VERA CEC˝LIA ACHATKIN O TEATRO-ESPORTE DE KEITH JOHNSTONE E O ATOR: DA IDIA A˙ˆO A IMPROVISA˙ˆO COMO INTRUMENTO DE TRANSFORMA˙ˆO PARA ALM DO PALCO Dissertaªo apresentada ao Departamento de Artes CŒnicas da Escola de Comunicaıes e Artes da Universidade de Sªo Paulo, como exigŒncia parcial para a obtenªo do Ttulo de Mestre em Artes, sob a orientaªo do Prof. Dr. JosØ Eduardo Vendramini. 2005 Sªo Paulo/Brasil
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VERA CECÍLIA ACHATKIN
O TEATRO-ESPORTE DE KEITH JOHNSTONE E O ATOR:
DA IDÉIA À AÇÃO � A IMPROVISAÇÃO COMO INTRUMENTO DE
TRANSFORMAÇÃO PARA ALÉM DO PALCO
Dissertação apresentada ao Departamento de Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do Título de Mestre em Artes, sob a orientação do Prof. Dr. José Eduardo Vendramini.
2005 São Paulo/Brasil
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VERA CECÍLIA ACHATKIN
O TEATRO-ESPORTE DE KEITH JOHNSTONE E O ATOR:
DA IDÉIA À AÇÃO � A IMPROVISAÇÃO COMO INTRUMENTO DE
TRANSFORMAÇÃO PARA ALÉM DO PALCO
Dissertação apresentada ao Departamento de Artes Cências da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do Título de Mestre em Artes, sob a orientação do Prof. Dr. José Eduardo Vendramini.
2005 São Paulo/Brasil
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BANCA EXAMINADORA:
________________________________________
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ABSTRACT
The matter discussed in this dissertation is the improvisation method
created by Keith Johnstone and applied at the Theatresports and its contribution to
the understanding of theatrical creation process.
This work intents to present the method and its author through a description
of the historical path and the environment in which experiments, ideas and primitive
Theatresports - called then Theatre Machine - were created.
From the analysis of the foundation of the method it is possible to glimpse
the potentialities of using Keith Johnstone's ideas as a work tool for the actor in
constructing scenes, characters and narratives, and also of the spectacle as an
alive theatrical experience that estabilishes a direct communication between the
audience and the actors, in a piece in which spontaneity occupies a distinct place.
O IMPROVISO ............................................................................................. 8 BREVE HISTÓRICO ............................................................ 12 KEITH JOHNSTONE E A CRIAÇÃO DO MÉTODO ................................ 22 O ROYAL COURT THEATRE ................................................ 25 O MÉTODO ............................................................................................. 39 PRINCÍPIOS E FUNDAMENTOS ........................................... 40 ACEITAÇÃO E BLOQUEIO ........................................... 44 ACEITAÇÃO ............................................................................ 49 BLOQUEIO .............................................................................. 55 STATUS � O PRINCÍPIO DA GANGORRA ................................ 61 ESPONTANEIDADE E CRIATIVIDADE ...................�.......... 72 FAST FOOD STANISLAVSKI ............................................................... 83 AS INFLUÊNCIAS DE BRECHT ............................................................... 90 A CENA ............................................................................................. 94 O TEATRO E O ESPORTE ............................................................... 102 O ESPETÁCULO .............................................................................. 105 DA SALA DE AULA NO ROYAL COURT AO INTERNATIONAL THEATRESPORTS INSTITUTE ............................................ 108
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CRONOLOGIA DO TEATRO-ESPORTE ................................ 113 AS VERSÕES OFICIAIS DO TEATRO-ESPORTE ................ 126 AS REGRAS DO TEATRO-ESPORTE ............................... 127 O FRACASSO E O SUCESSO NO TEATRO-ESPORTE ........ 130 CONCLUSÂO BIBLIOGRAFIA
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�Em um momento eu soube que a avaliação dos homens por suas inteligências é loucura, que os camponeses fitando o céu noturno podiam sentir mais do que eu sentia, que o homem que dança podia ser superior a mim � preso à palavra e incapaz de dançar.�
Keith Johnstone
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INTRODUÇÃO
Holbæk, dezembro de 1986. Início do inverno dinamarquês.
Sentados na sala de estar da casa da atriz Dorrit Lillesøe1, uma espécie de
república de estudantes, bem comum na Europa, principalmente nos países do
norte, os membros da equipe brasileira2 do espetáculo ... E morrem as florestas3,
uma co-produção entre Brasil e Dinamarca, que tratava do tema Ecologia sob a
ótica das mitologias nórdica e indígena4, desfrutavam uma das folgas da turnê
dinamarquesa.
Não me recordo se era à tarde ou à noite. Talvez fosse um final de tarde
cinzento e chuvoso.
Reunidos ali naquela sala, cuja mobília faria a alegria de qualquer
antiquário e já decorada com os artefatos indígenas que a atriz comprara no
Brasil, durante o período de montagem do espetáculo, conversávamos e nos
divertíamos. A certa altura, um dos moradores da casa ligou a televisão e
sintonizou-a em um canal sueco. No vídeo, um programa de teatro.
Havia um apresentador baixinho (pelo menos em comparação às outras
pessoas integrantes do programa), meio gordo e careca, que se esforçava para se
manter sério. Havia também um sofá com dois grupos de atores que se
diferenciavam pela cor de suas camisetas e que, a cada intervenção do
apresentador, se atiravam alternadamente no palco para criar cenas. Os 1 Membro da equipe dinamarquesa do espetáculo ... E morrem as florestas. 2 Formada por Genézio de Barros, Cacá Amaral, Ana Maria de Souza , Sílvia Mazzeu, o músico Solano de Carvalho e eu. 3 De Luís Alberto de Abreu e Kaj Nissen. 4 A temporada brasileira havia sido um retumbante fracasso e a turnê por 28 cidades da Dinamarca um enorme sucesso. Coisas do Teatro.
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dinamarqueses presentes na sala se divertiam e teciam comentários. Nós não
entendíamos uma só palavra, mas pelas ações físicas que os atores do programa
realizavam e a maneira como se expressavam e se relacionavam, conseguíamos
captar o sentido geral das cenas que criavam. A cada duas cenas, uma de cada
grupo, havia uma espécie de julgamento. Um grupo ficava feliz e o outro nem
tanto.
Achei o programa estranho, a maneira como as cenas eram criadas,
esquisita e, mais do que isso, como, na época, não gostasse de improvisação e
minha relação com ela não fosse das melhores, sentenciei que esse tipo de
trabalho teria vida curta, pois em pouco tempo a criatividade se esgotaria porque
não é possível que um ator produza idéias novas todo o tempo e porque também
os atores seriam levados à repetição de boas fórmulas encontradas. Era, para
mim, impensável, naquele momento, acreditar na criação contínua de cenas e
tipos. Achava bastante pertinente o uso da improvisação na pesquisa de uma
personagem; mas cenas, situações ou personagens improvisados me
constrangiam. Não me sentia de fato criando algo, nem à vontade para isso.
O programa terminou e não posso negar que, apesar de todas as
considerações racionais e viciadas que havia feito, aliás, típicas de pessoas
preconceituosas diante do novo e do diferente, tenha ficado espantada com a
rapidez dos atores, com a fluidez das cenas e com a nítida satisfação que
aparentavam ter por estar improvisando. Isso me intrigou.
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Meu primeiro contato com o Teatro-Esporte foi assim. Não no palco, não
em um curso ou oficina, mas através de um programa de televisão5.
Levei algum tempo para compreender que o fato de eu ter sérias ressalvas
em relação à improvisação não era bem um problema meu ou da improvisação
propriamente dita, mas sim dos métodos ou da forma como eles me foram sempre
apresentados e trabalhados. Talvez eu tenha tido azar. Talvez tenha sido
simplesmente uma questão de enquadramento. Você se sente bem trabalhando
em uma determinada linha e não em outra. Seja como for, essas descobertas
foram acontecendo lentamente, à medida em que fui me aproximando e
conhecendo as idéias por trás daquele intrigante jeito de improvisar.
Em 1988, quando eu estava morando na Dinamarca, aconteceu em
Copenhaguem um campeonato escandinavo de Teatro-Esporte. Fui a todas as
apresentações e aquela sensação de estranhamento que o primeiro contato com o
espetáculo havia me causado foi se dissolvendo. A platéia dava idéias, gritava, ria,
vaiava, enfim, participava ativamente de tudo que estava sendo criado pelos
atores. O meu olhar se dividia entre o que acontecia no palco e o que acontecia na
platéia. Ver a satisfação estampada nos olhos vivos do público, seus corpos se
movendo numa quase coreografia, tentando acompanhar cada mínimo gesto,
cada pequeno enriquecimento da idéia principal da cena, na expectativa do que os
atores fariam a seguir, ou seja, de como iriam aproveitá-la, era fascinante de
observar. E como naquele momento já conseguisse entender um pouco o idioma,
5 Talvez hoje muitos atores, inclusive no Brasil, estejam entrando em contato com esse jeito de improvisar da mesma forma que eu. O canal da Sony apresenta um programa semanal chamado Whose line is it anyway?, que trabalha também com princípios e jogos do Teatro-Esporte.
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compreendi a função das intervenções do apresentador, que a um só tempo
acolhia as idéias do público, determinava qual jogo seria realizado na próxima
rodada e explicava quais as regras para realizá-lo.
A palavra regra realmente me encantou. Ali estava a chave da minha
dificuldade com a improvisação. Como poderia apreciá-la se, quando improvisava,
desconhecia o seu funcionamento? Talvez para muitas pessoas isso pareça óbvio,
mas para mim não era. Saber que tudo tem regras é uma coisa. Mas, conhecê-las
e compreender as suas implicações é outra. Foi uma grande descoberta ter
compreendido, de fato, que não se pode apreciar o que se desconhece. Foi uma
grande felicidade ter descoberto o óbvio. E mais excitante ainda foi ter descoberto
que o óbvio, o simples e o banal eram temas de um método que haveria de
provocar em mim uma mudança de opinião tão radical, em relação à
improvisação, a ponto de ter ela se transformado em principal fonte de pesquisa e
trabalho.
Desde 1988, venho trabalhando com o método de improvisação teatral que
fundamenta o Teatro-Esporte, tanto em sua aplicação artística na forma do
espetáculo, como enquanto ferramenta de trabalho para atores e diretores, em
cursos e oficinas. O método, que não tem nome e às vezes se confunde com o
próprio espetáculo, ou, simplesmente, é chamado de Impro, nome decorrente do
primeiro livro do autor, foi criado entre as décadas de cinqüenta e sessenta pelo
artista plástico e dramaturgo inglês Keith Johnstone (1933), radicado há mais de
trinta anos no Canadá, de onde ele licencia e coordena, através do International
Theatresports Institute, as companhias de teatro que aplicam a sua metodologia e
usam as estruturas de espetáculos de improviso criadas por ele.
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DEFINIÇÃO
Theatresports ou Teatro-Esporte6 é uma partida de teatro, de pura
improvisação, em que dois times de atores se enfrentam no palco, na arte de
improvisar, mediados por pelo menos um juiz. O público participa tanto torcendo
como lançando desafios para os times; sugerindo temas, títulos, épocas, estilos ou
o que quer que seja que os times desejem ou necessitem para criar as suas
cenas. As cenas podem ser livres ou criadas a partir de algum dos jogos que
compõem o Teatro-Esporte (atualmente, mais de trezentos). A platéia conta, junto
com o apresentador ou mestre de cerimônias, de cinco até um e os atores se
lançam no campo, na arena, no ringue (dependendo do esporte escolhido para dar
forma à partida), para realizar os desafios. Ao final de cada rodada, as cenas são
julgadas (ora pela platéia, ora pelo juiz ou juízes convidados, de acordo com o tipo
de Teatro-Esporte que está sendo jogado7) e os times recebem a pontuação.
Cada gol vale cinco pontos e os times poderão receber bônus por suas atuações,
ou perder pontos por infrações cometidas durante a construção das cenas. O
clima geral do espetáculo é o mesmo encontrado nos esportes: alegria, suspense,
cumplicidade e bom humor.
Keith Johnstone diz, em uma entrevista concedida à revista de teatro alemã
Die Deutsche Bühne, que sempre ficou admirado com o público dos estádios e
que esse público está perdido para o teatro.
6 Embora o Theatresports seja uma marca registrada, prefiro a versão traduzida, pois a mim parece estranho usar o nome em inglês, no Brasil, e num espetáculo tão popular. 7 A partida convencional conta com o julgamento do juiz ou juízes desde o primeiro jogo, enquanto na partida dinamarquesa o público julga as cenas no primeiro tempo de jogo e o juiz ou juízes no segundo tempo. Detalhes sobre as diferentes versões oficiais encontram-se descritas no capítulo correspondente.
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�No teatro as pessoas não podem simplesmente sair pulando ou gritando. O público senta-se em suas cadeiras como cães acuados. Se, pelo menos uma vez por semana, pudessem deixar suas mentes fluir livremente, seria como uma terapia. É por isso que as pessoas vão aos estádios. Mas não foi sempre assim. Tenho certeza de que Shakespeare tinha um público bem barulhento.� 8
Fazer um teatro que fosse desafiador para o ator e tirasse o público do
papel de mero espectador é o que Keith Johnstone buscou com o Teatro-Esporte.
Criticado por alguns, por fazer um teatro não intelectual, e amado por
outros, por seu teatro atingir o público de forma tão direta, o fato é que ano a ano
o Teatro-Esporte e o método que o sustenta conquistam mais e mais companhias
de teatro mundo afora e um público que normalmente não se interessa por teatro
ou deixou de ver o teatro como opção de lazer.
8 Publicação de novembro de 1990, pp. 54 e 55.
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O IMPROVISO
Se, no senso comum, quando se fala em improvisação, tem-se, em geral,
uma tendência a considerá-la como algo norteado apenas pelo imediato, feito sem
muitos critérios e sem preocupação com o acabamento, do ponto de vista do
Teatro essa tendência não é menos verdadeira. Em geral, a improvisação é vista
como algo ligado aos primeiros passos no mundo do Teatro, ou como fase
preparatória da montagem de uma obra teatral. No melhor dos casos, a palavra
improvisação é associada à Commedia dell�Arte.
É comum ouvirmos: Se você não tiver tal coisa (o objeto desejado), você
pode improvisar com isso (o objeto substituto). Em primeiro lugar, a frase contém
um erro, pois esse �improvisar com isso� é uma alternativa já pensada, prevista e
conhecida, portanto não improvisada. Mas, o mais triste nesse pensamento é o
conceito embutido de menos valia daquilo que temos de fato em disponibilidade,
em comparação com o desejado ou o ideal.
No Teatro, é comum ouvir de atores que procuram cursos de improvisação
que o estão fazendo para poderem ter idéias e se safarem de situações
desconfortáveis, como, por exemplo, esquecer o texto no meio de uma
apresentação, como se um curso de improvisação fosse oferecer ou desenvolver
um cardápio de receitas para serem aplicadas nessa ou naquela situação.
A improvisação, todavia, não é �tapa-buraco�. Não é algo que antecede ou
substitui, pelo menos temporariamente, algo maior e mais valioso. Seja esse algo,
no caso do Teatro, o texto ou a interpretação.
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A improvisação é algo em si. Improvisar é um ato humano que revela um
modo de se relacionar com o mundo ou com as coisas do mundo. Entende-se por
improvisação �uma execução e criação espontânea, realizada sem preparação
prévia e dispondo apenas dos meios que estão à mão.�9 Se é uma criação, então
estamos falando de algo que traz em si o caráter de originalidade, de
transformação e de transcendência. A criação não existe por si só, ela implica
necessariamente a presença de um criador, de um demiurgo, seja ele Deus
criador do Mundo, seja ele homem, criador de mundos. Se é espontânea, então
estamos falando de algo que acontece por si, no tempo presente, e não se repete.
Ao longo da História, diversos filósofos procuraram compreender a natureza
da espontaneidade e da criação. Aristóteles diz que �uma ação é espontânea
quando seu princípio está no agente.�10 Distingue-a e, ao mesmo tempo,
relaciona-a ao conceito de liberdade, dizendo que liberdade é a espontaneidade
de quem é inteligente; ou seja, dotado de intelecto. Kant também relaciona a
espontaneidade ao intelecto, dizendo que �intelecto é a espontaneidade do
conhecimento enquanto faculdade de produzir por si representações.�11 Heidegger
entende a espontaneidade como liberdade, identificando-a com a transcendência.
Então, poderíamos considerar, a partir deste ponto de vista, que improvisar é ser
livre.
Do ponto de vista teatral, o ancestral direto da moderna improvisação é
provavelmente a Commedia dell� Arte, que reinou na Europa do século XVI até
meados do século XVIII, quando o texto dramatúrgico ressurgiu no cenário teatral
9 Vários Autores. Grande Dicionário Larousse Cultural. São Paulo: Ed Nova Cultural, 1999, p. 513. 10 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 357. 11 Idem, p. 357
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de forma predominante, ocupando o espaço do teatro de improviso, que caiu na
obscuridade até que, separadamente e espontaneamente, foi, por assim dizer, �re-
inventado�, em meados do século XX, por Viola Spolin (1906-1994) e Keith
Johnstone.
Considerados como os pais da improvisação moderna, os dois dividem a
honra e a responsabilidade de terem influenciado, direta ou indiretamente, quase
tudo o que existe no campo da improvisação atualmente.
Em relação a Viola Spolin, um conjunto considerável de trabalhos existe no
Brasil12, mas não é sobre ela que versa esta dissertação. Todavia, ao falar da
metodologia criada por Keith Johnstone, paralelos entre as duas correntes serão
naturalmente estabelecidos. O próprio Keith Johnstone declara que, tivesse ele
tomado conhecimento das idéias da teatróloga norte-americana, seu trabalho
talvez tivesse sido influenciado por suas idéias.
Keith Johnstone, por outro lado, ainda é, infelizmente, quase inédito no
Brasil. Alguns poucos artistas conhecem a sua obra e um número menor ainda
aplica seus conceitos. Desconheço qualquer trabalho ou publicação feita a seu
respeito no Brasil.
Do ponto de vista oficial, de meados de 1994 até outubro de 2004, eu era a
única pessoa licenciada pelo International Theatresports Institute para apresentar
o espetáculo Teatro-Esporte e ensinar o método em nosso país. Atualmente, duas
outras companhias brasileiras passaram a integrar a família: O Teatro do Nada, no
Rio de Janeiro, e a Companhia Curitibana de Comédia, em Curitiba.
12 Dos trabalhos existentes, o de Ingrid Dormien Koudela é, na minha opinião, o mais importante, por ela ter introduzido o sistema criado por Viola Spolin no Brasil, traduzido sua obra e contribuído de forma significativa para a implantação do Teatro-Educação em nosso país, segundo aquele sistema.
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O surgimento no Brasil das duas novas companhias de Teatro-Esporte foi
motivo de muita alegria, depois de tantos anos trabalhando sozinha. A partir de
agora será possível compartilhar experiências, e esse novo panorama aponta para
a possibilidade de criação, num futuro próximo, de uma verdadeira liga nacional,
com a realização de campeonatos de Teatro-Esporte, a exemplo do que ocorre em
outros países.
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BREVE HISTÓRICO
Este capítulo não tem a pretensão de se constituir em uma história da
improvisação, mas um panorama geral faz-se necessário para que se possa
compreender minimamente a sua evolução.
Se considerarmos as primeiras manifestações dramáticas humanas como
tentativas de compreensão da natureza, do mundo e dos ciclos da vida,
encontraremos suas ações marcadas fortemente pela improvisação.
Certo é que, do homem primitivo, muito do que acreditamos ter sido sua
vida não passa de conjectura; porém, através de achados, pesquisas e
comparações com alguns grupos humanos que ainda sobrevivem em nossos dias,
em condições que julgamos apresentarem fortes semelhanças com nossos
longínquos ancestrais, torna-se possível estabelecer relações e delas extrair
elementos comuns que nos permitem vislumbrar como teriam sido esses primeiros
tempos.
Diante da tarefa de carregar um tronco de árvore, por exemplo, o homem
primitivo naturalmente faria uso da voz. E o faria não porque isso fosse belo, mas
porque fisicamente a tarefa seria facilitada pela emissão do som. A mimese desta
ação o conduziria ao conhecimento de uma intrincada rede de informações, que
lhe permitiria treinar as habilidades necessárias para a repetição desta ação com
alguma margem de sucesso. Observamos assim o nascimento da arte como fruto
da íntima relação do homem com a natureza, num ambiente em que o improviso
ocupa lugar de destaque.
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Do ponto de vista histórico, porém, das primeiras manifestações dramáticas
do homem primitivo à civilização grega, reconhecida como berço do teatro
ocidental, decorrem milênios dos quais poucos registros existem. Por essa razão,
torna-se bastante difícil traçar uma trajetória da história da improvisação,
sobretudo em sua origem.
Sabemos que o drama surge dos ritos gregos de morte e renascimento e
que estes eram permeados de improvisação.
As representações dionisíacas eram formadas em parte pelo ritual e em
parte por mimos-dramáticos improvisados e pelo ditirambo. Este último, côro
cantado por cerca de 50 homens ou crianças e dirigido por um Corifeu, possuía
uma forma mais lírica do que dramática e, no início, era improvisado.
Acredita-se que o Corifeu Téspis, em 534 a.C., tenha introduzido o
hipokrités (ator), dando vida à personagem descrita no ditirambo e que, como
elemento distinto do côro, podia dialogar com o Corifeu e dizer monólogos.
De acordo com a História, Ésquilo teria organizado os elementos
dramáticos que existiam de forma improvisada no ditirambo e dado forma à
tragédia, enquanto Aristófanes, cinqüenta anos mais tarde, teria feito o mesmo
com os cantos fálicos, dando forma à Comédia.
�Nascida, pois, de improvisações a princípio � tanto a tragédia como a comédia, uma por obra dos que regiam o ditirambo, a outra por obra dos que regiam os cantos fálicos, costume ainda hoje conservado em muitas cidades � a pouco e pouco a tragédia cresceu desenvolvendo os elementos que se revelavam próprios dela e, após muitas mudanças, estabilizou-se quando atingiu a natureza própria.�13
13 BRUNA, Jaime. A Poética Clássica. São Paulo: Cultrix, 1981, p. 23.
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Durante o século V a.C., assistimos ao nascimento de um tipo de drama,
que se afasta da religião e cujo foco está no texto dramatúrgico, apresentado nos
festivais para um júri de dez pessoas e realizado num espaço especial: o edifício
teatral.
Historiadores apontam, porém, que o teatro apresentado nos festivais (as
tragédias) não era o verdadeiro teatro do povo, que este estaria nas vilas e no
campo e seria marcado pela improvisação.
O teatro do povo existia nas festas populares, realizadas nos vilarejos, nos
cortejos dionisíacos da fertilidade, que ocorriam por ocasião da vindima por um
côro de foliões embriagados, vestindo máscaras exageradas, barrigas e nádegas
aumentadas por almofadas, e portando um grande falo. Esses alegres cortejos
tinham forte apelo sexual e faziam críticas à política e personalidades locais.
Dentre as primeiras tentativas de organização desses cortejos,
encontramos:
Comédia megária: improviso grosseiro e altamente popular, criado talvez
por Susarión, um dório da cidade de Megara, que apresenta em 750 a.C. as
primeiras obras cômicas, chamadas de farsas megárias.
Flíacos: precursores da farsa dórica, caracterizam-se por apresentar uma
farsa popular improvisada que imitava tipos, personalidades locais e fazia a
paródia das grandes tragédias.
Farsa dórica: surge no século V a.C. e utiliza-se de mimos baseados na
improvisação para atrair a atenção do público. Com o tempo, ela teria se
transformado em paródia.
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A comédia, enquanto gênero teatral, data de 486 a.C., portanto, como já
apontado anteriormente, surge 50 anos mais tarde do que a tragédia e é formada
pelo ágon (embate), luta (debate) e revista (sketches).
É com Aristófanes que a comédia vai encontrar uma organização que a
eleva à condição de arte. O que o público tem diante de si não é o herói da lenda
e a época dos mitos, mas a caricatura de si mesmo e do tempo presente.
O fim da Guerra do Peloponeso, em 338 a.C., com a derrota sofrida pelos
gregos, traz conseqüências que se farão sentir também no Teatro. A crise
financeira, por exemplo, leva à suspensão da Coregia, imposto cobrado dos ricos
para remuneração do côro, o que, por conseguinte, conduz ao desaparecimento
do mesmo. Do ponto de vista temático, o povo deseja a paz. Não há mais
interesse por debates políticos ou lutas partidárias, como encontramos nos textos
de Aristófanes. As peças do século IV são marcadas pelos temas da família e do
amor.
A comédia nova, também chamada de Néa14 trata essencialmente da
paixão. As peças discutem o amor, os prazeres e as intrigas sentimentais e
Menandro é seu principal representante. O teatro que faz é um retrato dos
costumes gregos e suas personagens são soldados, sogras, mercadores,
avarentos, etc.
Enquanto na cultura grega o teatro nasce da religião e é por ela fortemente
influenciado, na cultura romana o teatro vai surgir das competições. Ele, para o
romano, é ludus (jogo). O romano aprecia a comédia, especialmente a farsa e a
paródia. 14 BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro grego: tragédia e comédia. Rio de Janeiro: Vozes, 1984, 2ª ed., p. 71.
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Ambos, porém, têm em comum a improvisação como início.
Dentre as manifestações teatrais romanas de improviso, encontramos:
Fescenino � era uma improvisação livre, original da cidade de Fescennia,
acompanhada de dança e música, com elementos recitativos e de forte caráter
obsceno.
Satura � precursora da sátira, era uma representação também improvisada
de números �costurados�, daí o nome, com danças, cantos e bufonarias. De início,
eram representações executadas nas ruas e, posteriormente, passaram a ser
realizadas em tabernas e estalagens.
Atelana � Original da cidade de Atela, cidade grega sob domínio romano, é
a mais conhecida, por ser considerada como a manifestação teatral que teria dado
origem à Commedia dell�Arte. Nela, atores mascarados fazem sátiras de costumes
e pessoas, acontecimentos do dia e intrigas políticas. Acabaram por representar
papéis fixos que representavam determinados tipos: Maccus, Pappus, Bucco e
Dossennus. Com o tempo, as peças passam a ser escritas, permanecendo a
improvisação no trabalho do ator.
Mimo � No início, fazia uso da fala e da pantomima, mas com o tempo
evoluiu para pura mímica, fazendo do ator o elemento-chave de todo o
espetáculo.
A queda do Império Romano e a ascensão do Cristianismo, sob o domínio
da Igreja Católica, acarretaram significativa interrupção no desenvolvimento do
Teatro. Porém, esta não foi total, já que com relação ao teatro de improviso o
mesmo não ocorreu.
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O fato é que sem apoio, reconhecimento e espaço para suas
apresentações, atores e egressos do circo romano vêem-se obrigados a vagar de
vila em vila, apresentando seus números em troca de comida e abrigo.
Paralelamente a esse teatro itinerante, assistimos dentro do seio da Igreja
novamente ao renascimento do Teatro, inicialmente voltado à catequização, mas
que com o passar do tempo sucumbe à sua força profana e acaba por retornar às
suas origens: o povo.
O encontro do Teatro itinerante e do teatro religioso vai impulsionar o
ressurgimento do teatro com todas as estruturas e necessidades que ele
pressupõe.
Em meados do século XVI, com a retomada da antiguidade clássica, surge
na Itália uma forma de expressão teatral, cuja força se faria sentir por toda a
Europa e reinaria soberana por dois séculos e, embora sem o mesmo prestígio,
sua influência permanece, em maior ou menor grau, até os nossos dias.
A Commedia dell�Arte eleva a improvisação ao patamar de arte.
Fortemente influenciada pelas atelanas, ou como uma evolução destas, ela vai
especializar-se na representação de tipos e, para isso, faz uso da máscara e de
forte trabalho corporal.
Não havia texto, apenas um roteiro, e seus intérpretes afirmavam ser o
texto obra do ator. No início, chamava-se alguém para escrever um esboço, mas
com o tempo os próprios atores assumiram essa função.
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A partir de um canovaccio ou soggetto15, os atores improvisavam e as
companhias acabaram também por se especializar em determinados roteiros. Tal
especialização pode até ser questionada, já que, sem dúvida, limitou a liberdade
do improviso, mas do ponto de vista do ator a necessidade de especialização
técnica para a realização dos tipos trouxe uma importante e fundamental
contribuição para o teatro em geral: sua profissionalização e, por questões óbvias,
um enriquecimento para o teatro de improviso.
Em meados do século XVIII esse teatro entra em declínio e, dentre as
causas importantes, encontra-se a perda da vitalidade do improviso, já que a
profunda especialização fez com que os textos, mesmo não sendo escritos,
acabassem por dominar o ator, tornando-o um repetidor de algo memorizado. A
espontaneidade, elemento importante da improvisação, estaria a partir daí
comprometida. Outro fato importante e estreitamente relacionado ao primeiro é o
ressurgimento do texto dramatúrgico no cenário teatral.
O teatro de improviso continuaria existindo durante todo o século XIX nos
teatros de variedades, nos cabarés e nos circos, ou seja, mais uma vez, junto do
povo.
Mas, é no século XX que a improvisação ressurgirá de forma marcante,
seja como fonte de pesquisa de novas linguagens teatrais, seja como estudo
particular e espetáculo.
Como parte integrante do processo de criação de personagens, a
improvisação irá aparecer em métodos de interpretação, como o de Stanislavski,
15 Canovaccio ou soggetto eram roteiros ou esquemas usados pelos atores, a partir do qual criavam o espetáculo. A Commedia dell�arte era também chamada de Commedia a soggetto.
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mas também vamos encontrá-la, em parte, integrada no trabalho de Meyerhold,
que gostaria, aliás, de ter levado o seu teatro a um jogo livre em que os
trabalhadores pudessem usá-lo como relaxamento em seu próprio local de
trabalho. Ou no trabalho de Jacques Copeau, que irá empenhar-se em fazer um
teatro livre de tudo o que desvia a atenção daquilo que é essencial: o ator. Para
tal, recorre à simplicidade dos canovacci da Commedia dell�arte como forma de
despertar a imaginação e de desenvolver a capacidade de jogar e de inventar do
ator, valorizando a palavra, o gesto, o movimento e o silêncio. Ou no teatro de
Brecht, que queria um público curioso, que pensasse e tomasse partido.
Mas é com Viola Spolin e Keith Johnstone que o teatro de improviso
renasce de forma autônoma em meados do século XX.
Apesar de não ser objetivo desta dissertação falar do método de Viola
Spolin, alguns pontos devem ser destacados, dada a importância e a influência da
teatróloga americana no universo da improvisação.
Viola Spolin inicia o seu trabalho no final dos anos 30, em oficinas para
crianças de 7 a 14 anos com o objetivo de fazê-las entrar em contato com o
mundo do Teatro. Para tal, cria um sistema cuja aplicação contribuiu de forma
significativa para o desenvolvimento do que se convencionou chamar de Teatro-
Educação. Formado por jogos, que, aplicados em ordem de dificuldade
progressiva, promovem o entendimento do fazer teatral, o sistema criado por Viola
Spolin parte do conhecimento e da determinação do onde, quem e o quê para a
criação de cenas.
28
�Enquanto Chicago se divertia com o renascimento da improvisação nos anos 60, um inglês estava fazendo o seu próprio barulho no Canadá. Um professor da Universidade de Calgary, K.J., notou que o teatro não atingia as massas. Ele queria criar um espetáculo que chamasse a atenção de pessoas que gostavam de outras atividades, como eventos esportivos.
Não diferente de Shakespeare em seus dias, Johnstone queria alcançar as pessoas comuns com a arte. Sua criação, o Teatro-Esporte, combina jogos de improvisação com sistema de pontuação adicionando uma mistura de competição no palco.�16
Embora o trabalho de Viola Spolin tenha se iniciado bem antes do de Keith
Johnstone, é nos anos 60 que a transposição para o palco ganha impulso e suas
idéias começam a ser difundidas com a publicação do livro Improvisation for the
Theatre17, em1963. De 1960 a 1965, Viola Spolin ministrou workshops na
companhia de improviso Second City, de Chicago, fundada nos anos 50 por Paul
Sills, e depois em 1965, também com seu filho, funda o Game Theatre, em
Chicago. Esse movimento precede em muito pouco o aparecimento do Theatre
Machine, de Keith Johnstone, em Londres.
Viola Spolin e Keith Johnstone criam modos diferentes de se abordar a
improvisação que tem como ponto de partida o método de Stanislavski e que, por
essa razão, vez por outra, inevitavelmente, também se encontram.
O avanço (ou renascimento) do teatro de improviso, como consideram
alguns estudiosos, ocorrido nos anos 60, simultaneamente nos dois continentes, e
traduzido, principalmente, no trabalho dos dois teatrólogos, talvez seja reflexo das
mudanças significativas de pensamento e comportamento, em várias áreas,
ocorridas no período, mas sinaliza também a força desse tipo de teatro, que não
16 BEDORE, Bob. Improv Games for children and adults. Alameda: Hunter House, 2004, p. 101. 17 Improvisação para o teatro foi traduzido para o português por Ingrid Dormien Koudela e Eduardo José de Almeida Amos.
29
consegue se render por muito tempo a padrões estéticos que não levam em
consideração a liberdade de criação do ator e um envolvimento maior e direto do
público na condução do espetáculo e das idéias a serem nele discutidas.18
Keith Johnstone declara ter sido o trabalho sobre as motivações de
Stanislavski o que deu o impulso que lhe faltava para colocar em prática suas
idéias. Como algumas idéias de Brecht também estão presentes de forma
bastante acentuada em seu método de improvisação, seja do ponto de vista de
princípios, como de jogos do Teatro-Esporte que traduzem estratégias do
teatrólogo alemão, deixarei para comentar as influências de ambos, ao falar do
método de Keith Johnstone.
18 Em termos de Brasil, Augusto Boal e o seu Teatro do Oprimido também representam essa tendência. Com respeito ao teatrólogo brasileiro, a título de curiosidade, nota-se nos últimos anos um interesse crescente e significativo de algumas companhias de improviso, no exterior, incluindo as de Teatro-Esporte, por seu trabalho.
30
KEITH JOHNSTONE E A CRIAÇÃO DO MÉTODO
No início da década de 50, Keith Johnstone percebeu que a sua criatividade
encontrava-se estagnada. Por mais que olhasse ao seu redor, não conseguia
buscar inspiração para suas pinturas, que considerava medíocres, embora
dominasse as técnicas de execução. Também percebia que sua capacidade para
manter contato com outras pessoas estava bastante prejudicada. Não conseguia
expor suas idéias nem manter vínculos afetivos. Nada lhe parecia suficientemente
forte para motivá-lo a tomar iniciativas ou levar a cabo alguma empreitada. O
mundo, segundo suas próprias palavras, era cinza.
Um forte sentimento de fracasso o perseguia e ele se questionava sobre o
que lhe teria acontecido. Como podia ser possível que alguém, depois de tantos
anos de estudo, não fosse capaz de devolver ao mundo alguma coisa que
prestasse?
�Eu me sentia aleijado e incapacitado para a vida, então decidi me tornar professor.� 19
Para tentar vencer a sua insegurança, Keith Johnstone inscreveu-se num
curso de magistério. Acreditava que tendo um professor de enfrentar uma classe,
inevitavelmente receberia treinamento para tal. E, isso, claro, o tornaria uma
pessoa mais forte.
O curso, no entanto, não trouxe o que ele esperava. Porém, foi justamente
na aula de desenho que ele começou a entender um pouco o que se passava. De
saída, achou que �daria um banho� nessa disciplina. O �banho� que levou foi tão 19 JOHNSTONE, Keith. Impro � Improvisation and the theatre. Londres: Methuen. 1983, 3ª ed., p. 18.
31
grande, que acabou por ser um dos pontos de partida para o método que ele viria
a criar anos mais tarde. A Anthony Stirling, esse professor a quem chama de
mestre, ele diz dedicar a sua obra.
O professor, no primeiro dia de aula, distribuiu folhas de papel e tinta para
os alunos. Keith Johnstone sorriu, ansioso por demonstrar suas habilidades em
pintura. Então, o professor pediu para que os alunos imaginassem um palhaço em
cima de um monociclo. A seguir, pediu para que pintassem com tinta preta as
marcas deixadas pelo pneu do monociclo na folha de papel. Os alunos se
entreolharam. A quem poderiam interessar marcas de pneus, se a Arte está no
palhaço?, pensava Keith Johnstone. Não! Ele precisava mostrar que era criativo.
Que era um artista. Decidiu misturar um pouco de tinta azul ao preto. O professor
dirigiu-se a ele, perguntando-lhe se possuía alguma inabilidade em trabalhar com
a cor preta. Isso o irritou. Terminada a primeira parte do exercício, o professor
instruiu os alunos para preencherem com tinta colorida os espaços criados pelas
marcas do pneu. Esse homem deve ser um maluco!, a classe começou a provocá-
lo. Impassível, ele respondia a cada uma das indagações.
Quando o exercício terminou, as folhas de todos eram perfeitos borrões.
Que idiota, pensava Keith Johnstone. Que perda de tempo.
O professor, então, foi até o armário e de dentro tirou um maço de folhas
com o mesmo exercício e espalhou-as pelo chão. Eram lindas. As cores eram
vibrantes. As folhas deviam pertencer a uma turma mais adiantada. Bem, afinal,
esse homem devia ter algo para nos ensinar, pensou. Mas, foi aí que Keith
Johnstone se deparou com algo que chamou a sua atenção. As assinaturas eram
feitas com uma caligrafia muito instável. Aqueles desenhos pertenciam a crianças.
32
Isto foi um choque e o primeiro passo para a criação do método: o
questionamento da educação. Como pode um processo que se pressupõe
desenvolver o indivíduo, embotar e destruir a sua criatividade? Posteriormente,
sua curta carreira, como professor de ensino fundamental numa escola da periferia
de Londres, só viria a corroborar suas desconfianças.
�Eu comecei a pensar nas crianças não como adultos imaturos, mas nos adultos como crianças atrofiadas.� 20
O passo decisivo, porém, aconteceu em 1956, quando Keith Johnstone já
trabalhava no Royal Court Theatre.
20 Idem, p. 25.
33
O ROYAL COURT THEATRE
Dificilmente uma obra é forjada como fruto exclusivo de uma única fonte. O
Teatro-Esporte não é exceção. Mas, existem algumas fontes cujas fortes
influências são inegáveis, seja pela força das convicções que abraçam, seja pelo
espaço de reflexão e experimentação que proporcionam.
O Royal Court Theatre, sem dúvida, ocupa lugar de destaque, sem o qual,
talvez, Keith Johnstone jamais tivesse enveredado pelo caminho da improvisação
nem pensado na criação do Teatro-Esporte.
Contar a história do nascimento do Teatro-Esporte é também falar da
história dos primeiros tempos do Royal Court Theatre e da figura de George
Devine.
�Não temos tempo para memórias, só para experiências.�21
Esta frase de George Devine, proferida em uma entrevista por ocasião do
segundo aniversário do teatro, encontra-se na base do trabalho do Royal Court
Theatre, mas também aponta semelhanças com o mecanismo de trabalho do
próprio Teatro-Esporte.
Para Devine, talvez a frase significasse uma tentativa de apagar a
lembrança da longa jornada de tentativas e experiências fracassadas do passado.
21 DEVINE, George Apud ROBERTS, Philip. The Royal Court Theatre and the modern stage. Cambridge: University Press, 1999, p. 45
34
Para o Teatro-Esporte, a lembrança de que o que importa é a experiência
presente da cena.
Em 1935, George Devine, já um diretor e produtor de renome, juntamente
com Michel Saint-Denis, de quem fôra aluno e que considerava como mentor e
amigo, fundam o London Theatre Studio. Saint-Denis era sobrinho de Jacques
Copeau e fôra para a Inglaterra, inspirado pelo trabalho do tio, em busca de um
novo espaço onde pudesse desenvolver suas idéias.
Durante quatro anos George Devine empreendeu todos os esforços
possíveis para manter o Studio aberto, mas, com a eclosão da 2ª Guerra Mundial,
ele foi fechado e Devine enviado para servir o país.
Logo se tornaria claro para Saint-Denis que não havia mercado para suas
idéias em Londres, mas ele tampouco queria voltar para a França. Assim, junto
com dois colaboradores, pôs-se a gastar boa parte do tempo organizando
intermináveis listas com nomes de possíveis patrocinadores para o Studio. Visitou
instituições e diversas universidades, sempre sem sucesso. Uma recusa ao seu
projeto veio até da Aliança Francesa.
Enquanto isso, Devine, servindo em Burma (atual Myanmar), na Indochina,
fazia planos e trocava correspondência com Saint-Denis, que, estimulado pelos
sonhos do amigo, não desistiu e acabou por criar os esboços para o que mais
tarde viria a se tornar o Old Vic Theatre Center, o centro de pesquisa teatral do
Old Vic Theatre.
Com o final da guerra, em 1945, Devine volta para casa, arregaça as
mangas e se torna efetivamente responsável pela criação dessa versão pós-
guerra do London Theatre Studio.
35
Devine, Saint-Denis e Byan Shaw, também parceiro fundamental nessa
empreitada, desenvolvem aquilo que é considerado como o maior experimento em
teatro no pós-guerra, na Inglaterra, e passam a ser chamados de �os três
rapazes�.
No entanto, o que parecia ser um animado recomeço duraria pouco e os
três rapazes logo se veriam sob forte pressão. O teatro que faziam estava na mira
dos agentes do governo responsáveis pela cultura. A Câmara dos Lordes queria a
criação de um Teatro Nacional, tendo o Old Vic Theatre como centro. O pouco
entendimento e a falta de sensibilidade de Lorde Esher, então responsável pela
cadeira de Teatro na Câmara, levou-o, numa raivosa demonstração de poder, a
se recusar a renovar o contrato de Lawrence Olivier, um dos três diretores da Old
Vic Company. Ao mesmo tempo, fez questão de deixar claro que a situação do
Old Vic Theatre Center era instável. Esher não concordava com a linha
experimental adotada, vivia em constante atrito e não disfarçava sua hostilidade
às teorias e ao que considerava �estrangeirismos� de Saint-Denis. Acabou por
nomear, pessoalmente, um quarto diretor para o centro.
Esse foi o marco para o início do fim do projeto criado por Devine e Saint-
Denis.
No início de 1951, Lorde Esher anunciou que só haveria verba para três
diretores e imediatamente prorrogou o contrato do diretor nomeado por ele até
1955. Não havia mais atmosfera para continuar o trabalho e, em maio do mesmo
ano, Saint-Denis, Devine e Byan Shaw pediram demissão, que foi prontamente
aceita. Nos meses seguintes, com a chegada dos dois novos diretores, o
fechamento do centro foi imediatamente recomendado.
36
Em protesto, quinze professores pediram demissão e os noventa alunos
fizeram um abaixo-assinado, que foi publicado no The Times em 25/05/1951.
Um ano mais tarde não havia o menor vestígio do pensamento nem da
estrutura criada pelos três rapazes no Old Vic.
Sem outra alternativa, os três se separaram. Byan foi para o Stratford
Memorial Theatre, Saint-Denis voltou para a França como diretor do Centro
Dramático Nacional do Leste, em Strasbourg, e Devine virou independente.
Apesar de ter trabalhado muito, num curto período, Devine não aceitava a
derrota e fazia planos. Seu desejo de tornar as idéias do Old Vic novamente uma
realidade e de reunir os três rapazes ocupava a maior parte do seu tempo.
Chegou a recusar um convite para administrar a companhia de Lawrence Olivier,
por lealdade a Saint-Denis.
A oportunidade veio por acaso. Tony Richardson, um jovem produtor da
BBC, telefonou para Devine convidando-o para dirigir o piloto de um programa.
Devine recusou, mas como o produtor insistisse muito, acabou aceitando.
Devine encontrava um novo parceiro. Richardson era jovem e Devine tinha
nome, conhecimento e experiência. Os dois traçaram planos e essa aliança
possibilitou o lançamento das bases para a fundação do moderno palco britânico.
Segundo relatos, Devine parecia mudado. Não mais estava interessado
em re-agrupar os três rapazes e parecia não estar mais empenhado na criação de
um novo trabalho em teatro para os atores; ele estava agora empolgado com a
idéia de ter um teatro que encorajasse novos autores.
Richardson e Devine se puseram a procurar um teatro. Nessa mesma
época, o The Times informava o arrendamento do Royal Court Theatre, por Alfred
37
Esdaile, por um período de quarenta anos e meio. O Royal Court Theatre estava
associado a nomes e eventos legendários da história do teatro inglês e Devine
achou que esse era o teatro perfeito para desenvolver o seu projeto. Durante dois
anos, lutou junto com Richardson para comprar de Alfred Esdaile o direito de uso
do teatro. A resistência era imensa e extremamente dificultada pelo fato da
decisão final envolver agentes do governo.
Quatro projetos de ocupação do espaço foram elaborados, entre março e
agosto de 1953. Vários colaboradores trabalharam no aprimoramento dos
esboços.
Devine propunha uma ocupação inicial de três anos, com Richardson
como seu assistente. O repertório deveria ser composto, em sua grande maioria,
por textos novos; seria criado um clube e projetos de treinamento de ator deveriam
ser desenvolvidos. Seria igualmente importante que os trabalhos a serem
realizados permitissem conexões com outras artes.
Na verdade, essa proposta não era de todo inovadora. Muitas das idéias
de Saint-Denis, que por sua vez derivavam das de Jacques Copeau, estavam
presentes; o que diferia era o fato de Devine priorizar a montagem de textos
novos.
�A política do Royal Court Theatre será encorajar uma dramaturgia não ficcional oferecendo um teatro onde os autores contemporâneos possam se expressar mais livremente e com maior freqüência do que é possível sob condições comerciais.�22
22 Idem, p. 9
38
Richardson e Devine procuravam de todos os modos levantar fundos
através dos contatos que possuíam, ao mesmo tempo em que tentavam
convencer Esdaile a se desfazer do teatro que ele transformara em um clube de
teatro só para associados. Esdaile, por sua vez, como a insistência fosse grande e
antevendo possibilidades de lucro, numa jogada comercial, abriu o teatro ao
público em geral, em junho de 1953, colocando o Royal Court novamente no
roteiro teatral de Londres. O sucesso da temporada reforçou ainda mais a recusa
de Esdaile em se desfazer do teatro.
O Conselho de Arte, por sua vez, achava que o projeto de Devine deveria
ser alocado no Westminster Theatre, onde funcionava o London Mask Theatre.
Devine concluiu que o problema não estava no projeto, mas na maneira
como estava sendo encaminhado.
Na ocasião, por uma confusa sucessão de acontecimentos e, talvez, feliz
coincidência, nascia em Londres um movimento coordenado por Ronald Duncan e
Oscar Lewestein para a produção de textos não comerciais de autores
desconhecidos, que resultou no Torridge Festival, com enorme sucesso de
público.
Embalado pelo impacto causado pelo festival, Duncan começou a manter
contato com Esdaile, em 1954, e a montar a sua própria companhia. Dos sete
nomes presentes no estatuto, quatro pertenciam ao Conselho do Royal Court
Theatre, mas problemas legais em torno do nome da companhia fizeram com que
o negócio não pudesse ser fechado de imediato.
Esdaile, a essa altura, já se mostrava mais permeável e disposto a permitir
que uma companhia de teatro usasse o Royal Court como sede administrativa.
39
Em julho de 1954, a companhia de Duncan, aproveitando em seu projeto a
estrutura do Torridge Festival, torna-se The English Stage Society Ltd.
Esdaile acabou concordando em arrendar o teatro para Duncan, mas exigiu
um diretor artístico de peso. E, por uma guinada de sorte, em toda essa confusa
negociação, o diretor indicado por Esdaile não foi ninguém menos do que George
Devine.
Duncan e Lewestein terminaram por reconhecer que Devine era a parte
central de um pequeno grupo de artistas com reconhecimento, coisa que lhes
faltava.
Assim, o ultra-profissionalismo de Devine e o amadorismo de Duncan se
associaram, em fevereiro de 1955, e Devine tornou-se o primeiro diretor artístico
da - agora - English Stage Company, tendo Richardson como seu assistente.
Aqui começa, de fato, a realização do sonho de Devine e a moderna
história do Royal Court Theatre. Uma história que se mistura à história do teatro
contemporâneo inglês.
Lá foram encenadas algumas das peças que mais influenciaram a história
do teatro moderno, por uma companhia forjada no pós-guerra, cuja criação reflete
não só o difícil momento de reconstrução da vida cultural inglesa, mas exemplifica
a feroz batalha travada contra uma tradição teatral secular e contra a censura.
�O papel do produtor como condutor de interpretações é encontrar o coração da peça, para representar o autor, para relacionar a peça ao público de forma que o impacto seja real e não teatral. (...) As produções devem se atualizar � métodos precisam mudar. O produtor deve estar afinado com o seu tempo
40
� deve fazer uma arte popular � não para poucos intelectuais especiais.�23
Esta fala de Devine, proferida diante dos membros do Conselho Britânico,
em 1948, havia provocado sua demissão do Old Vic e, ironicamente, abrira-lhe as
portas para o Royal Court Theatre. Nem por isso os primeiros tempos no teatro
deixaram de ser conturbados, a exemplo das fracassadas experiências anteriores.
Devine e Richardson queriam organizar o teatro segundo o modelo que haviam
planejado durante anos. Para isso, Devine reuniu parte de suas antigas equipes, e
a impressão causada foi a de que a um só tempo haviam ressurgido o London
Theatre Studio e o Old Vic Theatre Center, mas com diferenças. Os trabalhos não
eram tão meticulosos como o método de Saint-Denis exigia, e Devine dava mais
liberdade a seus atores do que este último teria permitido.
O fato é que Devine estava tentando não repetir o passado, e sua maior
preocupação residia na qualidade do texto e não no aspecto visual do espetáculo.
A exigência com relação à excelência da dramaturgia deixou Duncan e
Lewenstein insatisfeitos, porque durante meses nem um texto novo sequer havia
sido lido, alguns haviam mesmo sido rejeitados, e isso contrariava a base da
parceria. Ambos acusavam Devine e Richardson de conduzirem sozinhos a
política do teatro.
Textos de Lorca, Wedekind e Pirandello estavam sendo montados, mas
onde estavam os novos autores?
Em meados de 1956, Devine e Richardson acataram as críticas e
arriscaram contratar um desconhecido para ler textos: Keith Johnstone. 23 Ibidem, p. 9.
41
Keith Johnstone tinha pouca ou quase nenhuma experiência em teatro e,
por essa razão, relutou em aceitar de imediato. Mas, como era um emprego e na
ocasião estivesse sem dinheiro, mesmo sabendo de suas limitações, acabou por
aceitar a oferta.
Seu trabalho consistia em fazer a primeira triagem dos textos enviados por
novos autores. Os textos selecionados deveriam conter marcas pessoais, ou seja,
deveriam revelar experiências pessoais do autor mais do que sua experiência
teatral ou domínio técnico em sua construção.
Keith Johnstone saiu-se muito bem na tarefa, afinal ele próprio gostava
muito de escrever e já havia feito algumas pequenas incursões como autor de
roteiros para cinema. Logo se tornou chefe do departamento de textos, que, aliás,
possuía apenas dois funcionários, dos quais ele era um. Isso exemplifica a
estrutura burocrática imposta e estimulada por Devine, na firme administração do
teatro. Nada e nenhum dos textos selecionados poderia chegar às suas mãos nem
às de Richardson sem que fosse acompanhado por um memorando datado e
assinado. Caso contrário, ele devolvia o material com um bilhete.
Apesar da burocracia imposta por Devine, Keith Johnstone considerava que
o trabalho em si era muito fácil porque a maioria dos textos eram cópias ou
pseudo-obras originais cunhadas a partir de autores já consagrados. Segundo ele,
Beckett era o mais copiado.
Mesmo assim, em pouco tempo o Royal Court Theatre abrigaria um número
considerável de novos autores.
Devine alardeava que a cultura dominante excluía uma quantidade
expressiva de pessoas talentosas, que não tinham tido acesso a uma boa
42
educação. Não se tratava de uma idéia original, mas o fato de Devine, com seu
profissionalismo exagerado, estar realmente praticando essa idéia, tornava-a
original.
�Ele acolheu os �marginais� em sua �casa� sob a assunção de que eles poderiam saber o que era bom para o teatro.�24
Isso criou uma espécie de mito, em torno do qual dizia-se que uma �horda
selvagem de autores proletários estava sendo contrabandeada para o palco�25.
Os autores dos primeiros tempos, embora tivessem tido alguma experiência
anterior e algum reconhecimento, dificilmente teriam tido oportunidade real não
fosse o Royal Court, e muito menos poderiam reclamar para si o título de autores.
Eram amadores que vinham das mais diversas profissões. Havia um padeiro, um
aprendiz de alfaiate, dois estudantes universitários, um professor de escola
particular, uma ex-professora de escola pública, duas novelistas, um poeta, um
arquiteto e Keith Johnstone.
�O que o Court lhes deu foi um palanque aberto onde eles podiam dizer exatamente o que queriam, e o resultado foi uma vivência dramática de uma espécie sem precedentes na história do teatro inglês. Nunca antes um teatro havia tratado sem reservas os autores, e subordinado todas as outras prioridades para fazer justiça aos novos textos.�26
A atmosfera existente no teatro acabou alcançando o público e gerando
grandes expectativas quanto aos próximos trabalhos. Não havia como prever o
24 WARDLE, Irving. The Theatres of George Devine. Londres: Johnathan Cape, 1978, p.194. 25 Idem, p. 195. 26 Ibidem, p. 198.
43
que aconteceria, nem classificar o que faziam. Tudo era sempre novo e diferente.
O que todos, no entanto, percebiam é que ali estava sendo criada uma
dramaturgia fruto da experiência e não a partir de modelos.
Devine instituiu algumas novidades. Os autores tinham passe livre nos
ensaios e cadeira cativa nos espetáculos. As peças deveriam ser conhecidas pelo
nome de seus autores e não por seus títulos. Assim, se ocorresse de um mesmo
autor ter duas peças encenadas ao mesmo tempo, todos deveriam referir-se a
elas como sendo Fulano I e Fulano II.
�A única forma de ensinar a um dramaturgo o seu ofício, disse Devine, é colocar a sua peça no palco.�27
E, embora, em geral, gostasse de mostrar-se uma figura paternal para os
seus autores, e admirasse pessoas com habilidade verbal, porque sentia que essa
qualidade lhe faltava, tinha suas preferências e não as escondia.
O descompasso que havia entre o que o público achava do teatro e o que
de fato ocorria internamente aumentou a tensão entre a administração e os
autores. Em 1958, Devine, para contornar a situação, cria o Grupo de Autores.
�George Devine anunciava aos quatro cantos que o Royal Court era um �teatro de autores�, mas os autores não tinham muita voz na política do teatro. George pensou, então, que um grupo de discussão corrigiria isso e, ele mesmo, presidiu três encontros que foram tão tediosos que ele passou o trabalho para William Gaskill, um de seus mais jovens diretores. Bill havia dirigido a minha peça Brixham Regatta, e me perguntou como eu coordenaria o grupo. Eu disse que se ele continuasse a funcionar como um grupo de conversa de bar todo mundo o abandonaria, e que nós
27 Ibidem, p.192.
44
deveríamos estar de acordo em não discutir nada que não pudesse ser representado. Bill concordou e o grupo começou a funcionar como um grupo de improvisação.� 28
Esta fala de Keith Johnstone é corroborada por uma de Irwing Wardle, ao
referir-se aos primeiros encontros do grupo como �restritos a inócuas discussões
sobre a situação do teatro�29. Alguns meses mais tarde, porém, o grupo
encontraria um propósito em torno do qual se reunir. O resultado do que lá eles
desenvolveram fez-se sentir por todo o teatro e uma nova área da dramaturgia
parecia estar prestes a surgir.
�Isso deu ao grupo uma causa comum, e as reuniões comandadas por Gaskill e Keith Johnstone deram aos autores um caminho para a experimentação. Ninguém sofria de bloqueio de escrita e todo material trazido para o grupo era imediatamente transposto para a improvisação. Todas as quartas-feiras, durante dois anos, escritores como Jellicoe, Wesker, Soyinka, Edward Bond e David Cregan participaram desses encontros e trabalharam passagens de suas peças. Do grupo surgiram muitas peças e foi lá que K.J., influenciado pelas aulas de máscaras de Devine, com sua trupe de Máscaras, criou o Theatre Machine.�30
O grupo inovava, experimentava, e o Royal Court Theatre foi, de fato, se
firmando como um teatro de autores.
George Devine, por sua vez, segundo relatos, não nutria sentimentos muito
positivos em relação ao grupo. Não chegava a ser hostil, mas para ele tratava-se
de autores que simplesmente estavam lá.
28 JONHSTONE, Keith. Impro,Op. cit., p. 26. 29 WARDLE, Irving. The Theatres of George Devine. Op. cit., p. 195 30 Idem, p. 199-200.
45
�Ele se referiu uma vez ao grupo como sendo um grupo de autores de segunda linha. Ele incluía (Arnold) Wesker. E, certamente, incluía Edward Bond e Keith Johnstone, os quais ele julgava não estarem à altura.� 31
Em 1961, Devine produziu uma série de memorandos que anunciavam
mudanças na política do teatro. A partir daquele momento as peças seriam
classificadas como: Star Shows, Normal Shows e Experimental Shows. A primeira
categoria poderia pautar o teatro por um período mínimo de oito semanas. A
segunda categoria, por seis semanas, e a terceira, por apenas três semanas.
Os ânimos mais uma vez se acirraram, pois as produções internas do
teatro não se enquadravam nem na primeira nem na segunda categoria. Duncan e
Lewenstein protestaram e o Conselho Britânico passou o comando do teatro para
um triunvirato formado por Gaskill, Dexter e Anderson.
Com Gaskill no comando, Keith Johnstone torna-se Diretor Associado do
teatro.
Em 1963, um memorando de Devine solicitava a criação de um Studio para
o desenvolvimento de todos os tipos de artistas de teatro e de um núcleo para a
companhia de atores. A idéia do Studio vinha do trabalho que desenvolvera com
Saint-Denis e que, por sua vez, era inspirado em Jacques Copeau.
O objetivo era atingir um novo público, especialmente o público jovem.
O Conselho aprovou as mudanças e, em 17 de fevereiro, em caráter
experimental, por um período de dez semanas, começava a funcionar o Court�s
Actors� Studio, tendo Gaskill como diretor.
31 ROBERTS, Philip. The Royal Court Theatre and the Modern Stage. Op. cit., p. 72.
46
Keith Johnstone passou a dar aulas no recém criado Studio e como,
naquele momento, ainda pouco entendesse a respeito de treinamento de ator, ele
decidiu ensinar Habilidade Narrativa.
Nos três anos que se seguiram, até a morte de Devine, em 1966, Keith
Johnstone desenvolveu as suas idéias com os alunos do Studio, e criou o Theatre
Machine, a estrutura de espetáculo de improviso que deu origem ao Teatro-
Esporte.
47
O MÉTODO
O método de improvisação criado por Keith Johnstone, que é considerado,
por alguns críticos e estudiosos, como primo da Commedia dell' Arte, por outros,
como a realização do sonho de Brecht e, por outros ainda, como um extrato do
método de Stanislavski (aliás, estilos teatrais opostos e bastante conflitantes),
trata, na verdade, de princípios básicos do teatro. Aquilo que acreditamos ter sido
a relação do público e dos atores na origem do próprio teatro. Ou, ainda, talvez, o
comportamento do povo e dos sacerdotes na celebração dos ritos ancestrais.
Brecht dizia que o teatro deveria ser como o futebol, capaz de mobilizar o
público como num estádio.
Stanislavski dizia que era necessário buscar os motivos das ações, gestos
e falas das personagens.
A Commedia dell� Arte, através de situações improvisadas, desnudou e
explorou os vícios e as virtudes de tipos representativos da natureza humana, nas
suas personagens.
Os ritos, por sua vez, ou expurgavam o mal, ou apaziguavam os mortos, ou
exortavam a natureza para que a vida florescesse e fosse boa para todos.
48
PRINCÍPIOS E FUNDAMENTOS
O método que ele criou tem por objetivo devolver a espontaneidade ao ator,
cujo passo inicial seria a aceitação de suas próprias idéias. Para isso, ele lança
mão do jogo, que na visão aristotélica é uma atividade que se executa por si
mesma, escolhida por si só e não pela finalidade ou resultado que produz.
Para J. Huizinga, o jogo �se insinua como atividade temporária, que tem
uma finalidade autônoma e se realiza tendo em vista uma satisfação que consiste
nessa própria realização.�32
Sendo o homem dotado de inteligência, é de sua natureza criar. Criamos a
partir de idéias. Locke e Descartes dizem que a idéia é o objeto imediato do
pensamento. Idéia, para Descartes, é aquilo que o homem encontra em seu
espírito quando pensa. E por pensamento entende, segundo suas palavras, �tudo
o que acontece em nós, de tal modo que o percebamos imediatamente por nós
mesmos; por isso não só entender, querer e imaginar, mas, também, sentir é o
mesmo que pensar.�33
John Dewey acredita que a idéia é acima de tudo uma antecipação de
alguma coisa que pode acontecer. A idéia marca a existência de uma
possibilidade. A essa visão junta-se a de Heidegger, que coloca a idéia como um
projeto cuja existência só se dará se presentificada pelo ser-aí (dasein), que para
ele é o modo constitutivo do Homem. É sendo-aí que o homem existe, porque a
partir dessa condição de abertura para a experiência ele pode captar o mundo e
32 HUIZINGA, J. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 2004, 5ª ed, p. 12 . 33 ABBAGNANO Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 751.
49
responder àquilo que se apresenta. O ser-aí é sempre a sua possibilidade, e é
sendo-aí que o homem constrói o seu modo de ser, a sua existência, a sua
história.
Se a idéia é o objeto imediato do pensamento ou uma possibilidade de ser,
por que ter idéias, às vezes, nos parece tão custoso?
Keith Johnstone afirma que a questão não está em ter ou não idéias, mas
sim em aceitar as idéias que temos.
Platão nos ensinou que, além do mundo de objetos mutáveis e destrutíveis,
há um outro mundo de Formas eternas e imutáveis: o das Idéias. Um mundo ao
qual ele acreditava só ter a mente humana possibilidade de acesso, através de um
processo de educação. É justamente aí que Keith Johnstone acredita estar o
problema, pois, embora do ponto de vista metafísico a perfeição não seja jamais
alcançada, a Educação, mais especificamente a Escola (o lugar destinado e
reservado para esse fim, de forma organizada), em geral, nos leva a acreditar que
é possível tocar a perfeição, na medida em que nos apresenta modelos como
totalidade e não como possibilidades de fazer ou pensar.
�Eu tentava resistir à minha educação escolar, mas eu admitia o fato de que a minha inteligência era a minha parte mais importante. Eu tentava ser �inteligente� em tudo o que fazia. O prejuízo foi maior nas áreas em que os meus interesses e os da escola pareciam coincidir: escrever, por exemplo (eu escrevia e re-escrevia e perdia toda a minha fluência). Eu esquecia que a inspiração não é intelectual, que a gente não tem que ser perfeito. Por fim, eu estava relutante em prestar atenção em qualquer coisa, por medo do fracasso; e os meus primeiros pensamentos nunca pareciam bons o bastante. Tudo tinha de ser corrigido e devidamente ordenado.�34
34 JOHNSTONE, Keith. Impro, Op. cit., p. 17.
50
Talvez porque imaginamos ser possível alcançar o mundo das Idéias,
acabamos por nos lançar numa busca desenfreada pela perfeição. Porém, quanto
mais perseguimos esse objetivo, mais nos distanciamos do que efetivamente
temos nas mãos. Vamos, sem que percebamos, deteriorando nossa capacidade
de ver e escutar os apelos que nos são feitos a cada momento. Vamos destruindo
nossas idéias, antes mesmo de elaborá-las. Criticamos antes mesmo de termos
algo concreto a criticar. E, como conseqüências inevitáveis, temos, com o passar
do tempo, a imobilidade e o forte sentimento de impotência e fracasso, que
acabam nos trazendo resultados bastante desastrosos (os psicólogos que o
digam!). Ter idéias, para nós, passa a ser considerado como uma tarefa que
demanda muito esforço.
E no Teatro?
O que ocorre com um ator no momento em que se pede para que dê uma
idéia, para que crie algo no palco?
Quanto tempo decorre desde a solicitação até a efetiva ação?
Que grau de satisfação ele obtém com sua obra?
É provável que seu olhar se dirija, imediatamente, para o alto e para a
frente, como se existisse um local definido para o mundo das idéias. Então, alguns
infindáveis milésimos de segundo terão transcorrido até que ele responda,
provavelmente com um sorriso embaraçado nos lábios, que não teve nenhuma
idéia. A cabeça penderá para baixo e ele terá muita dificuldade em manter o
contato visual com você. Para o observador, a percepção que se tem é a de
alguém que diminui fisicamente, numa tentativa mágica de desaparecer.
51
Lidar com as idéias, tanto com as que buscamos, como com as que
aparecem em nossa mente sem serem chamadas, é uma tarefa muito difícil. Difícil
porque tentamos exercer controle sobre elas. Para Keith Johnstone, o que ocorre
é que as primeiras idéias que vêm à mente são, em geral, obscenas, psicóticas e
não originais. Por isso, vamos jogando fora essas idéias, esperando por aquela
que nos tornará, aos olhos do interlocutor (do mundo), alguém digno de ser
ouvido. O problema é que nenhuma idéia será boa o bastante. Então, de fato,
dizemos que não temos idéia nenhuma.
Freud, ao descrever a luta infinda entre as três estruturas mentais (id, ego e
superego) e o quadro de patologias decorrentes da prevalência do id ou do
superego sobre o ego, serve de fundamento a esse pensamento de Keith
Johnstone.
Mas, se um ator correr o risco de dizer a primeira coisa que lhe vier à
mente, muito provavelmente, se surpreenderá. Poderá, até, levar as mãos à boca,
como que tentando evitar que mais alguma coisa escape. Cairá na risada, seu
peito se abrirá, ele crescerá em tamanho. O prosseguir ou não dependerá da
atitude do interlocutor. Cenas de improviso são criadas a partir daí.
Keith Johnstone defende o anormal, os nossos sentimentos proibidos e os
impulsos inconscientes, e nos desafia a confiar em nossos primeiros
pensamentos.
Seu método lida basicamente com três princípios:
a) Aceitação versus bloqueio.
b) Status alto e baixo (princípio da gangorra).
c) Espontaneidade e criatividade.
52
ACEITAÇÃO E BLOQUEIO
Se, de acordo com o pensamento de Keith Johnstone, o ponto de partida
para a improvisação é a aceitação da primeira idéia, uma questão a ser avaliada,
ao se iniciar o trabalho, é a observação do processo mental que possibilita a
criação de cenas. O ator deve ser capaz, em primeiro lugar, de reconhecer o modo
como ele cria ou como chega à ação. Talvez a melhor maneira de dar início a esse
processo de análise seja propor ao ator que observe o seu modo habitual de se
relacionar na vida com as tarefas que tem para executar, ou os problemas que
surgem em seu dia-a-dia. O que ele faz e como faz. Como funciona o seu
pensamento. Uma pergunta que ele poderia se fazer é: Como procedo
normalmente: penso antes de agir ou ajo por impulso? Longe de ser uma questão
do âmbito do teatro, e até soar estranha, já que caberia melhor à Psicologia ou à
Filosofia, a resposta a essa questão dará ao ator a dimensão do trabalho que tem
à sua frente, para que possa se lançar na improvisação sem receio do resultado e
com certo grau de sucesso.
Reconhecendo que o ator e a sua pessoa são indissociáveis, há que se
considerar o fato de que o que ele é e o que possui como atributos em seu
instrumento de trabalho, o seu corpo, contribuirão diretamente para uma melhor ou
pior performance no palco. Teorias e técnicas de treinamento de ator, das mais
diversas correntes, buscam o aprimoramento de seu instrumento de trabalho. Aqui
não é diferente. Porém, o que estará em foco e será objeto de exaustivo trabalho
será a maneira como o ator lida com suas idéias.
53
Caso 1
Se o ator detecta como comportamento habitual a necessidade do
planejamento a priori, ou seja, se ele se considera alguém que pensa muito antes
de tomar qualquer atitude, muito provavelmente terá grande dificuldade inicial em
lidar com a primeira idéia, uma vez que a sua tendência será a de considerar as
idéias que vêm à sua mente não como idéias, mas como cenas acabadas, já
apresentadas e julgadas pelo observador, o que exige dele muito esforço, pois
precisará ter executado uma operação mental que envolve grande planejamento;
e planejar significa, entre outras coisas, tentar prever possíveis ocorrências e
modos de melhorá-las, superá-las ou resolvê-las. Dito de outra forma, planejar
significa, também, controlar. Controlar a situação, a si mesmo, as outras pessoas
que possam estar envolvidas na construção da cena junto com ele, além dos
possíveis julgamentos feitos pelo público. Planejar implica também a existência de
um certo e de um errado. Ninguém, em sã consciência, planeja algo para dar
errado. Em geral, o planejamento busca a perfeição e esta o aplauso do
observador. O problema é que, quando exagerado, o desejo de perfeição pode
levar o ator à imobilidade e à frustração. Mas, além de tudo isso, o planejamento
implica existência de tempo, tempo esse que não existe quando trabalhamos com
este método de improvisação.
Um ator acostumado ao planejamento tenderá a ter mais facilidade em
trabalhar com um texto dramatúrgico pré-existente ou com uma situação dramática
já delineada e sob a orientação de um diretor, porque este atuará como
consciência crítica de seu trabalho, aprovando ou desaprovando as suas idéias.
54
No trabalho com o método de improvisação de Keith Johnstone não há na
cena nem texto nem a figura de um diretor, o que deixa o ator à mercê de suas
idéias. Quanto mais disposto ao planejamento ele for, maior será o seu temor em
aceitar a primeira idéia e maior será a sua prontidão para bloquear as idéias,
sejam elas suas ou de seus companheiros de cena.
A grande tarefa desse ator será a de relativizar a influência da vida real no
palco. O palco é o lugar da fantasia, o lugar da possibilidade. O palco não é a vida
real, portanto, o que fizer nele não lhe trará as mesmas conseqüências que atos
realizados na vida real. Mas, por mais curioso que pareça, embora esse ator saiba
de tudo isso e que é de sua profissão criar, inventar, se expor, quando se trata de
improvisar a sensação que se tem é de que houve um esquecimento temporário
das premissas de sua profissão, como se no espaço de tempo da improvisação
ele não fosse o ator e sim a pessoa da vida real, sujeita às regras e convenções
sociais e não às teatrais.
Digamos que seja proposta a criação de uma cena cujo título é O terremoto.
Um ator se lança no palco e daí pára por poucos segundos, olha em volta e
começa a falar sobre o chão que está tremendo, sobre as casas que estão caindo,
etc. Seu corpo não tem vitalidade. A cena do relato do terremoto termina e o ator
vai se sentar. Se indagarmos a respeito do pensamento que o levou ao primeiro
movimento de se lançar no palco, muito provavelmente ele dirá que pensou em
algo completamente diferente do que realizou efetivamente quando o movimento
cessou e ele se viu no palco com a responsabilidade de criar a cena. Talvez sua
primeira idéia tenha sido gritar, mas ele não a aceitou porque poderia parecer
maluco. Seu corpo queria tremer, mas ele não sabia como um corpo treme num
55
terremoto e não queria provocar riso. Então ficou buscando algo que o tirasse da
desconfortável situação de estar no palco. Daí a parada. Falar sobre o terremoto o
protegeu, mas a cena, que é o que queríamos ver, não aconteceu. A opção pelo
relato ainda assim poderia tê-lo colocado dentro da situação do terremoto, como
um repórter, por exemplo, mas isso o obrigaria a expressar emoções e, segundo
sua análise, talvez, a parecer ridículo. O curioso é que se essa fosse a cena de
uma peça, esse mesmo ator não teria tido todas essas preocupações. Haveria
uma personagem, um autor que colocou a personagem nessa situação, uma
concepção de direção, um figurino, talvez um adereço, outros atores, os ensaios,
enfim vários suportes e garantias e, em último caso, algo ou alguém para culpar
caso fracassasse. E, se nada disso fosse suficiente para desculpar uma possível
falha, ele ainda poderia argumentar não estar nos seus melhores dias.
Porque esses atores desconfiam da qualidade de suas idéias, também não
confiam nas de seus companheiros de cena e, por esta razão, por medo de um
possível fracasso, acabam por se sentir responsáveis pela realização da cena,
jogando sobre si a tarefa de criá-las de cabo a rabo sozinhos.
Caso 2
Se a resposta à pergunta sobre o modo como o ator procede normalmente
diante do inesperado for a da ação imediata ou por impulso, estaremos diante de
alguém que já possui prontidão para a improvisação, o que não significa que esta
prontidão conduza necessariamente à realização de uma cena acabada.
Há atores que possuem grande facilidade em iniciar uma cena, mas não
conseguem desenvolvê-la e concluí-la. Existem atores que se jogam no palco
56
antes mesmo que um enunciado seja concluído. A impressão que se tem é a de
se estar diante de alguém cuja caixa craniana é pequena demais para conter as
idéias que fervilham dentro dela. As idéias transbordam na cena e o ator se deleita
com a quantidade de idéias que é capaz de produzir, mas não presta atenção a
elas e nem se fixa de fato em nenhuma. Suas cenas são confusas, sem eixo. O
tema pode mudar a qualquer momento, sem razão aparente, só porque surgiu
uma idéia que ele considerou mais interessante e não queria desperdiçar.
A grande tarefa deste ator será concentrar-se em sua primeira idéia, o que
consiste em árdua tarefa, já que terá de despedir-se, pelo menos
temporariamente, das demais que não param de surgir em sua cabeça. No palco,
assim como na vida, estamos sujeitos a fazer escolhas a cada momento, e para
um número considerável de pessoas a dificuldade está no abandono de todas as
outras possibilidades no momento em que uma opção é feita. Daí a dificuldade da
escolha.
Além disso, atores que produzem idéias com muita facilidade possuem a
tendência de se sentirem menos criativos quando obrigados a manter a atenção
apenas em sua primeira idéia. Com freqüência argumentam que a cena se tornará
pobre e o assunto logo se esgotará se não acrescentarem novas idéias.
Tanto num caso como no outro estaremos diante de atores que têm
dificuldade em aceitar a primeira idéia. O primeiro porque não acredita nela, e o
segundo porque não lhe presta a devida atenção. Se avançarmos um pouco mais
na análise, poderíamos falar que, no primeiro caso, o ator prioriza a qualidade
mantendo a atenção voltada para o possível julgamento que um outro possa fazer
57
de sua produção e, no segundo caso, o ator prioriza a quantidade, mantendo a
atenção voltada para sua própria capacidade de produção.
Quando improvisamos, estamos em relação. Em relação com o objeto da
improvisação, com o público mas, principalmente com o(s) outro(s) ator(es).
Keith Johnstone nos desafia a jogar o foco de nossa atenção em nosso
companheiro de cena, valorizando e aproveitando as ofertas que ele faz. Isso
equivale a dizer que a grande tarefa do ator será aceitar idéias e dar forma a elas.
�Há pessoas que preferem dizer �sim� e há pessoas que preferem dizer �não�. Aquelas que preferem dizer �sim� foram recompensadas por suas aventuras, e aquelas que dizem �não� foram gratificadas pela segurança que obtiveram. Há muito mais pessoas que dizem �não� do que �sim�, mas a gente pode treinar um tipo a se comportar como o outro.�35
ACEITAÇÃO
Dizer �sim�.
Essa é a primeira condição para que algo seja criado no palco. Aceitar a
primeira idéia que venha à cabeça, por mais simples, óbvia, banal, absurda ou
desconexa que aparentemente possa parecer. Aceitar as ofertas de um
companheiro de cena e acrescentar um �E�, enriquecendo-a, valorizando-a.
Se um ator cobrir a cabeça, cubra a sua também. Os dois podem não saber
porque fizeram isso, mas a disposição para descobrir a razão está lá, presente.
Quem sabe desenvolvam uma cena de tempestade, ou uma cena na qual o
mundo desaba sobre suas cabeças, ou uma cena sobre uma nova dança, moda
35 JOHNSTONE, Keith. Impro, Op. cit., p. 92.
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ou terapia. As possibilidades são inúmeras. Mas, o mais importante é que
disseram �sim�. Aceitaram a idéia. Caso contrário, nenhum desses exemplos teria
sido sequer pensado.
Quanto a aceitar a primeira idéia, embora pareça um conceito banal e de
fácil entendimento, a prática mostra que sua realização é bem difícil.
Para Keith Johnstone, um dos problemas decorrentes da dificuldade de
aceitação da primeira idéia está vinculado à alfabetização e à escola. Aceitar a
primeira idéia como material importante a ser considerado no processo de criação
significa valorizar a espontaneidade. E a estrutura do ensino escolar, em geral,
não se mostra muito receptiva nem à idéia de criação, nem à de espontaneidade.
Keith Johnstone nos lembra que a criança, ao iniciar o processo de
alfabetização, inicia também o ingresso num novo mundo no qual a competição
está presente e ela terá de disputar o afeto do professor não mais pelas eventuais
gracinhas que possa fazer, mas pelo raciocínio e inteligência. O que diz, pensa e
faz será avaliado e, em nossa sociedade, comparado. O aspecto ressaltado pelo
autor, a relação professor-aluno e aluno-aluno, perpassa questões de ordem
afetivo-emocionais que vão muito além da alfabetização.
Todos reconhecemos de imediato a situação de sala de aula em que o
professor, ao propor a leitura de um texto, aponta o aluno da primeira carteira na
primeira fila e lhe pede para ler o primeiro parágrafo. Depois, aponta o seguinte e
pede que leia o segundo parágrafo. Aponta o seguinte e pede que leia o terceiro
parágrafo, e assim por diante. Para nós, sentados na última carteira da terceira
fila, uma espécie de tranqüilidade nos invade. Detectamos um método na escolha
das pessoas e dos parágrafos: o professor propôs a leitura dos parágrafos
59
seguindo a ordem de carteiras e filas. Então, ávidos para mostrar ao professor
quão bem sabemos ler e, quem sabe, receber algum elogio, rapidamente fazemos
uma contagem da quantidade de pessoas que nos antecede, contamos os
parágrafos e nos detemos naquele que nos caberá. Treinamos mentalmente a
leitura e nos desligamos momentaneamente do que acontece na sala. Não raro,
acontece de, ao chegar a nossa vez, o professor nos pedir outra coisa e, aí,
chamados novamente à realidade da situação, nos damos conta de que não
sabemos responder à solicitação, nos perdemos e, ao invés do almejado elogio,
recebemos uma áspera crítica.
A prontidão para dar respostas, sejam elas espontâneas ou decorrentes e
necessárias a uma ação já iniciada, só é possível se nossa atenção estiver no
objeto em questão. Se, ao invés de nos preocuparmos com o efeito que nossa
leitura pudesse causar no professor ou na classe, nossa atenção estivesse voltada
para o texto que estava sendo lido, teríamos tido menos dificuldade em procurar
uma solução para a tarefa que nos foi proposta.
Uma outra dificuldade na aceitação de idéias é decorrente do fato de que
nem sempre elas surgem de nós. Ou seja, alguém foi mais rápido e propôs
primeiro.
Essa situação, aliás, bastante comum é, em geral, muito perturbadora
para quem se inicia na improvisação. É freqüente ocorrer a situação de um ator de
Teatro-Esporte se lançar no palco, ao final da contagem que dá início à cena, e
não oferecer indícios claros do porquê o fez; seja do ponto de vista gestual, seja
do ponto de vista verbal. Essa situação não seria grave e não comprometeria a
cena, se o autor da situação tivesse consciência de que fez uma oferta cega, que
60
poderá ser entendida de múltiplas maneiras por um segundo ator que entre em
cena para contracenar com ele. Ofertas cegas, termo usado por Keith Johnstone,
ocorrem com freqüência e são um importante estímulo para a construção de uma
cena, porque obrigam os atores a se envolverem de fato no que estão fazendo e a
manterem atenção redobrada no outro. Mas, nem sempre é isso o que ocorre. Ao
invés da satisfação por ter conquistado uma parceria e poder jogar com alguém,
muitos atores se irritam com o que o segundo ator propõe, argumentando não ter
este ator entendido o que ele estava fazendo e, em decorrência disso, ter
estragado a cena. Pensamentos não são visíveis. Nós os trazemos ao mundo
exterior através de ações: verbais ou gestuais. Se um ator não comunica a sua
idéia, se o que ele quer está em sua cabeça, não há como o outro descobrir. Esse
é um dado que, apesar de óbvio, geralmente acaba sendo fonte de muito trabalho.
Um ator entra em cena e pára no meio do palco. Depois de um curto
espaço de tempo, suspira. Um segundo ator entra, pára ao seu lado e, depois de
um curto espaço de tempo, também suspira.
Ao repetir a ação do primeiro ator, o segundo ator realiza uma dupla
operação: informa ao primeiro que aceitou a idéia da parada e do suspiro e que
aguarda maiores informações para prosseguir, porque o que ele fez não foi claro o
suficiente.
As possibilidades são múltiplas. Qualquer coisa que o primeiro ator diga ou
faça, por mínima que seja, irá conduzir a cena para frente. Mas, se ele repetir o
suspiro, estará informando para o segundo ator que as possibilidades estão
abertas porque ele não sabe, naquele momento, como prosseguir e, portanto,
precisa de ajuda. Caberá ao segundo ator, a partir deste dado, dar um norte para
61
a cena. O primeiro ator deixou para o segundo a tarefa de resolver o problema.
Portanto, o que quer que tenha pensado, ao se lançar no palco, deixou de ter
importância porque ele não revelou nem deu indícios de que havia alguma idéia
além ou por detrás do suspiro. Todas as portas estão abertas para o segundo ator.
Se este repetir o suspiro, estará informando ao primeiro ator que também ainda
não sabe como prosseguir, mas que suspirar é uma boa idéia. Os dois poderão se
envolver na tarefa de descobrir aonde o suspiro os levará, talvez experimentando
diferentes formas de suspirar até encontrarem uma solução. Ou, o segundo ator
poderia dizer, por exemplo, �hoje faz dois anos que ele/ela se foi, sinto sua falta�,
trazendo a um só tempo o tema da cena e a motivação para o suspiro do primeiro
ator. Essa ou qualquer outra oferta resolveria o problema da cena e tiraria o
primeiro ator da dificuldade inicial, dando sentido à sua ação. Porém, por mais
curioso que possa parecer, ao invés de alívio, é freqüente o primeiro ator
manifestar irritação com o segundo ator, bloqueando, às vezes sutilmente, às
vezes de forma explícita e até agressiva, as idéias que ele traz para a cena. Se
perguntado, não raro, o primeiro ator poderia argumentar dizendo não ter o
segundo ator compreendido o que ele estava fazendo. Por exemplo:
- Ele deveria entrar e me pedir desculpas pelo atraso. Nós havíamos
combinado de nos encontrar às três. Eu havia feito planos, mas como ele
não chegou, fiquei triste.
Toda uma história foi construída, mas nenhum indício foi dado. Como
poderia o segundo ator supor qualquer uma dessas informações?
O primeiro ator, ainda insistindo na pertinência de sua conduta, poderia
argumentar:
62
- Eu olhei para ele.
Fazer os atores compreenderem a importância de não sonegar informações
na improvisação leva um tempo considerável porque, em geral, eles têm como
modelo o texto dramatúrgico, que, além de já existir e ser de conhecimento de
todos, nele as revelações são feitas ao longo da peça. Não que o elemento
surpresa não esteja presente na improvisação, mas os participantes de uma
cena de improviso têm o direito de saber que surpresas acontecerão. Quem
terá de se surpreender serão as personagens e não os atores. Ao contrário,
estes terão de trabalhar em conjunto, para que a surpresa realmente ocorra e
seja entendida como tal.
Além de sonegar informações, há atores que tentam, apesar de não caber
na cena, forçar a inclusão da sua idéia. Tomemos o exemplo anterior: se o
primeiro ator tivesse tentado encaixar a idéia (que não revelou) depois da fala
do segundo ator, deixaria o segundo ator desconcertado e com sua tarefa em
muito aumentada, já que teria de encontrar uma ligação entre as duas idéias,
se quisesse salvar a cena, e o público bastante confuso com respeito à
temática.
O primeiro ator entra em cena, pára e suspira. O segundo ator entra, pára
ao lado do primeiro e também suspira. O primeiro ator olha para o segundo e
suspira de novo. O segundo ator diz:
- Hoje faz dois anos que ele/ela se foi, sinto a sua falta.
- Você devia me pedir desculpas.
Agora o segundo ator, ao invés de desenvolver o tema que propôs, é
envolvido na tarefa de descobrir a razão para o pedido de desculpas e de
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achar uma ligação entre a sua idéia e a de seu companheiro de cena. Ele não
tem certeza se o primeiro ator bloqueou a sua idéia ou se fez uma oferta. A
única certeza que tem é a de que a cena precisa continuar. Ele tenta:
- Eu sei que havia prometido não falar mais dele/dela, mas não pude evitar.
O dia de hoje me fez lembrar.
- Três horas. Você disse que estaria aqui às três.
A situação só tenderá a piorar e a cena correrá sérios riscos de naufragar, se o
primeiro ator não se dispuser a deixar de lado a sua idéia inicial, que não foi
comunicada no momento devido e abriu espaço para que uma outra ocupasse a
lacuna criada por ele.
Aceitar uma idéia colocada na cena significa, entre outras coisas, aprender a
nos despedir de outras idéias que não cabem ou não foram apresentadas no
momento oportuno, por mais maravilhosas que pudessem ser.
BLOQUEIO
Muitas pessoas parecem ter a palavra �não� na ponta da língua. O que
quer que se diga a elas, e mesmo numa conversa banal do cotidiano, utilizam este
advérbio quase como parte constitutiva de si mesmas. Com freqüência, iniciam
suas falas pelo vocábulo �não� mesmo que no decorrer da conversa raciocinem e
acabem expressando, ao final, concordância com o assunto.
Embora nem todo �não� configure um bloqueio genuíno, ele aponta
fortemente para ele e na cena deve ser evitado.
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Entende-se por bloqueio tudo o que impede o desenvolvimento ou a
continuidade da cena. Tudo o que impede o fluxo natural das idéias e ações.
O �não� fecha portas, enquanto o �sim� abre portas.
Possibilidades de ocorrência de bloqueio estão presentes tanto
internamente, quando tentamos desviar o curso de nosso pensamento jogando
idéias fora por não as aceitarmos, como externamente, quando as idéias
colocadas numa cena, nossas ou dos outros, não são aceitas.
Quando os atores começam a trabalhar com este método de
improvisação, usam em demasia o �não�, acreditando que com isso estão gerando
conflito dramático. E, uma vez que a existência de conflito é fundamental para o
Teatro, a introdução do advérbio de negação parece dar-lhes certeza de que
estarão no caminho certo.
Se Romeu e Julieta tivessem dito �não� um para o outro, não haveria
conflito. Cada um seguiria o seu caminho. Portanto, não haveria história a ser
contada. Foi porque disseram sim, aceitaram um ao outro, que o conflito se
estabeleceu. Como viver esse amor, se recai sobre eles o peso do ódio que divide
e separa Montecchios e Capuletos?
O entendimento de que o conflito dramático estabelece-se por oposição de
forças e pela existência de obstáculos e não simplesmente pela ocorrência de
quereres de natureza diversa, e de que ao protagonista da ação dramática caberá
a tarefa de vencer os obstáculos colocados em seu caminho, para que alcance
seu objetivo, aponta para a necessidade de considerarmos aqui a existência de
um aceite que é ponto de partida fundamental para que um conflito possa emergir.
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Se eu convidar alguém para ir ao cinema e essa pessoa recusar o convite,
essa experiência não acontecerá. Só haverá a possibilidade de que essa cena
ocorra se a pessoa concordar. O conflito se estabelecerá na escolha do filme, do
horário, do cinema, do meio de transporte, etc. Para Keith Johnstone, o conflito
será tanto maior quanto maior for a capacidade de aceitação das próprias idéias,
das do outro e da situação em si, porque elas estabelecerão os parâmetros para a
ação dos envolvidos. Haverá sempre um �e agora?�, que impulsionará a cena para
frente.
Uma outra razão para o uso freqüente do �não� é decorrente do medo da
exposição. O palco é um lugar de exposição e, no improviso, além daquela natural
e esperada pela própria natureza do trabalho, ela será sentida muito aumentada
por este tipo de ator porque ele não quer se ver envolvido em situações que
considera desagradáveis ou que denigram a sua imagem, e porque se julga
responsável por tudo o que se faz ou se diz em cena. Então, temendo correr
riscos, para controlar a situação, acaba por recorrer ao bloqueio como forma de
proteção.
Pessoas que têm tendência a bloquear idéias e ações, em geral, também
possuem tendência a se esquivar de relacionamentos. E como, no palco,
estabelecer relação com o companheiro de cena é determinante para que algo
possa acontecer, e a qualidade de um ator é medida em grande parte pela
capacidade que tem de contracenar, Keith Johnstone recorreu à Psicologia, mais
66
precisamente a um trabalho de Joseph Wolpe36 sobre fobias, para tentar
compreender e ajudar atores a vencer o medo do palco e a tendência ao bloqueio.
A pesquisa à qual Keith Johnstone se refere, em seu primeiro livro, foi
desenvolvida nos anos 60, mas diferentes tratamentos clínicos nessa área, até
hoje, envolvem, em geral, a utilização de técnicas de dessensibilização e de
aproximação gradativa daquilo que teria originado a fobia.
Para treinar atores acostumados ao �não� a dizerem �sim� e levá-los a
perceber que sem a concordância não conseguirão realizar nada juntos, Keith
Johnstone propõe exercícios que utilizam o bloqueio. Um exemplo é o exercício
que combina o advérbio de afirmação com a conjunção adversativa �mas�.
Ao criar uma situação intermediária entre o �sim� e o �não�, o exercício traz
alívio aos participantes que fazem muito uso do �não� porque, embora obrigados
pelas regras do jogo ao �sim�, sentem-se confortáveis, ao realizá-lo, uma vez que
estarão também obrigados, pelas mesmas regras, a encontrar razões que
impeçam que algo aconteça. E nisso eles são especialistas.
A - Vamos ao cinema?
B - Sim, mas está chovendo.
A - Sim, mas eu tenho um guarda-chuva.
B - Sim, mas ele é pequeno.
A - Sim, mas o cinema é perto.
B - Sim, mas eu estou gripado.
36 Psiquiatra por formação é considerado um dos pioneiros no tratamento da ansiedade e da fobia. Desenvolveu uma terapia comportamental que parte do princípio de que ansiedade é incompatível com relaxamento. Wolpe estabelece uma hierarquia dos estímulos causadores da ansiedade e os apresenta ao paciente de forma progressiva, em situação de relaxamento, visando a dessensibilização dos mesmos.
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A - Sim, mas o filme é justamente sobre uma família que se curou de gripe.
Esse diálogo, mantido por uns minutos, acaba levando o especialista em
bloqueio a quebrar a regra do jogo (é o que ele acredita) e a aceitar a idéia
inicial, porque percebe nitidamente uma sensação de sufoco que o �não�,
embora amenizado, no jogo, pelo �mas�, lhe causa. É bastante comum atores
relatarem, ao final do exercício, haver uma disposição para expressar um �sim�
conclusivo muito antes de terem tido a coragem de verbalizá-lo, por medo de
estragar o exercício, e que o diálogo sustentado por razões negativas acaba
tornando-se insuportável porque, embora do ponto de vista verbal possam até
mantê-lo por um tempo considerável, sentem tensões físicas e uma disposição
corpórea para a concordância.
Chegar à aceitação através do uso do bloqueio, além de fazer os atores
perceberem, de forma rápida, quão nocivo ele é para a improvisação, também
está ligado a uma conduta adotada pelo autor em seu trabalho. Para Keith
Johnstone é muito importante que os atores não fracassem em suas tentativas,
porque o fracasso os conduziria a fechamentos maiores, gerando bloqueios
ainda mais poderosos. Por esta razão, se o ator, por algum motivo, tem medo
da exposição, não há porque não se permitir que se aproxime do palco e de
suas idéias a partir daquilo que lhe traz segurança. Ao invés de criticar a
temporária incapacidade do ator em criar uma cena de qualidade, Keith
Johnstone tem os olhos voltados para as pequenas conquistas realizadas
68
durante a construção da cena. As idéias de Anthony Stirling37, aliadas ao
trabalho de Joseph Wolpe, aparecem como suporte dessa atitude.
�Quando (em 1964) eu li um trabalho de Wolpe sobre tratamento de fobias, eu vi uma clara relação com as idéias que eu havia adquirido de Stirling, e com o modo como eu as desenvolvia ... Para mim, todos nós temos uma fobia universal de sermos olhados num palco, e isso responde muito bem à �progressiva dessensibilização� que Wolpe advogava. Muitos professores parecem tentar fazer seus alunos esconderem o medo, o qual sempre deixa traços � uma opressão, uma tensão extra, uma falta de espontaneidade. Eu tento dissipar o medo por um método análogo ao de Wolpe, mas que eu realmente tirei de Anthony Stirling. (...) Um achado de Wolpe que eu incorporei ao meu trabalho foi a descoberta de que se o processo de cura é interrompido pela re-ocorrência do medo total (...) então o tratamento deve ser reiniciado pela base da hierarquia.
Devido a isso, eu constantemente retorno aos estágios bem iniciais para tentar puxar aqueles alunos que permanecem num estado de pavor, e que devido a isso dificilmente fazem quaisquer progressos. Ao invés de ver as pessoas como não talentosas, nós podemos vê-las como fóbicas, e isso muda completamente a relação do professor para com elas.�38
Haverá tempo para que o ator compreenda que fracassos ocorrerão em
suas criações, mas os sentimentos deles derivados não podem nem devem
impedi-lo de continuar o trabalho, ou seja, a criação de cenas.
37 ver Keith Johnstone a a criação do método, p. 21. 38 JOHNSTONE, Keith. Impro, Op. cit., p. 30.
69
STATUS
Princípio da gangorra
A escolha da gangorra como objeto imagético para elucidar o conceito de
status alto e baixo é bastante pertinente e traz no próprio objeto escolhido a
explicação do conceito: se alguém subiu é porque alguém desceu.
O princípio da gangorra chama a nossa atenção para as relações de poder,
contidas em todos os níveis de relacionamento humano. A gangorra é algo que
pressupõe movimento. Portanto, o status, na concepção descrita por Keith
Johnstone, é algo móvel. Ele não diz respeito à condição social de alguém, como
normalmente entendemos e usamos o termo.
O status, para Keith Johnstone, diz respeito ao poder que alguém tem num
determinado momento. Dessa forma, uma personagem pode ganhar poder, pode
perder poder, pode lutar por poder. Entre um extremo e o outro da gangorra, Keith
Johnstone cria três níveis intermediários, em que o número um seria o mais baixo
e o cinco o mais alto.
Uma personagem cuja trajetória não apresente nenhuma alteração de
status, dramaturgicamente falando, não seria uma personagem bem construída,
porque teria mantido a gangorra parada.
Identificar e saber jogar39 com o status, além de estimulante e muito
divertido, obriga o ator a olhar e escutar tanto a si mesmo como ao outro, com
extrema atenção, pois mínimos movimentos, inflexões de voz, postura, ocupação
do espaço, etc., alterarão o status de um e de outro.
39 É o verbo utilizado para indicar a ação a ser realizada com o status.
70
Status é algo basicamente definido pelo território, pela postura e pelo
contato visual. Pessoas de status alto tendem a ocupar mais espaço no ambiente
porque estabelecem para si amplas fronteiras e tendem a considerar esse território
demarcado e tudo o que nele exista como sendo seu, mesmo que legalmente não
lhes pertença. São pessoas que interagem com intimidade com as coisas do
ambiente. Com relação à postura, possuem a coluna ereta, os ombros bem
colocados, andam com passos firmes e seus pés tocam de fato o chão. Possuem,
também, facilidade para manter o contato visual.
Ao contrário, pessoas de status baixo procuram ocupar pouco espaço no
mundo e tratam as coisas que nele existem com cuidado, às vezes extremo, e,
mesmo sendo de fato suas, relacionam-se com elas como se não lhes
pertencessem. Têm dificuldade de manter o contato visual, desviando o olhar com
freqüência e, em relação à postura, curvam ligeiramente a coluna e encolhem os
ombros, numa tentativa de diminuir de tamanho.
Duas foram as fontes que geraram a conceituação de status: o trabalho
sobre motivações, de Stanislavski, e a pesquisa sobre o comportamento de grupos
de animais, em especial os lobos.
Keith Johnstone chama a nossa atenção para o fato de só percebermos a
existência de territórios em situação de conflito, quando nos vemos, de alguma
forma, ameaçados de perdê-los, e de que em nosso dia-a-dia não nos damos
conta do que fazemos para ajustar nossos stati, para cima ou para baixo, segundo
a necessidade, na convivência com os outros. O que não significa que a gangorra
não esteja em movimento todo o tempo.
71
O trabalho com status chama a atenção dos atores porque expõe as
manobras que eles fazem na vida para conseguir o que desejam, porque torna
consciente o tipo de jogador de status que são, e porque o trabalho com o status é
uma rica fonte de pesquisa de suas personagens. Pesquisa essa que os ajuda a
perceber no texto, por exemplo, as subidas e descidas da gangorra que a
personagem realiza, facilitando a criação da movimentação no espaço da cena e a
construção de ações físicas, dando-lhes qualidades diferentes de acordo com a
posição que a personagem ocupa naquela determinada cena ou trecho de cena. O
trabalho com o status lhes proporciona consciência da adequação de seu status
pessoal com o status da personagem.
Um ator que costume jogar status alto na vida terá, provavelmente,
dificuldade em fazer um personagem de status baixo, se não se dispuser a
exercitar o lado oposto da gangorra primeiro. Da mesma forma, um jogador de
status baixo poderá se sentir desconfortável em criar personagens de status alto.
As razões pelas quais isso ocorre são, em geral, de natureza psicológica,
mais especificamente relacionadas à afetividade. Jogadores de status alto temem
perder seu poder se se mostrarem fracos, enquanto que jogadores de status baixo
se sentem, em geral, usurpando o lugar de alguém. Quando o assunto é
personagem, há atores que chegam a tecer variadas considerações acerca das
qualidades, virtudes e defeitos das personagens como forma de fundamentarem a
não possibilidade de assumir um determinado papel. Costumam associar também
alto e baixo a determinadas categorias de sentimentos como sendo propriedades
intrínsecas de um ou de outro tipo de status. Tem-se assim, no princípio do
trabalho, a idéia de que uma pessoa de status alto seria alguém necessariamente
72
arrogante, insensível e malcriado, enquanto que uma pessoa de status baixo seria
meiga, delicada e solícita.
Mas, uma vez que se dissociem sentimentos particulares de um e de outro
extremo da gangorra, fazendo os atores experimentarem os dois lados com
diferentes sentimentos, eles ficarão mais abertos para compreender que, embora
os sentimentos possam sim influenciar a subida ou o rebaixamento de status de
alguém, os sentimentos não estão atrelados unicamente a um determinado tipo de
status. Percebem também que, pelo fato de decidirem iniciar uma cena tendo
como único elemento conhecido um status determinado, isso os fará encontrar
rapidamente maneiras de se movimentar no ambiente, criar ações físicas com
tônus, peso e amplitude adequadas, além de nuances de voz, o que de outra
forma levaria um tempo razoável de pesquisa e preparo.
Várias são as formas de se iniciar o trabalho com status. Todas elas
apontam em maior ou menor grau para a observação das relações que
estabelecemos com as pessoas e com as coisas. Status é algo que só acontece
na relação. Sozinho não dá para �brincar� na gangorra. Daí ser fundamental o
contato visual. Sem ele não podemos jogar. É como se não tivéssemos ninguém
sentado no outro extremo da gangorra.
Diante de um cão Rottweil é natural que abaixemos nosso status, mas
perceberemos uma elevação, mesmo que pequena, se o dono nos assegurar que
ele não morde e, principalmente, se ele vier nos agradar.
Só não jogaremos, ou, pelo menos, tentaremos evitar jogar status com
pessoas que consideramos não serem contendores à altura ou capazes de
empreender uma luta. Ao vermos um velhinho andando com dificuldade na rua,
73
procuraremos de saída ceder parte de nosso território porque ele não é uma
ameaça. Mas, se esse mesmo velhinho ultrapassar os limites cedidos e avançar
sobre nós e nos desafiar, é bem provável que tenhamos dificuldade em manter a
decisão inicial.
Um bebê recém-nascido é alguém de status alto porque ainda não conhece
fronteiras. Não distingue o outro como tendo uma existência independente da
dele. Tudo que existe é seu ou um prolongamento dele. Problemas existirão no
futuro se os pais não conseguirem mover a gangorra, estabelecendo os limites
necessários à convivência social.
Quando entramos em um vagão vazio do metrô, podemos escolher onde
nos sentar e, curiosamente, a decisão pode levar algum tempo. Podemos ainda
testar alguns lugares diferentes. Mesmo pessoas com status muito baixo
procederiam dessa forma, porque a amplidão do espaço e a não-presença do
outro contribuem, geralmente, para a elevação do status. Se, numa próxima
estação, uma única pessoa entrar nesse mesmo vagão, é bem provável que
procure sentar-se o mais distante possível de mim, garantindo para ambas um
bom território. À medida que o vagão for se enchendo de gente, vamos cedendo
cada vez mais espaço e permitindo que pessoas estranhas invadam nosso
espaço, porque sabemos ser esta uma condição temporária e porque, de alguma
forma, compreendemos que de fato o vagão não nos pertence e que só alugamos
temporariamente uma vaga nele. E, também, porque existe uma motivação maior,
que é chegar rapidamente a um lugar determinado, talvez nossa casa, nosso
território, em que só entram pessoas e coisas que passarem por nossa aprovação.
Por essas razões, torna-se possível suportar a invasão. Numa situação
74
carcerária, ao contrário, por ser a perda de espaço uma condição de longa
duração, a lotação das celas torna impossível a convivência pacífica e, mais cedo
ou mais tarde, os territórios serão reclamados, fazendo com que lutas ocorram.
Elas não serão mais sutis, como as que travamos em nosso dia-a-dia, mas reais e
violentas, e os primeiros a entrarem em confronto serão os de status mais alto, por
necessitarem e reclamarem para si um território maior.
Todos nós experimentamos os dois extremos da gangorra e os três níveis
intermediários, se somos minimamente saudáveis. Gangorra parada, para Keith
Johnstone, seria um sinal de patologia ou um bom caminho para se chegar nela.
Ele também nos fala das formas através das quais podemos tentar elevar
ou abaixar nosso status. Se eu quero aumentar o meu status, o caminho correto
seria fazer alguma coisa que justificasse a subida, mas, em geral, não nos
esforçamos para subir; tentamos, ao invés disso, rebaixar o status do outro, tendo
por conseqüência a falsa impressão de subida.
Quando se começa a falar em status, em geral, todo mundo quer ter status
alto e muitos ficam frustrados ao se perceberem como jogadores de status baixo.
Mas, quando começam a fazer cenas de status, os atores começam também a
perceber quanto o alto é, na verdade, controlado pelo baixo. Se o alto é quem
manda, quem cumpre é o baixo e, ao cumprir, pode atrapalhar ou literalmente
destruir a vida do alto.
Se alguém vier falar comigo com um status muito alto e eu abaixar muito o
meu, será difícil para a pessoa sustentar o seu, se quiser continuar mantendo
contato comigo, porque os extremos têm dificuldade de se comunicar. A relação
75
só ocorre se os stati estiverem relativamente próximos. Inevitavelmente, a pessoa
abaixará o seu status e automaticamente eu elevarei um pouco o meu.
Assim é que, ao criar os níveis intermediários, Keith Johnstone cria uma
rede de comunicação entre o alto e o baixo.
Observando a escala, alguém que jogue o status número um naturalmente
irá se comunicar com o jogador de status dois. Assim como alguém que jogue o
cinco terá como parceiro direto o jogador de status quatro. Os extremos possuem
apenas uma possibilidade de comunicação direta. Eventualmente saltam um e se
comunicam com o de número três. Mas, ao fazerem isso, procurarão de alguma
forma ajustar os seus stati para cima ou para baixo, conforme for a sua condição
particular, para que a comunicação ocorra sem maiores problemas. Já os níveis
intermediários (dois, três e quatro) possuem diretamente duas possibilidades: ou o
imediatamente superior ou o imediatamente inferior. Isso de saída lhes dá uma
vantagem sobre os extremos. A essa vantagem soma-se o fato de que, não sendo
eles os autores de uma ordem, nem quem irá cumpri-la, cabendo-lhes apenas a
responsabilidade de transmissão da mesma, sentem-se mais livres para articular
ou complicar a tarefa e seu resultado. As teorias da comunicação entram aqui
como importantes coadjuvantes, apontando problemas passíveis de ocorrer como
resultado dos ruídos ocorridos na transmissão ou recepção das informações.
Uma outra questão a ser ressaltada e de importância extrema é que a
dificuldade e também a maior riqueza do trabalho com status reside na
combinação entre o status social e o status pessoal.
76
Um rei ocupa o topo na pirâmide social, mas poderá ter um status baixo e
ser dominado por um serviçal de status alto que não deixará, no entanto, de servi-
lo, pois essa é sua função.
A literatura, o cinema e o teatro estão repletos de exemplos da situação
descrita acima. O filme Rebeca40, por exemplo, tem como personagem de status
mais alto da história (o cinco) a própria Rebeca, que já morreu, mas cuja
lembrança se faz presente através do quadro com seu retrato e, principalmente,
através da figura da governanta (status quatro), que atormenta a vida do dono da
casa (status dois) e de sua jovem esposa (status um). Em nenhum momento a
governanta sai do seu papel de servir os donos da casa, mas ela é quem define o
que ambos podem ou devem fazer. A virada só ocorre quando os segredos de
Rebeca começam a ser revelados. Diversos personagens de status três
concorrem para isso, e note-se que não aparecem ao mesmo tempo na história. A
possibilidade de subida de status do casal só ocorre com a destruição da mansão
de Mandelain, do retrato de Rebeca e da governanta, que morre queimada no
incêndio que ela mesma provocou como tentativa de impedir o rebaixamento
ainda maior do status de Rebeca e, por conseguinte, do seu.
Um bom texto dramatúrgico trabalha com alterações de status das
personagens, o que contribui para a construção ou percepção da curva
dramatúrgica do texto como um todo.
Analisando a peça Édipo Rei, se na cena do encontro entre Édipo e Laios
algum deles tivesse cedido a passagem na estrada, o que equivale a dizer,
40 Rodado em 1940, é o primeiro filme de Alfred Hitchcock feito nos Estados Unidos. Rebecca ou Rebeca, a mulher inesquecível, ganhou o Oscar da Academia para melhor filme.
77
rebaixado o seu status, a peça não seria uma tragédia e talvez tivesse tido até um
final feliz. Mas essa cena propõe nitidamente uma luta por território. Nenhum dos
dois admite a hipótese de temporariamente ser menor do que o outro. A tragédia
grega lida com personagens de status alto. E, neste caso específico, temos uma
duplicidade, porque a tragédia Édipo Rei trata de figuras com elevado status social
e também pessoal.
Hamlet é um exímio jogador de status, abaixando-o ou elevando-o segundo
a necessidade do momento. A loucura, por exemplo, tira-o de uma possível
contenda direta com o tio e abre-lhe espaço para agir. Tanto a tragédia de
Shakespeare quanto a crônica de Saxo Grammaticus tratam a personagem dessa
maneira. Embora os enredos apresentem diferenças importantes e o texto de
Shakespeare refira-se apenas a uma pequena parte da história descrita por Saxo
Grammaticus, os dois textos destacam a habilidade de Hamlet em jogar com as
situações e com as pessoas, movido por um objetivo maior.
Aqui temos o motor do movimento da gangorra: a motivação.
Alguém quer algo e, para conseguir o que quer, precisará avaliar bem a
situação e as pessoas nela envolvidas, para saber que status jogar. Esse algo
poderá ser proteger seu território, realizar um desejo, ou outra coisa qualquer. O
que importa é que há sempre uma razão para jogar. Pode-se não percebê-la, logo
no início do jogo, mas essa será uma tarefa dos atores: descobrir porque se
lançaram na cena.
Há pessoas que querem ganhar sempre e se tornam aborrecidas porque
não conseguem enxergar que isso não é possível sempre. E há aquelas que
parecem fadadas ao fracasso. Por mais que se lhes mostre que estão vencendo,
78
arranjam uma forma de perder, o que as torna igualmente aborrecidas. Há que se
pensar, em um outro caso, na forte influência de componentes psicológicos que
sustentam esses comportamentos e que podem impedir a gangorra de se
movimentar.
Cenas de status são muito interessantes porque revelam manobras, de
uma maneira quase palpável, e nos fazem olhar para nós mesmos e para o nosso
modo habitual de agir; por exemplo:
Um ator entra em cena e diz:
- Bom dia.
O outro responde:
- Quisera eu ter o seu bom humor, para achar que hoje é um bom dia.
Nada aconteceu de fato na cena, mas importantes ofertas sobre as
características das pessoas nela envolvidas e para a sua continuidade já foram
dadas. O �bom dia�, que pode ter sido de início praticamente neutro, ganhou a
qualidade de �bom humor�, elevando automaticamente o status do primeiro ator. O
�quisera� informa a condição de status mais baixo do segundo ator, confirmando
assim o status mais alto do primeiro. E �o dia de hoje� traz o tema a ser
desenvolvido. Os atores têm agora diante de si a possibilidade de seguirem
adiante, tendo como fio condutor apenas a questão do status. Poderão manter o
primeiro ator com um status mais alto do que o segundo, ou se envolverem em
uma luta por status baixo, em que o um apresente razões para abaixar o seu
status e se tornar mais desgraçado do que o dois, ou uma inversão de status,
encontrando no decorrer da cena algum motivo que os faça trocar de lugar. Seja
qual for a opção, estaremos diante de uma cena com atores envolvidos e
79
interessados um no outro. O foco da cena foi deslocado do aspecto verbal, ou
seja, da necessidade de se pensar em como desenvolver o tema, para a escuta
do outro. Torna-se, assim, a construção da cena dependente da relação entre as
personagens, e obviamente da disposição dos atores em construírem e
alimentarem essa relação.
Keith Johnstone diz que Beckett uma vez lhe escreveu e disse que o palco
é o lugar de máxima presença verbal e máxima presença corporal, e que a palavra
corporal o deleitou.
O palco, por definição, é o lugar do drama, ou seja, da ação. É o lugar onde
coisas acontecem. O público não vai ao teatro para ouvir, e sim para ver palavras
transformadas em ação.
80
ESPONTANEIDADE E CRIATIVIDADE
Para Keith Johnstone, atores inspirados não são aqueles que buscam a
melhor idéia, mas sim aqueles que aceitam humildemente as que vêm à mente e
delas tiram proveito.
Dessa forma, poderíamos dizer de maneira grosseira que espontaneidade
seria aceitar a primeira idéia e criatividade a disposição para trabalhar com ela,
atribuindo sentido à sua existência.
Quando Keith Johnstone faz esta proposta, ele acaba por chamar a nossa
atenção para o óbvio, o simples e o banal. Material de trabalho pouco valorizado
e, geralmente, bastante criticado.
Creditar ao óbvio, ao simples e ao banal um caráter de importância para a
improvisação significa fazer com que os atores se envolvam com a cena e não
com o pensamento sobre o que dizer ou fazer. Partir de algo conhecido, algo
sobre o que se tem certo domínio, diminui a possibilidade de resistência ou de
bloqueios às ações e idéias do outro, ou da armadilha de se envolver em uma
disputa de status desnecessária, já que esta não diria respeito à cena, mas sim ao
intelecto dos atores.
Ao contrário do que a princípio se imagina, trabalhar com o óbvio, o simples
e o banal coloca os atores em condição de prestarem maior atenção às
contribuições de seus companheiros de cena, já que não terão a necessidade de
realizar um árduo trabalho mental para dar prosseguimento às idéias, o que
desviaria temporariamente sua atenção do desenvolvimento da cena.
Por exemplo, um ator entra em cena e pergunta:
81
- O que temos para o jantar?
Uma resposta simples, óbvia e banal poderia ser:
- Arroz, feijão e ovo.
Ao dar essa resposta, o ator agrega a ela valiosas informações que
poderão, com facilidade, ser aproveitadas e enriquecidas em favor da cena.
�Arroz, feijão e ovo� localizam esses atores dentro de uma cultura e,
possivelmente, dentro de um estrato social. O ator, ao dar essa resposta, não
pensou em fazer uma cena de caráter sociológico, mas, ao ser óbvio, simples e
banal, abriu espaço para que uma construção dessa natureza pudesse surgir, e
sem esforço mental. A partir daí, os atores sentem-se mais à vontade porque o
aspecto verbal da cena fluirá sem maiores dificuldades e eles usarão o tempo para
desenvolver a ação, mostrar sentimentos, criar e explorar as personagens e a
relação existente entre elas.
O primeiro ator poderia responder:
- Que bom! Minha comida predileta.
Ou
- De novo?
Qualquer uma das alternativas contém informações que dizem respeito à
relação entre as personagens e, mais do que isso, aponta para a continuidade da
cena.
Mas se, ao invés da situação acima, o ator decidisse responder, por
exemplo, �filé venusiano�, ele estaria criando uma dificuldade para o
desenvolvimento da cena, na medida em que sua resposta exigiria um esforço
mental de seu companheiro de cena para tentar decifrar o que seria um filé
82
venusiano, para que só depois pudesse se dedicar à tarefa de responder à
proposta. Isso, em termos de cena, se traduziria em uma interrupção no fluxo das
idéias, mesmo que de fração de segundos. Mas, o mais importante é que essa
proposta acabaria por levar os atores a se envolverem em disputa. Não de
personagens, mas de caráter pessoal. De uma maneira até inconsciente, o filé
venusiano obrigaria o primeiro ator a pensar em uma resposta à altura. Resposta
esta que poderia criar uma grande dificuldade para o autor da idéia do filé e, em
conseqüência, para a continuidade da cena. O prejuízo poderia ser irreparável se
os atores se deixassem enredar na armadilha. Porém, o mais triste é que o público
ficaria excluído da cena. Primeiro, porque ele próprio também estaria envolvido
com a tarefa de traduzir o filé venusiano, e segundo porque, ao invés de uma
cena, assistiria ao confronto de dois atores que reclamam para si superioridade
intelectual.
É preciso treinamento e experiência para saber detectar essas armadilhas,
que são comuns e causam grandes estragos se não forem consertadas a tempo.
As mesmas respostas da situação anterior poderiam ser utilizadas neste
caso, como possibilidades de convidar o autor da proposta a se preocupar mais
com o seu companheiro de cena do que com o caráter inusitado de suas idéias.
Ao responder �Que bom! Minha comida predileta� ou �De novo?�, por
exemplo, o ator estaria aceitando o filé venusiano como uma realidade da cena,
mas, mais do que isso, colocando-o num patamar de algo já bastante conhecido e
retirando da proposta qualquer possibilidade de estranheza ou de possível motivo
para uma disputa de caráter intelectual. Na verdade, é como se ele dissesse:
- É óbvio que eu sei o que é um filé venusiano.
83
Caberia ao autor da idéia do filé aceitar o convite para se envolver e
envolver o parceiro na construção da cena.
Pode ser que jamais alguém saiba o que é um filé venusiano, nem quem o
propôs, mas a cena não seria interrompida e o público respiraria aliviado porque
essa deixaria de ser uma informação fundamental para a continuidade da cena.
A armadilha da criatividade pautada pelo caráter do ineditismo, tomado
como uma forma equivocada de originalidade, atinge não só os atores, mas
também o público, que, ao ser convidado a dar sugestões para as cenas, às vezes
busca formas de colocar os atores em dificuldades. São pessoas na platéia que
agem como se a tarefa fosse testar o conhecimento ou a capacidade do ator de
resolver este ou aquele problema.
Uma vez, em uma apresentação de Teatro-Esporte na Alemanha, foi pedida
a sugestão de um estilo de interpretação para uma determinada cena. Alguém da
platéia gritou: �neoclássico� (neoklassische). Um dos atores do time responsável
pela realização da cena dirigiu-se, então, à platéia e pediu que a pessoa
explicasse o que queria dizer exatamente com uma interpretação �neoclássica�. A
pessoa não sabia. Sua sugestão havia sido uma nítida provocação para deixar os
atores constrangidos, mas tratou de corrigir o pedido imediatamente:
- Não disse neoclássico. Eu disse: néon clássico (Neon klassische).
O que não quer dizer absolutamente nada.
A platéia caiu na gargalhada, menos porque a resposta tenha sido absurda,
mas mais porque ela também foi retirada do mal estar de não ter entendido o que
havia sido proposto.
Situações como essa são bastante comuns.
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O �neoclássico� certamente foi pensado pela pessoa que o sugeriu, mas o
�néon clássico� muito provavelmente não.
Comportamentos e atitudes espontâneas ocorrem em nosso dia-a-dia sem
que notemos, mas basta fixarmos nossa atenção para que percam essa
qualidade. Um bom exemplo disso é o esforço que fazemos diante de um
fotógrafo para parecermos naturais.
O ambiente sócio-cultural desempenha aqui papel de importância capital, à
medida que estabelece padrões de comportamento aceitáveis para os membros
de uma determinada sociedade, entendida aqui tanto do ponto de vista total ou
geográfico quanto dos diferentes grupos sociais que nela possam existir. A
depender da rigidez das regras existentes numa sociedade (ou grupo),
comportamentos ou atitudes espontâneas e criativas receberão melhor ou pior
acolhidas.
Não se espera, por exemplo, que a rainha da Inglaterra se porte de maneira
espontânea. As rígidas regras protocolares impedem manifestações desse tipo.
Mas se ela, em algum momento, infringir a regra, sua atitude, com certeza,
provocará espanto e virará notícia.
Pode-se dizer que uma criança está sendo criativa ao fazer de um sapato
um carro, em suas brincadeiras. A um adulto que faça o mesmo, consideraremos
como mentalmente perturbado, porque sapato é sapato e carro é carro. A salvo
dessa conceituação ficam os artistas. Pelo menos, em princípio. Como o próprio
Keith Johnstone aponta, muitos artistas, ao buscar a aprovação da crítica ou a
venda de suas obras, acabam por destruir exatamente aquilo que os teria feito
serem considerados como artistas.
85
Ser espontâneo, original e criativo não significa fazer qualquer coisa ou
voltar a um momento anterior da vida, reviver um comportamento infantil, mesmo
porque isso seria impossível, mas tentar olhar para as coisas do mundo com olhos
bem abertos, curiosos, como a criança o faz; deixando que as coisas nos
surpreendam com outras possibilidades de ser.
�Se tentarmos esquecer tudo o que ouvimos a respeito de grama verde e céu azul, e olharmos o mundo como se tivéssemos acabado de chegar de outro planeta numa viagem de descoberta, vendo-o pela primeira vez, talvez concluíssemos que as coisas são suscetíveis de apresentar as cores mais surpreendentes.�41
Isso é difícil? Sim e não. Sim, porque do ponto de vista social esperam de
nós o contrário, e o peso dessa expectativa nos faz recuar e bloquear nossos
impulsos e vontades. Da mesma forma, é difícil do ponto de vista pessoal porque
construímos hábitos dos quais temos dificuldade de nos livrar. E não, porque
apesar de todas as exigências, normas e comodismos é da natureza do homem
ser espontâneo, original e criativo.
Freud diz que a criatividade é fruto da agressividade, entendida aqui como
pulsão ou potencial energético que prepara e coloca o organismo em estado de
tensão. Para ele, a criatividade seria inata e faria com que o homem dispusesse
de uma energia dirigida para fora, a fim de poder reagir ao meio ambiente.
Essa energia, quando canalizada através de processos de sublimação
resultaria no potencial criador, enquanto que, se frustrada, seria convertida em
violência e destruição.
41 GOMBRICH, E.H. A História da Arte. Rio de Janeiro: LTC, 1999, 16ª ed., p.29.
86
Para Fayga Ostrower, a natureza criativa do homem se elabora no contexto
cultural, e todo ato criador implica a capacidade de compreender, ordenar,
configurar e significar.
Tanto num caso como no outro, estamos diante de uma situação em que há
um ser humano em relação com o outro ou com o ambiente, e essa relação só é
possível através dos sentidos que nos permitem chegar à percepção ou à tomada
de conhecimento do outro, do mundo, da própria relação e de nós mesmos.
Segundo David Hume, existem dois gêneros de percepções: as impressões
e as idéias. As impressões seriam fruto de fortes percepções e vinculadas de
maneira muito próxima às emoções e paixões, enquanto que as idéias seriam
pálidas imagens dessas impressões (ou reflexos) e se vinculariam ao pensamento
e raciocínio.
Assim, para ele, toda percepção seria dupla, ou seja, ao mesmo tempo
impressão e idéia, e partindo desta afirmação Hume consideraria a possibilidade
de existência de impressões e idéias fortes e fracas, simples e complexas.
Analisando do ponto de vista puramente fisiológico, todas as impressões e
idéias têm sua origem em estímulos que nos chegam através dos receptores, ou
seja, nossos órgãos dos sentidos, e dali são transmitidos até o cérebro através
dos neurônios, numa cadeia sináptica onde serão interpretados e re-transmitidos
em uma nova cadeia sináptica, agora não só para o órgão ou os órgãos
receptores originais, mas para todas as partes do corpo que serão necessárias
para a resposta àquele estímulo. É no final de todo este processo que a
percepção do estímulo original se dá e tomamos consciência dele. Ou seja, só
então formamos uma idéia e uma impressão.
87
A partir deste ponto, reiniciaremos o processo em um novo patamar, no
qual a idéia e a impressão poderão ser trabalhadas por nós em dois níveis:
mnemônico e imaginativo; o primeiro estará relacionado à evocação de
experiências passadas e o segundo à criação de novas idéias e impressões.
Diante de um fragmento de informação, nossos neurônios trabalham no
sentido de estabelecer conexões capazes de classificá-lo de modo a formar um
todo inteligível. As diferentes áreas cerebrais são responsáveis por funções
específicas, de tal forma que um mesmo fragmento pode ser classificado em
múltiplas categorias, todas devidamente organizadas e inteligíveis e, portanto,
válidas. Um caco que meu cérebro reconhece como tal é identificado, por
exemplo, como pertencente a uma xícara, e a xícara poderá ser associada a uma
avó, a momentos felizes da infância, e poderá despertar a vontade de tomar chá,
provocar a lembrança da dor de um dedo cortado ou ainda remeter a questões de
natureza social, cultural, moral e artística. Nenhuma dessas conexões é
intencionalmente pensada, porque é da natureza do cérebro fazer esse trabalho.
Se, em nosso cotidiano, fôssemos pensar em cada mínima ação ou palavra, as
horas do dia talvez não fossem suficientes para executar uma ação completa.
Geralmente, só nos damos conta de que nosso corpo sabe mais do que
nossa consciência pode suportar, em termos de informação, quando em situações
de perigo. Se um carro vier correndo na minha direção e eu só perceber a sua
existência a poucos metros do confronto, por interferência de mecanismos que o
organismo possui e que visam preservar a minha vida, muito provavelmente só
terei consciência do ocorrido depois que já estiver a salvo. Muitas vezes dizemos
que não sabemos como fomos capazes de realizar esta ou aquela ação, ou de
88
dizer isso ou aquilo em uma determinada situação. São milhões de neurônios
trabalhando numa rede ininterrupta de organização e reorganização de
informações que nos chegam através dos sentidos. Para nós, a percepção que
temos é a de que as coisas simplesmente ocorrem, simplesmente estão lá. Eu não
me esforço e elas aparecem. O problema ocorre quando nos recusamos a
considerar as múltiplas possibilidades envolvidas e nos fixamos em alguma das
leituras como sendo um único todo que encerra em si uma única verdade.
Ser espontâneo, original e criativo exige de nós subordinar
temporariamente a racionalidade aos sentidos, permitindo que estes se
expandam, aceitando e aproveitando o que deles surge. Significa deixar que as
coisas se mostrem, sem impor a priori o que achamos que elas deveriam ser.
Significa também aceitar a lógica da cena, ou seja, aquilo que é óbvio para uma
determinada situação.
É bastante comum acontecer o fato de um ator se recusar a colocar uma
idéia em uma cena, mesmo que ela esteja gritando em sua cabeça para sair, e
todos em volta estejam torcendo para que ela apareça, só porque a mesma idéia
surgiu em uma cena imediatamente anterior à sua e ele acredita que se o fizer
será considerado não original, não criativo. Em decorrência, perde a
espontaneidade, fica irritado e frustrado consigo mesmo, por não ter conseguido
contribuir para a construção da cena.
Para treinar respostas não pensadas ou espontâneas, Keith Johnstone faz
uso de alguns jogos que obrigam um ator a ser sempre �escada� para o outro. Ao
fazer isso, ele retira dos atores a possibilidade de se sentirem responsáveis pela
apresentação de grandes idéias, levando-os simplesmente a observar o que está
89
posto na cena e a contribuir com a pequena, necessária e indispensável
informação que estaria faltando naquele momento, para que a cena possa seguir
naturalmente o seu curso.
Um exemplo seria a técnica da história de uma palavra por vez, cujos
objetivos principais são fazer os atores prestarem atenção nos parceiros de cena e
perceberem que esta é resultado de um ato coletivo. Com os atores dispostos em
círculo e a partir de um título, o primeiro ator começa a construção da história com
uma palavra que dê início a uma frase. O ator seguinte coloca a próxima palavra,
e assim por diante. Não se trata de palavras aleatórias, mas de frases construídas
com sujeito, verbo, predicado, artigos, adjetivos, advérbios e tudo mais que a
gramática oferecer e permitir para o caso.
É inevitável que surjam idéias à medida que as frases vão sendo
construídas e que os atores se sintam ansiosos para colocá-las na roda. Mas,
quando chegar a vez de cada um dos jogadores, talvez aquela idéia maravilhosa
não se encaixe, e a lógica da frase e da história serão quebradas se eles tentarem
persistir. Talvez lhes caiba apenas um simples, óbvio e banal artigo, mas sem ele
a frase perderia sua coerência. Acrescentar o artigo não exigiu do ator qualquer
esforço mental. Cabia a ele simplesmente ouvir. Um ouvido atento sabe como dar
continuidade a uma história.
Para os iniciantes, esse é um exercício que causa muita frustração porque
percebem que estão impedidos, pelas regras do jogo, de demonstrar suas
qualidades individuais. Só muito mais tarde perceberão que original e criativo será
o resultado do trabalho coletivo, ou seja, a história que construíram.
90
Keith Johnstone nos convida a participar da difícil tarefa de re-aprender a
valorizar as pequenas coisas do dia-a-dia, de aceitar as ofertas que nos são feitas,
de partirmos daquilo que está à mão, ao invés de perseguirmos o inusitado, no
processo de criação e na vida.
91
FAST FOOD STANISLAVSKI
Sentimentos atuam como cores, colorindo as falas e os gestos. Eles nos
levam a realizar algo de uma maneira específica. Eles nos indicam como dizer ou
fazer algo. Uma mesma fala dita com diferentes sentimentos poderá ter seu
sentido alterado. Um eu te amo dito com ódio, indiferença, alegria ou paixão, terá
significados diversos e provocará reações igualmente diversas.
O termo fast-food Stanislavski foi criado por Keith Johnstone, quando ele
dirigia um espetáculo, em Copenhaguem, na Dinamarca, na Danish State Theatre
School42, nos anos 70, e constatou que os alunos pouco conheciam e menos
ainda dominavam as idéias de Stanislavski, embora acreditassem o contrário.
O fast-food foi uma maneira que encontrou de fazer os alunos
experimentarem de uma maneira rápida as idéias do teatrólogo russo. O termo,
porém, acabou incorporando-se ao vocabulário do Teatro-Esporte para designar
jogos que tratam diretamente de conceitos de Stanislavski e, mais precisamente,
aqueles que tratam de emoções e sentimentos.
Quando falamos deste método de improvisação, a primeira coisa que há de
faltar é tempo para pensar. Se não há tempo para pensar, menos ainda haverá
para uma profunda pesquisa de personagem. Estamos no âmbito da improvisação
e falar em personagem seria mais pertinente à interpretação. Aliás, o uso desta
palavra no improviso é exagerado, e talvez fosse mais adequado nomeá-la como
figura ou esboço. Seja como for, há que se reconhecer a importância da existência
de certas especificidades na construção de uma cena. Uma delas seria a 42 Statens Teater Skole Københvan.
92
descoberta e a exploração de características das pessoas, objetos, animais,
presentes numa cena, a que damos o nome de personagem. Não se trata de algo
pensado ou decidido a priori, mas de um construir à medida que a cena vai
tomando forma. Aliás, como tudo neste método de improvisação.
Esta construção feita diante dos olhos do público é admirável porque
implica despojamento do ator, em deixar-se estar �vazio� para, num curto espaço
de tempo, transformar-se em algo ou alguém, com características tais e tais,
necessárias e a serviço da cena.
Para o ator, mais importante do que descobrir quem é aquela pessoa da
cena será descobrir (construir) que tipo específico de pessoa ela é. Que
qualidades físicas e emocionais a tornarão única, ou seja, diferente de tantas
outras da mesma categoria e, ao mesmo tempo, quais qualidades farão com que
ela seja considerada como pertencente àquela categoria específica. Se um ator
entrar em cena e descobrir que o melhor para a cena será ele assumir o papel de
pai, ou, ao contrário, se alguém entrar em cena e lhe atribuir esse papel, sua
tarefa será construir a um só tempo o pai específico daquela cena e os
comportamentos verbais e gestuais que permitam que todos nós o encaixemos
dentro da categoria �pai�. Ou seja, o que quer que o ator faça em cena terá de
conter elementos críveis para seus companheiros de cena, para a realidade da
cena e para nós espectadores.
Essa é uma operação dificílima a princípio.
As idéias de Stanislavski aparecem então como indicadores de aspectos
relevantes e que precisam ser levados em consideração no trabalho do ator:
93
�O que quer que aconteça no palco, deve ser com um propósito determinado. Mesmo ficar sentado deve ter um propósito, um propósito especificado e não apenas o propósito geral de ficar visível para o público. Temos de ganhar o nosso direito de estar ali sentados.�43
Haverá sempre um motivo, uma razão para a personagem ter feito ou dito
algo em cena. Esse foi o ponto de partida do método de improvisação de Keith
Johnstone. E esse é o desafio que o ator terá de enfrentar: descobrir a motivação.
Keith Johnstone, porém, chama a atenção para o fato de que saber qual é a
motivação não é suficiente para que a cena aconteça. É necessário que o ator dê
a conhecer e trabalhe objetivamente na concretização de seu objetivo. Não há
necessidade de saber de antemão qual será a motivação, mas, ao entrar em cena,
deve o ator ter consciência de que terá de descobrir porque está em cena, porque
entra ou sai e o que quer na cena. Há um jogo do Teatro-Esporte que explora
clara e objetivamente este aspecto, apontado por Stanislavski, e que é chamado
Entra e sai.
Há um outro, chamado O banco, que envolve todos os integrantes de um
time e cujo objetivo é abandonar o banco, todos ao mesmo tempo e pelo mesmo
motivo. Trata-se de um jogo não-verbal, em que nenhuma forma de comunicação
entre os participantes é permitida. A única informação dada aos atores (no
espetáculo, sugerida pelo público) é o local onde esse banco está. O jogo pode
ser bem demorado, mas é extremamente prazeroso de ser assistido. Cada um dos
atores terá por tarefa desenvolver uma pequena ação física, coerente com aquele
espaço onde o banco está e simplesmente observar o que seus companheiros de
43 STANISLAVSKI, Constantin. A preparação do ator. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 182, 5ª ed., p. 63.
94
cena estão criando. Com o tempo, alguma das ações propostas será aceita pelo
conjunto de atores. Essa será a razão coletiva que levará o time a abandonar o
banco. A partir daí, a tarefa do grupo será explorar essa idéia num crescente
envolvimento com ela, de tal forma que o clímax o expulse naturalmente do banco.
O jogo reúne todos os fundamentos do método de Keith Johnstone e responde
muito bem às idéias de Stanislavski.
Como é possível observar a maneira como os atores criam e as manobras
que executam aceitando ou bloqueando idéias, é freqüente, em apresentações,
ouvirmos um �ah� em uníssono da platéia, indicando desapontamento, quando a
cena está se encaminhando para o desfecho e algum dos atores retarda a
conclusão, seja pelo acréscimo de alguma nova idéia, seja pelo mero abandono
daquela que ali está posta.
�Os atores, como os viajantes, acham muitos meios diversos para chegarem ao seu destino: há os que experimentam realmente, fisicamente, os seus papéis, os que lhes reproduzem de forma exterior, os que se adornam com os truques do ofício e atuam como se atuar fosse uma profissão qualquer. Outros transformam o papel numa conferência seca e literária e há os que se servem dele para se exibirem vantajosamente aos seus admiradores.
Que pode o ator fazer para impedir-se de tomar a direção errada? Em cada entrocamento da estrada, deve contar com um sinaleiro bem treinado, atento, disciplinado. Esse sinaleiro é o seu senso da verdade, que colabora com o seu senso-de-fé-no-que-está-fazendo, para mantê-lo na trilha certa. Que material usamos para construir nossa trilha? A princípio poderia parecer impossível usar material melhor do que as emoções reais. Mas as coisas do espírito não são suficientemente substanciais. É por isso que recorremos à ação física.
No entanto, mais importante do que as ações, propriamente ditas, é a sua veracidade e a nossa crença nelas. Eis o motivo: sempre que se tem verdade e fé, tem-se sentimento e experiência. Pode-se pô-los à prova, executando até mesmo o ato mais ínfimo
95
em que deveras acreditem. Verão que, instantaneamente, intuitivamente e naturalmente, despertar-se-á uma emoção.�44
Alguns atores encontram, porém, muita dificuldade em desenvolver as
ações e, por conseguinte, em expressar emoções e sentimentos. Suas ações são
pautadas por uma falta de vitalidade tal que nos dá a sensação de estarmos
diante de alguém aprisionado dentro de um corpo que não lhe permite se
manifestar verdadeiramente.
Para tentar ajudar esses atores a saírem desse estado de torpor ou de uma
rigidez extrema, Keith Johnstone criou o artifício de se deslocar os sentimentos e
as emoções para o ambiente, para os objetos ou para determinadas partes do
corpo, eximindo assim o ator de qualquer responsabilidade pelo que venha a
mostrar.
Voltamos assim às idéias de Wolpe no que se refere à aproximação gradual
e paulatina de situações que possam causar ansiedade e/ou constrangimento. E,
também, às de Stirling, ao promover situações que levem ao sucesso das ações.
É sabido que, ao entrar em cena, a única coisa de que o ator precisa é
aceitar a sua primeira idéia. Mas, digamos, porém, que aconteça (por um lapso ou
desvio qualquer da atenção) que uma idéia escape e o ator, ao se ver no palco,
não tenha nenhuma idéia. Um ator treinado transformaria imediatamente esse fato
no tema da cena ou numa característica da personagem. Um ator inexperiente
ficaria paralisado. De qualquer forma, algo terá de acontecer. Não é possível que
ele lá permaneça sem fazer nada. Para Keith Johnstone, qualquer ação, por
mínima que seja, já será o suficiente para que a cena se inicie. Assobiar, 44 Idem, p. 169.
96
cantarolar, olhar o próprio corpo, olhar alguém da platéia, se coçar, etc. Qualquer
coisa serve. Pouco importa o que o ator faz, mas sim, como ele aproveita o que
faz. Quando o ator se envolve, de fato, com a ação, quando ele acredita na
realidade daquela ação, naturalmente surgem qualidades para esse fazer e, com
elas, sentimentos, emoções ou estados de espírito são expressos.
Mas, se o ator tem dificuldade em desenvolver uma ação, o que poderá
tornar sua atuação débil e a cena pobre, o artifício de dotar o ambiente, objetos ou
apenas uma parte do seu corpo, com um sentimento específico obriga o ator a
deixar que a ação seja contaminada por esse sentimento, o que o conduzirá de
uma maneira sutil a um envolvimento com essa ação. É curioso, mas pessoas
muito bloqueadas são capazes de demonstrações afetivas poderosas e
verdadeiras quando acreditam estarem simplesmente cumprindo a regra do jogo.
Suas ações se enriquecem, tornam-se críveis e a cena ganha como um todo.
Observa-se nitidamente, no trabalho de Keith Johnstone, a criação de
estratégias que facilitam o trabalho do ator, ou chamam a sua atenção para
aspectos relevantes dessa profissão, baseados em conceitos de Stanislavski,
embora, no princípio de seu trabalho, ele acreditasse estar reagindo contra as
idéias do mestre russo, muitas delas já citadas ao longo desta dissertação. Há,
porém, discordâncias.
Keith Johnstone não pretende tornar real a ilusão do teatro. Ao contrário, o
que pretende é ativar a espontaneidade e a criatividade do público e do ator em
um tipo de teatro em que não há qualquer suporte material para este último. Tudo
o que vier a acontecer em cena será pautado unicamente no seu trabalho. O palco
é despojado, não existem figurinos nem adereços. Algumas poucas companhias
97
de Teatro-Esporte mantêm, muito mais por mero costume, uma arara com
algumas poucas peças de roupas e alguns adereços, mas isso é totalmente
dispensável e, no espetáculo, concorre para a perda de tempo e para a fixação do
ator em alguma peça de roupa em especial, que acaba atuando como muleta para
seu trabalho.
Não é objetivo do trabalho buscar uma verdade interior. A verdade é a da
cena, construída no tempo presente. O resultado do trabalho de um ator será
verdadeiro se ele aceitar idéias, se ele se deixar envolver por elas e se ele
envolver o seu companheiro de cena no seu desenvolvimento.
Ao invés de lançar mão da memória emotiva para provocar a emoção
necessária à realização de uma cena, Keith Johnstone preferirá o trabalho com as
ações físicas, de Stanislavski.
Para ambos, é importante que os atores tenham consciência de que na
atuação todos fazem parte de algo maior, seja esse algo o espetáculo ou a cena,
e cada atuação, por mínima que seja, será fundamental para que o todo funcione.
98
AS INFLUÊNCIAS DE BRECHT Brecht queria tirar o público da condição de mero espectador,
identificado e mergulhado na ilusão do teatro. Todo o seu trabalho foi dedicado a
criar um teatro não alienante, que despertasse a consciência (crítica e política) da
platéia e a fizesse tomar partido. Não que com isso o espetáculo fosse se
transformar em simples tribuna para o debate de idéias e, em decorrência, viesse
a ser menos interessante. Ao contrário, Brecht acreditava que o público merecia
ter prazer e o espetáculo deveria lhe proporcionar a mesma alegria encontrada em
um divertimento lúdico. Apaixonado pelo boxe, queria que o espetáculo se
parecesse com uma luta.
�No palácio dos esportes, no momento em que as pessoas compram os ingressos, sabem exatamente o que vai ocorrer: homens treinados exibem seus dotes específicos dando a impressão de agir por prazer. (...) Não sei por que o teatro não teria também seu bom esporte (...).� 45
A referência de Brecht a um teatro que deveria voltar os olhos para o
público do esporte não está na simples transposição do espetáculo teatral para os
estádios, mas na forma do espetáculo que, assemelhada ao esporte, fosse capaz
de mobilizar o público de teatro tal qual ocorre no evento esportivo.
A própria estrutura do espetáculo Teatro-Esporte parece responder de
forma clara aos intentos de Brecht, embora não haja aqui nenhuma afirmação de
que Keith Johnstone tenha concebido essa estrutura de espetáculo como uma
45 BRECHT, Bertold. Apud FREITAS, Eduardo Luiz Viveiros de. Dossiê Brecht � Teatro, estética e política. Revista cultura crítica (01), São Paulo, Apropuc, 2005.
99
concretização de objetivos ou interesses do teatrólogo alemão. Há, ao que me
parece, uma grande coincidência de objetivos, embora os pontos de partida
tenham sido diferentes.
�Nossa esperança está no público do esporte.�46
Esta fala de Brecht poderia bem ser de autoria de Keith Johnstone. Brecht
queria acordar a platéia. Keith Johnstone queria que as pessoas que se
interessam por outras atividades, em especial o esporte, também se
interessassem por teatro.
Curiosamente, a luta os une na realização de seus projetos de trabalho, que
têm a vida como a maior fonte de pesquisa para o ator.
Como forma de quebrar a ilusão do Teatro, Brecht irá utilizar-se de
estratégias, muitas das quais se encontram no Teatro-Esporte, seja como parte
constituinte do próprio espetáculo, seja através de sua tradução em jogos.
Brecht não queria um ator envolvido emocionalmente com a personagem,
nem que o público se identificasse por esse viés com ela. A interrupção da ação
através de versos, canções e comentários resultaria num conjunto maior de
artifícios criados por ele com o objetivo de gerar distanciamento e assim evitar a
identificação. Esses artifícios também podem ser encontrados em jogos
específicos do Teatro-Esporte.
Por exemplo, Brecht dava títulos para as cenas. No Teatro-Esporte, uma
das formas possíveis, aliás, a principal, para se iniciar uma cena, é a partir de um 46 BRECHT, Bertold. Apud BORHEIN, Gerd. Brecht � A estética do teatro. São Paulo: Graal, 1992, p. 71.
100
título. As cenas não irão se constituir em episódios de algo maior, o texto, como
em Brecht, porque no Teatro-Esporte não há uma história única a ser contada.
Porém, se olharmos mais detidamente o conjunto de cenas de um espetáculo de
Teatro-Esporte, veremos que elas, apesar de suas especificidades e de nenhuma
ligação aparente, ajudam a compor o todo maior que é o próprio Teatro.
O que o público assiste, em um espetáculo de Teatro-Esporte, poderia bem
ser nomeado de aula pública de teatro, ou uma experiência teatral total. Durante o
tempo da apresentação, o público terá a chance de ver diferentes facetas do fazer
teatral, além de visitar os mais variados estilos (não só teatrais) e épocas. Terá
também a oportunidade de discutir temas de seu interesse e de vislumbrar, pela
criação dos atores, possibilidades de resolução de problemas ou vieses de
interpretação diferentes das que possui. Fazer o público pensar se divertindo é um
aspecto inerente ao próprio espetáculo e talvez seja por isso que muitos
estudiosos e críticos considerem o Teatro-Esporte como uma realização do sonho
de Brecht.
Uma das formas do ator construir sua personagem, para Brecht, era fazê-lo
referir-se a ela em terceira pessoa, citando-a e acrescentando após cada uma de
suas frases: ele disse, ela disse. O uso dessa técnica tinha por objetivo impedir
que o ator revivesse emoções e sentimentos. Keith Johnstone cria um jogo
chamado Ela disse, ele disse, que, embora não seja exatamente igual à proposta
de Brecht, tem o distanciamento como elemento-chave a ser explorado,
separando palavra e gesto. Imaginemos dois atores. Os dois podem falar, mas a
ação é dada pelo companheiro, numa seqüência lógica e com um detalhe por vez.
Por exemplo:
101
A � Bom dia.
B � Ele/ela disse e estendeu a mão. (O ator A estende a mão) Bom dia.
A � Ele/ela disse e segurou a mão. (O ator B segura a mão de A) Nossa,
sua mão está quente.
B � Ele/ela disse e sorriu maliciosamente. (O ator A sorri com malícia) É
que está fazendo calor.
A - Ele/ela disse e soltou a mão. (O ator B solta a mão de A) É tão bom
segurar uma mão quentinha.
B � Ele/ela disse e pegou novamente a mão (O ator A pega a mão de B) É,
meu/minha marido/mulher também gosta.
A � Ele/ela disse e soltou a mão. (O ator B solta a mão de A) Ele/ela sabe o
que é bom.
B � Ele/ela disse e agarrou a mão com força. (O ator A agarra a mão de B
com força) Por favor, as pessoas estão olhando.
A � Ele/ela disse e tentou soltar a mão. (O ator B tenta soltar a mão) Deixe
que olhem. Aqui está alguém que só precisa de um pouco de calor.
E assim por diante. O jogo irá obrigar os atores a manterem a atenção em
dois focos: a fala e o gesto. O envolvimento de ambos será enorme, mas não será
de caráter emocional e sim racional.
Brecht queria um ator consciente e um público curioso, que aprenda com o
Teatro a transpor as barreiras presentes em sua própria vida. Esse pode nem ter
sido, no início, um objetivo para Keith Johnstone, mas apareceu como
conseqüência do seu trabalho, tanto com o método como com o espetáculo.
102
A CENA
�Keith Jonhstone é conhecido por iniciar seus workshops com uma simulação de cabo-de-guerra. Nenhuma corda, apenas dois times e alguma mímica. Inevitavelmente os grupos lutam ferozmente, puxando e se esforçando, nenhum lado querendo ceder um milímetro. Então, ele interrompe e pergunta aos participantes o que estão fazendo. �Tentando vencer�, eles geralmente dizem. �Mas não há nenhuma corda. Como vocês poderão vencer?� Este é um artifício para realçar a diferença entre conflito cênico e real. Certamente os jogadores de cabo-de-guerra estão em conflito, mas por que os atores deveriam estar? Por que não pode um time estar preparado para perder? Se nenhum grupo de atores estiver preparado para perder, talvez tenham entendido mal a natureza do conflito ficcional.�47
Para Keith Johnstone, a cena só acontecerá de fato se os atores
compreenderem que não estão lutando uns contra os outros, mas que os dois
lados fazem parte de um único time que tem por tarefa realizar o jogo cabo-de-
guerra. Para isso, o foco da atenção deverá ser mantido no companheiro de cena
que segura a outra extremidade da corda. É junto com o outro que, por exemplo,
será possível estabelecer a grossura, o peso e o comprimento da corda
imaginária. Ao manter a atenção no outro, os atores estarão em estado de
prontidão para responderem imediatamente às pequenas nuances de
movimentos, gestos e tensões musculares, que lhes darão claras indicações de
qual deles terá mais condições de vencer ou perder, já que esse é o objetivo final
do jogo real, que está representado neste jogo teatral. A tarefa de ambos é a
cena, portanto, estarão trabalhando juntos para torná-la crível, o que implica
47 JOHNSTON, Chris. House of Games : Making Theatre from Everyday Life. Londres: Nick Hern Books limited, 1998, p. 132.
103
valorizar os detalhes que contribuem para a construção da vitória de um e da
derrota do outro.
Para Keith Johnstone, a cena é sempre uma construção feita a várias
mãos. Mesmo uma cena que seja realizada por apenas um ator, terá partido de
uma sugestão do público, ou do outro time ou de um juiz convidado, para ter
início. Portanto, ela já nasce, de certa forma, compartilhada.
Quando um grupo de atores começa a trabalhar com este método de
improvisação, nota-se uma tendência a desconsiderar a cena como sendo o
objetivo final do trabalho. Em geral, os atores querem construir uma peça inteira.
Desconfiam da importância da cena e acreditam necessitarem de tempo para
mostrar o que têm em mente.
Se um assunto específico for solicitado não há porque os atores darem
voltas, criando histórias ou ações paralelas, até chegarem aonde precisam. Eles
só perderão tempo e correrão o risco de se desviar tanto daquilo que lhes foi
pedido, que, talvez, nem consigam realizá-lo; o que poderá fazer a cena
naufragar. Se, por exemplo, o título de uma cena for Bolinhas amarelas, em
princípio, de pouco interesse serão as bolinhas azuis, as verdes, etc., assim como
de pouca serventia serão, também, as bolas e os balões. O que todos querem ver
é o que o ator faz com este título. O que causará admiração de quem assiste é ver
o ator correndo o risco de criar a cena das bolinhas amarelas e de permanecer
nessa sugestão explorando as diferentes facetas que ela possa conter.
Uma cena nada mais é do que um instante com começo, meio e fim.
Quanto mais rapidamente o ator entrar no assunto da cena, mais tempo ele terá
para o seu desenvolvimento.
104
Se, por exemplo, uma ação começar na cozinha, lá deverá permanecer, e
se a ação for lavar pratos, essa será a ação física da cena. Observa-se assim que
a construção das cenas, neste método de improvisação, leva em consideração as
unidades (propostas inicialmente e parcialmente por Aristóteles) de ação, lugar e
tempo. Esta última unidade só será quebrada nos chamados jogos temporais.
Ao permanecer num mesmo espaço, realizando uma única ação, o ator se
verá obrigado a explorar as possibilidades dessa condição. Analisando o exemplo
acima, uma conseqüência inevitável será a repetição da ação de lavar pratos, já
que esta é a ação proposta na cena. Quando se faz algo repetidas vezes, cria-se
uma rotina.
Se o estabelecimento da rotina libera o ator de pensar no que fazer, ela
também é um convite para que o ator dê vida e crie nuances para este fazer. Isso
exige dele uma observação fina de sua ação, pois é aí que ele encontrará as
respostas de que precisa para enriquecer e concluir a cena. Todavia, se o ator
permanecer na mera repetição da ação, sem lhe acrescentar nenhum elemento, a
cena se tornará monótona. Lavar pratos sempre do mesmo jeito e no mesmo ritmo
é chato de se ver, assim como é chato de se fazer. Keith Johnstone chama a
atenção para a necessidade de se quebrar a rotina sem, no entanto, fugir do
assunto. Um prato, por exemplo, poderá ser lavado rapidamente, enquanto outro
mais cuidadosamente. Um resto de comida grudado e difícil de sair poderá ser
encontrado em algum dos pratos ou um outro poderá escorregar da mão, e assim
por diante.
A quebra de rotina traz qualidade à cena e quanto mais detalhes o ator
puder trabalhar em cada uma das quebras, mais rica a cena se tornará.
105
Quebrar a rotina torna-se tão importante para a criação de cenas a ponto de
Keith Johnstone ser conhecido como o diretor que insiste, em seus workshops
com seus alunos, para criarem improvisações chatas. Obviamente, não é seu
objetivo criar um teatro chato de ser visto ou feito, mas essa é uma forma de
chamar a atenção para a importância do assunto.
Quando realizamos uma ação mecanicamente e não prestamos atenção ao
que estamos fazendo, e não corremos o risco de experimentar diferentes formas
de realizá-la porque achamos que ela é simples demais ou insuficiente para se
constituir em uma cena inteira, e nos prendemos à tarefa de torná-la inteligente e
interessante pelo acréscimo de novas idéias, acabamos por nos desviar do tema
da cena e, como ele mesmo diz, chegamos às velhas e aborrecidas respostas de
sempre.
Ao pedir para exagerarem na chatice, se necessário, Keith Johnstone faz
com que os atores olhem exatamente para aquilo que consideram chato - a ação -
e ao fazerem isso acabam por torná-la interessante, meramente porque
descobrem detalhes e nuances que enriquecem o fazer. É curioso, mas é
verdade, basta pedir para um ator apresentar uma cena chata, para ela se tornar
interessante.
Rotina causa monotonia e essa é uma das características, se não a
principal, de uma situação chata. E, por acreditarem ser uma única ação algo
chato de ser feito, muitos atores não imaginam, a princípio, que o que torna uma
cena interessante é justamente a permanência na ação proposta e as descobertas
que poderão fazer por terem tomado essa decisão. Cena chata acabou virando
um dos jogos de Teatro-Esporte, e dos mais difíceis de serem executados.
106
Uma boa cena de Teatro-Esporte prima pela simplicidade, o que para
Brâncusi48 seria a complexidade resolvida.
Charles Chaplin era um mestre em estabelecer e quebrar rotinas. Inúmeros
são os exemplos que poderiam ser dados. A cena em que come o sapato, em A
corrida do ouro, é um deles. No documentário Unkown Chaplin49, há uma parte
sobre cenas raras que ele não aproveitou em seus filmes. Uma delas é uma cena
magnífica, uma verdadeira aula de rotina e quebra de rotina, de sete minutos de
duração, chamada por ele de invenção contínua, cujo objetivo era chamar a
atenção para a simplicidade dos objetos, e que ele pretendia usar na abertura do
filme Luzes da Cidade.
O Vagabundo, seu personagem mais famoso, caminha distraidamente por
uma calçada movimentada, no centro da cidade. De repente, vê uma pequena ripa
de madeira presa na grade de ventilação de uma loja de roupas femininas, na
calçada. Observa, curioso, e decide fazer a ripa passar pela grade. Empreende
várias tentativas de empurrar a ripa com sua bengala, mas a única coisa que
consegue é fazer com que um extremo ou outro da ripa fique em posição vertical.
Chaplin estabelece uma rotina para essa ação. Pára, disfarça e recomeça. Depois
quebra a rotina do uso da bengala, alternando essa ação com pisadas fortes sobre
a ripa, o que lhe rende uma nova rotina, a de se desequilibrar. Pessoas se
aglomeram para observar. Ele percebe, pára e disfarça. As pessoas se vão. Ele
recomeça a ação. Surge um mensageiro, com cara de abobalhado, comendo uma
fruta. O mensageiro cospe as sementes da fruta no respiradouro. Respingos das
48 Artista plástico romeno de grande influência para a escultura moderna do século XX, tinha a simplicidade como traço fundamental de sua obra. 49 Produzido pela Thames Televison, em 1983.
107
cuspidas caem na roupa do Vagabundo, que decide ir embora. O mensageiro
interessa-se pela ripa, que está em posição vertical, e o Vagabundo volta e o
expulsa. Quando ele se prepara para dar continuidade à ação, duas senhoras se
aproximam da vitrine e uma delas, ao parar, fica com a ripa entre seus pés. O
Vagabundo se aflige com a iminente possibilidade de a senhora tropeçar e decide
evitar que um acidente ocorra. Coloca seu pé entre as pernas da senhora e abaixa
a ponta que estava levantada. As mulheres, que não sabem da existência da ripa,
ficam indignadas com a atitude dele e se vão. O Vagabundo prossegue em sua
empreitada. Um funcionário da loja aparece para mudar o preço dos vestidos
expostos e observa o Vagabundo. Percebe que ele está usando um método
errado. Bate no vidro para chamar a sua atenção e lhe diz o que deve fazer. O
Vagabundo não consegue ouvir. O homem grita as instruções. Dois outros
funcionários aparecem e repreendem o primeiro. O Vagabundo bate na vitrine e
pede para que ele repita o que disse, mas este não quer mais lhe dar atenção. O
Vagabundo volta a tentar fazer a ripa passar pela grade. O funcionário pega um
alfinete e prepara-se para prender o preço em um vestido, mas se irrita ao ver o
Vagabundo agindo do modo errado e bate na vitrine. O Vagabundo se vira e o
funcionário se põe a falar sem parar. Pessoas vão se aglomerando para assistir ao
insólito diálogo. O funcionário pega uma régua e demonstra que se ele continuar
insistindo em bater com a bengala nas extremidades da ripa, ela apenas se
moverá como uma gangorra. Para livrar-se da ripa, o Vagabundo deverá bater no
meio. Demonstra e a régua cai. Neste instante, uma funcionária da loja move de
lugar o manequim com o vestido de que o funcionário ia trocar o preço, ficando ela
própria de costas em seu lugar. O funcionário, terminada a demonstração, vira-se
108
sem perceber a mulher e espeta o alfinete em seu traseiro. Ela grita com ele e se
vai. Ele vai atrás. O público ri e mais pessoas correm para ver o que está
acontecendo. O Vagabundo até então não havia percebido a aglomeração.
Constrange-se. Fixa o olhar nelas, mas, disfarçadamente, procura com a bengala
continuar a ação. Um policial aparece, pedindo explicações pelo tumulto. O
Vagabundo aponta a ripa e sem querer bate no lugar certo e ela finalmente passa
pela grade, desaparecendo. Percebe e abandona elegantemente o local, como se
nada tivesse acontecido. O guarda dispersa as pessoas e a cena termina.
O primor da cena reside naquilo que Keith Johnstone chama de correr o
risco de ver aonde uma idéia pode nos levar. As personagens que surgiram na
cena e suas pequenas ações serviram a um só tempo para quebrar a rotina da
ação principal e para enriquecê-la. Note-se que nada nem ninguém desviou a
atenção daquilo que movia a cena: a simples e banal ripa. As mínimas
interrupções (se é que posso assim denominá-las) serviram apenas para melhor
compor essas personagens e dar sentido às suas motivações particulares.
Um detalhe que poderia passar desapercebido é a maneira como Chaplin
finaliza a cena. Logo no início, ele propõe uma aglomeração de pessoas, mas
abandona a idéia, quando as dispersa. A re-incorporação dos curiosos, no final, é
um arremate precioso porque não só traz de volta essa idéia, mas é através dela
que somos reconduzidos ao cenário maior da cena, que é a rua, lugar onde
pessoas transitam.
�Um improvisador é alguém tal qual um homem que anda de costas. Ele vê onde esteve, mas ele não presta atenção ao futuro. Sua história pode levá-lo a qualquer lugar, mas ele deve
109
ainda assim balanceá-la, e dar-lhe forma, rememorando incidentes que ficaram para trás e re-incorporando-os. Muito freqüentemente o público aplaudirá quando um material que apareceu no início é trazido de volta à história. Eles poderiam não saber porque aplaudiram, mas a re-incorporação causa-lhes prazer. Algumas vezes eles até gritam �Bravo!� Eles admiram a força do improvisador, uma vez que ele não só gera novo material, mas rememora e faz uso dos acontecimentos anteriores que o público mesmo pode ter temporariamente esquecido.�50
Uma boa cena de improviso, neste método de improvisação, é aquela em
que o ator aceita a primeira idéia, corre o risco de explorá-la, desenvolve uma
ação, envolve seu companheiro de cena na realização desta ação, estabelece
com ele uma relação, joga status, quebra rotinas estabelecidas, mostra
sentimentos e cria uma narrativa com começo, meio e fim, aproveitando todos os
elementos e informações que nela surgirem.
50 JOHNSTONE, Keith. Impro, Op. cit., p. 116.
110
O TEATRO E O ESPORTE
Muito mais do que a princípio se imagina, o teatro e o esporte estiveram
desde o seu nascimento bastante ligados.
Se voltarmos novamente os olhos para os primórdios da Humanidade,
veremos o homem primitivo adquirindo conhecimentos através do teste de
habilidades e da observação. Enfim, acumulando experiências para sua
sobrevivência. Ou, em outros termos, como dizemos ainda hoje, lutando para
(sobre) viver.
A luta pela sobrevivência, comportamento fundamental, está presente em
todos os animais, mas no homem ganha o diferencial da consciência, levando-o,
entre outras habilidades dela decorrentes, a criar diferentes funções para um
mesmo ato. Assim é que da mimese da captura de um animal ou do combate com
um grupo rival, o homem primitivo prepara o terreno para o nascimento do Teatro
e do Esporte. O primeiro, envolvendo componentes mágicos, fossem eles para dar
coragem ao caçador ou ao guerreiro, fossem para dominar o alvo, retirando-lhe as
forças antes do enfrentamento. No segundo caso, para treinar o corpo, dando-lhe
a força necessária ou permitindo-lhe a criação de estratégias para vencer.
Não há uma data certa para a criação da luta enquanto esporte. Mas há
documentos que indicam terem sido os egípcios os seus criadores, em 5000 a.C..
A luta teria sido introduzida na Grécia pela influência egípcia e de outros
povos da Ásia. Quando fizeram parte dos primeiros Jogos Olímpicos, em 776 a.C.
(considerado como o ano zero das Olimpíadas), as lutas já eram disputadas em
competições há pelo menos 2.000 anos.
111
Assim como aconteceu com o Teatro, o esporte também ocupou lugar de
suma importância na civilização grega e também teve, em sua origem, caráter
religioso. Se para o Teatro havia as Grandes Dionisíacas, em honra a Dioniso,
para o Esporte havia as Olimpíadas, em honra a Zeus.
Se a importância das Grandes Dionisíacas era tal a ponto de os prisioneiros
serem libertados para assisti-las, conta a tradição grega que a realização dos
jogos olímpicos era marcada pela passagem de um emissário, portando um
grande bastão, que percorria as regiões e anunciava nas cidades a trégua,
marcada pelo aperto de mãos (ekcheiria), momento sagrado em que todos os
gregos deveriam cessar qualquer contenda ou guerra para irem competir
pacificamente nos combates esportivos. Acreditava-se que o mensageiro era um
porta-voz de Zeus, que, por seu intermédio, pedia a paz.
Gregos vindos de todas as regiões apresentavam-se na pequena vila de
Olímpia, na Élida, para o grande ágon51 , na esperança de poder subir no pódio
como vencedor, diante de um público estimado em quarenta mil pessoas, e
receber dos juízes a coroa de ramos de oliveira, ao final de cada prova realizada.
Lendas cercam o nascimento das Olimpíadas. Numa, teriam sido
decorrentes de uma luta entre Cronos e Zeus. Em outra, Héracles teria realizado
competições para incitar seus irmãos, os Cureutas, à guerra. Mas, o mais provável
é que elas sejam uma evolução natural do costume de organizar disputas nos ritos
fúnebres, quando um grande herói era sepultado.
51 Segundo os dicionários Larousse Cultural e Aurélio o ágon é definido como embate, disputa, visão competitiva que a nobreza tinha da existência. Também entendida como a assembléia do povo que vigiava os Jogos Olímpicos.
112
Homero, na Ilíada52, narra o funeral de Pátroclo como tendo sido pomposo
e acompanhado de competições realizadas em sua homenagem. Aquiles mandara
trazer dos seus barcos prêmios para os vencedores: touros, bois, mulas, armas,
ferro, baixelas de prata, escravas e ouro.
No relato feito por Homero, além da corrida, da luta de gládio e do
lançamento de peso, Aquiles realizara a luta de murros, que foi vencida por Epeio,
e a luta-livre (hoje chamada de luta greco-romana), empatada entre Ulisses e Ájax.
A relação entre o Teatro e o esporte não se esgota em sua origem comum,
mas também está presente no que os move: o ágon. Todo esporte, seja qual for a
modalidade, é de certa forma uma luta e implica a possibilidade de um perdedor e
de um vencedor. Todo Teatro necessita de conflito para existir, seja da
personagem consigo mesma, seja entre personagens distintas. O embate, a luta
de idéias ou física, é componente fundamental de ambos. A própria palavra
protagonista (protagonistés) serve ao Teatro e ao Esporte indicando aquele que
combate em primeira linha.
Se, de todos os Esportes, a luta é o seu representante mais antigo, de
todas as formas de Teatro o improviso é também o seu representante mais antigo.
Talvez tenha sido mera coincidência, mas é justamente da combinação desses
dois representantes ancestrais que surge o Teatro-Esporte.
52 Canto XXIII
113
O ESPETÁCULO
�Nos anos 60, na Inglaterra, nos perdíamos em infindáveis discussões sobre como educar melhor o público. Ninguém considerava a possibilidade de que o público pudesse nos educar. Isso é pura arrogância. Afinal, para quem fazemos teatro?�53
O Teatro-Esporte foi inspirado inicialmente nas pro-wrestlings54, que por
sua vez são um tipo de luta greco-romana para entretenimento familiar.
John Dexter e William Gaskill dividiam o interesse por luta-livre com Keith
Johnstone e ficavam imaginando como seria se os lutadores fossem substituídos
por improvisadores. Uma idéia que, aliás, consideravam impossível na Inglaterra
dos anos 60, já que cada palavra ou gesto, para serem apresentados
publicamente, deveriam receber a aprovação do Lord Chamberlain, oficial do
Palácio de Buckingham que cuidava para que nenhuma idéia expressa pudesse
perturbar a família real. Todos os comediantes ficavam sob forte vigilância e seus
trabalhos precisavam de aprovação. Um importante teatro londrino havia sido
punido porque um ator imitara a voz de Churchill e um outro atravessara o palco
carregando uma foice.
Para Keith Johnstone, se a luta-livre tivesse sido considerada como teatro
pelas autoridades, cada salto, gesto ou exclamação teria necessariamente de
passar pelo censor antes da apresentação.
53 JOHNSTONE, Keith. Theatresports. Die Deutsche Bühne, novembro de 1989, p. 55. 54 A palavra pro-wrestling significa prender, imobilizar, segurar. Enquanto estilo de luta, é conhecida como luta olímpica, mas foi popularizada como luta greco-romana.
114
�Foi muito embaraçoso receber a visita dos russos e vê-los lamentarem nossa falta de liberdade.�55
Em 1963, Keith Johnstone estava trabalhando, com os atores do Studio, na
criação de diálogos que se estabelecem entre estranhos, a partir dos conceitos de
Stanislavski, quando o Teatro de Arte de Moscou passou por Londres com uma
montagem de O Jardim das Cerejeiras, de Tchekov.
Keith Johnstone saiu da apresentação frustrado e com a estranha sensação
de que todas as personagens tinham sempre os mais fortes motivos para fazer o
que faziam e dizer o que diziam. Então, perguntou-se acerca dos motivos mais
fracos. O que seriam eles e como funcionariam numa cena? No dia seguinte a
essa apresentação, com os alunos do Royal Court Studio, começou a desenvolver
os primeiros exercícios de status.
Os exercícios exploravam a gradação das motivações. O resultado foi uma
explosão tal de alegria e prazer que ele acreditou estar fazendo algo muito errado.
Em seu pensamento, uma aula não podia provocar tanta felicidade. A fim de
verificar se aqueles sentimentos e reações não eram algo particular do grupo,
como expressão talvez de uma espécie de narcisismo, tornou as aulas públicas,
obtendo, para sua surpresa, exatamente os mesmos resultados.
�Eu escrevi para seis colegas londrinos e ofereci aulas gratuitas de demonstração, depois do que recebemos convites para nos apresentar em diversos lugares. Eu cortei o número de atores para 4 ou 5 e, com forte apoio do Ministério da Educação, começamos a fazer uma turnê pelas escolas e universidades. Assim, toda vez que nos encontrávamos em cima de um palco, éramos impelidos a dar shows mais do que em fazer
55 JOHNSTONE, Keith. Impro for storytellers, Op. cit., p. 1.
115
demonstrações. Nós nos denominamos �The Theatre Machine�, e o Conselho Britânico nos enviou em turnê pela Europa. Logo nos tornamos um grupo de muita influência, e o único grupo de pura improvisação que eu conhecia, em que nada era preparado e tudo acontecia ao vivo como uma aula aberta de teatro.� 56
Esses primeiros experimentos, feitos a partir das observações acerca da
montagem de O Jardim das Cerejeiras, e o trabalho realizado no grupo de autores
do Royal Court Theatre foram se organizando. Com os anos, resultaram não só
na criação deste método de improvisação, mas também em diversas estruturas de
espetáculos de pura improvisação, cujo carro chefe, sem dúvida é o Teatro-
Esporte.
A combinação definitiva entre o Teatro e o Esporte, porém, com as regras,
os jogos e a estrutura final, só viria a acontecer mais tarde, quando Keith
Johnstone já morava no Canadá.
56 JOHNSTONE, Keith. Impro, Op. cit., p. 27.
116
DA SALA DE AULA DO ROYAL COURT PARA O INTERNATIONAL
THEATRESPORTS INSTITUTE
A saída de Keith Johnstone do Royal Court Theatre, em 1966, acabou por
impulsionar a difusão de suas idéias para além das fronteiras da Inglaterra.
Num primeiro momento, ainda vivendo em Londres, Keith Johnstone foi
lecionar na Royal Academy of Arts. Mas os convites começaram a chegar e o
afastamento da Inglaterra foi se configurando como algo concreto. O primeiro
afastamento ocorreu quando ele aceitou o convite da Vic University e foi para
Vancouver, no Canadá. Lá, Keith Johnstone disse sentir-se livre novamente.
Pela primeira vez, em anos, sentia de novo vontade de estudar direção e
de expressar seus pensamentos, sem o peso da rígida censura inglesa que o
havia acompanhado de perto durante tantos anos.
Em 1971, fez seu primeiro trabalho na Universidade de Calgary, como
professor convidado para a área de interpretação. Em 1972, saiu da Universidade
para responder a convites recebidos e a ela retornou, em 1975, como professor
assistente. Os contactos com a Vic University iriam se manter ainda por algum
tempo.
Durante quinze anos, Keith Johnstone lecionou todos os verões em
Copenhaguem, na Dinamarca, na Danish State School of Arts. Ministrou
workshops em diversos países europeus, a convite de importantes companhias de
pesquisa, como o Odin Teatret, em 1970, e a companhia sueca Unga Klara,
também nos anos 70, além de dirigir espetáculos, alguns escritos por ele mesmo,
117
como quatro realizados no Teatro de Salvatore Poddini, em Tübingen, Alemanha,
escritos e encenados (todos) em oito semanas.
O contato com a Escandinávia seria um importante marco, não só porque a
primeira companhia de Teatro-Esporte, fora do Canadá, surgiu lá, como
importantes contribuições para a constituição do próprio espetáculo foram então
feitas.
Além disso, suas idéias foram logo reconhecidas e incorporadas aos
programas das escolas de teatro e as primeiras traduções de seu livro Impro foram
feitas para o dinamarquês e o sueco, ampliando ainda mais, nesses países, a
disseminação de suas idéias.
Mas é no Canadá que o nome Teatro-Esporte aparecerá e lá o espetáculo
ganhará sua forma atual. Para Keith Johnstone, a receptividade do público
canadense é a grande responsável pela criação do espetáculo como o
conhecemos hoje. Chega mesmo a comparar o Theatre Machine a uma partida de
cricket palaciana, morna e sem graça, perto do efusivo Teatro-Esporte.
Ao criar o Theatre Machine, sua única preocupação era ensinar Teatro de
uma forma que os alunos permanecessem interessados na aula e em seus temas.
Não havia uma pretensão maior.
Quando Keith Johnstone vai lecionar na Universidade de Calgary, cidade do
oeste canadense em que acabou por fixar moradia, é essa idéia que traz na
bagagem. Suas aulas eram extremamente divertidas e, por isso mesmo, bastante
concorridas.
Lá decide formar sua própria companhia e, para isso, convidou um grupo de
alunos. Os ensaios aconteciam no porão de sua casa, regados a chá e biscoito.
118
Relatos dos membros dessa primeira equipe, alguns dos quais permanecem até
hoje na companhia, indicam que a sensação era a de que estavam fazendo uma
revolução no Teatro. Sentiam-se altamente estimulados e o fato de estarem em
plenos anos 70, época em que tudo o que era diferente causava excitação,
aumentava ainda mais o envolvimento deles no projeto. Keith Johsntone queria
unir o Teatro ao esporte. A idéia por si só era revolucionária, e no grupo havia um
dos membros que era fanático por esportes, de tal forma que a cada reunião ele
comparecia com listas de idéias e regras de modalidades esportivas que
pudessem ser aproveitadas no espetáculo.
O grupo, por vezes, não conseguia enxergar a transposição daquilo para o
palco e se afligia. Mas, as razões de Keith Johnstone, ao empreender essa busca,
eram pautadas no fato de considerar que o teatro convencional estava morto e se
dedicava prioritariamente a encenar mortos. Então, achava que as pessoas de
teatro lamentavam sem razão a falta de público. O teatro não atingia o público. Por
outro lado, ele nunca havia visto um evento esportivo vazio, nem alguma pessoa
ligada ao esporte reclamar da falta de público. Além disso, ao comparar as
platéias de teatro e as de esporte, essas últimas possuíam qualidades invejáveis.
Participavam, tomavam partido, enfim, estavam de corpo e alma envolvidas com
aquilo a que estavam assistindo, o que não ocorria com o público de Teatro, muito
silencioso e formal.
Keith Johnstone testava diferentes possibilidades. O futebol e a luta-livre
eram seus prediletos porque também eram os esportes de que mais gostava, pelo
menos na época.
119
A aparente simplicidade presente nos filmes de Buster Keaton e Charles
Chaplin era uma espécie de meta a ser alcançada.
O grupo fazia listas de necessidades. Levantava questões tais como: Que
tipo de pontuação? O que será considerado penalidade? Quem julgará? O que
julgará?
Assim, semana a semana, novas regras eram testadas, para desespero do
grupo, que tinha de aprender e desaprender continuamente, até que o espetáculo
acabou tomando a forma original.
Contribuía ainda para essas alterações contínuas o fato de Keith Johnstone
estar também trabalhando com um grupo de alunos da Vic University e com um
grupo na Dinamarca.
Por fim, eles começaram a realizar apresentações do Secret Impro Show
no porão da universidade. O espetáculo estava envolto numa aura de mistério,
pois era tido, por muitos, como perigoso, já que não se podia saber o que
aconteceria nas apresentações. Daí esse tom meio secreto, transposto para o
nome. No entanto, o espetáculo chamou a atenção do púbico, em especial dos
jovens, e Keith Johnstone decidiu fundar o Loose Moose Theatre57, a primeira
companhia de Teatro-Esporte.
Com o tempo, eles saíram do porão da casa e do da Universidade.
Alugaram um teatro na cidade para a primeira temporada oficial e depois uma
garagem, num bairro industrial, onde abriram seu próprio teatro.
57 O caribu, espécie de alce, é um animal muito comum no Canadá e tomá-lo como símbolo de uma companhia que pretendia realizar um espetáculo que atingisse o público pareceu-lhes bastante pertinente. O �Grande Caribu� deve ser reverenciado pelo público e a ele se agradece por uma boa apresentação.
120
Aliás, garagens, quintais, porões e galpões parecem ser as incubadoras
prediletas das companhias de Teatro-Esporte.
As idéias de Keith Johnstone atravessaram fronteiras e ganharam o mundo.
Reconhecido por seu trabalho, ele recebeu, em 2000, o título de Professor Emérito
da Universidade de Calgary.
Um pouco antes, em 1998, o pequeno grupo do Loose Moose Theatre criou
o International Theatresports Institute. Não era mais possível combinar a atividade
artística do grupo com as funções administrativas, agora de âmbito mundial.
Do grupo original, poucos abandonaram o Teatro-Esporte. A grande maioria
ou fundou suas próprias companhias nas cidades para onde os atores se
mudaram ou permaneceu no Loose Moose Theatre, como Dennis Cahill (braço
direito de Keith Johnstone e Diretor Artístico do teatro) e Tony Tontino.
121
CRONOLOGIA DO TEATRO-ESPORTE
Os dados que se seguem são em parte compilação de informações
contidas no livro Something like a drug � An Unauthorized History of
Theatresports58, em parte dos meus registros pessoais e em parte dos e-mails
recebidos do International Theatresports Institute nos últimos anos. Não se trata
de uma cronologia completa e minuciosa, porque nem mesmo o Instituto a possui.
Mas é possível, através dela, traçar-se um panorama do crescimento do Teatro-
Esporte no mundo.
1977
O Loose Moose Theatre realiza o primeiro show de improviso na Universidade de
Calgary.
1978
O Loose Moose Theatre realiza as primeiras partidas de Teatro-Esporte, torna-se
uma sociedade e adquire personalidade jurídica.
Na Dinamarca, é criada a primeira companhia de Teatro-Esporte pelo Turnus
Teater, e os dinamarqueses instituem o mês de junho como o mês do
Teatro- Esporte.
1979
O Loose Moose Theatre realiza a sua primeira grande temporada, em Calgary.
58 Escrito pelos colegas da Universidade de Calgary, Clem Martine e Kathleen Foreman, testemunhas dos primeiros tempos do Loose Moose Theatre, o livro é uma coletânea de depoimentos dos atores da primeira equipe e de membros de diversas companhias, registrados em 1992, durante o campeonato de Halifax, Canadá.
122
Na Suécia, a companhia Ungla Klara estréia o Teatro-Esporte.
Ocorre o primeiro torneio municipal, em Calgary.
1980
O Loose Moose Theatre realiza o primeiro torneio anual com convidados.
Em Vancouver, a liga de Teatro-Esporte realiza seus primeiros jogos.
Acontece em Vancouver o primeiro torneio entre províncias.
1981
Calgary sedia o primeiro torneio entre cidades. O Loose Moose cria seu próprio
espaço de representação, o Simplex, e o Teatro-Esporte entra na agenda
cultural oficial do Estado de Alberta.
Vancouver cria um campeonato para o Dia dos Namorados.
Acontece o torneio canadense de Teatro-Esporte.
A cidade de Edmonton cria sua companhia e realiza a primeira temporada do
espetáculo.
A companhia de Teatro-Esporte de Toronto realiza workshops com Keith
Johnstone.
1982
O Loose Moose Theatre, de Calgary, e a liga de Teatro-Esporte, de Vancouver,
promovem torneios.
A companhia de Toronto abre seu próprio teatro e começa a ministrar oficinas.
Seattle cria a primeira companhia americana e realiza a primeira apresentação
pública de Teatro-Esporte.
Nova York realiza workshops introdutórios no Ensemble Studio.
123
1983
O Loose Moose Theatre cria a Associação de Jogadores de Teatro-Esporte.
Vancouver realiza o primeiro torneio da Costa do Sol.
Seattle realiza um torneio entre cidades e participa do Bumbershoot Fall Festival of
the Arts.
1984
O Loose Moose participa do International Festival of Fools, em Nova York, e do
Quinzaine Festival, em Québec.
Acontece o primeiro campeonato nacional de Teatro-Esporte, no Canadá.
Vancouver realiza o segundo torneio da Costa do Sol.
Edmonton faz um torneio entre cidades e Toronto o seu primeiro Campeonato
Nacional.
Seattle começa a ministrar workshops em escolas de segundo grau.
Nova York inicia carreira normal do espetáculo.
1985
Edmonton cria o evento Jogos de Inverno de Alberta e o Theatresports Classic
Movies Nights.
Toronto participa do Toronto Children�s Festival.
Seattle realiza o New City Director�s Festival.
Nova York realiza o primeiro torneio Stanislavski Open.
A Austrália cria sua primeira companhia em Sidney e no mesmo ano já realiza o
primeiro campeonato nacional.
A Tasmânia cria sua companhia de Teatro-Esporte.
124
1986
Vancouver organiza a EXPO 86, com um torneio canadense, em maio, e um
torneio internacional, em agosto, reunindo companhias da Austrália,
Inglaterra, Suécia, Estados Unidos e Canadá.
Edmonton realiza os Jogos de Inverno e o torneio Golden Nose Theatresports.
Em Toronto é criado o primeiro Theatresports Comedy Summit.
Seattle realiza uma maratona de 24 horas de Teatro-Esporte, o Ever Improvathon.
Nova York cria um programa de apresentações para instituições de caridade.
Em São Francisco surge o grupo Bay Area Theatresports (uma das mais
importantes companhias).
Em Oslo é criada a primeira companhia norueguesa.
O canal de televisão australiano ABC-TV grava, em Sidney, uma série especial de
Teatro-Esporte.
1987
Keith Johnstone publica em Calgary a primeira Newsletter.
Edmonton realiza o torneio Golden Nose.
Toronto faz o Campeonato Nacional.
Nova York cria uma organização sem fins lucrativos e promove o Improv Festival.
A companhia de São Francisco entra em temporada e realiza um torneio
intermunicipal com troca de jogadores. Participam Los Angeles e São
Francisco.
Roterdã treina a primeira equipe holandesa.
Na Inglaterra, companhias informais de Teatro-Esporte participam do Festival de
Edinburgo.
125
Em Melbourne realiza-se o New Wave Festival, com diversas companhias de
Teatro-Esporte.
Na Nova Zelândia são realizados torneios nas cidades de Auckland, Christchurch
e Takapuna. O canal de televisão neozelandês TVOne faz a cobertura dos
eventos.
1988
O Loose Moose Theatre realiza a primeira Olimpíada de Teatro-Esporte, reunindo
companhias dos Estados Unidos, da Inglaterra, da Suécia, da Dinamarca
e da Austrália.
O Loose Moose Theatre cria o All-Star Impro Show.
Em Edmonton surge a companhia Rapid Fire. Campeonatos são realizados em
escolas e acontece o Golden Nose Theatresports.
Toronto promove o International Comedy Improv Festival.
A companhia Bay Area de São Francisco participa do International Vaudeville
Festival, abre um escritório e uma sala para ministrar cursos.
A companhia de Nova York também se estabelece em espaço próprio, o Westside
Arts Theatre .
A companhia dinamarquesa Turnus Teater cria o Impro Café.
A companhia holandesa de Roterdã estréia e Keith Johnstone ministra curso para
professores de teatro.
Em Londres tem início uma disputa pelos direitos do espetáculo entre as
companhias inglesas de Teatro- Esporte e Keith Johnstone é
chamado para resolver a contenda. Ele cria o Teatro-Esporte do Reino
Unido.
126
Na Austrália acontece um verdadeiro boom de Teatro-Esporte e o espetáculo
pode ser encontrado em todos os Estados.
Na Nova Zelândia surge o United Theatresports, patrocinado por três anos pela
United Building Society. Campeonatos nacionais são realizados e os jogos
nacionais ganham transmissão pela televisão neozelandesa.
1989
O Loose Moose cria a International Improvisational School, que reúne em sua
primeira turma alunos da Holanda, Nova Zelândia, Austrália, Itália,
Estados Unidos e Canadá.
Edmonton realiza o primeiro torneio internacional.
Em Toronto são realizados dois eventos: o torneio The Coors Light International
Theatresports e o Shakespeare in the Pond.
A companhia de Seattle consegue seu próprio teatro.
São Francisco inicia a série Late Night, com um formato de improvisação mais
longo.
Nova York realiza o segundo Stanislavski Open, que dura cinco semanas e reúne
vinte equipes de Teatro-Esporte. É criada a liga municipal Junior Varsity,
para crianças. Apresentações para jovens são realizadas em escolas e
surgem diversos motes para apresentações do espetáculo, como o
Freestyle Monday, Play by Play, Real Life, etc.
Em Copenhaguem acontece o campeonato escandinavo de Teatro-Esporte.
Keith Johnstone retorna a Roterdã para um segundo curso e surgem novas
companhias de Teatro-Esporte, agora em Amsterdã e Utrecht. A Holanda
realiza seu primeiro torneio intermunicipal.
127
Em Tübingen é formada a primeira companhia alemã de Teatro-Esporte, no
Landestheater Wurtemberg-Hohenzollern (LTT). O espetáculo é
introduzido neste país via Dinamarca. (E é aqui que começa efetivamente
o meu trabalho prático com o Teatro-Esporte.)
Em Sidney, cursos de Teatro-Esporte são ministrados nas escolas, sob a direção
da companhia de teatro de rua Belvoir.
Na Nova Zelândia a United Theatresports realiza um programa em quarenta e
nove escolas secundárias por todo o país, criando a liga de segunda
divisão. Um Festival de Teatro-Esporte das Escolas Secundárias é
realizado em Wellington e um campeonato nacional da primeira divisão
é realizado na cidade de Auckland. Nessa ocasião existiam cerca de
cinqüenta e três grupos de Teatro-Esporte na Nova Zelândia.
A companhia Ventura Area, da Califórnia, é licenciada.
1990
Toronto realiza a terceira edição do International Comedy Summit.
Seattle cria o torneio Cream of Wit .
Nova York realiza o American Improv Festival.
Roterdã realiza o primeiro campeonato flamengo e reúne oito equipes, incluindo
as de Bruxelas e Londres.
Em Londres, o Teatro-Esporte do Reino Unido realiza o primeiro torneio e formula
seu estatuto.
Em Radebeul, na Alemanha, o Landesbühne Sachsen estréia o Teatro-Esporte.
O campeonato escandinavo de Teatro-Esporte é realizado em Oslo.
128
Na Nova Zelândia, a cidade de Auckland recebe o Desafio Internacional, parte
dos Jogos Comunitários, e o Príncipe Edward participa de uma das cenas.
Acontece o segundo Festival promovido pela United Theatresports, com
transmissão dos melhores momentos pela televisão neozelandesa.
1991
Edmonton realiza um torneio no Fringe Festival, do qual participam equipes de Los
Angeles, Orlando, Portland, Roterdã, Chattanooga, Auckland, São
Francisco, Calgary e Edmonton.
Em Toronto acontece a quarta edição do International Comedy Summit.
Seattle inaugura o próprio teatro: Market Theatre.
São Francisco realiza seu primeiro torneio internacional.
Em Nova York é realizado mais um Stanislavski Open, além do Festival
Internacional de Teatro-Esporte.
Em Roterdã, grupos de Amsterdã, Nijmegen, Zwolle, Utrecht e Alkmaar intitulam-
se Theatresports Lawine. É realizada a primeira partida internacional entre
Lawine e BIL (liga belga de improvisação), de Bruxelas.
Na Alemanha acontece, em Tübingen, a primeira partida intermunicipal entre
Tübingen e Dresden.
Oslo volta a sediar o campeonato escandinavo e uma equipe da Finlândia
participa pela primeira vez.
Na Austrália, nasce em Sidney a Theatresports Inc.
O Loose Moose Theatre move processo contra um grupo francês que estava
vendendo direitos do espetáculo para companhias de teatro amador da
Europa.
129
A equipe de Dortmund, Alemanha, se licencia.
1992
Tony Tontino torna-se diretor artístico da companhia de Oslo.
Experimentos com outros formatos, criados por Keith Johnstone, para espetáculos
de improviso, têm início.
Em Tübingen é criado o Harlekin Theater, do qual sou co-fundadora. Cursos são
ministrados em diversas cidades e o espetáculo, agora independente do
LTT, segue sua carreira na cidade.
A companhia de Los Angeles, LATS, realiza o Teatro-Esporte Bowl, com a
participação de oito times.
A Companhia ImproVision, da Cidade do Cabo, África do Sul, estréia o espetáculo.
O Teatro-Esporte é visto pela primeira vez no Japão.
1993
Surge em Tóquio a primeira companhia japonesa, Theatresports Japan, da United
Performers� Studio.
1994
Acontece uma conferência internacional, em San Diego, Estados Unidos.
Por ocasião da Copa do Mundo, o LATS realiza em Los Angeles o World Mug,
com a participação de vinte e dois países.
1995
A Sociedade Pró-Projeto Teatral Dano-Brasileiro, de São Paulo, da qual sou
presidente, é licenciada.
1996
Tem início o treinamento da primeira equipe brasileira, em São Paulo.
130
Na cidade de Kessel-Lo, Bélgica, nasce a companhia Inspinazie.
Em Melbourne, na Austrália, surge mais uma companhia de Teatro-Esporte.
1997
O Teatro-Esporte estréia em São Paulo, em 04 de abril.
A companhia de Vancouver ganha o prêmio de excelência em teatro interativo do
Ministério da Educação.
1998
É criado, em Calgary, o International Theatresports Institute.
Em Roterdã acontece o Master of Impro e a equipe de São Paulo é convidada a
participar, mas não pode atender ao convite por falta de recursos.
1999
A equipe paulista apresenta-se no interior do estado.
A equipe norueguesa, Improoperators, faz sua primeira temporada.
2000
Em S.Paulo, a companhia paulista cria o Impro show Hallo aus Berlin, em parceria
com o Instituto Goethe e o Passaporte cultural de teatro, no Centro
Cultural.
São realizadas em Sidney as Olimpíadas de Teatro-Esporte.
Nuremberg e Erlangen realizam a Copa de Improvisação.
O Yokohama Theatre Group cria um grupo de Teatro-Esporte: Impro-hama.
2001
É realizada em Sidney a Cranston Cup.
Roterdã promove mais uma edição do Festival Internacional de Improvisação.
O LATS vence o NY Impro Festival.
131
Em Luzern, na Suíça, surge a companhia Theater IMPROphil.
2002
É realizado em São Paulo o primeiro show internacional de Teatro-Esporte
reunindo atores da companhia paulista e do Fast Food Theatre, de
Munique. No mesmo ano, a companhia comemora os cinco anos do
espetáculo com o projeto O homem é o caos.
O LATS vence o Chicago Impro Festival.
2003
A companhia paulista, através do Fomento ao Teatro, realiza o projeto Teatro-
Esporte, um olhar sobre a cidade e sua gente, apresentando-se em 25
bairros da cidade.
Na Itália, a companhia ProgettoRatto, de Monte Urano, estréia o espetáculo.
É criada a Liga Portorriquenha de Improvisação Teatral, em San Juan, Porto Rico.
O ZACK Improtheater-Schweiz, de Zurique, forma sua primeira equipe.
Na Nova Zelândia surge a Wellington Improv Troupe.
2004
Em Israel surge a companhia Shi Fun Goo.
Taipei, em Taiwan, cria o Flinchless Improv Theatre.
Em Zurique, Die METZger estréiam o espetáculo.
Em Macau, na China, surgem duas companhais: a Jacky Li Chun Kit e o Theatre
Farmers.
Em Londres nasce mais grupo: os Naked Apes.
Em New Castle, Inglaterra, surge a Improvisation Foundation.
132
Keith Johnstone promove o curso nas Montanhas Rochosas, Canadá, para os
afiliados do International Theatresports Institute.
Nasce a Atlas Improv Co., localizada em Madison, Wisconsin, nos Estados
Unidos.
Em Oak Park, Illinois, USA, surge a companhia Son Of A Goon.
Em Johannesburg, África do Sul, a Haylo Productions estréia o espetáculo.
No Oregon, USA, a Green Room Improv Theater School realiza cursos e se
licencia.
A Delaware Comedy Theatre, de Rehoboth Beach Delaware, inicia temporada.
Em setembro, a Companhia Curitibana de Comédia torna-se a segunda equipe
brasileira de Teatro-Esporte.
Em Porto Rico surge a companhia IOCUS.
O International Theatresports Institute abre processo contra a Impro Australia, por
comercialização não autorizada de direitos autorais.
2005
Em janeiro, o Teatro do Nada, do Rio de Janeiro, é licenciado e estréia o
espetáculo. Desde então tem realizado apresentações e oficinas sobre o
método.
Em Leuven, na Bélgica, a companhia Preparee começa a apresentar o Teatro-
Esporte.
O Ketó Impro Teatro, localizado em Lima, Peru, obtém a licença.
Na Bélgica, a companhia Inspinazie joga com a companhia norueguesa e na
seqüência promove um Festival de Improvisação.
133
Surge no Estado de Alberta, na cidade de High River, mais uma companhia
canadense, o Club Improv @ Highwood.
Nova York ganha mais uma companhia, a Wide Net Improv Theatre.
2006
A Fifa já incorporou à programação cultural da Copa do Mundo, a ser realizada na
Alemanha, a Copa de Teatro-Esporte.
134
VERSÕES OFICIAIS DO TEATRO-ESPORTE
Teatro-Esporte Regular � A partida consiste de cenas livres, jogos
específicos e desafios, estes últimos em número de três. O juiz alerta para cena
chata (cartão amarelo).
Partida Revisada � criada por sugestão de Jim Curry59, na qual o time
vencedor de um dos desafios fica impossibilitado de jogar os outros dois, de forma
a fazer com que o time perdedor tenha chance de conseguir alguns pontos.
Partida de Desafios � Os times se desafiam mutuamente. Não há cena
livre nem contagem de tempo.
Partida de Desafios dos Juízes - Normalmente usada para iniciantes. Só
os juízes lançam desafios para as cenas.
Partida Dinamarquesa � O público decide quem é o vencedor, através de
gritos, palmas ou placas indicativas das cores dos times. Há um apresentador que
coordena a partida, ouvindo a platéia, explicando as regras dos jogos e
distribuindo as penalidades. Durante os jogos, faz anotações que serão utilizadas
para lembrar a platéia das faltas cometidas ou de contribuições dignas de bônus.
A partida dinamarquesa não é recomendada para campeonatos porque o público,
além de torcer, normalmente dá os gols para o time da casa.
59 Foi aluno de Keith Johnstone na Universidade de Calgary e durante algum tempo atuou no Loose Moose Theatre.
135
REGRAS DO TEATRO-ESPORTE
Introdução � É feita pelo apresentador, que recebe a platéia, apresenta os
times e os juízes.
Início da partida � O apresentador chama os capitães dos times e os
juízes no centro do palco. Os juízes supervisionam o jogo cara ou coroa ou par ou
ímpar, que decidirá qual time dará início à partida. O vencedor decide qual time
criará a primeira cena: o dele ou o do oponente. A partir daí, as cenas serão
realizadas alternadamente pelos times.
Duração da Partida � Em geral, a partida dura de cinqüenta minutos a uma
hora. A partida dinamarquesa é dividida em dois tempos de trinta a quarenta e
cinco minutos. No primeiro tempo, são realizados os desafios e, no segundo, os
jogos.
Duração do jogo � A duração de cada jogo é decidida e anunciada antes
do início da cena.
Controle do Jogo � Cabe ao juiz ou juízes (ou ao apresentador, na partida
dinamarquesa).
Coach � É opcional. Seu papel é dar assistência ao time naquilo que este
necessitar. Embora o coach possa entrar em algum jogo que necessite de mais
pessoas na cena, não é considerada uma boa idéia, já que isso o faria sair de seu
papel original.
Contagem � Conta-se de cinco até um e a cena começa. A contagem
poderá ser feita pelo juiz ou pelo apresentador, ou ainda pelo público. Porém, a
palavra final quanto à validade da contagem caberá ao juiz ou ao apresentador.
136
Alerta para cena chata � O juiz ou apresentador poderá alertar o time
verbalmente ou através de cartão amarelo, para indicar que a cena está ficando
chata ou perdendo o rumo. Se o time não conseguir resolver o problema, o
apresentador ou o juiz encerrará a cena através de corneta, cartão vermelho,
dizendo �muito obrigado� ou, simplesmente, apagando a luz.
Pênalti � É considerada pênalti a obstrução da cena ou o seu
prolongamento exagerado, assim como desrespeito, obscenidade e o uso de
palavrões. A penalidade consiste em fazer o ator permanecer dois minutos
sentado ao lado do juiz ou na platéia (é opcional a colocação de um saco sobre a
sua cabeça).
Final da Cena � Deverá ser determinado pelo time em cena. Se este não
conseguir concluir a cena, o juiz ou o apresentador poderá intervir, apagando a luz
ou anunciando �faltam dez segundos� (ou qualquer outra coisa), ou ainda fazendo
uso do alerta para cena chata.
Final da Rodada - Se os times não conseguirem completar seus desafios,
o apresentador ou o juiz, a seu critério, poderá lançar outros dois desafios curtos.
Do julgamento � A realização dos desafios e dos jogos será analisada pelo
juiz ou juízes a partir de três critérios: a narrativa, o conteúdo e a cena
propriamente dita. Cada critério receberá uma nota de zero a cinco. Na partida
dinamarquesa, no primeiro tempo de jogo, o gol é dado pela platéia e vale cinco
pontos. No segundo tempo, segue a regra geral.
Da Pontuação � os resultados são registrados numa lousa ou painel pelo
gandula. A este caberá também a tarefa de marcar o tempo das cenas, as
137
interrupções ou demais ocorrências. Todos os registros serão passados para o
apresentador ou para o juiz.
Substituição � Atores poderão ser substituídos no decorrer da cena,
através do sinal característico com as mãos em forma de �T�.
Explicar os jogos � As regras de cada jogo deverão ser bem explicadas,
para que o público possa acompanhar a construção e o desenrolar das cenas.
Explicar os desafios � Se o time não for capaz de explicar clara e
sucintamente o desafio, o juiz ou o time oponente poderá rejeitá-lo.
Sugestões � podem ser dadas pelo juiz ou pelo público (na partida
dinamarquesa). As sugestões poderão ser recusadas pelo time. Recusas
insistentes poderão gerar perda de pontos.
138
O FRACASSO E O SUCESSO NO TEATRO-ESPORTE
Se o crescimento mundial do Teatro-Esporte é uma realidade e motivo de
satisfação para o seu criador, é também fonte de preocupação quanto a sua
orientação.
Keith Johnstone utiliza-se da diferença entre o show-business e o esporte
para exemplificar as conseqüências do mau entendimento do sucesso e do
fracasso no Teatro-Esporte.
No show-business, tudo é programado e meticulosamente estudado. As
eventuais falhas são cobertas ou disfarçadas, para que o espetáculo pareça
perfeito e faça sucesso. No esporte, por outro lado, apesar do treino e do domínio
das regras do jogo, não há nenhuma garantia de que o sucesso seja alcançado,
porque qualquer passe, seja ele certo ou errado, é parte constitutiva do jogo. E é
por sua ocorrência e pelo aproveitamento que os jogadores farão desses passes
que o resultado final poderá apontar para a vitória ou derrota da equipe.
Keith Johnstone critica os grupos que fazem do Teatro-Esporte um
espetáculo moldado nas características do show-business, tentando evitar que
erros ocorram e burlando aquilo que caracteriza o esporte: a surpresa.
Quando os riscos são minimizados ou até suprimidos, os atores, na
verdade, estão tentando se proteger e evitar críticas ao seu trabalho. Usam, em
geral, a desculpa de que estão priorizando a qualidade porque o público tem
direito a um bom espetáculo. Ora, o que é uma boa partida esportiva? Não seria
exatamente aquela talhada no total envolvimento das equipes no jogo que estão
executando? Não seria aquela em que os jogadores mantêm absoluta atenção
139
aos passes e aproveitam os mínimos deslizes dos adversários em seu favor e
salvam seus companheiros de equipe de passes mal dados? Não é exatamente
isso que mantém a excitação da torcida e provoca a admiração pelos jogadores?
Um bom espetáculo de Teatro-Esporte é aquele em que vemos os atores
aceitando os riscos do mergulho no desconhecido da cena. Aquele em que os
atores realmente estão jogando uns com os outros para construir as cenas, e não
aquele em que os atores optam pela facilidade e o conforto de um esquema
combinado. No esporte, aliás, isso geraria um enfurecimento da torcida e a
avaliação da partida como �jogo comprado� e, portanto, sem valor.
Há, no entanto, equipes de Teatro-Esporte que chegam a combinar os
desafios antes do início da partida. Tal procedimento não só ludibria o público, que
não assistirá ao que de fato pagou para ver, como, ao optar por ter tempo para
combinar um possível roteiro de cena, essas equipes acabam por contribuir para a
perda do caráter de genuíno improviso, pelo menos no que respeita ao uso deste
método de improvisação.
�Um show roteirizado poderia sucumbir se o cenário quebrasse, enquanto que isso poderia ser o ponto alto de um show de improviso.�60
Aqui, não se combina. Aqui, aceita-se a primeira idéia e corre-se o risco que
tal decisão acarreta.
Outro modo de tentar evitar o fracasso é o ator aproveitar toda a sorte de
habilidades que possui, na crença de que isso distrairá a atenção do público, em
60 JOHNSTONE, Keith. Impro for Storytellers. Nova York: Routledge, 1999, p. 67.
140
momentos de dificuldade na cena. Atores que se iniciam no trabalho com o Teatro-
Esporte com freqüência lançam mão desse expediente como tábua de salvação,
acreditando que estão tornando as cenas mais interessantes, mas perpetuar esse
comportamento, transformando-o em hábito é um erro, porque o distancia da
tarefa principal, que é a de jogar com o outro.
A exemplo de um ator de Commedia dell�Arte, é importante para um ator de
Teatro-Esporte que ele tenha preparação técnica de mímica, de voz, de luta, de
coreografia, de acrobacia, além de cultura geral e, principalmente, teatral. Um ator
bem treinado e que possua habilidades extras em relação às qualidades
necessárias ao improviso, poderá enriquecer uma cena se essa habilidade for
usada em momento oportuno e de forma adequada à natureza do jogo. Mas, fazer
uso de habilidades como estratégia para burlar o público é desonesto. A exibição
pura e simples de habilidades ou a procura obstinada de brechas na construção
das cenas para que o ator possa exibi-las, no vocabulário dos comentaristas
esportivos, resultariam na avaliação desse ator como �mascarado�, termo, aliás,
bastante apropriado.
�Comprar� o juiz antes da apresentação (através de conversas ou
presentes) também é um artifício usado por algumas companhias para evitar
críticas severas às cenas e ao trabalho dos atores na hora do julgamento, o que
resulta em análises e pontuações comprometidas e bastante prejudicadas pela
atuação de juízes que se vêem às voltas com a tarefa de serem bonzinhos.
Bastante influenciados pela atuação dos apresentadores de shows e dentro
da moldura do show-business, encontram-se ainda alguns condutores,
apresentadores ou mestres-de-cerimônias de partidas de Teatro-Esporte que
141
chamam para si a atenção do público e, literalmente, sobrepõem-se aos atores ao
utilizarem figurinos exagerados, piadinhas e demonstrações de habilidades
pessoais, como forma de marcar sua presença no espetáculo. Keith Johnstone
dedica várias páginas em algumas de suas News Letters à discussão do papel do
apresentador no espetáculo. Uma crítica feroz recai sobre esse tipo de
apresentador. A ele cabe tão somente ser uma figura neutra, objetiva na
explicação dos jogos e atenta ao bom andamento da partida.
Atores e grupos que não entendem que o fracasso está presente em
qualquer jogo e dele não tiram proveito porque o encaram do ponto de vista
pessoal, tenderão a se sentirem estressados diante de uma iminente ocorrência e
farão de tudo para controlar e anular toda e qualquer variável que permita que ele
apareça, acreditando falsamente que isso garantirá o sucesso da apresentação e,
principalmente, da sua performance. Iludidos, iludem o público e não
experimentam o prazer de superar obstáculos - seus e da cena - e alcançar a tão
pretendida qualidade.
142
CONCLUSÃO
Um espetáculo de improviso é uma forma de encontro muito especial entre
palco e platéia. Tudo pode acontecer. Uma cena pode ser genial ou digna de vaia.
Mas, seja qual for o seu resultado, o que realmente importa é a disponibilidade
para fazer algo, o prazer de correr o risco, de encontrar uma solução para um
problema proposto. E, mais do que isso, a certeza de que os eventuais erros não
são sinal de fracasso, mas sim da reafirmação de que, como humanos, não somos
perfeitos; ao contrário, somos seres falíveis e em constante aprendizagem. O
improviso é uma forma de teatro em que, de fato, atores e público "suam a
camisa": os atores no palco, tentando dar vida às solicitações do público, e este,
por sua vez, pensando em possíveis soluções (porque não há como não pensar),
torcendo para que tudo dê certo e se surpreendendo com os resultados. Nesse
sentido, ambos - palco e platéia - são co-autores e co-realizadores do espetáculo.
Ora, o que se busca quando se vai ao teatro? Fundamentalmente, prazer.
O que se percebe, no entanto, muitas vezes na prática, é que muitos
atores, diretores e até autores, talvez imbuídos do desejo de compreender a
natureza humana, desejosos de mostrar e discutir a sua essência ou de
surpreender a platéia, acabam se envolvendo muito mais com questões estéticas
do que simplesmente com marcar um mundano �gol� (para usar a linguagem do
Teatro-Esporte), tornando morna não só a resposta do público, mas talvez, e
principalmente, a paixão do ator.
Qual ator se sente confortável, no palco, diante de uma platéia gélida, de
braços cruzados, pronta para analisar seus gestos e palavras?
143
Qual platéia se sente satisfeita diante um ator autômato, que repete
mecanicamente gestos e palavras?
Keith Johnstone quer que o teatro seja tão excitante quanto o esporte.
Ao unir o teatro e o esporte, mais do que trabalhar com o jogo, com o
lúdico, o objetivo de Keith Johnstone é envolver o público. E isso ele conseguiu.
Ao trazer a improvisação de volta ao palco como espetáculo, e não somente como
parte integrante de um processo de montagem, ele resgata o frescor da relação
ator e público.
Fazer teatro deveria ser como poder trabalhar sempre com o genuíno, com
as nossas idéias e emoções puras, que nos seduzem e nos apavoram. O estar no
palco, a cada apresentação, deveria conter em si sempre o caráter do inusitado,
em que todos - atores e público - comungassem um sentimento parecido ao de um
final de campeonato, no qual cada passada de bola fosse tão fundamental e
despertasse tanta admiração quanto a própria taça, e não meramente o
sentimento de se estar vendo ou fazendo o replay dos melhores lances.
O que se percebe, como resultado da aplicação das idéias de Keith
Johnstone, é o surgimento de um ator que é a um só tempo diretor, intérprete e
dramaturgo; atento e com fluência e destreza narrativa muito grandes, capaz de
criar instantaneamente, a partir de pequenos estímulos, ações físicas, situações
dramáticas críveis, personagens com motivação e sentimentos, cenas inteiras com
começo, meio e fim, que aos olhos do público podem até parecer terem sido
previamente escritas, discutidas e ensaiadas.
Nesses 17 anos de trabalho com este método de improvisação e com o
Teatro-Esporte, primeiro durante um ano na Dinamarca, onde entrei em contato
144
com eles, e depois sucessivamente na Alemanha, país em que morei durante
quatro anos e onde sou uma das pessoas responsáveis por sua introdução, e no
Brasil desde 1996, pude observar que, independente da localidade onde está
sendo feito e do público que o está assistindo, o Teatro-Esporte é um tipo de
teatro que promove felicidade. Aristóteles, na Ética a Nicômaco, aproxima o jogo
da felicidade e da virtude. O Teatro-Esporte é uma brincadeira saudável que, ao
realizar desejos através do jogo, traz para o público o universo do Teatro e, para
os atores, uma instigante forma de criação que ultrapassa os limites do palco.
145
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