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Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara
Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Eriksen, Thomas Hylland \Histria da antropologia / Thomas
Hylland
Eriksen; Finn Sivert Nielsen; traduo de Euclides Luiz Calloni;
reviso tcnica de Emerson Sena da Silveira. 3. ed. Petrpolis, RJ :
Vozes, 2010.
ISBN 978-85-326-3428-3
Ttulo original: A History of Anthropology.
Bibliografia
1. Antropologia - Filosofia 2. Antropologia - Histria I.
Nielsen, Finn Sivert. II. Ttulo.
06-8071 CDD-306.09
ndices para catlogo sistemtico:
1. Antropologia : Histria 306.09
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Thomas Hylland Eriksen
Finn Sivert Nielsen
Histria da antropologia
Traduo: Euclides Luiz Calloni Reviso tcnica: merson Sena da
Silveira
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Vitorianos, alemes e um francs
Entre as Guerras Napolenicas (1792-1815) e a I Guerra Mundial
(1914-1918), vemos o nascimento da Europa moderna - e do mundo
moderno. Acima de tudo, porem, essa foi talvez a era da Revoluo
Industrial. Nos anos 1700 transformaes profundas se processaram na
agricultura e na manufatura, especialmente na Inglaterra. Mquinas a
vapor e de fiao haviam se espalhado por toda parte e uma classe
cada vez mais numerosa de camponeses sem terra e de trabalhadores
urbanos comeou a se fazer ouvir. As mudanas mais importantes,
contudo, ocorreriam mais adi- inte. Na dcada de 1830 foram
construdas as primeiras grandes ferrovias; uma dcada depois, navios
a vapor cruzavam o Atlntico regularmente; e em 1846 foi introduzido
o telgrafo. Numa escala que o mundo desconhecia at ento, comeava a
ser possvel movimentar enormes quantidades de informaes, de
matrias-primas, de mercadorias e de pessoas por distncias globais.
Essa efervescncia, por sua vez, significava que a produo podia ser
aumentada, tanto na agricultura como na indstria manufatureira. A
Europa tinha condies de alimentar mais pessoas, em parte com o
lumento da produo e em parte com a expanso das importaes. O
resultado foi o crescimento da populao. Em 1800 a Inglaterra
contava com 10.5 milhes de pessoas. Em 1901 sua populao chegava a
37 milhes de habitantes, 75 por cento dos quais viviam em cidades.
Forados pela presso populacional e pela racionalizao da
agricultura, os camponeses abandonaram o interior e migraram para
centros urbanos como Londres ou Paris, onde foram ressocializados
como operrios. As condi- ces nas cidades em rpido crescimento eram
sempre precrias: epidemias eram comuns, e quando foi introduzida a
primeira lei britnica contra o trabalho infantil, em1834, ela
apenas regulamentou a situao de crianas com idade inferior a 9
anos.
Com o tempo, protestos contra essas mudanas aumentaram em
freqncia e em escala. O exemplo mais extremo foi a Revoluo
Francesa, mas a revolta Cartista na Inglaterra nos anos 1840, as
revolues francesa, austraca e italiana em 1848-1849, a
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Comuna de Paris de 1870, tambm indicam claramente o potencial
para a violncia desencadeado pela industrializao. Simultaneamente
aos protestos desenvolveu-se uma ideologia nova, de carter
socialista. Suas razes remontam a filsofos sociais como Rousseau e
Henri de Saint-Simon (1760-1825) e aos neo-hegelianos alemes, mas
sua formulao definitiva ocorreu com KarI Marx, que abordaremos mais
adiante.
O sucesso do movimento trabalhista durante o sculo dezenove
teria sido praticamente impossvel sem o trem e o navio a vapor.
Milhes de migrantes se deslocaram por esses meios de transporte
para os Estados Unidos, Austrlia, Argentina, frica do Sul, Sibria e
outras partes do mundo, aliviando a presso populacional na Europa e
possibilitando uma elevao continuada nos padres de vida de todos.
Ao mesmo tempo, nas colnias, administraes difundiam a cultura e as
instituies europias. Esse impressionante processo de difuso teve
efeitos os mais diversos. Novas relaes de poder surgiram - entre o
administrador colonial e o comerciante ndio, entre o proprietrio
rural e o escravo negro, entre boer, ingls e bantu, entre
colonizador e aborgene australiano. Na esteira dessas novas relaes
de dominao e dependncia, novas filosofias, ideologias e mitos
surgiram para defend-las ou atac-las. A campanha contra a
escravatura um dos primeiros exemplos disso, e a escravido foi
abolida com sucesso nas possesses inglesas e francesas nos anos
1830. Mas o racismo, que emergiu como ideologia organizada durante
o sculo dezenove, foi uma resposta aos mesmos processos.
Finalmente, surgiu uma cincia internacionalizada. O pesquisador
global se toma uma figura popular - e o prottipo , naturalmente,
Charles Darwin (1809-1882), cuja Origem das espcies (1859) se
baseava em dados coletados durante uma circunavegao de seis anos ao
redor do globo.
No surpreende que a antropologia tenha surgido como disciplina
nesse perodo. O antroplogo um pesquisador global prototpico que
depende de dados detalhados sobre pessoas em todo o mundo. Agora
que esses dados se tomavam disponveis, a antropologia podia
estabelecer-se como disciplina acadmica. E tambm a sociologia podia
alar-se a essa condio. Se a antropologia se desenvolveu a partir do
imperialismo, a sociologia resultou da mudana das relaes de classe
produzida pela industrializao na Europa em si - todos os pais
fundadores da sociologia analisam o significado da modernidade e o
contrapem s condies pr-modemas.
Evolucionismo biolgico e social - Morgan
Enquanto os principais socilogos do sculo dezenove eram em sua
maioria alemes ou franceses, os antroplogos mais destacados estavam
na Inglaterra (o maior poder colonial, com grande facilidade de
acesso aos outros) ou nos Estados Unidos (onde os outros estavam
prximos). Os avanos tericos nas duas tradies tam
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bm eram bastante diferentes. O evolucionismo tpico da
antropologia do sculo dezenove construa-se sobre idias de
desenvolvimento do sculo dezoito, favorecido pela experincia do
colonialismo e (a comear nos anos 1860) pela influncia de Darwin e
seu defensor mais clebre, o filsofo social Herbert Spencer
(1820-1903), que fundou o Darwinismo Social, uma filosofia social
que exalta as virtudes da competio individual. Mas a antropologia
no derivou para uma pseudocincia racista. Todos os principais
antroplogos da poca apoiavam o princpio da unidade psquica da
humanidade - os seres humanos nasciam em toda parte com
aproximadamente os mesmos potenciais, e as diferenas herdadas eram
negligenciveis. Com efeito, as teorias da evoluo social
pressupunham esse princpio, pois se as diferenas raciais eram
consideradas como fundamentais, as comparaes culturais sobre as
quais essas teorias se baseavam seriam desnecessrias.
Paralelamente, socilogos continentais seguiam a liderana de Kant
e Hegel e exploravam a realidade socialmente construda descoberta
pelos dois alemes. Diferentes socilogos compreenderam esse projeto
de modos diversos, mas todos tinham em comum a idia de sociedade
como uma realidade autnoma que deve ser estudada em seus prprios
termos, no com os mtodos da cincia natural. Como os antroplogos, os
socilogos defendiam a unidade psquica da humanidade e aceitavam a
teoria evolucionista. Diferentemente dos antroplogos, que
classificavam e comparavam as caractersticas externas das
sociedades em todo o globo, os socilogos dirigiam a ateno para a
dinmica interna da sociedade ocidental, industrial. As teorias
sofisticadas que assim se desenvolveram exerceriam um impacto
fundamental tambm sobre a antropologia a partir do incio do sculo
vinte.
Ilustraremos aqui as diferenas entre essas duas tradies
emergentes com a obra de duas de suas figuras pioneiras mais
destacadas: o antroplogo americano Lewis Henry Morgan (1818-1881) e
o socilogo alemo Karl Marx (1818-1883).
A vida de Morgan consubstanciou de muitas formas os Estados
Unidos de oportunidades iguais que o socilogo francs Alexis de
Tocqueville havia descrito em1835. Ele cresceu numa fazenda no
Estado de Nova York, formou-se em advocacia e participou de modo
ativo e bem-sucedido na poltica local. Um dos primeiros defensores
dos direitos polticos dos nativos americanos, ele era fascinado
pelos ndios desde a juventude. Na dcada de 1840 ele viveu com os
iroqueses durante algum tempo, quando foi adotado por uma das
tribos e recebeu o nome Tayadaowuhkuh: aquele que constri
pontes.
Morgan compreendeu que grande parte da complexidade da cultura
nativa americana em pouco tempo seria irrecuperavelmente destruda
como conseqncia do influxo de europeus, e considerava como tarefa
crucial documentar a cultura tradi
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cional e a vida social desses nativos antes que fosse tarde
demais. Essa atitude, muitas vezes denominada antropologia urgente,
foi assumida tambm pelo segundo grande antroplogo americano, Franz
Boas (captulo 3), e desde ento foi muito utilizada em pesquisas de
povos indgenas.
Morgan tinha contato estreito com o povo que ele estudava,
simpatizava com os problemas desse povo e publicava relatos
detalhados de sua cultura e vida social. Mas ele tambm fez
contribuies tericas substanciais, especialmente em sua obra
pioneira sobre o parentesco. O interesse de Morgan pelo parentesco
tinha origem em seu convvio com os iroqueses. Mais tarde, ele
descobriu semelhanas e diferenas surpreendentes entre o sistema de
parentesco desse povo e o de outros povos na Amrica do Norte. Ele
ento elaborou um estudo comparativo em larga escala do parentesco
dos nativos americanos, no qual acabou incluindo tambm outros
grupos. Morgan criou a primeira tipologia de sistemas de parentesco
(cf. Holy 1996) e introduziu uma distino entre parentesco
classificatrio e descritivo que continua em uso ainda hoje. Numa
explicao muito simplificada - sistemas descritivos (como o nosso)
diferenciam parentes da linha ascendente ou descendente direta
(parentela linear) dos parentes laterais (parentela colateral, como
irmos, primos e contraparentes). O parentesco classificatrio (como
entre os iroqueses) no faz diferena entre essas duas categorias.
Aqui o mesmo termo pode ser usado, por exemplo, para todos os
parentes masculinos lineares e colaterais do lado paterno (pai,
irmo do pai, filho do irmo do pai, etc.). Mas Morgan fez mais do
que formular uma teoria: ele fundamentou sua teoria em anos de
estudos intensivos sobre os sistemas de parentesco existentes ao
redor do mundo. Ele apresenta os resultados dessas pesquisas em seu
influente Systems of Consanguinity andAffinity of the Human Family
(1870), onde tambm considera o parentesco, definitivamente, como um
tema antropolgico fundamental.
Para Morgan, o parentesco era principalmente uma porta de
entrada para o estudo da evoluo social. Ele sustentava que as
sociedades primitivas organizavam-se sobre a base do parentesco e
que as variaes terminolgicas entre sistemas de parentesco tinham
correlao com variaes na estrutura social. Mas ele tambm supunha que
a terminologia do parentesco mudava lentamente e que portanto
continha indicaes para uma compreenso de estgios anteriores da
evoluo social.
Em sua obra magna Ancient Society (1877), Morgan procura
realizar uma grandiosa sntese de toda sua obra. Ele distingue trs
grandes estgios da evoluo cultural: selvageria, barbrie e civilizao
(com trs subestgios para a selvageria e trs para a barbrie). Os
critrios para essas divises eram principalmente tcnicos: seus
selvagens eram caadores e coletores, o barbarismo estava associado
agricultura e a civilizao formao do Estado e urbanizao.
Observando-se retros
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pectivamente, parece claro que a sntese de Morgan no teve
sucesso. Mesmo acei- tando-se o seu esquema evolucionrio bsico, os
detalhes geralmente so vagos. As vezes, caractersticas tecnolgicas
isoladas recebem um peso alm do razovel - por exemplo, a cermica o
critrio de transio entre dois estgios. Com isso, onde se situariam
as sociedades de chefia polinsias, com seus sistemas polticos
complexos, mas sem nenhum trao de cermica? justo acrescentar que o
prprio Morgan tinha conscincia de que suas concluses eram muitas
vezes especulativas e ele prprio criticava a qualidade dos seus
dados (principalmente os secundrios).
Morgan exerceu influncia considervel sobre a antropologia
posterior, especialmente sobre os estudos relacionados com o
parentesco, mas tambm sobre os materialistas culturais americanos e
outros antroplogos evolucionistas no sculo vinte (captulo 5).
Socilogos tambm o liam, porm. Quando Marx, quase no fim de sua
vida, descobriu Morgan, ele e seu companheiro Friedrich Engels
tentaram integrar as idias de Morgan em sua prpria teoria
evolucionria, ps-hegeliana. Os resultados incompletos dessa
tentativa foram publicados por Engels em The Origin of the Family,
Private Property, and the State, em 1884, o ano seguinte morte de
Marx.
Marx
O escopo e os objetivos da obra de Marx contrastam agudamente
com os de Morgan, apesar do envolvimento de ambos com explicaes
materialistas. Os escritos de Marx sobre as sociedades
no-industriais so dispersos e constituem tentativas. Foi com a
anlise da sociedade capitalista em sua obra-prima Das Kapital
(vols. 1-3, 1867, 1885,1896; O capital, 1906) que ele deu sua
contribuio permanente teoria social. Apesar da derrocada do
marxismo como movimento poltico no fim dos anos 1980, essa obra
continua como influncia acadmica importante.
Nascido no mesmo ano que Morgan, de famlia judia abastada, numa
obscura cidade alem, Marx formou-se em filosofia antes de se
dedicar a uma carreira como terico social, panfletrio, editor,
jornalista, organizador trabalhista e revolucionrio. Ele se
envolveu ativamente na onda revolucionria que abalou o
establishment europeu em 1848-1849 e na Comuna de Paris em 1870.
Depois da Comuna ele ficou conhecido como uma das figuras mais
eminentes do movimento operrio internacional.
A influncia de Marx sobre a teoria social multiforme e complexa
e pode ser detectada em muitas anlises antropolgicas at hoje
(embora seja ainda maior sobre a sociologia, a histria e a
economia). A confluncia de teoria social e ativismo poltico
profunda em Marx e imprime em todo seu projeto um carter paradoxal,
insti- gante e provocante (ver Berman 1982). Num sentido, Marx
procurou durante toda
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sua vida conciliar um impulso idealista da filosofia alem
(particularmente Hegel) com uma cosmoviso materialista. s vezes se
ouve dizer que Marx ps Hegel a seus ps: ele conservou o princpio
dialtico de Hegel, mas afirmou que o movimento da histria se deu
num nvel material, no num nvel espiritual. Segundo Marx, a
sociedade constituda de infra-estrutura e superestrutura. A
primeira compreende as condies para a existncia - os recursos
materiais e a diviso do trabalho; a segunda inclui todos os tipos
de sistemas ideacionais - religio, lei e ideologia. Em todas as
sociedades uma contradio fundamental permeia toda a
infra-estrutura: a que se constata entre as relaes de produo (que
organizam o trabalho e a propriedade) e as foras de produo (por
exemplo, a tecnologia e a terra). Quando avanos tecnolgicos tomam
relaes de produo anteriores obsoletas surge o conflito de classes,
e as relaes de produo ficam alteradas - por exemplo, da escravido
ao feudalismo e deste ao capitalismo. Marx afirmou que o sistema
capitalista seria substitudo pelo socialismo (dirigido por uma
ditadura do proletariado) e finalmente pelo comunismo sem classes -
uma utopia em que tudo se toma posse de todos.
A teoria to ambiciosa, e em muitos aspectos to ambgua, que
fatalmente levantaria muitos problemas quando enfrentasse as
complexidades do mundo real. Um exemplo disso a anlise de classes
marxista. Em termos aproximados, Marx postulava que os que possuem
e os que no possuem propriedade dos meios de produo constituem
classes discretas com interesses especficos. O interesse objetivo
da classe trabalhadora consiste em destituir a classe dirigente
atravs da revoluo. Mas a classe trabalhadora est apenas
parcialmente consciente da explorao que sofre, uma vez que as
verdadeiras relaes de poder so ocultadas por uma ideologia que
justifica a ordem existente. Fenmenos superestruturais, como a lei,
a religio ou o parentesco so infundidos tipicamente com uma falsa
conscincia que pacifica a populao.
Mas, pergunta o antroplogo, esse modelo aplicvel a contextos
no-ociden- tais? Como ele se harmoniza com a afirmao de Morgan de
que o parentesco o princpio organizador fundamental nas sociedades
primitivas? O parentesco faz parte da infra-estrutura? Como isso
possvel, se o parentesco uma ideologia que oculta a
infra-estrutura? Toda distino entre infra-estrutura e
superestmtura, entre material e espiritual, deve ser abandonada? Em
que sentido, se existe um, a ideologia menos real do que o poder?
Essas questes conquistaram uma importncia cada vez maior na
antropologia, e uma parte significativa da atrao exercida por Marx
atualmente est em sua capacidade de levantar questionamentos como
esses.
O prprio Marx no se esqueceu desses problemas. Sua extensa
anlise da formao do valor prova suficiente disso. O valor de um
objeto em si mesmo, seu valor de uso concreto, sua correspondncia
com necessidades humanas reais, trans
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formado, no capitalismo, num valor de troca abstrato, que o
valor em comparao com outros objetos. Objetos materiais so
transformados em produtos espirituais, e quanto mais isso continua,
mais abstrato, absurdo e alienado parece o mundo. Nessas passagens,
valor se toma um conceito profundamente ambguo, em que poder e
ideologia, o material e o espiritual se entrelaam
inextricavelmente. Entretanto, permanece a dvida se Marx realmente
resolveu o problema que ps para si mesmo. Poderamos observar, por
exemplo, que suas dificuldades em aproximar o materialismo e o
idealismo (hegeliano) lembram o problema de Morgan com as causas
materialistas da terminologia do parentesco. Somente nos anos 1980
vimos um esforo combinado para resolver o paradoxo.
Bastian, Tylor e outros vitorianos
Morgan e Marx pertenciam primeira gerao de cientistas sociais em
atividade nas dcadas de 1850 a 1870. No obstante, embora a
contribuio deles ofusque a da maioria dos seus contemporneos, eles
estavam longe de ser os nicos:
Nos anos 1860, enquanto Morgan ainda trabalhava em seu belo
volume sobre o parentesco, foram publicados na Europa vrios livros
que em parte complementavam Morgan e em parte levantavam questes
inteiramente diferentes. Em 1860 o prolfico antroplogo alemo Adolf
Bastian (1826-1905) publicou o seu Der Mensch in der Geschichte em
trs volumes (Man in History, ver Koepping 1983). Bastian, mdico por
formao, tomou-se etngrafo por influncia dos irmos Wilhelm e
Alexander von Humboldt, o lingista e o gegrafo que revolucionaram o
pensamento humanista e social na Alemanha durante a primeira metade
dos anos 1800. Bastian viajou muito, na verdade estima-se que tenha
passado vinte anos fora da Alemanhai Koepping 1983: 8). Entre uma
viagem e outra, ele escreveu seus livros, foi nomeado professor de
Etnologia na Universidade de Berlim e diretor do Museu Imperial,
fun- iou o importante Berliner Museum fr Vlkerkunde em 1868 e
contribuiu generosamente para formar as colees desse museu. Como os
irmos Humboldt antes dele e 3oas depois dele (captulo 3), Bastian
continuou a tradio alem de pesquisa sobre Volkskultur que fora
inspirada por Herder e criticou duramente os esquemas evolucio-
nistas simplistas que comeavam a se destacar nessa poca. Como o
nico antroplogo de vulto do sculo dezenove, Bastian foi um crtico
vigoroso e incisivo do evolu- cionismo. Sua viso era que todas as
culturas tm uma origem comum, da qual se ramificaram em vrias
direes - uma viso que mais tarde foi desenvolvida com gran- ie
sofisticao por Boas e seus alunos. Ele estava profundamente
consciente das relaes histricas entre culturas, e assim antecipou
um desdobramento que ocorreu posteriormente na antropologia alem,
especificamente, o difusionismo. Bastian in-
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elusive antecipou o estruturalismo e a psicologia junguiana
quando afirmou que todos os seres humanos tm certos padres
elementares de pensamento em comum: Elementrgedanken. Foi
principalmente na antropologia alem, e em grande parte atravs da
obra de Bastian, que o princpio embrionrio do relativismo cultural,
evidente em Herder mas ausente do pensamento iluminista e da
antropologia an- glo-americana do sculo dezenove, marcou presena na
antropologia durante o sculo dezenove. Na Frana, por exemplo, a
escola sociolgica de Augusto Comte (1798-1857) foi tudo, menos
relativista, operando com um sistema rgido de trs estgios de evoluo
social.
No ano seguinte publicao de Der Mensch in der Geschichte, o
advogado escocs Henry Maine (1822-1888) publicou Ancient Law. Essa
obra era principalmente uma pesquisa sobre a histria cultural
baseada em fontes escritas. Maine procurou demonstrar como mudanas
na legislao refletem mudanas sociais mais amplas e fez a distino
entre sociedades tradicionais baseadas em status e sociedades
modernas baseadas em contrato. Nas sociedades baseadas em status,
os direitos so distribudos atravs de relacionamentos pessoais,
parentesco e posio social herdada. Por outro lado, a sociedade
baseada em contrato baseia-se em princpios formais, escritos, que
funcionam independentemente das pessoas reais. A distino entre
status e contrato continua sendo adotada atualmente, e muitos
estudiosos seguem a orientao de Maine ao distinguir entre dois
tipos ideais - sociedades simples e complexas - e so, por sua vez,
criticados por excesso de simplificao.
Uma idia evolucionista que influenciou Morgan, Engels e outros,
mas foi rejeitada desde ento, foi a teoria do matriarcado original.
Essa teoria foi proposta inicialmente pelo advogado suo Johann
Jakob Bachofen (1815-1887), em Das Mutter- recht (1861; Mothers
Right, ver Bachofen 1968). Bachofen defendia uma teoria
evolucionista que passava de um estgio inicial de promiscuidade
geral (Hetaris- mus) a uma primeira forma de vida social -
matriarcado - em que as mulheres detinham o poder poltico. Ele
admitia que no existiam mais matriarcados reais, mas vestgios deles
encontravam-se em sistemas de parentesco matrilineares, onde a
descendncia segue principalmente a linha materna. Essa idia,
implicando que a humanidade progrediu medida que a liderana das
mulheres foi sendo substituda pela dos homens, atraiu muitos
seguidores, e quase foi considerada como fato natural pela gerao
seguinte de antroplogos. Na Inglaterra ela foi promovida por outro
advogado interessado em evoluo social, John Ferguson McLennan
(1827-1881). Apesar da inexistncia de evidncias etnogrficas a favor
dessa idia, ela resistiu tanto que somente na dcada de 1970
antroplogas feministas se convenceram de que ela devia ser
extirpada (Bamberger 1974).
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Assim, Morgan no trabalhou num vcuo intelectual. O interesse
pelos estudos comparativos da cultura e da sociedade estava
aumentando, especialmente na Inglaterra e na Alemanha, e o acesso a
dados empricos confiveis melhorava rapidamente graas ao
colonialismo. Ainda assim, o nico antroplogo do sculo dezenove a
rivalizar com Morgan em influncia foi Edward Bumett Tylor
(1832-1917).
E.B. Tylor recebeu uma educao quacre, uma crena que o impediu de
freqentar a universidade. Enquanto convalescia em Cuba, porm, ele
descobriu seu interesse por arqueologia e foi convidado a
participar de uma expedio a runas toltecas no Mxico. Num perodo
dominado pelo evolucionismo, o passo da pr-histria antropologia foi
curto, e a obra de Tylor como antroplogo logo lhe atrairia (e
disciplina) prestgio considervel. Em 1896 ele foi nomeado primeiro
professor britnico de an- :ropologia na Universidade de Oxford. Em
1912, foi nomeado cavaleiro. Tylor ainda era jovem quando publicou
sua primeira grande sntese evolucionista, Researches into the Early
History ofMankind and the Development of Civilization (1865); e sua
obra mais importante, Primitive Culture (1871), veio apenas alguns
anos depois. Tylor propunha aqui um esquema evolucionista que
lembrava o de Morgan em Anci- ent Society (os dois livros foram
publicados no mesmo ano). Ele e Morgan acreditavam na primazia das
condies materiais. Tambm como Morgan, seu conhecimento da variao
cultural era vasto (Darwin se refere a Tylor vrias vezes em sua
obra os anos 1870 sobre a evoluo humana). Mas, diferentemente de
Morgan, Tylor no se interessava pela terminologia do parentesco, e
em lugar dela desenvolveu uma :eoria dos sobreviventes culturais.
Sobreviventes eram traos culturais que haviam perdido suas funes
originais na sociedade, mas haviam sobrevivido, sem nenhuma -azo em
particular. Esses traos eram de importncia crucial para o esforo de
reconstruo da evoluo humana. Tylor advogava um mtodo comparativo
trao a rao, o que lhe permitia isolar sobreviventes do sistema
social mais amplo. Embora influente na poca, esse mtodo foi
abandonado pela gerao seguinte de antroplo- os. Curiosamente, ele
reapareceu em meados da dcada de 1970, quando o socilo- co Edward
O. Wilson, numa aventura intelectual comparvel de Tylor, procurou
conciliar variao cultural e evolucionismo darwinista (ver Ingold
1986).
Mas a contribuio mais importante de Tylor antropologia moderna
sua defi- r.io de cultura. Essa definio est na primeira pgina de
Primitive Culture, com a seguinte redao:
Cultura, ou civilizao, tomada em seu sentido amplo, etnogrfico,
aquele todo complexo que inclui conhecimento, crena, arte, moral,
lei, costume e quaisquer outras capacidades e hbitos adquiridos
pelo homem como membro da sociedade (Tylor 1958 [1871]: 1).
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Por um lado, cultura assim um termo geral que perpassa estgios
evolutivos. Onde a evoluo diferencia sociedades em termos
qualitativos, a cultura une a humanidade. Tylor, como Bastian, foi
um proponente explcito da unidade psquica da humanidade. E a
semelhana com Bastian vai alm disso. Tylor era versado em
antropologia alem e em filosofia e havia lido tanto o prprio
Bastian como vrios dos professores dele (ver Koepping 1983). Por
outro lado, Tylor equipara cultura com civilizao, um termo
qualitativo. Cultura assim, pelo menos implicitamente, se toma uma
questo de grau: todos tm, mas no em quantidade igual. Esse conceito
de cultura contradiz totalmente Bastian e toda a noo herderiana de
Volk. Para Herder e seus sucessores, a humanidade consistia em
culturas autnomas, limitadas. Para Tylor e outros evolucio- nistas
vitorianos a humanidade consistia em grupos que eram aculturados em
vrios graus e distribudos nos degraus de uma escada de evoluo
cultural.
Nos anos entre 1840 e 1880 socilogos e antroplogos levantaram
todo um conjunto de novos problemas. Enquanto Marx desenvolvia a
primeira grande teoria de cunho sociolgico, abrangendo a
modernizao, a formao do valor, o poder e a ideologia, e enquanto
Darwin formulava os princpios da evoluo biolgica, os antroplogos
estavam envolvidos num projeto de duas direes. Em parte, eles se
ocupavam em esboar grandes esquemas evolucionrios - unilineares na
inteno e universalistas nas pretenses; em parte, tratavam de
documentar a imensa amplitude da variao so- ciocultural humana - e
do conhecimento assim acumulado emergiram as primeiras teorias de
baixo alcance pertencentes a domnios etnogrficos especficos, como o
do parentesco, e enraizadas em descries empricas especficas e
detalhadas.
Ainda era raro o prprio antroplogo realizar estudos de campo,
embora Morgan e Bastian fossem excees notrias. Outra exceo, menos
conhecida, foi o etngra- fo russo Nicolai Nicolaievich
Miklukho-Maklai (1846-1888), que em 1871,40 anos antes de
Malinowski, realizou um estudo de campo intensivo de 15 meses na
costa da Nova Guin e lanou as bases para uma rica tradio etnogrfica
na Rssia que praticamente desconhecida no Ocidente (ver Plotkin e
Howe 1985). Mas a grande maioria dos antroplogos coletava seus
dados atravs de correspondncia com administradores coloniais,
colonizadores, oficiais, missionrios e outros brancos residentes em
lugares exticos. Dada a qualidade desigual desses dados e as
imensas ambies tericas dos autores, esses estudos estavam quase
sempre repletos do tipo de especulao que Radcliffe-Brown (captulo
3) mais tarde rejeitaria como histria con- jetural. Apesar desses
defeitos, no entanto, os livros eruditos dos vitorianos possuam um
enfoque terico e uma base emprica num grau nunca visto at ento.
A importncia do parentesco nessa fase da evoluo da disciplina no
pode ser exagerada. A terminologia do parentesco era um campo
emprico limitado. Entretan
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to, mape-lo e compreend-lo era uma experincia humilhante. Quanto
mais o olhar se aproximava desses sistemas estranhamente formais,
mais complexos eles pareciam. De fato, para os primeiros
praticantes dos estudos do parentesco, principalmente advogados de
profisso, a tarefa parecia bastante simples. Eles procuravam um
sistema legal que regulasse o comportamento em sociedades
primitivas, e o parentesco era o candidato bvio - um sistema
emprico de normas formalizadas, verbalizadas. No fim do sculo uma
analogia muito comum era a de que o parentesco era um tipo de Pedra
de Roseta do antroplogo que possibilitava que costumes primitivos
fossem compreendidos e traduzidos em termos racionais.
The golden bough e A expedio a Torres
Durante algumas dcadas depois dos prolficos anos 1860 e 1870,
pouca coisa importante foi publicada no campo da antropologia.
Tambm na sociologia a situao parece no ter sido melhor - com a
notvel exceo da obra de Ferdinand Tn- nies, Gemeinschaft und
Gesellschaft (1887; Community andSociety, 1963), que propunha uma
dicotomia entre o tradicional e o moderno semelhante de McLennan,
embora com tom menos crtico. Uma nova gerao surgiu no decorrer
desses anos. Muitos dos principais personagens analisados at aqui,
entre os quais Marx, Morgan, Bachofen e Maine, estavam mortos. Na
antropologia vemos a primeira institucionalizao da disciplina na
Inglaterra, Alemanha, Frana e Estados Unidos. Tradies nacionais
independentes comeavam a se cristalizar e conjuntos distintos de
ques- :es eram formulados em cada um desses quatro pases. Os alemes
seguiram a liderana de Bastian e dos lingistas comparativos, cujo
xito em deslindar a histria as lnguas indo-europias foi quase to
sensacional, em seu tempo, quanto o evolu- cionismo de Darwin. Eles
elaboraram um programa de pesquisa para o estudo da pr-histria
humana que imitava a difuso e o movimento de lnguas de modo muito
prximo forma como o evolucionismo imitava a biologia. Esse
programa, o difusio- nismo, estudava a origem e a disseminao de
traos culturais. O desafio lanado por esses historiadores concretos
s histrias abstratas do evolucionismo fez com que o iifusionismo se
tomasse uma inovao efetivamente radical em tomo da virada do
>culo. Nos Estados Unidos e na Inglaterra o evolucionismo
continuou predominando. mas os estudiosos se especializavam cada
vez mais, concentrando-se em sub- campos especficos, como
parentesco, religio, magia ou justia. Todos esses programas de
pesquisa, porm, passaram por dificuldades muito srias por falta de
dados rigorosos e detalhados. Essa lacuna se tomara
progressivamente mais evidente ao longo do sculo dezenove, e agora
o consenso quase universal nesse campo refletia a necessidade de
mais e melhores dados. J em 1857 antroplogos ingleses publi
-
caram a primeira edio daquela que se tomaria a obra autorizada
nos mtodos de campo durante quase um sculo -Notes and Queries on
Anthropology, que na continuidade foi reeditada em quatro edies
revistas e ainda mais detalhadas. Mas a inovao metodolgica que
todos esperavam s chegou depois da consolidao de uma concepo
radicalmente nova do trabalho de campo antropolgico.
O ltimo grande evolucionista vitoriano foi James George Frazer
(1854-1941), um aluno de Tylor que se celebrizou muito alm dos
crculos antropolgicos por sua obra-prima The Golden Bough; o livro
teve sua primeira edio lanada em 1890, em dois volumes, mais tarde
ampliados para ocupar doze tomos enormes. The Golden Bough uma
extensa investigao comparativa da histria do mito, da religio e de
outras crenas exticas, com exemplos tirados de todas as partes do
mundo. Como muitos evolucionistas, Frazer acreditava num modelo de
evoluo cultural em trs etapas: um estgio mgico seguido por um
estgio religioso que d lugar a um estgio cientfico. Esse esquema
geral tem suas origens em Vico e desenvolvido por Comte. Embora
Frazer considerasse claramente os ritos mgicos como irracionais e
tivesse como pressuposto que os primitivos baseavam sua vida numa
compreenso totalmente errnea da natureza, seu principal interesse
era identificar padres e traos universais no pensamento mtico. Com
algumas excees notveis (sendo Lvi-Strauss uma delas), os
antroplogos modernos raramente consideram Frazer como algum mais do
que uma figura histrica. Sua influncia, porm, foi maior fora da
antropologia; dois dos seus admiradores mais entusiasmados foram o
poeta T.S. Eliot e o psiclogo Sigmund Freud. No entanto, a
fascinante e densa obra de Frazer no teve continuidade em pesquisas
posteriores. Ela se ergue solitria, um monumento imponente insegura
base emprica do evolucionismo vitoriano.
Outro empreendimento britnico na virada do sculo, menos
observado na poca e muito menos conhecido fora da antropologia,
qual seja, a Expedio a Torres, organizada na Universidade de
Cambridge em 1898, com destino ao Estreito de Torres, entre a
Austrlia e a Nova Guin, teve retrospectivamente repercusses mais
amplas. A expedio foi planejada para coletar dados detalhados sobre
a populao tradicional das ilhas na rea e inclua vrios antroplogos -
embora todos fossem especializados em outras disciplinas, pois a
formao acadmica em antropologia ainda era rara. Alfred C. Haddon
(1855-1940) era originalmente zologo, William H.R. Rivers
(1864-1922), psiclogo, e Charles G. Seligman (1873-1940) era mdico.
Em contraste com o ideal individualista do trabalho de campo
britnico posterior, a expedio a Torres foi um esforo coletivo em
que especialistas de vrias disciplinas exploraram diferentes
aspectos da cultura local. No entanto, devido alta qualidade e ao
impressionante volume de dados coletados, muitos consideram esses
antroplogos
-
como os primeiros pesquisadores de campo verdadeiros. A
antropologia social britnica nasceu com o trabalho de campo
realizado por eles, escreve um comentador (Hynes 1999).
Haddon, colega de Frazer na Universidade de Cambridge, havia
planejado a expedio a Torres como um projeto de campo ideal, em que
os participantes explorariam todos os aspectos da vida nativa:
etnografia, psicologia, lingstica, antropologia fsica e
musicologia. Ele prprio seria responsvel pelas reas da sociologia,
do folclore e da cultura material. Para Seligman, que mais tarde se
tomaria figura central no influente departamento de antropologia na
London School of Economics (LSE), a expedio foi o incio de uma
carreira que, depois das atividades desenvolvidas na Melansia e no
Sri Lanka, culminaria em vrios estudos de campo importantes no
Sudo. Ele assim contribuiu decisivamente para deslocar o foco da
antropologia inglesa das ilhas do Pacfico (onde permaneceu at anos
adentro da dcada de 1920) para a frica (que em pouco tempo se
tomaria uma mina de ouro etnogrfica). A obra mais importante de
Seligman baseada no Sudo, em co-autoria com sua mulher Brenda
Seligman (Seligman e Seligman, 1932) ainda hoje considerada um
clssico em seu campo.
Rivers foi o membro mais estranho da expedio. At sua morte
prematura em 1922, ele era professor na Universidade de Cambridge,
onde investiu muito esforo para desenvolver uma antropologia
psicolgica, um projeto muito adiante do seu tempo para ter sucesso.
Quase no fim da vida, Rivers foi influenciado pela psicologia de
Sigmund Freud. Durante a expedio a Torres, ele se concentrou
particularmente nas capacidades mentais dos nativos e de modo
especial no uso que faziam dos sentidos. Em 1908 publicou uma
monografia descritiva, The Todas, baseado em seu trabalho numa
tribo no sul da ndia; e, em 1914, The History of Melanesian
Society, uma obra completa que esboava a imensa variao cultural da
Melansia e a explicava como resultado de repetidas ondas de migrao,
uma hiptese que ainda aceita. com as devidas modificaes, entre os
arquelogos atuais. Com essa obra, Rivers comeou a se afastar do
evolucionismo e a seguir na direo da nova escola do difu- sionismo,
tema dos seus ltimos trabalhos.
Difusionismo
Os difusionistas estudavam a distribuio geogrfica e a migrao de
traos culturais e postulavam que culturas eram mosaicos de traos
com vrias origens e histrias. As partes de uma cultura, portanto,
no esto todas necessariamente ligadas a um todo maior. Em
contraste, a maioria dos evolucionistas sustentava que as
sociedades eram sistemas coerentes, funcionais. Na verdade, os
evolucionistas tambm
-
reconheciam a existncia de traos culturais isolados,
no-funcionais (os sobreviventes de Tylor) e, na prtica, esses
recebiam uma quantidade desproporcional de ateno analtica
(considerando que eram atpicos), uma vez que eram a chave para
reconstruir as formas sociais do passado. Mas quando a perspectiva
evolucionista sucumbiu, a idia de sociedades como todos coerentes
tambm ficou desacreditada (embora se mantivesse forte na sociologia
e logo reapareceria com fora renovada na antropologia social
inglesa). Agora todos os traos culturais eram sobreviventes
potenciais. Os difiisionistas ainda os usavam para reconstruir o
passado, mas o passado no era mais um movimento unilinear atravs de
estgios bem definidos. A histria cultural era uma narrativa
fragmentada de encontros culturais, migraes e influncias, cada
instncia da qual era nica. Nas primeiras dcadas do sculo vinte o
difusionismo foi uma alternativa atraente para o evolucionismo,
porque ele respeitava mais os fatos da realidade e porque suas
pretenses tericas eram mais modestas.
O fato de que tecnologia e idias podiam viajar no era uma
descoberta nova. No sculo dezoito, fillogos alemes haviam mostrado
que lnguas europias e do norte da ndia tinham origens comuns. Os
arquelogos haviam descoberto que a cermica e outros artefatos
haviam se difundido de centros culturais para as periferias. Os
europeus estavam cientes de que a religio dominante do seu prprio
continente tinha origens mdio-orientais. O que era novo com relao
ao difusionismo antropolgico era seu esforo comparativo sistemtico
e sua nfase no conhecimento emprico detalhado. Como Rivers, muitos
difusionistas trabalhavam em regies limitadas, onde era possvel
demonstrar convincentemente que traos culturais especficos tinham
uma histria possvel de identificar.
O difusionismo foi principalmente uma especializao germnica, com
centros nas grandes cidades-museu de Berlim e Viena. Salvo Rivers,
o difusionismo teve pouca influncia direta sobre as antropologias
inglesa e francesa (mas, como veremos, teve repercusses importantes
nos Estados Unidos). Como seus colegas de outros pases, os
antroplogos alemes do sculo dezenove tendiam a concordar com algum
tipo de estrutura evolucionista. Mas com sua nfase no singular e no
local, e com o relativismo que observamos na obra de Bastian, a
influncia de Herder neutralizou essa tendncia, e quando o
evolucionismo foi questionado na virada do sculo, essa tradio
recebeu novo impulso. Estudiosos como Friedrich Ratzel (1844-1904),
Fritz Graebner (1877-1934), Leo Frobenius (1873-1938) e Wilhelm
Schmidt (1868- 1954) seguiram a orientao de Herder (e Bastian),
enfatizando a singularidade da herana cultural de cada povo. Eles
sustentavam que a evoluo cultural no era unilinear e que no havia
um elo determinista simples entre, digamos, a complexidade
tecnolgica e a complexidade em outras reas. Um povo com uma
tecnologia simples poderia perfeitamente bem ter um sistema
religioso altamente sofisticado.
-
Os difsionistas tinham como objetivo realizar uma descrio
completa da difuso de traos culturais dos tempos primitivos at
hoje. Eles desenvolveram classificaes complexas (s vezes, diga-se,
bastante enigmticas) de crculos culturais (Kulturkrei- se) e
acompanharam sua possvel disseminao a partir de um centro original.
Em certos casos, como nos estudos de Graebner sobre a Oceania, eles
puderam identificar at sete sedimentos historicamente discretos ou
Kulturkreise em cada sociedade.
Observe-se que o difusionismo no se desvinculou de suas bases
evolucionistas da noite para o dia. A maioria dos difsionistas
ainda acreditava que a mudana social geralmente levava ao progresso
e a um aumento da sofisticao. O aspecto a que se opunham no que se
refere ao evolucionismo vitoriano era seu carter unilinear e
determinista: a idia, encontrada em Tylor e outros, de que todas as
sociedades devem passar por certos estgios que seriam mais ou menos
semelhantes em todo o mundo. A viso de mundo difusionista era menos
metdica do que isso e mais sensvel variao local.
Como veremos no prximo captulo, tanto o evolucionismo como o
difusionismo foram totalmente superados pelas geraes seguintes de
antroplogos sociais e culturais. Mas a pesquisa difusionista foi em
geral muito mais sofisticada do que antroplogos posteriores se
dispuseram a admitir, e na rea de lngua alem, especialmente na
ustria, o programa da Kulturkreise continuou vigoroso at a dcada de
1950.
O difusionismo foi tambm importante para os antroplogos do Leste
Europeu, e principalmente para o grande grupo de antroplogos russos
que seguiram a orientao de Miklukho-Maklai. Trs nomes de destaque
foram Vladimir Ilich Jochelson (1855-1937), Vladimir Germanovich
Bogoraz (1865-1936) e Lev Yacovlevich Shtera- berg (1861-1927),
todos exilados na Sibria Oriental por ordem do czar; ali
aproveitaram a oportunidade para realizar um trabalho de campo
prolongado entre os povos indgenas da regio. Em tomo da virada do
sculo, eles participaram de uma importante expedio msso-americana
aos povos indgenas em tomo do Estreito de Be- ring, organizada por
um alemo-americano de nome Franz Boas. Esses pesquisadores eram de
orientao difusionista, e de fato o difusionismo ainda hoje uma
teoria respeitvel na Rssia, com longas tradies e elevados padres
analticos e metodolgicos. No Ocidente, o difusionismo sobrevive na
tradio dos estudos do imperialismo, derivada em ltima anlise de
Marx e Lnin, mas que tomou a aparecer com nomes como estudos da
dependncia, estudos do sistema global e, mais recentemente, estudos
da globalizao (ver captulos 7 e 9). A influncia marxista aqui
acrescenta poder ao componente herderiano dos difsionistas, com um
resultado mais potente e violento.
-
A nova sociologia
As novas geraes de antroplogos, apresentadas nos prximos
captulos, tinham boas razes para se distanciar do evolucionismo e
do difsionismo. Elas estavam convencidas de que haviam descoberto
uma alternativa terica com maior potencial do que qualquer teoria
de variao sociocultural anterior. Antroplogos britnicos (e num grau
menor, americanos) haviam descoberto a sociologia continental.
O que os livros-texto e os cursos de graduao chamam de
sociologia clssica em geral se refere oeuvre de um punhado de
tericos (principalmente alemes ou franceses) que produziu a maior
parte de sua obra entre a dcada de 1850 e a I Guerra Mundial. Os
expoentes da primeira onda foram Marx, Comte e Spencer, embora os
dois ltimos estejam quase esquecidos atualmente. A segunda gerao
incluiu Ferdinand Tonnies (1855-1936), mile Drkheim (1858-1917),
Georg Simmel (1858- 1918) e Max Weber (1864-1920). Como Marx, todos
esses autores ainda so lidos pelo interesse intrnseco de sua obra
(mais do que como expresses de um Zeitgeist histrico). Tonnies, na
sociologia, analisou a dicotomia simples/complexo da sociedade,
acrescentando complexidade e nuana aos esquemas simplistas que o
haviam precedido; Simmel (hoje em fase de reabilitao) admirado por
seus estudos da modernidade, da cidade e do dinheiro. Drkheim e
Weber ainda so considerados importantes o bastante para inspirar
comentrios extensos e freqentes. De todos os socilogos clssicos,
porm, Durkheim o mais importante para a antropologia, em parte
porque ele prprio se interessava por muitos temas antropolgicos, em
parte por causa da sua influncia direta e imediata sobre a
antropologia inglesa e francesa. Nos Estados Unidos, a influncia da
sociologia clssica s se fez sentir muitos anos mais tarde, mas
nunca foi to forte como na Europa. A principal influncia aqui foi
de Bastian e da escola Vlkerkunde, introduzida na antropologia
americana por seu pai fundador (alemo), Franz Boas. Os principais
antroplogos americanos do incio do sculo vinte orientavam-se
portanto para a histria cultural, para a lingstica e mesmo para a
psicologia mais do que para a sociologia.
Durkheim\Como Marx, Durkheim nasceu numa famlia judia (numa
pequena cidade perto
de Estrasburgo) e seus pais queriam que ele se tomasse rabino.
Seu desempenho escolar, porm, foi to bom, que ele foi aceito na
prestigiosa cole Normale Suprieure em Paris, fato que lhe
possibilitou seguir mais tarde uma carreira acadmica. Durante o
perodo de formao ele perdeu a f religiosa e passou a fazer parte de
um meio intelectual dinmico e crtico. Ao longo de toda sua vida,
Durkheim interessou-se pro-
-
fundamente por questes morais e sempre se empenhou em promover
reformas sociais e educacionais. Em 1887 foi nomeado professor
assistente de pedagogia e sociologia na Universidade de Bordeaux,
tomando-se o primeiro cientista social francs a exercer uma funo
acadmica. Durante esse perodo, que se prolongou at sua mudana para
Paris em 1902, Durkheim escreveu duas de suas obras mais
importantes, De la division du travail social {1893; The division
of labour in society, 1964) e Le suicide ( 1897; Suicide, 1951).
Ele tambm fundou a influente revista LAnne Sociologique, que
continuou a editar depois de transferir-se para Paris. Como
professor na Sorbonne, de 1906 at sua morte em 1917, a influncia de
Durkheim sobre a sociologia francesa posterior e sobre a
antropologia foi enorme. Com seu sobrinho e sucessor intelectual
Marcel Mauss ele escreveu extensamente sobre povos no europeus; uma
obra notvel nesse sentido Classification primitive (1900; Primitive
classification, 1963), um estudo das origens sociais dos sistemas
de conhecimento, baseado em dados etnogrficos, especialmente da
Austrlia. Esse livro, que postula uma ligao intrnseca entre
classificao e estrutura social, ainda ponto de referncia para
estudos antropolgicos de classificao.
Diferentemente tanto de difusionistas como de evolucionistas,
Durkheim no tinha um interesse particular pelas origens. Ele
procurava mais explicaes sincrni- cas do que diacrnicas.
Como os difusionistas, mas diferentemente dos evolucionistas,
ele estava profundamente empenhado em fundamentar sua reflexo de
cunho antropolgico em dados observveis, em geral
quantificveis.jDiferentemente dos difusionistas, porm, ele estava
convencido de que as sociedades eram sistemas lgicos, integrados,
em que todas as partes eram dependentes umas das outras e
trabalhavam juntas para manter o todo. Nisso ele se aproximava dos
evolucionistas que, como ele, faziam analogias entre os sistemas
funcionais do corpo e a sociedade. De fato, Durkheim freqentemente
descre-__ via a sociedade como um organismo social, Como Tnnies e
Maine, mas diferente- mentede Marx e Morgan, Durkheim admitia uma
diviso dicotmica de tipos, sociais - deixando de lado toda essa
questo de estgios e evoluo, ele justapunha sociedades tradicionais
e modernas sem postular que as primeiras evoluiriam para as
segundas. As sociedades primitivas no eram sobreviventes de um
passado nebuloso nem passos em direo ao progresso, mas organismos
sociais que mereciam ser estudados por seu valor intrnseco.
Finalmente, diferentemente de Bastian e da escola Vlkerkunde,
Durkheim estava interessado, no com a cultura, mas com a sociedade,
no; com smbolos e mitos, mas com organizaes e instituies.
CO livro sobre a diviso do trabalho concentra-se no estudo da
diferena entre organizaes sociais simples e complexas. Na viso de
Durkheim, as primeiras se baseiam
-
na solidariedade mecnica. As pessoas apiam a ordem social
existente e umas s outras porque tm a mesma vida em comum dia aps
dia, realizam as mesmas tarefas e se percebem semelhantes. Nas
sociedades complexas, por outro lado, prevalece a solidariedade
orgnica^jkqui, sociedade e compromisso mtuo so mantidos pela
percepo que as pessoas tm umas das outras como diferentes, com
papis complementares. Cada uma realiza uma tarefa diferente que
contribui para o todo. Durkheim acrescenta que as duas formas de
solidariedade devem ser compreendidas como princpios gerais de
interao social mais do que como tipos sociais. A maioria das
sociedades tem elementos de ambas. Alm disso, a distino faz mais do
que postular um contraste entre ns mesmos e o outro. Tanto Durkheim
como muitos de seus sucessores, at Louis Dumont (ver captulo 6),
estavam impressionados com as complexidades da sociedade indiana
tradicional e sustentavam que o sistema de castas dessa sociedade
expressava uma forma avanada de complexidade orgnica.
A ltima obra de Durkheim, talvez a mais importante, Les Formes
lmentaires de la vie rligieuse (1915; The Elementary Forms
ofReligious Life, 1995), foi publicada dois anos antes de sua
morte. Aqui, ele tenta apanhar o sentido de solidariedade em si, da
fora mesma que mantm a sociedade. A solidariedade, afirma Durkheim,
surge das representaes coletivas - um termo polmico na poca e tambm
nos dias atuais. As representaes so imagens simblicas ou modelos de
vida social comuns a um grupo. Essas imagens se desenvolvem atravs
de relaes interpessoais, mas adquirem um carter objetivo
supra-individual. Elas constituem uma realidade totalizante,
virtual, socialmente construda que ecoa Kant e Hegel, e que para as
pessoas que vivem na sociedade so to reais quanto o mundo material.
Mas elas no so imagens objetivas desse mundo, e sim entidades
morais, com poder sobre as emoes. A religio se toma um objeto de
pesquisa importante para Durkheim, porque aqui, mais do que em
qualquer outra parte, que se estabelece e fortalece o apego
emocional dos indivduos a representaes coletivas. Esse apego se
forma principalmente no ritual, no qual a religio expressa atravs
da interao fsica e a solidariedade se toma uma experincia direta,
corporal. O ritual se separa da vida diria profana, traando um
crculo mgico protetor em tomo do seu prprio domnio sagrado,
proibido. Essa demarcao permite que a experincia do ritual seja
intensificada at que uma unio quase mstica seja alcanada. Trazendo
a lembrana dessa experincia de volta vida diria, ns lembramos como
o mundo realmente.
A religio e o ritual atraam de longa data o interesse dos
antroplogos, que os haviam documentado numa grande variedade de
formas empricas. O problema da compreenso da integrao social em
sociedades sem Estado fora uma preocupao importante (embora em
geral implcita) no evolucionismo. E a perplexidade diante
-
dos smbolos e costumes exticos dos outros foi o ponto de partida
de toda pesquisa antropolgica. Agora Durkheim parecia oferecer uma
ferramenta analitica que integraria todos esses interesses. O
extico podia ser compreendido como um sistema integrado de
representaes coletivas cuja funo era criar solidariedade social. E
a religio, o fenmeno mais mistifcante e extico de todos, acabou se
transformando no dnamo racional propulsor de todo esse processo.
J
Quando antroplogos ingleses aderiram a Durkheim no incio do
sculo vinte (captulo 3), eles descobriram um sem-nmero de aplicaes
da teoria durkheimiana ao estudo da religio, dos sistemas legais e
do prprio parentesco. Assim, Durkheim freqentemente descrito como o
fndador do estrutural-funcionalismo, embora este seja de fato uma
escola puramente britnica, desenvolvida por Radcliffe-Brown e seus
alunos. Mas Durkheim e a Escola Inglesa concordavam em que os
fenmenos sociais e as representaes coletivas que os acompanham eram
entidades com existncia objetiva. No seu Rgles de la mthode
sociologique {1895; Rides ofSocio- logical Method, 1982\Tburkheim
sustenta que os fenmenos sociais devem ser estudados como coisas
(comme des choses) - e descreve os indivduos mais como produtos da
sociedade do que como seus produtores^!eu contemporneo Max Weber, o
ultimo grande socilogo clssico com lugar no panteo antropolgico,
encarna uma posio contrria em vrios aspectos.
Weber
Max Weber cresceu no seio de uma famlia prussiana prspera e
autoritria, foi educado nas universidades de Berlim, Heidelberg e
Gttingen e projetou-se rapidamente no mundo acadmico alemo. Ele foi
nomeado professor com 31 anos de idade (em 1895) e no decorrer de
alguns anos publicou obras de erudio sobre temas -Jo diversos como
a queda do Imprio Romano e problemas agrcolas na Alemanha Oriental
do seu tempo. De sua me, educada numa famlia calvinista rgida, ele
herdou ideais de ascetismo e de disciplina rgida no trabalho, o que
ps em prtica em ?ua vida acadmica. Em 1898, depois de apenas trs
anos de atividade, ele sofreu um colapso mental, e s conseguiu
retomar ao trabalho cinco anos mais tarde. Imediatamente aps sua
recuperao, Weber escreveu o livro que muitos consideram o melhor:
Dieprotestantische Ethik iind der Geist der Kapitalismus
(1904-1905; The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism,
1976). Trata-se de uma obra de histria cultural e econmica que
analisa as razes da modernidade europia. Weber afirma que os
calvinistas (e outros cristos puritanos dos sculos dezesseis e
dezessete) formularam uma viso da vida que correspondia
proximamente imagem do capitalista perfeito. Os calvinistas
acreditavam que a vida humana era predestinada, que uns
-
poucos eram escolhidos por Deus para a salvao, mas que era
impossvel para os seres humanos compreender quem seria escolhido ou
por que as coisas deviam ser assim. O Deus de Calvino era frio e
intolerante. Ele exigia obedincia, mas no explicava suas razes.
Segundo Weber (e acreditamos que aqui ele possa estar falando por
experincia pessoal), essa ambigidade, associada a uma doutrina
implacvel, criou uma tenso insuportvel na vida dos calvinistas. Na
busca de solues, descobriram que s o trabalho rduo somado a um
estilo de vida frugal poderia aproxim-los da graa de Deus. Eles
eram estimulados a produzir resultados, mas proibidos de saborear
os frutos do seu esforo. Em vez disso, reinvestiam seus ganhos em
sua empresa, gerando uma espiral de lucros cada vez maiores para a
glria de Deus.
A questo de Weber no necessariamente que o calvinismo era a
causa do capitalismo. As razes da ascenso do capitalismo eram
muitas, e o reinvestimento no era de modo algum inveno de Calvino.
A questo era antes que o calvinismo (e num sentido mais amplo, o
protestantismo como um todo) formulou uma ideologia explcita
afinada com a tica capitalista.
Na Alemanha de Weber, as humanidades ou, literalmente, cincias
do esprito ('Geisteswissenschaften), gozavam de grande prestgio, e
a hermenutica era considerada um componente natural de uma educao
refinada. E foi a hermenutica, a cincia que tem como objetivo
compreender e interpretar o ponto de vista de uma cultura, pessoa
ou texto desconhecidos, que inspirou Weber a pesquisar as motivaes
por trs das aes, a maneira como determinado modo de agir podia
fazer sentido aos indivduos. Nessa perspectiva, Weber um dos
primeiros representantes do que mais tarde se chamaria de
individualismo metodolgico. Interessa-lhe no o sistema ou o todo,
mas o fato de que, quando indivduos fazem coisas, eles tm razes
para faz-las. Por isso, a sociologia de Weber est associada palavra
alem Verste- hen (compreenso). uma sociologia da compreenso e da
empatia que procura pr-se nos sapatos do outro, apreendendo os
motivos desse outro, as escolhas com que ele se defronta e as
respostas que seriam naturais para ele em face das circunstncias
concretas de sua vida. Em outras palavras, Verstehen implica um
foco sobre o que o mundo significa para os indivduos e que tipo de
significado ele tem.
O que o prprio Weber procurava compreender, porm, era acima de
tudo o poder. O poder foi um tema dos mais importantes tambm em
Marx (o relevo menor em Durkheim), mas ambos atribuam palavra
sentidos bem diferentes. Para Marx, a base do poder era o controle
dos meios de produo, e por isso estava associado propriedade. O
poder sofre contestao, subvertido, e a sociedade se transforma - at
aqui Marx e Weber concordavam perfeitamente. Mas de acordo com Marx
a mudana no surge de indivduos que buscam valores e se esforam por
objetivos, mas
-
de conflitos estruturais de movimento lento nos abismos do
sistema social. Marx via o poder como uma fora annima que esconde
sua face verdadeira atrs do vu da ideologia. Weber concentrava-se
nos efeitos das estratgias individuais para alcanar o poder.
Como seus contemporneos, os difsionistas, Weber se opunha a
esquemas tericos abstratos, distantes da experincia. O que
importava era a coincidncia particular, histrica. Weber no via nada
irrazovel em supor que poder e propriedade muitas vezes estavam
ligados, mas ele se recusou a generalizar alm disso. O poder,
conforme definido por ele, a habilidade de levar algum a fazer
alguma coisa que, de outro modo, ele no faria. Poder (ou
autoridade) legtimo o poder baseado num mnimo de coero fsica e
violncia, considerado como legal, moral, natural ou fato da vida
produzido por Deus, e aceito por uma populao que foi ensinada a
acreditar que as coisas so assim. Em sua segunda grande obra,
Wirtschaft und Gesellschaft (publicada postumamente em 1922;
Economy and Society, 1968), Weber descreve trs tipos ideais de
poder legtimo. O tipo ideal outro neologismo weberiano importante:
refere-se a modelos simplificados que podem ser aplicados ao mundo
real para revelar aspectos especficos do seu funcionamento - assim,
os tipos ideais em si no tm realidade emprica. Os trs tipos ideais
de poder legtimo de Weber podem ser descritos resumidamente desse
modo: autoridade tradicional o poder legitimado por ritual e
parentesco; autoridade burocrtica o poder legitimado pela
administrao formalizada; autoridade carismtica o poder do profeta
ou do revolucionrio de dominar as massas. Os trs tipos, ressalta
Weber, podem muito bem coexistir numa mesma sociedade. Os dois
primeiros tipos parecem assemelhar-se s dicotomias
primitivo/moderno propostas por Maine, Tnnies ou Durkheim. O
terceiro tipo, porm, uma inovao. Ele demonstra que Weber, nos
ltimos anos de sua vida, havia lido Nietzsche e Freud, dois
pensadores contemporneos de lngua alem que afirmavam vigorosamente
a primazia do indivduo. Weber esclarece que existe um tipo de poder
que imprevisvel e individual e que se baseia na capacidade de seduo
do indivduo excepcional mais do que na propriedade (Marx) ou em
normas estveis (Durkheim).
Assim, para Weber, a sociedade um esforo mais individual e menos
coletivo do que para Marx ou Durkheim. A sociedade no , como em
Durkheim, uma ordem moral dada de uma vez por todas. Tambm no ,
como em Marx, produto de foras coletivas ponderosas que os
indivduos no podem compreender nem influenciar. A sociedade uma
ordem ad hoc gerada quando diferentes pessoas com diferentes
interesses e valores se encontram, discutem e tentam (em ltima
anlise pela fora) convencer umas s outras e chegam a alguma espcie
de acordo. Dessa forma, com-
-
petio e conflito so para Weber fontes potenciais de mudana
construtiva. Aqui ele concorda com Marx e se ope a Durkheim, que
admitia que mudana e decadncia eram praticamente sinnimos. Mas em
Weber conflitos no so, como em Marx, vastos e impessoais, mas
provocados por indivduos. Assim, enquanto Marx e Durkheim
desenvolveram, cada um, um tipo diferente de coletivismo
metodolgico, que estuda a sociedade principalmente como um todo
integrado, Weber apresentou um individualismo metodolgico para o
qual as sociedades podiam ser confusas, incoerentes e
imprevisveis.
A influncia do legado de Weber sobre a antropologia foi menos
direta do que a de Durkheim, ele prprio instrumental na criao da
moderna antropologia francesa. Embora Weber se tomasse rapidamente
um representante fundamental na sociologia internacional, seu
impacto sobre a antropologia ocorreu em grande parte depois da II
Guerra Mundial. um testemunho ao seu grande escopo como terico que
antroplogos de orientaes to diferentes como o hermeneuta Clifford
Geertz e o individualista metodolgico Fredrik Barth sejam
profundamente devedores a Weber, embora por razes diferentes.
Em tomo da virada do sculo vinte socilogos continentais estavam
envolvidos num discurso candente sobre questes de teoria social,
atingindo nveis de sofisticao difceis de ser alcanados por
antroplogos. Em nossos dias, os antroplogos citam Marx, Durkheim e
Weber com freqncia muito maior do que citam Morgan, Bastian ou
Tylor, que em pouco tempo seriam realmente desacreditados pelos
seguidores de Durkheim. Num curto perodo de tempo, o impacto de
Durkheim abalaria profundamente a antropologia, enquanto Weber e
Marx continuavam envoltos em sombras, s aparecendo como influncias
importantes depois da II Guerra Mundial.
No obstante, a herana da antropologia do sculo dezenove mais
rica do que em geral se supe. O evolucionismo nunca desapareceu
completamente e teve vrios proponentes influentes no sculo vinte.
Como apontamos acima, o difusionismo ainda uma fora a ser levada em
considerao. Muitos conceitos subsistiram e continuam sendo
adotados: a distino de Maine entre contrato e status, a definio de
cultura de Tylor e as formas culturais incipientes de Bastian so
todas sobreviventes (para usar um termo nativo) da antropologia
vitoriana. No entanto, s com os avanos descritos no prximo captulo
que a antropologia social e cultural entra em cena como a
conhecemos atualmente.
-
Quatro pais fundadores
Os longos anos do reinado da rainha Vitria, que comeou duas
dcadas depois do fim das Guerras Napolenicas e terminou com a
Guerra dos Beres na frica do Sul, foram um tempo de relativa paz e
prosperidade na Europa. At esse momento, os avanos tecnolgicos e as
inovaes cientificas haviam sido admirveis, os imprios coloniais
francs, britnico, alemo e russo haviam se expandido, a economia
fora reestruturada e crescera; houvera aumentos enormes de populao
e progressos importantes na democracia e na educao. Nas ltimas
dcadas do sculo dezenove, sob a liderana inquestionvel da
Gr-Bretanha, emergiu um mundo de intercmbio intenso (e explorao
global), de internacionalizao cultural (e imperialismo cultural) e
de enorme integrao poltica (muitas vezes na forma de colonialismo).
Nesse cenrio histrico, as teorias evolucionistas poderiam parecer a
expresso de um fato bvio da natureza. Os vitorianos viam sua
conquista do mundo como evidncia palpvel de que sua cultura era
mais evoluda que a de todos os outros.
No incio do sculo vinte esse otimismo sofreu fortes abalos e
pouco depois se dissipou com as atrocidades da I Guerra Mundial. A
teoria dos sonhos e do subconsciente de Sigmund Freud, publicada em
1900, e a teoria da relatividade geral (1905) de Albert Einstein
podem ser vistas como passagens simblicas para uma nova e mais
ambivalente etapa da modernidade. Essas teorias investiam contra a
prpria substncia do mundo vitoriano: Freud dissolveu o indivduo
livre e racional, o meio e o fim do progresso, em desejos
subconscientes e sexualidade irracional. Albert Einstein
desconstruiu a fsica, a mais abstrata das cincias empricas e
fundamento da inovao tecnolgica, em incerteza e fluxo. Em 1907,
Amold Schoenberg comps os primeiros compassos da msica dodecafnica
e Pablo Picasso comeou a fazer experimentos com a pintura no
representacional, ou abstrata. O Modernismo nasceu nas artes, um
movimento que - apesar de seu nome confuso - oferecia uma viso
ambivalente da verdade, da moralidade e do progresso. Na poltica,
os anarquistas procla-
-
mavam a destruio do Estado e as feministas exigiam o fim da
famlia burguesa. Menos de duas dcadas do incio do novo sculo, uma
guerra devastadora deixou a velha Europa em runas e a Revoluo Russa
estabeleceu uma nova, assustadora ou atraente verso do racionalismo
moderno. Foi nesse perodo turbulento de decadncia e renovao,
desiluso e novas utopias que a antropologia se transformou numa
cincia social moderna.
Um olhar retrospectivo revela que a histria da antropologia at
por volta de 1900 no transcorreu, definitivamente, segundo os
moldes da evoluo unilinear. Questes levantadas com convico por
pensadores iluministas e romnticos do sculo dezoito tardio foram
efetivamente ignoradas pelos antroplogos nas dcadas de 1800. Esse
descaso se aplica de modo especial aos problemas do relativismo e
da traduo cultural, que figurariam entre as questes essenciais da
antropologia ao longo de todo o sculo vinte. As importantes
descobertas na filologia comparada alem, particularmente a
inter-relao entre as lnguas indo-europias, foram transformadas em
especulaes inconsistentes nas mos de evolucionistas comparativos.
(Degenerao era o termo dos evolucionistas para isso.) Para os
autores deste livro, a antropologia do sculo vinte parece, em sua
orientao e atitude fundamental, mais afinada com o pensamento
liberal e tolerante do sculo dezoito do que com a postura
autoritria, conformista e evolucionista do sculo seguinte. Tambm
achamos significativo que tanto o sculo vinte como o sculo dezoito
foram pocas de guerra na Europa, enquanto o sculo dezenove, depois
de Napoleo, foi singularmente pacfico. Apesar de seus defeitos,
aprendemos do sculo dezenove o valor do raciocnio sistemtico,
indutivo, o valor dos modelos e tipos ideais que podemos projetar
no mundo real para assegurar sua forma.
A disciplina da antropologia como a conhecemos hoje
desenvolveu-se nos anos em tomo da I Guerra Mundial. Sem entrar em
polmicas, descreveremos seu desenvolvimento voltando nossa ateno
para quatro homens de destaque - dois na Inglaterra, um nos Estados
Unidos e um na Frana. H outras tradies nacionais e outros
estudiosos nos pases metropolitanos que pareciam to importantes
quanto esses na poca, mas que no deixaram descendncia intelectual
suficiente para ser tratados com a mesma deferncia aqui. Apenas com
uma viso retrospectiva oferecida pela passagem do tempo que podemos
avaliar a importncia histrica de eventos passados; a importncia
contempornea deles, porm, pode ter sido diferente. Lembre, por
exemplo, que Herbert Spencer foi o nico intelectual europeu de
notoriedade nas ltimas dcadas do sculo dezenove, do mesmo modo que
Henri Bergson foi o filsofo mais famoso nas primeiras dcadas do
sculo vinte. Atualmente, um sculo depois, nenhum dos dois
considerado um jogador na Academia da Primeira Diviso.
-
Os homens cuja obra constitui a espinha dorsal deste captulo
foram Franz Boas (1858-1942), Bronislaw Malinowski (1884-1942),
A.R. Radcliffe-Brown (1881 - 1955) e Mareei Mauss (1872-1950). Em
conjunto, eles realizaram uma renovao quase total de trs das quatro
tradies nacionais analisadas no captulo anterior - a americana, a
britnica e a francesa. Na quarta tradio, a alem, o difusionismo
conservou sua hegemonia. Momentos nefastos estavam reservados para
ela e para a tradio difusionista russa. Em pouco tempo, os livros
de Boas seriam queimados em Berlim, uma gerao de etngrafos russos
morreria no Gulag e, depois da II Guerra Mundial, alguns etnlogos
alemes seriam acusados de colaborao com os nazistas. Por essas e
outras razes as antropologias alem e russa desenvolveram-se
lentamente durante grande parte do sculo vinte e s raramente
comunicaram-se com as tradies predominantes. No entanto, Boas era
alemo e Malinowski polons, e como ambos levaram consigo um
conhecimento profundo da tradio alem quando emigraram para os
Estados Unidos e para a Inglaterra, a antropologia alem subsistiu
ao longo do sculo vinte, embora transplantada em formas
hbridas.
Os nossos quatro jogadores eram at certo ponto socialmente
marginalizados nos ambientes em que viviam. Mauss era judeu,
Radcliffe-Brown provinha de uma classe trabalhadora, Malinowski era
estrangeiro e Boas era estrangeiro e judeu. Talvez previsivelmente,
os quatro no tinham um programa comum. Havia diferenas metodolgicas
e tericas importantes entre as escolas fundadas por eles, traos das
quais podem ser encontrados ainda hoje na antropologia francesa,
inglesa e americana. No havia (e no h) fronteiras precisas, como
mostra com toda clareza a influncia de Durkheim sobre a
antropologia britnica. Paralelamente, havia contatos pessoais
significativos entre as divises, como testemunha o acalorado debate
entre Rivers e o colaborador de Boas, Kroeber, sobre o uso de
modelos psicolgicos e sociolgicos na pesquisa antropolgica.
Finalmente, os nossos quatro heris tinham em comum o legado
intelectual do sculo dezenove. O consenso quase universal agora era
que o evolucionismo havia fracassado. Mas havia tambm um
reconhecimento silencioso de que os evolucionistas, de Morgan a
Tylor, haviam afinal definido alguns parmetros bsicos da
disciplina.
A transio para uma cincia social moderna, em grande parte
no-evolucionis- ta, ocorreu de modos diferentes nos trs pases. Na
Gr-Bretanha, a ruptura com o passado foi radical. Radcliffe-Brown e
Malinowski proclamaram uma revoluo intelectual e criticaram
acerbamente alguns dos seus professores. Nos Estados Unidos e na
Frana houve uma continuidade maior. Nos Estados Unidos Boas foi o
mentor respeitado por todos e o ponto de referncia da antropologia
acadmica ao longo de toda a transio. Na Frana Mauss simplesmente
continuou a obra de seu tio depois
-
da morte deste, mas enfatizando o estudo de povos no-europeus
muito mais do que Durkheim o fizera.
s vezes, antroplogos sociais ingleses, principalmente, sustentam
que Radclif- fe-Brown e Malinowski, mais ou menos
independentemente, criaram a antropologia moderna. Essa talvez
fosse a impresso na metade do sculo, quando a antropologia
americana se subdividira em muitas reas especializadas e os alunos
de Mauss ainda no haviam se destacado. Em contraste, a cincia do
parentesco (kinshipology) (captulos 4 e 5) britnica parecia
firmar-se sobre um mtodo criado por Malinowski e uma teoria
desenvolvida por Radcliffe-Brown, consolidando-se como uma cincia
da sociedade.
Boas e o particularismo histrico
Em 1886 Franz Boas, ento com 28 anos de idade, viu-se em Nova
York. Ele estava a caminho da Alemanha, destinado a uma carreira
acadmica de sucesso. Ele j era doutorado por Kiel, exercia uma funo
acadmica em Berlim e havia participado de vrias expedies
etnogrficas no norte e no oeste do Canad. Boas, porm, optou por
permanecer em Nova York, possivelmente porque essa era uma cidade
onde ser judeu no constitua uma desvantagem maior; certamente, em
parte, porque ele estaria mais perto de povos que o fascinavam, os
ndios norte-americanos e os inutes. Em Nova York, Boas trabalhou
inicialmente como editor de uma revista cientfica, depois como
professor numa pequena universidade. Em 1899 ele se tomou professor
de Antropologia na prestigiosa Universidade de Colmbia, em Nova
York, onde permaneceu at sua morte em 1942. Durante os 43 anos
intermedirios, Boas seria professor e mentor de duas geraes de
antroplogos americanos. A mensagem que passava a seus alunos era
simples. Ele havia estudado com professores alemes que eram cticos
com relao ao evolucionismo e viam o difusionismo com simpatia. Como
muitos outros de sua gerao, ele estava convencido de que o
desenvolvimento da teoria geral dependia totalmente de uma base
emprica slida. Assim, a principal tarefa do antroplogo consistia em
coletar e sistematizar dados detalhados sobre culturas
particulares. S ento seria possvel dedicar-se a generalizaes
tericas. Nesses e em outros aspectos Boas era um legtimo filho do
humanismo romntico alemo segundo a interpretao de Bastian.
Na Inglaterra, a antropologia seria remodelada em antropologia
social nos anos entre as duas grandes guerras - uma disciplina
comparativa, de base sociolgica, com conceitos nucleares como
estrutura social, normas, estatutos e interao social. Nos Estados
Unidos, a disciplina se tomou conhecida como antropologia
cultural.
-
Aqui, a definio ampla de cultura enunciada por Tylor, substituda
na Inglaterra por um conceito de sociedade, foi mantida. No sentido
americano (e tyloriano), cultura um conceito muito mais amplo do
que sociedade. Se a sociedade constituda de normas sociais,
instituies e relaes, a cultura consiste em tudo o que os seres
humanos criaram, inclusive a sociedade - fenmenos materiais (um
campo, um arado, uma pintura...), condies sociais (casamento,
famlias, o Estado...) e significado simblico (lngua, ritual,
crena...). A antropologia - a cincia da humanidade - dizia
respeito, bem literalmente, a tudo o que fosse humano. Boas admitia
que ningum teria condies de contribuir de modo igual com todas as
ramificaes dessa matria (embora ele prprio fizesse tentativas
hericas para chegar a esse ponto) e por isso defendia uma abordagem
de quatro campos que dividia a antropologia em lingstica,
antropologia fsica, arqueologia e antropologia cultural. Os alunos
estudavam contedos dos quatro campos e mais tarde se especializavam
naquele que mais os atraa. A especializao, portanto, fazia parte da
antropologia americana desde o incio, ao passo que tanto na
Inglaterra como na Frana prevaleceu uma abordagem generalista.
Reflexo disso que, j na dcada de 1930, existiam grupos de pesquisa
constitudos que se especializavam, por exemplo, em lnguas
norte-americanas nativas.
Os prprios escritos de Boas abrangiam um campo vasto, embora com
uma tendncia evidente para a antropologia cultural.
Ele havia realizado pesquisas de campo individuais entre os
inutes e os kwaki- utls da costa noroeste americana, mas tambm
trabalhava com assistentes que coletavam materiais sobre muitos
outros povos indgenas. Durante os trabalhos de campo ele
freqentemente recorria colaborao de membros lingisticamente
proficientes da tribo em estudo, os quais registravam, discutiam e
interpretavam as palavras dos informantes. Alguns desses
colaboradores, especialmente o prodigioso George Hunt, co-autor de
vrios livros de Boas sobre os kwakiutls, s recentemente foram
reconhecidos como autoridades de pleno direito em antropologia.
O trabalho de campo realizado por Boas era em geral uma
atividade de grupo, no pressupondo um indivduo sozinho sujeito a
uma imerso contnua e prolongada no campo. A permanncia no local era
quase sempre curta. Normalmente ela era prolongada em outro
sentido, porm, ou seja, no sentido de que as idas ao campo eram
repetidas muitas vezes ao longo dos anos, ocasionalmente envolvendo
pessoas diferentes, todas atuando no mesmo projeto (ver Foster et
al. 1979). Essa estratgia metodolgica talvez fosse perfeitamente
natural, visto que, nos Estados Unidos, o campo estava prximo, e no
no outro lado do globo, como na Inglaterra.
Boas era menos avesso s reconstrues histricas do que seus
contemporneos britnicos mais jovens (ver p. 54-62). Com efeito,
manteve a antropologia fsica e a
-
arqueologia como partes do empreendimento antropolgico holstico.
No obstante, ele concordava com a crtica britnica ao evolucionismo.
Em substituio ao evolucio- nismo, props o princpio do
particularismo histrico. Como sustentava que cada cultura continha
em si seus prprios valores e sua prpria histria nica, em alguns
casos poderia ser reconstruda pelos antroplogos. Ele via valor
intrnseco na pluralidade das prticas culturais no mundo e era
profundamente ctico com relao a qualquer tentativa, poltica ou
acadmica, de interferir nessa diversidade. Ao escrever sobre a dana
kwakiutl, por exemplo, ele diz que a dana um exemplo da relao da
cultura com o ritmo, e por isso ela no pode ser reduzida a uma mera
funo da sociedade (como pareciam preferir os antroplogos sociais
ingleses). Em vez disso, preciso perguntar o que esse ritmo para a
pessoa que dana, e a resposta s pode ser encontrada examinando os
estados emocionais que geram e so gerados pelo ritmo (Boas
1927).
Boas foi um dos primeiros e mais incansveis crticos do racismo e
da cincia inspirada por ele - esta contava com defensores entre o
establishment da antropologia vitoriana. Esses antroplogos haviam
afirmado que cada raa tinha um potencial inato distintivo para
desenvolvimento cultural. Boas respondeu que a cultura era sui
generis - sua prpria fonte - e que diferenas inatas no podiam
explicar o volume impressionante de variao cultural que os
antroplogos j haviam documentado. O termo rela- tivismo cultural, a
que nos referimos vrias vezes acima, foi efetivamente cunhado por
Boas. Mesmo atualmente, a pergunta que muitos fazem se o
relativismo deve ser compreendido como um imperativo metodolgico ou
moral, e a resposta mais freqente que o relativismo cultural um
mtodo. Para Boas isso sem dvida soaria estranho, pois mtodo e
moralidade eram para ele dois lados da mesma moeda.
Boas dominou a antropologia americana durante quatro dcadas, mas
no deixou nenhuma grande teoria ou obra monumental que seja lida
pelas geraes seguintes de antroplogos. A principal razo disso
talvez seja sua desconfiana das generalizaes grandiosas. Durante
seus estudos com Bastian ele fora advertido contra os perigos da
teorizao vazia, e em seus escritos ele procurou identificar as
circunstncias nicas que haviam gerado culturas particulares, em vez
de ir diretamente a concluses gerais. Ele tambm era cauteloso com o
uso da comparao, que com muita facilidade estabelecia semelhanas
artificiais entre sociedades que eram fundamentalmente diferentes.
Boas era assim um individualista metodolgico autntico, no sentido
de que procurava a instncia particular e no o esquema geral, o que
explica seu ceticismo irredutvel com relao a Durkheim.
Quase todos os antroplogos americanos importantes da gerao
seguinte (com algumas excees notveis, s quais voltaremos) foram
alunos de Boas. Entre eles estavam Alfred L. Kroeber (1876-1960),
que criou o Departamento de Antropologia
-
em Berkeley, com a colaborao de Robert H. Lowie (1883-1957),
historiador cultural e seu colega de longa data; Edward Sapir
(1884-1939), fundador do Departamento de Antropologia em Yale e da
escola de etnolingstica; Melville Herskovits 11895-1963), fundador
dos estudos afro-americanos nos Estados Unidos e professor no
Departamento de Antropologia na Northwestern University; Ruth
Benedict (1887-1948), sucessora de Boas na Universidade de Colmbia
e organizadora da escola cultura e personalidade; e Margaret Mead
(1901-1978) (the runt of the litter) cue continuou a obra de
Benedict e possivelmente se tomou a figura pblica mais influente na
histria da antropologia.
Como mostra essa lista, a antropologia cultural proposta por
Boas evoluiu em diversas direes durante sua prpria vida (captulo
4). Outra variao ocorreu na dcada de 1950, quando Morgan foi
redescoberto e quando os alunos de Radclif- :e-Brown em Chicago
desenvolveram sua prpria verso da antropologia social de estilo
britnico. No obstante, o legado de Boas continua no mago da
antropologia americana at hoje.
Malinowski e os nativos das Ilhas Trobriand - )
Em 1910,24 anos depois que Boas tomou sua importante deciso de
permanecer -os Estados Unidos, um jovem intelectual polons mudou-se
de Leipzig para Londres. Bronislaw Malinowski havia se doutorado em
fsica e filosofia alguns anos antes em Cracvia, parte do Imprio
Austro-Hngaro (agora pertencente Polnia). Em Leipzig ele havia
estudado psicologia e economia, e por influncia do psiclogo social
Wilhelm Wundt (1832-1920) ele se convencera de que a sociedade
devia ser entendida holisticamente, como uma unidade constituda de
partes entrelaadas, e que a anlise devia ser sincrnica (no
histrica). Nesse mesmo perodo Malinowski .eu The Golden Bough e
mudou-se para estudar com Seligman na London School of Economics,
ento j famosa por oferecer boas condies para trabalho de campo em
regies exticas.
Quatro anos mais tarde, Malinowski realizou um estudo de campo
de seis meses sobre uma ilha na costa da Nova Guin, por ele
considerado um fracasso. Depois de breve estada na Austrlia,
ocupada com reflexes sobre seus mtodos, ele partiu no-
amente, dessa vez para as Ilhas Trobriand, localizadas na mesma
regio, onde permaneceria por quase dois anos, entre 1915 e 1918.
Finda a guerra, ele voltou para a Europa para escrever Argonauts of
the Western Pacific (Malinowski 1984 [1922]), possivelmente a obra
mais revolucionria na histria da antropologia. Com o sucesso de
Argonauts, ele atraiu para a LSE um pequeno grupo de alunos muito
bem prepara
-
dos e entusiasmados, os quais, em sua maioria, deixariam suas
marcas na disciplina nas dcadas seguintes. Malinowski morreu nos
Estados Unidos, num momento em que realizava estudos sobre mudana
social entre camponeses ndios no Mxico.
Argonauts..., a primeira grande obra de Malinowski, continua
sendo tambm a mais famosa. O livro foi prefaciado por Sir James
Frazer, que no poupou elogios ao jovem polons, claramente
inconsciente de que, num sentido acadmico, ele estava assinando sua
prpria sentena de morte. O volumoso livro escrito com fluncia. Ele
nos conduz por uma anlise vigorosamente concentrada e extremamente
detalhada de uma nica instituio entre os trobriandeses, o sistema
de comrcio kula, em que objetos de valor simblico circulam por uma
extensa rea entre as ilhas da Mela- nsia. Malinowski descreve o
planejamento de expedies, as rotas seguidas, os ritos e prticas a
elas associados, e estuda as relaes entre o comrcio kula e outras
instituies dessas ilhas, como liderana poltica, economia domstica,
parentesco e posio social. Contemporneo e conterrneo do romancista
Joseph Conrad, Malinowski produziu informaes do corao das trevas,
na forma de imagens matizadas e naturalistas dos trobriandeses, os
quais no fim emergem no como espetaculares, exticos, nem como
radicalmente diferentes dos ocidentais, mas simplesmente como
diferentes.
H quem diga que Malinowski ficou praticamente confinado nas
Ilhas Trobriand durante a I Guerra Mundial, uma vez que, como
cidado do Imprio Habsburgo, ele era tecnicamente inimigo da
Inglaterra. Essa uma distoro dos fatos (Kuper 1996: 12). Malinowski
no era um romntico confuso que descobriu por acaso o princpio do
trabalho de campo moderno. Seu aluno, Raymond Firth (1957), o
descreve como um etngrafo meticuloso e sistemtico, com uma
capacidade excepcional para aprender lnguas e uma faculdade de
observao extraordinria. Outro equvoco comum dizer que Malinowski
inventou o trabalho de campo. Como vimos, expedies etnogrficas eram
comuns muito antes dele, e algumas, como a expedio a Torres, haviam
seguido padres metodolgicos rigorosos. O que Malinowski inventou no
foi o trabalho de campo, mas um mtodo de trabalho de campo
especfico, que ele denominou observao participante. A idia simples,
mas revolucionria, que inspirava esse mtodo consistia em viver com
as pessoas que estavam sendo estudadas e em aprender a participar o
mximo possvel de suas vidas e atividades. Para Malinowski, era
essencial permanecer tempo suficiente no campo para familiarizar-se
totalmente com o modo de vida local e capacitar-se a usar o idioma
local como instrumento de trabalho. Intrpretes, entrevistas formais
e distanciamento social no teriam mais razo de ser. Malinowski
morou sozinho numa cabana no meio de uma aldeia trobriandesa por
meses a fio - embora mantivesse seu temo tropical e seu chapu
imaculadamente brancos
-
e apesar de seus dirios publicados postumamente (Malinowski
1967) revelarem que ele muitas vezes sentia saudades de casa e
passava por momentos de desnimo, aborrecimento e cansao por causa
dos nativos.
A observao participante de Malinowski estabeleceu um novo padro
para a pesquisa etnogrfica. Todo fato, mesmo o mais insignificante,
devia ser registrado. Na medida em que fosse praticamente possvel,
o etngrafo devia participar do fluxo contnuo da vida do dia-a-dia,
evitando questes especficas que pudessem desviar o curso dos
eventos e sem restringir a ateno a partes especficas da cena. Mas
Malinowski no se limitou a mtodos no-estruturados. Ele coletou
dados precisos sobre produo de inhame, direitos territoriais, troca
de presentes, padres de comrcio e conflitos polticos, entre outras
coisas, e realizou entrevistas estruturadas sempre que julgava
necessrio. O que ele no fez de forma significativa foi
contextualizar os tro- briandeses dentro de um contexto histrico e
regional mais amplo. Nisso, ele ocupa uma posio diametralmente
oposta do seu colega francs, Mareei Mauss, que era um especialista
sobre o Pacfico, com um conhecimento mais vasto e mais profundo da
histria cultural da regio do que Malinowski, mesmo sem nunca ter
estado l.
Praticamente tudo o que Malinowski publicou, dos Argonauts... em
diante, baseou-se extensamente nos dados coletados nas Ilhas
Trobriand. Ele escreveu sobre economia e comrcio, casamento e sexo,
magia e vises de mundo, poltica e poder, necessidades humanas e
estrutura social, parentesco e esttica. Suas descries ocupam vrias
centenas de pginas e demonstram conclusivamente o potencial do
trabalho de campo intensivo e prolongado. O mero nmero de
instituies, crenas e prticas tro- briandesas mostrou alm de
qualquer dvida que uma sociedade primitiva, simples, quase na base
da escada evolucionria, era de fato um universo altamente complexo
e multifacetado em si mesmo. De forma mais convincente do que
qualquer argumento terico, a obra de Malinowski revelou o absurdo
de um projeto comparativo que se propusesse a comparar
caractersticas individuais. De agora em diante, contexto e
inter-relaes seriam qualidades essenciais de qualquer explicao
antropolgica.
De modo geral, os antroplogos posteriores a Malinowski receberam
suas concepes tericas com menos entusiasmo do que seus mtodos e sua
etnografia. Sua posio terica era basicamente ecltica, mas seguindo
os padres correntes ele denominou seu programa de funcionalismo.
Todas as prticas e instituies sociais eram funcionais no sentido de
que se ajustavam num todo operante, ajudando a mant-lo.
Diferentemente de outros fncionalistas que seguiam Durkheim, porm,
para Malinowski o objetivo ltimo do sistema eram os indivduos, no a
sociedade. As instituies existiam para as pessoas, no o contrrio, e
eram as necessidades das pessoas, em ltima anlise suas necessidades
biolgicas, que constituam o motor
-
primeiro da estabilidade social e da mudana. Isso era
individualismo metodolgico sob outro disfarce, e num clima acadmico
coletivista dominado pelos durkheimia- nos, o programa no teve boa
acolhida. Durante algumas dcadas depois de sua morte a estrela de
Malinowski continuou seu ocaso, at que a desiluso com a Grande
Teoria tomou conta de todos durante a dcada de 1970, fato que o
levou reabilitao em comunidades antropolgicas nos dois lados do
Atlntico - s custas do seu colega e rival Radcliffe-Brown.
Malinowski chamou a ateno para o detalhe e para a importncia de
captar o ponto de vista do nativo, e parte de sua reao contra seus
predecessores imediatos nasceu de um profundo ceticismo com relao a
teorias ambiciosas. Percebemos aqui a semelhana com Boas, reflexo
da educao alem de ambos. Malinowski se distinguia de Boas, porm, em
sua relutncia em envolver-se com qualquer forma de reconstruo
histrica. Com Radcliffe-Brown ele empreendeu uma campanha an-
tievolucionria - e anti-histrica - to bem-sucedida que o tema ficou
mais ou menos proibido na antropologia britnica durante quase meio
sculo.
Malinowski se autodenominava funcionalista, mas suas idias
diferiam fundamentalmente do programa rival do
estrutural-fimcionalismo. Para Malinowski, o indivduo era o
fundamento da sociedade. Para os estruturais-funcionalistas
durkhei- mianos o indivduo era um epifenmeno da sociedade e de
pouco interesse intrnseco - o que interessava era inferir os
elementos da estrutura social. Essas duas linhagens da antropologia
social britnica - funcionalismo biopsicolgico e estrutural-funcio-
nalismo sociolgico - evidenciam uma tenso bsica na disciplina entre
o que mais tarde foi chamado de agncia e estrutura. O indivduo tem
agncia no sentido de que ele um criador da sociedade. A sociedade
impe estrutura sobre o indivduo e limita suas opes. Como mostra
Giddens (1979), os dois pontos de vista so complementares. Mas isso
no foi percebido pela antropologia britnica do perodo entre as duas
grandes guerras. O funcionalismo de Malinowski e o
estrutural-funcionalismo de Radcliffe-Brown foram vistos como
diametralmente opostos.
A cincia natural da sociedade de Radcliffe-Brown
Alfred Reginald Radcliffe-Brown (1881-1955) pertencia gerao de
Malinowski, mas o seu contexto familiar no era cosmopolita e
intelectual, e sim da classe operria inglesa. Ele comeou sua
carreira acadmica apenas como A.R. Brown. Levantando fundos com sua
famlia, ele iniciou estudos de medicina em Oxford, mas foi
incentivado por seus professores, especialmente Rivers, a mudar-se
para Cambridge e estudar antropologia. Ele realizou trabalho de
campo de 1906-1908, nas Ilhas Andaman, a leste da ndia, e publicou
um relatrio de campo, muito bem recebido, no estilo difusionista;
em pouco tempo, porm, ele passaria a seguir uma linha
-
terica diferente. Pouco depois dessa publicao, Radcliffe-Brown
leu a obra-prima ie Durkheim, The Elementary Forms ofReligious
Life. Ele ento ministrou uma longa srie de palestras sobre Durkheim
em Oxford, e quando sua monografia, Anda- man Islanders, foi
finalmente publicada em 1922, mais do que qualquer outra coisa ela
parecia uma demonstrao admirvel de sociologia durkheimiana aplicada
a mater