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IMAGENS E ESPAOS: LEITURA DE UMA RELAO
CIDADE/RESERVA INDGENA/CAMPO EM DOURADOS (MS)1
Jones Dari Goettert
Alexandre Bergamin Vieira
Cludia Marques Roma
1. Introduo
As relaes campo/cidade podem ser analisadas a partir de objetos
e aes que
transitam de um para outro espao, em um movimento dialtico (mas
tambm,
certamente, rizomtico2) no qual objetos da cidade so
ressignificados por aes do
campo e vice-versa. Assim como, ainda, aes no campo so
ressignificadas na cidade,
biunivocamente. Ao duo objetos e aes imprescindvel a conjugao
dos sujeitos que
produzem, reproduzem e usam objetos, em aes muito pouco
coincidentes na cidade e
no campo. Tais processos redefinem a condio dos objetos e das
aes, que,
participantes de um conjunto indissocivel, dependem e so
condicionados pelas
elaboraes materiais e simblicas que os sujeitos (grupos,
comunidades, classes,
sociedades) constroem e empreendem espacialmente. Essas
deambulaes definem, em
alguma medida, a produo de espaos hbridos, mas que no deve
provocar uma
indolncia acrtica ao simplesmente afirmar que a hibridizao a
explicao de todas
as relaes socioespaciais toda hibridizao (como a no-hibridizao)
est
relacionada a relaes de poder, a disputas entre hegemonias e
contra-hegemonias. Para
alm das representaes e imagens dicotmicas e dicotomizantes,
necessrio
apreender relaes que as ultrapassem manifestando-se em
hibridizaes profundas,
como snteses (inconclusas) de processos conjugados entre
identidades e diferenas
(toda identidade se constri em dicotomias, enquanto toda
alteridade se prope como
manifestao contraditria da prpria diferena).
1 Este texto foi elaborado e apresentado junto ao III Frum de
Programas de Ps-Graduao em
Geografia do Centro-Oeste e Tringulo Mineiro, realizado em 26,
27 e 28 de setembro de 2012, em
Trs Lagoas (MS), e tambm decorrncia das atividades desenvolvidas
junto ao Grupo de Pesquisa
Linguagens Geogrficas, integrando o Projeto Imagens, Geografias
e Educao Processo CNPq 477376/2011-8. 2 O movimento rizomtico
proposto por Gilles Deleuze e Flix Guattari a partir da ideia de
rizoma, em
contraposio s relaes arbreas nas quais tudo e todos devem seguir
uma condio previamente delimitada, ensejando, por isso, relaes
sempre dispostas por uma fixidez estrutural correspondente. A
condio rizomtica, ao contrrio, pressupe que Um rizoma no comea
nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas,
inter-ser, intermezzo. A rvore filiao, mas o rizoma aliana,
unicamente aliana. A rvore impe o verbo ser, mas o rizoma tem
como tecido a conjuno e... e... e... (DELEUZE & GUATTARI, 1995,
p. 37).
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Cidade e campo, assim como os objetos, as aes e os sujeitos que
os compem
(ou que so institudos como definidores de suas relaes), so
espaos continuamente
representados em suas condies de formas, funes, processos e
estruturas, em que
O Ser a sociedade total; o tempo so os processos, e as funes,
assim como as
formas so a existncia (cf. SANTOS, 2004, p. 218).
Hegemonicamente a cidade
instituda como o urbano, o movimento, a velocidade, a
esquizofrenia, enquanto o
campo o rural, que pensado geralmente como anttese da cidade, o
espao esttico,
lento, buclico. evidente que, especialmente no perodo
tcnico-cientfico e
informacional, o campo tambm representado cada vez mais
incorporado a espaos
rpidos, luminosos e que mandam (cf. SANTOS; SILVEIRA, 2003).
As representaes dominantes ensejam a produo de imagens que
reproduzem
a dicotomia cidade/campo. Para a cidade, imagens com a aglomerao
de vias, prdios,
casas, comrcio, servios, os congestionamentos, os calades com
transeuntes
indiferentes uns aos outros, o asfalto e as caladas... Para o
campo, imagens com
colheitadeiras enfileiradas a colher a soja para exportao,
rodovias para o escoamento,
chiqueiros de porcos e aves, o trabalho manual... As
representaes e imagens da cidade
e do campo eternizam modos de trabalhar, modos de ser, de vida e
de viver,
reafirmando nelas e por elas identidades territoriais
definidoras a priori do que
pertence a um e a outro espao. Tais representaes e imagens
emolduram a nossa
psicoesfera, ao mesmo tempo em que redefinem o lcus das
tecnoesferas
correspondentes (em aproximao a SANTOS, 2004, p. 255). Aqui, a
cidade; l, o
campo!
Em Dourados como em todo o Mato Grosso do Sul, mas com mais
nfase em
sua poro centro-sul , a cidade, de alguma forma, se uniu3 a um
tipo de campo (o
agronegcio) em contraposio a um espao, digamos, intermezzo: o
das reservas e/ou
terras indgenas. A representao e imagem que melhor define essa
relao antittica
aquela construda em contraposio, nos ltimos anos, aos processos
de identificao e
demarcao das terras indgenas: Produo Sim. Demarcao No. No
entanto,
justamente o caso de se perguntar se no haveria uma disputa
entre representaes e
3 Tanto Elias (2006) como Santos (1996 [1993]) apontam que a
reestruturao da agropecuria culmina
com a racionalizao do espao agrcola, baseado na cincia e na
tcnica, fazendo com que a cidade
torna-se tambm lcus do que se faz no campo e um dos principais
vetores dessa reorganizao a difuso da agricultura cientfica e do
agronegcio (ELIAS, 2005). Emergem, a partir da, as cidades do campo
(SANTOS, 1996 [1993]), que, no momento atual, segundo Elias (2007),
podem ser chamadas de cidades do agronegcio, relacionadas
diretamente consecuo do agronegcio globalizado e s demandas das
produes agrcolas e agroindustriais modernas (cf. ELIAS, 2005,
2006b; 2007b).
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imagens da dicotomia e prticas indgenas hbridas rompedoras de
todo dualismo: nas
primeiras, o interesse na afirmao do moderno em oposio ao
primitivo; e, nas
segundas, a manifestao de relaes de existncia em trnsito efetivo
entre cidade,
espao de intermezzo (a Reserva) e o campo (como no corte de
cana, por exemplo).
Partindo desses pressupostos e no sentido de problematizar
questes da
dicotomia cidade/campo em Dourados, junto a esse espao de
intermezzo,
desenvolveremos aqui a leitura de um conjunto de imagens que,
parece-nos, possibilita
entender como certos objetos e certas aes sempre dependem das
relaes
socioespaciais especficas para a sua realizao. A problemtica ter
como ponto de
partida a leitura das prprias imagens, em uma tentativa tambm de
anlise didtico-
pedaggica, isto , de como toda imagem (sua produo, apresentao,
divulgao e
publicidade) sempre um recorte escalar e socioespacial relativo,
em um movimento
no qual a mudana locacional da imagem redefine a compreenso de
pedaos do
mundo.
2. De relaes entre objetos, aes, sujeitos e hibridizaes a
imagens cidade/campo
2.1. Objetos, aes, sujeitos e hibridizaes
Conexes normais e normativas ou inslitas e inusuais entre
objetos, aes e
sujeitos constituem condies produtoras de um dado espao. Na
perspectiva de
compreenso do espao [...] como um conjunto indissocivel de
sistemas de objetos e
de sistemas de aes, apontado por Milton Santos (1996b, p. 90),
ambos, objetos e
aes produzem-se reciprocamente mediados pela animao material e
imaterial
humana. Nem objetos e nem aes se divisam, no que a
intencionalidade condio
indispensvel na promoo das formas, funes, processos e estruturas
espaciais (sobre
a intencionalidade ver SANTOS, 2004, p. 89 e seguintes). Objetos
e aes, por isso,
coexistem reciprocamente embalados por relaes envolvidas em
cosmologias,
cosmografias e cosmofonias especficas, hegemnicas e
contra-hegemnicas.
Pensemos, ento, sobre os objetos:
Os objetos no so as coisas, dados naturais; eles so fabricados
pelo
homem para serem a fbrica da ao. Hoje, esses sistemas de
objetos
tendem, em primeiro lugar, a ser um sistema de objetos
concretos, isto
, objetos que se aproximam cada vez mais da natureza e
buscam
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imitar a natureza. So, tambm, objetos cujo valor vem de sua
eficcia, de sua contribuio para a produtividade da ao
econmica
e das outras aes. So objetos que tendem unicidade, um sistema
de
objetos que, pela primeira vez na histria do homem, tende a ser
o
mesmo em toda parte. Refiro-me, sobretudo, aos objetos
novos,
queles que formam os sistemas hegemnicos, surgidos para
atender
s necessidades das aes hegemnicas (SANTOS, 1996b, p. 90-91).
Os objetos como a fbrica da ao definem e so definidos por e para
um
objetivo. Concretos, todos os objetos tambm portam dimenses
simblicas, pois
participam de relaes de poder que atravessam desde corpos
isolados a situaes
globais (uma pulseira de ouro ou de sementes de urucum; uma
garrafa de Coca-Cola ou
calas jeans...). Articulados, um conjunto de objetos se presta a
determinadas aes,
desenvolvidas por determinados sujeitos. Hodiernamente, as
grandes articulaes
socioespaciais de sistemas de objetos e sistemas de aes so
acumulaes para a
reproduo ampliada de Capital: acumulaes para acumulaes (a lgica
K-M-K
podendo ser reescrita em Acumulaes de Objetos-Aes-Acumulaes).
A
articulao global de sistemas de objetos e de sistemas de aes
define a hegemonia de
um modo de produo de objetos e de um modo de agir para a
acumulao.
Pensemos, tambm, sobre as aes:
As aes, por sua vez, aparecem como aes racionais, movidas
por
uma racionalidade conforme aos fins ou aos meios, obedientes
razo
do instrumento, razo formalizada, ao deliberada por outros,
informada por outros. uma ao insuflada, e por isso mesmo
recusando o debate; e, ao mesmo tempo, uma ao no explicada a
todos e apenas ensinada aos agentes. uma ao pragmtica na qual
a
inteligncia prtica substitui a meditao, espantando toda forma
de
espontaneidade e, tambm, ao no isolada e que arrasta, que se
d
tambm ela em sistemas (SANTOS, 1996b, p. 91).
uma abstrao, obviamente, a separao radical entre aes e objetos;
ambos
se fazem, se produzem e, no extremo, se esvaiam. Em sentido
aproximado, parece-nos
demasiado determinante a ideia de que toda ao obedece (apenas)
razo do
instrumento, pois, como apontou o prprio Milton Santos (2004, p.
309, 317 e 319),
toda relao pode e talvez deva pressupor o papel das
contra-racionalidades, da
transindividualidade (a partir de Simondon) e da emorazo (com
base em
Laflamme), em trocas simblicas que unem emoo e razo. A ao
pragmtica
pode, ela mesma, de repetio em repetio, tornar-se
espontaneidade, em processos
tanto de alienao mas tambm de tradio que se perpetua em
cotidiano.
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Os objetos criados, produzidos e reproduzidos, formam,
de(s)formam e
informam os sujeitos atravs das aes. Atualmente, a relao entre
objetos e sujeitos se
d como interao (ou ao) prtica, mas no profunda, diferentemente
da relao
construda em outros tempos, quela da relao em comunho com os
objetos. Em um e
em outro caso, contudo, podemos inferir, ainda com Milton
Santos, que os objetos so
eles prprios informao (cf. SANTOS, 2004, p. 214-215). Mas a
informao em um
modo de produo para a acumulao tende a ser sempre uma informao
para a
acumulao, que, simplificadamente, aquela produzida e reproduzida
para a
completude do ciclo do Capital
(produo-circulao-distribuio-consumo),
representada pelo progresso, modernizao e desenvolvimento. No
meio tcnico-
cientfico e informacional, em que o consumo se sobrepe produo, a
informao
para a compra/venda se espalha por praticamente todo o
ecmeno.
Vejamos:
Em nenhuma outra fase da histria do mundo, os objetos foram
criados como hoje, para exercer uma precisa funo
predeterminada,
um objeto claramente estabelecido de antemo, mediante uma
intencionalidade cientfica e tecnicamente produzida, que o
fundamento de sua eficcia. Da mesma forma, cada objeto tambm
localizado de forma adequada a que produza os resultados que
dele se
esperam. [...] Os objetos preexistentes veem-se envelhecidos
pela
apario dos objetos tecnicamente mais avanados, dotados de
qualidade operacional superior. Desse modo, cria-se uma tenso
nos
objetos do conjunto, paralela tenso que se levanta, dentro
da
sociedade, entre aes hegemnicas e aes no-hegemnicas. A
situao diferente daquela do passado, onde as aes de um nvel
inferior no eram obrigatoriamente hegemonizadas. Agora h uma
clara hierarquia daquelas aes que se instalam em objetos
igualmente
hierarquizados. Mas esse processo no tcnico; ele histrico
(SANTOS, 2004, p. 217 e 222).
Objetos, aes e sujeitos devem ser, hoje e cada vez mais,
eficazes, para as
compras e vendas, para a reproduo dos objetos, das aes e dos
sujeitos em seus
valores de troca. O uso apenas uma mediao cada vez mais curta,
cada vez mais
rpida entre os valores de troca dos objetos, das aes e dos
sujeitos, exercendo, por
isso, precisas funes predeterminadas. Da mesma forma, os
objetos, as aes e os
sujeitos, aqueles dotados de qualidade operacional superior,
chocam-se com os objetos,
as aes e os sujeitos no-hegemnicos. O choque se estabelece a
partir de uma
hierarquia cada vez mais acentuada entre objetos cada vez mais
novos, novssimos,
aes cada vez mais rpidas, aceleradssimas, e sujeitos cada vez
mais (des)conectados
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(cf. CANCLINI, 2009), como fluxos em rede, em contraposio a
objetos praticamente
parados, lentos, de aes para a reproduo simples, ainda no
passado, e de sujeitos
des-locados, quase sem lugar, porque imveis demais.
Esses dois espaos (muitas vezes podendo ser pensados a partir da
dicotomia
cidade/campo, mas nem sempre) praticamente so incomunicveis, ou,
de outra forma,
participam de uma intercomunicao hierarquizada, entre espaos que
comandam e
espaos que devem obedecer. No entanto, mesmo que a-comunicantes,
tais espaos
informam, mas sem, muitas vezes, a construo de um esforo de
compreenso. Um
espetculo se estabelece. Representaes e imagens dos espaos
hegemnicos se auto-
espetacularizam, enquanto representaes e imagens dos espaos
subalternos parecem
apenas ser sempre a ltima amostra dos ltimos resqucios da
barbrie. Cada conjunto
de representaes e de imagens representa e imagina a si e ao
outro, definindo rigorosa
e cabalmente o lugar de cada conjunto de objetos, de aes e de
sujeitos.
No entanto, seria demasiado simplista pensar na existncia de
espaos puros,
fechados ou isolados, em seus conjuntos de objetos, aes e
sujeitos. o caso, nesse
sentido, de pensar tambm a cidade e o campo como conceitos e
relaes hbridas, em
que objetos, aes e sujeitos se interpenetram sem,
necessariamente, o desmanche cabal
de um ou de outro espao. Como aponta Milton Santos (2004, p.
102) em reflexo sobre
a condio hbrida do espao:
Esses objetos [os mistos como um conjunto de objetos e de
normas,
em referncia a G. Balandier] no tm por si mesmos uma
histria,
nem uma geografia. Tomados isoladamente em sua realidade
corprea, aparecem como portadores de diversas histrias
individuais,
a comear pela histria de sua produo intelectual, fruto da
imaginao cientfica do laboratrio ou da imaginao intuitiva da
experincia. Mas sua existncia histrica depende de sua insero
numa srie de eventos uma ordem vertical e sua existncia
geogrfica dada pelas relaes sociais a que o objeto se subordina,
e
que determinam as relaes tcnicas ou de vizinhana mantidas
com
outros objetos uma ordem horizontal. Sua significao sempre
relativa.
As coisas se tornam objetos quando objetificados pela dialtica
entre histrias
individuais e histria total, isto , a partir das aes
temporais-espaciais (material e
imaterialmente produzidas) e dos sujeitos que os inventam,
animam, usam, imaginam,
fabulam, sonham, vivem. Contudo, marcados por relaes de poder,
por hegemonias e
contra-hegemonias, os objetos, as aes e os sujeitos sempre
superam uma condio
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neutra de objetos, aes e sujeitos em si e se instauram ou so
instaurados como
objetos, aes e sujeitos para si. Ou seja, toda existncia
geogrfica de objetos, aes e
sujeitos depende da insero em uma srie de eventos dada por
relaes sociais
subordinantes. por isso que objetos, aes e sujeitos tm sua
significao sempre
relativa.
2.2. Imagens cidade/campo
Como j destacado a partir de Milton Santos (2004, p. 217), cada
objeto
tambm localizado de forma adequada a que produza os resultados
que dele se
esperam. Cada objeto, com sua forma, desempenha uma funo como
parte de um
processo ao mesmo tempo estruturado e estruturante. Com aes, os
objetos, no modo
de produo capitalista, apenas tendem a ser levados a cumprir o
que deles se espera:
produzir e reproduzir relaes semelhana de tudo o que pode e deve
ser trocado em
sua forma de valor mercadoria-dinheiro, acumulativa e
ampliadamente. O objeto,
portanto, perde qualquer urea a no ser aquela que o institui e
constitui como
mercadoria, venda ou compra, em completo acordo condio de negcio
e muito
longe de uma contemplao que comunique, ou que, ao menos, se
disponha como
presena e abertura de comunicao a uma condio alternativa,
alteridade.
Nessa estrutura e nesse processo de hegemonia a cidade sempre
foi e continua
sendo o espao primordial do mercado. Nela, mais que nada se
cria, nada se perde,
tudo se transforma, tudo se vende e tudo se compra. As mdias e
as publicidades
acirram os nossos desejos com seus outdoors ou com suas
vitrines, e mesmo em casa a
televiso, e mais recentemente o computador, em conexes e redes
locais a globais,
tornam-se objetos de pura ao da funo de atiar o consumo.
Anunciam-se
mercadorias que cabem no bolso a mercadorias de cidades e regies
inteiras, como
celulares, Bariloches e as savanas africanas. O importante
comprar e ser feliz!
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Imagem 1 Placa publicitria da Imobiliria Terra Dourados (MS)
Jones Dari Goettert (2011 trabalho de campo)
A imagem 1 (como tambm as imagens 3, 8 e 9) um objeto ou um
conjunto,
mesmo que pequeno, de objetos (no caso, uma lata, tintas,
prendedores...). Como
objeto-imagem, aqui serve como ilustrao de publicidade de oferta
de uma mercadoria
(imveis) que pode ser comprada, vendida ou administrada. Um
objeto-imagem com
uma funo, podemos dizer a priori, tipicamente urbana, mesmo que
a funo compra,
venda e administrao de imveis tambm ocorra no campo. Presa
parede, muro ou
grade de frente de uma casa, de um prdio, ou em um poste em
frente a um terreno, no
importa, o objeto-placa publicitria deve atender a localizao de
forma adequada a
que produza os resultados que dela se esperam, quais sejam, a de
que sujeitos se
disponham a comprar, a vender ou a solicitar os servios de
administrao de imveis.
O chamamento central e primeiro no poderia ser mais explcito:
Procurando
Imvel? A Imobiliria Terra uma das aproximadamente trinta
empresas do ramo de
compra, venda e administrao de imveis de Dourados, a maioria
delas localizada
entre a rua Monte Alegre e avenida Marcelino Pires (sentido
norte-sul) e entre as ruas
Hayel Bon Faker e Firmino V. de Matos (sentido leste-oeste), em
setor de comrcio e de
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servios especializados central e nobre da cidade. No site da
empresa so
disponibilizadas informaes sobre a histria e a misso a que se
dispe cumprir:
Histria da empresa
Fundada em 1984, a Imobiliria Terra movida por dinamismo e
empreendedorismo [...] somos responsveis pelos
empreendimentos
que mais valorizam e embelezam a cidade [...] Sabemos que o
sucesso
resultado de muito trabalho [...] sempre motivados para
trabalhar em
harmonia. [...] A Terra Assessoria Imobiliria tem como misso
promover a melhor negociao atravs de um atendimento
personalizado, minimizando seus riscos e maximizando
investimentos.
[...] A regio do Mato Grosso do Sul cresceu e se modernizou
[...] O
nosso negocio [sic] de carter permanente e continuo [sic],
fundamentado na dimenso do Estado e na certeza de
desenvolvimento da regio Sul Matogrossence [sic]. [...] Seja
cliente
Imobiliria Terra e faa parte desta historia.
(http://www.imobiliariaterradourados.com.br/empresa.php - acessado
em
11/09/2012)
No mesmo site, em sua pgina de entrada, disponibilizado o acesso
ao Google
Maps com as localizaes de imveis (residenciais e comerciais)
para compra, venda e
administrao. Ou seja, instantaneamente visualizamos o imvel, seu
preo e,
principalmente, sua localizao, se em rea nobre e valorizada da
cidade ou em local
perifrico (no amplo sentido do termo), e ali, quase sempre, de
pouca valorizao
imobiliria.
Imagem 2 Recorte de Imveis no mapa da Imobiliria Terra
(http://www.imobiliariaterradourados.com.br/index.php - acessado
em 11/09/2012)
Dinamismo, empreendedorismo, valorizao, embelezamento, trabalho
em
harmonia, modernizao, transformaes e mudanas rpidas,
desenvolvimento,
investimento e colaborao so cones potentes a partir dos quais a
empresa Imobiliria
Terra se apresenta publicamente. A empresa, no entanto, mais que
inovar a partir de
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seu arsenal de signos do progresso e da modernidade, reproduz as
representaes e
imagens dominantes e hegemnicas em Dourados, de uma cidade e
municpio que se
pensa, se imagina e se vive, substancial e ideologicamente, como
expresso do
estribilho do Hino Municipal: Eis Dourados cintilante/De labor e
anseios mil/No futuro
confiante/Lindo Osis do Brasil./Eis Dourados cintilante/De labor
e anseios mil/Joia
brilhante do Brasil... (Um iderio, alis, bastante presente em
relao propaganda,
representaes e imagens das cidades mdias brasileiras, de
qualidade de vida e do
lcus, por excelncia, de moradia da classe mdia.)
De fato, com o crescimento urbano verificado nas ltimas dcadas,
em Dourados
tem se constatado tanto o aumento importante da populao como
tambm a acelerao
da valorizao imobiliria, desdobramento da articulao entre
proprietrios de terras
urbanas e rurais e de uma forte atuao do poder imobilirio em
aproximao com o
poder pblico municipal. Batizada, por vezes, de Cidade Educadora
e de Cidade
Universitria, Dourados vem apresentando especulaes
extraordinrias da terra
urbana, e representado como um dos municpios centrais do
agronegcio no Brasil, em
relao direta com a demanda e a valorizao das commodities
agrcolas, tambm os
preos das terras rurais tem se acelerado.
Nos ltimos anos, com momentos importantes de crescimento
econmico do
pas articulado ao boom imobilirio a partir de programas do
Governo Federal (polticas
de ampliao de emprstimos e prazos e reduo de juros para construo
ou aquisio
de imveis para amplos setores da classe mdia, e o projeto Minha
Casa, Minha Vida,
para atendimento demanda de setores de baixa renda, por
exemplo), o setor
imobilirio em Dourados cresceu vertiginosamente. Em alguns
setores da cidade o
aumento no preo dos imveis, nos ltimos seis anos, se aproximou
de quinhentos por
cento (no Parque Alvorada, considerado um bairro de classe mdia,
terrenos, por
exemplo, que em 2006 custavam vinte mil reais, atualmente so
negociados a cento e
vinte mil reais!). Alm de uma histrica demanda reprimida, a
criao da Universidade
Federal da Grande Dourados (2005) e a instalao de inmeras usinas
de etanol e acar
na regio, tambm tiveram papel importante para o crescimento e
valorizao
imobiliria, local e regionalmente. Por isso, os objetos-placa de
publicidade imobiliria
de compra, vende e administrao se imveis abundam nos mais
diferentes setores da
cidade, em qualquer lugar.
Mas eis que o objeto-placa da imagem 1 no estava frente de um
imvel para
compra, para venda ou para administrao. Como mostra a imagem 3,
o objeto-placa foi
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fixado sobre uma parece de casa pobre feita de madeira, pedaos
de compensados,
alicerce de tijolos nus, sem massa e sem reboco. Uma casa que,
obviamente, no est
nem ali para ser comprada, nem vendida e muito menos
administrada por uma empresa
imobiliria.
Imagem 3 Placa publicitria, parte de parede de barraco e parte
de carroa Dourados (MS)
Jones Dari Goettert (2011 trabalho de campo)
Os crescimentos urbanos, os boons imobilirios, os financiamentos
para
aquisio ou construo de imveis e as possibilidades de moradia em
Dourados so
seletivos, assim como o so os objetos (terrenos, casas,
apartamentos, prdios...), as
aes (compra, venda, locao, administrao, financiamentos...) e os
sujeitos. Os
objetos-placas de publicidade de compra, venda ou locao de
imveis tambm so
afixadas seletivamente.
De acordo com o site da Imobiliria Terra, os imveis disposio,
com
valores de aluguel entre 50 e 622 reais (que seria, entendemos,
a possibilidade de
cobrana de locao para uma casa construda com os materiais
presentes na imagem;
o preo mximo considerando o valor do salrio mnimo vigente), so
apenas cinco,
localizados um em rea central e quatro em reas mais perifrica da
cidade (de acordo
com imagem 4), e com imveis que apresentam caractersticas
diferentes dos da
imagem 3 (ver imagens 5 e 6).
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Imagem 4 Recorte de Imveis no mapa da Imobiliria Terra para
imveis com valor de aluguel entre 50 e 622 reais
(http://www.imobiliariaterradourados.com.br/index.php - acessado
em 11/09/2012)
Imagens 5 e 6 Fotos de casas para aluguel entre 50 e 622 reais
disponveis em site da Imobiliria Terra
(http://www.imobiliariaterradourados.com.br/index.php - acessado
em 11/09/2012)
Fica evidenciado que o objeto-placa de publicidade na casa
pobre, como objeto,
no est localizado de forma adequada a que produza os resultados
que dele se
esperam. Poderia servir, talvez, como parede para casa ou
barraco, de pobre e para
pobres: os objetos migram, mudam de funo e participam de outras
aes, com outros
sujeitos.
Junto com o boom imobilirio em Dourados nos ltimos anos, tambm
um
importante movimento de ocupaes urbanas, principalmente de
terrenos pblicos, foi
empreendido (o total de ocupaes, em 2010, chegava a 24, de
acordo com QUEIROZ,
2010). Uma das ocupaes ocorreu no Jardim dos Estados (bairro do
setor nordeste da
cidade), em terreno pblico anexo Escola Municipal Frei Eucrio
Schmitt. A
ocupao teve incio em 2005 de forma aleatria [...] e persistiu at
2011, quando os
ocupantes tiveram o direito casa prpria assegurado com o
processo de remoo para
os conjuntos habitacionais populares Estrela Tovy I e II, no
setor sudoeste da cidade
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(cf. ANDRADE, 2011, p. 16). As paredes dos barracos da ocupao no
diferiam muito
daquela apresentado na imagem 3.
Imagem 7 Recorte de interior de barraco de ocupao no Jardim dos
Estados Dourados (MS)
Adriana Brito de Andrade (2010 trabalho de campo)
Assim, os objetos, ao mudarem de lugar, tm suas funes
redefinidas por outras
aes, por outros sujeitos. Vanda foi uma das moradoras da ocupao
no Jardim dos
Estados; ela viu Dourados crescer, em um processo que, mesmo com
crescimento, a
alijou da possibilidade de um imvel, de um terreno, de uma casa,
de uma moradia:
A gente era pobre, no tinha recurso pra nada, quando a gente
mudou
pra Dourados aqui no tinha quase nada, s a [avenida] Marcelino e
a
[avenida] Joaquim Teixeira Alves, com algumas casas s, era tudo
de
cho, eu catava guavira com a minha me onde a [avenida]
Weimar
Gonalves Torres, era s mato (apud ANDRADE, 2011, p. 99).
A ocupao, inicialmente formada por vinte famlias (2005), foi
gradualmente
perdendo ocupantes, chegando, ao final (2011), com dez famlias.
Ali se constituiu uma
ocupao de pobres em bairro de pobre. A maioria dos ocupantes era
migrante ou
descendente de migrantes: 90% de fora de Dourados, sendo mais da
metade deles
oriundos de outros estados brasileiros (do Nordeste, do Sudeste
e do Sul). Todas as
famlias ou ocupantes apresentavam, pelo menos ascendentemente,
uma condio
escolar mnima, mas tambm uma relao grande com a terra, tendo
sido trabalhadores
rurais como posseiros, pees ou mesmo pequenos proprietrios (cf.
ANDRADE, 2011,
p. 89 e seguintes).
-
14
Mas, novamente, eis que o objeto-placa da imagem 1 no estava nem
frente de
um imvel para compra, venda ou administrao, e nem frente de um
barraco de
ocupao.
Imagem 8 Placa publicitria, barraco, carroa e roados Dourados
(MS)
Jones Dari Goettert (2011 trabalho de campo)
O objeto-placa de publicidade Procurando Imvel?, da empresa
Imobiliria
Terra, agora, deslocado de imveis para compra, venda ou
administrao, para a
no-cidade. O barraco-casa est no campo; o campo, ou parte dele.
Mesmo que a
imagem no permita observar com nitidez, possvel perceber
plantaes tanto
esquerda quanto direita, ao fundo do barraco-casa. esquerda, um
bananal; direita,
um mandiocal. O objeto-placa publicitria migra da cidade para o
campo, talvez levada
pela carroa...
Em um dos principais centros do agronegcio brasileiro,
surpreendente, por
exemplo, que o nmero de carroas extrapole mais de mil unidades.
Misturadas a
veculos bem mais rpidos, as carroas invadem as ruas da cidade
como meio de
transporte para mercadorias e pessoas tanto da cidade como do
campo, como veculo
para pequenos fretes. Mas, tambm, as carroas tem papel
importante no cotidiano de
indgenas da Reserva Indgena de Dourados, na Reserva e para a
cidade, em inmeros
trnsitos e atividades, como aquela, muito frequente, de venda de
produtos agrcolas de
porta em porta, como mandioca e milho, ou para a passagem (seno
diria, pelo menos
semanal) pedindo, especialmente com crianas que distncia so
acompanhadas por
pessoas mais velhas (mes ou irms, geralmente), tem uma coisa pra
d? O
expressivo nmero de carroas em Dourados ensejou, inclusive, a
criao da
-
15
Associao dos Carroceiros, que tem participado de projetos
importantes sobre trnsito
e transporte com secretarias municipais, por exemplo. A
existncia e persistncia de
carroas e carroceiros em Dourados tem ensejado a busca de
compreenso, tambm, da
dinmica do circuito inferior da economia urbana com a produo de
tempos e
espaos lentos (cf. SILVA, 2009). Nesse nterim, tambm necessrio
ultrapassar a
ideia de que h uma relao direta entre circuito inferior da
economia e espaos
lentos, pois esse circuito tanto complementar como por vezes
central ao
desenvolvimento do prprio circuito superior da economia, em uma
verdadeira
dialtica entre ambos em nvel local (cf. SANTOS, 2004b, p.
360).
No entanto, em observao anterior ao site da Imobiliria Terra, j
havamos
constatado a possibilidade de negociaes de imveis rurais (de
acordo com
disponibilizao no prprio site). Mas a consulta, agora,
mostrou-se infrutfera: sobre
imveis rurais casa/aluguel, com valor de locao entre 50 e 622
reais (repetindo os
valores para a busca de imveis urbanos), o Resultado da busca
foi a informao de
que No h imvel para a consulta fornecida.
O objeto-placa publicitria imobiliria ainda mais, por isso, um
objeto des-
locado. Ali, no campo, sem funo pelo menos quela originariamente
definida, ou
seja, anunciar um imvel para compra, venda e administrao.
Des-locado de seu
lugar, tem deslocada a sua funo, e as aes e os sujeitos em torno
dela tendem a ser
completamente estranhos intencionalidade primeira, condicionada
para a
comercializao e administrao de imveis. De um movimento estranho,
ento,
participou o objeto-placa, constituindo-se, ali, em elemento de
anti-funo, de anti-aco
e, no extremo, de contra-processo e contra-estrutura
socioespacial hegemnica. Ou seja,
o objeto-placa se perde como forma e funo e como parte de um
processo de uma
estrutura socioespacial que lhe daria guarida.
Mas, vamos, ento, para a ltima imagem da qual o objeto-placa
participa.
-
16
Imagem 9 Placa publicitria, barraco, carroa, roados e
entrada/sada de Casa de Reza Reserva Indgena de Dourados
Jones Dari Goettert (2011 trabalho de campo)
O objeto-placa, agora mais do que nunca, parece,
definitivamente, no estar
localizado de forma adequada a que produza os resultados que
dele se esperam! Nem
em imvel urbano para compra, venda ou administrao; nem em
barraco como resto
encontrado para tapar buracos da parede meia-boca; nem em campo
qualquer, nem do
agronegcio e nem campons... O objeto-placa se mostra inteiro,
agora, em seu novo
arranjo que tanto espacial, temporal, econmico, poltico, social,
cultural, simblico,
mas tambm religioso. De frente Casa de Reza Kaiowa, do rezador
Agemiro e da
rezadora Antnia, na Reserva Indgena de Dourados, o objeto-placa
de publicidade vira
apenas parte de uma parede de casa indgena, um objeto
completamente ressignificado e
em outro modo de existncia. A cidade invade o campo no como
objeto urbano
claro, mas como resto perdido por entre lixo e entulhos em
caambas e terrenos baldios
da cidade. Agora, ali, em terra indgena, sua materialidade e
simbolismo apontam
apenas a persistncia de uma forma des-formada, porque destituda
de seus signos
mais caros o de ensejar a compra, a venda e a administrao de
imveis, que so,
sempre, aes de negociao da terra. E negociar a terra se
configura, tambm ali, para
os Kaiowa (mas tambm Guarani), a negociao mais prfida, mais
brutal, mais
violenta: a negociao da prpria existncia, da prpria vida.
Como acentuou Juliana Grasili Bueno Mota (2011, p. 362), em
Territrios e
territorialidades Guarani e Kaiowa: da territorializao precria
da Reserva Indgena
de Dourados multiterritorialidade:
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17
[Na] relao com os lugares, as gentes [Guarani e Kaiowa] no
se
fazem sem as referncias que os possibilitam explicar quem so e
o
porqu esto no mundo. Os laos com o passado se fazem
presentes
nestas representaes, fundamentalmente, porque pelo passado
que
h, tambm, a garantia de futuro. Os lugares-territrios vividos
pelos
Guarani e Kaiowa no esto fora da procura do Teko Por, mas
esto
imbricados nela, recriando no presente formas espaciais que os
ligam
ao passado, seja na condio de reserva e/ou em outras
modalidades
territoriais, muitas vezes colocando a condio de reserva como
o
modo mais cruel de ser e estar no mundo. Assim, muitas
famlias
buscaram no viver nas reservas criadas pelo SPI, e ainda,
muitas
delas esto lutando, seja a partir da reserva, fora da reserva,
entre a
reserva e outras modalidades territoriais, pelo retorno aos
territrios
tradicionalmente ocupados.
O objeto-placa publicitria da cidade absorvido por um campo
distante e
destoante cosmolgico, cosmogrfico e cosmofonicamente.
Praticamente grudada na
cidade de Dourados, com seus aproximadamente quinze mil indgenas
(Guarani,
Kaiowa e Terena) espalhados em no mais de 3.600 hectares, a
Reserva, alm de todos
os objetos originrios de suas culturas (naturais e artificiais)
participantes, mesmo que
em condio precria, de aes orgnicas entre Teko e Tekoha (cultura
e terra), ela
mesma um espao denso e tenso de trocas com a cidade. No seu
interior, entretanto,
tudo tende a participar como produo no-monocultural, como a Casa
de Reza, onde o
alimento espiritual e muitas vezes tem o embalo da chicha feita
de mandioca, de um
mandiocal que logo ali (produes, especialmente a material, que j
seriam suficientes
para colocar em xeque a construo monocultural branca de Produo
Sim.
Demarcao No).
No sistema de objetos disposto na imagem, a Casa de Reza, a
carroa, a casa
pequena e pobre, os cultivos de mandioca e banana e a terra
vermelha entornam o
objeto-placa publicitria a tal ponto de faz-lo perder
completamente o exerccio de uma
precisa funo predeterminada (coincidentemente, no h nenhum imvel
no site da
imobiliria, de qualquer tipo, para compra, venda ou administrao
na Reserva Indgena
de Dourados). Com isso, ao mesmo tempo, a ao pragmtica
instituidora do objeto-
placa esvanece, pois que sucumbido, no extremo, apenas como
expresso decoradora.
Se, como j apontado por Milton Santos, os objetos preexistentes
veem-se envelhecidos
pela apario dos objetos tecnicamente mais avanados, dotados de
qualidade
operacional superior, ali, na Reserva, ocorre justamente o
contrrio: o objeto-placa v-
se novssimo demais pela arrumao de objetos tecnicamente mais
culturalizados,
dotados de qualidade orgnica superior. Desse modo, sem dvida, a
tenso se levanta
-
18
entre aes hegemnicas e aes no-hegemnicas, mas, agora, em espao
de
subalternidades e dos subalternos.
3. Imagens que mostram, imagens que escondem (consideraes
finais)
Quatro imagens. Uma de dentro da outra...
Imagem 10 Ilustrao dos recortes dispostos em imagens anteriores
a partir de Casa de Reza Kaiowa Reserva Indgena de Dourados
Jones Dari Goettert (2011 trabalho de campo)
Imagens podem iludir, mas tambm podem desiludir. Podem, sim,
fazer ruir as
iluses hegemnicas, como aquela em Dourados que admite ser ali um
espao de pleno
progresso, desenvolvimento, harmonia e de oportunidades para
todos4 pois que,
tambm ali, por exemplo, nem todos podem comprar, vender ou
administrar imveis.
Imagens fazem silenciar, mas tambm fazem gritar um grito de
contestao. Aqui, por
exemplo, a imagem primeira (a do objeto-placa puro) se prope
rapidez do olhar,
interrogando o transeunte (Procurando Imvel?) aberta e
descaradamente; qual a
resposta? preciso responder sim, no, no sei... Nas imagens
segunda e terceira
a do objeto-placa grudado na parede de tbuas pobres e a do
objeto-placa j quase
indiferente casa pobre e roados em volta , o lugar de perguntar
se inverte: u, como
4 Ideologia preconizada, por exemplo, pela ideia de que as
cidades mdias so terras de oportunidades e
de melhor qualidade de vida, que abrigariam um nmero crescente
de profissionais e empresrios do setor de comrcio e servios,
principalmente os especializados, mas que, por outro lado, aqueles
que no
se beneficiam de tais condies so considerados incapazes ou mesmo
culpados pela prpria condio em
que se encontram, devendo, portanto, serem excludos dos
benefcios do processo de urbanizao que
essas cidades ofereceriam (cf. VIEIRA, 2009).
-
19
esta placa foi parar a? J na imagem quarta, mais que perguntas,
se revela o espanto:
nossa, uma Casa de Reza, uma terra indgena. Silncio...
As imagens, como aponta Ral Antelo (2004, p. 9), nunca so um
dado natural,
mas carregadas de histria tambm diramos de geografia e, por
isso, uma
construo discursiva que obedece a duas condies de possibilidade:
a repetio e o
corte:
Enquanto ativao de um procedimento de montagem, toda imagem
um retorno, mas ela j no assinala o retorno do idntico. Aquilo
que
retorna na imagem a possibilidade do passado. Como
procedimento
de suspenso ou corte, a imagem aproxima-se, ento, da poesia, e
no
da prosa, na medida em que at mesmo o poema poderia ser
reduzido
ao simples efeito do enjambement [encavalgamento, ou ruptura de
uma unidade sinttica]. Retorno e corte alimentam, portanto, uma
certa indecibilidade ou indiferena, uma impossibilidade de
discernimento entre julgamento verdadeiro e falso, que
potencializa,
entretanto, o artifcio da falsidade como a nica via possvel de
acesso
estrutura ficcional da verdade (ANTELO, 2004, p. 9).
As imagens so invenes projetadas como repetio e corte. Repetimos
e
cortamos e, nesse movimento, imagens mostram e ocultam
discursos, mas tambm
prticas, tornando todo discurso uma prtica e toda prtica um
discurso. Toda imagem
diz e no diz: a imagem objeto-placa diz que compra, que vende e
que administra, mas
no diz que nem todos podem comprar ou vender o que anuncia; e
assim tambm todas
as outras imagens em dizeres e no dizeres que mostram e que
ocultam. Em cada caso,
as imagens impingem sentidos de orientao e de localizao, isto ,
sentidos de espao
e tambm de tempo. Ordens e desordens nelas se manifestam a
depender de como so
construdas, onde esto dispostas e por quem so sentidas,
repetidas e cortadas.
Sobretudo, como aponta Cludio Benito O. Ferraz (2012, p. 6):
[as] imagens so os elementos, objetos, relaes de distncia e
localizao, vazios e cheios, movimentos, fluxos e fixos, presenas
e
ausncias, que os sentidos perceptivos, principalmente o olhar,
so
agenciados pela capacidade humana de experimentar, pensar e
comunicar a paisagem observada. So os fenmenos, coisas, objetos
e
relaes que interferem no imaginrio e na formao do homem.
As imagens, na sociedade moderno-contempornea, tem sido de tal
forma
construdas e institudas ao ponto de se tornarem, como que
autonomamente, a prpria
realidade. Em nossa sociedade do espetculo (cf. DEBORD, 1997) a
imagem
-
20
principalmente aquilo que se mostra para o consumo, mas tambm,
como aponta Guy
Debord, o que se mantm por trs do espetculo. Por trs do
espetculo ilustrado pelo
objeto-placa publicidade de compra, venda e administrao de
imveis, aqui
reveladora a ocultao das aes e dos sujeitos completamente
ausentes dos
mecanismos de compra, venda e administrao, fundamentalmente, da
prpria terra.
Mas possvel trazer tona ainda trs imagens de certa forma
correlatas s
anteriores. As duas primeiras foram produzidas prximo aos
objetos placa publicitria,
parede de tbuas, casa com roado e Casa de Reza e adjacncias.
Imagens de prticas
manuais inversamente proporcionais quelas de comprar, vender e
comercializar. Em
uma (imagem 11), as mos de rezadora Antonia pintam de urucum a
cabaa pequena;
um objeto sobre outro objeto, ambos sendo incorporados relao
orgnica, mtica e
mitolgica Kaiowa como se, sendo mais vermelhas as coisas, mais
prximas da terra.
Em outra (imagem 12), mos da me indgena ajudando na pintura da
filha pelo mesmo
processo de passagem do vermelho da semente para a pela humana.
Na primeira
imagem o objeto cabaa-colorao-penas (agora, marac) incorporado
como
extenso de uma prtica e espiritualidade humanas; e, na segunda,
a condio humana
misturada essncia natural, da terra.
Imagem 11 Mulher pinta cabaa com tinta de urucum na Reserva
Indgena de Dourados
Jones Dari Goettert (2011 trabalho de campo)
-
21
Imagem 12 Me auxilia filha em pinturas no corpo na Reserva
Indgena de Dourados
Jones Dari Goettert (2011 trabalho de campo)
E a terceira imagem.
Imagem 12 Ps de menino indgena durante desfile de 7 de setembro
na avenida Marcelino Pires centro de Dourados
Jones Dari Goettert (2012)
O indgena deixa a Reserva e se mostra na cidade. dia festivo:
190 anos de
Independncia do Brasil. Tudo e todos, no Brasil varonil,
independentes! O menino
indgena transita da Reserva e pisa e anda no objeto-asfalto com
seu objeto-sandlias. A
pintura o trao destoante: o corpo pintado, o corpo marcado.
Todo corpo humano tambm sua pele, esta no uma aparncia que
oculta a verdade essencial de seu ser profundo, pois seu ser
se
manifesta pela forma com que os outros o percebem, e isso se d
pela
pele, pela superfcie, a qual a manifestao de toda a
complexidade
-
22
do seu ser. Saber olhar a pele saber ler o mundo em seu
acontecer
diverso. A linguagem artstica da pintura apresenta o mundo por
meio
das formas ali manifestadas, ou seja, a superfcie das coisas e
do
mundo em sua diversidade perceptiva. Contudo, o que ali se
apresenta
no uma mentira, mas depende da capacidade de quem vai ler e
projetar significados, e elaborar outras possibilidades de
sentidos que
daquela imagem derivam para alm das certezas (FERRAZ, 2012, p.
4).
Na passagem do ndio menino junto com outros tantos seus, com
seus objetos
que por vezes se aproximavam da tradio-terra mas em outras do
mundo mesmo do
consumo (como outro menino indgena que, tambm pintado, levava
consigo uma
guitarra parecendo no fazer sentido aos nossos sentidos
dominantes), foi possvel
ouvir, ali ao lado, uma conversa ao mesmo tempo singela e
estranha entre filha
pequena e pai brancos, espectadores de todo aquele
espetculo:
Pai, so esses ndios que invadem as terras aqui em Dourados? No,
minha filha, nem todos os ndios so malvados!
Uma pergunta; uma exclamao. Um breve dilogo entre iguais se
interpondo
como dilogo impossvel com a diferena, com a possibilidade de
hibridizao... Os
sujeitos ndios da Reserva so sujeitos-sujeitados na cidade. Todo
o campo, fora dos
marcos do agronegcio, tambm no-campo, mas terra e relaes
passveis de
extermnio, pois que, tambm, espao de malvados [na perseverana de
dicotomias
em terras (sul)mato-grossenses como aquelas entre litoral e
serto, entre civilizao e
barbrie em consonncia com as anlises de GALLETI, 1995; 2000].
Mas, ainda,
mais que sujeitos-sujeitados, na cidade os indgenas talvez
percam completamente a
condio de sujeitos para ali pairarem apenas como objetos
completamente estranhos,
como estranhamente invadem nossas terras, e, com isso, abrindo
caminho para a
destruio da harmonia do presente e do progresso mais intenso no
futuro (o reforo das
dicotomias).
Sujeitos e aes indgenas, objetivados e participantes da condio
dicotmica
ns/eles, perdem a condio de humanidade outra, de outros saberes
e de outras
epistemologias (cf. LEFF, 2001; e SANTOS, 2010). O campo
reserva-aldeia-cidade
(hibridizante) alado condio irreconcilivel com a lgica hegemnica
e
dominante (dicotomizante) do urbano e seu correlato agrcola, o
agronegcio. Em
espaos praticamente desconexos (a no ser, por exemplo, aquele da
sujeio indgena
para o corte de cana em usinas de etanol e acar), os tempos
tambm se encontram em
-
23
oposio profunda. Enquanto o espao urbano e do agronegcio miram
pelo farol do
futuro esmagando o passado (a dicotomia temporal), o espao
campo-indgena resiste
para um futuro que passa necessariamente pelo passado (a
hibridizao no tempo)
[como que imitando, mesmo sem o saber, a necessidade de renovao
da cincia
geogrfica a partir de seus clssicos, como apontado por Ruy
Moreira (2006) com A
volta para o futuro].
O presente-passado-futuro indgena no Mato Grosso Sul, no
entanto, no uma
ao terica, mas uma resistncia em ao prtica. Os movimentos de
ocupao de
territrios tradicionais, principalmente pelas etnias Guarani e
Kaiowa, tem aprofundado
as tenses entre dois modos de pensar, imaginar e viver o mundo
(ou, de um lado, a
lgica do comprar, vender e administrar e, de outro, da relao
orgnica entre terra e
corpo, entre terra e gente). Por isso, preciso e urgente que
toda imagem dominante e
hegemnica seja pronta e duramente desconstruda, desde aquelas
que se mostram em
objetos-placas publicitrias s imagens mentais construdas desde a
infncia,
transformando sujeitos em meros objetos de espreita e dio
[semelhantemente ao
constatado por Frantz Fanon (2008), de como crianas brancas mas
tambm negras
so, desde pequenas, iniciadas em representaes e imagens
depreciativas do negro].
Pois que, sem esse enfrentamento, estaremos cada vez mais
distantes de novas
comunidades que vem, hbridas, daquelas que independem das
identidades apriorsticas
branca, indgena ou negra, dentre tantas outras, para a construo
de relaes
efetivamente livres e autnomas (cf. AGAMBEN, 1993). E de nada
adianta que o
objeto-placa publicitria seja de uma empresa que tenha em sua
prpria denominao a
palavra terra (Imobiliria Terra), se a terra, para ela, apenas
objeto de compra,
venda e administrao, em contradio extrema condio da terra
Guarani e Kaiowa,
uma condio de relaes orgnicas entre objetos naturais e
artificiais, entre vida e
morte, entre presente, passado e futuro. Ou seja, objetos-placa
e objetos-mos e
objetos-ps expressam a terra, mas, em um caso, uma terra de
negcio, e, em outro,
uma terra (de uma condio de intermezzo entre campo e cidade)
como condio hbrida
no apenas da reproduo da vida em si, mas sim de toda uma
existncia Guarani e
Kaiowa.
-
24
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