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III Semana de Ciência Política Universidade Federal de São Carlos 27 a 29 de abril de 2015 SAÚDE MENTAL INFANTO-JUVENIL: RELAÇÕES ENTRE A CIÊNCIA E A POLÍTICA Arieli J. Buttarello 1 Thales Haddad Novaes de Andrade 2 APRESENTAÇÃO O texto que se segue está pautado na discussão das práticas atuais de cuidado à saúde mental infantojuvenil no Brasil que são legitimadas constitucional e cientificamente a partir de institutos que contam com complexo esquema de pesquisa, financiamento e intervenção. Ao se buscar validar os melhores meios de cuidados e intervenções e prevenções dos transtornos mentais a tal grupo, geram-se disputas para validar e legitimar tais ações. Assim, teremos como base para refletir sobre tal fato os documentos oficiais da Associação Brasileira de Psiquiatria, as publicações legislativas governamentais e as perspectivas do Instituto Nacional de Psiquiatria do Desenvolvimento para Infância e Adolescência articulado com o Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação. A análise tem como base teórica as concepções de Pierre Bourdieu acerca do campo científico. A pretensão pelo esforço de elucidar questões concernentes às disputas entre as diferentes visões de como guiar o andamento da política pública voltada a tal população específica, visam a obtenção de um espaço de discussão acadêmica acerca da interação dos estudos CTS e a área temática da Psiquiatria infantil, campo recente de interesse no Brasil e ainda com grandes lacunas e gerador de polêmicas entre grupos científicos ou não. A apresentação visa abordar a interconexão no mundo prático da relação entre a Política Nacional de Saúde Mental (PNSM) e a pressuposta hierarquia científica-psiquiátrica e a noção de autonomia do grupo em questão. O que não podemos perder de vista diante os apontamentos aqui dados são que os códigos legais, as 1 Discente do curso de pós-graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade Federal de São Carlos e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). 2 Professor adjunto do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos.
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Nov 09, 2018

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III Semana de Ciência Política

Universidade Federal de São Carlos

27 a 29 de abril de 2015

SAÚDE MENTAL INFANTO-JUVENIL: RELAÇÕES ENTRE A CIÊNCIA E A

POLÍTICA

Arieli J. Buttarello1

Thales Haddad Novaes de Andrade2

APRESENTAÇÃO

O texto que se segue está pautado na discussão das práticas atuais de cuidado à

saúde mental infantojuvenil no Brasil que são legitimadas constitucional e

cientificamente a partir de institutos que contam com complexo esquema de pesquisa,

financiamento e intervenção. Ao se buscar validar os melhores meios de cuidados e

intervenções e prevenções dos transtornos mentais a tal grupo, geram-se disputas para

validar e legitimar tais ações. Assim, teremos como base para refletir sobre tal fato os

documentos oficiais da Associação Brasileira de Psiquiatria, as publicações legislativas

governamentais e as perspectivas do Instituto Nacional de Psiquiatria do

Desenvolvimento para Infância e Adolescência – articulado com o Ministério de Ciência,

Tecnologia e Inovação. A análise tem como base teórica as concepções de Pierre

Bourdieu acerca do campo científico. A pretensão pelo esforço de elucidar questões

concernentes às disputas entre as diferentes visões de como guiar o andamento da política

pública voltada a tal população específica, visam a obtenção de um espaço de discussão

acadêmica acerca da interação dos estudos CTS e a área temática da Psiquiatria infantil,

campo recente de interesse no Brasil e ainda com grandes lacunas e gerador de polêmicas

entre grupos científicos ou não. A apresentação visa abordar a interconexão no mundo

prático da relação entre a Política Nacional de Saúde Mental (PNSM) e a pressuposta

hierarquia científica-psiquiátrica e a noção de autonomia do grupo em questão. O que não

podemos perder de vista diante os apontamentos aqui dados são que os códigos legais, as

1 Discente do curso de pós-graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade Federal de São

Carlos e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). 2 Professor adjunto do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos.

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instituições e o ordenamento social refletem intenções, perspectivas e expectativas de

nossa sociedade atual; e também que ao colocarmos a existência de disputas pelo domínio

da verdade em como lidar com crianças e adolescentes com “transtornos mentais”,

estamos colocando disputas de domínios que refletem diretamente à vivências, à

interferências em vidas e famílias e a modos de pensar e agir.

Iniciemos abordando os conceitos analíticos bourdieusianos adotados para refletir

sobre o objeto proposto.

CONCEITOS GERAIS DE PIERRE BOURDIEU

A epistemologia e a praxiologia que sistematiza o pensamento de Bourdieu é

denso3 e a intenção aqui não é pormerizá-lo por conta de seus distintos detalhes, portanto

ignorando pontos de seu sistema. O que nos interessa é apontar que a visão de mundo

bourdieusiana entende o social como espaço de disputas, de jogo, de lutas. Adota-se seu

modo de pensar relacional, ou seja, a noção de que uma parte ampla é constituída por

partes divididas que são particulares (o que denomina campo), mas dependentes entre si,

sendo o todo dependente delas e elas são dependentes do todo. Tais particularidades

possuem capacidade de combinação, dando diferentes formas ao todo que fazem parte.

Bourdieu coloca-nos que o real é um caso particular do possível, ou seja, não há como

previr quais as relações que se darão entre as partes; cabendo ao pesquisador anunciá-las

como se dão e não como serão. Ao seguirmos isso, colocamos aqui as hipóteses de

formação das partes que estão constituindo ou destituindo o campo da Psiquiatria infantil,

considerando que esse molda-se conforme o social o molda e molda o social conforme se

molda.

3 Além das obras do próprio autor, indica-se artigos elucidativos para melhor compreensão do pensamento

bourdieusiano como Pierre Bourdieu: a teoria na prática de Hermano Roberto Thiry-Cherques (2006) e

“O real é relacional”: uma análise epistemológica do estruturalismo gerativo de Pierre Bourdieu de

Frédéric Vandenbergue, sob tradução de Gabriel Peters.

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Temos então como referência a teoria geral dos campos que se resume em

compreender a esfera social como dividida em partes autônomas simultaneamente

interconectadas, que objetivam a autonomização progressiva e então menos intervenção

das partes alheias; agindo assim a partir de tentativas de “englobar” o que a outra parte

possui para então fazer crescer a si mesmo ou buscando alianças entre as partes com a

mesma intenção; evidenciando que o mundo dá-se de forma conflitual. Os campos são

movidos pelos agentes que deles participam, definidos como jogadores, que agem de

acordo com estratégias de defesa de seu campo e em benefício próprio, disputando com

os outros jogadores os troféus que o campo oferece. Bourdieu afirma que cada campo

opera com um tipo de poder; sendo que o que é tão prezado em um pode não ter valor em

outro4. Exemplificamos com o nosso caso sobre a disputa pela legitimação dos cuidados

à saúde mental infantoinfantil, que será melhor entendido ao desenrolar do texto.

Abordamos as disputas entre a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e a

PNSM ao que nos leva a questionar qual a validade de um psiquiatra (agente do campo

científico) diante os legistas da agenda política (agentes do campo político).

A teoria geral dos campos complementa-se com a noção de habitus, definido

como uma segunda natureza; como um princípio de ação infraconsciente, como uma

espécie de programa que todos nós carregamos, em que cada agente afirma verdades em

sua disciplina e em seu domínio de validade, construindo o campo como local simultâneo

de disputa e local de defesa de ataques externos. No campo em questão, o da ciência

psiquiátrica, podemos apontar conflitos sobre a classificação de seu objeto (a doença

mental) que incluem segmentos sociais, científicos ou não, que querem “opinar” sobre

tais definições. Questões que oposicionam os tipos de tratamento que devem ser dados

(restritos às concepções psiquiátricas ou não) surgem constantemente e é desses ataques

que a Psiquiatria necessita proteger-se e então cada vez mais busca arsenal teórico e

4 A definição que dá para tais troféus é a acumulação de capitais, conceito retido da teoria marxista e

expandido para outros tipis de capitais formulados por Bourdieu, além do unidimensional econômico de

Karl Marx.

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explicativo para suas ações, dominando ou articulando-se com outros campos além do

seu.

Para melhor compreensão do que tomamos como a atual disputa para guiar a

forma de cuidar, prevenir e intervir e remediar a população em questão (as crianças e

adolescentes com transtornos mentais), apresenta-se um breve histórico do surgimento do

campo psiquiátrico infantil em que buscamos elucidar a forma conflitual que se moldou

a seu redor.

CONSTITUIÇÃO DA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA E POLÍTICAS

ESPECÍFICAS

Denomina-se a Psiquiatria infantil como um subcampo por conta de seu

surgimento como relegada às concepções da Psiquiatria do adulto, ainda em busca de uma

real autonomia. A imposição científica da Psiquiatria Geral dá-se pela necessidade de

intervir sobre o anormal que surge quando da constituição dos aglomerados urbanos, na

fase capitalista industrial; sob os preceitos de “higienização” urbana que diagnostica a

desordem que o acúmulo de pessoas causava traduzindo-se em diagnósticos pessoais.

Instituições específicas são criadas tendo por base a lógica capitalista de acúmulo, como

escolas (local para pais-trabalhadores deixarem seus filhos) e hospícios (local para

aqueles que “atrapalham” o desenvolvimento saudável da sociedade que vinha se

consolidando).

Os hospícios surgem diante a lógica apontada, mas também diante a explicação

médica da necessidade de afastamento dos doentes mentais (loucos) do caos urbano –

sob a consideração do doente ser perigoso para a sociedade e também sob a consideração

de tratamento. A Psiquiatria constitui-se como instrumento técnico-científico a serviço

direta ou indiretamente do Estado; sendo relevante apontar que o início de sua legitimação

foi (e é, como apontaremos) conflituosa, pois surge como uma Medicina do

Comportamento, não tendo como base explicações biológicas e físicas, sendo então

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relegada ao não-cientificismo5. A Psiquiatria surge com dificuldades de limitar e

compreender em si mesma sua epistemologia, filosofia e então práxis – sendo a questão

“o que é a loucura?” uma constante que se renova a cada transformações explicativa-

científica, denominativa em termos (loucura/doença mental/transtorno mental) e social.

Dessa época, tem-se a consolidação das bases da noção de que a medicina visa a

civilizar e urbanizar o homem e então tem-se a ideia de prevenção como racionalidade

emergente. Ao buscar validar essa concepção, o campo médico prolonga-se além de seus

contornos e intervém em instâncias (voltadas ao nosso interesse sobre crianças e

adolescentes) familiares e escolares, pautando formas de agir sob seus preceitos tidos

como saudáveis baseados em noções morais, que constituíam-se não em uma ciência

médica em prol de saúde, mas sim uma polícia médica6.

É na década de 1930 que se dá a sistematização da atenção psiquiátrica voltada à

infância; contexto em que se desenvolvia os ideais eugênicos7. A partir de então, segundo

Bercherie (2001) apud Delgado e Lauridsen-Ribeiro (2014, p. 40), “houve um declínio

da pesquisa clínica na Psiquiatria do adulto, sendo que a investigação psicopatológica foi

adotada pela psicanálise. Esse novo período, portanto, é caracterizado pela influência

dominante que a psicanálise exerce sobre a clínica infantil. Também importante é a

colaboração entre a pediatria e a psicanálise, com o modelo psicossomático ganhando

evidência”. Assim, a clínica pedo-psiquiátrica estrutura-se de forma particular, sendo a

5 Época de consolidação da cientificidade como verdade; em oposição às noções que então são vistas como

supersticiosas e charlatãs. A medicina profissionaliza-se e é compreendida como uma ciência

desinteressada que age por único objetivo ao bem geral da população. Cabe apontar que o caráter de

interesse que embute o meio científico foi identificado e disseminado a partir da teorização de Bourdieu. 6 Sobre a psiquiatrização na escola consultar Machado (1977) e Foucault (2006). Um breve resumo sobre

essas considerações históricas também podem ser encontradas em Buttarello (2014) disponível em:

http://www.14snhct.sbhc.org.br/conteudo/view?ID_CONTEUDO=800. 7 As noções eugênicas – especialmente na Alemanha - disseminadas e adotadas por diversas ciências nos

diversos países; foram ideias que contribuíram para os princípios que incentivaram os psiquiatras brasileiros

a pretensão de colaborar com a criação de uma nação próspera, moderna e mais saudável de acordo com o

movimento de “Higiene Mental”, que após a II Guerra Mundial e a criação da Organização Mundial da

Saúde(OMS), tal termo foi substituído por Saúde Mental, em consonância com a definição ampliada de

saúde que vinha se elaborando – não mais baseada em “ausência de doença”, mas em completo bem-estar

físico, psicológico e social. Nascimento, Coimbra e Lobo (2012) apontam a INPD como uma nova eugenia.

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clínica psicopatológica dada essencialmente a partir dos estudos dos psicanalistas;

diferente da clínica psiquiátrica do adulto que em sua forma psicanalítica é marcada pelo

espírito médico que a constitui8.

No Brasil é a partir dos anos 1940 que começam a surgir algumas ações do estado

voltadas para a população infantojuvenil, como a criação nessa década do Departamento

Nacional da Criança – órgão conjunto do Ministério da Saúde e da Educação - com

programas envolvendo a maternidade, a mortalidade infantil e a delinquência; e o Serviço

de Assistência do Menor (SAM) – órgão do Ministério da Justiça – que funcionava sob

orientação correcional-repressiva, que foi alvo de críticas que culminou na criação em

1964 da Funabem (Fundação do Bem-Estar do Menor) que herda sua cultura

organizacional. Na década de 1950, destaca-se a criação da Associação de Pais e Amigos

de Excepcionais (APAE) com ampla multiplicação, agindo no vazio deixado pelo Estado

e reforçando o caráter filantrópico do cuidado a essa população. Em 1964 implanta-se a

ditadura e estagna qualquer tipo de avanço que objetivasse o bem-estar real das crianças

e adolescentes. Na década seguinte iniciam-se lutas contra o regime em vários setores da

sociedade.

Inicia-se, também nessa época, em países da Europa (Inglaterra, França e Itália) e

Estados Unidos, movimentos de contestação da ordem psiquiátrica (sob diferentes

abordagens e não-homogêneos nos países) – que pressupomos ter por base o movimento

pós-II Guerra Mundial que trouxe questionamentos acerca do caminhar dos usos da

ciência e da tecnologia, emergindo modificações gerais na forma de interação ciência-

tecnologia-indivíduo, trazendo a necessidade de debater e repensar vários campos

científicos. Ainda nessa época, emerge-se um contexto de avanços das neurociências,

8 Conforme apontaremos, como uma das bases do texto, uma forte crítica à forma psiquiátrica atual de

cuidar da infância e adolescência é o uso medicamentoso; cabendo aqui a questão que se faz necessária

abordar através de uma pesquisa profunda de como se deu o percurso desde seu início “externo-restrito” à

prática médica até a abordagem atual.

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elaboração e adoção do DSM9, desenvolvimento de novos medicamentos voltados ao

campo da Psiquiatria infantil e técnicas de terapia cognitivo-comportamental; fluindo

para a expansão da dimensão biomédica do campo da saúde mental, especialmente a partir

de 1990.

No Brasil, o movimento que denunciou a prática cronificadora e perversa da

Psiquiatria dos hospícios e manicômios deu-se de forma popular com atores profissionais

ou não em prol da causa de melhorias de tratamento aos doentes mentais. Uma das

principais transformações que tal movimento (Reforma Psiquiátrica Brasileira – RPB)

produziu foi o “desenvolvimento de um importante campo de reflexões e produção de

conhecimento, o campo da Atenção Psicossocial, que é multidisciplinar, sendo baseado

nas tradições da Psiquiatria, da Psicologia e Psicanálise, bem como na Assistência

Intersetorial, com importante participação nas universidades e na formação de novos

profissionais”. Emerge uma outra forma de lidar com o doente mental através de nova

concepção de indivíduo que sofre e também outra forma de institucionalizar.

Diante o contexto que vinha ebulindo mudanças em diversas esferas, local ou

global, tem-se o início de construção da noção de crianças e adolescentes como sujeitos

de direitos – até então relegados legislativamente – e a criação de um sistema público de

atendimento de saúde para a população brasileira que abraçou a nova abordagem de saúde

mental. A seguir coloca-se sobre a relação desses últimos pontos.

INFANTOJUVENIS: SUJEITOS DE DIREITOS SOB TUTELA:

PARTICIPAÇÃO ATIVA OU EXISTÊNCIA LEGISLATIVA?

Assim como a Psiquiatria delegou para si a validade de detectar os diversos

perigos que podem ameaçar a existência de uma sociedade em vias de normalização, as

instâncias controladas da infância e juventude surgem sob as mesmas premissas. A

9 Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. Referencial norte-americano de classificações

diagnósticas adotado por diversos países que se encontra em sua quinta edição e recebe muitas críticas de

campos científico ou não, por conta de tornar doenças atitudes típicas diante estados de sofrimento humano.

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ciência psiquiátrica não se coloca como uma “Psiquiatria preventiva”, mas sim como

instrumento de prevenção” – característica atual que a acompanha desde o início, apenas

modificando as formas de atuação.

Segundo afirmações de Ariès (1978) o sentimento de infância surge em meados

do século XVIII, sendo anteriormente inexistente a divisão entre o mundo adulto e o

mundo infantil, dando início a organização de práticas e saberes especializados a

discursarem sobre tal grupo – ao referirmo-nos a Bourdieu, apontamos que o campo de

cuidados aos infantojuvenis surge dessa separação. No Brasil, a atenção às crianças inicia-

se na década de 1920 quando de uma legislação de proteção e assistência, sob um modelo

filantrópico e de compreensão da pobreza como geradora das crianças abandonadas e

jovens delinquentes (Código Mello Mattos, Decreto nº 17.943-A de 1927) funcionando

sob a lógica de isolamento dos “desviantes” com a privação de liberdade por meio da

institucionalização (lógica da segregação, fortemente difusa em vários setores; como já

apontado o hospício). Após essa legislação, as que são apontadas como transformadoras

jurídicas e sociais da infância e adolescência em nosso país são o Código de Menores

(1979) sob o controle a partir de internações em massa; sendo aplicado “em grande

medida, a crianças e adolescentes que se encontravam em situações vulneráveis em

decorrência de abandono, carência, vitimização em crimes ou por desvio de conduta e/ou

autoria de infração” e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (1990) que prevalece

atualmente, em busca de avanços (EDUARDO; EGRY, 2010).

Como apontado por Eduardo e Egry (2010) O ECA impulsionou o aumento de

programas específicos, porém não significou aproximação ao seu objeto, já que a partir

dos resultados de seu estudo concluem que as instituições percebem a adolescência e o

adolescente devestido de sua sociabilidade e historicidade, e que o objeto da atenção

continua o adolescente com problemas, e não o sujeito de direitos.

O ECA flui em um contexto em que no âmbito global, dispara-se prerrogativas

defendidas pela Convenção sobre os Direitos da Criança, adotadas a partir dos consensos

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das discussões promovidas na Assembleia Geral das Nações Unidas em 1989, na qual a

adolescência é oficializada como programa a ser adotado pelas nações signatárias; e no

âmbito local sob as transformações políticas dadas pela Constituição Federal de 1988, e

especificamente à área da Saúde pelas leis criadoras do SUS. Cabendo os direitos

fundamentais das crianças e adolescentes à família, sociedade e Estado, a sociedade

brasileira baliza-se em uma doutrina de proteção integral – que carrega a força de

vontade de garantia de tais atos em alguns agentes em alguns campos relativos ao cuidado

e proteção a esse grupo e também carrega a problemática de tal grupo ainda permanecer

reconhecidamente sob atuação passiva.

É na década de 1990 que a atenção à saúde mental das crianças e adolescentes

começa a tomar rumo. Em 1994 realiza-se a II Conferência Nacional de Saúde Mental,

motivadora da criação do Fórum Nacional de Saúde-Mental Infantojuvenil em 2004, que

trouxe visibilidade às questões que sempre estiveram em segundo plano ou eram até

mesmo ignoradas. A partir dos anos 2000 há fortalecimento da saúde voltada a vários

extratos populacionais, tendo-se legislações específicas aos portadores de saúde mental e

aumento de interesse sobre o grupo infantojuvenil, incluso em prioridades da agenda

política, fluindo em cuidados e proteção através de escopo legislativo.

Em 2001 implementa-se a Lei nº 10.216 que introduz no Sistema Único de Saúde

(SUS) um novo dispositivo para lidar com o doente mental – reivindicação surgida pelo

movimento da RPB, já apontada. Criam-se os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS)

como novos meios de tratamento do doente mental, objetivando a substituição dos

hospitais psiquiátricos sob a nova abordagem ética de inserção social e tratamento

multidisciplinar – ou seja, há a pretensão de quebra do caráter hospitalocêntrico e também

do “psiquiatrocentrismo” como únicas formas de acesso do doente a algum tipo de

intervenção de cuidado. Voltado aos infantojuvenis, tem-se em 2002 através da Portaria

nº 336 a institucionalização do Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil (CAPSi),

fruto da demanda tanto da RPB quanto do movimento de defesa aos direitos desse grupo.

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Após anos de existência, ainda encontra-se escassa na literatura publicações

contendo avaliação mais detalhada sobre o funcionamento desses Centros; sendo os

documentos oficiais do governo a base das afirmações da situação atual da saúde mental,

o que traz a limitação de uma perspectiva específica (COUTO; DUARTE; DELGADO,

2008). Diante tais considerações, releva-se questionar sobre o andamento da decisão de

reverter o quadro atual da infância e adolescência no Brasil.

Tal questão é bem posta por Eduardo e Egry (2010) que evidenciam que a maioria

dos programas e projetos hoje existentes no Brasil para o atendimento de adolescentes

está relacionada à capacitação do jovem para o trabalho, visando a inserção no modo

capitalista de produção, e chamam a atenção para a existência de foco em certas classes

sociais, sendo tais projeto políticos direcionados, sob a premissa de “adolescente pobre

que não pode estudar, tem que trabalhar para não virar bandido”, assim como uma

marca sexista em tais projetos, por exemplo, com cursos de cabeleireira para meninas e

marcenaria para meninos; além de destacarem que os cursos oferecidos restringem a

escolha à trabalhos subalternos, assim tendendo à manutenção da situação da classe

social. Os autores ainda mencionam a fala de uma entrevistada em suas pesquisas sobre

a temática em que afirma “lugar de deficiente é só na APAE”. Destacamos a ideia

explícita de que “o diferente só pode conviver com o diferente”, além da existência de

um marasmo na assistência. Tal grupo é entendido como uma massa homogênea de

interesse* perpetuando o viés assistencialista das instituições cuidadoras desses

indivíduos, sendo mínimo os efeitos para o alcance da cidadania e garantia dos direitos.

Ao garantir proteção, visa-se apenas minimizar o problema e não acabar definitivamente

com os aspectos negativos que envolvem esta questão.

No campo da saúde mental, tais problemáticas podem ser apontadas através de

questionamentos acerca da autonomia dos usuários e da delegação de suas vontades aos

profissionais cuidadores desses (BUTTARELLO, 2014). Os indivíduos subjetivados

como doentes mentais são submetidos a viver dependentes de instituições de cuidados –

sejam instituições físicas em si ou metafórica, estando sujeitos à medicalização e tendo

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que delegar seu modo de viver aos sintomas definidos por científicos-profissionais.

Assim, aponta-se que o cuidar da criança significa instituir dispositivos não que se dirijam

apenas para seus atos, mas principalmente para o que lhe falta ser, o que deve ser (LIMA;

CAPONI, 2011, p.15), e a proteção que se busca oferecer nos diversos dispositivos

voltados para tal população é o de fragilizar a infância e a família pelo medo de um futuro

incerto e perigoso que precisa de especialistas para evitá-lo ao invés de positivar cada

momento da vida. Em busca de desenvolver o ser humano o que se faz é exatamente o

contrário: cria-se sujeitos temerosos e passivos!

A problemática que acompanha fortemente tal situação e atualmente bem

polêmica, dá-se pelo fato do uso predominante de medicamentos como forma de

tratamento. Os apontamentos sobre o abuso medicamentoso tornam-se bem preocupantes

quando o foco são as crianças e os adolescentes, que por serem vistos “em formação” não

há dados comprovados da ação dos remédios psiquiátricos a longo prazo. Dentro disso,

vê-se uma luta entre campos que dividem-se entre a ciência médica baseada no uso de

substâncias como forma de intervenção àquele que sofre contra as práticas de intervenção

que não fazem uso de medicalização, confluindo daí diversas abordagens que ou

entendem as visões como opostas ou como possíveis de harmonia e etc.

O que se importa apontar é que desde os anos 1970 a Psiquiatria tenta desvincular

sua atuação sobre o louco da violência que marca o corpo, que machuca e mutila, mas

reformulas tais práticas ao buscar transformar o corpo violento em corpo pacífico a partir

de medicamentos. A defesa dos psiquiatras sobre a crítica de abuso medicamentoso e

então de hiperdiagnósticos pauta-se na afirmação de que ter um sintoma não é ter o

problema, pois os sintomas devem causar prejuízo na vida das pessoas, que é o que

caracteriza a doença mental. Porém, quem mede o prejuízo às crianças são os adultos

responsáveis por ela e os profissionais legitimados a cuidarem e ensinarem, tornando as

explicações sobre a doença mental deterministas.

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Compreende-se então, o caráter misto de interpretar o que é a Psiquiatria infantil,

já que por estar em constante construção abre-se espaço para críticas. A seguir, apontamos

como está se dando a construção de tais premissas atualmente.

O ATUAL PARADIGMA DOMINANTE EM CONFLITO

REIVINDICAÇÕES DA ABP À PNSM:

Diante o complexo contexto e diversas questões abrangentes, pautaremo-nos nas

relações de poder que participam da fabricação de uma política pública, buscando apontar

a multiplicidade de discursos na construção da proposição política – que sob o olhar

bourdieusiano são conflitos de legitimidade por interesse de crescimento do próprio

campo – e o pressuposto de incapacidade de construção de redes de relações ampliadas o

suficiente para uma ruptura paradigmática com o que se critica, exatamente pelo fator de

o objetivo que se busca (garantia de saúde mental infantojuvenil com troféu) estar em

disputa e haver dificuldades de junção de forças para esses ou aqueles agentes ganharem

o jogo.

Como apresentado, a existência das instituições cuidadoras dos infantojuvenis

diagnosticados com transtorno mental dão-se por conta da PNSM, em consonância com

os princípios do SUS. Tal paradigma de cuidado surge impondo a quebra da hierarquia

médica-psiquiátrica como única ciência e tecnologia possibilitada a dominar o grupo em

questão – já que impõe legislativamente a abordagem multiprofissional. Assim, o campo

psiquiátrico, aqui representado pela ABP, vem reclamando ausência de influência sobre

políticas e elaboração das leis. A centralização das reclamações que nos interessa aqui

dá-se pela consideração da desvalorização do saber psiquiátrico e a redução do papel do

psiquiatra que vem sendo colocado como profissional secundário e prescindível à

Psiquiatria, assim como a discordância da construção de modelos assistenciais em saúde

mental centrados em um único equipamento, seja ele qual for, considerando que “a saúde

mental exige equipamentos diferentes para necessidades diferentes. Investe-se na

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desospitalização sem o concomitante investimento nos equipamentos substitutivos

(serviços hospitalares e extra-hospitalares), levando a uma desassistência generalizada”

(ABP, 2014, p. 6), denunciando que o programa definido pela PNSM não condiz com a

realidade.

Bueno et al. (2011) elucida as reivindicações da ABP em relação a atual PNSM,

apontando que as diretrizes da ABP de 2006 foram apresentadas por conta do “descaso

pela sua opinião no canais competentes do Ministério da Saúde”, defendendo que tal

documento segue uma ideia defendida pela Associação desde o final dos anos 1970; em

que foi contra o regime autoritário e centralizador, contexto em que não poderia “cumprir

seu papel de agente de aperfeiçoamento de agências de saúde mental” caso tal governo

persistisse. Ao se mudar o governo, mudaria o Estado e então modificaria toda a estrutura

de procedimentos políticos, apontando, como o já mencionado durante o texto, a

compreensão do papel da Psiquiatria como garantidora do bem-estar e em consonância

com o modelo econômico vigente.

O autor afirmando a posição da ABP aponta que a condição de saúde do povo em

tal contexto – em que se dava o início do movimento da RPB - expressava de modo direto

e alarmante o elevado custo social do crescimento voltado predominantemente para a

acumulação do capital, denunciando a articulação da medicina privada lucrativa com o

Estado autoritário através de eficientes elos burocráticos, que eliminavam a medicina

liberal. Coloca-se a insignificante expansão de hospitais públicos e a atuação do setor

privado como verdadeiras macro empresas, buscando maximizar seus lucros através da

terapêutica medicamentosa e redução de recursos humanos a níveis inaceitáveis – o que

é, “sem dúvida, uma das maiores distorções do setor, pois, se a relação médico-paciente

é importante em qualquer área da medicina, aqui ela é essencial, pois se contribui no

próprio núcleo do processo terapêutico”. Tais ações levaram (e levam) à “deteriorização

das condições de vida do povo brasileiro quer no plano material, quer no moral”, levando

à doenças ocupacionais pela excessiva carga de trabalho, e expansão do sofrimento

emocional causado por conta de submissão à situações de insegurança, dada pelo

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crescimento de favelas, “com contingentes populacionais cada vez maiores habitando

cortiços e mocambos”, aumento de criminalidade; custos de moradia e transporte e afins.

Cria-se uma esfera de “inutilidade dos projetos pessoais de futuro e a da esperança,

provavelmente a pior de todas” as situações humanas, já que o indivíduo perde seus laços

sociais 10.

Segundo documento da ABP (2009) afirma-se que os fatores que determinam a

prevalência da doença mental são: pobreza, sexo, idade, conflitos e catástrofes, doenças

físicas graves e ambiente familiar e social, tendo por base o Relatório sobre Saúde mental

no Mundo divulgado pela Organização Mundial de Saúde em 2001 que coloca que os

transtornos mentais trazem impacto econômico direto e indireto nas sociedades, sendo

prevenção uma redução de gastos. Perguntamo-nos se a as medidas preventivas adotadas

pela Psiquiatria dão-se apenas como um jogo do sistema capitalista onde estaríamos

vivenciando a reatualização da exclusão dos “incapacitados” a viver no novo modo de

produção dada a identificação de grupos aptos e não-aptos a algo. Mas qual seria o custo

de psiquiatrizar e medicamentalizar aqueles que se desenvolvem sob os critérios de

inaptidão? Vale-se uma abordagem mais aprofundada em tal questão, ficando por ora a

menção e opinião de Lima e Caponi (2011, p.6) quanto ao projeto do Instituto Nacional

de Psiquiatria do Desenvolvimento (INPD) - apresentado adiante - em que a questão é

“mais do que um posicionamento ético-humanista, a questão é eminentemente ético-

política”.

As atuais considerações que nos importam sobre a posição da ABP (campo

científico) em relação à PNSM (campo político) são dadas pelas críticas do cientificismo

sobre a forma que a política está articulada, em que há culpabilização do discurso médico

pelos desacertos da política anterior, ao em vez de trabalhar pela inclusão deste discurso

num contexto de saúde integral; pela discordância do sucesso terapêutico em fechar

hospitais psiquiátricos, considerados genericamente asilares; e a crescente

10 Relação indivíduo-sociedade como sofrimento diante o caos urbano, como desde o início da existência

da ciência psiquiátrica, contextualizado em nossa atualidade.

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“judicialização” da assistência e a freqüente confusão do Ministério Público entre direitos

de cidadania e indicações terapêuticas dificultam o trabalho”. Em resumo, as críticas da

ABP à PNSM que nos interessam dão-se pelos entendimentos de que: a exclusão do

hospital psiquiátrico especializado da rede de assistência não se sustenta cientificamente

e está gerando desassistência aos doentes mentais, por conta de ausência de validação de

forma efetiva do princípio de integração entre os diversos serviços, existindo “um

problema no planejamento das políticas públicas voltadas para a saúde mental é que a

qualidade e a resolutividade dos serviços atualmente prestados não são avaliadas: o que

é feito, onde, para quem, por que, como, a que custo e com quais resultados” (ABP, 2014,

p.7)

As propostas de mudanças que são apresentadas por Bueno et al. (2011), em

resumo, são a conscientização do público em geral para a importância da boa saúde

mental; divulgação de informações claras e acessíveis; melhorias da comparabilidade de

dados (intercâmbio entre Estados; prevenção; diagnóstico precoce e intervenção

imediata; apoio às necessidades e seguros à educação e emprego; prevenção da depressão,

suicídio e dependência química; políticas com foco na saúde mental dos jovens e políticas

de educação; saúde mental no local do trabalho; saúde mental dos idosos; luta contra

estigmatização e exclusão social. O que notamos é a ausência de especificações de ações

de como alcançar o que se sugere. Há sugestões também de diretrizes básicas para a

formulação de uma PNSM consistente e consequente; que “se efetivadas representarão o

início das grandes mudanças político-institucionais”

Especificamente voltadas para a população que visamos abordar um debate, temos

a existência de conflitos entre o campo científico e o campo político a partir da

institucionalização dos CAPSi e do INPD, que serão abordados a seguir.

SOBRE A PSIQUIATRIA DO DESENVOLVIMENTO: O QUE SE BUSCA?

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Como posto, a partir da década de 2000 a atenção ao público infantojuvenil pela

área de saúde mental ganha destaque, sendo tal temática apontada como uma das

principais necessitadas de produção de novos conhecimentos, a partir da agenda definida

pela Política Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde (PNCTI/S)

(BRASIL, 2005). Criam-se assim, tecnologias de prevenção e se aperfeiçoam os

dispositivos psi sob a premissa de proteção, a partir da imposição de corretivos desde a

mais tenra idade, onde temos atualmente uma psico-higiene mascarada com novas e sutis

linguagens científicas (Nascimento; Coimbra; Lobo, 2012). A visão psiquiátrica que vem

se impondo no Brasil é a da Psiquiatria do Desenvolvimento, entendida como um novo

paradigma, em que suspeitamos dessa novidade já que o processo de construção histórica

do transtorno mental sempre se deu em busca desse ideal desenvolvimentista, e sempre a

partir da infância; como bem apontado por Foucault (2006), em que a criança foi o suporte

da difusão do poder psiquiátrico, construindo um cordão em que outras especialistas são

convocadas a participar.

Em 2009 cria-se o INPD que propõe um conjunto de pesquisas-teste para

promover o desenvolvimento saudável da criança e do adolescente, buscando identificar

indivíduos de risco através de intervenções antes da manifestação da doença, almejando

colocar a Psiquiatria no mesmo compasso que outras especialidades médicas (MIGUEL

et al., 2009). A existência de tal Instituto centraliza algumas das questões abordadas aqui,

guiando-nos sobre as percepções atuais das pesquisas psiquiátricas no Brasil, trazendo

indagações sobre certos problemas como a psicopatologização indiscriminada da má

conduta infantil e a “massificação” da doença mental, juntamente com a iatrogenia e o

perigo de intensificação da cultura analgésica”11.

11 Críticas bem embasadas sobre essas considerações podem ser encontradas pelo site do Fórum sobre

medicalização da educação e da sociedade disponível em: http://medicalizacao.org.br/

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O INPD tem como base e como guia de definições de ações as concepções

psiquiátricas enfatizadas pelo biológico e físico. As problemáticas que se apresentam a

partir disso é que ao dar o status de validade científica a um pensamento, desqualifica-se

qualquer outra alternativa; no caso, a Psiquiatria pautada no status médico sob tratamento

com prescrição de drogas – passando por cima de qualquer outra abordagem de

intervenção. Em nome de um ideal de homem para o futuro, que se impõe como objetivo

psiquiátrico desde seu surgimento, a Psiquiatria valida-se a partir de distribuição de

estereótipos que seu diagnóstico médico traz: a medicina em si diagnostica a totalidade

da vida e não apenas um ato, porém o doente mental apresenta perante a sociedade a

constante virtualidade de manifestação da doença: o depressivo, o psicótico, o

esquizofrênico e etc. sempre estará sob vigilância do medo alheio.

Quanto às crianças e adolescentes, Lima e Caponi (2011) colocam que o risco de

desenvolver um tipo de transtorno mental não é para a criança, mas para o adulto doente

e perigoso que ele pode vir a ser. Assim, ao evidenciarem a prática da Psiquiatria do

Desenvolvimento que vem se delimitando em nosso país, as autoras colocam que o

objetivo das pesquisas e das intervenções requeridas pelo INPD dão-se em busca pela

cura de algo ainda não manifestado. Apontam que o médico é uma das profissões de maior

credibilidade na sociedade contemporânea ocidental, sendo o comunicador que anuncia a

realidade de um risco generalizado, tendo ele a capacidade de tratar e prevenir doenças

antes de elas se manifestarem, ou seja, tem o poder de tornar doença o que ainda não é.

Apontamos uma consideração de Bourdieu sobre o risco do cientista trabalhar com

previsibilidades: de acordo com o seu pensamento relacional apontado no início do texto,

pautar ações científicas e práticas em “futurologia” apresenta-se como perigoso12.

O objetivo do INPD é o de comprovar sua validade para a construção de políticas

públicas, ao identificar grupos de risco e então intervir de forma preventiva assim

minimizando custos com tratamentos de doença. Porém, Lima e Caponi (2011) apontam

12 Tais apontamento são encontrados em seus escritos e entrevistas acerca da profissionalizaçõ do sociólogo

e interferências política no campo científico

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que em nenhum momento nos documentos por elas analisados sobre tal Instituto é

explicitado os critérios de normalidade e o que é considerado atípico, portanto, não tendo

como concluir que algo seja válido nesses estudos. Parece-nos que a disputa sobre a

legitimação em validar o discurso acerca de como cuidar do nosso grupo em questão dá-

se mais no terreno das palavra do que das ações. Destaca-se que não é que não tenha

impacto no terreno prático, porém devido a própria desarticulação do sistema de cuidado,

há dificuldades em agir em seu todo.

As formas de ações que encontramos em disputa no terreno prático são através da

compreensão de que o CAPSi dá-se como a corporificação da PNSM voltada ao público

infantojuvenil. Cabe então questionarmos quais concepções que o INPD carrega em sua

corporificação, o que entendemos como um meio ainda indefinido quanto aos ideais da

ABP e da própria PNSM, considerada aqui pelo Instituto Nacional de Ciência e

Tecnologia, um dos idealizados de sua criação. As práticas do INPD podem ser

encontradas também no Projeto Atenção Brasil (2010), cujo objetivo é identificar fatores

de risco e proteção que viabilizem medidas de prevenção e intervenção ao revelar o retrato

da saúde mental das crianças e adolescentes brasileiros, sob a intenção de identificação

também de pré-escolares em situação de risco para saúde mental e desempenho escolar

viabilizando assim intervenções psicossociais precoces. Em articulação com seus

propósitos, a intervenção em escolas dá-se pela capacitação do professorado em

identificar e intervir em grupos de risco juntamente com a disseminação de programas de

promoção de saúde mental nas escolas. O projeto define-se como

um estudo populacional do tipo transversal, em que se avalia uma

amostra populacional em um determinado momento. Nesse tipo de

estudo os pesquisadores podem avaliar fatores de risco e de

proteção para um determinado desfecho [...] Em estudos desse tipo

não podemos fazer inferências do tipo causa-efeito, possibilidade

a ser levantada por estudos prospectivos (quando os sujeitos da

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amostra são acompanhados ao longo do tempo) (INSTITUTO

GLIA, 2010, s.p. Grifos nossos)

De acordo com o destacado, queremos atentar ao fato da conexão sobre o que

apontamos em relação ao terreno teórico e prático das ações que vêm sendo

implementadas em conjunto com as noções abordadas sobre o apoderamento do devir

humano pela Psiquiatria (sob diferentes graus de influência): a Psiquiatria ainda carrega

seus princípios de culpabilização individual que mesmo em busca de diagnosticar o meio

diagnostica o indivíduo sem considerar seu meio13.

Portanto, diante tais ações podemos refletir sobre o porquê a ABP colocar-se como

“não ouvida” se seus critérios são seguidos14. Pressupõe-se que a ABP diz que os

psiquiatras são relegados como uma forma crítica à multidisciplinaridade adotada pelos

CAPSi – ao mesmo tempo que afirma tal necessidade. Porém, partimos do entendimento

de que o CAPSi apresenta uma verticalidade de saberes em sua constituição, sob a adoção

do olhar bourdieusiano, dado que o diagnóstico para ser um usuário do Centro é dado

apenas pelo aval de um psiquiatra. Mesmo que a abordagem de cuidado seja

multidisciplinar, as profissões não-médicas devem sujeitar-se aos critérios definidos pela

profissão médica sobre o que é a doença mental: o que faz o Centro em si existir. Assim,

como falar em multidisciplinaridade? Como falar em multidisciplinaridade, também, se

todas as disciplinas são de uma só área (da saúde)? Outro ponto que podemos levantar

diante esse impasse de mapear os conflitos é a reclamação da ABP da minimização do

papel político do médico. Se tomarmos como referência o surgimento da

Medicina/Psiquiatria como auxiliadora da constituição e normalização e normatização da

sociedade, como apontado no início desse texto, entendemos tal posição da ABP.

13 Exemplos sobre essas considerações são encontrados na dissertação de mestrado de FUCK (2010).

Disponível em: http://nuca.org.br/Paginas/dissertacao_mestradoeducacao_ufsc_larabeatrizfuck.pdf 14 Exemplificamos com os próprios exames nas escolas pelo PAB, cabendo a necessidade de um estudo

que aborde sobre os grupos que definem os critérios de verdade adotados pela PNSM para poder validar

as pressuposições aqui levantadas, que encaixam-se muito bem nas concepções bourdieusianas e nos

estudos CTS.

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Pautado em conceitos fisicalistas e biológicos que colocam o cérebro como “órgão

da mente”, o “novo paradigma” pauta-se (como sempre – o que diferencia é o grau da

força de ação social) nas hipóteses não comprovada de lesão biológica, que na linguagem

atual denomina-se como desequilíbrio em neurotransmissores e genes. Vê-se a

reatualização do propósito existencial da Psiquiatria. Seu fundamento entre uma grande

discórdia entre o físico e o moral deu a esse campo força para atacar e defender, já que se

desenvolve oscilando entre o tratamento físico e o objetivo moral, tendo agentes de ambos

os lados que mantém a existência do campo. Coloca-se que a resolução desse pêndulo

psiquiátrico coloca em xeque todo o aparato psiquiátrico de saberes e práticas; portanto,

é exatamente seu conflito interno e externo (como já posto; com os campos científico ou

não), que lhe dá aval legítimo de validade social. Assim, as indefinições sobre as doenças

mentais ainda se fazem marcantes e não são empecilhos à prática psiquiátrica.

Ainda destacamos a ênfase do INPD na pessoa doente em conflito com a

perspectiva pós-RPB que visa o rompimento com a ótica e práticas estigmatizantes e

excludentes – dividir as crianças em grupos de risco é elucidativamente uma prática

estigmantizante. Ao se validar o critério de doentes em potencial que carregam a

virtualidade de possíveis males futuros e periculosidade, emerge-se um problema de

governo e então entendemos a presença da PNSM (ou seja, do Estado) em ambas as

instituições aqui analisadas.

SOBRE OS CAPSI: PNSM E AS CRÍTICAS DA ABP

O CAPSi apresenta-se com função dupla através de mandatos terapêutico e gestor,

que apresentam desafios. Apontamos, portanto, a necessidade de articulação das

instâncias referentes as duas funções que se dão simultaneamente no processo de atuação

do Centro, entendendo que:

1. Para a articulação entre as diferentes instâncias cuidadoras e protetoras dos

infantojuvenis em âmbito local da atuação do CAPSi, segundo Couto; Duarte e Delgado

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(2008) a solução é dada pela maior conscientização dos gestores locais e regionais, e da

sociedade em geral, em relação aos problemas mentais nesta população e da carga a eles

associada; assim como a necessidade de acompanhamento, avaliação e revisão crítica

permanentes. Outras proposições para enfrentar o problema posto, segundo os mesmos

autores são a ampliação da oferta de programas de formação para qualificação de

trabalhadores nesta área, o aumento da regularidade dos recursos financeiros e a

ampliação da base de defesa dos direitos humanos para a população em questão (Couto,

Duarte, Delgado, 2008, p. 396).

2. A inclusão tardia da atenção da PNSM voltada à crianças e adolescentes na agenda

nacional pode ser compreendida pela noção de cuidado ser prioritariamente construída

com base em noções correcionais e a dificuldade da saúde mental em criar validações. É

a partir desse último ponto que destacamos a continuação da problemática de

sistematização de saberes que incide sobre a Psiquiatria diante a dificuldade de definição

sobre os transtornos em si, sobre o período de incidência das doenças e sobre os métodos

avaliativos - e então evidências empíricas de qualidade, tanto teóricas quanto práticas; o

que se aglomera com a problemática de escassez de dados sobre o próprio funcionamento

dos Centros existentes. Como posto por Machado (1977, p. 470), “deficiente quanto ao

tratamento, o hospício é incapaz de gerar conhecimento, de constituir-se em aparelho de

extração e produção de saber” – trazendo a reflexão da possível recontextualização de tal

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fator. Apresenta-se a carência de articulação ensino-instituição, e então pesquisa,

apontando a desorganização institucional, profissional e teórica.15 16

Diante o caráter conflitual entre campos e a multidisciplinaridade, concordamos

com Couto (1996) apud DIAS (s.d) que é preciso reconhecer que não há campo discursivo

específico que agrega em si todas as respostas sobre um determinado problema, daí a

necessidade de um trabalho articulado em rede, pautado por uma ética da não-potência.

Dessa afirmação, temos em Bourdieu a mesma consideração da não-existência de verdade

absoluta e a compreensão que cada agente discursa a partir do seu campo de origem: ao

se ter a saúde mental infantojuvenil como um troféu em disputa, os agentes dos diferentes

campos jogam de acordo com as regras que seu campo determina e então se criam os

conflitos. Não há como prever se tais características atuais levará a uma maior articulação

do campo psiquiátrico ou do campo multidisciplinar ou qualquer outro caminho; de

acordo com o pensamento relacional bourdieusiano. O que se pode considerar é que a

relação entre campos favorece o surgimento de discussões ampliadas e tipos propostas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

15 Tal desorganização pode ser referida como a dificuldade em desenvolver uma Psiquiatria melhor

articulada (tanto sob o olhar bourdieusiano considerando sua teoria dos campos, quanto a disponibilização

de serviços efetivos e eficientes à população) e contextualizada em território local, pautando-se sob

importação de concepções externas (como a adoção do DSM). Porém, o INPD seria um esforço no sentido

de conhecer a “cara dos transtornos mentais” das crianças e adolescentes no Brasil; porém a problemática,

em consonância com a abordagem crítica dos textos aqui utilizados, ainda se pauta sobre a importação (e

imposição) de ideais, dado o financiamento da pesquisa dar-se pela indústria farmacêutica externa, que já

carrega em si certo caráter negativo, assim como a presença de pesquisadores majoritariamente dos EUA,

país-sede da APA, gestora do DSM.

16 O ensino dá-se como um importante articulador entre a gestão e a terapêutica. Segundo os apontamentos

das Diretrizes da ABP em 2014 é necessário valorizar o ensino da Psiquiatria nos currículos de graduação,

incluindo-a entre as “grandes áreas da medicina”, da mesma forma, os enfermeiros, psicólogos e demais

profissionais de saúde mental deverão receber informações atualizadas e treinamento específico em técnicas

de intervenção de eficácia comprovada cientificamente. E diante o processo atual dessa articulação,

apontamos a relação ainda inespecífica entre a dominação psiquiátrica no campo da saúde mental e o

conceito de multidisciplinaridade; e o fato de as residências médicas serem majoritariamente abordadas em

hospitais psiquiátricos.

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Primeiramente, aponta-se a situação de não-superação do estereótipo de

“ausência”/ “carências” existentes nas bases das políticas públicas brasileiras;

especificamente as voltadas para os infantojuvenis com esse caráter duplicado. Diante um

contexto em que se tem grande porcentagem de naturalização de diagnósticos

psiquiátricos como culpabilização individual, ainda nos confrontamos com a ausência de

uma política de governo que assegure a atenção integral à saúde dos infantojuvenis.

Mencionou-se a noção da novidade da abordagem da Psiquiatria Preventiva – sob

os preceitos e objetivos da Psiquiatria do Desenvolvimento e alguns pontos de

concordâncias e discordâncias sobre as ações que estão sendo tomadas de acordo com

essa definição. Descartou-se o apontamento de tais estratégias pela PNSM por conta de

serem pautadas em várias divisões institucionais que se dão desarticuladas e um tanto

“abstratas” nos documentos oficiais17.

Sobre a existência dos CAPSi e os olhares que partem sobre tal Centro a partir dos

diferentes grupos que formam a esfera socia apontamos uma referência encontrada nos

pensamentos de Szasz (1994) e também nos de Foucault (1978) sobre a necessidade da

linguagem da doença mental em nos fazer procurar por lugares próprios em que possamos

recolher o paciente mental. Em cada nova etapa, o processo que se produz no confronto

de paradigmas é aclamado como o mais humano e o efetivamente mais terapêutico local

para o propósito a que se destina, sendo interpretado como melhor que o anterior. Tais

considerações estão de acordo com o aqui abordado sobre o propósito existencial da

Psiquiatria, que vem se reatualizando conforme o campo social reatualiza-se. Essa visão

pode ser acordada também pela consideração de Bourdieu sobre a necessidade da ciência

em ter um público consumidor de seus bens, instâncias de consagração, e instituições

encarregadas de produção e difusão de tal saber e técnicas.

17 Alguns documentos divulgados pelo Ministério da Saúde apontam a questão da prevenção como objetivo

de abordagem da Estratégia Saúde da Família em consonância com a Atenção Básica de Saúde.

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Ao se considerar grande movimentação pós-2000 no campo voltado à saúde

mental infantojuvenil, vale destacar a afirmação de Lopez e Moreira (2013) que coloca

que houve um esvaziamento e desinteresse da equipe de crianças e adolescentes no

Ministério da Saúde pós-2004, sendo um dos motivos de impasse para a efetivação de

uma política eficiente; destacando o entendimento de impossibilidade de efetiva

concretização por conta da juventude ser algo transversal. Como colocado por Lopez e

Moreira (2013, p. 1183)

Convertida em Diretrizes Nacionais, orientadas aos

gestores e profissionais de saúde do campo da saúde dos

adolescentes e jovens, essa população se apresenta no

âmbito das decisões políticas, num primeiro momento,

reconhecida e convidada pelo campo da saúde como agente

e participante de seus cuidados em saúde. No entanto,

posteriormente, não se consolida num reconhecimento de

massa sua autonomia juvenil, em suas múltiplas dimensões.

O que significa que, como categoria, a adolescência e a

juventude ainda se encontram confrontados pelas disputas

por um protagonismo social mais ampliado e responsável,

para além de um “pseudo-protagonismo juvenil” ou

“protagonismo tutelado” submetido a um olhar

adultocêntrico, que se coloca como porta-voz das vozes

adolescentes e jovens, paradoxalmente silenciando-os

(Grifos nossos)

De acordo com o documento divulgado pelo Ministério da Saúde (2014) coloca-

se a suma importância do alinhamento dos conceitos e parcerias entre profissionais de

saúde e do campo de defesa dos direitos para a “garantia dos direitos fundamentais de

crianças e adolescentes e para a garantia de acesso aos serviços e às ações de saúde e de

saúde mental de qualidade na rede SUS”. Porém, tal dificuldade pode ser apontada nesse

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mesmo documento, já que seu foco se dá primordialmente a considerações sobre medidas

socioeducativas/sistema socioeducativo e apontamentos da abordagem de questões sobre

o uso de álcool, crack e outros drogas; levando-nos a concluir que as intervenções na

saúde dão-se a partir de críticas e conjuntamente a medidas que buscam correções: ainda

não se deu a emancipação das características assistencialistas e protetivas a esse grupo,

embora perceba-se um avanço, com os tutelados entendidos entremeios de atores (com

papeis definidos) e agentes (indivíduos com um pouco mais de “liberdade”).

Ao se delegar as ações relacionadas à saúde mental infantojuvenil

primordialmente aos setores educacional e de assistência social e de justiça, com quase

ausência de proposições pela área da saúde mental, apresenta-se obstáculos para a

formulação, defasagem em atendimento e desarticulação quanto ao ideal de integralidade

do cuidado, em que se visa relações efetivas entre instituições. Segundo COUTO;

DUARTE e DELGADO (2008, p. 392) “de modo geral, as políticas de saúde mental

existentes estão relacionadas aos problemas da população adulta”, sendo

Esses setores tradicionalmente operam isolados uns dos

outros, mas todos provêem serviços ou agem de alguma

forma sobre crianças e adolescentes com problemas

mentais. O uso simultâneo de serviços de diferentes setores

ocorre com frequência. Muitas vezes, o cuidado,

especializado ou não, de problemas mentais em crianças e

adolescentes ocorre num único setor, vocacionado ou não a

exercer este trabalho específico.

Através das últimas diretrizes divulgadas pela ABP (2014), temos suas

considerações sobre a continuidade do acompanhamento, avaliação e exigência de

“implantação e implementação de uma política de saúde mental para o Brasil, com bases

em evidências científicas, em compromissos éticos e sociais, com a efetiva participação

dos médicos e baseada na Lei 10.216/2001 e em resoluções do Conselho Federal de

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Medicina”, apontando a continuação das disputas aqui mencionadas. Um ponto de

destaque importante é que nesse documento não se coloca as crianças e os adolescentes

como um grupo específico de programas de saúde mental – quando mencionados, estão

no tópico sobre Proteção Social quando da especificação de “Centro de Abrigamento para

Crianças e Adolescentes em Situação de Vulnerabilidade”.

Em geral, apontando para o que no início do texto denominou-se como

interferência em vivências, posicionamo-nos pela visão de que a autonomia do grupo em

questão pode ser alcançada através da responsabilidade dos adultos para abertura de

acesso aos meios para realizar a sua potência; devendo-se construir com os usuários das

políticas, ambientes de apoio e condições para escolhas e decisões voluntárias, partindo-

se da ideia de que não há como construir algo para um grupo sem ouvir esse grupo.

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