Quarto22 Março‘16 J o sé Alme id a P ere i ra Pano- rama
Quarto22 Março‘16
JoséAlmeidaPereira
Pano- rama
Quarto22
This isRoom Twenty Two.
And on the other side of its doors lies
an adventure thatis as fascinating
as it is inexplicable.
PT BouqueT
Quantas pessoas choram no Museu do Prado?Quantas pessoas, em frente a pinturas cujas
imagens conhecem de memória, vislumbradas em páginas de livros ou na internet, ficam tão impressionadas com a presença física das obras de arte que perdem controlo dos seus sentimentos?
Eu sou uma dessas pessoas.Era eu menina com um grande laço azul
e sapatos a preto e branco, numa pequena escola do interior do Texas, quando descu-bro um baralho de cartas representando pin-turas famosas da história da arte ocidental. O rapaz de azul de Gainsborough, a rapariga ao piano de Renoir, o adormecido no deserto de Rousseau, perscrutei estas imagens uma atrás da outra, vezes sem conta. Cada carta continha uma dimensão onde tudo poderia acontecer. Eram estas coisas e lugares reais, ou eram invenções do meu imaginário?
As pinturas causavam-me um prurido que eu não podia esfregar. Mais tarde acabei por rever algumas das cartas projectadas nas salas de aula de História da Arte ou, com sorte, penduradas nas paredes dos museus. Vim a saber que eram
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obras-primas. Algumas destas mesmas pinturas estão no trabalho do José Almeida Pereira.
Dizem que Caravaggio viveu vadia e violen-tamente porque mantinha em segredo uma câmara escura que lhe permitia criar pinturas exuberantes e misteriosas. Tida pelos seus contemporâneos como uma vantagem desleal, a ferramenta é inútil, em última análise, pois é necessário uma mão sensível para captar e executar o que projecta. O José tem essa mão. As suas pinturas são imediatamente surpreen-dentes na sua virtuosidade técnica: ele parece re-traçar os passos dos primeiros artistas, numa série de hábeis superfícies, com largas imprimaturas e pontuações precisas. Há por vezes um duplo trompe l’oil: o José para além de se aproximar do imaginário do(a) pintor(a), reproduz as qualidades materiais do óleo com tintas acrílicas. A elasticidade e o prodígio da mão do José demonstram o seu óbvio prazer em desvendar os puzzles técnicos das obras-primas, mas há mais. O seu modo de olhar para uma pintura clássica e recriá-la levanta questões não apenas do modo como foram realizadas, mas do porquê da sua existência.
O que é uma obra-prima? As pinturas na expo-sição “Panorama”, como também as reproduções que descobri quando criança, chegam-nos de um período de tempo e geografias relativamente restrito. Pinturas de senhoras extravagantemente adornadas, cães de caça, prisioneiros de guerra, e representações da procura pelo conhecimento. O José escolhe imagens da história da arte que ressoem ao espírito do presente, e descreve o acto de pintar a partir de um original como um acto extra-temporal, um modo de suspender o tempo. As pinturas ajustam-se ao círculo que a instalação forma, recordando os Zoetrope. Instaladas lado a lado, de modo contíguo, e em circunferência, os ângulos entre telas criam uma dinâmica invulgar pelas diferentes dimensões de cada pintura. O observador fica rodeado de figuras e preocupações estranhas mas familiares. Numa palavra as pinturas são belas.
Quando me deparo com algo muito belo regularmente tenho uma sensação de déjà vu. A primeira pintura que vi do José foi um resplandecente ramalhete num jarro de vidro. Pareceu-me familiar, como um rosto que vi al-gures mas sem a certeza onde. Mais tarde vim a
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saber que era baseada numa obra do Manet, no entanto continuo sem certezas de alguma vez ter visto o original. O bouquet do José deixou a minha cabeça com formigueiro por outras razões: subtis distorções cromáticas nos limites das formas não me permitiam a apreensão das fronteiras na pintura. A imagem não é estática, tal como a palavra bouquet.
Bouquet é um arranjo de flores atraente que serve de oferta e de objecto cerimonioso, igualmente “Panorama” serve como um conjunto de pinturas que se oferecem como rito artís-tico. Algumas vezes um bouquet é um elogio; a dedicação do José ao estudo da Pintura é, em última instância, um elogio ao seu legado. Por fim bouquet serve também para descrever a fragrância do vinho, ou o seu perfume, algo intangível e fugaz. E julgo que esta ideia de bouquet é a que interessa mais ao José.
Entrando na instalação o visitante é invadido pelo odor intoxicante do óleo e da terebintina, matéria-prima da pintura. A memória olfativa talvez seja a mais difícil de definir, mas quando surge é mais pujante que a memória visual. O que faz uma obra de arte atraente? É um sentimento
semelhante a um odor esquecido que reaparece sem contarmos: é desorientador, extasiante, e traz consigo algo velado. Estas pinturas não são cópias, nem sequer reproduções — essas coisas são demasiado vagas e inertes para falar do que o José faz. Talvez sejam estudos — pensados como apreensão e devoção ao detalhe de modo a alcançar uma outra coisa.
“Permito-me a liberdade de escolher qual-quer imagem”, diz José, “acho que nada deva ser intocável”. Este acto de tocar — pegar numa obra de arte, explorar física e mentalmente a sua realidade através da pintura — é a preocupação do José. Parte da realidade de uma obra prima está contida na brecha que existe entre a sua fisicalidade — materiais, técnica e estilo — e o seu imaginário — as ideias e memórias que guardamos dela. As lembranças e associações que trazemos connosco sobre uma pintura co-locam-nos num plano extra-temporal aquando confrontados com a sua presença.
Mas uma pintura não tem de ser uma obra prima ou sequer um trabalho original para tal efeito. A primeira pintura que eu conheci é uma cópia de um detalhe de “O triunfo de Baco”
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de Diego Velázquez que estava pendurado na modesta casa da minha avó, situada na periferia de San Antonio no Texas, já a tinha antes de eu nascer. O meu avô, americo-mexicano, era um militar veterano da segunda guerra mundial. Em Madrid nos anos 50 conheceu um artista num bar e pediu-lhe para se dirigir ao Prado e pintar-lhe a imagem. Mais tarde encomendou-lhe mais duas cópias do Prado e mais alguns retratos dos seus filhos. Há já algumas décadas o meu avô apreciava pintura, nunca cheguei a conhecê-lo, mas soube que admirava a Pintura também. Aquela pequena cópia de Velazquez pendurada na cozinha da minha avó mostrava-me que a pintura existia realmente, e assim eu conhecia pela primeira vez uma superfície pictórica, ao mesmo tempo o objecto ia absorvendo as mi-nhas memórias e diálogos que fazia com a arte, bem como com as minhas relações familiares ao longo dos anos. As pinturas não são só objectos físicos, elas são também entidades-emocionais, que mudam de forma, são densas, e por vezes fortes. E assim eu choro no Prado.
“A minha esperança na acto de pintar é de que algo aconteça — criar uma pintura que toque, à
qual não se fique apenas indiferente” diz o José. Através da sua pintura, o José oferece-nos um bouquet para organizarmos as nossas experiências e pensamentos. É uma bela e generosa oferta.
-> Lauren Moya Ford
Março 2016
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How many people have cried at the Prado?How many people, when finally placed in
front of paintings they’ve seen for years in the pages of books and in their memory become so overwhelmed by the sensation of being physi-cally with these artworks that they lose control of themselves?
I am one of those people.I was a little girl in a big blue bow and black
and white saddle shoes in a small schoolhouse in the Texas countryside when I discovered a deckof cards depicting famous paintings from Western art history. Gainsborough’s Blue Boy, Renoir’s lady at the piano, Rousseau’s desert sleeper — I examined these images one after the other, over and over. Each card contained another dimension where anything could hap-pen. Were these places and things real, or were they imaginary inventions? Paintings were like a beautiful itch that I couldn’t quite scratch. Later on, I saw paintings from the cards projected in art history classrooms or, if I was lucky, hanging in museums. They were what I came to know as art’s masterpieces. Some of these very same paint-ings appear in the work of José Almeida Pereira.
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They say that Caravaggio lived such a violent and vagrant life because he was guarding a secret camera obscura that helped him create his lush, uncanny paintings. Seen by resentful contemporaries as an unfair advantage, the tool is ultimately worthless without a sensitive hand to capture and execute it. José has this hand. His paintings are immediately astounding in their technical virtuosity: in a series of skilled washes, marks, and surfaces, he seems to retrace the first artists’ footsteps. There is a double trompe l’oeilhappening: not only is José approximating the painter’s imagery, he is also reproducing the material qualities of oil with acrylic paint. The elasticity and prodigiousness of José’s hand show his obvious pleasure in untangling a masterpiece’s technical puzzles, but there is more. His move from looking at a classic painting to re-creating it asks questions not only about how it was made, but why.
What is a masterpiece? The paintings in Panorama, and indeed the cards I discovered as a girl, come from a relatively narrow radius of geography and time. The paintings’ bejew-eled ladies, hunting dogs, prisoners of war, and
scientific tools show a Western European world defined by class reconfigurations, changing rites, incessant war, and a search for new knowledge. José chooses art historical images that resonate for him with the present day, and he describes painting from the original works as an extra-temporary act, a process that suspends time. It’s fitting, then, that the installation is in the shape of a zoetrope, and shares its implied circular action. Set together side by side in a close ring, the paintings’ angled surfaces form a dynamic embrace. The viewer is surrounded by figura-tions and preoccupations that are strange but familiar. In a word, the paintings are beautiful.
When I find something very beautiful, I often get a strange feeling of déjà vu. The first painting I saw by José was a bright bouquet of flowers in a glass vase. It looked familiar, like a face I’d seen before but couldn’t quite place. I later learned that the painting was based on a piece by Manet, although I’m still not sure if I’ve ever actually seen the original. José’s bouquet sets my mind abuzz for another reason: subtle color distor-tions on the edges of the forms keep me from getting a handle on the painting’s outlines and
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edges. The image is not stationary, and neither is the word bouquet. It is an attractively arranged bunch of flowers presented as a gift or as part of a ceremony; Panorama gathers José’s paintings together as an offering and artistic rite. In rarer usage, a bouquet is a compliment; José’s dedi-cated study of painting is at the very least a com- pliment to its legacy. Finally, bouquet is used to describe the characteristic scent of wine or per-fume, something intangible and fleeting. And this bouquet is what I think José is most interested in.
Stepping into the installation, the visitor is hit by the intoxicating smell of paint and turpentine, painting’s prima materia. Scent memory may be the hardest to recall or define, but when it reappears it’s stronger than sight. What makes an artwork compelling? It’s a feeling akin to a forgotten scent suddenly resurfacing: it’s diso-rienting, entrancing, and brings out something hidden. These paintings aren’t copies, nor are they reproductions — those things are too hol-low and static for what José does. Perhaps they are studies — the word implies devotion to detail and an imbibing of material in order to do something else with it.
“I feel free in choosing whatever image I want,” José says, “to me nothing is untouchable.” This act oftouching — to touch a masterpiece, to physically and mentally explore its reality through painting — is José’s concern. And part of a masterpiece’s reality is the gap between its physical presence — its technique and style — and its imaginary one — the memories and ideas we keep of it. The recollections and associations we carry with a painting put us in an extra-temporal plane when we see it.
But a painting does not have to be a master-piece or even an original work to do this to us. The first painting I knew is a copy of a portion of Diego Velázquez’s Feast of Bacchus that’s been hanging at my grandmother’s small house outside of San Antonio, Texas since before I was born. My grandfather was a Mexican American World War II veteran working in Madrid, Spain in the 1950s when he met an artist in a bar and asked him to go to the Prado Museum and paint him the picture. He later commissioned the artist to paint two more Prado copies and to paint portraits of his children. Decades ago, my grandfather cared about painting. I never
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got to meet him, but he cared about painting, too. And so the small Velázquez copy hanging over my grandmother’s kitchen showed me that painting really existed, and showed me a painted surface for the first time, but it also absorbed my memories and attachments about art and family over the years. Paintings are not just physical objects; they are emotional entities — shape-shifting, charged, and sometimes heavy. And so I will cry at the Prado.
“My hope in the act of painting is that some-thing will happen — to create a painting that touches you, that you cannot be indifferent to,” José says. Through his painting, José offers a bouquet to arrange our thoughts and experiences on. It is a beautiful and generous gift.
-> Lauren Moya Ford
March 2016
José Almeida Pereira
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p.6
Autorretrato (segundo
Aurélia de Souza)
2013
Óleo sobre tela
38×27cm
p.7
A fonte (segundo Ingres)
2014
Óleo sobre tela
130×65cm
p.8,9
A liberdade guiando o povo
(segundo Eugene Delacroix)
2014
Óleo sobre tela
42×52cm
p.10
Madalena penitente
(segundo George de la Tour)
2016
Acrílico sobre tela
51×47×2cm
p.11
O filho pródigo na taberna
(segundo Rembrandt)
2015
Óleo solúvel em água
sobre tela
146×116cm
p.12
O baloiço (segundo
Jean-Honoré Fragonard)
2014
Óleo sobre tela
180×140cm
p.13
O geógrafo (segundo Vermeer)
2014
Óleo sobre tela
36,5×33cm
p.14
Deposição da cruz, detalhe
(segundo Jacopo Pontormo)
2014
Óleo sobre tela
42×30×5cm
p.15
Aristóteles com o Busto de
Homero (segundo Rembrandt)
2016
Acrílico sobre tela
103×93cm
p.16
Camões (segundo José Malhoa)
2014
Óleo sobre tela
127×65cm
-> oBras
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p.26
Juan de Pareja e Ticiano
(segundo Velazquez e Ticicano)
2015
Acrílico sobre tela
71×57cm
p.27
Cenas dos massacres de Scio
(segundo Eugene Delacroix),
2015
Óleo sobre tela
160×130cm
p.28, 29
A incredulidade de S. Tomé
(segundo Caravaggio), 2015
Óleo sobre tela
124×155cm
p.31
Vela (segundo Gerhard
Richter)
2015
Óleo sobre tela
39×29cm
p.17
Sono (segundo
Gustave Courbet)
2014
Óleo sobre tela
40×62cm
p.18
Esperando o sucesso
(segundo Henrique Pousão)
2014
Óleo sobre tela
98×59cm
p.19
O fusilamento de Torrijos
e seus companheiros na praia
de Málaga (segundo Antonio
Gisbert)
2015
Acrílico sobre tela
155×120cm
p.20
Condessa de Haussonville
(Segundo Ingres)
2016
Acrílico sobre tela
39,5×28,5cm
p.21
Os raspadores (segundo
Gustave Caillebotte)
2015
Óleo solúvel em água
sobre tela
100×139cm
p.22
O Astrónomo (segundo
Johannes Vermeer)
2014
Óleo sobre tela
36×34cm
p.23
Francisco de Assis(segundo
Francisco de Zurbaran)
2015
Óleo solúvel em água
sobre tela
140×97cm
p.24, 25
Cães (segundo Jacopo
Bassano), 2015
Óleo solúvel em água
sobre tela
83×110cm
José Almeida Pereira Panorama
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José Almeida Pereira Panorama
Livro
EdiçãoColégio das Artesda Universidade de Coimbra
CoordenaçãoAntónio olaioJosé Maçãs de Carvalho
TextoLauren Moya Ford
Fotografiasvítor Garcia
Designbrunadesousa.com
impressãoNozzle, Lda
Ano de Edição2016
iSBN978-989-99717-7-6
ExPoSição
AutorJosé Almeida Pereira
TítuloPanorama
CoordenaçãoAntónio olaioJosé Maçãs de Carvalho
MontagemTomás Antunes
Secretariadoisabel TeixeiraPaula Lucas
identidade Q22brunadesousa.com
ProduçãoColégio das Artesda Universidade de Coimbra
Quarto 22, lugar desenhado por
João Mendes Ribeiro. Uma sala circular, parede de cortina branca, estrutura
para pendurar 22 imagens.
Colégio
das
Artes
Universidade de C
oim
bra