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Tese de Doutorado HISTÓRIA SECRETA DE DEJEMOS HABLAR AL VIENTO, DE JUAN CARLOS ONETTI ANA CAROLINA TEIXEIRA PINTO Universidade Federal de Santa Catarina Programa de Pós-Graduação em Literatura
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HISTÓRIA SECRETA DE DEJEMOS HABLAR AL VIENTO, DE … · a favor de la existencia de un plan de obra realizado por Onetti, todavía se entiende la dificultad de la relación del autor

Nov 30, 2018

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  • Tese de Doutorado

    HISTRIA SECRETA DE DEJEMOS HABLAR AL VIENTO, DE JUAN CARLOS ONETTI

    ANA CAROLINA TEIXEIRA PINTO

    Universidade Federal de Santa CatarinaPrograma de Ps-Graduao em

    Literatura

  • Ana Carolina Teixeira Pinto

    HISTRIA SECRETA DE DEJEMOS HABLAR AL VIENTO, DE JUAN CARLOS ONETTI

    Tese apresentada ao Programa de Ps-graduao em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina como requisito final para a obteno do ttulo de Doutora em Literatura, sob a orientao da Professora Dr. Liliana Reales.

    Florianpolis 2016

  • PINTO, Ana Carolina Teixeira Histria secreta de Dejemos hablar al viento, de Juan Carlos Onetti / Ana Carolina Teixeira PINTO ; orientadora,

    Liliana Reales - Florianpolis, SC, 2016. 324 p.

    Tese (doutorado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Comunicao e Expresso. Programa de Ps Graduao em Literatura.

    Inclui referncias

    1. Literatura. 2. literatura hispano-americana . 3.crtica literria. 4. Juan Carlos Onetti. 5. Dolly Onetti.I. Reales, Liliana. II. Universidade Federal de SantaCatarina. Programa de Ps-Graduao em Literatura. III.Ttulo.

  • "Histria secreta de Dejemos hablar al viento, de Juan

    Carlos Onetti".

    Ana Carolina Teixeira Pinto

    Esta tese foi julgada adequada para a obten9ao do ttulo

    DOUTORA EM LITERATURA

    rea de concentra9ao em Literaturas e aprovada na sua forma final pelo Curso de Ps-Gradua9ao em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina.

    L,---/ Profa. Dra. Liliana Reales ORIENTADOR(A)

    v-Ci/ f>rof Dr Maria Lcia de Barros Camargo COORDENADORA DO CURSO

    BANCA EXAMINADORA:

    "-c. /z., ./e.._,Profa. Dra. Liliana Reales PRESIDENTE

    Prof. Dr. Wladimir(G rcia (UFSC)

    Prof. Dr. H ert Biizzolano (UDELAR Uruguai)

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo Dorotea Muhr-Dolly Onetti por ter me recebido em sua casa trs vezes, por ter me concedido entrevistas e ter permitido que elas fossem filmadas; por seu amor por Onetti e pelo arquivo; por seu carinho pelos pesquisadores.

    Agradeo minha orientadora, Liliana Reales, por ter colocado Juan Carlos Onetti em minha vida a partir de sua paixo pela narrativa de nosso autor; por ter aberto as portas do mundo hispnico em estudos literrios e me convidado a nele entrar; pelo incentivo a que eu conquistasse meu espao na carreira docente como professora de Literatura e por ter permitido que eu escrevesse esta histria secreta.

    Agradeo aos professores Hebert Bentez Pezolano, Antonio Carlos Santos, Wladimir Garcia, Jair da Fonseca e Leonardo Dvila a atenta leitura desta tese e suas generosas observaes.

    Agradeo ao CNPQ o financiamento de minha pesquisa durante o primeiro ano e ao Programa de Ps-graduao em Literatura da UFSC o acolhimento de meu projeto de pesquisa de doutorado.

    Agradeo ao Ncleo Juan Carlos Onetti de Estudos Literrios Latino-americanos por todas as grandes oportunidades que me proporcionou.

    Agradeo aos responsveis pelo departamento Archivos da Biblioteca Nacional do Uruguai o acolhimento durante o tempo que estive pesquisando os manuscritos de Juan Carlos Onetti in locus; Virginia Friedman e rika Escobar a disposio em ajudar-me. Um agradecimento especial Ana Ins Larre Borges o incentivo pesquisa com os manuscritos desde 2009.

    Agradeo ao escritor uruguaio Hugo Giovanetti Viola a entrevista a mim concedida e a colaborao significativa minha histria secreta.

    Agradeo ao professor doutor Hebert Bentez Pezzolano a ateno com que me recebeu na Universidad de la Repblica de Uruguay.

  • Agradeo professora Rosana Cacciatore as sensveis aulas de montagem documental no DAC/UFSC e o incentivo para que eu mergulhasse no mundo da montagem cinematogrfica.

    Agradeo aos professores Jair Tadeu da Fonseca e Srgio Romanelli a leitura atenta e motivadora do material de qualificao. Fonseca por incentivar meus olhos em direo chave da literatura policial e Romanelli por me orientar nos pressupostos tericos da crtica gentica.

    Agradeo aos professores Ral Antelo, Susana Scramin, Ana Luisa Andrade, Wladimir Antonio da Costa Garcia e Liliana Reales as aulas ministradas e todas as indicaes de leituras e riqussimas reflexes sobre literatura.

    Agradeo Universidade Federal da Fronteira Sul a concesso do afastamento de minhas atividades para concluir esta tese.

    Agradeo aos meus alunos, em especial aos participantes do Grupo de teatro La broma, por permitirem minha direo onettiana.

    Agradeo s minhas amigas Caroline, Cristiane, Cassiani, Valria, Renata, Luciana, Aninha e Patty a escuta atenta de minhas conversas-palestras apaixonadas por minha pesquisa.

    Agradeo aos meus irmos Fernanda e Rodrigo o grande apoio e a compreenso pela falta.

    Agradeo minha filha por respeitar minhas escolhas e estar sempre ao meu lado; por ser divina, como a qualificou Dolly, por ser Santa Maria.

    Agradeo ao meu pai e minha me pelo amor incondicional e a presena nos momentos mais difceis.

    Agradeo especialmente minha v Jahir e sua irm Jessy por me emprestar a fora de todas as mulheres, esse poder que me foi consignado.

  • Agradeo ao Marcos por dividir o gosto da composio comigo; por vestir a gravata borboleta amarela e me presentear.

  • ERNEST.- Desde luego, hay algo de verdad en lo que usted dice. Pero es poco objetivo en muchos puntos. GILBERT.- Es casi imposible serlo con lo que se ama. Pero volvamos al tema en cuestin. Qu me deca? OSCAR WILDE

    Y es que en realidad, no hay nada ms importante que sugerir a la ficcin. OSCAR WILDE

    Bueno, vos tens historia conmigo DOLLY ONETTI

    En cuanto a m estoy metido en el ocano y nado y nado y nada, rien. Esto es curioso. Sapristi, uno manotea buscando tierra firme pero lealmente no puede desmentir un gozo en esto de bracear y tragar agua. Analizando, es un problema de resistencia, simplemente, con la amenaza de que la maquinaria sufra panne ONETTI Cartas de un joven escritor

    O tempo ativo, tem carcter verbal, traz consigo. Que que traz consigo? A transformao. MANN - A montanha mgica

    A obsesso supe lugares, uma habilitao sempre alguma casa mal-assombrada. DERRIDA Mal de arquivo

  • Dolly e Onetti (a um e dois)

  • RESUMO

    Esta tese se prope a elaborar uma histria secreta da composio do romance Dejemos hablar al viento (DHV) do escritor uruguaio Juan Carlos Onetti. O corpus utilizado composto da narrativa de DHV, de seus manuscritos arquivados na Biblioteca Nacional do Uruguai, de entrevistas concebidas por Onetti ao longo de sua vida, de outras narrativas onettianas, de depoimentos de algumas testemunhas encontradas ao longo do caminho e das entrevistas concedidas, especialmente para esta pesquisa, por Dorotea Muhr (Dolly Onetti). Para estruturar a tese, estabeleceu-se chamar os captulos de pistas e cada pista apresenta e desenvolve uma hiptese pertinente para a composio desta histria. A primeira pista, de certa forma, justifica a prpria metodologia de montagem da tese, posto que revela o nome utilizado para o romance durante muito tempo, La policial, e pe em destaque a relao de Onetti com a literatura policial como leitor e como escritor. Exemplificando com algumas narrativas, mas focando no caso de DHV, opta-se por no categorizar a narrativa onettiana nem como policial nem como contra-policial, como fazem Josefina Ludmer e Omar Prego, e sim sob uma capa policial. Na segunda pista, a hiptese desenvolvida gira em torno da importncia do papel de Dolly para a sobrevivncia da obra de Onetti. Dolly vista como arquivista, narradora e montadora do caso Onetti. Estabelece-se a ideia de um plano de arquivo, de uma relao do arquivo como obra de Dolly, como a obra de Dolly. A posio de montadora problematizada levando em considerao a anlise dos manuscritos de DHV. Segundo esse estudo, a viva exerce funo essencial para a montagem e finalizao da obra. Esta pista acompanhada de um curta-metragem de quinze minutos, oriundo das entrevistas feitas com Dolly, que esto em dilogo direto com as questes apresentadas. Na terceira pista, argumenta-se a favor da existncia de um plano de obra realizado por Onetti, no entanto, entende-se a dificuldade da relao do autor com as funes necessrias de mercado para a sobrevivncia da obra de arte, assim sendo pensa-se em uma necessidade de uma sensao de macr da arte s avessas, termo este que criado em aproximao caracterstica de personagens da prpria narrativa de Onetti. A quarta pista apresenta o trabalho de descrio e mapeamento dos manuscritos de DHV, cujos dados so utilizados na argumentao das demais pistas. Outra questo pertinente a hiptese temporal do trabalho de composio da narrativa. Da anlise

  • dos manuscritos, de entrevistas, cartas e testemunhos, sugere-se que a narrativa foi escrita durante duas dcadas. Na ltima pista, o foco est centrado em algumas relaes de autoreferrencialidade da narrativa de DHV e como elas se apresentam nos manuscritos. A partir da, e de outras marcas autgrafas, busca-se estabelecer uma lgica da sensao de primeira vez em Onetti.

    Palavras-chave: Onetti, arquivo, manuscrito, montagem, literatura policial.

  • RESUMEN

    Esta tesis se propone a elaborar una historia secreta de la composicin de la novela Dejemos hablar al viento (DHV) del escritor uruguayo Juan Carlos Onetti. El corpus utilizado es compuesto de la narrativa de DHV, de sus manuscritos archivados en la Biblioteca Nacional de Uruguay, de declaraciones de testigos encontrados en el recorrido de la investigacin y de las entrevistas concedidas, especialmente, por Dorotea Muhr (Dolly Onetti). Para estructurar la tesis, se estableci nombrar los captulos de pistas y cada pista presenta y desarrolla una hiptesis pertinente del montaje de sta historia. La primera pista, de cierta forma, justifica la propia metodologa del montaje de la tesis, pues revela el nombre provisorio de la novela, La policial, y pone en relieve la relacin de Onetti con la literatura policial como lector y como escritor. Ejemplificando con algunas narrativas, pero con foco en el caso de DHV, se opt por no categorizar la narrativa onettiana ni como policial tampoco como contra-policial, como lo hacen Josefina Ludmer y Omar Prego, y s sobe una tapa policial. En la segunda pista, la hiptesis desarrollada gira en torno de la importancia del rol de Dolly para la sobrevivencia de la obra de Onetti. Dolly es vista como archivista, narradora y montadora del caso Onetti. Se establece la idea de un plan de archivo, de una relacin de archivo como la obra de Dolly, como la obra de Dolly. La posicin de montadora es problematizada llevando en consideracin el anlisis de los manuscritos DHV. Conforme ese estudio, la viuda ejerci funcin esencial en el montaje y finalizacin de la obra. Esta pista es acompaada de un cortometraje de quince minutos, originario de las entrevistas hechas con Dolly, que estn en dilogo directo con las cuestiones presentadas. En la tercera pista, se argumenta a favor de la existencia de un plan de obra realizado por Onetti, todava se entiende la dificultad de la relacin del autor con las funciones necesarias de mercado para el mantenimiento de la obra de arte, as siendo se piensa en la necesidad de una sensacin de macr del arte a las aviesas, termo este que es creado en aproximacin a la caracterstica de personajes de la propia narrativa de Onetti. La cuarta pista presenta el trabajo de descripcin y cartografa de los manuscritos de DHV, cuyos datos son utilizados en la argumentacin de las dems pistas. Otra cuestin pertinente es la hiptesis temporal del trabajo de composicin de la narrativa. Del anlisis de los manuscritos, de entrevistas, cartas y testigos, se sustenta que la narrativa fue escrita durante dos dcadas. En

  • la ltima pista, el foco est centrado en algunas relaciones de autorreferencialidad de la narrativa de DHV y como ellas se presentan en los manuscritos. A partir de eso, y de otras marcas autgrafas, se busca establecer una lgica de sensacin de primera vez en Onetti.

    Palabras-clave: Onetti, archivo, manuscritos, montaje, literatura policial.

  • ABSTRACT

    The purpose of this thesis is to elaborate upon the secret story of the composition of the novel Dejemos hablar al viento (DHV) of the Uruguayan writer Juan Carlos Onetti. The corpus used is composed of DHVs narrative, its manuscripts archived in the Biblioteca Nacional de Uruguay, Onettis interview granted during his lifetime, and other Onettian narratives related through Dorotea Muhr (Dolly Onetti). To structure this thesis, each chapter was labeled a clue and each clue presents and develops a relevant hypothesis to the composition of this story. The first clue justifies this methodology of editing of the thesis, because it reveals the original title of the novel, La policial, and it highlights the relation of Onetti and the detective narrative as a reader and as a writer. Exemplifying with some narratives but focusing on the case of DHV, Onettis narrative is classified as neither as detective or non-detective novel, like Josefina Ludmer and Omar Prego, but as na undercover detective novel. In the second clue, the hypothesis developed works around the importance of Dollys role in the survival of Onettis work. Dolly is seen as archivist, narrator and editor of Onettis work. The idea of archive planning was established. The archive was the artwork of Dolly. The role of editor was a problem considering the analysis of the manuscripts of DHV. As the thesis shows, the widow has an essential function to the structure and editing of the narrative. To exemplify this, there is a fifteen minute short film that comes from the interviews that were done with Dolly. In the third clue the existence of a work plan developed by Onetti is argued, but also understood is the difficulty of the relation of the author with the necessary market roles to the survival of the artwork. Therefore, the necessity of a sensation of a macro of the art on the contrary is considered. This term is created comparing the traits of the characters in Onettis own narrative. The fourth clue presents the work of describing and mapping the manuscripts of DHV, and those data are used in the other clues. Another important issue is the temporal hypothesis of the composition of DHV. By the analysis of the manuscripts, the interviews, and the testimonials, it is suggested that the narrative was written over two decades. The last clue focuses on some issues of autorefence found in DHV narrative and how they are present in the manuscrits. From that,

  • and from other autograft marks it is aspired to establish a first time logical sensation in Onetti.

    Key-words: Onetti, archive, manuscripts, editting, detective narrative.

  • Montevidu, 27 de outubro de 2010.

    Caro,

    Estive hoje com voc pela primeira vez. Virginia me recebeu em sua sala na Biblioteca Nacional do Uruguai no Departamento Archivo Literrio. Ela ruiva e ao contrrio da personagem de Clarice Lispector, no soluava. Sua guardi me levou a uma grande sala com armrios de ferro cinzas, todos cadeados. Atrs dela, ativando meu pescoo de avestruz, eu via pastas plsticas grandes etiquetadas. Ela pegou uma parte de voc no colo e me estendeu dizendo: Por hoje so seus!

    Eu sorria muito. Assim como meu pai, toda vez que fico nervosa minha intimidade solta os msculos da face. No tive pressa alguma, sabia que aquele era apenas nosso primeiro ato. Encarei cada pedacinho de seu corpo: folhas grampeadas, amareladas, sujas, soltas, datilografadas, escritas. Cadernos: azul, vermelho, laranja, verde, marrom, cinza, sem capa, caderno preto. Caderno preto A e uma data a lpis: Junio de 1959. Caderno pardo, flio 10 e duas datas: Marzo 23, 79 (tinta azul) ou Febrero 23, 79 (tinta preta). Vinte anos. Eu estava diante de originais que foram manipulados durante vinte anos da vida de meu autor, Juan Carlos Onetti. Manipulados por quem? Onetti, Jorge, Dolly? Agora a manipuladora sou eu. Eu manipulo pgina por pgina sob os olhos desconfiados de Virginia, que ao perceber a camada mida que se formava diante de minhas crneas me convida para ir ao banheiro. Toda a vez que tinha que sair para fazer alguma coisa, me mostrava a porta com a cabea, girava a chave na fechadura e tchau. Eu andava pelo corredor ainda lendo suas anotaes e ali mesmo limpava a vista comprometida; j o olhar comprometido, nunca pude limpar.

    Esse dia 27 de outubro, dia de 480 horas, eu conheci diferentes nomes de Medina, Avon e X; as mesclas das personagens femininas, Frieda, Juanina e Gurisa em I; a indita infncia de Frieda; o nascimento de Santa Mara como na diegese, em um papelito; uma mesma pgina e como em um caderno de estudante adolescente, tinta verde, azul, vermelha e lpis; uma mesma pgina e como em um caderno de estudante adolescente, diferentes letras; A cidade de Lavanda como Montevideo e La Banda; uma Peticin de principio; diferentes lembretes e notas sobre a narrativa; iniciais enigmticas por toda a parte; elaboraes de esquemas narrativos; desenhos de mapas; recortes de jornais e outras coisas que no consigo lembrar.

  • Como posso ler voc? O que posso ler em voc? Se seu pai est morto e eu, me de um manuscrito por vir, que a cada palavra pronunciada perco o ar, digo que voc e seus quase mil flios que ativaram este movimento de escrita que fao agora, e que foram pouco a pouco agregando outros flios, oriundos de outras narrativas, de cartas, de entrevistas, de artigos e tantos outros textos. Este movimento de escrita relata os vestgios encontrados a partir de uma investigao vestida de sobretudo, luvas e uma lupa. Uma investigao detetivesca que tenta montar um quebra-cabea, seu quebra-cabeas, aquele o qual nunca poderei posicionar a ltima pea, aquele o qual no admite ltima pea. Uma investigao que tem a pretenso de contar uma histria secreta, mas no a histria secreta e sim uma das histrias secretas de Dejemos hablar al viento (DVH).

  • LISTA DE FAC-SMILES

    Fac-smile 1 Flio 2 (verso) do suporte 59. .............................23 Fac-smile 2 Capa do suporte 59. .............................................42 Fac-smile 3 Capa do suporte 64. .............................................43 Fac-smile 4 Folha de rosto do suporte 60. ..............................44 Fac-smile 5 Flio 64.49. .........................................................46 Fac-smile 6 Capa do suporte 62. .............................................65 Fac-smile 7 Detalhe da capa do suporte 62. ............................79 Fac-smile 8 Flio 62.26. ....................................................... 122 Fac-smile 9 Flio 62.34. ....................................................... 125 Fac-smile 10 Flio 34. .......................................................... 126 Fac-smile 11 Flio 35. .......................................................... 127 Fac-smile 12 Flio 64.13. ..................................................... 136 Fac-smile 13 Contracapa do suporte 49. ............................... 139 Fac-smile 14 Flio 47.8. ....................................................... 141 Fac-smile 15 Flio 51.47. ..................................................... 144 Fac-smile 16 Flio 60.15. ..................................................... 146 Fac-smile 17 Flio 60.15 (verso). ......................................... 147 Fac-smile 18 Flio 62.09 (verso). ......................................... 154 Fac-smile 19 Flio 63.10 ...................................................... 156 Fac-smile 20 Flio 63.12 ...................................................... 158 Fac-smile 21 Flio 63.13 ...................................................... 159 Fac-smile 22 Flio 63.14 ...................................................... 160 Fac-smile 23 Flio 63.15 ...................................................... 161 Fac-smile 24 Flio 63.16 ...................................................... 162 Fac-smile 25 Flio 63.17 ...................................................... 163 Fac-smile 26 Flio 63.18. ..................................................... 164 Fac-smile 27 Flio 63.19 ...................................................... 165 Fac-smile 28 Flio 60.40. ..................................................... 169 Fac-smile 29 Flio do suporte 1. ........................................... 182 Fac-smile 30 Capa do suporte 59. ......................................... 186 Fac-smile 31 Flio 59.1 ......................................................... 187 Fac-smile 32 Parte do flio 59.12 ......................................... 189 Fac-smile 33 parte do flio 59.12 (verso) ............................. 190 Fac-smile 34 parte do flio 59.26 ......................................... 190 Fac-smile 35 Flio 59.24 ...................................................... 196 Fac-smile 36 Flio 59.25 ...................................................... 197 Fac-smile 37 Flio 61 ........................................................... 198

  • Fac-smile 38 Flio 61.1 ........................................................ 198 Fac-smile 39 Parte do flio 65.7 .......................................... 199 Fac-smile 40 Parte do flio 65.14 ........................................ 199 Fac-smile 41 parte do flio 65.14 ......................................... 200 Fac-smile 42 parte do flio 65.9 ........................................... 201 Fac-smile 43 Capa do suporte 49. ........................................ 202 Fac-smile 44 Parte do flio 49.24 (verso). ........................... 204 Fac-smile 45 - Parte do flio 49.25 (verso). ............................ 205 Fac-smile 46 parte do flio 49.11. ........................................ 205 Fac-smile 47 Parte do flio 49.3 (verso) .............................. 206 Fac-smile 48 Parte do flio 49.3 ........................................... 207 Fac-smile 49 Capa do suporte 51. ........................................ 209 Fac-smile 50 Parte do suporte 51.30 (verso) ........................ 210 Fac-smile 51 Parte do suporte 51.30 (verso). ....................... 210 Fac-smile 52 Parte do suporte 51.3 ....................................... 211 Fac-smile 53 Capa do suporte 60. ........................................ 212 Fac-smile 54 Parte do flio .................................................. 213 Fac-smile 55 Parte do flio 60.2 .......................................... 214 Fac-smile 56 parte do flio 60.26 ......................................... 216 Fac-smile 57 Parte do flio 60.84 (verso). ........................... 220 Fac-smile 58 parte do flio 60.87. ........................................ 220 Fac-smile 59 parte do flio 60. 89 (verso). .......................... 221 Fac-smile 60 Flio 1.3 .......................................................... 224 Fac-smile 61 parte do flio 50.............................................. 226 Fac-smile 62 Flio 50.11. ..................................................... 227 Fac-smile 63 Flio 52,1 (verso). .......................................... 232 Fac-smile 64 Flio 59.2. ....................................................... 232 Fac-smile 65 Flio 48.1 (verso). .......................................... 235 Fac-smile 66 Flio 48.3 ........................................................ 236 Fac-smile 67 Flio 53.2 (verso). .......................................... 242 Fac-smile 68 Flio 53.3. ....................................................... 243 Fac-smile 69 Flio 52. .......................................................... 247 Fac-smile 70 Flio 60.87. ..................................................... 252 Fac-smile 71 Flio 64.7. ....................................................... 253 Fac-smile 72 Flio 64.4. ....................................................... 255

  • LISTA DE FIGURAS

    Figura 1 Foto com Dolly (Jornada Literria, 2005). ........................... 75 Figura 2 The Great Wave (Hokusai) ................................................... 96 Figura 3 The wave (Gauguin) .............................................................. 96 Figura 4 Dolly fotografando ............................................................. 114 Figura 5 Mario Benedetti e J.C. Onetti ............................................. 115 Figura 6 Casa da Rua Bonpland ....................................................... 116 Figura 7 Terrao do apartamento de Avenida de Amrica. .............. 117 Figura 8 Espera do Premio Cervantes .............................................. 117

  • LISTA DE TABELAS

    Tabela 1 Mapa dos manuscritos ....................................................... 175 Tabela 2 Variaes do nome prprio ............................................... 185 Tabela 3 Linha cronolgica ............................................................. 229 Tabela 4 Organizao de blocos ...................................................... 231 Tabela 5 Organizao de blocos de suportes: linha temporal do processo de produo de DHV. ........................................................... 237 Tabela 6 Cronologia da apario de Santa Mara no corpus onettiano. ............................................................................................................. 261

  • SUMRIO

    PETICIN DE PRINCIPIO ........................................................23 PISTA 1: SOB UMA CAPA POLICIAL (todo el cuaderno) .....35

    (O caso DHV - entre parnteses ..............................................50 As peripcias do exemplar de Laura .......................................62

    PISTA 2: A miucho querido, tucha .........................................65 Dolly operadora da antessala onettiana e narradora do Caso Onetti ......................................................................................69

    PISTA 3: (O plano de obra - entre parnteses .............................79 Onetti e o plano de um macr da arte s avessas ................88 Dolly e o mal de arquivo ...................................................... 109 Dolly armadora, montadora .................................................. 119 As provas da montadora ....................................................... 134

    PISTA 4: - PLAN DE LA AGUJA ........................................... 169 O mapa dos manuscritos ....................................................... 172 Todo lo escrito tiene o tendr su utilidad: Passagens secretas .............................................................................................. 182

    Plano do suporte 59: Cuaderno marrn ............................ 186 Plano do suporte 65: Santa Mara .................................... 199 Plano do suporte 49: Cuaderno negro A ......................... 201 Plano do suporte 51: Gurisa ............................................. 208 Plano do suporte 60: policial todo el cuaderno ................ 211 As datas ............................................................................ 222 Notas sobre os suportes 52, 56, 57, 58 e 64 ..................... 232 Notas sobre os suportes 47, 48, 55, 53, 54 - antetexto de La tentacin ......................................................................... 234

    PISTA 5: SENSAO DE PRIMEIRA VEZ: entre a mo e o olho ............................................................................................ 239

  • (Redito - O que acontece na mesa de Montagem/flatbed - sobre o processo de composio do curta-metragem: Tucha (Dolly Onetti): arquivista, narradora e armadora do Caso Onetti ........ 267 O PENLTIMO GRO DE AREIA (A modo de eplogo) ..... 277 REFERNCIAS BIBLIGRFICAS ........................................ 285 ANEXO 1 CONVERSA COM DOLLY ONETTI ................ 295 ANEXO 2 BACON E ONETTI: Um estudo para Dejemos hablar al viento ........................................................................ 297 ANEXO 3 EL IMPOSTOR OU LA IMPOSTORA .............. 319

  • 23

    PETICIN DE PRINCIPIO Fac-smile 1 Flio 2 (verso) do suporte 591.

    Fonte: Manuscritos de Dejemos hablar al viento.

    1 A digitalizao dos manuscritos usados nesta tese foi realizada por Isabel

    lvarez e seu catlogo foi publicado pela Biblioteca Nacional do Uruguai (LVAREZ, 2009) que autorizou o uso dos mesmos para esta pesquisa.

  • 24

    Esta es la sensacin que nada tiene que ver, no relacin posible, comprensible con los hechos. La vida de todos los das los mismos elementos hoy que ayer, los mismos miedos y esperanzas. Pero uno, de golpe, y mejor de da, con sol y gente, empieza a sentir que lo estn manejando, que Dios est a las espaldas, que todos los mismos acontecimientos, porque no hay otros imprevisibles o novedosos, han sido planeados para imponerle a uno determinada conducta que habr de conducirlo a un instante, una situacin que le ha sido adjudicada de antemano. [Peticin de principio].2

    Desde o princpio, minha leitura da narrativa do escritor uruguaio Juan Carlos Onetti (1909-1994), que teve incio em meu segundo ano de graduao (2002), apontou para suas ligaes com outros textos. Nesse momento, fiz uma leitura pontualmente comparada com Hamlet, de Shakespeare. Em meu Trabalho de Concluso de Curso, aproximei La vida breve de Crime e castigo, de Fiodor Dostovski. Posteriormente, a anlise comparativa foi realizada com Morte a crdito, de Louis Ferdinand Cline, e recentemente com pinturas de Francis Bacon (PINTO, 2012).

    A partir da, no mestrado, a tenso leitora voltou-se ao dilogo de Onetti com Onetti, isto , s referncias da narrativa onettiana com a prpria narrativa onettiana. Essa caracterstica, que preferi chamar de autocitacional em minha dissertao (PINTO, 2007), e que minha orientadora nomeia autorreferente (REALES, 1997), voltou minha ateno para o romance Dejemos hablar al viento (DHV), publicado em 1979. Nessa narrativa, a autorreferencialidade ocorre de forma mais intensa, quase extravagante, posto que so inmeras as ocorrncias. Esse um romance para adictos, segundo Mattalia: un lector descuidado

    2 Para o deciframento dos manuscritos optei por realizar e utilizar a

    transcrio linear dos textos, que so destacados e analisados nesta tese. Segundo Pierre-Marc de Biasi (2010, p. 85) a transcrio linearizada codificada (cdigo simplificado) fcil de ler, econmico em espao, mas no respeita a paginao autgrafa (cdigo: abc = riscado, = acrescentado na entrelinha, abc = acrescentado na margem).

  • 25

    admirar la precisin y el lirismo de algunos fragmentos, o se escandalizar con el descarnado realismo de otros, pero no podr captar la irona (MATTALIA, 1990, p. 187). Ler DHV sem haver lido El pozo, La vida breve, La casa en la arena, El astillero, Juntacadveres e algumas outras narrativas seria como ler a segunda parte de El Quijote sem haver lido a primeira. Lembremos que no discurso que proferiu na cerimnia de entrega do prmio Cervantes Onetti confirma sua admirao pelo romance dos romances: [] me permito declarar que yo, si tuviera el poder suficiente, que nunca tendr, hara un solo cercenamiento a la libertad individual: decretara, universalmente, la lectura obligatoria del Quijote (ONETTI, 1990, p. 38).

    Apesar da questo de linearidade em Onetti operar sem regras preestabelecidas, como veremos ao longo desta tese, em DHV, Santa Mara, a cidade imaginria supostamente criada por Juan Maria Brausen em La vida breve, de 1950, arrasada por um incndio que a destri. E toda a narrativa do romance se constri atravessada por inmeras marcas intertextuais que remetem a outros textos do corpus onettiano. DHV narra a culminao da deteriorao final de Santa Mara em todos os nveis, o incndio novelesco pe em cena a apario fantasmal de uma densa trama de relaes citacionais. Isso tanto em termos lexicais, sintticos, semnticos como estruturais. O uso de procedimentos de sintagmas familiares desencadeia como aponta Hugo Verani: [] una asimilacin metafrica entre distintas historias o personajes, un parentesco que responde a una intencin ldica y pardica (VERANI, 1989, p. 215). Sendo a citao literal o procedimento mais explicito da produo do relato como reminiscncia de outros textos.

    Essa busca pela autocitao ou autorreferencialidade no texto onettiano me levou aos manuscritos de Dejemos hablar al viento, que se encontram disponveis para estudo na Biblioteca Nacional do Uruguai. Os manuscritos de DHV e outras narrativas foram doados biblioteca pela viva de Onetti, Dorotea Muhr, mais conhecida por Dolly Onetti, em julho de 2007. Durante o ms de outubro de 2009 foi realizado na UFSC o I Simpsio Internacional de Literatura Juan Carlos Onetti. Esse encontro, organizado pelo Ncleo Juan Carlos Onetti de Estudos Literrios Latino-americanos, coordenado por Liliana Reales, contou com a participao de crticos literrios renomados, entre eles No Jitrik, Eduardo Becerra, Carlos Liscano, Daniel Balderston e Ana Ins Larre Borges. Esta, pesquisadora do Departamento de Investigaciones y

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    Archivo Literario da Biblioteca Nacional, publicou, no mesmo ano, um livro baseado em parte desse material, mais especificamente, os manuscritos de La cara de la desgracia. Durante o evento, Larre Borges, ao conhecer minha pesquisa, informou que os manuscritos de Dejemos hablar al viento ainda no havia sido pesquisados de forma sistemtica e que estariam disposio do Ncleo Onetti. Na mesma semana iniciei a elaborao do projeto de pesquisa de doutorado e, na sequncia, sua realizao.

    Desde ento estive trs vezes na Biblioteca Nacional. A primeira em outubro e novembro de 2010, a segunda em setembro de 2013 e a ltima em outubro de 2015. Alm disso, conto com o suporte digital dos arquivos, que me foram confiados para tal finalidade. Ou seja, as quase mil pginas catalogadas na Biblioteca Nacional, sob a nomenclatura de Dejemos hablar al viento, foram lidas e relidas antes que eu comeasse a anlise dos manuscritos, porque o tempo dos manuscritos no um tempo cronolgico. O tempo que guarda os documentos do processo criador tm o poder de guardar o tempo que no pode ser abreviado, o tempo de busca (SALLES, 2008, p. 122). O tempo de busca pode ser pensado como o tempo do incidente de Roland Barthes. O incidente incide, isto , reflete-se, repete-se, sobrevive, como la vida de todos los das los mismos elementos hoy que ayer, los mismos miedos y esperanzas. Opondo-se ao acidente que um acontecimento imprevisto, algo que rompe o texto, assim como os acidentes geogrficos rompem o solo. Por isso, o tempo da busca, o tempo da leitura, seleo e anlise dos incidentes um tempo em cmera lenta, no qual o investigador precisa de um longo tempo de exposio com seu objeto de estudo, como diz Onetti no flio 59.2: la vida de todos los das los mismos elementos hoy que ayer, los mismos miedos y esperanzas. Isso so os incidentes, os mesmos elementos hoje e ontem, a vida de todos os dias, os mesmos medos e esperanas, as repeties.

    Na segunda pgina desse mesmo flio, do caderno intitulado Policial Princpio, lemos o que Onetti chama de Peticin de Princpio, que se encontra como epgrafe deste texto. Segundo o dicionrio da Real Academia Espaola, uma peticin de principio o vicio del razonamiento que consiste en poner por antecedente lo mismo que se quiere probar.

    O que queria provar Onetti? O que quero provar nesta tese?

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    A primeira pergunta no ser respondida, apesar de, em certo momento, eu me atrever a sugerir um plano de obra onettiana e nele ler um desejo de sensao de macr da arte s avessas. Bem como uma lgica da sensao onettiana, que passa por essas primeiras frases da peticin: Esta es la sensacin que nada tiene que ver, no relacin posible, comprensible con los hechos.

    A segunda interpelao tambm me parece, em parte, respondida pela peticin de principio onettiana. O que quero provar que a produo desta tese nada mais do que aquilo que o tempo dos incidentes e acidentes dos manuscritos, em dilogo com o tempo dos incidentes e acidentes do arquivista, mostram.

    Meu primeiro impulso foi ler cada um dos suportes (que correspondem, nesse caso, a cadernos, agrupamentos de folhas soltas e dois recortes de jornal) buscando cotejar com a primeira edio do romance de 1979 (como consegui essa primeira edio e algumas outras outra histria secreta). Ao identificar uma grande dificuldade nessa tarefa, posto que a narrativa no se encontrava organizada na mesma ordem dos captulos do livro, resolvi inicialmente organizar o que chamei de mapa dos manuscritos. O mapa a identificao da procedncia da narrativa de cada um dos suportes em relao ao texto considerado final. Assim, ficaria mais fcil voltar aos captulos da narrativa desejados para anlise. Nesse momento, surgiu uma forte inquietao a respeito da ordem narrativa encontrada nos manuscritos. J que a questo da ordem evidentemente um diferencial da narrativa onettiana, faz-se essencial sua problematizao, tanto no que se refere obra publicada como aos manuscritos de sua elaborao.

    A questo da linearidade da narrativa onettiana bem como a da ordem de seus manuscritos tambm foi destacada na pesquisa de Daniel Balderston, da Universidade de Pittsburgh. O crtico teve acesso aos manuscritos pela primeira vez em 1997 e coordenou uma pesquisa com os manuscritos das novelas, que foram publicadas em 2009. Para Balderston:

    [...] la sola idea de leer los manuscritos de las novelas cortas de Onetti despert en m una enorme curiosidad, sobre todo en torno a dos interrogantes. El primero tena que ver con la proverbial imagen de Onetti cultivada por l

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    mismo y por sus amigos como alguien que escribi siempre de modo rpido y espontneo, casi intempestivo. El segundo se relacionaba ms bien con el carcter fragmentario de la escritura onettiana. Ya desde El pozo (con su proliferante serie de aventuras, prlogos, ensoaciones y hechos reales), muchos textos publicados de Onetti adquieren la forma de un work in progress [] (BALDERSTON, 2009, XLVII).

    Assim, voltei minha tenso a tentar entender como essa caracterstica de work in progress da narrativa de Onetti, de obra em processo, fragmentada lida nos manuscritos. E foi a que vi a interveno de outra caligrafia, outra impresso digital nos manuscritos. E foi a que vi Dolly Onetti como um gigante na minha frente. Primeiro, como um incidente, quase no apareciam as linhas em diagonal e a advertncia copiado no canto direito superior das pginas. Depois, as marcas da caligrafia de Dolly viraram uma das marcas principais da repetio dos manuscritos para meus olhos. A partir da, j sabia que no escreveria uma tese caracterstica da crtica gentica sobre as fases de composio criativa de Onetti3. A partir da, j sabia que escreveria uma histria secreta (o jogo do rastro produz a histria) (DERRIDA,1997, p. 41).

    3 Entendo a importncia do trabalho da gentica textual e da crtica gentica

    para o estudo de manuscritos e para a anlise do processo criativo do artista. E apesar das leituras de seus aportes tericos terem sido essenciais para minha aproximao ao Arquivo Onetti, meu percurso terico anterior e minha veia detetivesca onettiana, aquela que busca sempre uma narrativa na outra, como um conjunto de bonecas russas, me fez seguir por outro caminho. Claro que os manuscritos de Onetti ajudaram e muito nessa deciso, posto que a maioria dos flios legvel, pelo menos para uma onettiana de longa data, alm disso, as correes so muito poucas. E as raras diferenas e mudanas me levaram a ler a narrativa de forma estendida e suplementar. Porm, entendo os manuscritos como Jean Bellermin-Noel, terico da crtica gentica francesa: manuscrito um conjunto de suportes materiais portadores de textos que so fixados-reproduzidos pelo conservador responsvel, a fim de garantir a autenticidade de um escrito e convert-lo em objeto de um culto (BELLERMIN-NEL, 1993, p. 140). Entendo, portanto, que a Coleo Onetti composta de 141

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    O termo segredo tem sua origem da palavra latina secretus, e significa separado, solitrio, retirado (BUSSARELLO, 1998, p. 207). O segredo no um enigma que tem que ser decodificado com inteligncia e lgica. O segredo algo que foi separado, retirado de circulao como uma estratgia para a realizao de um plano. Se no se tem conhecimento do segredo, ele invisvel, mas ao apresentar-se um enigma, a partir dele podemos entender a existncia do segredo. Logo, uma histria secreta seria uma histria que no contada, uma histria que circula paralela quilo que chamamos de histria. Uma histria que tambm compreende enigmas a serem decifrados, no entanto, uma histria que est merc de um pesquisador-detetive, que sempre ser um arquivista e, alm disso, um narrador-testemunha. ([] a experincia do segredo to contraditria que parece uma experincia testemunhal (DERRIDA, 2015, p. 41).

    Nesse sentido, essa poderia ser considerada uma narrativa policial clssica, como afirma Tzvetan Todorov (2003, p. 64). Para o terico, na literatura policial constam duas histrias, uma, a do crime cometido, que termina antes de a segunda comear, e a outra da investigao desse crime. No nosso caso o crime o romance DHV, que j foi definido muito antes dessa pesquisa comear, mas para contar a histria desse crime tenho que levar em conta seus documentos, suas impresses digitais, suas assinaturas, suas testemunhas e tudo mais que possa ser colocado em uma grande caixa nomeada Arquivo Onetti (e o que est fora dele). Agrupei elementos importantes para essa histria sob a nomenclatura de pista (rastro-trace-huella), com a qual dividi este texto, no usando a indicao habitual de captulo.

    Coincidncia ou evidncia, a primeira pista a ser analisada nesta investigao a nomeao de alguns suportes manuscritos de policial e o fato de que DHV foi durante muito tempo chamado de la policial por Onetti. Assim, inicio a histria secreta fazendo uma travessia por meio da relao da narrativa onettiana com a literatura policial e da relao do escritor com tal literatura. Nesse caminho so encontrados testemunhas e documentos, no entanto, como exige toda a histria, sobram espaos em branco a serem preenchidos pelo pesquisador, arquivista e, porque no, o armador desta histria. A pista da literatura

    suportes/documentos de diversas formas: cadernos, blocos, folhas soltas, envelopes, recortes de jornal e outros.

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    policial acaba crescendo e vira um dispositivo de produo, parodiando Ezequiel De Rosso no livro Nuevos secretos (2012). Esse dispositivo em movimento de contaminao acaba virando um remdio/veneno, que pe em alto relevo minha veia detetivesca. No entanto, ao contrrio da narrativa policial clssica, aqui o detetive no est imune ao julgamento. O crtico-detetive pode ser atingido e no tem a segurana da revelao, mas adianto que haver algumas (sobre a posio desprotegida do investigador literrio revelarei provas). E ainda, aqui o detetive o narrador.

    A segunda pista Antes esclareo que essa numerao de primeira, segunda etc. para organizar o texto, mas, na verdade, podem ser visualizadas como um amlgama de pistas, no entanto fiz uma escolha de apresentao, de montagem de meu texto e sobre isso que so os nmeros, sobre essa montagem. Essa questo da montagem justamente uma das revelaes da prxima pista: o papel de Dolly.

    A investigao sobre o papel de Dolly na vida e obra de Onetti disparou o dispositivo de arquivo, que sempre existiu em mim. Quanto mais sentia a posio do mal de arquivo de Dolly, mais entendia meu mal. Ento vieram as outras posies, de narradora e montadora-armadora. Assim, armei um texto defendendo a hiptese da figura de Dolly como arquivista, narradora e montadora do caso Onetti, com um foco mais ntido na narrativa de DHV. Nesse momento, a histria de DHV ganha dados histricos e biogrficos importantes, alm de documentos e impresses digitais que ajudam na reconstituio (ou aproximao do que eu vejo) dos fatos. O segredo pode ser lido na etimologia da palavra secretria, como Dolly muitas vezes chamada pelos crticos, a secretria de Onetti. Secretria tambm deriva da palavra latina secretus, seria ento aquele a quem lhe confiado o segredo. O secretrio um iniciado. Nesse caso a secretria a testemunha e o segredo. O testemunho secreto impossvel? (DERRIDA, 2015, p. 39). Nesse caso minha tese a existncia de um plano de arquivo. Dolly e seu plano de arquivo. Essa pista acompanhada de dois parnteses. Um contendo a terceira pista, o outro composto por uma montagem cinematogrfica de quinze minutos, que refora a hiptese do plano de arquivo de Dolly Onetti e que pode servir de parnteses, ou seja, insero tambm para a Peticin de principio,

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    ou para qualquer uma das outras pistas4. Os comentrios sobre a composio flmica esto tambm entre parnteses no final das cinco pistas, sob a seguinte legenda: (Redito - O que acontece na mesa de Montagem/flatbed - sobre o processo de composio do curta-metragem: Tucha (Dolly Onetti): arquivista, narradora e armadora do Caso Onetti.

    A terceira pista, que colocada como um parntese da segunda, o plano de obra de Onetti. Afinal, para estabelecer o plano de arquivo de Dolly foi necessrio entender o plano de obra de Onetti. Debruada sobre esse caminho de pistas-pegadas, deparo-me com a leyenda do escritor que dizia nunca reler seus textos e que escrevia sem planejamento, de un tirn. Assim, apareceu o personagem macr da arte, criado por Onetti, e uma falsa sensao do que chamo macr da arte s avessas. Atrevo-me a trabalhar com a hiptese de que Onetti desejava tornar-se um macr da arte s avessas.

    Na quarta pista, Plan de la aguja, descrevo os manuscritos, numa espcie de cartografia de seus suportes. Essa pista usada como referncia para as outras e pode ser lida como um suplemento de qualquer outra pista pois mostra os rastros da narrativa de DHV, defende a hiptese de sua composio durante vinte anos da vida do autor e esboa rastros inclusive anteriores. Valendo-se de todas as possibilidades de documentos, os manuscritos, entrevistas, testemunhas, cartas secretas e as narrativas. A caracterstica mais observada nos manuscritos, a transfigurao dos nomes prprios, elemento fundamental para a argumentao a favor da hiptese de organizao temporal dos manuscritos. O nome prprio na narrativa onettiana mostra um comportamento distinto daquele que comumente lhe confiamos: o de garantia do escrito, de identidade e de permanncia, como afirma Marcos Roberto da Silva (2007, p. 98). Em Onetti no h permanncia do sentido e significado do nome prprio, o sentido disseminado no jogo do rastro entre os nomes prprios que so transfigurados em cada narrativa. No caso dos manuscritos, so observadas transfiguraes dos principais nomes prprios em diferentes suportes de DHV e essa caracterstica usada aqui para agrupar esses suportes em trs blocos

    4 Para visualizao do curta-metragem: Tucha (Dolly Onetti): arquivista,

    narradora e armadora do Caso Onetti, que faz parte desta tese acessar: https://youtu.be/HNO5iYaE8Ba .

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    das fases de composio de DHV. necessrio esclarecer que fao uso da nomenclatura de organizao realizada pela Biblioteca Nacional do Uruguai que cataloga 141 suportes na Coleo Onetti, que vai do suporte 1 ao 141. H suportes de diferentes formatos, cadernos, blocos, agrupamento de folhas soltas, envelopes, recortes de jornal e outros. Cada um dos suportes composto por um nmero diferente de flios que so nomeados de forma crescente. Sem embargo, o presente estudo se atm aos documentos 47 a 65, agrupados em trs pastas intituladas Dejemos hablar ao viento.

    A ltima pista, fundamental para a narrativa dessa histria, a revelao de como a autorreferencialidade lida nos manuscritos. Essa foi a motivao primeira de toda a tese (se que posso nomear uma motivao primeira, justamente nesse momento que coloco em xeque uma sensao de primeira vez em Onetti) posto que minha aproximao aos manuscritos se deve justamente ao intuito de buscar essa informao e revelar esse segredo. Como Onetti inseria seus textos passados num texto presente? Onetti reescrevia seus textos passados no processo de composio de um texto presente? Como fazia essa operao de autocitao sem releitura?

    No se trata aqui de buscar a originalidade de um acontecimento, como destaca Jacques Derrida em Mal de Arquivo (2001), e nem ir em busca das fontes originrias, trata-se de escavar, descrever esse processo e seu objeto e, por fim, os desdobramentos desta escavao em novos suportes e interpretaes crticas. No h arquivo sem espao institudo de um lugar de impresso (DERRIDA, 2001, p. 8), ou ainda, sem suporte, portanto, o tempo para o arquivista um tempo guardado nos registros do artista que se manifesta como uma lenta superposio de camadas mveis. (SALLES, 2008, p. 122). um tempo de estudo e anlise que tem como protagonista alguns suportes, lugares de impresso, que no so apenas o agrupamento de manuscritos e documentos pr-estabelecidos, mas a relao destes com o arquivo vivo que os observa, ou seja, a relao destes com o arquivista e seus murmrios imaginrios. Por isso, como explica Michel Foucault (1971, p. 49) ilusrio [] imaginar que a cincia se estabelece por um gesto de ruptura e de deciso, que se liberta facilmente do campo qualitativo e de todos os murmrios do imaginrio. Nem em meio plenitude de uma experincia da vida, nem pela violncia de uma razo (FOUCAULT, 1971, p. 50). O corte no constante nem definitivo e

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    sim movimento. O arquivista e seu repertrio em movimento, seus murmrios, necessitam ento, como premissa de seu trabalho, de tempo com seu objeto de estudo. O documento/monumento uma montagem, como diria Jaques Le Goff (1997, p. 104), mas uma montagem em constante movimento, uma montagem a qual no admite posicionar a ltima pea de um quebra-cabea ou a descoberta de uma ltima pista para a soluo de um crime. Um processo de montar e desmontar num procedimento crtico, terico e tambm criativo, um entre-lugar terico como afirma Ral Antelo (2008, p. 9), El crtico ocupa un intersticio de ficcin y teora. Aunque ese su lugar singular nada tiene de desinteresado [], justamente o oposto, pois um lugar de sensaes e a sensao o contrrio do fcil e do lugar-comum, do clich, mas tambm do sensacional, do espontneo [] conforme Gilles Deleuze (2007, p. 42).

    Afirmo: Im a walking clich, assim como o personagem Charlie Kaufman em Adaptao (2002), ou talvez como seu roteirista. Haveria como limpar o clich de um crtico detetivesco? Assim, na busca pelos caminhos das pistas encontro tambm outros e elaboro uma hiptese de sensao de primeira vez em Onetti. Como fao isso? A revelao est, talvez, na histria secreta, a histria que j est em andamento

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    PISTA 1: SOB UMA CAPA POLICIAL (TODO EL CUADERNO)

    Y que puestos a elegir entre un poema dedicado a la guerra que azota al mundo y una novela de trescientas pginas donde se estudien sabiamente las reacciones producidas en el personaje por un drama de adulterio, nos quedamos con una buena novela policial de Philo Vance, escrita por S.S. Van Dine, de la firma social Van Dine, Van Dine y Van Dine. (ONETTI, 2009d, p. 389).

    Ezequiel De Rosso, em Nuevos secretos: transformaciones del

    relato policial en Amrica Latina 1990-2000, resgata o artigo de Onetti publicado no semanrio Marcha, seis de dezembro de 1940, para contribuir com sua tese sobre a preferncia dos escritores latino-americanos em dcadas prvias de literaturas policiais e a construo da literatura policial como literatura de vanguarda. De Rosso faz um estudo minucioso sobre o tema seguindo as pegadas de um caminho da literatura policial, que tem justamente na dcada de quarenta sua participao na cultura de massa rio-platense. Claro que o romance de Onetti com as narrativas do gnero policial no um segredo. Sua preferncia pode ser lida desde os artigos escritos no semanrio Marcha de 1939 a 1941 sob os pseudnimos Periquito el Aguador (como o caso da citao a cima) e Grucho Marx, suas entrevistas com Emir Rodrguez Monegal, Mara Esther Gilio, Ricardo Piglia entre outros, as cartas com Julio Payr e as vrias entrevistas de Dolly Onetti que tm contribudo para a estruturao da figura de Onetti lendo policiais durante toda a sua vida.

    A Payr envia um telegrama, em maio de 1941, confessando sua entrega aos autores policiais Agatha Christie, Wallace Van Dine e Stanley Gadner: estoy entregado agatha christie wallace van dine stanley gardner. Mais adiante indica a boa leitura a seu amigo: retribuyo indicandole lectura novelas policiales stanley gardner (ONETTI, 2009a, p. 109). Alguns meses depois, em agosto do mesmo ano, revela mais de sua paixo:

    Ah, fjese: cuando uno es una persona decente experimenta una desinteresada alegra al ver una situacin planteada perfectamente, completa, con todos sus detalles bien ajustados, aun cuando todo

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    eso sirva para reventarlo. Igual que con una buena novela policial. Todo est perfecto, todo es hermoso, armnico. Entonces, soy un hombre feliz. (ONETTI, 2009a, p. 120).

    Entende-se que, para o autor, as novelas policiais apresentam

    situaes completas e perfeitamente expostas, com todos os detalhes bem ajustados, cada coisa em seu lugar. E assim Onetti feliz, quando v a harmonia de um sistema. Essa aproximao com os policiais uma constante durante toda a sua vida, e como um leitor voraz, quarenta anos mais tarde desejava encontrar algo novo que no haja lido ainda: Me gustara encontrar algn policial de Simenon que no hubiera ledo. Dolly busca en las mesas de viejo. Pero las le todas. Conozco a Maigret tanto como a un pariente querido. (GILIO, 2009, p. 124).

    Na poca em que esteve alguns meses preso, no incio da ditadura militar uruguaia, era a harmonia dos romances policiais, levados por Dolly, que o salvavam. Em entrevista a Eduardo Galeano explica um dos motivos de sua preferncia:

    Es una trama que se desarrolla y me despierta curiosidad sin exigirme participacin. Yo estoy ajeno mientras leo, no tengo que ponerme del lado de nadie; pero estoy atrapado por la curiosidad. Quiero saber adnde va a parar todo eso, cul ser el desenlace. (COSSE, 1989, p. 232).

    A Gilio, Onetti responde um pouco diferente sobre sua atrao

    pelos romances policiais:

    Su orden matemtico, tal vez. La novela policial me permite abandonar mi tnel personalAbandonar mis obsesiones. La novela policial se parece al ajedrez. Seguramente debe poner en funcionamiento otro sector de mi cerebro. Si es que tengo otro. (GILIO, 2009, 124).

    Poderamos ler uma incoerncia se comparamos as duas

    respostas, j que uma alega a no participao do leitor e a outra afirma uma participao matemtica, como em um jogo de xadrez. Entretanto,

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    entendo que para Onetti a narrativa policial to lgica, que o faz abandonar suas obsesses, seu tnel pessoal, isto , abandonar, ironicamente, seu lado detetivesco de criao, de construo interpretativa, preenchedora de lacunas e o transforma em um arquivista obcecado, que, em contato com determinado arquivo, se desprende do seu prprio, abandona-o, em parte. Essa caracterstica de entrega literatura policial que o ajudou a sobreviver priso no incio de 19745.

    Van Dine publica, em 1928, em American Magazine, vinte regras para escrever um romance policial. Regra nmero 1: O leitor deve ter oportunidade igual, comparada do detetive, de solucionar o mistrio. Todas as pistas devem ser claramente descritas e enunciadas (DINE, s.d., p. 117). Assim so as narrativas policiais clssicas, baseadas em um mistrio que resolvido ao final da trama pelo detetive e pelo leitor mais atento. O mistrio um quebra-cabea prestes a ser montado, afinal, como indica a quinta regra de Van Dine: O culpado deve ser encontrado mediante dedues lgicas e no por acidente, coincidncia ou confisso, qual no tenha sido levado forosamente (DINE, s.d., p. 117). Essa regra contribui com a ideia de que todos os elementos necessrios para a revelao do mistrio so dados ao leitor da mesma forma que ao detetive. Ainda reforando essa premissa, a segunda regra afirma: Nenhum truque ou tapeao proposital devem ser utilizados pelo autor, seno os que tenham sido legitimamente empregados pelo criminoso, contra o prprio detetive (DINE, s.d., p. 117). Isto , detetive e leitor so colocados no mesmo patamar e ambos so capazes de chegar s concluses, que sempre sero explicadas no final do romance policial pelo detetive de papel y presentado en bandeja de plata al lector (PREGO, 1997, p. 175).

    Essa justamente a principal caracterstica que sustenta a tese de Omar Prego da narrativa onettiana como contranovela policial. Prego,

    5 Nota autobiogrfica: impossvel no lembrar de minha av, que leu

    vorazmente durante toda a sua vida. No na cama como Onetti, mas sentada na sua cadeira de balano, passava dias inteiros lendo. J tinha lido toda a biblioteca de seu pai e da sua cidade natal, Ponta Grossa, por isso, aos 23 anos, em 1939, ela se muda para Curitiba para estudar Direito (uma desculpa para ler mais?). Ela que tambm se sentia entregue aos policiais, s no lia quando estava de luto. E quando eu lhe perguntava o motivo dessa separao, me respondia que a leitura a tirava de seu tnel pessoal, de suas tristezas. Por isso, no podia ler, a leitura no a deixava viver o luto.

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    que dialoga com o texto Figuras del gnero policial en Onetti, de Josefina Ludmer, sugere uma limitao nas afirmaes de Ludmer sobre o tema, pois para ele, em Onetti los hechos estn cargados de significados indescifrables, toda historia es infinita y abierta, la verdad es inabordable (PREGO, 1997, p. 175). Concordo com Prego, pois na narrativa onettiana no lemos uma soluo lgica no final da histria, nem h final da histria. O leitor assume o papel de detetive, mas um detetive cujas evidncias circunstanciais so duvidosas, um detetive que no est dentro de uma narrativa que obedece s regras do romance policial e sim dentro de narrativas que

    nos dice de manera tangencial, nunca explcita que toda historia, como tal, est inexorablemente imbricada con la forma, que son indiscernibles, que la realidad de la narracin cuenta poco en el discurso literario, que no es la ancdota lo que en esencia decide la verdad o la mentira de una ficcin, sino que ella sea escrita, no vivida, que est hecha de palabras y no de experiencias concretas. (PREGO, 1997, p. 174).

    So vrios os casos de mistrios que no so solucionados em

    Onetti. De Rosso (2012, p. 75) aponta a novela La larga historia (1944) e sua reescrita La cara de la desgracia (1960) como as nicas narrativas estritamente policiais de Onetti, no entanto, nas duas tambm temos um enigma em aberto. Ruben Cotelo afirma que La cara de la desgracia es el mejor relato publicado en el Uruguay durante 1960, y es tambin una de las pocas obras maestras de la literatura nacional (RUFFINELLI, 1973, p. 56). Segundo o crtico a maestria da narrativa se d por conta do estilo tenso, a preciso de vocabulrio, o pudor expressivo e o final misterioso que convida o leitor a recomear a leitura. E, assim como ela, tambm a maioria das narrativas conhecida por seus mistrios no solucionados. o caso, por exemplo, de Los adioses (1954) e Para una tumba sin nombre (1959). Em Los adioses, Herr Wolfgang Luchting escreve o artigo El lector como protagonista de la novela no qual analisa possibilidades de interpretao do relato e sustenta a tese de uma interpretao especfica (na edio de 1981 de Bruguera h a irnica resposta de Onetti crtica sugerindo que faltaria uma media vuelta de tuerca para solucionar o caso). Por outro lado, a

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    tese de Liliana Reales no tenta de modo algum fechar as leituras de Para una tumba sin nombre, faz justamente o oposto, demonstra a infinitude do processo interpretativo. Para Reales as narrativas onettianas: [] no desafiam a interpretao como se houvesse uma chave hermenutica com a qual, uma vez achada, fosse possvel acertar o sentido e restabelecer o sossego do intrprete [] (REALES, 2009, p. 19). Isto , o leitor no soluciona o mistrio como indica as regras de Van Dine.

    Notem que, nos ltimos dois pargrafos, expresso argumentos sobre a narrativa de Onetti, e no pargrafo anterior sobre a relao do autor com a literatura policial. Devo esclarecer que nesta tese as duas coisas vo se mesclar, no com o intuito de explicar a obra a partir da biografia e sim para desenvolver uma histria secreta de DHV e para tanto devo ler a Juan Carlos Onetti da forma mais ampla possvel, isso quer dizer uma leitura hipertextual, disseminada, que no obedece a nenhuma categoria. A mesma Ludmer criticada por Prego, quando reedita seu livro sobre Onetti de 1976 em 2009, enfatiza, no novo prlogo, sua mudana de como olhar a literatura. O que antes era uma anlise estritamente textual hoje seria uma leitura do que chama de imaginao pblica sem fora (LUDMER, 2009, p. 14). Ou seja, no uma leitura estritamente textual, ao mesmo tempo em que tambm no abarca o extratextual, pois no o v como um extratexto, simplesmente entende que tudo que abarcar o campo de leitura texto. Aqui estou, montando um texto com elementos dessa imaginao pblica sem fora. E isso, em 2016, quer dizer tambm ler a narrativa onettiana (e toda sua imaginao pblica sem fora) e a histria da investigao sobre sua composio. Isso para Todorov (2003, p. 64) definiria a narrativa policial clssica, ou romance de enigma. Nessa narrativa contam-se duas histrias: a histria do crime, que j est determinada antes de comear; e a histria da pesquisa, da investigao sobre a primeira histria.

    Ludmer observa a mesma caracterstica da narrativa de La vida breve:

    Habra que decir: Onetti se adhiere al sistema policial porque es el que exhibe con ms nitidez que narrar es el proceso de un saber, de bsqueda del saber; porque muestra que narrar es contar por lo menos dos relatos; porque supone una elipsis, un blanco de no dicho para desencadenar la

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    escritura. La vida breve puede leerse como una novela policial donde las dos historias estn presentes y se extienden paralelas: lo que ocurri (lo real del mundo de Brausen) y el modo en que eso se cuenta en la ficcin (traspuesto, invertido); hacia el fin del relato la historia se contamina de gnero policial: negocio de morfina, crimen del polica, huida y captura. (LUDMER, 2009, p. 97).

    Em 2003, Daniel Link revisa e amplia um livro que havia

    publicado pela primeira vez em 1992, El juego de los cautos: literatura policial, de Edgar A. Poe a P. D. James. O livro uma compilao de textos de diferentes autores, que Link aponta como essenciais para pensar a narrativa policial. No entanto, no h textos tcnicos sobre o tema, por importar menos a anlise estritamente literria que a anlise dos processos de produo de sentido (LINK, 2003, p. 8). Logo, no levando em conta as diferenas tcnicas da narrativa policial e suas variaes como do romance negro, todas as narrativas onettianas podem ser lidas como narrativas policiais no que diz respeito apresentao de um enigma. A maioria delas tem como ponto principal do argumento um mistrio que o leitor tende a querer resolver, mas o pice est na dvida e em como a narrativa construda para que se mantenha dessa forma. Assim, quem sabe seria melhor ler a narrativa onettiana nem como policial nem como contrapolicial e sim sob uma capa policial.

    Um dos contos curtos do autor, Jabn, de 1981, um exemplo dessa caracterstica e pode ser lido como uma sntese da obra onettiana. Escrito em terceira pessoa, conta a atrao do personagem Saad por uma pessoa cujo sexo ele no capaz de determinar. No h sinais fsicos, como, por exemplo, seios, barba, ou voz que lhe apresente uma pista sobre o mistrio. O jogo da incerteza se entende para o plano da lngua e o narrador identifica a personagem pelo pronome neutro Ello do castelhano. Aps frustradas tentativas de desvelar o segredo de Ello, Saad deseja que a dvida seja mantida, pois entende que seu enamoramento est justamente nessa incgnita. Nem o personagem Saad nem o leitor so capazes de solucionar o mistrio apresentado. Essa a grande chave de leitura das narrativas onettianas. O prazer, o gozo, est na dvida, porm, mais que isso, na incessante e infinita investigao do detetive leitor que nunca se ver vencido, pois a

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    resposta a perseguio detetivesca do processo da produo de sentido.

    Minha escolha de ter a narrativa policial como uma das pistas para ler os manuscritos de DHV tomou corpo quando me deparei com os nomes dados a trs dos suportes que compem o arquivo de DHV: policial. Nos fac-smiles 2 e 3, a seguir, a palavra policial est escrita na capa dos cadernos. No fac-smile 4, a palavra est na folha de rosto do caderno com a indicao todo el cuaderno entre parnteses.

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    Fac-smile 2 Capa do suporte 59.

    Fonte: Manuscritos de Dejemos hablar al viento.

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    Fac-smile 3 Capa do suporte 64.

    Fonte: Manuscritos de Dejemos hablar al viento.

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    Fac-smile 4 Folha de rosto do suporte 60.

    Fonte: Manuscritos de Dejemos hablar al viento.

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    Li um convite nas indicaes policial, um convite a iniciar uma investigao detetivesca que, muito provavelmente, no encontraria uma resposta nica, segura e exata. Mas uma investigao que me levaria ao gozo da travessia. Para Maryse Renaud (1993, p. 107) as numerosas aluses a violncia policial, os raptos, desaparecimentos e assassinatos em DHV ocorrem em funo da evoluo econmica-poltica de Santa Mara. H realmente uma forte caracterstica da narrativa policial em DHV, no entanto a resposta indeterminada, assim como outras narrativas onettianas. O resultado final da leitura no a soluo do caso, o resultado final da leitura o levantamento das dvidas, dos questionamentos que ativaro um processo de produo de sentido disseminatrio. A soluo da narrativa a abertura de possibilidades interpretativas e no de seu fechamento.

    Nos manuscritos de DHV encontra-se o seguinte contrato:

    X) El AUTOR se compromete a no declara no ser genio literario, y en consecuencia no incurrir en ningn tipo de ingenio que pretenda confundir a la EDITORIAL y a los lectores respecto a la declaracin jurada que antecede. Y) El AUTOR se compromete a dar fiel cumplimiento a la promesa de escribir una novela tan explosivamente revolucionaria que pueda ser leda sin esfuerzo intelectual por cualquier incauto comprador, sea macho, hembra o andrgino. Z) El AUTOR se compromete a no emplear subproductos de tcnicas literarias construidas en el infinito pasado por escritores europeos o yanquis. W) El AUTOR se compromete a escribir una novela carente de trucos detectables por nios de doce aos, grandilocuencia y engaabobos. (64.49).

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    Fac-smile 5 Flio 64.49.

    Fonte: Manuscritos de Dejemos hablar al viento.

    As irnicas clusulas desse contrato revelam duplamente o

    distanciamento e a aproximao da narrativa onettiana em relao

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    literatura policial. No difcil identificar a caracterstica pardica com as regras de Van Dine, que tambm podem ser lidas como um contrato dos escritores de policiais com seus leitores. Se este preconizou: Nenhum truque ou tapeao proposital devem ser utilizados pelo autor, seno os que tenham sido legitimamente empregados pelo criminoso, contra o prprio detetive (DINE, s.d., p. 117), aquele declara: El autor se compromete a escribir una novela carente de trucos, grandilocuencia y engaabobos. Ou ainda: El autor declara no ser genio literario, y en consecuencia no incurrir en ningn tipo de ingenio que pretenda confundir a la editorial y a los lectores respecto a la declaracin jurada que antecede. Esse paralelo com as regras de Van Dine aproximam a literatura policial e seu tom sem nenhuma dvida irnico o afasta, s resta saber a relao irnica do texto de Van Dine.

    Para Hebert Bentez Pezzolano (2013, p. 97) uma conscincia irnica atravessa toda a obra onettiana. Conscincia que sobrepassa uma caracterstica individual de um personagem e instaura a narrativa onettiana em uma instncia dilatada de ironia romntica, na qual, como sugere Friedrich Schlegel, segundo Bentez Pezzolano (2013, p. 100), coloca em xeque o conflito insolucionvel entre o condicionado e o incondicionado e sua impossibilidade de comunicao plena. Assim, o pesquisador afirma que a potica onettiana utiliza-se do jogo entre a reticncia, a elipse e a condensao, mais que transbordando, potencializando a interpretao. Isto , a combinao entre a ironia, as caractersticas de uma narrativa fragmentada e a atmosfera tpica de uma narrativa policial potencializa uma interpretao incomunicvel, o oposto de uma literatura policial tradicional. O fato que, mesmo irnico, Onetti sempre esteve embevecido das narrativas policiacas.

    Omar Prego, em 1972, ao chegar praia do balnerio La Floresta encontra, por acaso, um homem deitado na areia lendo um livro. Ao aproximar-se, identifica Onetti e um romance policial. Essa a cena que abre a histria secreta de DHV: Onetti lendo um romance policial deitado na areia da praia (PREGO, 2009, p. 19), em plena fase de composio de DHV.

    A segunda cena anterior, alguns anos antes. Onetti deitado em sua cama do apartamento da avenida Gonzalo Ramrez, empresta um livro policial sem capa ao jovem escritor Hugo Giovanetti, que naquela poca, estava nos seus vinte anos. O livro era Laura, de Vera Caspary (COSSE, 1989, p. 240). Alm das peripcias desse exemplar com

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    anotaes de Onetti, chamo ateno ao que no chamou a ateno de Giovanetti, ao romance Laura.

    Laura conta a histria de uma publicitria bem-sucedida que assassinada em sua casa s vsperas de seu casamento. Isso o que a narrativa de Waldo Lydecker, escritor renomado e melhor amigo de Laura, nos faz acreditar na primeira parte do livro. Lydecker um escritor de ensaios filosficos e crnicas de casos estranhos que resolve narrar a histria da morte de sua melhor amiga. Logo no incio adverte:

    Aunque haya dedicado una parte de mi trabajo al estudio del crimen, jams condescend a relatar una historia misteriosa. Aun cuando me exponga a parecer algo menos que modesto, citar mis propias palabras. (CASPARY, 2006, p. 19).

    E assim, o narrador cita partes de textos seus publicados anteriormente, fazendo referncia em nota de rodap com data e nome do artigo em questo, o que contribui para a construo de verossimilhana de seu personagem. Em alguns momentos sugere sua posio de creador de uma realidade:

    Mis dilogos escritos tendrn ms claridad y concisin y sern ms caractersticos que los que ellos sostuvieron oralmente, porque yo puedo redactar al escribir; mientras que ellos mantuvieron sus conversaciones de una manera vulgar, sin cuidarse de la presentacin de las escenas. (CASPARY, 2006, p. 21).

    O artista/criador de realidades deixa claro sua posio de narrador

    e, enquanto tal, se introduz com o privilgio de armador, montador da histria, que tem o desejo de ser o heri de um relato do qual cr ter certeza de seu desfecho. Por isso, decide escrever, para recriar seu papel na histria. No entanto, o narrador/autor para de narrar quando uma revelao o faz entender que ele no tem domnio dos fatos, que a histria no lhe pertence. O mistrio, ento, muda de narrador e agora o detetive Mark McPherson que revela os novos acontecimentos. Logo depois vm os relatrios dos depoimentos colhidos na investigao policial, seguidos da narrativa da prpria Laura. A questo principal

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    aqui que o criminoso revela-se ser o escritor e o detetive um leitor. McPherson um fervoroso leitor de romances policiais, e tambm leitor de Lydecker. E so suas leituras que o fazem entender que o assassino na verdade o escritor. Assim, McPherson, que desde o incio sabia que Lydecker iniciara a escrever o relato, resolve continu-lo e adverte aos leitores: Cuando Waldo Lydecker supo lo que ocurri despus de nuestra cena en el restaurante de Montagnino el mircoles por la noche, no pudo escribir ms acerca del caso Laura Hunt (CASPARY, 2006, p. 71). Alm de narrar, McPherson agrega os relatrios e depoimentos do caso e o relato da vtima. Isto , o detetive/leitor passa de personagem/leitor a narrador/armador/montador.

    So vrios os paralelos que podem ser feitos com essa narrativa policial e as onettianas. Primeiramente importante lembrar que h dois contos policiais escritos por Onetti que foram publicados em Marcha em 1939 e 1940. Segundo Omar Prego (2009, p. 72), Onetti confirmou a autoria dos contos que havia sido escrito para preencher pginas do caderno cultural da poca sob os pseudnimos Pierre Boileau e Regy. Yo escrib muchos cuentos de ese tipo, pero francamente no podra recordarlos. Digamos que s, que son mos, que se trata de pecados juveniles [...] (PREGO, 2009, p. 73). Na declarao confirma a autoria dos dois contos e revela que provavelmente existam outros contos de sua autoria, mas que seria muito difcil de resgat-los. Assim, os contos El fin trgico de Alfredo Plumet e Un crimen perfecto, por conta de tal declarao, foram includos na publicao das obras completas da editora Galaxia Guttenberg em 2009. Em Un crimen perfecto o personagem-assassino, Julin Chapars, desde o incio da narrativa, no tem dvida alguma que h cometido um crime perfeito e essa sua certeza que o faz revelar-se ele prprio como assassino no final da trama. Chapars est to seguro de que ningum nunca saber que matou seu primo, que apenas dez horas aps o crime volta ao local onde depositou o cadver. Em Laura observa-se a mesma trampa, posto que o escritor-assassino se revela ao detetive por seu excesso de confiana em sua atuao perfeita enquanto criminoso. Lydecker esta to seguro que no um suspeito que inclusive comea a escrever o caso com o consentimento do detetive McPherson. Em El fin trgico de Alfredo Plumet j encontramos um incio da ambiguidade da literatura onettiana, afinal o caso no resolvido completamente, pode tratar-se de um suicdio ou de um acidente.

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    Voltando aproximao de Laura e as narrativas onettianas a questo dos narradores um bom exemplo. Em Onetti a multiplicidade de narradores em uma mesma narrativa ganha destaque. Em La vida breve (LVB), no h introduo da troca de narrador, no entanto o romance intercalado com captulos em primeira pessoa e captulos em terceira pessoa do singular. E ainda, os captulos em terceira pessoa so supostamente escrito por Daz Grey, o mdico criado por Brausen, quem, por sua vez, narra os captulos em primeira pessoa. J no caso da novela Jacob y el otro, a estrutura aponta de forma direta a estratgia de intercalar narradores, o que lembra muito a narrativa de Laura. No primeiro captulo, o segundo narrador introduzido j na abertura: Cuenta el mdico. O segundo captulo introduz a voz do primeiro narrador: Cuenta el narrador. No ltimo captulo temos um terceiro narrador: Cuenta el prncipe. O personagem prncipe Orsini cria a histria de glria do lutador em decadncia Jacob van Oppen. E assim, como em outras narrativas onettianas, a criatura se rebela contra o criador, pois sente a necessidade de autonomia para criar (esse o caso de LVB). No entanto a criao nesses casos est em narrar e em montar, armar a narrativa, posto que a ordem dos depoimentos interfere na compreenso do leitor.

    (O caso DHV - entre parnteses

    Em DHV a primeira parte narrada por Medina, que pintor,

    falso mdico e enfermeiro fugido de Santa Mara para viver na cidade de Lavanda. Na segunda parte, Medina, no mais como narrador, delegado de polcia, que volta a morar em Santa Mara e acaba sendo cmplice e, talvez, o mandante do incndio criminoso da cidade. Ironicamente, indo contra as regras de Van Dine, o detetive no est imune e pode ser o culpado. Digo pode ser o culpado, pois, em Onetti, no temos certeza de uma resposta, temos possibilidades. E so muitas as possibilidades do envolvimento de Medina com crimes.

    Para Jair Tadeu da Fonseca (REALES, 2009, p. 118) Medina seria a personificao de um detetive genrico da literatura e da cinematografia policial, teria algo do detetive Marlowe, de Raymond Chandler. Essa aproximao, entre outras coisas, se d pelo Medina

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    narrador que, ao falar de seu paciente terminal, refere-se ao largo sueo no qual o paciente estaria submergindo-se (ONETTI, 1979, p. 17). Fonseca l na expresso largo sueo uma citao a The big sleep, de Chandler. A Ricardo Piglia, em 1970, Onetti conta que descobriu Chandler muito tarde para ser uma influncia na escrita do romance Tierra de nadie, publicado em 1941. Porm, entendo, assim como Fonseca, que esse no o caso de DHV, que um romance posterior.

    Na primeira parte, Medina vive com Frieda que foi expulsa de Santa Mara, ainda adolescente, por sua famlia pelos escndalos de seu comportamento sexual. Assim, para mant-la afastada, a famlia lhe envia uma boa mesada. Medina no quer viver custa de Frieda, por isso, e por outros motivos (sempre h outro motivo em Onetti), ela inventa distintos trabalhos para Medina. Um deles o de enfermeiro para cuidar de um velho moribundo. O paciente morre e a suspeita do leitor, j que no h detetive de papel para o caso dessa morte, que Medina responsvel por ela a mando de Frieda e Quinteros.

    Desde a primeira parte da narrativa, sabe-se que Medina um ex-delegado de Santa Mara que, ironicamente, participa de crimes em Lavanda. No entanto, em Lavanda pode livremente expressar sua arte pictrica, o que no acontecia naquela cidade, onde tinha que pintar escondido e com luz artificial. Em Santa Mara, pintar era um de seus segredos, seu crime. Mesmo assim, parecem existir outros crimes de Medina, mesmo como delegado da cidade.

    O narrador da segunda parte de DHV pode ser um narrador homodiegtico, pois esse se revela no captulo XXXIX, Un hijo fiel, parte integrante dos acontecimentos da narrativa: [] alguno de estos das que estamos viviendo con permiso de las ms altas instancias ser comprado por alguno de los nuevos riqusimos de la Colonia [] (ONETTI, 1979, p. 241). Digo pode ser um narrador homodiegtico e no , pois os narradores em Onetti podem se mesclar, e nos outros captulos da segunda parte no h essa ocorrncia de primeira pessoa do plural. Assim, no se sabe se apenas esse captulo homodiegtico ou se poderamos considerar os outros tambm a partir dessa nica ocorrncia. A questo que esse um dos captulos chave para a abertura de possibilidades dos caminhos de leitura do mistrio.

    Aqui o leitor toma conhecimento do testemunho de Olga de como encontrou Frieda morta na casa na praia. Olga era amiga de Frieda em Lavanda e passou a ser amante de Medina quando ele comeou a pintar seu retrato por encomenda (tudo isso na primeira parte de DHV). Olga

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    continua amante de Medina na segunda parte e at mora com ele em uma casa na praia perto da casa de Frieda. Olga ento, amante de Medina, tem que fazer seu depoimento sobre o ocorrido para o delegado de polcia, que Medina. A primeira pergunta que lhe faz por que ela havia ido casa de Frieda s oito da manh e a resposta : Pero si t me habas dicho, antes de irte. Medina interrompe o depoimento dizendo: No importa, no recuerdo. [] No olvides que este es un interrogatorio policial. Muy serio, muy largo. Tengo que enterarme de lo que s de memoria. Pero dicho por ti. (ONETTI, 1979, p. 243). Isto , o contedo do depoimento de Olga algo j bem conhecido do delegado Medina que sabe de cor o ocorrido, no entanto para o leitor da narrativa elptica de Onetti esse depoimento novidade. O detetive de papel, nesse caso, sabe mais que o leitor, omite informaes. E mais, o detetive arma um testemunho com a testemunha fazendo o leitor duvidar da veracidade dos fatos (se que se pode falar em veracidade dos fatos em Onetti). No entanto, Olga revela que o prprio Medina lhe havia pedido para ir casa de Frieda com o objetivo de limpar a casa e ver se seus quadros, aqueles que pintava escondido e noite, permaneciam guardados no armrio fechado chave. Assim, revelado ao leitor que Medina frequentava a casa de Frieda durante as noites para pintar, sendo que antes, na narrativa, Medina afirmava que no via Frieda h muito tempo. Mas o narrador enigmtico que instaura a dvida ao dizer que Olga mentiu ao contar que esteve com Medina at a meia-noite da noite anterior ao crime e que Medina iria pegar o ferry para a Capital aquela madrugada. O que estariam escondendo Medina, Olga e o narrador?

    Ainda nesse captulo, a narrativa, caminhando por uma fita de Moebius, dobra-se sobre si mesma, num movimento de gravata borboleta, infinito. Tudo indica que o juiz, que ajuda a resolver o caso da morte de Frieda e a tambm misteriosa morte de Julin Seoane, o companheiro de escritrio de Brausen em LVB.

    Ahora estaban frente a frente y Medina record la imagen huidiza de alguien visto o ledo, un hombro tal vez compaero de oficina que no sonrea; un hombre de cara aburrida que saludaba con monoslabos, a los que infunda una imprecisa vibracin de cario, una burla impersonal. (ONETTI, 1979, p. 248).

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    Em LVB encontra-se a mesma descrio do personagem que divide o escritrio com Brausen e o Juiz de DHV, no entanto em LVB ele nomeado:

    Se llamaba Onetti, no sonrea, usaba anteojos [] cara aburrida [] saludaba con monoslabos a los que infunda una imprecisa vibracin de cario, una burla impersonal. (ONETTI, 1999, p. 204).

    Ou seja, Onetti ficcionalizado o juiz em DHV. Mas essa ficcionalizao uma ficcionalizao do criador. Ao ver o juiz, Medina compreende e lembra que o odeia desde o incio de sua vida, sem o ter visto nunca. Pero aqul no era un odio de persona a persona; era como el odio a una cosa ineludible, era el odio a todos los sufrimientos [] (ONETTI, 1979, p. 248). O criador que interrompe a investigao para oferecer a suposta soluo do caso. O juiz ao ver o cadver de Julin pede que esse seja movido. Ao ser virado de lado, o corpo deixa cair no cho um papel branco dobrado. Ningum podia entender como aquele papel estava ali, pois os policiais haviam revistado tudo anteriormente. No papel estava a soluo da morte de Frieda, tratava-se da confisso de Julin: Hijo de mala madre no te preocupes ms yo mat a Frieda. Julin Seoane. (ONETTI, 1979, p. 249)

    Uma confisso, feita assim dessa forma to inesperada vai contra a regra nmero cinco de Van Dine: O culpado deve ser encontrado mediante dedues lgicas e no por acidente, coincidncia ou confisso, qual no tenha sido levado forosamente (DINE, s.d., p. 117). Julin encontrado por Olga, na casa de Frieda na manh do crime, desacordado, pois estava sob efeito de entorpecentes, uma prtica quase diria sua. Quando recuperada sua conscincia e interrogado, alega no se lembrar de nada. Em uma narrativa policial clssica, Julin no seria o assassino, pois se deve ler alm das evidncias, juntar um conjunto delas, alm da anlise psicolgica dos envolvidos.

    Lembremo-nos de como o detetive August Dupin, no conto de Edgar Allan Poe (1845), encontra a carta roubada da rainha pelo ministro D Dupin estuda o perfil psicolgico do ministro-ladro, que era um homem apreciador da poesia e da matemtica, isto , suficientemente inteligente para no esconder a carta em lugares obviamente secretos, como um cofre atrs de um quadro, lombadas de

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    livros ou fundo falso em gavetas. O detetive encontra a carta no lugar mais bvio possvel para uma carta no secreta estar, num porta-cartas em cima da lareira da sala de estar da casa do ministro, junto com outras cartas. Na narrativa de Poe, considerada por Todorov (2003) e Borges (2003, p. 195), o precursor da literatura policial, no sabemos o contedo da carta, mas sabemos exatamente onde estava quando roubada alm de sua importncia vital para a Rainha. Em Onetti sabemos o contedo da carta-confisso, por outro lado no sabemos de onde surgiu a carta, sua apario parece um mistrio que no pode ser solucionado. Assim, a culpabilidade de Julin, por ser o nico encontrado na cena do crime, parece to bvia quanto impossvel. No entanto, na narrativa onettiana isso no seria uma regra. No entanto, at em Onetti essa confisso feita forosamente no parece funcionar.

    No final do captulo o juiz manda Medina colocar o que chama de broche de oro, o papel com a confisso de Julin, no relatrio final do caso. Indica para onde o corpo deve ser enviado com objetivo de uma autpsia e adianta o resultado: sobredosis de cualquier porquera (ONETTI, 1979, p. 250). Depois, faz aluso ao mdico Daz Grey, e afirma haver estado com ele e que este no queria mais saber dessas coisas: a venda ilegal de prescries de morfina. E finaliza dizendo: Hablamos de tantas cosas; fue como una historia de la ciudad. No recuerdo qu edad tiene. Pero lo sigo queriendo como si fuera mi hijo. Un hijo fiel. (ONETTI, 1979, p. 250). Assim, o leitor entende o ttulo do captulo: Un hijo fiel. No entanto, novamente essa revelao me parece demasiadamente lgica apesar de complexa no que revela o palimpsesto ao que est situada. Daz Grey supostamente criado por Brausen em LVB, e Brausen pela ficcionalizao de Onetti, assim, ambos seriam criao de Onetti juiz, seus filhos fiis, j que tudo criado por ele, que nunca poder ser trado a no ser em um momento de autotraio. Assim, o juiz sugere que Daz Grey, por fidelidade a seu pai, ele mesmo, teria conseguido a droga para a overdose de Julin na cadeia.

    No podemos esquecer que Medina trata Julin como seu filho na primeira parte de DHV. Mesmo no tendo certeza dessa paternidade faz questo de visit-lo com presentes, ver suas obras de arte e dar algum dinheiro a sua me, Mara Seoane. Na segunda parte, Medina afirma querer salvar Julin das drogas e de Frieda, pois esse se faz amante de Frieda em Santa Mara. Julin, o suposto filho de Medina, amante de

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    Frieda em Santa Mara, que, por sua vez, foi sua amante em Lavanda. O que salvaria Julin das drogas e de Frieda? Medina tenta trazer o filho para viver com ele na casa da praia, mas essa uma tentativa frustrada, se que uma tentativa. Se Medina no estava com Olga na noite anterior ao crime, como nos diz o narrador, se pintava escondido na casa de Frieda todas as noites, se ele que havia pedido a Olga para ir casa de Frieda aquela manh, se ele queria salvar Julin Teria Medina matado Frieda e facilitado a morte de Julin? Teria Medina forjado a confisso pstuma de Julin e feito dele seu filho fiel? Explico: essas indagaes so motivadas pelo dilogo entre Medina e Daz Grey na casa noturna Casanova onde tambm se encontra Julin. Perceptivelmente, o jovem se droga no banheiro e Daz Grey ento comenta com Medina:

    Usted, Medina debe saber dnde se consigue cocana en Santa Mara. [] Usted tiene en su consultorio. Lo indispensable y tal vez menos. Gracias. Yo tengo que saber como entra. Por lo menos, me gustara salvar al chico. (ONETTI, 1979, p. 200).

    Medina diz querer saber como a droga entra na cidade para salvar Julin. Tudo indica que a entrada seria pelo consultrio de Daz Grey, que j trafica em LVB e em outras narrativas. Como Medina salvaria Julin? Interceptando a droga ou facilitando-a? Mais adiante o narrador enxerta o pensamento de Medina: En realidad pens pueden morirse todos chorreando droga por los odos. Quin me importa [] (ONETTI, 1979, p. 200). Opinio parecida expressa o Juiz ao ver o cadver de Julin: Con alguna excepcin, tal vez, todos estos que llaman drogadictos tendran que terminar as y cuanto antes, mejor (ONETTI, 1979, p. 250). Teria a droga sido colocada na cela de Julin da mesma maneira misteriosa que surgiu o papel com sua confisso? Teria Medina facilitado a entrada da droga e forjado a confisso? Lembramos ainda que, para Julin, o fato de obter uma arma significa a liberdade, pois nela est explcita a possibilidade de tirar-se ou no a vida, assim como a droga: Era la seguridad y el amor. Era como un seguro de vida, Un seguro de muerte. Me bastaba con verla y tocarla; nunca podra irme del todo mal (ONETTI, 1979, p. 179). A liberdade,

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    ou salvao para Julin-Medina a possibilidade de uma escolha. Facilitar a droga a Julin na cadeia seria isso, devolver-lhe a possibilidade de us-la e, mais ainda: de abusar de seu uso e, por consequncia, tirar sua prpria vida. Ao suicidar-se Julin, estaria justificando sua posio de filho fiel de Medina, fiel ao ponto de tirar sua prpria vida por meio das drogas para no mais delas depender. Lembremos que no romance El astillero, o personagem Glvez se suicida. Bentez Pezzolano (2013, p. 103) sustenta a tese de que o destino de Glvez abre uma desestabilizante proximidade com o real em uma narrativa na qual a farsa institucionalizada. Glvez escolhe tirar a mscara, num processo de descarnavalizao, ou de destronamento em praa pblica, ou seja, Glvez escolhe no viver mais a far