uma
ordem jurídica que lhes possa servir de baluarte. Segundo Eduardo Soveral, no Estado
Liberal, o «campo da sua actuação é mínimo», enquanto que, no totalitário, é
indisfarçável a tentação de «alargar ao máximo a esfera política, levando ao limite o
direito de intervenção do Estado na vida social» 122. Em conformidade com a teoria do
'estado mínimo', «o sinal distintivo do liberalismo é restringir as competências estatais»,
conferindo-se «primazia à liberdade individual» 123.
Na verdade, a polaridade entre as noções de «Estado mínimo» e «Estado
máximo» é um dos temas centrais em toda a reflexão política. A primeira designa uma
postura relativamente abstencionista, limitada praticamente à função de garantia da
segurança e propriedades dos cidadãos, ao passo que a segunda diz respeito a uma ação
estatal assumidamente intervencionista e reguladora. No primeiro dos casos, a livre
iniciativa individual seria, claro está, a grande protagonista. Em estreita articulação, o
conceito de Estado como «mal necessário» 124 é perfeitamente revelador da lógica do
Estado minimalista. Em relação à noção de «Estado máximo», o Estado-Providência,
com intuitos assumidamente paternalistas, assistencialistas e eudemonistas (garantia de
felicidade para todos), é uma realidade histórica que nela tende a filiar-se.
Referindo-se à defesa que os liberais fazem da necessidade de o Estado interferir
no âmbito económico, A. J. Brito explica que o «grau de intervenção que preconizam é
muito mais restrito que o do socialismo e cingido ao indispensável» 125.
No esforço de compatibilização entre as referidas posições extremistas, a
doutrina liberal proclama, ao mesmo tempo, que o indivíduo possui liberdade individual
e está inserido numa determinada comunidade, à qual jamais poderá renunciar. A rutura
125 «Liberalismo», in Logos - Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia, vol. 3, Editora Verbo,
Lisboa/São Paulo, 1991, pp. 331-342.
40
dos vínculos sociais ameaça seriamente a sobrevivência dos indivíduos, uma vez que
estes carecem da sociedade para prover às suas necessidades mais elementares, bem
como para promover o desenvolvimento das suas capacidades individuais. Conforme
refere Theodore Greene, o «homem é um ser social porque (...) depende de seus
semelhantes para atender a suas necessidades físicas» 126. Como ser sociável que é, o
indivíduo jamais poderá viver imune a determinadas obrigações e laços sociais. A este
propósito, convém realçar que o Liberalismo está em total desacordo com a corrente
clássica do Cinismo, que acusa a sociedade de, ao invés de proporcionar a satisfação das
necessidades humanas, as fazer proliferar. Ressalve-se, no entanto, que a integração na
sociedade não deve conduzir ao sufoco integral da liberdade individual.
Ainda que a vivência individual dentro de uma determinada coletividade deva
estar orientada para a realização de um bem geral, isso não significa uma repressão dos
interesses individuais e particulares. A promoção de um bem comum que subjugaria
totalmente os interesses particulares culminaria, inevitavelmente, na emergência de um
regime tirânico.
126 Theodore Greene, op. cit., p. 150.
41
3. O LIBERALISMO EM RAÚL PROENÇA
Raúl Proença é um dos mais insignes representantes do Liberalismo no contexto
do pensamento português da primeira metade do século XX.
Com notórias reminiscências do Liberalismo clássico, o seu múnus doutrinário
assenta, fundamentalmente, na valorização de algumas das mais básicas premissas da
axiologia iluminista: Liberdade e Igualdade.
Como teremos oportunidade de observar em seguida, diversas são as
manifestações textuais de apreço por esses valores.
3.1. Liberdade, o valor supremo
À semelhança dos mais notáveis teóricos da doutrina liberal, Raúl Proença
realçou a preeminência da liberdade face a todos os restantes valores. O tema da
liberdade é, sem dúvida, um dos que mais permeiam a sua reflexão de ordem metafísica,
antropológica e, acima de tudo, ética e política.
No âmbito da apologia da renovação cultural e espiritual das elites, Raúl Proença
condenou, no artigo «Educação e jesuitismo» 127 , o jesuitismo mental e as práticas
pedagógicas dominantes, em virtude de se mostrarem castradoras da liberdade de
raciocínio, da criatividade e da responsabilidade pessoais. Para além disto, o grande
apreço que nutria pela liberdade serviu também de justificação para a sua adesão a uma
moral conjugal que autorizava o divórcio, o adultério e a união livre.
127 Veja-se A República, 27 de maio de 1911.
42
Apesar do seu republicanismo convicto, os seus preconceitos quanto à condição
feminina, que consagravam a subserviência da mulher, beliscam o seu pretenso
liberalismo, já que inibem a materialização da igualdade política, um dos valores
transversais à mundividência republicana.
A respeito deste tema, o ilustre intelectual político conservou uma posição
ambivalente. Por um lado, proclamou o direito da mulher à liberdade no amor, o que é
demonstrativo de um inequívoco progressismo. Por outro, reagiu contra a igualdade de
direitos no empenhamento político, considerando-a inconciliável com o ideal de pureza
feminina. Na verdade, não deixa de ser revelador de um flagrante conservadorismo que
ele tenha sugerido que a mulher devesse manter-se privada da participação política,
ficando confinada a tarefas de âmbito estritamente doméstico.
De particular importância, a série de artigos «Os grandes tipos humanos»
ressalta algumas das figuras que mais contribuíram para definir a tradição liberal, como
é o caso de Descartes e Marco Aurélio 128.
Apesar das óbvias divergências ideológicas, o jornalista de ideias nunca se
absteve de exigir a liberdade de expressão mesmo para os seus adversários políticos.
Neste sentido, ele denunciou, em «Carta a um Amigo do Brasil», «as práticas
repressivas dos democráticos contra o direito à livre expressão de opinião dos
monárquicos...» 129.
A este respeito, Daniel Pires põe em relevo, em «Cronologia da vida e obra de
Raúl Proença» 130, que, apesar da recusa absoluta do vanguardismo literário de António
Ferro, bem patente no artigo «Combates» 131, o confesso liberalismo de Raúl Proença
levou-o a subscrever o abaixo-assinado de 17 de julho de 1923 em protesto contra a
interdição da peça daquele autor, intitulada Mar Alto, mesmo tratando-se de um
adversário seu.
No artigo «Liberdade», embora tivesse fustigado os maus jornalistas, Proença
não se coibiu, porém, de exigir «ainda para esses, liberdade, liberdade e liberdade» 132,
tendo condenado, assim, a censura da imprensa. Em complemento, no artigo «Ecos», o
128 Veja-se A República, entre 12 de abril e 4 de julho de 1909.
129 A Águia, 2.ª série, n.º 19, julho de 1913.
130 Veja-se Polémicas, p. 54.
131 Veja-se Seara Nova, n.º 44, abril de 1925.
132 in Obra Política de Raúl Proença, vol. IV, Páginas de Política (4), Seara Nova, Lisboa, 1975,
p. 225.
43
intelectual político pôs em relevo que ser liberal implica ser «capaz de defender, mais
ainda do que a própria liberdade, a liberdade do adversário» 133.
Em «Conversa com as Novidades», artigo inscrito na longa polémica travada
com este jornal católico, Raúl Proença, contrariamente aos católicos portugueses, exigiu
liberdade para todos, independentemente de serem ou não seus inimigos. É nestes
termos que se expressa: «exijo absolutamente a liberdade do meu inimigo e sinto-me
capaz de dar a minha vida por ela» 134. A despeito das divergências ideológicas e
doutrinárias que o separavam dos seus adversários, ele manteve-se intransigente na
defesa da liberdade para todos.
O vasto apreço pela liberdade de expressão é, claramente, uma das marcas mais
distintivas da sua conceção liberal. No artigo «Independência», enalteceu o respeito da
liberdade de opinião individual 135. Na mesma direção, em «Liberdade, fim supremo»,
encarou a liberdade como pressupondo o «respeito de tôdas as oposições, de tôdos as
minorias, de tôda a heresia política ou religiosa, de todo o pensamento discordante» 136.
Irredutível na apologia da liberdade e adversário de «tôdas as formas de
ditadura» 137, como chegou a admitir, o vigoroso combatente de ideias acentuou, no
artigo «Unidos pela Pátria», o seu posicionamento pró-intervencionista na 1.ª Grande
Guerra, reconhecendo que o triunfo do imperialismo militar e antidemocrático alemão
representaria uma clara ameaça para «a liberdade das pequenas nações» 138.
Personificando esplendidamente a máxima nietzschiana do «viver
perigosamente», Raúl Proença jamais abdicou de bater-se pelos valores correlativos da
liberdade e tolerância, considerados, no artigo «A educação moral em Portugal», os
mais altos princípios da vida moderna 139. A expressão «a fé que pus na liberdade» 140,
que surge enunciada no segundo dos seus Panfletos, é perfeitamente reveladora da sua
defesa incondicional da liberdade.
133 Seara Nova, n.º 250, 11 de junho de 1931, p. 152.
134 Seara Nova, n.º 257, 13 de agosto de 1931, p. 262. 135 Veja-se A República, 11 de maio de 1908.
136 Seara Nova, n.º 239, 19 de fevereiro de 1931, p. 364.
137 «Réplica dum monstro de egolatria a um monstro de modéstia», Seara Nova, n.º 240, 26 de
fevereiro de 1931, p. 382.
138 in Obra Política de Raúl Proença, vol. IV, Páginas de Política (4), pág. 273. Consulte-se
ainda Marieta Dá Mesquita, Selecção, Prefácio e Notas a A Águia, direcção de António Reis, vol. 27, Alfa,
Testemunhos Contemporâneos, Lisboa, 1989, p. 238.
139 Veja-se Alma Nacional, n.º 6, 17 de março de 1910.
140 in Obra Política de Raúl Proença, vol. III, Páginas de Política (3), p. 286.
44
No artigo «O voto obrigatório» 141, insurgiu-se contra a proposta de lei eleitoral
de Veiga Beirão, que, consagrando o voto obrigatório, prefigurava, sem dúvida, uma
clara violação da liberdade individual.
Apesar do seu repúdio perante o revolucionarismo golpista impensado e
improvisado, Proença, no artigo «A Revolução e a Declaração dos Direitos», pôs em
evidência a legitimidade e a necessidade do recurso à revolução «quando são
suprimidas as liberdades» 142, isto é, como resistência à opressão e tirania, conforme
aparece devidamente consagrado na Declaração dos Direitos do Homem.
Com particular enfoque na liberdade de natureza eminentemente política, o
presente capítulo não ignora, porém, a reflexão de Proença em torno do tema do
retornismo. Iniciado em 1916, este estudo ajudou à fundamentação ética e filosófica das
suas futuras opções políticas.
Pondo a tónica nas objeções morais, Raúl Proença alegou que esta doutrina
introduz o determinismo e o necessitarismo mecanicista, avessos à liberdade humana.
Em objeção ao artigo de Sant'Anna Dionísio intitulado «Uma dificuldade preliminar do
pensamento de Raúl Proença», o nosso arguto polemista, no artigo «Sôbre a teoria do
Eterno Retôrno», considerou que ela «rebaixaria a personalidade a (...) máquina sem
liberdade» 143.
Inspirado na moral kantiana, o espiritualismo proenciano, que começara a
esboçar-se desde 1910, aquando da sua colaboração na Alma Nacional, contrariava as
pretensões determinístico-mecanicistas inerentes ao mencionado retornismo.
Recusando o retornismo da filosofia nietzschiana, dela apenas «retém (...) o
sentido da liberdade e autonomia do indivíduo» 144, vetor que haveria de moldar o seu
vitalismo.
Sob a inspiração de Nietzsche, a sua componente vitalista, que começara a
aflorar na referida revista, ajudou a diluir a sua anterior filiação ao positivismo cientista
e intelectualista, patente no seu estudo «Esboço do Positivismo (Monismo Positivista)».
No entanto, este seu vitalismo estava longe de desaguar num pretenso romantismo
libertário. Aliás, a lógica libertária implícita à filosofia voluntarista de Nietzsche
inspirara-lhe profunda repulsa.
141 Veja-se Alma Nacional, n.º 10, 14 de abril de 1910.
142 Veja-se Seara Nova, n.º 53, 15 de setembro de 1925.
143 Seara Nova, n.º 555, 2 de abril de 1938, p. 193. Interessa referir que António Braz Teixeira,
em Ética, Filosofia e Religião, destaca esta mesma recusa da teoria do Eterno Retorno por parte de Raúl
Proença (Ética, Filosofia e Religião, Editor Pendor, Coleção Razão Animada - 1, Évora, 1997, p. 34).
144 António Reis, op. cit., vol. I, p. 250.
45
Com uma atitude heterodoxa perante o paradigma republicano, Raúl Proença é
definido como «Republicano crítico, mas republicano» 145, porque sempre fiel ao ideal
republicano. Apegado, de modo particular, à componente iluminista do sobredito
paradigma, demarcou-se, por via do seu espiritualismo vitalista e voluntarista, para o
qual terá sido estimulado, como vimos, pela descoberta da filosofia de Nietzsche, de
outras componentes básicas dominantes do republicanismo português, a saber: o
romantismo, o cientismo, o positivismo, o nacionalismo e o materialismo.
Depois de ter vincado, sob a inicial influência da ortodoxia teofiliana
republicana e de Heliodoro Salgado, a «indissociabilidade do republicanismo e do
ateísmo» 146, Proença opôs-se, no artigo «O Partido Republicano e as crenças religiosas»,
à «lamentável confusão» 147 entre opções políticas e opções religiosas ou filosóficas.
Num elogio da tolerância, deplorou todas as formas de dogmatismo existentes (político,
religioso, filosófico, científico), consideradas opressoras para a liberdade de pensamento
e de crítica, bem como para a própria tolerância religiosa e ideológica. No fundo, como
ele próprio sugeriu em «A salvação nacional e os movimentos revolucionários», elas
despojam-nos da «liberdade de sermos nós próprios» 148.
Com a viragem de um ateísmo cientista e anti-religioso para um laicismo plural
e tolerante, filiado num democratismo assente na garantia dos direitos de todos os
indivíduos e no respeito sagrado dos direitos das minorias, a tese da ortodoxia
republicana segundo a qual o livre-pensamento se identificava com o ateísmo e o
sectarismo anti-religioso emergentes fora rejeitada por parte do notável republicano. O
livre-pensamento baseava-se, pelo contrário, na tolerância, sinónimo do respeito
absoluto por todas as crenças e opiniões de natureza religiosa e filosófica 149.
Numa breve incursão histórica, importa destacar que o anticlericalismo e o
laicismo anti-religioso e anticatólico inerentes ao republicanismo português retomaram
e prolongaram a tentativa, tanto do regalismo pombalino como do primeiro liberalismo
português, de operar uma cisão entre a Igreja e o Estado.
145 António Reis, op. cit., vol. II, p. 247.
146 António Reis, op. cit., vol. I, p. 121.
147 Veja-se Alma Nacional, n.º 21, 30 de junho de 1910. Este artigo está também reunido em
Obra Política de Raúl Proença, vol. IV, Páginas de Política (4), Seara Nova, Lisboa, 1975, pp. 239-246.
148 Seara Nova, janeiro de 1923.
149 Na obra O Pensamento especulativo e agente de Raúl Proença, Sant'Anna Dionísio põe em
acentuado destaque, de igual forma, a adesão de Raúl Proença à noção liberal da tolerância (O
Pensamento especulativo e agente de Raúl Proença, Seara Nova, Porto, 1949, p. 64).
46
Em coerência com a proposta da tolerância, Proença contrapôs a defesa do
Estado e Escola neutros à dos chamados Estado e Escola republicanos. Só os primeiros
seriam impulsionadores do tão desejável pluralismo de doutrinas e de opiniões,
impedindo uma possível deriva para uma conceção confessional. Entendia, na verdade,
que um Estado que possuísse uma doutrina, uma moral e uma escola únicas, «porque
pretensamente científicas» 150 , seria o prenúncio do advento do totalitarismo, que
promove a subordinação integral do indivíduo e a dissolução da democracia.
3.2. Primado do Indivíduo: no epicentro da visão liberal de Raúl
Proença
Em concordância com a matriz individualista intrínseca ao Liberalismo, Raúl
Proença instituiu o Indivíduo como categoria fulcral. Como teremos oportunidade de
observar, muitos são os excertos que permitem corroborá-lo. No artigo «Solidariedade»,
afirmou explicitamente que a sua doutrina enaltece o Indivíduo, visando o seu integral
desenvolvimento 151.
Em Carta a Bernardino Machado de maio de 1930, o corajoso republicano
insistiu na valorização do indivíduo: «Há uma ditadura das maiorias como há uma
ditadura das minorias. Sempre que há opressão - de um contra muitos, como de muitos
contra um - há ditadura. Só não há ditadura quando há o respeito pelo Indivíduo».
150 António Reis, op. cit., vol. II, p. 244.
151 Veja-se Alma Nacional, n.º 30, 1 de setembro de 1910.
47
3.3. Raúl Proença e a análise crítica da conjuntura política
Entre as mais distintas facetas de Raúl Proença, a crítica à conjuntura política foi
uma daquelas em que ele mais se notabilizou 152. Sob a inspiração permanente do valor
da liberdade 153, denunciou os vários acontecimentos e vicissitudes políticas que foram
funestas, de alguma maneira, para a liberdade e direitos individuais.
No artigo ironicamente intitulado «Liberalismo franquista», censurou o falso
liberalismo da governação franquista 154.
De igual modo, no artigo «Da Ditadura à Suspensão dos Direitos Políticos»,
exprobou o interregno ditatorial (governo de Pimenta de Castro), em que a opinião
liberal e democrática fora absolutamente negligenciada e desrespeitada 155.
Para além disto, o Sidonismo foi também objeto da sua crítica incisiva e mordaz.
No artigo «O problema das bibliotecas em Portugal», opôs-se-lhe ferozmente,
reprovando a sua deriva conservadora, autoritária e anticonstitucional 156.
Os movimentos reacionários do Grupo da Cruzada Nun'Álvares e do
Integralismo Lusitano (chefiado por António Sardinha), cujas ideias, de nítido recorte
autoritário-conservador, começaram, a partir de certa altura, a seduzir as elites
intelectuais e militares, foram alvos também do seu intenso combate ideológico e
doutrinário. Ora, foi precisamente na série de artigos intitulada «Acerca do Integralismo
Lusitano» 157 que a sua reação doutrinária ao movimento integralista atingiu o auge.
152 José Gama, num dos artigos que integram o catálogo A Águia e a Renascença Portuguesa no contexto da República, projetado para assinalar o centenário da revista A Águia, faz alusão à intervenção
de Raúl Proença «na leitura crítica e independente que fazia da situação caótica da vida nacional» («No
centenário de A Águia e da Renascença Portuguesa, no contexto da República: o projecto educativo-
pedagógico», A Águia e a Renascença Portuguesa no contexto da República. 1910-2010, organização de
Arnaldo de Pinho e Celeste Natário, Universidade do Porto - Faculdade de Letras e Universidade Católica
Portuguesa - Centro Regional do Porto, Porto, 2011, p. 53).
153 Em «Carta a um Amigo do Brasil», o eminente intelectual republicano define-se nestes
termos: «como sumamente liberal que sou...» (A Águia, 2.ª série, n.º 19, julho de 1913).
Este trecho poderá ser consultado ainda em Marieta Dá Mesquita, Selecção, Prefácio e Notas a A
Águia, direcção de António Reis, vol. 27, Alfa, Testemunhos Contemporâneos, Lisboa, 1989, p. 218.
Se a isto adicionarmos o trecho em que Raúl Proença refere que nas «democracias os valores máximos são constituídos pelos direitos individuais», incluído no artigo «Unidos pela Pátria» (in A Águia,
2.ª série, n.º 52, 53, 54, abril, maio, junho de 1916), ficamos, com certeza, mais esclarecidos quanto ao
seu tão proclamado Liberalismo (Marieta Dá Mesquita, Selecção, Prefácio e Notas a A Águia, direcção de
António Reis, p. 239).
154 Veja-se Democracia do Sul, de 8 de dezembro de 1906.
155 Veja-se A Águia, 2.ª série, n.º 43, julho de 1915. Assinale-se que este artigo está compilado
em Obra Política de Raúl Proença, vol. IV, Páginas de Política (4), Seara Nova, Lisboa, 1975.
156 Veja-se Pela Grei, n.º 3, julho de 1918.
157 Esta série encontra-se publicada na revista Seara Nova.
48
No artigo «O programa do Dr. Gomes da Costa: 'integralista por sugestão' - a
opinião do sr. Raúl Proença do Grupo Seara Nova», a orientação do movimento do 28
de Maio é descrita como ultraconservadora, evidenciando uma deriva reacionária 158.
Com a suspensão da Seara Nova, imposta pela censura prévia e decretada em 23
de junho de 1926, o insigne republicano teve de prosseguir o seu labor polemista através
do recurso à derradeira arma do panfleto, refugiando-se na clandestinidade. Só a 14 de
abril de 1927 é que a Seara Nova haveria de retomar a sua publicação.
Nos Panfletos de Raúl Proença, a tónica dominante recai sobre a condenação da
censura, da repressão política, da proscrição e supressão de alguns dos direitos
individuais, especialmente a liberdade de discussão e de crítica, que a Ditadura Militar
tinha levado a efeito. Entre outros malefícios, a subversão dos objetivos originários do
movimento do 28 de Maio foi um dos inúmeros visados. Em «Revelação duma alma»,
Raúl Proença afirmou incluir-se entre os «adversários intransigentes da ditadura» 159.
Depois da análise lúcida dos erros da Ditadura, desenvolvida no primeiro dos
seus Panfletos, intitulado «A Ditadura Militar: História e Análise de um Crime», o
escritor de ideias, feroz contestatário do insurrecionismo permanente e crónico, não só
sublinhou a legitimidade como também a necessidade do «recurso extremo a essa forma
violenta de combate» que é a revolução, «inteiramente justificada quando um governo
suprime os direitos políticos, e estabelece, em vez dum regime de direito, um simples
regime de opressão» 160 . Esta é justamente uma das condições legitimadoras da
revolução, para além da exigência de um largo movimento prévio de opinião pública
que a apoie. Para uma melhor compreensão, interessa ressaltar, porém, que a ditadura
transitória que o grupo seareiro chegou a propor em certos casos diverge da solução
autoritária, anti-socialista e antiliberal da ditadura sugerida pelas diversas correntes de
extrema-direita.
Com um pensamento em constante tensão com o real, em «Resposta ao Sr.
Afonso Lucas, 'ci-devant' homem livre», Raúl Proença hostilizou as ofensivas
crescentes do bolchevismo e do fascismo, resistindo «aos caprichos da moda e o êxito
das fórmulas sociais, venham da Itália de Mussolini ou da Rússia dos Sovietes» 161.
158 Veja-se A Tarde, 15 de junho de 1926.
159 Seara Nova, n.º 95, 15 de julho de 1926, p. 444.
160 in Obra Política de Raúl Proença, vol. III, Páginas de Política (3), p. 216.
161 idem, p. 69.
49
No primeiro dos seus Panfletos, repudiou também a «onda de barbarismo
antiliberal e intolerante que invadira a Europa» 162 , bem como as modas do
mussolinismo e do riverismo, por todas elas terem contribuído para a queda da
República.
Em relação ao mesmo tema, o doutrinário político denunciou, no artigo «O
fascismo e as suas repercussões em Portugal», a falsa Ordem e o falso Progresso sobre
os quais a corrente fascista supostamente se estriba: uma Ordem que reside na
«supressão de tôdas as liberdades», na arregimentação e homogeneização do
pensamento, impostas através do «terrorismo mais violento» 163, sem o qual não seria
capaz de subsistir; e um Progresso confinado à dimensão de uma prosperidade e
felicidade estritamente materialistas e hedonistas. Em primeiro lugar, para Raúl Proença,
a autoridade, longe de se confundir com o autoritarismo, é concebida não como um fim
em si mesmo, mas como um meio ao serviço da liberdade.
Em «Uma apologia do fascismo», fustigou a ideologia fascista por escamotear o
idealismo ético, subalternizando-o à prosperidade material. Segundo o ilustre democrata,
a Liberdade é, em bom rigor, a «condição essencial do desenvolvimento da Cultura e do
próprio progresso material do mundo» 164.
A 9 de fevereiro de 1928, Raúl Proença retomou o seu apostolado doutrinário na
Seara Nova, justamente no n.º 115, iniciando a série de artigos intitulada «Para um
evangelho de uma acção idealista no mundo real», consagrada ao livro 'La Trahison des
Clercs', da autoria de Julien Benda.
Mesmo após a malograda Revolução de 3 de Fevereiro de 1927, em que
participou ativamente, o doutrinário republicano não abandonou o seu papel de «lutador
intransigente contra todos os atentados à liberdade» 165.
Em «Liga de Defesa da República. Nota enviada aos jornais e aos ditadores
desmentindo uma calúnia», a Liga de Paris, protagonista da oposição republicana no
exílio, na qual Raúl Proença foi um dos seus colaboradores mais ilustres, afirmou a sua
inteira demarcação face ao bolchevismo, devido não só à defesa de ideias opostas, como
ainda à recusa de processos violentos e terroristas 166.
162 idem, p. 186.
163 Seara Nova, n.º 77, 6 de março de 1926, p. 84.
164 Seara Nova, n.º 87, 13 de maio de 1926, p. 285.
165 António Reis, op. cit., vol. II, p. 10.
166 Veja-se A Revolta, 26 de julho de 1927.
50
Em bom rigor, a doutrina bolchevista contrariava não só as convicções e
princípios doutrinários da Seara Nova, como também os métodos e estratégias por ela
preconizados.
No documento «La lutte pour la liberté au Portugal. Sa portée universelle. Ce
que veulent les libéraux portugais» 167, de 5 de outubro de 1928, o combatente de ideias
tinha censurado o facto de a Ditadura ter desenvolvido a sua obra à custa dos mais
ignóbeis atos, como a supressão de todas as liberdades, a censura, as prisões, as
deportações e torturas.
A partir dos anos 30, as teses marxistas e bolchevistas começaram a exercer
crescente fascínio sobre a nova geração, a juventude republicana progressista e as elites,
alastrando-se até aos setores oposicionistas. Em «A Rússia ao léu. II - Algumas
considerações para uso dos portugueses», Raúl Proença manifestou a sua inteira repulsa
perante os «métodos bolchevistas, violentamente expeditivos, revoltantemente atrozes»
168 e violentos, a que contrapôs, em alternativa, uma estratégia baseada na adoção dos
métodos lentos, naturalmente persuasivos. Reagiu ao pretenso «liberalismo novo» de
que essas teses se arvoravam em defensoras, acusando-as de serem, com efeito, «o
contrário de liberalismo» 169.
Em Carta a Bernardino Machado de 3 de outubro de 1931, o intelectual político,
perante a situação de haver «Dum lado uma ditadura opressiva, do outro uma massa
semi-bolchevizada...» 170, reivindicou, como em outras tantas ocasiões, a propaganda
democrática.
Em novembro de 1931, a doença psíquica acometeu-o. A sua reclusão no
hospital psiquiátrico impedi-lo-ia de continuar a fazer da liberdade uma paixão vital.
167 Este documento encontra-se reunido na obra Jaime Cortesão, Raúl Proença - Catálogo da
Exposição Comemorativa do Primeiro Centenário (1884-1984), coordenação de Jacinto Baptista,
Biblioteca Nacional, Lisboa, 1985, pp. 266 e 267.
168 Seara Nova, n.º 243, de 19 de março de 1931, p. 39.
169 Idem, p. 40.
170 Cf. Arquivo Bernardino Machado, Vila Nova de Famalicão.
51
3.4. Interpenetração das doutrinas individualista e solidarista
Entre o seu vasto repertório literário, os artigos «Individualismo e etatismo» 171 e
«Solidariedade» 172 constituem duas das expressões mais fulgurantes da correlação entre
o individualismo liberal e o solidarismo socialista. Neles exibiu, efetivamente, o seu
singular democratismo. Em contraposição com a noção de democracia fundada no
princípio da tirania do maior número, a sua conceção democrática traduziu-se no
respeito pelos direitos sagrados do indivíduo, dos quais que se destacam o direito de
livre pensamento e o direito à diferença, enunciados anteriormente no artigo «O que é a
tolerância» 173.
Coerente com uma atitude de ecletismo doutrinário, o jornalista de ideias
combinou, simultaneamente, a doutrina individualista e solidarista. Por um lado,
rejeitou o individualismo exacerbado, hipertrofiado, delirante e anarquista, que,
desenvolvido sob a inspiração doutrinária de Stirner, é responsável não só por eximir a
iniciativa individual de qualquer restrição legal, mas também por fazer sobrepor o Eu à
Sociedade. Por outro, renegou ao gregarismo dogmático e ao mais exagerado
sociocratismo, que, sendo herdeiros de Augusto Comte, impõem, por meio de métodos
coercitivos, a sujeição do indivíduo à coletividade, do Um ao Todo. Distanciou-se tanto
do anarquismo, embora não estivesse agradado com o funcionamento perverso das
instituições republicanas, como do comunismo e bolchevismo 174, pelo que estes últimos
ostentavam de opressor para a liberdade individual.
Segundo Sant'Anna Dionísio, Raúl Proença refuta «a hipertrofia da pessoa (que,
no limite, dera, por exemplo, a concepção do irresponsável Único de Stirner), como a
absolutização do Estado que Rousseau (...) irreflectidamente e paradoxalmente havia
preparado» 175.
No artigo «Individualismo e etatismo», Raúl Proença esclareceu que «para o
etatista o indivíduo só vale na medida em que se subordina à sociedade, para o
individualista a sociedade só vale na medida em que serve o indivíduo» 176 . Aí,
171 Alma Nacional, n.º 29, de 25 de agosto de 1910.
172 Alma Nacional, n.º 30, de 1 de setembro de 1910.
173 Veja-se A República, 14 de julho de 1909.
174 Numa breve alusão histórica, importa relembrar que a rápida ascensão do comunismo,
bolchevismo e fascismo no panorama europeu ficou a dever-se, sobremaneira, ao clima reinante de
descontentamento e desilusão sociais.
175 in O Pensamento especulativo e agente de Raúl Proença, p. 78.
176 Alma Nacional, n.º 29, de 25 de agosto de 1910.
52
concebeu a democracia «à moderna», isto é, inspirada na Revolução Francesa, a qual
«não pode ser senão o acordo de todos para garantir a liberdade de cada um» 177. No
artigo «Solidariedade», asseverou, por seu turno, de forma perentória: «nós não
defendemos o Eu, esta hipertrofia que quando se afirma oprime; mas o Cada um» 178.
Deste modo, o ilustre republicano mostrou-nos como a noção de 'Eu' pode desembocar
no impulso libertário, ao passo que a categoria do 'Cada Um' é a que dá real ênfase à
natural exigência de reciprocidade 179.
Paralelamente, Raúl Proença não se coibiu, segundo António Reis, de denunciar
os riscos inerentes ao «ideal altruísta-solidarista, de inspiração comunitarista, da moral
republicana» 180. Admitiu que esse mesmo ideal, ao privilegiar a dimensão social do
indivíduo por oposição a uma conceção abstrata do mesmo, poderia vir, eventualmente,
a impedir um saudável individualismo liberal, assente, em boa verdade, na recusa da
subordinação do indivíduo à sociedade.
Em todo o caso, o seu credo individualista é também solidarista, porque, no
artigo «Solidariedade», demarcou-se quer do falso individualismo burguês, que explora
o trabalho dos outros, quer do amoralismo estético e da rutura niilista operada pelo
individualismo aristocrático de Nietzsche face à axiologia iluminista (Bem, Liberdade,
Justiça), sobre a qual se estribavam o individualismo, vitalismo, espiritualismo e
heroísmo moral do corajoso democrata liberal 181. Apesar da crítica àquela rutura niilista,
Raúl Proença, de modo inverso, enaltecia a apologia nietzschiana da expansão da vida
individual.
É de destacar que uma das grandes objeções ao pretenso Liberalismo do
individualismo burguês consiste no facto de este ter tornado o exercício dos direitos
cívicos dependente da posse de certas condições económicas. Os direitos não passavam,
em muitos casos, de mera formalidade. Na longa história da conquista dos direitos
cívicos, o sufrágio universal, por exemplo, foi uma conquista relativamente tardia.
Sucedendo ao sufrágio censitário e restrito, impeditivo de uma igualdade jurídica dos
indivíduos, o sufrágio universal representou um travão ao ímpeto oligárquico-burguês
inerente ao Estado liberal primitivo.
177 idem.
178 Alma Nacional, n.º 30, de 1 de setembro de 1910.
179 Conforme fizemos referência no capítulo precedente, o Liberalismo postula a conjugação
entre a liberdade individual e o respeito pela reciprocidade.
180 António Reis, op. cit., vol. II, p. 237.
181 Consulte-se Alma Nacional, n.º 30, de 1 de setembro de 1910.
53
No artigo manuscrito «II - Questões Sociais», Raúl Proença assumiu o
«solidarismo individualista» inerente à «democracia moderna», realçando a «noção
suprema da liberdade individual e da solidariedade universal», numa reação implícita
contra o militarismo belicista 182.
No artigo «Para um evangelho... - II. Da política e das suas paixões», o pensador
assinalou a concordância íntima entre a Democracia e o Cristianismo, fenómenos que,
embora de âmbitos distintos, convergem na valorização do conceito de indivíduo e dos
valores da liberdade e da igualdade 183. No sétimo artigo da série, intitulado «Para um
evangelho... - VII. Da necessidade prévia de defender a democracia das suas
aberrações», Raúl Proença indicou que a Democracia repousa sobre as «tendências
espirituais e individualistas que caracterizam verdadeiramente o cristianismo» 184 ,
inconciliáveis com a tentativa do fascismo e nacionalismo de absolutização ou
deificação de «Entes colectivos» como o Estado ou a Nação, conforme revela em
«Conversa com as Novidades» 185, artigo de réplica surgido no contexto da polémica
travada com o diário católico Novidades.
3.5. A liberdade e a reciprocidade
Este binómio é um dos elementos que reluzem com maior fulgor na doutrina
liberal. A profunda vontade de tornar a liberdade extensível a todos foi disso
sintomática.
Entre a vasta produção literária de Raúl Proença, há um excerto que sobressai,
de facto, por ilustrar perfeitamente esta correlação. No artigo «Liberdade, fim supremo»,
o autor proclamou que «o que limita a liberdade de todos é a liberdade de cada um e o
que limita a liberdade de cada um é a liberdade de todos» 186 . De igual forma, as
referências anteriores à categoria do 'Cada um' são também reveladoras da insistente
preocupação com a reciprocidade e intersubjetividade. O Liberalismo político do arguto
182 Raúl Proença, in II - Questões Sociais, 1 fl. ms., B. N. Esp. E7/cx. 29.
183 Consulte-se Seara Nova, n.º 117, 12 de abril de 1928, p. 406.
184 Seara Nova, n.º 158, 25 de abril de 1929, p. 211.
185 Seara Nova, n.º 257, de 13 de agosto de 1931, p. 261.
186 Seara Nova, n.º 239, 19 de fevereiro de 1931, p. 363.
54
polemista está, sem dúvida, em convergência ética com o personalismo, pondo a tónica
na noção de dignidade humana.
Dando especial ênfase ao tema da reciprocidade, Eduardo Soveral refere que,
«havendo uma pluralidade de liberdades legítimas, elas terão como limite inevitável o
respeito mútuo, igualmente garante de que nenhuma delas possa ser aniquilada» 187.
De igual modo, Luís de Araújo, na sua obra «Ética. Uma Introdução», acentua,
«por motivo da inexorável intersubjectividade, a dimensão da liberdade alheia que
impõe respeito...» 188.
3.6. Falsa contradição: Liberdade/Autoridade
Em analogia com as teorizações clássicas do Liberalismo, o doutrinário
republicano concebeu a liberdade e a autoridade como duas categorias complementares,
tendo eliminado toda e qualquer suposição de antinomia entre elas. Como prova disto,
afirmou, no artigo «O problema da ordem - 'Oxalá a acção do sr. Cunha Leal esteja à
altura da sua boa vontade' são os votos do sr. Raúl Proença, que crê não ter o chefe do
governo expresso bem o seu pensamento àcerca do 'mandar e obedecer'», não haver
antagonismo entre a liberdade, por um lado, e a ordem e a regra, por outro, dado que a
ordem e a obediência à regra constituem a condição da liberdade 189 . No capítulo
anterior, tivemos oportunidade de demonstrar que John Locke foi um dos mais
proeminentes teóricos do Liberalismo a subscrever este mesmo entendimento.
No artigo «Para um evangelho... - X. Da defesa da democracia (3.ª parte)» 190, o
autor das Páginas de Política retomou a teoria contratualista do Estado, fazendo alusão à
necessidade do controlo democrático como fórmula de prevenção contra o poder
absoluto e os abusos decorrentes do exercício político. Pelo contrato que o fundou, o
Estado está obrigado a agir em defesa dos direitos de todos os indivíduos ao seu integral
desenvolvimento espiritual, do interesse geral ou bem comum, ao invés de um pretenso
interesse exclusivo do governante ou finalidade providencial.
187 Eduardo Soveral, op. cit., p. 132.
188 Luís de Araújo, Ética. Uma Introdução, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2005, p.
18.
189 Veja-se O Século, 6 de janeiro de 1922.
190 Seara Nova, n.º 225, de 6 de novembro de 1930.
55
Em concordância com a articulação preconizada entre as referidas noções, Raúl
Proença considerou, em «Para um evangelho... - IX. Ainda a defesa da Democracia»,
que é no «justo equilíbrio entre a Autoridade e a Liberdade (que não só não são
incompatíveis, como, realmente, a condição uma da outra), entre a obediência aos
poderes e o contrôle dos poderes» 191 que se afasta as ameaças quer do despotismo, quer
da anarquia. Aliás, terá sido certamente com o intuito de evitar que o controlo sobre os
governantes pudesse ser deficiente e ilusório que o vemos refutar a doutrina clássica da
independência total dos poderes, teorizada historicamente pelo ilustre pensador
Montesquieu.
Em «Algumas palavras de proémio», o intelectual republicano acentuou, de
novo, a imprescindibilidade do princípio da autoridade, vista como condição e não
«qualquer coisa de contrário à liberdade» 192.
3.7. Liberdade e Igualdade: falsa dicotomia
Remontando já ao tempo em que Raúl Proença colaborava na revista Alma
Nacional, a sua conceção assumidamente individualista da democracia baseava-se na
complementaridade e implicação mútua entre os valores da liberdade e da igualdade, e
não, como poderia presumir-se, na sua exclusão e contraposição.
No artigo «Acêrca do Integralismo Lusitano - IV. Liberdade e Igualdade», Raúl
Proença exprobou a corrente integralista, a qual declarava haver uma antinomia entre
uma «igualdade essencialmente antiliberal» e uma «liberdade essencialmente anti-
igualitária» 193 . A este respeito, Sant'Anna Dionísio explicou que, para a corrente
integralista, «os homens não podem ser considerados juridicamente iguais; que a
liberdade não é, de resto, conciliável com a igualdade» 194.
Como réplica às posições integralistas, o doutrinário republicano alegou, no
mesmo artigo, que a liberdade não é «o regímen da licença ou do arbítrio», elementos
funestos para a liberdade dos outros, mas «produto da regulamentação» social, que
191 in Páginas de Política, 1.ª série, com prefácio de Câmara Reis, Seara Nova, Lisboa, 1938, pp.
306 e 307.
192 in Páginas de Política, 2.ª série, Seara Nova, Lisboa, p. 40.
193 in Páginas de Política, 1.ª série, p. 71.
194 Sant'Anna Dionísio, O Pensamento especulativo e agente de Raúl Proença, p. 71.
56
consagra a reciprocidade dos direitos, ao mesmo tempo que a igualdade também não
pode ser definida como o puro absurdo da «igualdade intelectual e moral dos homens»,
consistindo, antes, na simples igualdade de direitos através da qual se procura «eliminar,
como ilegítimas e anti-naturais, tôdas as diferenças resultantes de considerações
exteriores ao valor próprio dos indivíduos» 195.
Eis como Alfredo Ribeiro dos Santos nos descreve Raúl Proença: o
«extraordinário polemista Raul Proença foi o maior adversário do Integralismo» 196.
Fica demonstrado, de novo, como as exigências de respeito face à
intersubjetividade e reciprocidade de direitos impediram Proença de condescender com
o exercício de uma liberdade manifestamente desregulada e desenfreada, potenciadora,
em última instância, da violação dos direitos alheios. O Liberalismo que defende
pressupõe, no seu âmago, a estreita correlação entre as noções de direitos e deveres.
Embora assente também na igualdade de direitos, o seu credo liberal insurgiu-se
contra toda e qualquer pretensão de igualização, homogeneização e uniformização
completas dos indivíduos, causadoras de supressão óbvia da liberdade de iniciativa.
Em complemento, o escritor de ideias acrescentou ainda que a igualdade que
anula «o direito de desenvolver a própria personalidade» é uma falsa igualdade, da
mesma forma que a liberdade que concede «o direito de ser livre sem o poder de o ser»,
isto é, privada das condições concretas de igualdade que tornam possível o seu real
exercício, é uma liberdade ilusória 197. Conforme declarou, «a condição necessária da
igualdade dos direitos é a igualdade dos poderes: tanto monta dizer que a liberdade é
um ideal inteiramente vão na medida em que não marcha de par com a igualdade» 198.
Nestes dois últimos excertos, estão condensados alguns dos mais fundamentais
pressupostos de todo o seu universo doutrinário: a recusa quer de uma igualdade como
sinónimo de aniquilação do livre desenvolvimento individual, quer de uma liberdade
que, sendo meramente formal e abstrata, aparece despojada das mínimas condições
materiais necessárias para o seu efetivo e concreto exercício.
António Reis sugere que, no artigo «Solidariedade», Raúl Proença, sem ter
descurado o que de injusto poderia discernir-se no individualismo burguês e de
195 in Páginas de Política, 1.ª série, pp. 73-75. É conveniente ressaltar que este texto aparece
reunido na antologia de artigos que versam o tema da liberdade, intitulada A ideia da liberdade no
pensamento português (Romeu de Melo, seleção e prefácio de A ideia da liberdade no pensamento
português, Direcção-Geral da Comunicação Social, Colecção Breviários de Cultura, Lisboa, 1985).
196 Alfredo Ribeiro dos Santos, in A Renascença Portuguesa, um Movimento Cultural Portuense,
Fundação Eng. António de Almeida, com prefácio de José Augusto Seabra, Porto, 1990, p. 107.
197 in Páginas de Política, 1.ª série, p. 77.
198 Ibidem.
57
opressivo no individualismo aristocrático de Nietzsche, inclinou-se para «um
individualismo solidarista que pressupõe a igualdade nos direitos individuais de todos e
cada um no seio da sociedade e exige a solidariedade sem conformismo nem opressão»
199. Coerente com o Liberalismo, Proença concebeu a igualdade como a liberdade ao
alcance de todos e de cada um dos indivíduos. Em sintonia com a sua adesão à conceção
individualista da sociedade e consequente crítica da tentação organicista, o insigne
intelectual político «retoma, assim, a inspiração igualitária do republicanismo radical,
mas sempre atento ao perigo da dinâmica jacobino-estatista que aquele transportava
potencialmente no seu seio» 200.
Numa descrição sumária, interessa destacar que o jacobinismo constituiu uma
das facções que despontaram da Revolução Francesa. Filiado à tradição republicana,
pôs a tónica no valor do civismo e cidadania, acentuando, por conseguinte, o dever de
participação ativa na gestão e decisões públicas. Uma vez levada ao extremo, esta
valorização da soberania popular não deixaria de colidir, inevitavelmente, com a
exigência de liberdade individual. A respeito deste mesmo movimento, Proença chegou
a expressar, em alguns dos seus trechos, uma aversão pelos excessos persecutórios que
o jacobinismo republicano cometeu durante a 1.ª República.
Na tentativa de prevenir os riscos antagónicos inerentes ao comunitarismo e
libertarismo, o individualismo solidarista de Raúl Proença, ao erigir a categoria do Cada
Um entre o Eu e o Todo, buscou alcançar uma conciliação entre o valor da liberdade
individual e a exigência da reciprocidade social.
No artigo «Solidariedade», o doutrinário republicano esclarece-nos nestes
termos: «não defendemos o Um contra todos os outros. Defendemos cada um. E porque
defendemos cada um, defendemos todos. Não é o regime da liberdade animal. É o
regime da igualdade na liberdade, da liberdade em sociedade» 201.
Retomando a teorização que levara a cabo na série «Acerca do Integralismo
Lusitano», o autor das Páginas de Política, no artigo «Para um evangelho... - VIII. Da
defesa da democracia (1.ª parte)», opôs-se aos principais argumentos das doutrinas
reacionárias, que procuravam invalidar o princípio da igualdade. Na esteira de Kant,
proclamou, aí, a igualdade e o «igualitarismo», concebendo este último como a doutrina
que visa que «os homens sejam tratados como iguais pelo que nêles há de igual; como
199António Reis, op. cit., vol. II, p. 237.
200 Idem, p. 238.
201 Alma Nacional, n.º 30, de 1 de setembro de 1910.
58
diferentes pelo que nêles há de diferente», sem qualquer consideração pelos critérios da
fortuna e nascimento 202. Além disto, acrescentou que o «Igualitarismo nunca pretendeu
a supressão de tôda a diferença, antes, pelo contrário, o respeito de tôdas as identidades
reais e de tôdas as diferenças reais» 203.
Em «A Rússia ao léu. Algumas considerações para uso dos portugueses - II»,
acentuou, novamente, a conexão entre a liberdade e igualdade: «(...) se não podem opor
liberdade e igualdade (...) ser liberal é já ser igualitário de certa maneira, pois que
nenhum liberal pode pretender senão a liberdade de todos os homens. Ser igualitário,
por sua vez, é querer o bem-estar, a dignidade, a cultura, a liberdade de todos os
homens» 204.
3.8. Repúdio da conceção rousseauniana de democracia
Em função da sua apologia da liberdade individual, Raúl Proença denunciou a
dinâmica jacobina-estatista subjacente à conceção rousseauniana de democracia.
Dominada por uma constante ambiguidade, a conceção republicana de
democracia não se fixava simplesmente «na linha do liberalismo individualista vintista
enquanto regime de garantias das liberdades e direitos individuais dos cidadãos» 205,
tendo rapidamente enveredado também por um comunitarismo organicista. Neste
sentido, é razoável afirmar que, em contraste com a doutrina da tolerância e liberdade
individual de Voltaire, a doutrina da Vontade Geral e maioritária de Rousseau foi a que
mais permeou a conceção democrática do republicanismo português.
Em total desacordo com Rousseau, o doutrinário republicano discordou que a
essência da democracia repousasse sobre a noção de vontade maioritária, ao invés da
liberdade individual. Deste modo, ele preferiu escolher Voltaire como o autêntico
profeta do individualismo que servira de inspiração à Revolução de 1789.
Desde a sua colaboração na Alma Nacional que Raúl Proença tinha abraçado
uma visão da democracia divergente da perspetiva republicana, de nítido recorte
rousseauniano e jacobino. Segundo António Reis, a democracia, para o nosso insigne
202 Seara Nova, n.º 182, 10 de outubro de 1929, p. 212.
203 Idem, p. 215.
204 Seara Nova, n.º 243, 19 de março de 1931, p. 39.
205 António Reis, op. cit., vol. II, p. 240.
59
pensador, radica no princípio do respeito pelos «direitos sagrados do indivíduo, a
começar pelo direito de cada um a ser diferente e a pensar o contrário dos outros (...)» 206.
Em «Para um evangelho... - VII. Da necessidade prévia de defender a
democracia das suas aberrações», Proença insistiu que «é no direito individual, e não no
direito do número, que reside a essência da democracia» 207. Nada melhor do que a
seguinte descrição de António Reis para compreender realmente a conceção
democrática do ilustre republicano: «Entre a categoria individualista-liberal do Eu e a
categoria comunitarista-republicana do Todo, Proença institui, assim, uma nova
categoria fundadora da democracia - a categoria do Cada um, livre e igual em direitos e
deveres. Deste modo, a democracia é, antes de mais, o regime que garante ao máximo
os direitos de todos os indivíduos, daqui decorrendo o seu carácter a um tempo liberal e
igualitário (...) E implica, por outro lado, tanto o direito à liberdade de opinião como o
direito à revolta contra a maioria quando esta se atreve a violar direitos essenciais do
indivíduo» 208.
Paralelamente, Raúl Proença, ainda no sétimo artigo acerca do livro de Julien
Benda, condenou Rousseau por ter favorecido a aceitação do contrato como
correspondendo à «alienação total de cada associado com todos os seus direitos a tôda a
comunidade», assim como ao «dom incondicional e total» de cada vontade individual à
vontade geral 209 . A este respeito, assinalou que «esta abdicação pura e simples da
vontade individual perante a vontade geral» fomenta a violação e opressão da liberdade
e autonomia do indivíduo pela ditadura da maioria, podendo «constituir-se em razão
justificativa de tôda a espécie de tirania» 210.
O fervoroso democrata rebateu o pretenso individualismo do autor do Contrato
Social, considerando-o, na verdade, precursor do estado totalitário moderno e não, como
seria de supor, da ideia democrática. Adiantou ainda que a perversão rousseauniana do
conceito de democracia, além de ter conduzido ao regime do Terror de 1793, acabou por
estar na génese das experiências bolchevista e fascista 211.
Na sequência das afirmações anteriores, Raúl Proença, em «Algumas palavras
de proémio», apodou o Rousseau do Contrato Social de ser o profeta da «democracia
206 Ibidem.
207 Seara Nova, n.º 158, 25 de abril de 1929, p. 211.
208 António Reis, op. cit., vol. II, p. 240.
209 Seara Nova, n.º 158, 25 de abril de 1929, p. 213.
210 Seara Nova, n.º 158, 25 de abril de 1929, p. 214.
211 Se bem nos recordamos, André Vachet insistira, de igual modo, numa idêntica repulsa face à
preeminência da vontade maioritária.
60
que hoje poderemos chamar totalitária, a que pertencem o maximalismo russo, o
fascismo italiano, o nazismo e o nacional-socialismo germânico, o republicanismo
autoritário» turco e polaco, e com a qual Sidónio se identificara 212. De igual modo, não
deixou de assinalar como a emergência, a partir dos anos 30, na Europa, do
nacionalismo, reacionarismo, nazismo, bolchevismo e totalitarismo veio desmentir as
suas mais íntimas convicções iluministas. Com uma expressão de relativa desolação,
interrogou-se se era «esta a Europa da Justiça e da Liberdade» 213.
Neste último artigo, vejamos como Raúl Proença, de uma forma sucinta, mas
muito explícita, se define: «Eu, a-pesar-de tudo, era democrata, liberal, republicano e
socialista, antiliberalista-económico e antiplutocrático» 214.
No prefácio ao 1.º volume das Páginas de Política, publicado em maio de 1938,
Câmara Reis apresenta-nos também um retrato impressivo de Raúl Proença,
descrevendo, entre múltiplos aspetos, o seu perfil moral, intelectual e doutrinário.
No artigo «Uma opinião...», o implacável polemista, insurgindo-se contra a
leitura deturpada que o jornal ultra-reacionário Voz fizera de um artigo seu, distinguiu
entre a conceção individualista, que respeita a liberdade individual, e a que procura que
o indivíduo seja «absorvido inteiramente pelo grupo» 215.
Embora tivesse declarado, no artigo «O cancro», que «O parlamento (...) é a
única expressão legítima que conheço da democracia» 216, continuava, como sempre foi,
um adepto acérrimo da soberania do indivíduo e dos direitos individuais, reagindo
contra a conceção rousseauniana da soberania popular 217.
212 in Páginas de Política, 2.ª série, p. 38.
213 Idem, p. 75.
214 Idem, p. 42.
215 Seara Nova, n.º 260, 3 de setembro de 1931, p. 311.
216 in Obra Política de Raúl Proença, vol. III, Páginas de Política (3), p. 81.
217 Na discussão em torno de noções como direitos individuais e maiorias, é inevitável a
referência a Tocqueville. Dentro da tradição liberal, este foi, sem dúvida, um dos pensadores que melhor
anteviram os perigos e ameaças da tirania da maioria para a liberdade individual.
61
3.9. Articulação entre o Liberalismo e o Socialismo
De acordo com António Reis, Raúl Proença não se limitou a distanciar-se da
«tónica totalizante do comunitarismo republicano», tendo-se demarcado, igualmente, do
liberalismo económico, que considerou ser responsável por dissipar as condições
imprescindíveis à concretização da «igualdade de direitos entre todos os indivíduos» 218.
Adiante, teremos a oportunidade de verificar, com maior detalhe, que a
correlação estabelecida entre o Liberalismo e o Socialismo é um dos elementos mais
singulares do pensamento proenciano.
No artigo «Dos batráquios e de outros animais», o doutrinário republicano
advertiu aqueles que elogiavam o bolchevismo para a impossibilidade de verem
materializar-se o Socialismo, a «única solução possível das dificuldades do tempo
presente», se desprezassem o «instrumento essencial, que é a liberdade!» 219. Em total
desacordo com a doutrina bolchevista, negou que o Socialismo pudesse concretizar-se
graças à opressão.
Antes ainda, em «A Rússia ao léu. II - Algumas considerações para uso dos
portugueses», Raúl Proença tinha já manifestado a sua reprovação face à experiência
soviética russa ou bolchevismo russo por terem pretendido concretizar o Socialismo à
custa da opressão. Realçando a estreita dependência entre o Individualismo e o
Socialismo, o democrata republicano depressa clarificou que este último só se realizaria
através da garantia de «libertação do indivíduo - de todos os indivíduos», insurgindo-se,
assim, contra o engrandecimento estatal ou «Fins de expansão do Estado» 220.
A respeito ainda da articulação entre o Liberalismo e o Socialismo, Proença fez
notar, em «Algumas palavras de proémio», que os «postulados da democracia liberal e
socialista», que ele julgava ver «gradualmente realizada nas sociedades mais evoluídas,
na Inglaterra, nos países escandinavos, na Austrália» 221, constituíam o substrato do seu
fulgurante magistério seareiro (1921-1931) 222.
218António Reis, op. cit., vol. II, p. 241. 219 Seara Nova, n.º 266, 8 de outubro de 1931, pp. 21 e 22.
220 Seara Nova, n.º 243, 19 de março de 1931, p. 36.
221 in Páginas de Política, 2.ª série, pp. 8-30.
222 Com a finalidade de recordar o centenário de dois dos mais importantes dinamizadores da
vida cultural e intelectual que despontou no seio da Biblioteca Nacional nas primeiras décadas do século
XX, a obra Jaime Cortesão Raúl Proença - Catálogo da Exposição Comemorativa da Primeiro
Centenário (1884-1984) reúne o artigo «Apresentação feita por ele próprio», onde surge transcrita, na p.
35, a passagem do Proémio em que Raúl Proença anunciou os postulados que pautaram a sua campanha
na Seara Nova.
62
3.10. Renúncia do liberalismo económico
Embora nunca tivesse abandonado a noção de liberdade, Raúl Proença não se
coibiu de impor-lhe variadas restrições ao nível estritamente económico.
Aliás, no artigo «Para um evangelho... - VII. Da necessidade prévia de defender
a democracia das suas aberrações», rejeitou o liberalismo económico por considerá-lo
«uma das formas mais revoltantes do privilégio e do despotismo» 223. Demarcando-se do
que afirmou ser a «liberdade que têm alguns indivíduos de se oporem, em nome dos
interesses criados, à liberdade de todos os outros», impedindo-os, aliás, de acederem à
sua independência material e criando um regime de privilégio, esclareceu que o
«liberalismo económico não é uma consequência necessária do liberalismo
democrático, antes está em contradição com ele» 224.
Para demonstrar que as modalidades política e económica do Liberalismo,
embora historicamente vinculadas, não implicavam uma aceitação conjunta dos seus
pressupostos 225, Proença deixou bem claro, no artigo «Liberdade, fim supremo», que é
possível «ser partidário do liberalismo político sem partilhar o liberalismo económico»
226 . Daqui decorrendo, assinalou que o liberalismo democrático ou político «leva
logicamente ao intervencionismo económico, pois que não pode haver liberdade para
todos os homens se nem todos têm garantido um mínimo de independência» 227 .
Ressurge, aqui, a questão da importância de haver um mínimo de independência
material para a garantia de uma liberdade efetiva.
No artigo «A Rússia ao léu. II - Algumas considerações para uso dos
portugueses», o democrata liberal, depois de ter realçado a correlação entre os conceitos
de liberdade e igualdade, adiantou que «a igualdade económica é a condição essencial
223 Seara Nova, n.º 158, 25 de abril de 1929, p. 216.
224 Ibidem.
225 A. J. Brito, num artigo reunido na Enciclopédia Logos, esclarece que o «L. político nem
sempre se concilia com o L. económico», sendo que muitos liberais «julgam que a pura liberdade
económica acaba por conduzir à escravidão real e que, nessa altura, a proclamação de direitos não passa de uma ironia» (in «Liberalismo», Logos - Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia, vol. 3, Editora
Verbo, Lisboa/São Paulo, 1991, p. 335). Na mesma linha, Sant'Anna Dionísio refere, em O Pensamento
especulativo e agente de Raúl Proença, que no ilustre republicano «existia a agudíssima consciência da
distinção (infelizmente ignorada por tantos republicanos!) de que uma coisa é a liberdade económica e
outra a liberdade política», sendo que a «primeira pode e deve ser combatida, a ponto de ser
possìvelmente suprimida» e a «segunda deve ser intangível» (O Pensamento especulativo e agente de
Raúl Proença, p. 98).
226 Seara Nova, n.º 239, 19 de fevereiro de 1931, p. 363.
227 Ibidem.
63
da perfeita liberdade intelectual e política» 228. Já muito antes, no artigo «O poder das
leis», o escritor de ideias tinha lançado a seguinte interrogação: «Não chegarão um dia a
reconhecer quási todos os homens que a supressão de certas liberdades (as económicas,
por exemplo) é a garantia da verdadeira liberdade?» 229.
Convém destacar, porém, que são vários os excertos que contrariam a alegada
defesa de uma total igualização económica. Devido à sua defesa do direito à
propriedade privada, cremos que a sua única intenção foi valorizar, pelo contrário, a
necessidade de garantir uma maior equidade na distribuição dos bens económicos.
3.11. Estado, um instrumento para a liberdade
A necessidade do Estado é um dos pressupostos doutrinários com maior
relevância para Raúl Proença.
Eduardo Soveral é um dos autores que sublinharam que, para a democracia
individualista, a comunidade política é um «mal necessário», devido à necessidade de
defesa dos direitos individuais 230.
Com uma preocupação incessante pela liberdade, Raúl Proença afastou-se da
tendência para aceitar, de forma errada, que se devesse polarizar a atuação estatal entre
uma atitude ora açambarcadora, ora nula. No artigo «Liberdade, fim supremo»,
apresentou, de forma explícita, a proposta de um Estado que deveria velar pelo livre
desenvolvimento dos indivíduos. Admitindo que só pela liberdade é que o indivíduo
poderia aspirar à sua integral realização, considerou ser missão do Estado «o garantir-
lhe essa liberdade» 231. No caso de a subordinar a fins mais elevados, estará, por certo, a
fomentar o despotismo.
Partidário de uma conceção individualista de democracia, o insigne democrata
deseja um Estado que, bem distinto não só do liberal-burguês, como também do
absoluto ou totalitário, assuma como seu fim supremo a garantia daquilo que é a
verdadeira essência da democracia, isto é, a liberdade individual.
228 Seara Nova, n.º 243, 19 de março de 1931, p. 39.
229 in Páginas de Política, 2.ª série, p. 201.
230 Eduardo Soveral, op. cit., p. 180.
231 Seara Nova, n.º 239, 19 de fevereiro de 1931, p. 362.
64
Peça essencial na célebre polémica com o jornal Novidades, o artigo «Conversa
com as Novidades» é fundamental para compreender a renúncia de Raúl Proença à
conceção anarquista e libertária de Estado. Como adversário feroz de um individualismo
anárquico e libertário, retomou a censura ao anarquismo que levara a efeito desde os
tempos da sua colaboração na Alma Nacional. Se o anarquista «concebe o Estado como
um entrave» a eliminar, Raúl Proença, pelo contrário, encarou-o como «instrumento de
libertação» 232. Uma semelhante repulsa face ao anarquismo está bem patente no artigo
«Para um evangelho... - IX. Ainda a defesa da Democracia»: «Se o anarquismo é, como
ideal, a máxima liberdade para o indivíduo e, como modo de realização, a supressão do
Estado, creio que há contradição inevitável entre o ideal e o método imaginado para o
realizar» 233.
Se dúvidas ainda restassem quanto à aversão pela perspetiva anarquista, bastaria
relembrar a sua afirmação de que a autoridade é condição da liberdade. Na polémica
travada com Fernão Botto Machado, deparamo-nos com uma primeira clarificação do
seu entendimento perante o anarquismo da altura. Excluindo, de forma categórica, a tese
do anarquismo, mas sem anuir com uma qualquer doutrina que imponha uma
dependência e submissão excessivas do indivíduo ao Estado, considerou-se «partidario
do estado á maneira da Suissa, grandioso na sua pequenez» 234. Além do centralismo
administrativo, que tende a desembocar num «socialismo de Estado», bem distinto do
seu ulterior socialismo liberal, Raúl Proença contestou também a excessiva dependência
a que o indivíduo é sujeito perante o «Estado-Providencia» 235.
Não estando circunscrita às posições anarquistas, a sua crítica estende-se
também à conceção absolutista e totalitária de Estado. No artigo «Liberdade, fim
supremo», que constitui uma peça central na polémica travada com Carlos Bana, o
intelectual político deixou bem vincado o desejo de um Estado «não como amo, mas
como servidor», concebido como «Estado-instrumento», em vez de «Estado fim e razão
última» 236.
No artigo «Do Estado absoluto e do Estado liberal», elemento que integra a
referida polémica, opôs às duas conceções mencionadas o conceito de «Estado liberal -
o Estado que se limita (...) que admite fronteiras inultrapassáveis para além das quais
232 Seara Nova, n.º 257, 13 de agosto de 1931, p. 259.
233 in Páginas de Política, 1.ª série, p. 306.
234 in Polémicas, p. 190.
235 Idem, p. 180.
236 Seara Nova, n.º 239, 19 de fevereiro de 1931, p. 366.
65
lhe é vedado fazer uso da sua autoridade e do seu poder (...) o Estado como meio, e não
como fim; o Estado que existe para o indivíduo (...), o Estado instrumento de que (...)
lançamos mão para nos aperfeiçoarmos em espírito, aumentarmos em liberdade,
defendermos a nossa vida, os nossos direitos, a nossa legítima fazenda» 237. Para reforçar
a noção de Estado como meio e instrumento ao serviço do livre desenvolvimento dos
direitos e capacidades individuais, imprescindível se torna sublinhar a advertência que
Raúl Proença dirige, no artigo «Unidos pela Pátria», para que «o papel do Estado seja
permitir o livre exercício dos direitos individuais e não manietá-los!» 238.
O escritor de ideias deixou bem claro, no sétimo artigo da série consagrada ao
livro de Julien Benda, que «nunca um verdadeiro democrata pode reconhecer ao Estado
qualquer poder absoluto sôbre o indivíduo» 239.
Dada a insistente ênfase posta na noção de indivíduo, Raúl Proença condenou,
igualmente, o Estado coletivista e o Estado-instrumento servil dos interesses
económicos privados, pelo que ambos significavam de opressivo para os indivíduos.
Com especial destaque para a crítica do primeiro, fixemo-nos nos termos em que a
executa, no artigo «A Rússia ao léu. II - Algumas considerações para uso dos
portugueses»: «Eu pregunto se o incremento da importância e do papel dirigente das
formas colectivistas da economia em detrimento do sector privado e capitalista é todo o
socialismo. Eu pregunto finalmente se não é o Indivíduo que é o fim e a Colectivização
o meio, se as formas colectivas de produção não são apenas um instrumento posto ao
serviço da humanidade, para que ela se torne cada vez mais livre, mais digna, mais
humana e mais consciente. Se não podemos deixar de ser explorados pelo Capitalismo
senão para ser espoliados pelo Estado socialista, que ganhamos nós com a troca?» 240.
As «formas colectivas de produção» somente adquirem legitimidade desde que
não se transformem em instrumentos de opressão do indivíduo pelo Estado 241.
Além das múltiplas denúncias anteriores, o doutrinário republicano rebateu a
conceção exclusivamente produtivista de Estado, que, predominante tanto no campo
237 in Polémicas, p. 834. Este artigo está compilado em Obra Política de Raúl Proença, vol. IV,
Páginas de Política (4), Seara Nova, Lisboa, 1975, pp. 93-105.
238 in Obra Política de Raúl Proença, vol. IV, Páginas de Política (4), p. 278. Consulte-se ainda
Marieta Dá Mesquita, op. cit., p. 239.
239 in Páginas de Política, 1.ª série, p. 229.
240 Seara Nova, n.º 243, 19 de março de 1931, pp. 37 e 38.
241Raúl Proença jamais consentiria com o que Eduardo Soveral denomina de «colectivismo
integral», que visa imiscuir-se na esfera mais privada das pessoas (in Sobre os valores e pressupostos da
vida política contemporânea e outros ensaios, p. 52).
66
liberal-burguês como no fascista e bolchevista, faz subordinar o Estado ao fim supremo
da prosperidade ou progresso materiais.
Depois da censura, em «Para um evangelho...- IV. Os letrados e a democracia
(1.ª parte)», ao materialismo contemporâneo reinante, incentivado pelo «prodigioso
progresso material do século XIX» 242, no artigo «Para um evangelho...- V. Os letrados e
a democracia (2.ª parte)», Raúl Proença denunciou a sobreposição da matéria,
prosperidade e facto ao espírito, liberdade e direito, para a qual as novas correntes
filosóficas e culturais (vanguardismo futurista, positivismo, utilitarismo, romantismo,
nietzschianismo, pragmatismo e bergsonismo) tinham dado um importante impulso 243.
242 Seara Nova, n.º 120, 24 de maio de 1928, p. 469.
243 Consulte-se Seara Nova, n.º 126, 9 de agosto de 1928.
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4. O SOCIALISMO
4.1. O Socialismo e a sua intenção libertadora
Na sua génese, o Socialismo despontou com o objetivo de assegurar, entre outras
coisas, a libertação económica dos indivíduos e a abolição das desigualdades
económicas excessivas. Para se compreender, de forma objetiva, o fenómeno socialista,
não é possível dissociá-lo de um enquadramento histórico específico.
Com o advento da industrialização, multiplicaram-se, a um ritmo vertiginoso, os
progressos e as inovações técnicas. Apesar do intenso florescimento industrial, a
deterioração das condições de vida e de trabalho das pessoas foi uma das consequências
que não tardaram a implantar-se. O pauperismo, a fome e a miséria começaram, desde
cedo, a propagar-se a um número cada vez maior de indivíduos. Foi a partir deste
preciso contexto que a corrente em estudo surgiu, animada por um firme desejo de
restituir às pessoas toda a dignidade perdida.
Embora a igualdade jurídica de direitos estivesse já consagrada em moldes
constitucionais, para a qual tinha contribuído, sobremaneira, a consolidação da matriz
liberal, a privação económica e todo um conjunto de constrangimentos laborais
impediam que as pessoas pudessem ter uma fruição plena dos seus direitos. A este
respeito, convém acentuar que não basta que a regulamentação da igualdade jurídica
esteja instituída para que ela se torne algo de efetivo e concreto.
Neste sentido, o Socialismo, principalmente o de distinto recorte democrático,
consentâneo com a doutrinação proenciana, prima por não se contentar nem se resignar
à mera apologia dos direitos políticos. Projetando-se abertamente na definição e defesa
de direitos sociais, passíveis de superarem o caráter predominantemente formal e
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abstrato dos primeiros, a doutrina de que agora nos ocupamos transparece uma atitude
de maior hostilidade perante a indiferença face às condições concretas das pessoas.
Segundo Marín Civera 244 , o Socialismo visa concretizar «los derechos que
teóricamente son admitidos por todos como bienes inalienables», promovendo a sua
transição do «dominio de la ficción jurídica al de la realidad» 245
.
Do mesmo modo que o Liberalismo, o Socialismo enaltece também o valor da
liberdade. De entre as várias aceções de liberdade mencionadas previamente no capítulo
«O Liberalismo», a que diz respeito à libertação de ordem económica é possivelmente
uma das que melhor identificam a perspetiva socialista.
Avessa completamente aos abusos decorrentes de um capitalismo cego,
obstinado e inclemente, mas, ao mesmo tempo, sensível aos que são mais
desfavorecidos economicamente e vivem uma situação de insegurança económica
desesperante, a corrente em análise faz da justiça e equidade sociais duas das suas
aspirações mais cruciais.
Para Perillo Gomes, existe uma clara convergência entre o Socialismo e o
Liberalismo, manifesta, principalmente, no intuito libertador e emancipador, isto é, no
desejo de garantir a «autonomia do indivíduo» 246
. Na mesma linha, Eduardo Soveral
esclarece, na obra «Sobre os valores e pressupostos da vida política contemporânea e
outros ensaios», que, para além da «colectivização da actividade económica» e da
«justiça igualitária» no gozo dos bens coletivos, o Socialismo visa «libertar cada
homem da servidão económica» 247
.
Embora as correntes liberal e socialista compartilhem de finalidades comuns,
nomeadamente o ideal de desenvolvimento e florescimento das capacidades individuais,
conseguimos vislumbrar entre elas uma oposição inequívoca. Com especial enfoque nas
questões de índole estritamente social e económica, o Socialismo, enquanto sistema de
organização económica, condena, de forma virulenta, o Liberalismo económico. É, pois,
seu firme desejo mitigar a anarquia económica, considerada o corolário lógico do
Liberalismo económico no seu auge.
Um dos movimentos históricos que mais acompanharam a disseminação dos
ideais socialistas foi o sindicalismo. Entre as suas principais aspirações, figurou a
244 Marín Civera (1900-1975) destacou-se dentro do movimento libertário espanhol dos anos 30.