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Rouanet, Sergio Paulo, Iluminismo ou barbrie , in Mal estar na
modernidade, S. Paulo, Cia das Letras,1993, pp 9-45.
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I
ILUMINISMO OU BARBRIE
A CRISE DA CIVILIZAO MODERNA
Todos dizem que a modernidade est em crise. um lugar-comum, mas
como outros lugares-comuns este pode ser at verdadeiro, desde que
se entenda bem o alcance do diagnstico. O que existe atrs da crise
da modernidade. uma crise de civilizao. O que est em crise o
projeto moderno de civilizao, elaborado pela Ilustrao europia a
partir de motivos da cultura judeo-clssica-crist e aprofundado nos
dois sculos subseqentes por movimentos como o liberal-capitalismo e
o socialismo.
O projeto civilizatrio da modernidade tem como ingredientes
principais os conceitos de universalidade, individualidade e
autonomia. A universalidade significa que ele visa todos os seres
humanos, independentemente de barreiras nacionais, tnicas ou
culturais. A individualidade significa que esses seres humanos so
considerados como pessoas concretas e no como integrantes de uma
coletividade e que se atribui valor tico positivo sua crescente
individualizao. A autonomia significa que esses seres humanos
individualizados so aptos a pensarem por si mesmos, sem a tutela da
religio ou da ideologia, a agirem no espao pblico e a adquirirem
pelo seu trabalho os bens e servios necessrios sobrevivncia
material.
Ora, esse projeto civilizatrio est fazendo gua por todas as
juntas. O universalismo est sendo sabotado por uma proliferao de
particularismos - nacionais,
culturais, raciais, religiosos. Os nacionalismos mais virulentos
despedaam antigos imprios e inspiram atrocidades de dar inveja a
Gngis Khan. O racismo e a xenofobia saem do esgoto e ganham
eleies.
A individualidade submerge cada vez mais no anonimato do
conformismo e da sociedade de consumo: no se trata tanto de pensar
os pensamentos que todos pensam, mas de comprar os videocassetes
que todos compram, nos avies charter em que todos voam para
Miami.
9 A autonomia intelectual, baseada na viso secular do mundo, est
sendo explodida pelo
reencantamento do mundo, que repe os duendes em circulao,
organiza congressos de bruxas, associa-se ao guia Michelin para
facilitar peregrinaes esotricas a Santiago de Compostella e fornece
horscopos eletrnicos a texanos domiciliados no Tibet. A autonomia
poltica negada por ditaduras ou transformada numa coreografia
eleitoral encenada de quatro em quatro anos. A autonomia econmica
uma mentira sdica para os trs teros do gnero humano que vivem em
condies de pobreza absoluta.
Marx disse que a Alemanha tinha vivido todas as contra-revolues
da Europa e nenhuma de suas revolues. Podemos adaptar essa frase ao
Brasil: estamos vivendo a revolta antimoderna que hoje grassa no
mundo sem jamais termos vivido a modernidade.
O universalismo, entre ns, sistematicamente repudiado por um
nacionalismo cultural que parece ter sete flegos. Mal uma de suas
variantes desaparece, outra toma o seu lugar. Foi assim que o
nativismo setecentista foi substitudo pelo indigenismo romntico,
este pelo naturalismo de Silvio Romero, este pelo jacobinismo
florianista, este pelo movimento modernista, este pelo
nacional-autoritarismo do Estado Novo, este pelo ISEB, este pelo
CPC da UNE, este pelo chauvinismo do regime militar e este pela
broa de milho. Se existe tema consensual no Brasil certamente o de
que temos que desenvolver nossa prpria cultura e rejeitar modelos
culturais estrangeiros. A bem da verdade, uma certa esquerda
intelectual j est mudando de discurso, talvez por se dar conta da
origem conservadora e do funcionamento fascistizante do topos da
autenticidade nacional. Este, no entanto, continua vivssimo como
atitude social, e h muito j invadiu o pas, entrando nas assemblias
de estudantes, nos sindicatos de dentistas, nas academias de
musculao, e como verdadeiro arrasto ideolgico, nas praias da Zona
Sul carioca.
A individualidade tambm no desperta entusiasmo. Em vez disso, h
por lado um hiperindividualismo exasperado, mistura de lei de
Gerson e de consumismo de Zona Franca. E, por outro lado, uma busca
reverente de razes, uma confusa tentativa de recriar identidades
afro-baianas, uma angstia diante da individualizao e uma
necessidade de remergulhar em totalidades mais ou menos tribais.
Nos dois casos, h uma nostalgia da condio paradisaca, estado
adamtico em que o homem aderia ao todo. Onde fica esse paraso? Para
os hebreus, o den ficava em algum lugar entre o Sinai e o Eufrates.
A geografia do antipersonalismo brasileiro menos prestigiosa. Para
o brasileiro em busca de agasalho comunitrio, o paraso fica entre
Salvador e Porto Seguro. J para o intrpido comprador de hardware
eletrnico, ele se localiza no estado da Flrida, em algum ponto
entre Miami e Orlando.
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Rouanet, Sergio Paulo, Iluminismo ou barbrie , in Mal estar na
modernidade, S. Paulo, Cia das Letras,1993, pp 9-45.
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A razo secular da Ilustrao outro valor em baixa. Mais que em
outros pases, est em marcha entre ns um grande projeto de
re-sacralizao do mundo. o que se nota no culto das pirmides de
cristal, na seriedade com que se consultam astrlogos e videntes, e
na mitologizao da psicanlise, que oscila entre os arqutipos de Jung
e a reencarnao. Essas atitudes so compatveis com posies polticas de
esquerda, o que uma homenagem nossa flexibilidade intelectual.
Conheci um antigo guerrilheiro que descobriu, numa sesso de anlise,
ser a reencarnao de Ramss, o Grande. Um amigo petista consultou o I
Ching para saber se Suplicy ia ganhar em So Paulo, e pensou
seriamente em fundar dentro do Partido uma nova faco, denominada
Travessia Esotrica. Os sincretismos no so raros na histria das
idias. No incio do sculo, por exemplo, alguns intelectuais
vienenses tentaram fundir Marx com Kant. Era o austromarxismo. No
Brasil, antevejo uma fuso de Marx com a astrologia: o
astromarxismo.
A experincia recente de mais de vinte anos de ditadura militar
tem impedido at agora uma desiluso com as instituies democrticas.
Mas a politizao no o forte das geraes mais jovens. H um certo risco
de carnavalizao da poltica: uma festa em que alguns adolescentes
saem periodicamente s ruas num simpaticssimo protesto contra a
corrupo e as altas mensalidades escolares, e, no intervalo, a
letargia. preciso convir que essa atitude aptica se justifica pela
forma de funcionamento entre ns da rotina democrtica. No h como
vibrar com entusiasmo cvico quando se vem as disputas parlamentares
por verbas e cargos pblicos. Quando a controvrsia entre o
parlamentarismo e o presidencialismo con-duzida como se fosse a
competio entre dois detergentes, prefervel escolher um produto
menos nocivo ao meio ambiente - por exemplo, a cerveja, tomando
partido, com um chope, na guerra entre a Brahma e a Antarctica.
Enfim, h uma grande descrena com relao ao sistema econmico. O
capitalismo vivido como gerador de desemprego e de explorao, o
socialismo fracassou em suas promessas de eliminar a injustia
social e de promover a abundncia, e ambos se revelaram
ecologicamente predatrios.
Em suma, no Brasil e no mundo, o projeto civilizatrio da
modernidade entrou em colapso. No se trata de uma transgresso na
prtica de princpios aceitos em teoria, pois nesse caso no haveria
crise de civilizao. Trata-se de uma rejeio dos prprios princpios,
de uma recusa dos valores civilizatrios propostos pela modernidade.
Como a civilizao que tnhamos perdeu sua vigncia e como nenhum outro
projeto de civilizao aponta no horizonte, estamos vivendo,
literalmente, num vcuo civilizatrio. H um nome para isso: barbrie.
Pois o brbaro, sem nenhum ju~
11 zo de valor, no sentido mais neutro e mais rigoroso, aquele
que vive fora da civilizao.
Diante disso, h trs reaes possveis. Podemos deixar em paz os
brbaros, sem infermizar-lhes a existncia com valores civilizados.
Podemos partir para um modelo civilizatrio antimoderno, que
represente em tudo a anttese do projeto da modernidade. E podemos
repensar a modernidade, em busca de uma alternativa neomoderna.
No faltaro partidrios da primeira soluo. Hoje em dia a barbrie
no assusta mais. Talvez ainda existam alguns nonagenrios dispostos
a morrer em defesa da "deusa serena, serena forma", contra os
vndalos e visigodos do verso livre. Implicncias de velho
parnasiano. No excluo sequer que no fundo de alguma biblioteca
semi-roda pelas traas algum professor de portugus continue
babujando insultos contra os barbarismos lingsticos. Coisas de
gramtico. Salvo essas hostilidades extravagantes, os brbaros em
geral tm boa imagem.
Verdade que hoje em dia os que se vem e so vistos como brbaros
no vestem mais peles de urso e em vez de brandirem lanas manejam o
violo, fazendo amor em vez de guerra. Alm disso, h diferenas
menores - os hbitos alimentares, por exemplo. Os brbaros de hoje so
vegetarianos e gostam mais da cozinha macrobitica que de javalis.
No importa. O que conta a atitude contracultural. Obelix no
respeitava as normas de boas maneiras de Petrnio e normalmente os
brbaros brasileiros no circulam de black tie nas colunas sociais.
Comum aos brbaros antigos e modernos uma ignorncia robusta,
saudvel, e quase diria metdica. Nossos brbaros so to incapazes de
citar o ttulo de um romance de Stendhal como um frgio do tempo de
Augusto de declamar uma ode de Catulo.
No, a barbrie no amedronta mais. Com isso, o ttulo deste ensaio
(aluso ao grupo Socialismo ou Barbrie, reunido nos ps-guerra em
torno de intelectuais como Castoriadis e Claude Lefort) perde
grande parte do seu poder de fogo. Sem o Iluminismo at possvel que
tenhamos mesmo a barbrie - e da? Na pior das hipteses, iremos todos
para Porto Seguro e dormiremos na praia depois de uma bebedeira de
cauim.
Mas espero que o ttulo venha a exercer algum impacto mobilizador
se refletirmos sobre a natureza da barbrie que efetivamente nos
ameaa. Ela no amvel. Os verdadeiros brbaros retalham a Iugoslvia em
nome da nao e assassinam milhares de homens, mulheres e crianas. Em
defesa do povo matam de fome na Somlia uma populao inteira. Para
maior glria do Isl condenam morte um
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Rouanet, Sergio Paulo, Iluminismo ou barbrie , in Mal estar na
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escritor sacrlego. Invocando Brama arrasam mesquitas e trucidam
fiis. Na Alemanha, vo buscar obsesses imundas nas cloacas do
inconsciente coletivo: estaria novamente no cio a cadela que pariu
Hitler? Eles empunham na Frana o pavilho
12 de uma xenofobia imemorial: estariam de volta os fuzilados de
Vichy? Os verdadeiros brbaros so patriotas bascos, irlandeses e
bretes. Como distinguir os mais patriotas? Pelo poder explosivo de
suas bombas. No Brasil, crianas so sacrificadas por bruxos
profissionais, em rituais de magia negra, e por justiceiros
profissionais, na Baixada Fluminense. Empresrios yuppies jogam
bzios, pagam comisses a corretores de verbas pblicas e financiam
grupos de extermnio. Em suma, no h muita justificativa para
idealizar a barbrie. Ao que tudo indica, ela no muito mais
aconchegante hoje que no tempo de tila, o Flagelo de Deus.
Eis os brbaros de carne e osso. Os que se autodesignam assim no
so brbaros, e sim neo-rousseaustas cujo nico delito grave nunca
terem ouvido falar em Rousseau. So pastores arcdicos, Phyllis e
Ttiros que sem saberem disso migraram diretamente dos bosques de
Tecrito e Virglio - "formosam resonare doces Amaryllida silvas'' -
para a Floresta da Tijuca. No so de todo inocentes, porque
partilham com os brbaros autnticos algumas caractersticas
perigosas, como o desprezo pela razo. Nem so muito ajuizados,
porque brincar com uma barbrie mtica quando uma barbrie real est
rondando s nossas portas levar longe demais o mecanismo de defesa
que os psicanalistas chamam de identificao com o agressor. Mas, ao
contrrio dos brbaros genunos, so adeptos sinceros da paz e da
justia, e portanto so aliados potenciais na luta contra a barbrie.
Vale dizer que so os principais interessados na gestao de um
projeto civilizatrio que incorpore aqueles valores.
O segundo caminho seria lutar por um projeto antimoderno de
civilizao. Ele seria em tudo a anttese do projeto moderno: o
particularismo em vez do universalismo, o holismo em vez da
individualidade, a religio em vez do desencantamento, a autoridade
em vez da liberdade, e a estratificao em vez da mobilidade s cio.
Em parte, esse projeto j est sendo proposto por uma aliana esdrxula
de conservadores polticos, fundamentalistas religiosos e radicais
ps-modernos. Como um programa desse tipo no fundo duplicaria
tendncias j presentes na realidade, canonizando como valor o que j
existe como fato, no parece que essa nova civilizao contribusse
muito para abolir a barbrie.
Resta o projeto de uma civilizao neomoderna, capaz de manter o
que existe de positivo na modernidade, corrigindo suas patologias.
Esse projeto corresponde ao que chamo de Iluminismo. O Iluminismo
um ens rationis, no uma poca ou um movimento. Por isso sempre o
distingui da Ilustrao, que designa, esta sim, um momento na histria
cultural do Ocidente. Enquanto construo, o Iluminismo tem uma
existncia meramente conceitual: a destilao terica da corrente de
idias que floresceu no sculo XVIII em torno de filsofos
enciclopedistas como Voltaire e Diderot, e de "herdeiros" dessa
corrente, como
13 o liberalismo e o socialismo, que, incorporando de modo
seletivo certas categorias da Ilustrao, levaram adiante a cruzada
ilustrada pela emancipao do homem.
Se conseguir construir a partir dessas trs configuraes algo como
uma "idia" iluminista, creio que obterei os elementos para o nosso
projeto de civilizao.
Ao selecionar a Ilustrao, o liberalismo e o socialismo como as
constelaes histricas de que julgo poder decantar a idia iluminista,
no estou dizendo que essas trs correntes esgotem o contedo do
Iluminismo. A Antiguidade clssica, o cristianismo, a Renascena e a
Reforma foram foras poderosssimas, mas de certo modo todas
confluram para a Ilustrao e j esto contidas nela. No sculo XIX e XX
vrias correntes estiveram em jogo, como o romantismo ou o
anarquismo, mas no h dvida de que o pensamento liberal e o
socialismo tm com relao s demais correntes intelectuais no somente
o privilgio de terem se materializado em formas concretas de
sociedade, como o de representarem, prima lacre, antes de qualquer
investigao emprica, correntes em que as continuidades com a
Ilustrao prevalecem sobre as descontinuidades. No nvel pr-terico em
que escolhemos nossos objetos de estudo o bom senso e a intuio so
to fundamentais quanto, no nvel terico em que se realiza o estudo,
o rigor e o esprito de objetividade. E seria manifestamente
contra-intuitivo e oposto ao senso comum incluir o fascismo, por
exemplo, entre as configuraes culturais das quais esperamos extrair
os contornos da idia iluminista.
Dito isto, o primeiro passo para a construo da idia iluminista
examinar o modo de funcionamento na Ilustrao, no liberalismo e no
socialismo das categorias da universalidade, da individualidade e
da autonomia.
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A ILUSTRAO
Levando s ltimas conseqncias o cosmopolitismo estico e o
conceito da fraternidade crist, a Ilustrao foi verdadeiramente
universalista. Para ela, a idia de que todos os homens eram iguais,
independentemente de fronteiras ou culturas, estava longe de ser
uma abstrao retrica. O mundo, para ela, era realmente uma civitas
maxima. Nenhuma poca foi menos etnocntrica. Privados da luz da razo
e submetidos impostura religiosa, todos os homens podiam ser
considerados brbaros, e em primeira instncia os europeus, e todos
tinham o potencial para transitarem da barbrie civilizao, e em
primeira instncia os ''selvagens" da Amrica, mais prximos da
natureza e portanto da verdadeira civilizao. Trata-
14 va-se de formular princpios genricos, baseados na razo e na
observao, que pudessem ajudar todos os seres humanos a acederem
vida civilizada. Pressupunha-se a validade universal desses
princpios por se basearem numa natureza humana igualmente
universal, no sentido de que todos os homens tm uma estrutura
passional idntica, com afetos e interesses constantes, e uma razo
uniforme, alm de todas as variaes espacio-temporais, o que
implicava a validade geral tanto das descobertas da razo terica (s
existe uma geometria e a lei da gravidade vale para todos) como das
intuies da razo prtica (a moral bret no difere da moral dos
tupinambs). A fora libertadora desse universalismo foi real.
Reafirmando a igualdade de todos os seres humanos diante da razo,
ela transps para o terreno secular da luta filosfica e poltica a
idia religiosa de que todos so filhos de Deus e iguais diante do
Criador, o que teve conseqncias explosivas.
Ao mesmo tempo, certo que esse universalismo no foi
suficientemente atento a diferenas reais, e nisso se exps crtica
herderiana e romntica de operar com um conceito abstrato de homem
em geral. Contudo, justo dizer que a dimenso subversiva da Ilustrao
estava justamente nessa concepo abstrata do homem, sem a qual no se
teria transitado da viso nacional-conservadora de Burke (''the
rights of the Englishman'') para a viso revolucionria dos direitos
do homem. O universalismo ilustrado gerou efeitos polticos
importantes, como a condenao de qualquer forma de racismo, de
colonialismo, de sexismo. O que no exclui atitudes individuais
aberrantes, como um certo anti-semitismo em Voltaire (que no
entanto no tinha nenhum cunho racial, e sim religioso, pois a
desmoralizao do judasmo bblico fazia parte da cruzada contra a
Igreja catlica) e um certo misogenesmo em Rousseau (apesar do culto
a Rousseau por mulheres eminentes como madame de Stal e George
Sand).
Outra originalidade da Ilustrao foi seu foco individualizante.
Nas sociedades tradicionais, o homem s existe como parte do
coletivo
do cl, da gens, da polis, do feudo, da nao. O cristianismo e a
Reforma tinham contribudo para o processo de individualizao, mas
apenas no plano transcendente da relao do homem com Deus. Caberia
Ilustrao, levando adiante os fermentos individualizadores da
Renascena, liberar plenamente o indivduo, extraindo~o da matriz
coletiva. Ela partia da hiptese de homens isolados, que se uniam
por razes utilitrias para formarem a sociedade civil. Antes do
contrato, o homem pr-social: um grupo de indivduos dispersos.
Depois do contrato, ele pode estar sujeito a leis to severas quanto
as do Estado-Leviat, mas a sociedade continua sendo pensada como
uma agregao mecnica de indivduos e no como
15 uma comunidade orgnica. No estado de natureza como no estado
civil, o homem s existe como indivduo.
O individualismo ilustrado gera conseqncias importantes. O
indivduo passa a ser titular de direitos e no apenas de obrigaes,
como nas antigas ticas religiosas e comunitrias. Entre esses
direitos avulta o direito felicidade, o que leva difuso do
eudemonismo numa escala at ento sem precedentes. O todo existe para
o indivduo e no este para o todo. Alm disso, libertando os homens
da insero comunitria, a Ilustrao os coloca em posio de
exterioridade com relao ao mundo social, o que permite
transform-los em observadores e juizes de sua prpria sociedade.
O individualismo da Ilustrao teve portanto o mrito de colocar no
centro da tica o direito felicidade e auto-realizao e o de
valorizar o indivduo descentrado, o homem que se liberta dos
vnculos ''naturais'' e pode situar-se na posio de formular juzos
ticos e polticos a partir de princpios universais de justia,
independentemente de quaisquer lealdades locais.
Por outro lado, o individualismo degenerou facilmente, no sculo
XVIII, numa apologia insensata do interesse pessoal, ignorando-se a
utilidade coletiva, e do prazer hedonstico, quaisquer que fossem
suas conseqncias. Alm disso, o carter atomstico desse
individualismo levou a desconhecer que todo indivduo social e que o
telos da individuao crescente s pode ser alcanado socialmente.
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Rouanet, Sergio Paulo, Iluminismo ou barbrie , in Mal estar na
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A autonomia intelectual estava no centre do projeto civilizatrio
da Ilustrao. O objetivo bsico era libertar a razo do preconceito,
isto , da opinio sem julgamento. At ento, a inteligncia humana
tinha sido tutelada pela autoridade, religiosa ou secular. Durante
milnios, portanto, o gnero humano tinha vivido em estado de
minoridade. Tratava-se agora de sacudir todos os jugos que tolhiam
a liberdade de pensar, de desprender a razo de todas as custdias,
de aceder e promover o acesso condio adulta. Era importante, para
isso, criticar a religio, principal responsvel pela paralisao da
inteligncia, e em geral todas as idias que pretendessem substituir
as igrejas em seu papel de infantilizao do homem, e que a esse
ttulo funcionavam como agentes auxiliares do despotismo. Donde a
importncia crucial da educao, nica forma de imunizar o esprito
humano contra as investidas do obscurantismo. Donde a importncia da
cincia, que substitua o dogma pelo saber, ou, para usar metforas da
poca, que dissipava com a luz da verdade as quimeras e fantasias da
superstio.
O ideal da autonomia intelectual o mais alto que nos legou a
Ilustrao. Mas ele repousa numa petitio principii, que pressupe como
j atin-
l6 gido aquilo mesmo que se trata de atingir: s uma razo j livre
pode travar a luta pela libertao da razo. Na prtica, o paradoxo era
evitado com a suposio de que alguns indivduos - os filsofos - j
tinham se emancipado dos preconceitos e podiam ajudar os demais a
alcanarem a mesma libertao. Pressuposto elitista, portanto, que
transformava os filsofos numa vanguarda do esprito humano, mas
inteiramente compatvel com o antiigualitarismo de Voltaire, para
quem as verdades da filosofia no deveriam ser ensinadas canaille, e
que estava convencido de que seria roubado por seu alfaiate no
momento em que este deixasse de acreditar em Deus. Impertinncia
talvez perdovel, se se levar em conta que foi o autor de Candide o
grande lder da batalha contra a superstio, e portanto o mais
vigoroso defensor do desencantamento, condio sine qua non da
modernidade.
A autonomia poltica consistia para a Ilustrao na liberdade de ao
do homem no espao pblico. Numa de suas vertentes, a liberal, a
Ilustrao limitava-se, para isso, a propor um sistema de garantias
contra a ao arbitrria do Estado. Foi a posio de Montesquieu, de
Voltaire, de Diderot. Em outra vertente, a democrtica, a Ilustrao
considerava insuficiente proteger o cidado contra o governo: era
necessrio que ele contribusse para a formao do governo ou, mais
radicalmente, fosse ele prprio o governo. Era a posio quase
solitria de Rousseau. As duas vertentes tinham em comum o valor da
liberdade, tanto num sentido negativo (o homem era livre, enquanto
sdito, das investidas da tirania) quanto num sentido positivo (ele
era livre, enquanto cidado, para participar da gnese e do exerccio
do poder poltico).
Por isso a condenao do despotismo foi a contribuio mais forte da
Ilustrao ao ideal da autonomia poltica. Da a relojoaria
institucional de Montesquieu, advogando o estabelecimento de um
sistema de equilbrio e neutralizao recproca de poderes; da a
importncia ocasionalmente atribuda manuteno de instituies feudais,
como os parlements, a ttulo de contrapoderes destinados a compensar
os excessos da monarquia absoluta; da as propostas de reforma do
sistema judicirio, para evitar o arbtrio dos magistrados; da a
proposta rousseausta de democracia direta, pela qual o povo
soberano, autogovernando-se, afasta definitivamente o espectro da
tirania. certo, por outra parte, que com exceo de Rousseau, os
autores da Ilustrao no foram especialmente democrticos, e
acreditavam mais na liberdade para os filsofos que nas luzes do
povo soberano. De resto, mesmo em Rousseau o dio ao despotismo no
isento de uma certa ambigidade, pois no parece haver grande espao
para os direitos humanos na sociedade constituda segundo os
princpios do Con-
l7 trato social. O antidespotismo de Helvtius e do baro Holbach
apresenta tambm as suas singularidades. O tirano o governante que,
por no conhecer os mveis fundamentais da psicologia humana - o
prazer e a dor - e por ignorar que o objetivo bsico de todo corpo
poltico assegurar o mximo de prazer para o maior nmero, conduz os
homens de acordo com leis brutais, que violam o interesse pessoal
da maioria. O oposto do tirano o legislador prudente, que sabe usar
os dois mecanismos psicolgicos fundamentais para harmonizar o
interesse de cada um com a utilidade coletiva. Esse legislador que
condiciona os homens para o bem comum atravs do prazer e da dor
corresponde mais imagem do cientista louco que de Slon ou Licurgo.
Longe de ser um antitirano, na melhor das hipteses um bom tirano,
em seu elemento no sculo que originou o tipo do dspota
esclarecido.
A autonomia econmica foi uma das preocupaes centrais da
Ilustrao. Embora o igualitarismo dos filsofos fosse temperado pela
convico de que o estado civilizado exigia a criao de desigualdades
inexistentes no estado de natureza, todos sentiam que a misria
material era um obstculo ao progresso moral e ao exerccio dos
direitos e obrigaes civis. A Encyclopdie lapidar: "H poucas almas
suficientemente firmes para no serem abatidas e envilecidas a longo
prazo pela misria [...] A misria a
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Rouanet, Sergio Paulo, Iluminismo ou barbrie , in Mal estar na
modernidade, S. Paulo, Cia das Letras,1993, pp 9-45.
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me dos grandes crimes; so os soberanos que fazem os miserveis, e
eles respondero neste mundo e no outro pelos crimes que a misria
tiver cometido''. O sibaritismo delicado de alguns filsofos, que os
levava a idealizar as virtudes civilizadoras do luxo, no os impedia
de lamentar os infortnios dos indigentes. Deplorar o contraste
entre os palcios e as choupanas um lugar-comum das Luzes. Por isso,
o ideal de Rousseau era uma ordem social em que todos pudessem
satisfazer suas necessidades de alimentao, moradia e vesturio, uma
ordem de igualdade relativa em que "ningum fosse to pobre que
precisasse vender-se nem to rico que pudesse comprar os outros''.
Mas se o ideal da autonomia econmica no sentido de segurana
material era comum a todos os autores, as opinies variavam no
tocante aos meios. De modo geral, os economistas setecentistas
achavam que para se chegar autonomia, na acepo acima, era necessrio
partir da autonomia, na acepo de liberdade para os agentes. Era um
caminho individualista e antiestatizante. Foi o caso dos
fisiocratas, que defendiam a ausncia de toda regulamentao
governamental - a frmula do laissez faire foi uma inveno do
fisiocrata Quesnay (ou de Gournay, outro fisiocrata). Foi o caso
dos economistas ingleses, para os quais o intervencionismo estatal
acabava gerando efeitos contrrios aos pretendidos.
18 Mas outros autores defendiam solues no individualistas. Alis,
mesmo os economistas
aceitavam dentro de certos limites a interveno governamental no
mercado - por exemplo, para mitigar os sofrimentos excessivos da
classe trabalhadora. O prprio Adam Smith disse que tais sofrimentos
so inevitveis, "a menos que o governo faa algo para impedi-los''. A
propriedade privada nunca fez parte do repertrio de idias fixas da
Ilustrao. Filsofos como Mably e Morelly, para no falar de Babeuf,
pregaram a instalao da liberdade coletiva - Restif foi o primeiro a
usar a palavra "comunismo" em seu sentido moderno. Rousseau no
pertencia a esse nmero, pois defendia a pequena propriedade
camponesa, mas foi ele quem disse que "o primeiro homem que cercou
um terreno com uma cerca e disse 'isto meu', foi o verdadeiro
fundador 'da sociedade civil [...] Cuidado com as palavras desse
impostor1 Estareis perdidos se esquecerdes que os produtos
pertencem a todos e que a terra no pertence a ningum". um grande
mrito da Ilustrao ter proposto o ideal da autonomia econmica. O
sculo que idealizou como nenhum outro a liberdade foi tambm o sculo
do igualitarismo. Mas preciso reconhecer que os autores que
pregavam a igualdade natural raramente eram apstolos da implantao
efetiva, na vida social, da igualdade econmica. Por outro lado, se
era geral o reconhecimento do direito de cada individuo de dispor
da base material mnima para a sobrevivncia, nem sempre esse
conceito de autonomia era posto em conexo com as demais dimenses da
autonomia. Por exemplo, vrias utopias coletivistas, como as
imaginadas por Restif de la Bretonne, asseguravam a seus habitantes
a segurana econmica, mas no a liberdade poltica. Por outro lado, os
grandes entusiastas do individualismo econmico foram os
fisiocratas, partidrios da monarquia absoluta.
O LIBERALISMO
As sociedades organizadas segundo princpios liberais levaram
adiante, a seu modo, o ideal universalista. -Em teoria, a natureza
humana era considerada a mesma em toda parte, e embora alguns
indivduos e povos fossem mais primitivos que outros, todos tinham
em princpio os mesmos talentos e a mesma capacidade de progredir,
independentemente de sexo ou raa. O liberalismo econmico pregava
uma comunidade mundial interdependente, com base na diviso
internacional do trabalho. O liberalismo poltico combatia o
imperialismo, a imposio da vontade de um povo sobre outro. Na
hierarquia das virtudes, o bem da humanidade tinha valor supremo e
devia ser usado como critrio para determinar a validade tica de uma
ao praticada na esfera da famlia ou da nao. O universalismo
19 atingia igualmente a esfera do saber e da moral: a norma tica
no era menos invarivel do que a verdade cientfica. Recorde-se,
enfim, a preocupao liberal com os direitos das mulheres (Stuart
Mill), dos negros (a campanha contra a escravido nos Estados Unidos
e no Brasil) e dos povos subjugados (o liberalismo sempre foi
anticolonialista) e ter-se- uma idia da extenso do universalismo
liberal.
Mas na prtica esse universalismo revelou-se extremamente
problemtico, O evolucionismo criou uma hierarquia entre os povos,
separando os europeus, que estavam no topo da escala, dos povos
no-europeus. O racismo, sempre endmico no Ocidente, "legitimou-se"
cientificamente com as teorias de Gobineau, que pregava a
superioridade da raa branca, e vrios dos seus discpulos no sculo
XX, como Chamberlain e Rosenberg na Alemanha, Galton na Inglaterra,
e Stodard e Grant nos Estados Unidos. Mesmo descontando os pases,
como a Alemanha e a frica do Sul, em que a discriminao racial se
transformou em poltica do Estado, o racismo foi extremamente
agressivo nos Estados Unidos at a
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Rouanet, Sergio Paulo, Iluminismo ou barbrie , in Mal estar na
modernidade, S. Paulo, Cia das Letras,1993, pp 9-45.
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dcada de J970 e caracterizou em grande parte a mentalidade
colonial. O cosmopolitismo da Ilustrao cedeu lugar aos
nacionalismos mais estridentes, em parte justificados pela doutrina
liberal da autodeterminao dos povos. No fundo o internacionalismo
remanescente se limitou convico de que a expanso do capital exigia
a derrubada das barreiras nacionais - de preferncia nos pases
subdesenvolvidos. O pacifismo ilustrado foi substitudo pela prtica
da guerra e at por sua apologia, como aplicao da doutrina
darwinista da luta pela existncia e da seleo natural. O
imperialismo se generalizou, contrariando o anticolonialismo da
Ilustrao. O feminismo do sculo XVIII foi abafado pelo sexismo
vitoriano, que, apesar de autores como Stuart Mill, de modo geral
sustentava a inferioridade da mulher e hostilizava, pelo ridculo,
as militantes da luta em defesa dos direitos da mulher - as
sufragettes.
Nas condies contemporneas, as conquistas do universalismo
coexistem com regresses particularistas. O papel das Naes Unidas se
fortaleceu, mas pode-se perguntar at que ponto o Conselho de
Segurana no est sendo usado para acobertar as prticas de poder das
grandes potncias, com isso recobrindo particularismos nacionais com
o manto de um falso universalismo. Os movimentos de integrao
regional esto levando superao do nacionalismo, mas os espasmos de
patriotismo, e no apenas em pequenos pases como a Dinamarca,
parecem no ser apenas emoes residuais, Nos Estados Unidos, uma
poltica ativa de salva-guarda dos direitos civis das mulheres e das
minorias conseguiu em grande parte inverter as atitudes e polticas
discriminatrias, mas ao preo de gerar um movimento potencialmente
fascista, que idealiza e perpetua a diferena, ontologizando-a, em
vez de relativiz-la, como preconiza o igua-
20 litarismo iluminista. Na Europa do Leste, os nacionalismos se
desencadearam depois da derrota do comunismo e do fim da Unio
Sovitica, retribalizando o antigo imprio e conseguindo o prodgio de
balcanizar os prprios Blcs. Na Europa Ocidental, exacerba-se a
violncia contra os trabalhadores emigrados e ressurgem as formas
mais ignbeis de racismo. Feitas as contas, no se pode dizer que o
universalismo esteja entre as obsesses do mundo de hoje.
As sociedades liberal-democrticas concretizaram em grande parte
o ideal individualista da Ilustrao. Nesta, esse ideal ainda estava
inibido pelo carter aristocrtico do Ancien Rgime, que praticamente
limitava aos nobres a possibilidade de autodesenvolvimento. A
individualidade, por assim dizer, era um privilgio de classe. Com o
triunfo da burguesia, a base social do individualismo tornou-se
mais ampla. Ele se integrou ideologia liberal em todos os pases, e
nos Estados Unidos passou a fazer parte dos mitos nacionais, como a
bandeira e o hino; o "rugged individualism", a capacidade de cada
office-boy de chegar Casa Branca, tornou-se um dos elementos
centrais do sonho americano.
Mas a prtica mostrou que os herdeiros de grandes fortunas tm
mais chances de chegar Presidncia que os self-made men. De qualquer
modo, para os grandes filsofos do liberalismo no no talento para
ganhar as eleies primrias do Partido Republicano que se pe prova o
valor do indivduo, e sim no pleno desenvolvimento de suas
faculdades, em todas as esferas. o ideal humboldtiano da Bildung,
da autoformao. Para Humboldt, "o verdadeiro objetivo do homem - no
o que prescrito pelas inclinaes passageiras, mas pela razo imutvel
- o desenvolvimento supremo e harmonioso de todas as suas
faculdades, com vistas sua integrao num todo''.
Ora, o que a experincia das grandes democracias parece ter
demonstrado que estando formalmente autorizado a crescer em
variedade e individualizao, o homem se torna cada vez mais uniforme
e conformista. Como se sabe, a crtica feita pela moderna crtica da
cultura, desde Riesmann, com sua denncia do other-directed man, a
Marcuse, com sua anlise da sociedade unidimensional. Mas a disseco
mais meticulosa das tendncias desindividualizantes da moderna
sociedade de massas feita pelos prprios liberais. Tocqueville, por
exemplo, descreve a "tirania da maioria'' nos Estados Unidos e
mostra como as presses niveladoras da vida coletiva destroem a
individualidade, transformando os homens num "rebanho de animais
tmidos e industriosos''. Stuart Mill generaliza Tocqueville, indo
alm dos Estados Unidos. Para ele, a tendncia imanente de toda
sociedade de massas "acorrentar o desenvolvimento e se possvel
impedir a formao
21 de qualquer individualidade em desarmonia com seus hbitos''.
Privados de sua individualidade, os homens esto condenados ao
conformismo. "Assim a prpria mente se dobra ao jugo. Mesmo em seus
prazeres, o conformismo a primeira preocupao; eles gostam do que
todos gostam, s escolhem o que geralmente escolhido [...] Lem as
mesmas coisas, ouvem as mesmas coisas, tm suas esperanas e temores
dirigidos para os mesmos objetos."
Que se passa, hoje em dia, com o individualismo nas sociedades
ocidentais? H uma combinao de hiperindividualismo e de
antiindividualismo. O primeiro se manifesta num egocentrismo
radical, num frenesi de hedonismo, num delrio consumista, na busca
exclusiva da prpria vantagem, na apatia mais completa com relao s
grandes questes de interesse comum. O segundo se manifesta na
necessidade
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Rouanet, Sergio Paulo, Iluminismo ou barbrie , in Mal estar na
modernidade, S. Paulo, Cia das Letras,1993, pp 9-45.
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de razes, na tentativa de reinsero comunitria, na procura de uma
identidade grupal, qualquer que ela seja. Nos dois casos, o
resultado a asfixia da individualidade. Institucionaliza-se, nos
dois casos, o conformismo, j diagnosticado em seus primrdios pelos
crticos liberais, e que agora resulta, seja de uma velha conhecida
dos liberais, a "tirania de maioria'' (comprar o aparelho de som
que todos querem comprar), seja da identificao com o grupo. Sujeito
a duas leis, ou lei da oferta e da procura ou lei da tribo, o
indivduo morre duas vezes, uma vez assassinado pela sociedade de
consumo e outra por lealdades coletivas. Desaparecem os dois
grandes atributos do individualismo ilustrado, assumidos pela idia
iluminista: o eudemonismo e o descentramento. A busca da felicidade
banaliza-se no culto do prazer - um prazer heternomo, para o qual
acena a indstria cultural. O descentramento se anula por um
recentramento mtico, liberando o homem do mais difcil privilgio da
modernidade, o de pensar e agir por si mesmo, com base em princpios
gerais e abstratos.
Generalizando o acesso escola, as sociedades
liberal-capitalistas difundiram mais que em qualquer outro perodo
da histria as oportunidades para que todos alcanassem o estgio da
razo autnoma. A cincia assumiu crescentemente o papel antes
reservado religio, com o que no somente avanou o processo de
secularizao como se abriu um espao at ento inconcebvel de domnio
tcnico sobre a natureza.
Mas at que ponto foi promovido, com isso, o ideal da autonomia
intelectual? A razo humana no estava mais sujeita mentira
consciente, mas continuava sujeita ideologia. Agora no se tratava
mais da impostura deliberada do clero, mas da falsa conscincia
induzida pela ao ideologizante da famlia, da escola e da imprensa,
e mais radicalmente ainda, pela eficcia mistificadora da prpria
realidade - o fetichismo da
22 mercadoria. Agora no era mais a ideologia que falsificava o
real, era o real que usurpava a funo falsificadora da ideologia.
nesse ponto que a crtica frankfurtiana da cultura prossegue o
trabalho que a velha Ideologiekritik marxista tinha deixado
incompleto. No era mais a ideologia que mascarava a realidade, era
esta que sabotava a verdade contida na ideologia. Falso, na
ideologia, no era seu contedo, e sim a pretenso de que esse contedo
j tivesse se transformado em realidade.
O paradoxo do liberalismo real, com efeito, que ele se
apresentava como a Ilustrao realizada. Em sua auto-interpretao, ele
encarnava a autonomia cultural, poltica e econmica. Ora, na medida
em que essa autointerpretao era falsa, as prprias idias da Ilustrao
se convertiam em legitimaes. O que para a Ilustrao era crtica da
ideologia se transformava para o liberalismo real em ideologia. O
que para a Ilustrao se destinava a criticar a tradio se coagulava
para o liberalismo em tradio, com efeitos to conservadores quanto
qualquer ideologia. O papel da crtica da ideologia, na Ilustrao,
era defender a razo livre, a cidadania autodeterminada e a
liberdade econmica; o papel da crtica da cultura, aplicada s
modernas sociedades do capitalismo tardio, era denunciar esses
mesmos valores, enquanto realizaes fraudulentas do ideal da
autonomia. Para levar o paradoxo s ltimas conseqncias: no
liberalismo, o prprio Iluminismo se converte em ideologia, e
portanto a ultima ratio do Iluminismo consiste em arrastar o
Iluminismo diante do tribunal da razo.
Mas os que tm uma sensao de vertigem diante dos paradoxos do
capitalismo tardio podem tranqilizar-se. Esses paradoxos so menos
freqentes do que os especialistas da dialtica negativa querem fazer
crer. O obscurantismo voltou a ser o clssico, de Torquemada, e no
mais o complicado, que d dores de cabea a quem quiser entend-lo. O
que est se verificando cada vez mais, como efeito, uma regresso ao
estado de coisas denunciado pelos enciclopedistas. O que eles
ingenuamente chamavam superstio volta em triunfo, muitas vezes
aureolado com o prestgio da cincia. O presidente de uma
superpotncia chama outra superpotncia de "imprio do mal'' e ameaa o
mundo com o Armageddon bblico. Primeiras-damas consultam astrlogos.
Gurus indianos celebram solenemente, numa igreja batista, o
casamento da fsica quntica com o Rig-Veda. Cansados de investigar
uma alma sedentria, os psicanalistas resolvem transform-la em
viajante csmica, enquanto seus pacientes, cansados de trabalharem
para a General Motors, preferem a metempsicose metapsicologia e se
dedicam ao esporte de reviver vidas passadas.
Se a crtica a face negativa da autonomia cultural, sua face
positiva a cincia. Para os sbios da Ilustrao, a cincia estava a
servio de um
23 projeto geral de libertao da humanidade. Em grande parte
essas expectativas se realizaram. Mas em parte, tambm, a cincia
deixou de ser autnoma, sendo capturada pelo complexo
industrial-militar. Nessa medida ela se desvinculou de fins ticos,
pondo-se a servio da guerra e da destruio da natureza. Nesse
momento ela no tem mais nada a ver com a autonomia. Pode
transformar-se, ao contrrio, numa logocracia desptica, na medida em
que legitima formas de organizao social baseadas em imperativos
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Rouanet, Sergio Paulo, Iluminismo ou barbrie , in Mal estar na
modernidade, S. Paulo, Cia das Letras,1993, pp 9-45.
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tcnico-sistmicos, que devem ser obedecidos sem qualquer discusso
por parte dos diretamente interessados.
Em suma, apesar das facilidades oferecidas pelas sociedades
liberais para o atingimento da autonomia cultural, as foras da
heteronomia parecem mais poderosas. Quando a cincia se transforma
em mito, quando surgem novos mitos e ressurgem mitos antiqssimos,
quando a desrazo tem a seu dispor toda a parafernlia da mdia
moderna - quando tudo isso conspira contra a razo livre, no muito
provvel que o ideal kantiano da maioridade venha a prevalecer.
As sociedades liberal-democrticas so responsveis pela
institucionalizao e rotinizao da autonomia poltica. Foi uma das
maiores revolues na histria da humanidade. Por mais que no incio
essa revoluo tenha sido limitada em seu escopo, por mais que os
direitos que ela consagra sejam "formais", essa verdade precisa ser
dita, antes de qualquer avaliao crtica.
Pago esse tributo de justia, convm recordar que a autonomia
poltica dos liberais foi a princpio restrita.
Restrita, em primeiro lugar, porque abrangia muito mais as
garantias individuais contra o arbtrio do Estado que o direito de
participar da gesto da coisa pblica. o que Benjamin Constant
chamava a ''liberdade moderna'', em contraste com a "liberdade
antiga''. Esta consistia no exerccio coletivo e direto da
soberania, como nas Cidades-estados da Grcia, sem qualquer
preocupao explcita com os direitos individuais. Era compatvel,
portanto, com a submisso do indivduo ao poder da comunidade. Em
contraste, a liberdade moderna era "o direito de todos os homens de
estarem sujeitos exdusivamente lei, o direito de no serem presos,
julgados, executados ou molestados, pelo capricho de meros
indivduos, o direito de expressarem suas opinies, de se
locomoverem, de se associarem com outros. enfim o direito de todos
de influenciarem a administrao do Estado, quer pela designao de uma
ou vrias de suas autoridades, quer por seus conselhos, exigncias e
peties". Em suma, ao contrrio da liberdade antiga, a liberdade
moderna dava menos nfase democracia, que tinha a ver com a gnese do
poder, que garantia contra a
24 ao arbitrria do Estado, que tinha a ver com as limitaes ao
uso do poder. Ela assegurava tambm o direito de participar da gesto
do Estado, mas com a finalidade principal de influenciar a
administrao pblica, de modo a evitar ingerncias ilegtimas na esfera
privada.
Restrita, em segundo lugar, porque o acesso liberdade poltica
era confinado aos proprietrios, ou aos homens instrudos, ou aos que
so instrudos porque proprietrios, segundo a frmula ecltica do mesmo
Benjamin Constant: para exerc-la, necessrio "o lazer indispensvel
aquisio das luzes, retido do julgamento. S a propriedade assegura
esse lazer, e s ela torna os homens capazes do exerccio dos
direitos polticos''.
Comum a quase toda a primeira gerao de liberais foi o temor
democracia, o medo de que a tirania de um s fosse substituda pela
tirania da ''vontade geral''. Mais tarde, esse receio foi se
atenuando, e o conceito liberal de liberdade foi se encaminhando
para uma sntese liberal-democrtica. medida que o conceito da
representao das minorias ganhava legitimidade, diminua, com efeito,
o temor da tirania majoritria, o grande pesadelo de liberais como
Constant e Tocqueville.
A verdade que a instituio do sufrgio universal nem teve os
efeitos apocalpticos temidos pelos liberais nem foi capaz de gerar
as transformaes sonhadas pelos democratas. A autonomia poltica
revelou-se insuficiente para uma verdadeira alterao do status que,
pela insuficincia da autonomia econmica, base material para a ao no
espao pblico, e da autonomia cultural, indispensvel para que a razo
pudesse devassar as legitimaes dominantes. Alguns diriam que, na
ausncia dessas condies, a liberdade poltica pode ser efetivamente
formal e at mesmo narcotizante. Foi o que disseram Tocqueville - os
indivduos "consolam-se de estar sob tutela, pensando que escolheram
eles prprios seus tutores'' - e quase nos mesmos termos, Marcuse -
"a livre eleio dos senhores no abole nem os senhores nem os
escravos''. No precisamos ir to longe. Sem dvida, uma liberdade
truncada melhor que nenhuma, mas preciso reconhecer que uma
autonomia poltica limitada liberdade de votar est muito distante do
desejvel.
Com efeito, preciso dizer e repetir que a autonomia poltica dos
liberais no basta, e nisso a crtica socialista, iniciada com a
Questo judaica, de Marx, mantm sua validade.
No se trata, com isso, de desqualificar a liberdade "formal". A
liberdade institucionalizada nos regimes constitucionais do
Ocidente serviu de moldura para centenas de lutas sociais que
redundaram na efetiva melhoria das condies da classe operria de
desfrutar de fato seus direitos civis e polticos, e nesse sentido
ela nada tinha de formal. Sem liberdade jurdica no h liberdade
substantiva. preciso partir da liberdade, no sentido jurdico, para
chegarmos liberdade, no sentido material. Sabe-
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Rouanet, Sergio Paulo, Iluminismo ou barbrie , in Mal estar na
modernidade, S. Paulo, Cia das Letras,1993, pp 9-45.
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mos, com a superioridade que nos confere a circunstncia de
termos sido contemporneos de dois totalitarismos, que todos os
regimes de fora se baseiam na denncia do formalismo: todos eles
querem dissipar a iluso burguesa e implantar o reino da verdadeira
liberdade.
Sim, sabemos tudo isso, mas sabemos tudo isso bem demais. Tudo
isso ficou to bvio que a crtica s liberdades burguesas passou a
inspirar-nos um certo tdio. Com isso, corremos o risco de ignorar o
ncleo verdadeiro dessa crtica. Por mais que o discurso do
formalismo tenha ficado fora de moda, continua sendo verdade que
uma liberdade que no pode ser usada uma liberdade vazia, e ela no
pode ser usada pelos milhes de seres humanos que vivem na pobreza
absoluta. Enquanto essa situao perdurar, a denncia socialista
manter sua validade, seno como plataforma, pelo menos como
advertncia.
A autonomia poltica advogada pela Ilustrao e institucionalizada
pelo liberalismo s se tornar plenamente concreta quando seus
titulares tiverem condies econmicas para us-la de fato, no somente
enquanto fim em si, mas enquanto meio, promovendo atravs dela as
transformaes sociais necessrias para que todos possam ser
livres.
Quanto autonomia econmica, preciso comear dizendo o bvio: nenhum
outro regime social se aproximou tanto da mais antiga fantasia da
humanidade, o sonho imemorial do Schlarafferland, do pays de
cocagne: a eliminao da escassez. Em pouco mais de um sculo, o
capitalismo produziu uma riqueza material que teria sido
inimaginvel h trs geraes. Se levarmos em conta que essa
prosperidade econmica foi acompanhada de uma melhoria simultnea nos
nveis de bem-estar social, escolaridade, cultura e sade pblica,
podemos julgar em seu devido valor o desempenho das sociedades
liberais no terreno da autonomia material. Mas, se tudo isso
evidente, evidente tambm que o preo histrico desse progresso foi um
sofrimento inaceitvel para grandes parcelas da populao.
Contemporneos da Revoluo Industrial, os primeiros liberais
tinham obviamente conscincia da espantosa misria das classes
trabalhadoras no incio do sculo XIX. Mas a seu ver s havia um
caminho para superar essa misria, o prprio exerccio da atividade
econmica livre. Se era verdade que na situao atual a grande massa
dos assalariados estava excluda dos benefcios do progresso
econmico, tal situao podia modificar-se se fossem eliminadas todas
as restries ao dos capitalistas e dos operrios. As condies
materiais dos trabalhadores melhorariam com o incremento da riqueza
coletiva, resultante da liberdade de cada um de perseguir seu
interesse, j que com o desenvolvimento da indstria os preos
26 dos bens de consumo se reduziriam, o que se refletiria num
aumento do salrio real. Alm de colher esse benefcio indireto da
liberdade econmica, a classe operria poderia utiliz-la diretamente
para melhorar suas condies de vida: liberta das restries
corporativas, que reduziam sua capacidade de procurar um emprego
consistente com seus interesses, e do paternalismo degradante,
manifestado nas Poor Laws e outros instrumentos caritativos, que
inibiam a iniciativa individual, ela poderia, por suas prprias
foras, ascender socialmente, chegando segurana atravs da liberdade.
Sem dvida, alguns liberais (Ricardo, Malthus) consideravam
irrealizvel esse sonho de ascenso, j que as "leis de ferro'' da
economia, pelas quais o progresso econmico estimularia
inexoravelmente o crescimento demogrfico, impeliriam o salrio em
direo a seu nvel "natural", isto , o estritamente necessrio para
garantir a subsistncia dos assalariados. Mas ainda assim o
laissez-faire seria mais favorvel aos operrios que qualquer medida
intervencionista, pois a ausncia de uma proteo artificial os
impulsionaria a autodefender-se atravs da reduo voluntria da
natalidade, que por um lado diminuiria a presso sobre os salrios e
por outro tornaria suprfluo o cultivo de novas terras, contribuindo
para a diminuio dos preos dos alimentos.
Assim, a teoria legitimava uma prtica desumana. Os captulos do
Capital em que Marx descreve as condies de vida da classe operria
inglesa nas fases iniciais da acumulao primitiva so at agora
insuperveis em exatido e dramaticidade.
Em grande parte a dinmica do capitalismo e sobretudo a ao de
mecanismos alheios ao mercado, como o movimento sindical e a
interveno do Estado, contriburam para desmentir as previses
pessimistas dos economistas do sculo XIX. No houve uma pauperizao
irreversvel, e a crise geral do capitalismo ainda no est vista. Ao
contrrio, o padro de vida mdio nos pases de capitalismo avanado
aumenta de ano para ano e a poltica econmica do Estado consegue bem
ou mal minorar as flutuaes da conjuntura.
Mas com isso fica ainda mais difcil compreender a persistente
sobrevivncia da pobreza nos pases desenvolvidos. Estimativas
confiveis apontam para a existncia, nos Estados Unidos, de vrios
milhes de americanos vivendo em nveis de pobreza absoluta.
E absolutamente inconcebvel a misria macia que s faz agravar-se
no resto do mundo. Os contrastes de renda e de bem-estar aumentam
no somente entre pases ricos e pobres, como dentro dos
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Rouanet, Sergio Paulo, Iluminismo ou barbrie , in Mal estar na
modernidade, S. Paulo, Cia das Letras,1993, pp 9-45.
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prprios pases subdesenvolvidos. Assim como explora a mo-de-obra
sem reservas ticas, o capitalismo explora a natureza sem escrpulos
ambientais. Segundo
27 seus crticos, ele se baseia num modelo produtivista
intrinsecamente perdulrio e destrutivo dos recursos naturais e dos
ecossistemas.
A despeito do extraordinrio progresso material ocorrido nos
pases industrializados, portanto, podemos dizer que globalmente o
modelo liberal-capitalista est muito longe de ter aproximado a
humanidade como um todo do ideal da autonomia econmica.
O SOCIALISMO
Se a Ilustrao pregava uma universalidade genrica, e o
liberalismo uma universalidade que passava pelo reconhecimento da
nao livre como elo entre o indivduo e a espcie, o socialismo
insistia numa concretizao ainda maior do conceito de
universalidade, em que o critrio diferenciador fosse a classe
social, e no a nao. Tambm o marxismo partia da concepo de uma
natureza humana universal - a de um ser em metabolismo (
Wechselstoffl com a natureza, que em todo e qualquer modo de produo
produz e reproduz, pelo trabalho, suas condies materiais de
existncia. Mas num sentido menos antropolgico, a unidade da espcie
no era um dado, e sim uma conquista. Era a misso do proletariado,
classe universal cujos interesses transcendiam todas as fronteiras
nacionais. Sua misso era auto-abolir-se como classe e, nessa
medida, abolir em geral a sociedade de classes, emancipando o gnero
humano enquanto sujeito unitrio da histria.
Em sua concretizao no socialismo real, o ideal universalista foi
primeiro negado e depois pervertido. Ele foi negado com a poltica
do socialismo num s pas, adorado pela URSS, e com a dissoluo do
Cominterm. Foi pervertido com a doutrina Brejnev, que sob a
etiqueta de ''internacionalismo proletrio'' nada mais era que a
justificao do imperialismo sovitico. E nada faz supor que o envio
de tropas cubanas para ajudar guerrilhas marxistas na frica seja
muito mais "internacionalista" que o envio de ''contras'' Nicargua
para desestabilizar um governo de esquerda.
Ao contrrio do que se poderia supor, os principais socialistas
no foram antiindividualistas. Fourier usou a palavra (surgida por
volta de 1830) num sentido positivo, e para Jaurs o socialismo
completa o individualismo, em vez de neg-lo, A crtica de Marx ao
''indivduo egosta'' das Declaraes dos Direitos Humanos no envolve
nenhuma crtica ao conceito de indivduo em si. Ela a crtica de uma
concepo que v o indivduo como simples mnada que se agrega
mecanicamente a outras mnadas
28 para compor a sociedade, ignorando o fato de que o indivduo
est sempre inserido num conjunto definido de relaes sociais. Na
sociedade capitalista, essas relaes levam ao declnio do indivduo e
atrofia de suas potencialidades. Mudar essas relaes libertar o
indivduo. No se trata, portanto, de dissolver o indivduo na
sociedade, mas de dissolver uma certa sociedade para emancipar o
indivduo. O indivduo plenamente emancipado a personalidade mltipla,
alm da diviso de trabalho, sonhada pela utopia comunista - o homem
novo que pesca de manh, caa de tarde e compe sinfonias noite. Por
tudo isso um autor "holista" como Louis Dumont no hesita em dizer,
desaprovadoramente, que "o socialista Marx cr no indivduo de uma
maneira que no tem precedentes em Hobbes, Rousseau, Hegel, nem
mesmo, diramos, em Locke".
De novo, o ideal da individualizao socialista foi profundamente
deturpado pela prtica do socialismo real. De certo modo, tambm
surge nesses pases, como no Ocidente, uma coexistncia do
antiindividualismo com o hiperindividualismo.
O antiindividualismo um elemento importante da prpria doutrina
oficial. Cada homem membro de sua classe antes de ser um indivduo;
sua vontade subordina-se do partido, e cada membro do partido
funcionrio do todo. O antiindividualismo mobilizado para a
disciplina do trabalho, vista como indispensvel construo do
socialismo. H um bilho de formiguinhas azuis na China Popular
marchando unidas contra o individualismo burgus. a volta consciente
psicologia da horda.
Mas por outro lado h tambm o hiperindividualismo, que como reao
ao "holismo" oficial se manifesta pelo oportunismo, pelo
carreirismo, e pelo consumismo histrico. Um clebre niilista russo
disse que um par de botas valia mais que Shakespeare. Qualquer
turista que na praa Vermelha tenha trocado um oratrio bizantino por
uma cala Lee est convencido de que essa opinio partilhada por 100
milhes de russos.
O socialismo real assumiu em parte a bandeira da autonomia
intelectual. Como para a Ilustrao, essa autonomia se afirma,
exemplarmente, atravs da crtica da religio - o crasez l'infme, de
Voltaire,
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Rouanet, Sergio Paulo, Iluminismo ou barbrie , in Mal estar na
modernidade, S. Paulo, Cia das Letras,1993, pp 9-45.
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tem sua realizao plena no atesmo de Estado da Unio Sovitica: a
Entzauberung, de Weber, levada s ltimas conseqncias.
Mas a crtica da tradio (seja ela religiosa ou secular) no pode
mais ser, para uma sociedade que se v como marxista, uma simples
crtica das idias errneas. O erro no est mais radicado na ignorncia
e na m-f, na impostura dos sacerdotes e dos tiranos, e sim numa
constelao de classe que condena a razo a uma opacidade necessria -
a doutrina da falsa conscincia. A heteronomia o destino cognitivo
dos que no se liberta-
29 ram da falsa conscincia. A autonomia s poder ser alcanada
pelos membros da classe proletria que completaram seu processo de
tomada de conscincia e pelos membros de outras classes que
assumiram a perspectiva proletria. A crtica da tradio se transforma
assim em crtica da ideologia (concebida como um conjunto de
representaes estruturalmente falsas), inclusive da ideologia
ilustrada e da liberal, cujos ideais so vistos como expresses
particularistas de um interesse de classe. Nesse sentido, a
autonomia reivindicada pela Ilustrao e pelo liberalismo ela prpria
heternoma - seus porta-vozes tm razo em propor a autonomia
intelectual como um telos da humanidade, mas no em supor que ela j
foi ou pode ser alcanada sem uma crtica radical da ideologia em que
esto imersos.
Sem dvida, um avano terico. Mas uma doutrina desse tipo,
assumida por um regime ditatorial, tem terrveis implicaes
totalitrias. Ele considera a Ideologiekritik sria demais para ser
confiada a amadores. Tarefa especializada, ela s pode ser exercida
por profissionais. So os funcio-nrios do partido, instncia coletiva
em que est depositado o saber absoluto da histria, e que detm
portanto a competncia exclusiva para fazer a partilha entre a iluso
e a realidade. Indo alm do seu papel desmistificador, esses
burocratas da verdade podem tambm criar ideologias, diretamente ou
atravs de escribas assalariados que se chamam, justamente,
idelogos. A autonomia intelectual no abolida; ela simplesmente
passa jurisdio de comissrios que a administram. O ideal da razo
livre gerido por um estrato tcnico cuja funo tutelar a razo para
que ela alcance a verdadeira liberdade. Cabe a esses tutores
mostrar aos menores sob custdia - a populao inteira - a maneira
correta de provar que atingiram a maioridade. Basta que pensem
pensamentos adultos - os prescritos pelo partido. A frmula sapere
aude, com que Kant definiu a liberdade intelectual, no desativada,
e sim redefinida. "Ousar saber'' agora significa saber at onde
lcito ousar.
Sabemos que a cincia a dimenso positiva da autonomia
intelectual, em oposio sua dimenso crtica. Guiado pela cincia, o
homem tem acesso verdade e consolida seu poder sobre a natureza. O
socialismo real tem pela cincia um temor reverencial puramente
oitocentista, semelhante ao de Marx e de monsieur Homais. Afinal,
no por acaso que sua base terica o socialismo cientfico. Em seu
aspecto construtivo, essa venerao pela cincia se traduziu em
progressos importantes na rea das cincias exatas e biomdicas e na
pesquisa espacial. Grande parte do esforo cientfico se canalizou
para a esfera militar, mal afinal essa militarizao da cincia no foi
monoplio do campo socialista.
Por outro lado, h um aspecto negativo, caricato e perigoso ao
mesmo tempo, no culto socialista da cincia. sua interpenetrao com a
ideologia. A cincia ideologizada, como ocorreu com a biologia
"prolet-
30
ria'' de Lysenko. E a ideologia adquire a dignidade da cincia. O
marxismo estendido natureza. As leis da dialtica passam a valer no
somente para a histria como para a matria: o diamat, o materialismo
dialtico, que passa a englobar o materialismo histrico, como o todo
engloba a parte. Baseada em Engels, a contribuio especificamente
sovitica filosofia marxista. Seu efeito prtico dissolver a histria
humana na histria natural, e eliminar os ltimos resduos de
liberdade que o determinismo histrico ainda deixara subsistir.
Censurada por burocratas ou sujeita a determinismos naturais, o
mnimo que se pode dizer que a razo livre da Ilustrao passou por
estranhas vicissitudes na vigncia do socialismo real.
Desde sempre o socialismo criticou o conceito burgus de
autonomia poltica: privada de uma base material e dissociada das
outras dimenses da autonomia, ela era uma fraude para a maioria da
populao. Vimos que essa crtica era perfeitamente justa. Restava aos
socialistas demonstrar que surgida a oportunidade poderiam
implantar uma verdadeira autonomia poltica.
Sabemos que o contrrio se deu. No houve substituio de uma
liberdade burguesa, formal, por uma liberdade proletria, rica de
substncia: o que ocorreu foi simplesmente a substituio da liberdade
tout court pela tirania sans phrase. Os direitos humanos (que no
entanto eram reconhecidos pela Constituio sovitica) foram violados
metodicamente, da liberdade religiosa liberdade de ir e vir. A
democracia se limitava ao direito de escolher representantes
oficialmente aprovados, cuja independncia
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Rouanet, Sergio Paulo, Iluminismo ou barbrie , in Mal estar na
modernidade, S. Paulo, Cia das Letras,1993, pp 9-45.
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de julgamento podia ser avaliada pelos aplausos obedientes
durante os discursos do secretrio-geral e pelas decises unnimes do
Soviete Supremo.
Quanto autonomia econmica, a principal contribuio do socialismo
foi ter transitado do conceito de autonomia como liberdade para o
conceito de autonomia como segurana: autnomo no quem tem o direito
abstrato de atuar como agente econmico mas quem tem o poder efetivo
de obter pelo trabalho os bens necessrios prpria sobrevivncia.
certo que essa guinada j tinha ocorrido no prprio pensamento
liberal. Por volta de 1880, alguns filsofos idealistas de Oxford
passaram a defender um liberalismo "organicista", segundo o qual a
liberdade era redefinida como o potencial de cada indivduo de
crescer e desenvolver-se - ''to make lhe best and most of himself'
- e no apenas, negativamente, como a ausncia de coao. Para
assegurar o exerccio dessa liberdade orgnica, o Estado deveria
intervir sempre que necessrio.
31 Mas foram os autores socialistas que consolidaram a nova
nfase. Sua argumentao continua
rigorosamente vlida. O direito de fundar um banco uma zombaria
de mau gosto para quem o banco um guich, uma fila, uma espera de
oito horas e uma aposentadoria no valor de dois salrios mnimos. A
autonomia econmica entendida como o direito de comprar um iate uma
caricatura para quem no pode pagar uma passagem de barca para
Niteri. Na ausncia de medidas alheias ao mercado, portanto, a
segurana nunca poder ser alcanada pela liberdade, que s para alguns
privilegiados real.
Da as grandes expectativas que o pensamento progressista
depositou na revoluo bolchevista. Mesmo quando o regime revelou seu
rosto totalitrio, continuou sendo possvel perdoar a ausncia de
liberdade poltica (privao transitria, ao que se dizia) em vista das
conquistas sociais, que pareciam evidentes - emprego, sade, educao
e moradia para todos. O regime podia no oferecer nem autonomia
intelectual, nem poltica, nem econmica, entendida como liberdade de
agir, mas certamente oferecia segurana econmica.
Mas o conceito de segurana econmica no inclui apenas o acesso a
vantagens sociais, mas tambm a bens e servios. Nisso o regime
falhou miseravelmente. Foi a essa a causa mortis do socialismo
real. Ele no morreu, lamentavelmente para os idealistas, por ter
asfixiado a autonomia intelectual e a poltica, mas por no ter
conseguido produzir mercadorias em escala comparvel do
capitalismo.
luz da teoria marxista, essa morte tem algo no de inesperado,
mas de irnico. Marx justificava a necessidade da passagem do
capitalismo ao socialismo pela circunstncia de que as relaes de
produo baseadas na propriedade privada estavam bloqueando o
desenvolvimento das foras produtivas. A mudana de modo de produo no
se destinava em primeira linha a melhorar as condies de vida da
classe operria, e sim a liberar as foras produtivas inibidas pelo
capitalismo. Vale dizer que o teste do sucesso do socialismo estava
justamente na rea em que seu fracasso se revelou mais contundente:
na esfera da produo. So as foras produtivas que julgam as relaes de
produo. Citadas a esse tribunal, mais exigente que o tribunal da
histria, as relaes de produo do socialismo foram condenadas e as do
capitalismo triunfalmente absolvidas. Mas se assim, a condenao do
socialismo real foi justa, segundo Marx. A ironia est em que, se
essa condenao j estava inscrita na prpria lgica do materialismo
histrico, o colapso do socialismo refora o marxismo, em vez de
enfraquec-lo, pois confirma o acerto de uma de suas teses
fundamentais, a dialtica entre as foras produtivas e as relaes de
produo.
32 A IDIA ILUMINISTA
Temos agora os elementos para construir a idia iluminista.
Partimos da Ilustrao, do liberalismo real e do socialismo real,
investigamos seus aspectos positivos e negativos, e tendo
examinado, confrontado e criticado o funcionamento em cada uma
dessas constelaes histricas dos principais elementos do projeto da
modernidade, produzimos a idia iluminista.
Para ela, (J) todos os homens e mulheres, de todas as naes,
culturas, raas e etnias, (2) desprendendo-se da matriz coletiva e
passando por processos crescentes de individualizao, devem alcanar
(3) a autonomia intelectual, ou seja, o direito e a capacidade
plena de usar sua razo, libertando-se do mito e da superstio,
sujeitando ao crivo da razo todas as tradies, seculares ou
religiosas, problematizando todos os dogmas, criticando todas as
ideologias, e desenvolvendo livremente a cincia, o pensamento
especulativo e criatividade artstica, o que pressupe um sistema
cultural que tenha institucionalizado e dado condies efetivas de
exerccio liberdade de pensamento e de expresso, (4) a autonomia
poltica, ou seja, o direito e a capacidade plena de participar dos
processos decisrios do Estado, o que pressupe um sistema poltico
que tenha institucionalizado e dado condies efetivas de
funcionamento democracia e aos direitos humanos, e (5) a autonomia
econmica, ou seja, o direito e a capacidade plena de obter, sem
prejuzo para os outros indivduos e sem danos para o meio ambiente,
os
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Rouanet, Sergio Paulo, Iluminismo ou barbrie , in Mal estar na
modernidade, S. Paulo, Cia das Letras,1993, pp 9-45.
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bens e servios necessrios ao prprio bem-estar, o que pressupe um
sistema econmico que tenha institucionalizado e dado condies
efetivas de funcionamento aos direitos dos agentes econmicos,
dentro dos limites compatveis com os objetivos superiores da justia
social e da preservao da natureza.
Em suma, a idia iluminista prope estender a todos os indivduos
condies concretas de autonomia, em todas as esferas. Em outras
palavras, ela (J) universalista em sua abrangncia - ela visa todos
os homens, sem limitaes de sexo, raa, cultura, nao -, (2)
individualizante em seu foco - os sujeitos e os objetos do processo
de civilizao so indivduos e no entidades coletivas -, e
emancipatria em sua inteno - esses seres humanos individualizados
devem aceder plena autonomia, no trplice registro do (3)
pensamento, da (4) poltica e da (5) economia.
Vejamos mais de perto esses vrios elementos. 33
Universalidade: para a idia iluminista, o horizonte da emancipao
humana o da unidade da espcie, o que gera conseqncias em vrias
esferas.
l) O Iluminismo transcende as fronteiras nacionais, e nesse
sentido assume sem complexos a herana cosmopolita da Ilustrao,
condenando todos os nacionalismos como provincianos e
potencialmente geradores de guerra. At certo ponto, no entanto, ele
incorpora a doutrina liberal da autodeterminao dos povos, ao
recusar qualquer tentativa de unificao poltica de uma regio ou do
mundo que no resulte do consentimento explcito dos habitantes das
comunidades nacionais envolvidas, o que significa o mais inequvoco
repdio de qualquer forma de imperialismo. Do socialismo, ele
absorve uma determinao mais concreta do ideal cosmopolita, que no
pode ser definido nos termos puramente hedonistas em que s vezes o
concebia o sculo XVIII - ubi bene, ibi patria - mas como um
verdadeiro internacionalismo, que ao contrrio do malfadado
"internacionalismo proletrio'' do socialismo real, teria como foco
os interesses da humanidade como um todo e no os objetivos
estreitamente partcularistas de uma superpotncia.
2) Assim como transnacional, o Iluminismo tambm transcultural.
Isto quer dizer que ele aceita em substncia o ponto de vista da
Ilustrao e no v na variedade das culturas a prova de que o homem
mltiplo, mas a demonstrao de que atrs da variedade emprica das
culturas existe uma uniformidade fundamental. Essa uniformidade tem
a ver com a unidade da natureza humana, que em toda parte produz e
reproduz suas condies de existncia com base numa estrutura psquica
comum e de uma razo que no varia essencialmente conforme as
culturas. Ao mesmo tempo, o Iluminismo tempera o que poderia haver
de nivelador nessa perspectiva com a valorizao do pluralismo,
herdado da antropologia liberal: as aspiraes e necessidades
universais do homem so expressas e simbolizadas de modo diverso
segundo as diferentes formas de vida, e essa variedade, alm de
esteticamente enriquecedora, eticamente valiosa, desde que as
prticas particulares no violem princpios universais de justia.
3) O Iluminismo adere ao igualitarismo ilustrado no que diz
respeito ao relacionamento entre os sexos. Homens e mulheres so
iguais em direitos e aptides, e no existem diferenas, alm das
puramente anatmicas, que justifiquem conceitos como o de "alma
feminina'' ou "psicologia feminina". Nisso o feminismo liberal e o
socialista no trouxeram modificaes de vulto - mas o primeiro chamou
ateno para a necessidade de eliminar na luta poltica cotidiana a
discriminao jurdica a que est su- jeita a mulher, e o segundo teve
o mrito de estudar o cruzamento da opresso sexista com a opresso
social - a opresso sobredeterminada da mu-
34 lher proletria, duplamente explorada, e a libertao paradoxal
da mulher burguesa, cuja condio de possibilidade a prpria existncia
da sociedade de classes.
4) Assim como rejeita, no que diz respeito mulher, qualquer
diferencialismo essencialista radicado na biologia, o Iluminismo
rejeita esse mesmo diferencialismo no que respeita a raas ou
etnias. o grande igualitarismo da Ilustrao, para o qual os
indivduos so brancos e negros por acidente, e homens por natureza.
O liberalismo ensinou o Iluminismo a pensar politicamente, nas
sociedades modernas, a luta para implantar uma igualdade de fato, e
no apenas filosfica, entre indivduos de diferentes raas. O
socialismo mostrou as razes sociais e econmicas do preconceito,
cuja remoo integral no depende, portanto, apenas de uma reforma das
conscincias, mas tambm de profundas transformaes sociais.
Individualismo: o Iluminismo considera o aparecimento do
indivduo uma ocorrncia epocal na histria da humanidade. um dos
aspectos mais libertadores da modernidade. Ela permite pela
primeira vez na histria pensar o homem como ser independente de sua
comunidade, de sua cultura, de sua religio. O homem deixa de ser
seu cl, sua cidade, sua nao e passa a existir por si mesmo, com
suas exigncias prprias, com seus direitos intransferveis felicidade
e auto-realizao.
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Rouanet, Sergio Paulo, Iluminismo ou barbrie , in Mal estar na
modernidade, S. Paulo, Cia das Letras,1993, pp 9-45.
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Haurida na Ilustrao, essa crena se refora com os liberais, para
os quais o grande mrito da liberdade permitir o desdobramento
mltiplo e pluralista da individualidade. O Iluminismo partilha,
portanto, o temor dos liberais com as presses niveladoras da
sociedade de massas, que levam ao conformismo e contribuem para a
desindividualizao crescente do homem, fazendo sua a Kulturkritik de
autores como Tocqueville e Mill, que antecipam em seus libelos
contra a massificao a denncia de Marcuse e Adorno contra a
"sociedade unidimensional". O Iluminismo recebe do socialismo uma
viso mais concreta do indivduo, que no apenas uma mnada abstrata,
mas existe sempre inserido num conjunto definido de relaes sociais,
o que significa que sua proposta de emancipao do indivduo tem que
levar em conta uma dimenso necessariamente extra-individual.
Dizer que todo individuo social dizer que sua libertao passa por
um processo social de individuao, pela qual os indivduos saem dos
seus guetos privatistas e se comunicam com outros indivduos,
reconhecendo-os como indivduos e sendo confirmados em sua
individualidade. O individualismo iluminista, nesse sentido, nada
tem a ver com o individualismo associal estigmatizado pela
esquerda, mas sobretudo pela direita.
35 No entanto, sua conscincia da dimenso social no impede que o
Iluminismo seja
absolutamente alheio a qualquer considerao holista, a qualquer
viso "orgnica" que atribua prioridade a uma instncia coletiva
grupo, cultura, Estado - ou que diga que a verdade da parte est em
sua insero no todo. O Homo sapiens no um protozorio - esse sim,
anima1 holista por excelncia - nem Apis mellifera zumbindo
conscienciosamente pelo bem da colmia. Se o homem mais
individualizado que o inseto, o homem moderno certamente mais
individualizado que o antigo, como este era mais individualizado
que o da pr-histria. A humanidade percorreu uma longa trajetria
desde a horda primitiva; o caminho foi longo, como sabia Freud, da
psicologia coletiva psicologia individual, e qualquer tentativa de
reinserir o indivduo no todo significa um retrocesso obscurantista.
A nostalgia do difuso, do indiferenciado, do orgnico - h nomes para
isso. Quando um fato biolgico, chama-se pul-so de morte. Quando um
fenmeno social, chama-se fascismo.
O individualismo iluminista no desconhece a existncia de
coletividades particulares, mas proclama que em ltima anlise no so
elas que so titulares de direitos e sim os indivduos que as compem.
No se trata, fundamentalmente, de defender os direitos dos negros
ou dos judeus enquanto grupos tnicos e religiosos, e sim de
defender indivduos, titulares de direitos universais, entre os
quais o direito de no-discriminao por motivos de raa ou religio. Os
direitos desses indivduos incluem no somente o de ter uma religio
especfica ou de conservar a cultura em que foram socializados como
o direito de recusar essa religio ou cultura. Pois para o
Iluminismo a dignidade mais alta do indivduo est em sua capacidade
de passar por descentramentos sucessivos, superando, se assim o
desejar, vnculos que no foram escolhidos por sua razo - a famlia, o
grupo, a cultura. Para o Iluminismo o indivduo constri sua prpria
identidade, em vez de herdar dos pais uma identidade pr-fabricada.
Seu estatuto tnico, cultural ou nacional resulta de uma escolha
adulta, no do fato aleatrio, pelo qual ele no responsvel, de ter
nascido num certo pas, dentro de uma cultura determinada. Atribuir
valor moral ao episdio contingente da natalidade um trao da tica
feudal, contra a qual se insurgiu a Ilustrao e se insurge o
Iluminismo.
o que deixa muito claro Beaumarchais, nessa mquina de guerra
antifeudal que o Mariage de Figaro. Eis como nosso barbeiro
subversivo exprime seu ressentimento contra o conde Almaviva, o
grande de Espanha que quer roubar~lhe a mulher: "Noblesse, fortune,
un rang, des places [...] Qu' avez-vous fait pour tant de biens?
Vous vous tes donn la peine de naitre, et rien de plus". Com essas
palavras, Figaro falou em nome do Ilurninismo como um todo. O
Iluminismo questiona sistematicamente o estatuto imposto a cada um
pelas circunstncias do seu nascimento.
36 O ideal iluminista o da autoformao, da Bildung individual, o
que pressupe a apropriao da cultura pr-existente, mas pressupe
tambm a possibilidade permanente de romper com os modelos e normas
dessa cultura.
Autonomia: para o Iluminismo, ela tem dois estratos, a liberdade
e a capacidade. A liberdade tem a ver com os direitos, e a
capacidade com o poder efetivo de exerc-los. No h autonomia se um
dos dois estratos est ausente. No sou autnomo se no sou livre para
exercer uma atividade e se no tenho condies materiais para fazer
uso dessa liberdade. Esse conceito de autonomia em dois estratos
distingue fundamentalmente a acepo iluminista da liberal, que via
de regra s considerava a autonomia como liberdade.
A concepo iluminista individualista e social. A autonomia a
autonomia do indivduo, o que coerente com o foco individualizante
do Iluminismo. Mas com a incluso do conceito de capacidade na
definio de autonomia, Iluminismo incorporou a seu corpo terico um
elemento extra-individual, vindo
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Rouanet, Sergio Paulo, Iluminismo ou barbrie , in Mal estar na
modernidade, S. Paulo, Cia das Letras,1993, pp 9-45.
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da tradio socialista: a distino entre os direitos "formais" e os
"substantivos". Alm disso, em sua formulao mesma o conceito de
autonomia remete sempre ao social. Cada dimenso da autonomia se
enraza no sistema social como um todo e mais especificamente
naquele segmento da sociedade com que tem afinidades especficas: a
autonomia intelectual, a poltica e a econmica se vinculam, de modo
preferencial, ao sistema cultural, poltico e econmico,
respectivamente. Quero sinalizar com isso que existe uma relao
dialtica entre indivduo e sociedade, nas duas direes. A autonomia
individual precisa, para concretizar-se, de dispositivos sociais
que a assegurem, e esses dispositivos se reforam com a ao do
indivduo autnomo.
A autonomia intelectual o ideal mais irrenuncivel do Iluminismo.
Ele o recebeu da Ilustrao, atravs dos filsofos do sculo XVIII e
sobretudo atravs de Kant, que formulou para seu tempo e o nosso o
grande objetivo da maioridade cultural, da recusa de todas as
tutelas, e o resumiu na palavra de ordem que est inscrita no prtico
da cidade iluminista: sapere aude, "ousa servir-te de tua razo".
Aprendeu a transform-lo em prtica poltica corrente com o
liberalismo, que institucionalizou nas sociedades democrticas
modernas a liberdade de expresso e de criao cultural e difundiu nas
escolas e universidades a tica do livre exame, que a Reforma
luterana legou Ilustrao e esta transmitiu a seus herdeiros.
Recebeu, enfim, do socialismo e da moderna crtica da cultura, uma
lio de sobriedade, que serviu no para temperar o entusiasmo
ilustrado-liberal pelo ideal da razo autnoma, mas para indicar a
necessidade de dar-lhe fundamentos mais slidos: para esses crticos,
a razo no assim to au-
37 tnoma para os que carecem de condies econmicas e educacionais
para exerc-la e para os que tm sua conscincia bombardeada pela ao
mistificadora da mdia e outros ''aparelhos ideolgicos de Estado''.
Uma razo que tenha passado pela experincia do marxismo, como a razo
iluminista, no pode se dar ao luxo de ignorar a teoria da
ideologia, julgando, como a Ilustrao, que o erro contingente,
provocado pela impostura do clero e dos tiranos. A falsa conscincia
uma estrutura de ocultao sistemtica, e no pode ser removida por
atos pontuais de conscientizao. Conseqentemente, o Iluminismo sabe
que embora a educao para a liberdade seja um caminho importantssimo
para o atingimento da autonomia intelectual, ela precisa dar-se no
bojo de um processo global de emancipao, abrangendo,
solidariamente, todas as formas de autonomia.
Quanto autonomia poltica, o Iluminismo recolhe do pensamento
ilustrado a oposio incondicional ao despotismo sob todas as suas
formas. Aprende com o liberalismo o valor da liberdade civil,
entendida como a faculdade que tem o homem, enquanto particular, de
agir no espao privado sem interferncias ilegtimas, e o da liberdade
poltica, entendida como a faculdade que lhe assiste, enquanto
cidado, de agir no espao pblico. Aprende, enfim, com o socialismo,
a refletir sobre a questo das condies materiais para o exerccio da
autonomia poltica.
Podemos dizer, portanto, que a autonomia poltica do Iluminismo
incorpora, sincronicamente, diversas vagas que na histria real
foram sucessivas. Como essas vagas foram freqentemente
contraditrias entre si, elas foram assimiladas pela idia iluminista
numa unidade tensa, e no numa sntese harmonizadora. Houve uma vaga
liberal, mais preocupada com o direito de propriedade, de ir e vir,
de associar-se, de no ser preso arbitrariamente, que com a formao
do governo pelo voto popular; uma vaga democrtica, mais preocupada
com as prerrogativas eleitorais da maioria que com as garantias
individuais; e uma vaga socialista, mais preocupada em assegurar
uma autonomia "substantiva" que em salvaguardar seja a liberdade,
seja a democracia. Os liberais foram antidemocratas por elitismo;
os democratas foram muitas vezes antiliberais em nome da vontade
geral; empunhando a bandeira dos direitos concretos da classe
operria, muitos socialistas foram antiliberais e
antidemocrticos.
Essas contradies se atenuaram nos regimes social-democratas
modernos, mas no h dvida de que a virtualidade do conflito est
sempre presente. S numa repblica de anjos os que detm posies de
poder sero totalmente democratas, concordando em reparti-las com
todos; os que se elegeram pelo voto majoritrio sero totalmente
liberais, dispondo-se a morrer pela defesa dos direitos da minoria;
e os que representam as classes populares sero totalmente liberais,
lutando at a ltima gota de sangue pelo direito de O Estado de S.
Paulo publicar um editorial contra
38 o PT, e totalmente democratas, saudando com delrio cvico a
vitria nas urnas de uma coligao conservadora.
Como as coisas no se passam assim na vida real, nem deveriam
passar-se, e como de qualquer modo os anjos no precisam de repblica
(por tudo o que se sabe, inclinam-se muito mais pela monarquia de
direito divino), precisamos recolher na idia iluminista os momentos
de antagonismo que existem na vida poltica real. Eles devem
permanecer intactos, coexistindo, opondo-se, sem banalizao, sem
amlgama, sem sntese. S a esse preo o conceito iluminista de
autonomia poltica pode incorporar-se idia iluminista, servindo de
padro de medida para denunciar situaes geradoras de heteronomia.
Entras
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Rouanet, Sergio Paulo, Iluminismo ou barbrie , in Mal estar na
modernidade, S. Paulo, Cia das Letras,1993, pp 9-45.
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estas, esto o uso antiliberal da democracia e o uso
antidemocrtico do liberalismo; o uso das instituies liberais e
democrticas como fachadas para camuflar a injustia social; e o uso
da injustia social como libi para suspender as instituies liberais
e democrticas.
O conceito iluminista de autonomia econmica pode ser
compreendido mais claramente se voltarmos aos dois estratos que
compem, em geral, a autonomia iluminista: a liberdade e a
capacidade.
Do ponto de vista da liberdade, e por simetria com a autonomia
cultural, que inclui o direito dos agentes de usarem livremente sua
razo, e com a autonomia poltica, que inclui o direito de atuar
livremente no espao pblico, podemos dizer que a autonomia econmica
envolve o direito de livre participao na esfera da produo, da
circulao e do consumo. Ou seja, simplificando muito, assim como a
autonomia cultural compreende o direito de fazer cultura e de us-la
e a autonomia poltica o direito de votar e ser votado, a autonomia
econmica compreende o direito de produzir e consumir bens e
servios.
Do ponto de vista da capacidade, a autonomia econmica o atributo
de quem dispe das condies necessrias para usar efetivamente os
direitos econmicos. De acordo com essa segunda acepo, os milhes de
miserveis numa economia de mercado no so autnomos, por mais que
disponham de direitos econmicos formais. Liberais e socialistas
podem concordar nesse diagnstico. Mas enquanto os primeiros acham
que o apoio autonomia-liberdade a melhor forma de aumentar a
riqueza coletiva, estendendo a um nmero cada vez maior de pessoas
os benefcios da autonomia-capacidade, os segundos consideram
necessria, para esse fim, a interveno do Estado. Qual a posio
iluminista?
O Iluminismo v a autonomia econmica como v a autonomia em geral,
isto , no prisma da autodeterminao humana e como a negao de
qualquer forma de tutela ou de limite no aceito pela prpria razo.
Isto significa, concretamente, que no pode aceitar nem a ditadura
do Estado nem a do mercado. A primeira cerceia politicamente a
liberdade de
39 agir, e a segunda, transformando regularidades econmicas em
leis, converte a sociedade em natureza e sujeita o indivduo a
determinismos sobre os quais tem to pouco controle como sobre o
movimento das mars. Contra as duas heteronomias, o Iluminismo
afirma os valores originais da liberdade, e ope a ambos os
fetichismos uma razo desmistificadora capaz de derrubar os dois
dolos gmeos do foro e da feira.
O Iluminismo condena de modo visceral e irreversvel uma
sociedade em que milhes de crianas e adultos esto condenados doena
e morte por inanio. A incorporao desses deserdados ao sistema
econmico um dos componentes mais fortes do ideal civilizatrio do
Iluminismo.
Mas se os fins so unvocos, o Iluminismo flexvel quanto aos
meios.Exatamente por no idolatrar nem o Estado nem o mercado, o
Iluminismo pode aceitar que em casos concretos prevaleam solues
liberais puras, em outros solues governamentais e em outros ainda
solues mistas, com a nica reserva de que em nenhum caso sero
tomadas medidas patemalistas, revelia dos diretamente
interessados.
A autonomia-capacidade o critrio da verdadeira autonomia: esta
ser abstrata se o indivduo no for capaz de us-la. Se a
autonomia-liberdade for efetivamente um meio hbil para alcan-la,
como afirmam os liberais, o iluminista no ter nenhuma objeo, porque
tem afinidades eletivas com todas as doutrinas favorveis ao
desdobramento livre da atividade individual. Mas, como os
socialistas, ctico quanto competncia do mercado para assegurar aos
que j no dispem da autonomia-capacidade o uso efetivo da
autonomia-liberdade. Em outras palavras, no se trata de ignorar a
autonomia-liberdade, como fazem os socialistas, nem de admitir que
ela j existe para todos ou se generalizar a longo prazo pelo
simples jogo espontneo das foras econmicas, como fazem os liberais,
mas de incluir no conceito de autonomia a enunciao das condies
objetivas para que a liberdade se transforme em capacidade.
bvio que essas condies extravasam o mbito do mercado. Elas
incluem medidas de carter jurdico, coibindo os oligoplios e
portanto facilitando a atuao das micro e pequenas empresas; medidas
de formao bsica e profissional, destinadas a preparar os pequenos
empresrios para enfrentarem a competio; e medidas financeiras,
visando o financiamento das novas atividades. Alm dessas medidas,
so importantes, em geral, medidas tendentes a melhorar as condies
materiais de vida das pessoas de baixa renda, com as quais se
reforaria a capacidade do individuo de usar na prtica sua
autonomia-liberdade. Quebra-se, assim, a situao circular em que a
autonomia-liberdade, considerada indispensvel para alcanar a
autonomia-capacidade, por sua vez pressupe esta ltima para se
tornar efetiva.
40 Tudo isso presume uma forte presena do Estado, o que no
constitui nenhum escndalo para o
Iluminismo. Ele contra a ao patemalista de um Estado ditatorial,
que pretende defender o povo sem sua participao, e no contra a ao
do prprio povo agindo atravs do poder pblico. Uma coisa a
-
Rouanet, Sergio Paulo, Iluminismo ou barbrie , in Mal estar na
modernidade, S. Paulo, Cia das Letras,1993, pp 9-45.
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interveno do Estado, e outra a interveno no Estado e atravs do
Estado, pela mediao de representantes legitimamente eleitos, tanto
no Executivo como no Parlamento. Vale dizer que essa interveno
sempre poltica, sempre desejada expressamente pelos prprios
interessados, e nunca administrativa, imposta de cima para baixo
por elites autodesignadas.
Dentro desses limites, o Estado investe maciamente no setor
social - educao, sade, transporte, saneamento bsico, previdncia, e
adota polticas fiscais destinadas a melhorar a distribuio de renda.
Com isso, aumenta a autonomia-capacidade de um nmero cada vez maior
de indivduos, isto , refora-se e irradia-se socialmente o poder dos
indivduos de funcionarem como verdadeiros agentes econmicos, tanto
como produtores quanto como consumidores, tanto como empregadores
quanto como assalariados, em toda a faixa do agir econmico,
estabelecendo atividades produtivas, consumindo, poupando e
investindo.
Alcanada a autonomia econmica, em seu sentido completo, as
demais formas de autonomia adquirem uma base concreta. Desse modo,
as liberdades "formais" deixam de ser vazias. Os homens no somente
tm o direito de agir na esfera cultural e na poltica - a
liberdade
como adquirem o poder efetivo de agir - a capacidade