História oral, memória e etnia: o território Tapeba em disputa MANUEL COELHO ALBUQUERQUE* Território de Índio No início da década de 1990, John Manuel Monteiro chamava atenção para a ausência de interesse dos historiadores brasileiros pelos índios e mais especificamente pelo tema da escravidão indígena na Colônia. “Escravo índio, este desconhecido” ( GRUPIONI, 1998: 105), escrevia ele em 1992. Em Negros da Terra (MONTEIRO, 1988), demonstrou a importância da economia não exportadora e do trabalho indígena, até então bastante negligenciado na historiografia, por não se enquadrar à lógica da expansão do capitalismo comercial, que tinha na escravidão negra o seu quinhão valorizado. Em artigo de 2001, Monteiro comenta a resistência dos historiadores à temática indígena, “considerada, desde há muito, como alçada exclusiva dos antropólogos” (AGUIAR, 2001: 136). Parte desse desinteresse se devia ao entendimento de que os indígenas estariam em vias de desaparecer. O fato é que “pelo menos até a década de 1980, a história dos índios no Brasil resumia-se basicamente à crônica de sua extinção” (AGUIAR, 2001: 138). Para Monteiro, outro motivo que levou os historiadores a essa recusa, diz respeito a inexistência ou raridade de documentos escritos deixados pelos índios. A reverência a uma documentação escrita e o apego a determinados marcos teóricos, justificaria tal posição. O desaparecimento desses povos era considerado uma fatalidade inexorável. Ao lado disso, a concepção de que os índios, em contato com a população envolvente, tornavam-se integrados, assimilados, ou “menos” índios. Muita coisa mudou desde então, os índios no período colonial e em outros contextos e temporalidades foram e são alvos de muitas pesquisas na área de História em todo o Brasil. No entanto, o índio vivo, presente, continua sendo objeto quase exclusivo dos antropólogos. O caso do Ceará é exemplar, os historiadores não têm se interessado pelos índios contemporâneos que estão por todo o Estado. É como se não pudéssemos estudar esses povos
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História oral, memória e etnia: o território Tapeba em disputa … · de interesse dos historiadores brasileiros pelos índios e mais especificamente pelo tema da escravidão indígena
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História oral, memória e etnia: o território Tapeba em disputa
MANUEL COELHO ALBUQUERQUE*
Território de Índio
No início da década de 1990, John Manuel Monteiro chamava atenção para a ausência
de interesse dos historiadores brasileiros pelos índios e mais especificamente pelo tema da
escravidão indígena na Colônia. “Escravo índio, este desconhecido” ( GRUPIONI, 1998:
105), escrevia ele em 1992. Em Negros da Terra (MONTEIRO, 1988), demonstrou a
importância da economia não exportadora e do trabalho indígena, até então bastante
negligenciado na historiografia, por não se enquadrar à lógica da expansão do capitalismo
comercial, que tinha na escravidão negra o seu quinhão valorizado. Em artigo de 2001,
Monteiro comenta a resistência dos historiadores à temática indígena, “considerada, desde há
muito, como alçada exclusiva dos antropólogos” (AGUIAR, 2001: 136). Parte desse
desinteresse se devia ao entendimento de que os indígenas estariam em vias de desaparecer.
O fato é que “pelo menos até a década de 1980, a história dos índios no Brasil resumia-se
basicamente à crônica de sua extinção” (AGUIAR, 2001: 138).
Para Monteiro, outro motivo que levou os historiadores a essa recusa, diz respeito a
inexistência ou raridade de documentos escritos deixados pelos índios. A reverência a uma
documentação escrita e o apego a determinados marcos teóricos, justificaria tal posição. O
desaparecimento desses povos era considerado uma fatalidade inexorável. Ao lado disso, a
concepção de que os índios, em contato com a população envolvente, tornavam-se integrados,
assimilados, ou “menos” índios.
Muita coisa mudou desde então, os índios no período colonial e em outros contextos e
temporalidades foram e são alvos de muitas pesquisas na área de História em todo o Brasil.
No entanto, o índio vivo, presente, continua sendo objeto quase exclusivo dos antropólogos. O
caso do Ceará é exemplar, os historiadores não têm se interessado pelos índios
contemporâneos que estão por todo o Estado. É como se não pudéssemos estudar esses povos
numa perspectiva dialógica presente/passado e passado/presente, combinando história e
memória, fontes orais e escritas.
Mas não foi exatamente esta ausência historiográfica que mais me chamou atenção para
o povo indígena Tapeba, situados em alguns bairros de Caucaia ou no entorno daquela cidade,
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atualmente conurbada, tendo o rio Ceará e seu mangue como única fronteira a separá-la da
capital. O meu interesse pelos Tapeba se deu por conta da situação muito peculiar em que
estão vivendo nas últimas décadas, com a expansão da cidade e da especulação imobiliária
sobre suas terras. Assim, mesmo sem querer, foram se tornando urbanos. No entanto, os
índios têm ainda em seu parco território um rico manancial ecológico constituído por mangue,
rio, lagoas e algumas matas preservadas.
Para fugir da cidade e ampliar espaços próprios, ambientes com características mais
“rurais”, objetivando plantar, construir escolas, postos de saúde e morar em condições mais
dignas e em maior sintonia com o modo de viver dos ancestrais, os índios foram cada vez
mais se aproximando do rio e do mangue. Desde os anos 1990, realizam as “retomadas”, uma
espécie de autodemarcação de suas terras. Esta foi a única maneira que encontraram de
assegurar parcelas de seu território, diante da eterna espera pela demarcação oficial do Estado
brasileiro, e diante das ameaças da especulação imobiliária. Mas a cidade também foi
avançando na direção das áreas preservadas e do rio Ceará. Boa parte das retomadas estão
“coladas” na cidade ou dentro dos bairros. O fato é que atualmente a maioria dos Tapeba são
habitantes da cidade e esta faz parte da vida de todos eles. Uma realidade que nos espaços
públicos muitos preferem silenciar, por entenderem a cidade como obstáculo para o
reconhecimento público da identidade étnica Tapeba.
Mas há nisso um paradoxo evidente. No silêncio sobre a cidade estão embutidos dois
“não ditos” fundamentais: o primeiro é não enfrentar e denunciar de forma aberta o principal
invasor de suas terras na atualidade: os posseiros e especuladores imobiliários. A cidade tem
invadido as áreas habitadas por índios e também áreas que esses utilizavam para plantar e
pescar. Em algumas destas terras foram construídos conjuntos habitacionais para “brancos”,
casos do Jardim Metropolitano, Conjunto Metropolitano, Patrícia Gomes e outros. Algumas
retomadas, inclusive, estão acontecendo para evitar a construção de empreendimentos na área
Tapeba ou muito próximo a ela.
O segundo “não dito” presente no silêncio sobre a cidade: a ausência de
questionamentos sobre uma identidade indígena que se quer essencializada, pura e imaculada,
diante de uma realidade urbana de intensa mistura. Este é um ponto fundamental: ser índio na
mistura e apesar da mistura. Os Tapeba tem suas próprias origens na mistura de diversos
povos indígenas dos litorais e sertões cearenses que foram transferidos para o Aldeamento
Jesuítico de Nossa Senhora dos Prazeres de Caucaya, posteriormente Villa Nova de Soure.
Com a extinção das Aldeias e Vilas, e especialmente depois da Lei de Terras de 1850, a
maioria dos índios foram expulsos das áreas conquistadas no período colonial e passaram a
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viver em matas de terras públicas ou como moradores e trabalhadores de posseiros. Mesmo
assim, admiravelmente, mantiveram os laços comunitários e preservaram elementos culturais
e identitários. Na entrevista que realizei com dona Neila, que atuou na Arquidiocese de
Fortaleza, junto aos Tapeba, no período de 1989 a 1991, ela se refere a esses laços que as
comunidades mantinham entre si e das relações com os grupos citadinos, ainda pouco
conhecidos à época:
Tinha um grupo na Capoeira, e este grupo ainda andou participando de
algumas coisas. Mas na época o pessoal que participava ativamente eram
desses três grupos, Ponte, Vila Nova e Lagoa. Também a gente sabia do
grupo do Trilho, mas não foi feito trabalho com eles neste período. O
Severino, lá da Lagoa, as vezes falava de outros grupos: Itambé, Cigana... Às
vezes ele ia lá. O pessoal da Lagoa tinha contato com esses grupos de dentro
da cidade. (Entrevista dona Neila, 55 anos - Fevereiro 2017).
Estes laços são bastante claros quando conversamos com os Tapeba: “é tudo um povo
só”, dizem. Sempre se referem a familiares, primos, tios, que moram em comunidades
diferentes. A união dos grupos se torna mais visível quando ocorre alguma mobilização de
luta pela terra, como no caso das retomadas. São 17 comunidades ao todo. Vivendo em
situação de intenso contato com a sociedade dos “brancos”, são bastante frequentes os
casamentos com não índios. Percebendo isso como mais um elemento a lhes desfavorecer,
junto aos olhos da sociedade em geral, algumas comunidades estão fazendo advertências,
chamando atenção para o problema. Para os Tapeba, o tempo é de luta permanente por um
território ameaçado a cada dia. Terra, identidade e muitas adversidades estão no centro de
suas vidas. Ao longo do tempo, e muito especialmente nas últimas décadas, têm resistido
criativamente e de muitas formas.
Incluir a cidade na discussão no estudo sobre os Tapeba, não significa prejudicar o
território que atualmente está identificado pela Funai e em processo de demarcação; ao
contrário, significa ampliá-lo, denunciar o que a cidade devorou da terra indígena. José
Bengoa, tratando dos Mapuche do Chile, observou que seus territórios eram amplos, e não
apenas o espaço das reduções e reservas a que foram submetidos.
Yo lo entiendo como que se amplia lo territorial y se recupera la dimensión
mucho más rica y compleja que normalmente ha tenido el territorio para los
pueblos indígenas de América Latina. En el caso de los indígenas mapuches
en Chile, ellos fueron sometidos por la fuerza a las reducciones, a las
reservaciones; entonces considerar que el territorio es exclusivamente el
territorio de la reducción a la cual fueron sometidos por el Estado chileno a fi
nes del siglo XIX y comienzos del siglo XX, sería mirar el hecho con un
cortoplacismo extraordinariamente agudo, pues no han pasado ni siquiera
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100 años y muchos de los abuelos aún recuerdan exactamente cuáles eran
sus territorios. Y sus territorios no eran exactamente el territorio reduccional
que hay hoy en día. Lo que estoy diciendo no es desperfilar el territorio, sino
lo contrario. Es destacar su importancia y cómo éste se amplia (BENGOA, 2007: 62)
No caso Tapeba, boa parte das áreas urbanas estão excluídas da delimitação da Funai,
mas não fora da terra indígena. Uma estratégia para tornar mais factível a demarcação, em
face das contestações judiciais. Henyo Barreto Filho, antropólogo responsável pelo Relatório
de Identificação e delimitação da terra Indígena Tapeba, referindo-se ao caso da comunidade
da Jandaiguaba, por exemplo, observou que “somente a parte menos urbanizada ficou dentro
dos limites traçados pelo GT da FUNAI. Dos 1.338 tapebas atualmente registrados na
Jandaiguaba, uma pequena parcela apenas, [está] dentro da Terra Indígena delimitada”
(BARRETO FILHO, 2005: 137). Verifica-se, portanto, que a delimitação procurou contornar
as áreas urbanas, deixando de fora a maior parte da terra indígena nos bairros de Caucaia. Se
esta é uma estratégia dos próprios índios visando facilitar a demarcação, o pesquisador não
precisa se dobrar a ela. Podemos estudar esses processos de perda dos antigos territórios,
ouvir as suas memórias, dialogar com a documentação escrita.
O fato é que no Brasil a cidade foi sempre considerada o lugar por excelência da
aculturação e destruição da identidade indígena. A ideia que alimentou e alimenta o senso
comum sobre os índios é aquela “na qual há uma associação entre índios e floresta/natureza,
por um lado, e não-índios e cidade/civilização, por outro” (NUNES, 2010: 10). Logo, os
indígenas que ingressassem no ambiente urbano estariam sofrendo perdas culturais e por
consequência deixando de ser índios. “Esta concepção naturalizada de cultura se adequa
perfeitamente à representação do senso comum sobre os índios, formando um complexo
ideológico de difícil desmontagem” (OLIVEIRA, 2003: 41), observa João Pacheco de
Oliveira.
Se o termo “índios misturados” foi comumente utilizado na segunda metade do século
XIX para designar os índios “assimilados” ou “indiferenciados” na população em geral,
Oliveira lhe atribui outro significado. Considerando as especificidades dos índios da região
Nordeste, espaço de colonização e contato mais extenso e intenso, o autor se apropriou do
termo “índios misturados”, dando-lhe outra conotação: “A expressão “índios misturados”,
merece uma outra ordem de atenção, pois permite explicitar valores, estratégias de ação e
expectativas dos múltiplos atores presentes nessa situação interétnica” (OLIVEIRA, 1998:
52). É em relação a luta pelo território que o termo efetivamente ganha sentido.
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Neste campo, a contribuição de Fredrik Barth ao deslocar do conteúdo cultural para a
fronteira o ponto de importância central para definir um grupo étnico. “A fronteira étnica
define o grupo e não a matéria cultural que ela abrange” (BARTH, 1998: 195), diz ele. Neste
sentido, a identificação do indivíduo, como membro do grupo étnico “implica
compartilhamento de critérios de avaliação e julgamento” (BARTH: 188). Na relação com
outros povos, “as diferenças culturais podem permanecer apesar do contato interétnico e da
interdependência dos grupos” (BARTH, 1998: 188). A definição de um grupo étnico, segundo
o autor, ocorre na relação interacional com outros grupos. Assim, no que se refere às suas
características próprias ou à sua denominação, “a existência e a realidade de um grupo étnico
não podem ser atestadas por outra coisa senão pelo fato de que ele próprio se designa e é
designado por seus vizinhos por intermédio de um nome específico” (POUTGNAT, 1998:
43). Concepção de extremo valor para os índios Tapeba.
Fredrik Barth pratica e recomenda um estudo de dentro para fora das comunidades.
Pesquisa de campo, teoria a partir do estudo da sociedade em seu contexto. No estudo sobre a
ilha de Bali, “uma sociedade verdadeiramente complexa”, Barth observa que nossas teorias
devem “dar conta do que verdadeiramente encontramos” (BARTH, 2000: 109), e, neste
sentido, a indagação: precisamos suprimir a complexidade? Esta é uma pergunta que ecoa e
soa um tanto difícil para o historiador, uma vez que o nosso trabalho passa por escolhas,
implicações éticas e compromisso social. Mas evidentemente temos que ser fiéis ao real e à
sua complexidade, mas sem as pretensões da “ingênua” neutralidade.
Território em disputa
Em 1723 o Capitão Mor João Pereira e outros oficiais índios da Aldeia de Caucaya
solicitaram três léguas de terra de comprido e uma de largura, para plantarem suas roças e
nela se acomodarem. A solicitação foi atendida, conforme o despacho oficial: “Vista a
informaçam, concedo aos Suplicantes as terras que pedem pera Susttentaçam de sua aldeã”1.
A Aldeia jesuítica de Caucaya, depois Vila Nova de Soure, foi constituída a partir da
mistura de índios Potiguara com povos indígenas trazidos dos sertões ao longo do século
XVIII e primeira metade do XIX. Povos deslocados, quase sempre, com muita violência e
desrespeito. As violências contra os índios do Ceará eram praticadas de forma contínua pelos
Diretores das Vilas indígenas, mas também por autoridades acima deles, como foi o caso que
se tornou motivo de Requerimento de alguns Deputados cearenses que denunciavam o
deslocamento forçado dos índios, ordenado pelo próprio Governo da Província. Em 1830
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ocorreu a transferência dos índios do Aldeamento de Monte-Mor, o Velho, para os
aldeamentos de Soure e Mecejana. O Requerimento de Deputados da oposição exigia que o
Governo reparasse a violência. José Martiniano de Alencar era um dos assinantes:
A seca de 1825 atingiu muito aquelle aldeamento; não contentes com isso,
alguns brancos daquelles lugares assentarão que os índios eram ali
prejudiciais e dando como pretextos que os índios roubavam as suas
plantações. Afinal conseguiram que aquelles índios fossem tirados de seus
domicílios e levados para as Villas de Soure e Mecejana. Eu me achava
então na Villa de Mecejana, aonde os vi passar, lamentando amargamente as
suas terras onde tinham as suas pequenas culturas, a sua Igreja e as suas
choupanas2
Os Tapeba são oriundos dos Potiguara locais e de outras etnias que com eles dividiram o
espaço do Aldeamento, resultado de uma mistura que certamente está para além da própria
Aldeia de Caucaia, uma vez que índios da Aldeados de Paupina, no início do século XVIII,
solicitaram datas e sesmarias que incorporavam algumas áreas da atual Caucaia.
Os Tapeba têm o seu nome extraído da própria natureza, lagoa, riacho, terra onde
habitavam, conforme as memórias dos mais velhos e alguns documentos escritos. Mas a posse
dos terrenos foi resultado de muita luta desses índios, inclusive luta judicial, como mostra um
ofício do Chefe de Polícia do Ceará, de 12/02/1861, recomendando que fosse respeitada “...a
posse dos índios em terras de Jatoby, Jareraú, Carancagi, Ancory, Tapeba, Pavuna,
Cajueiro-Torto, Taitinga e Pacatuba, que lhes é garantida por sentença do poder judiciário
datada de 1852”3. Portanto, duas coisas a chamar atenção neste documento: primeiro, a terra
dos índios denominada Tapeba4. O termo aparece relacionado a localidade em que os índios
habitavam. Logo, pode-se inferir “terra Tapeba”, “índios do Tapeba”, “índios Tapeba”. Do
nome do lugar para nominar o povo do lugar.
Outro ponto a considerar é que os índios ganharam na justiça as terras nesta área em
1852, mas ainda não haviam tomado posse em 1861. O que se observa, paradoxalmente, é que
o próprio chefe de Polícia, que inicia o documento afirmando que “os interesses legítimos
d´esses índios, nunca deixaram de receber minha[sua] attenção, quando perante mim
reclamaram”, no final do ofício, ao constatar que as terras não tem sido garantidas aos índios,
recomenda “que por lei e sentença o devem ser a outros[não índios]”. De qualquer forma, o
documento é importante por mostrar a justiça reconhecendo aquelas áreas como terra
indígena, a partir de reivindicações dos próprios índios.
No final do mesmo ano, depois de mais uma interferência da justiça, o Presidente da
Província do Ceará envia um Ofício ao Inspetor da Thesouraria da Fazenda com a seguinte
ordem:
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“Ordeno-lhe que mande pagar, estando em termos, a quantia de 744$763rs,
constante da conta junta das despesas feitas com a medição das posses de
terras dos índios pobres, moradores nos lugares denominados Tapeba,
Gererahu e Giboia”5.
O Tapeba era habitado por índios pobres, e se a luta dos índios foi tão ferrenha e
insistente por tanto tempo, é porque tinham realmente convicção de que essas terras eram dos
ancestrais e de valor imensurável para esse povo. O Governo por fim reconhece esses mesmos
índios e delimita “suas posses”. Isso no momento que já se dissemina a ideia da inexistência
de índios na Província.
Dois anos depois, o presidente José Bento da Cunha Figueiredo Junior, no seu Relatório
anual, expõe que os índios da Província já estariam “misturados na massa geral da população,
composta na maxima parte de forasteiros, que excedendo-os em numero, riqueza e industria,
tem havido por usurpação ou compra as terras pertencentes aos aborigenes”6. É curioso ver a
naturalidade com que trata a questão da usurpação das terras dos índios. Na sua perspectiva os
usurpadores estavam fazendo um bem ao progresso da Província.
Na sua tese de doutorado Maico Xavier analisa a “forte investida dos moradores não
índios e autoridades para se apoderar das terras indígenas” (XAVIER, 2015: 132) ao longo do
século XIX. Quando a Tesouraria da Fazenda Provincial acentuou sua ação buscando
incorporar as terras indígenas aos “nacionaes”, após 1850, vários indígenas “passaram a
reivindicar terrenos nos quais habitavam, dando mostra de que não estavam tão ‘misturados’
assim à sociedade nacional” (XAVIER, 2015: 205). Ao analisar vários documentos nesse
sentido, Maico Oliveira conclui: “após a extinção dos aldeamentos muitos índios ficaram
situados dentro dos marcos geográficos que delimitavam aqueles espaços” (XAVIER, 2015:
209). Mesmo quando as terras indígenas passaram a ser consideradas “devolutas” os índios
continuaram a habitá-las. Índios que se valiam de todos os meios legais para manterem a
posse de seus terrenos.
De fato, os documentos são ricos em demonstrar, inclusive, mobilizações indígenas
tentando reaver terras incorporadas aos “próprios nacionaes”, como se dizia. Organizados por
si mesmos ou com o apoio de alguns padres, os índios lutaram o quanto puderam por suas
terras ou pedaços delas, terrenos para plantar e viverem de modo próprio. Aliás, um olhar
atento aos detalhes da documentação nos permite ver que este modo próprio de ser dos índios
está presente inclusive em situações muito inesperadas. Em 03 de Novembro de 1861 ocorreu
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grande festa religiosa em Soure, com a visita do Sr. Bispo Dom Luiz. A Vila se enfeitou e o
bispo estava animado na sua pregação, aconselhando as mulheres a reconhecerem e aceitarem
o papel submisso. A reportagem é do jornal O Cearense, que, em determinado trecho fala do
comportamento indígena: “Os índios também não passarão sem dar uma demonstração de
respeito e regosigio pela presença do respeitável Deocesano, forão por tanto postar-se em
frente das casas tocando seos instrumentos proprios”7. Eis aí uma forma de resistir, bastante
visível para quem quer ver.
Os Tapeba resistiram e se preservaram índios ao longo do século XX, deslocando-se
constantemente, expulsos pelo avanço da propriedade privada e da cidade, resistindo na beira
da Lagoa, no Trilho, no Paumirim, na periferia, na Ponte e no Rio, na área pobre do bairro
central. Mal vistos, estigmatizados, sem terras, empobrecidos, muitos caíram no alcoolismo,
outros foram mortos propositadamente por quem pressentia alguma ameaça no simples ato
deste povo existir e resistir. Preservaram suas ocas de palha, pescavam, caçavam e plantavam
pequenos terrenos em terras “alheias”.
Em 1959, membros do Instituto de Antropologia do Ceará, tendo a frente Thomás
Pompeu Sobrinho, identificaram os Tapeba morando em torno da linha férrea, no atual bairro
Capuan, lugar à época ainda bastante isolado. A notícia divulgada pelo Instituto, de que no
Ceará, na beirada de Fortaleza, encontravam-se “remanescentes indígenas”, despertou o
interesse da imprensa Nacional. Naquele ano, o Jornal Diário do Paraná realizou interessante
reportagem no dia 30 de agosto de 1959, com o título: “Semi-selvagens há três léguas de
Fortaleza”:
Quase ninguém quer ser Tapeba – Tapeba soa em Caucaia e Fortaleza como
sinônimo de Marginal, gente ruim. Por isso, quando não conseguem mais se
esquivar ao visitante inesperado, depois de ocultar-se no interior da choça,
ou afundar no mato, o Tapeba procura negar: “Aqui não tem Tapeba, só lá
adiante”. Adiante dirão: “Todos mudaram para longe”. Pela manhã os
homens vão a Caucaia e Fortaleza vender frutas e flores, outros estarão nos
mangues apanhamdo siris e caranguejos, que se constitui a base da