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117 * Uma versão anterior deste artigo foi apresentada na 34ª Reunião Anual da Anpocs, em 2010. Agradeço a Luanda Sito pelos comentários feitos à época. HISTÓRIAS INSCRITAS E ESCRITAS EM UMA COMUNIDADE NEGRA RURAL* MARCELO MOURA MELLO RESUMO Este texto trata dos usos da escrita e de suas relações com a oralidade na produção de conhecimento histórico por uma liderança de uma comunidade negra rural que reivindica o reconhecimento enquanto remanescente de quilombos, analisando a produção de versões escritas da história local por essa liderança. As injunções políticas decorrentes da luta por reconhecimento ajudam a entender a produção desses documentos, mas não podem ser tomadas como causas únicas da maneira pela qual se dá a produção de conhecimento histórico. Argumenta-se que versões escritas da história não refletem uma sobreposição de uma forma de transmissão de lembranças sobre outra. Ao contrário, elas são frutos da coocorrência entre oralidade e escrita. PALAVRAS-CHAVE Oralidade; escrita; conhecimento histórico; remanescentes de quilombos. ABSTRACT The paper focuses on the uses of literacy and its relations with orality in the production of historical knowledge by a black rural community leader, whose community claims its recognition as a maroon community. It is done by analyzing the production of written versions of the oral local history by this leader. The political contexts and demands that characterized the struggle for recognition helps to understand the production of these documents, but cannot be regarded as single causes of the production of historical knowledge. The paper argues that written versions of history do not reflect the overlapping of one way of transmitting remembrances over another. On the contrary, they are products of the co-occurrence between orality and writing. KEY WORDS Orality; literacy; historical knowledge; maroons. Este texto trata dos usos da escrita e de suas relações com a oralidade na produção de conhecimento histórico por uma liderança de uma comunidade negra rural que reivindica o reconhecimento
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Histórias inscritas e escritas em uma comunidade negra rural.

May 15, 2023

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Luciana Tosta
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* Uma versão anterior deste artigo foi apresentada na 34ª Reunião Anual da Anpocs, em 2010. Agradeço a Luanda Sito pelos comentários feitos à época.

HISTÓRIAS INSCRITAS E ESCRITAS EM UMA COMUNIDADE NEGRA RURAL*

MARCELO MOURA MELLO

R E S U M O Este texto trata dos usos da escrita e de suas relações com a oralidade

na produção de conhecimento histórico por uma liderança de uma comunidade

negra rural que reivindica o reconhecimento enquanto remanescente de quilombos,

analisando a produção de versões escritas da história local por essa liderança. As

injunções políticas decorrentes da luta por reconhecimento ajudam a entender a

produção desses documentos, mas não podem ser tomadas como causas únicas

da maneira pela qual se dá a produção de conhecimento histórico. Argumenta-se

que versões escritas da história não refletem uma sobreposição de uma forma

de transmissão de lembranças sobre outra. Ao contrário, elas são frutos da

coocorrência entre oralidade e escrita.

P A L A V R A S - C H A V E Oralidade; escrita; conhecimento histórico;

remanescentes de quilombos.

A B S T R A C T The paper focuses on the uses of literacy and its relations with

orality in the production of historical knowledge by a black rural community leader,

whose community claims its recognition as a maroon community. It is done by

analyzing the production of written versions of the oral local history by this leader.

The political contexts and demands that characterized the struggle for recognition

helps to understand the production of these documents, but cannot be regarded

as single causes of the production of historical knowledge. The paper argues that

written versions of history do not reflect the overlapping of one way of transmitting

remembrances over another. On the contrary, they are products of the co-occurrence

between orality and writing.

K E Y W O R D S Orality; literacy; historical knowledge; maroons.

Este texto trata dos usos da escrita e de suas relações com a oralidade

na produção de conhecimento histórico por uma liderança de

uma comunidade negra rural que reivindica o reconhecimento

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enquanto remanescente de quilombos, analisando a produção

de versões escritas da história local por essa liderança. Desde

que passaram a pleitear seu reconhecimento enquanto

remanescentes de quilombos, os membros da comunidade de

Cambará, situada entre os municípios de Cachoeira do Sul e

Caçapava do Sul, na região central do Rio Grande do Sul, viram

seu círculo de interação se expandir muito nos últimos anos. As

interações com “agentes externos” tornaram-se mais frequentes,

conferindo ao grupo maior visibilidade nos níveis municipal,

estadual e nacional. Da mesma forma, o contato com o universo

escrito acentuou-se e atualmente o grupo tem se utilizado

da escrita de novas maneiras.

Em decorrência da assunção quilombola, os moradores do

local vêm demonstrando um renovado interesse sobre a história

da comunidade.1 Ao lado do papel de destaque assumido pelos

guardiões da memória, tornou-se cada vez mais comum entre os

moradores do local a elaboração de versões escritas sobre o tempo

dos antigos. Assim, Márcio Roberto Lopes, uma jovem liderança,

compeliu documentos e fotos, entrevistou seus parentes e criou

um arquivo sobre a trajetória histórica de Cambará. Já Ana

Rodrigues, nascida em Cambará e residente na capital do estado,

Porto Alegre, realizou um curso de especialização de história

africana e afro-brasileira, apresentando uma monografia

sobre a comunidade de Cambará (2011). Este texto pensa esses

e outros documentos produzidos por homens e mulheres de

Cambará no quadro das injunções políticas decorrentes da luta

por reconhecimento, sem concebê-los como o mero reflexo da

sobreposição de uma forma de transmissão de lembranças sobre

outra, mas sim como produtos da coocorrência entre oralidade

e escrita.

Para tanto, o texto principia com uma breve reconstituição

do processo de identificação quilombola em Cambará e como

isso resultou numa intensificação do contato com diversas

facetas do universo escrito. Ver-se-á que foram injunções

1 Grifos referem-se a categorias êmicas.

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políticas – e, particularmente, as exigências legais que incidem

sobre grupos em busca de reconhecimento enquanto quilombolas

– que motivaram a produção de versões escritas sobre fatos que

até então eram predominantemente rememorados através de

narrativas orais. A seção subsequente visa deslocar o foco da

escrita como técnica ou como aquisição cognitiva, centrando-se

nos usos da escrita em sua interface com a oralidade. Procurarei

demonstrar que não é apenas a instrumentalização das

lembranças, via escrita, que está em jogo nessa rememoração.

REGISTROS

As 43 famílias residentes na comunidade negra de Cambará

passaram a reivindicar o reconhecimento quilombola e a

regularização fundiária do seu território, conforme dispõe o

artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias

da Constituição Federal de 1988,2 nos primeiros anos deste

século. Tal processo está ligado à transfiguração de uma série

de enunciações e foi a partir do momento em que a categoria

jurídica “remanescentes das comunidades dos quilombos”

passou a figurar nas agendas governamentais, de movimentos

sociais e da universidade,3 que se desencadeou um conjunto de

disputas políticas e de intervenções em torno dessa categoria.

Foi nesse processo que a Universidade Federal do Rio Grande

do Sul (UFRGS) passou a atuar em Cambará. Entre 2002 e 2003,

três projetos de extensão voltados às comunidades quilombolas

foram desenvolvidos no local, reunindo membros de uma ONG

– o Instituto de Assessoria às Comunidades Remanescentes de

Quilombo (IACOREQ) –, técnicos, professores e estudantes

da universidade. Já nessa época, objetiva-se coligir elementos

que pudessem vir a ser utilizados em uma peça técnica que

caracterizasse a comunidade como remanescente de quilombos,

facultando-a de instrumentos para a salvaguarda de seu território.

Meu contato inicial com o grupo se deu com a participação em

2 Que estabelece: “Aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos” (p. 1).

3 Como é sabido, o papel de antropólogos na chamada

“ressemantização” do conceito de quilombo foi fundamental para a emergência desses novos sujeitos de direitos. Sobre esse processo, ver, dentre outros, Almeida (2002), Arruti (2006, 2008), O’Dwyer (1995), Mello (2012, p. 33-61).

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um desses projetos de extensão, realizado no segundo semestre

de 2003. À época, eu era um estudante de ciências sociais e coube

a mim e aos demais colegas dessa área de estudos, dentre outras

coisas, entrevistar os moradores do local, principalmente os mais

velhos, com o objetivo de reunir dados histórico-etnográficos

referentes ao processo de territorialização do grupo.

Entre 2005 e 2006, em convênio com a Superintendência

Regional do Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra),

a UFRGS formou uma equipe, da qual fiz parte, cuja incumbência

era elaborar uma perícia antropológica, doravante denominada

laudo, com vistas a instruir o Incra nos procedimentos de

identificação, reconhecimento, delimitação, regularização e

titulação de Cambará como território quilombola (ANJOS et al.,

2006). Desde então, um livro (MELLO, 2012), duas dissertações

de mestrado (MELLO, 2008; RAMOS, 2009), uma monografia

de especialização (RODRIGUES, 2011) e uma monografia de

conclusão de curso (SOUSA, 2006) versaram sobre o grupo,

além de alguns artigos acadêmicos. Nesse ínterim, Cambará

foi alvo de diversas políticas públicas. Programas voltados

para a agricultura familiar quilombola, para o saneamento

básico, tratamento de dejetos e abastecimento de água, para a

instalação de luz elétrica e construção de moradias, banheiros e

demais benfeitorias, além de cursos de artesanato e capacitação

profissional foram desenvolvidos.

Em virtude da assunção quilombola, o círculo de interação

com “agentes externos” expandiu-se muito nos últimos anos.

O contato com estudantes universitários, antropólogos e

professores do ensino fundamental, médio e superior, com

integrantes de vários setores do movimento social negro e de

ONGs, com membros de comunidades quilombolas de várias

partes do país, com técnicos governamentais e funcionários

públicos, com agentes do direito e políticos tornou-se frequente.

Esse processo pôs o grupo em contato com um grande número

de agentes que utilizam, concebem e valorizam a escrita de várias

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maneiras, com variados estilos e visando a diferentes objetivos.

Os formulários e cadastros passíveis de preenchimento para

facultar o acesso a políticas públicas, os questionários aplicados

por agentes públicos e pesquisadores, a circulação de minutas,

atas, panfletos, manifestos, monografias, dissertações, artigos,

livros, boletins informativos e demais documentos relacionados

à questão quilombola colocou os membros de Cambará diante

de um universo bem específico de palavras. Em poucos anos

houve um crescimento exponencial da produção de registros

sobre o grupo.

Enquanto quilombolas, os habitantes de Cambará se

deparam com linguagens repletas de códigos esotéricos, dadas

suas características formais, técnicas e burocráticas. Cumpre

lembrar que as comunidades remanescentes de quilombos

se veem obrigadas a utilizar-se desses mesmos códigos. Os

dispositivos legais asseguram que a autoatribuição já basta para

o reconhecimento da identidade quilombola, mas é necessária

a expedição de um certificado pela Fundação Cultural

Palmares, órgão ligado ao Ministério da Cultura, para que

o reconhecimento formal do Estado se dê. 4 De igual maneira,

os “remanescentes” são obrigados a constituir uma associação

de moradores para validar decisões, deliberações e demandas,

devendo registrá-las em atas. As políticas públicas exigem o

preenchimento de formulários, cadastros e, em alguns casos, a

formulação de projetos.

Fica evidente que na atual conjuntura o domínio da escrita

e, sobretudo, de técnicas direcionadas para usos específicos da

escrita é fundamental para os moradores de Cambará, e isso por

vários motivos. Os procedimentos legais exigidos pelo Estado às

comunidades quilombolas e a observância a regras e a padrões

para a formulação de requerimentos, atas, ofícios, petições

e congêneres requerem a capacidade de manejar o conteúdo

escrito, de modo a familiarizar-se com linguagens altamente

especializadas e, em maior ou menor medida, adequar-se a elas.

4 Conforme dispõem o § 1º do artigo 2º e o § 4º do artigo 3º do decreto n. 4.887, de 20 de novembro de 2003, que regulamenta o procedimento para identifi cação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades de quilombos. As comunidades devem enviar uma carta à Fundação Cultural Palmares, que fica responsável por emitir uma certidão que reconhece o pleito identitário.

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Em meio a essa enxurrada de procedimentos e da proliferação de

registros sobre eles mesmos, os homens e mulheres de Cambará

estão engajando-se em uma série de práticas pouco familiares até

então, na tentativa de exercer maior controle sobre esse processo.

A formação de uma associação de moradores quilombola

no local, por exemplo, obrigou a elaboração de atas. O estatuto

da associação começou a ser discutido entre 2005-2006, em

conjunto com membros do IACOREQ e com os estudantes

universitários responsáveis pela elaboração do laudo de

identificação àquela época (ver acima). Nos encontros iniciais,

coube a estes a tarefa de elaborar as atas, pois todos os moradores

do local alegavam não estar acostumados a fazer isso, além de

não disporem de um modelo. Depois de algumas reuniões,

alguns jovens do local assumiram essa incumbência. O mesmo

se passou com o estatuto da associação, proposto e revisado por

membros do IACOREQ, mas cuja versão final foi redigida pelas

famílias negras.5

Da mesma forma, a elaboração de requerimentos, convites

para eventos e ofícios é, hoje, algo corriqueiro. Em novembro

de 2006, foi realizada a Festa de Comemoração da Semana da

Consciência Negra no local. O convite para essa celebração

continha cinco páginas – divididas em tópicos que apresentavam

informações sobre o quilombo e sobre a região, considerações

acerca da pertinência do evento e das especificidades da

comunidade, objetivos, itinerários, temas e programação –,

no qual se empregou uma linguagem formal, tendo em vista

que diversas entidades da sociedade civil e do estado foram

convidadas.

Cite-se também a elaboração de um projeto visando ao

gerenciamento de uma das políticas públicas desenvolvidas no

local. Com a construção de uma rede de água encanada pela

Fundação Nacional de Saúde (Funasa) em 2005, decidiram

os moradores de Cambará que, em vez de pagarem a uma

empresa pela gestão do consumo e da manutenção, seria feito

5 Para uma análise da associação quilombola como “agência de letramento” na comunidade Casca, litoral do Rio Grande do Sul, ver Sito (2009).

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um gerenciamento comunitário das despesas da rede d’água

por meio da formação de uma entidade jurídica composta por

alguns moradores do local. Para viabilizar essa proposta, foi

necessário apresentar um projeto detalhado à Funasa, abrir e

registrar legalmente uma cooperativa, além de se criar um banco

de dados para facilitar a prestação de contas.

Esses exemplos revelam que certos usos da escrita se

tornaram fundamentais para o grupo. Através desses exemplos,

é possível investigar como os moradores do local se apropriam

de práticas de comunicação e de elementos linguísticos

para responderem a desafios contemporâneos. A assunção

quilombola se dá em um cenário marcado por disputas,

contestações, polêmicas, confrontações e debates que motivam

a produção de perícias, atestados, certificados, processos

administrativos, inquéritos, petições, manifestos, relatórios de

identificação e peças similares. Conforme destacou Centeno

(2009, p. 116), a política nacional de titulação dos territórios

quilombolas transformou-se em uma “máquina de produzir

procedimentos e avaliações sobre os mesmos, cada vez mais

multiplicando as exigências e as instâncias de consulta”. De

igual modo, Silva (2008) demonstrou que as políticas públicas

voltadas aos quilombolas se estruturam, por via de regra, sob

o primado da linguagem dos mediadores externos, fomentando

uma incomensurabilidade na comunicação entre o Estado e

esses sujeitos de direitos. De fato, vários dos instrumentos que

incidem sobre as comunidades quilombolas possuem códigos

cujas linguagens somente alguns poucos são capazes de dominar,

operacionalizar, traduzir e aplicar.

É necessário atentar que os usos da escrita em Cambará se

prestam a distintos fins e que não há homogeneidade nos valores

conferidos à escrita, mas em várias ocasiões a produção de

registros escritos é marcada pela necessidade de se apresentarem

provas que sustentem e validem os pleitos do grupo. Nesse

tocante, a história torna-se uma espécie de carimbo de

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autenticidade. Não raro, vários agentes, sejam eles acadêmicos,

militantes do movimento social, gestores públicos ou agentes da

lei evocam a história para legitimar ou deslegitimar a validade

dos pleitos das comunidades remanescentes de quilombos. Em

Cambará, evidentemente, isso não foi diferente. Não à toa, os

pesquisadores que elaboraram o laudo de Cambará se valeram

tanto de narrativas orais como de documentos depositados em

arquivos históricos para reconstituir a cadeia dominial da área

e para estabelecer os vínculos genealógicos entre ex-escravos e

os atuais moradores do local: era necessário conferir a maior

solidez possível aos pleitos do grupo. Os moradores de Cambará

têm se engajado de várias maneiras nessa correlação de forças e

é justamente uma dessas práticas que constitui o fio condutor

de boa parte das reflexões esboçadas neste artigo: a criação de

um arquivo sobre a história local por uma das lideranças de

Cambará. Esse arquivo contém mapas, fotografias, cópias de

documentos provenientes de arquivos históricos, transcrições

de relatos, de causos e de entrevistas, recortes de reportagens,

suportes magnéticos dos materiais produzidos sobre Cambará

e sobre demais comunidades quilombolas etc. Alguns desses

documentos serão analisados a seguir, tentando-se perceber a

coocorrência de narrativas orais e registros escritos na produção

de conhecimento histórico.

A ESCRITA DO CONTADO E AS HISTÓRIAS INSCRITAS

O contato com o universo escrito não é algo novo para

os moradores de Cambará, mesmo para os analfabetos.

Em geral, as relações mediadas por papéis tiveram

efeitos nefastos para o grupo – não à toa, muitas pessoas

manifestam reservas para com os educados que se propõem

a ajudá-los, pois vários deles se valeram da sua “educação”

para ludibriar os negros.6 Das diversas áreas expropriadas,

6 Em particular um roubo de terras praticado por um delegado de polícia, na década de 1930, que prometera regularizar as terras de uma das famílias mais antigas do local. Esse fato possui uma importância fundamental para o grupo e é constantemente rememorado. Para detalhes, ver Mello (2012, p. 182-189).

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muitas delas foram posteriormente regularizadas através

de procedimentos (i)legais. Certos indivíduos, por exemplo,

apropriaram-se ilicitamente de algumas faixas de terras

pertencentes às famílias negras e requereram usucapião

tempos depois. Assim, inúmeras narrativas tratam dos

perigos e das garantias daquilo que está escrito. O zelo

demonstrado na conservação dos papéis, mormente os

registros fundiários, expressa bem isso: não se guardam

em qualquer lugar os documentos; eles não devem estar

ao alcance do olhar, especialmente dos vizinhos brancos

e de forasteiros, pois o escrito por vezes estabelece uma

disjunção com o que foi apalavrado.

Quase todas as pessoas com mais de 50 anos são

analfabetas e é considerável o número de indivíduos

nascidos entre 1970-1980 semianalfabetos. A maioria dos

jovens sabe ler e nos últimos anos vários deles ingressaram

no ensino médio. Conforme os dados provenientes de

um levantamento socioeconômico entre os moradores

de Cambará, realizado em 2006, das 83 pessoas em

idade escolar, 8 delas ingressaram no ensino médio

(mas apenas 4 o concluíram), enquanto analfabetos, ou

semianalfabetos, somavam 18 pessoas. O número dos

que cursaram entre o primeiro e o quarto ano do ensino

fundamental compreendia 29 indivíduos, ao passo que

28 deles cursaram entre o quinto e o oitavo ano do nível

fundamental (ANJOS et. al., 2006). O aumento no nível

de alfabetização das gerações nascidas a partir da década

de 1980 deu maior tranquilidade aos mais velhos, na

medida em que ter alguém da família capaz de ler dá certa

segurança. Mais recentemente, o IACOREQ, através do BB

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Educar,7 capacitou agentes e lideranças de comunidades

quilombolas localizadas no Rio Grande do Sul, para que

alfabetizem jovens e adultos. No caso de Cambará, Janaína

Corrêa, uma jovem que retomou seus estudos recentemente,

é uma das responsáveis por esse programa de alfabetização,

cujo público-alvo abrange inclusive idosos, alguns dos

quais com mais de 90 anos de idade.

No contexto atual, os jovens são agentes de promoção

da difusão da escrita na comunidade. Apesar do caráter

esotérico das instâncias do universo escrito com as quais

o grupo se vê às voltas contemporaneamente, na medida

em que a comunidade se torna mais letrada, a apropriação

da escrita pode assegurar a posse definitiva do território,

que sempre esteve à mercê daqueles que poderiam lograr

vantagens, ao se valarem do poder da escrita. Nesta seção,

o foco recai sobre a produção de versões escritas da história

da comunidade por uma jovem liderança do local, Márcio

Roberto Lopes da Silva.

Quando as ações de extensão da UFRGS começaram a

ser desenvolvidas em Cambará, em 2002-2003, atendendo ao

pedido da coordenação dos projetos, a própria comunidade

apontou os mais velhos como os mais indicados para

oferecer informações a respeito do tempo dos antigos. Como

foi pontuado acima, informações concernentes às origens

do local e aos antecessores do grupo constituíram objetos

de especial atenção dos pesquisadores e diversas entrevistas

foram realizadas com os sabedores, i.e., aqueles que detêm

o conhecimento do tempo dos antigos. Transcorreram-se

quase dois anos até a realização do laudo antropológico de

Cambará e nesse ínterim algumas das práticas associadas

7 Programa de alfabetização de jovens e adultos da Fundação Banco do Brasil.

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a membros da universidade começaram a ser adotadas no

local.8

No início da pesquisa com vistas à elaboração do

laudo, Márcio já dispunha de vários cadernos preenchidos

com genealogias, nomes dos antigos, sucedidos, acontecidos,

causos e demais informações históricas, em especial aquelas

concernentes à sucessão de proprietários no território da

comunidade. Impossibilitado de ir aos arquivos históricos,

Márcio acorreu aos membros mais velhos do grupo,

quase todos seus parentes. Seguidamente, visitava seus

vizinhos e solicitava que lhe falassem dos antigos. Agindo

assim, acostumou-se a fazer esse tipo de pesquisa com os

sabedores, aprendendo a desenvolver o que chamou, não

sem ironia, de técnica antropológica para entrevistar os

mais velhos. Era necessário ir com calma, respeitar as

características pessoais de cada um, saber como e quando

perguntar. Certa vez, por exemplo, seu pai admoestou-o

pela insistência em saber de coisas que já haviam sido

ditas. Foi entrevistando os mais velhos que ele coletou o

material utilizado no preenchimento de seus cadernos com

informações históricas. Nos documentos produzidos por

Márcio, é possível perceber o uso de termos empregados

por acadêmicos, bem como uma tentativa de adequação do

estilo às narrativas historiográficas, mas seria simplismo

ver neles uma mera tentativa de replicação. Isso pode

ser visualizado no documento a seguir, que faz menção

à Revolução Federalista (1893-1895), também conhecida

como Revolta da Degola.9

9 As ênfases do autor foram mantidas na transcrição do documento.

8 Em 2004, três perícias antropológicas sobre as comunidades de Morro Alto (BARCELLOS et al., 2004), de São Miguel e Rincão dos Martimianos (ANJOS e SILVA, 2004) e de Casca (LEITE, 2004), todas elas localizadas no Rio Grande do Sul, foram publicadas pela Editora da UFRGS. Esses livros circularam por outras comunidades quilombolas e alguns moradores de Cambará os leram, ou seja, além do contato anterior com pesquisadores, os integrantes de Cambará já tinham perfeita noção do tipo de informação histórica que era vinculado nesse tipo de documento.

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Anastácio, filho de “Pai Joaquim” que morava no Pinheiro [núcleo territorial de Cambará]. Foi morto por adversários políticos na localidade de Irapuá [idem], confrontando a antiga estância de Antônio Joaquim Lopes na estrada do Lagoão. Segundo a memória de Geraldo da Silva, lembra que contavam que Anastácio pertencia ao movimento do “Partido dos Colorado, por certa época passou a ser fortemente perseguido por tropas cavalheirescas do partido adversário. Neste período Anastácio residia no Irapuá bem à margem da estrada secundária do Lagoão confrontando a entrada da estância (fazenda) de Antônio Joaquim Lopes. Como inúmeras vezes, Anastácio foi pego de surpresa, tentou fugir montando em seu cavalo e saindo em retirada logo foi alcançado por cavalheiros adversários na qual investida foi degolado e deixado seu corpo no meio do campo, dando ainda a ordenança à família para que não retirasse o corpo do local. Segundo uns contos, precisou que uma autoridade da época autorizasse formalmente para

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que Anastácio fosse sepultado. Dias depois Anastácio foi sepultado com o corpo já em decomposição bem próximo de sua casa de moradia. Local este marcado por uma antiga cruz enterrada no chão onde foi sepultado (SILVA, s.d.).

Chama a atenção alguns dos termos utilizados nesse

documento, como “segundo a memória de Geraldo da Silva [seu

pai]” e “segundo uns contos”. Essas expressões apontam para a

incorporação de palavras pouco empregadas pelos moradores

do lugar no seu cotidiano. Não cabe listar aqui os diversos

documentos produzidos por Márcio, mas é interessante notar

que algumas sentenças e palavras são utilizadas apenas nos

documentos escritos. Muito provavelmente foi o contato com

universitários e antropólogos, com publicações acadêmicas e

com demais agentes que direcionou o emprego desses termos.

Durante a elaboração do laudo de Cambará, os pesquisadores

se serviram dos documentos de Márcio, que, ciente dos jargões

de universitários, adequou sua produção escrita às formas de

leitura de seu público ouvinte/leitor (pesquisadores, no caso).

Outro documento extremamente interessante é o

croqui de Cambará elaborado por Márcio. Tal croqui, feito

em um papel pardo de aproximadamente 1,20 m de largura

por 0,75 cm de altura, primava pelo detalhamento. Nele,

desenhou-se o território do grupo, discriminando quem era o

atual ocupante de cada lote e qual sua extensão; divisas foram

especificadas, assim como marcos, estradas vicinais, córregos,

arroios, pontos de referência e estabelecimentos comerciais.

Na verdade, não foi apenas a configuração atual do território

que foi delineada. Fatos passados foram localizados naquela

representação do espaço mediante a referência a nomes, fatos,

pessoas, datas e eventos. Noutra ocasião, Márcio realizou um

trabalho similar, baseando-se em um mapa feito pelos geógrafos

da equipe do laudo. Ao lado do nome dos atuais habitantes do

território, foram inscritas lembranças sobre a sucessão fundiária,

sobre os antigos e sobre as relações de parentesco entre vivos e

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Croqui de Márcio (excerto)

mortos (sinalizadas através de árvores genealógicas). Nas áreas

hoje pertencentes aos vizinhos brancos, gravaram-se os nomes

dos antigos proprietários, como se a atual ausência de membros

da comunidade em algumas faixas de terras pudesse ser mitigada

pela rememoração dos troncos velhos. Como salientaram Anjos

e Silva (2004, p. 73), genealogias e transmissões de sobrenomes

cumprem um papel fundamental nas avaliações quanto

aos direitos de sucessão, à definição de pertencimentos e à

estruturação das fronteiras étnicas. Com efeito, diversos tempos

se sobrepunham ali.

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Pode-se argumentar que a mobilização e a dedicação de

Márcio atestam a formação de novas disposições em função da

situação de reivindicação étnica do grupo. Não fosse o contexto

atual, é pouco provável que ele manifestasse esse crescente

interesse pela história de Cambará. Talvez não empregasse

suas forças e despendesse seu tempo em tal empreitada, se a

mobilização pela titulação das terras não tivesse lugar. Ademais,

ele está acionando novos meios de transmissão do passado, ou seja,

Sobreposições no mapa (excerto)

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se os mais velhos transmitem lembranças mediante narrativas

orais e não fixam o território em suportes documentais, Márcio

organizou um arquivo sobre Cambará e inscreveu o território

do grupo em um mapa, semelhantemente a geógrafos.

Supor isso, entretanto, significaria negligenciar uma série de

fatores. Márcio produziu versões escritas da história de Cambará

não só pelo fato de adquirir familiaridade com os códigos dos

diversos agentes envolvidos no reconhecimento dos direitos

quilombolas, mas também por ser neto e filho, respectivamente,

de Jorge Pereira Lopes (in memoriam) e Geraldo da Silva (81 anos),

dois dos principais guardiões da memória do grupo. De fato,

suas entrevistas com os mais velhos direcionaram para novos

fins as lembranças que lhe foram transmitidas, mas também

deram continuidade a um aprendizado com o qual ele já estava

familiarizado. Para essa liderança, as entrevistas, as pesquisas

e o convívio com os mais velhos são as principais ferramentas

que lhe possibilitam a leitura do território e a escrita da

história do local.

Croquis, relatos escritos e demais documentos tornam-

se novos suportes da memória somente através dos suportes

territoriais da memória. Segundo ele mesmo me relatou, para

fazer seu croqui, Márcio estacou em um local próximo à sua casa

e começou a esboçar o mapa da comunidade. As dificuldades

foram poucas, assegurou-me, pois conhecia bem o lugar. Se

utilizássemos de uma metáfora grafológica, poderíamos dizer

que é a capacidade de ler as histórias, os eventos, os afetos, as

emoções e as intensidades inscritas – e incrustadas – no território

que possibilitou a transposição de lembranças para um croqui.

Do mesmo modo, é o conhecimento prévio sobre o território que

o faculta localizar, com suas anotações, os locais de residência

passada e os cenários de vivência dos antigos.

O relato sobre a feitura do croqui parece-me sintomático.

Márcio quedou-se imóvel nas cercanias de sua casa, enquanto o

esboçava, e não teve dificuldade alguma para fazê-lo. Em verdade,

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esse estado de imobilidade capta duas coisas: o pertencimento a

um local e as imagens sucessivas que a contemplação da paisagem

desperta naqueles familiarizados com os itinerários do grupo.

Evidentemente que a produção de documentos desse feitio exige a

alfabetização, mas a leitura da paisagem, a capacidade de associar

lugares, pessoas e eventos e de mapear vivências através do olhar

são tão importantes quanto. Com efeito, para escrever, é preciso

saber ler as páginas da terra (MELLO, 2012, p. 199).

Seria interessante averiguar se – e de que maneira – versões

escritas sobre a histórica do local agregam relevância aos fatos

narrados. Analisando-se as entrevistas feitas por Ana Rodrigues

(2011, p. 49-60) em sua monografia sobre Cambará, pode-se inferir

que sim. Orcindo Machado, 86 anos, ao falar sobre as origens

da comunidade, atesta, em determinado momento, que “isso tá

arquivado no arquivo de Cachoeira [cidade de Cachoeira do Sul]”

(RODRIGUES, 2011, p. 55). Geraldo da Silva, 81 anos, por sua vez,

disse que “muitas coisas que foram ditas aqui foram confirmadas

no museu de Porto Alegre” (RODRIGUES, 2011, p. 59). Percebe-

se na fala desses dois senhores, grandes sabedores do local que

forneceram informações a diversos pesquisadores nos últimos

anos, que há alguma preocupação em vincular o conhecimento

sobre os antigos a instituições (museus, arquivos) repositórias de

documentos. A entrevista de Ana Rodrigues com Márcio, por

sua vez, também apresenta elementos interessantes. Vejamos:

Ana: Gostaria que me falasse sobre o que sabes sobre o início da

comunidade de Cambará.

Márcio: [...] Historicamente a comunidade é formada por quarenta

famílias negras que na sua origem eram antigos escravos, ex-escravos

e alforriados. Na verdade, foi um estudo dos próprios universitários

que pesquisaram sobre a história da comunidade. A formação do

povo daqui, como se constituiu do ponto de vista antropológico,

tudo isso ficou comprovado; todos os fatos que foram narrados, a

história e a trajetória de muitas pessoas da comunidade desde o

passado até os dias atuais (RODRIGUES, 2011, p. 49).

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Fica evidente que há uma inflexão no uso da escrita, mas

isso não explica, por si só, o papel da escrita no interior da

comunidade. Como mencionei anteriormente, os moradores de

Cambará sempre se socorreram de papéis para legitimar suas

posses, inclusive através de pedidos de usucapião. De qualquer

forma, e não obstante o contexto atual, não se deve supor que

esteja em curso uma progressiva sobreposição dos relatos escritos

sobre as narrativas orais. No plano etnográfico, parece mais

produtivo deixar de lado a aquisição da escrita, e seus corolários

(alfabetização, letramento e escolarização), e enfocar os usos da

escrita, pois, como salientaram Olson e Torrance (1995, p. 7), o

fundamental é aquilo que as pessoas fazem com a escrita, e não

o que ela faz com as pessoas. Rappaport (1990, 1994), em dois

estudos sobre a produção de documentos escritos por lideranças

indígenas andinas, alerta-nos sobre isso, argumentando que a

atenção se deve centrar nas “justaposições” e “transposições”

entre oralidade e escrita, não para a substituição de um meio de

memória por outro.

A transposição de modos orais de lembrança em formas

escritas não corresponde a um único gênero narrativo. A

partir daí não se estabelece um corte definitivo entre formas

de contar histórias. Trata-se, antes, de um gênero misto. Na

luta por reconhecimento, os apelos à história podem ser uma

importante ferramenta na disputa política. No caso de Cambará,

após a assunção quilombola a memória do grupo expandiu-se,

adequando-se às novas necessidades e alcançando outros espaços,

públicos e ouvintes. Escrever sobre o próprio passado cumpre

uma função fundamental, pois abre os arquivos internos da

comunidade, estendendo as cadeias de transmissão e circulação

de lembranças. A formação de um arquivo certamente configura

uma estratégia política que faz recurso do conhecimento histórico,

mas não se trata somente de uma tentativa de instrumentalizar,

através da escrita, as lembranças do passado. Como coloca Shaw

(2002, p. 265), não é possível caracterizar processos como esse

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de forma unidirecional a partir de uma abordagem “presentista”,

na qual se supõe que um presente soberano continuamente

imprime sua marca em um passado infinitamente maleável.

Em vez disso, passado e presente se fundem, moldam-se um ao

outro, de forma que as memórias formam um prisma através

do qual o presente é configurado e as experiências presentes

reconfiguram essas memórias. Conforme colocam Anjos e Silva

(2004, p. 56, 73), as histórias contadas por homens e mulheres

de comunidades quilombolas não se sustentam apenas nos

parâmetros de veracidade histórica. Genealogias, transmissões

de sobrenomes e narrativas épicas transmitem direitos e noções

de justiça. Não é à toa, pois, que nos mapas elaborados por

Márcio se listem tantos parentes e antigos.

O passado, como coloca Lambek (1996), é imperfeito não

apenas gramaticalmente, mas fundamentalmente por sua

incompletude. O passado não está terminado e resolvido; ele

é um passado imperfeito duracional, que continua a predicar

relacionamentos morais no presente, na terminologia de Palmié

(2011, p. 233). Para Palmié, o fundamental não é indagar a

“objetividade”, “precisão” e “factualidade” de relatos locais

sobre o passado. O que interessa, continua, “é o investimento

cultural e político nessas narrativas, e o trabalho feito por elas

dento de cenários sociais especificáveis, incluindo as estruturas

institucionais que subscrevem a aceitabilidade contextual de

algumas delas como representações ‘confiáveis’ do ‘verdadeiro’

passado” (PALMIÉ, 2011, p. 245). Daí ser necessário analisar as

condições e os contextos de enunciação que imprimem marcas

nas cadeias de transmissão do passado.

Os documentos produzidos por Márcio são entrecortados

por temporalidades distintas, inclusive por aquelas engendradas

por intervenções institucionais que fomentam a necessidade

de lembrar. Como nos adverte Koselleck (2006, p. 310-311), o

tempo não pode ser expresso a não ser em metáforas espaciais.

Por isso é que há sentido em falar de “espaço de experiência”:

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a experiência proveniente do passado é espacial porque a

experiência “se aglomera para formar um todo em que muitos

estratos de tempos anteriores estão simultaneamente presentes”.

Da mesma forma, faz sentido falar em “horizonte de expectativa”,

visto que “horizonte quer dizer aquela linha por trás da qual se

abre no futuro um novo espaço de experiência, mas um espaço

que ainda não pode ser contemplado”. A inscrição de fatos,

vivências, situações, vozes, narrações e pessoas em documentos,

mapas e mídias digitais não apenas transplanta eventos passados

e terminados em novos meios: trata-se daquilo que Koselleck

(2006, p. 342) chamou de “saturação de realidade”, da inclusão

de possibilidades realizadas ou falhas. O território de Cambará

não é apenas um suporte fundamental para a produção de

conhecimento histórico – seja ele transmitido por narrativas

orais ou por documentos escritos –, mas também porque ele

mesmo se encontra em transformação. Palco de várias vivências

dos antigos, referência de direitos mapeados por genealogias,

pertencimentos e locais de morada, testemunho de esbulhos,

de injustiças e de histórias de sofrimento, o território não

apenas faz evocar experiências já acabadas do passado, mas

também é um vislumbre de um novo horizonte, moldado pelas

expectativas de reconhecimento de novos direitos. A área que

está sob litígio hoje em Cambará é um espaço carregado de

marcadores de tempo. As “evidências factuais” dos direitos da

comunidade estão meticulosamente mapeadas no território,

mas essas formas de inscrição tendem a ser desvalorizadas pelos

órgãos que multiplicam registros, instrumentos e procedimentos

que incidem sobre as comunidades quilombolas. Através de

modalidades escritas nativas talvez seja possível enraizar ainda

mais a intensidade das vivências imprimidas na terra.

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