ANTONIO MANUEL HESPANHA 0 CALEIDOSCÓPIO DO DIREITO O DIREITO E A JUSTIÇA NOS DIAS E NO MUNDO DE HOJE (2. a edição, reelaborada) «Pour les juristes aussi, la question se pose: savent-ils de quoi ils parlent ou parlent-ils de ce qu'ils savent?», Christian Atias, Epistémologie du droit, Paris, PUF, 1994, 29. ALMEDINA
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A N T O N I O MANUEL HESPANHA
0 CALEIDOSCÓPIO DO DIREITO
O D I R E I T O E A JUSTIÇA
NOS DIAS E NO MUNDO DE H O J E
(2.a edição, reelaborada)
«Pour les juristes aussi, la question se
pose: savent-ils de quoi ils parlent
ou parlent-ils de ce qu'ils savent?»,
Christian Atias, Epistémologie du droit,
Paris, PUF, 1994, 29 .
ALMEDINA
1. Es tadual i smo e antiestadualismo
A intenção deste primeiro capítulo é destacar que a
maior parte daquilo que se costuma expl icar nas
comuns introduções a o direito - a começar peias que
fazem parte dos programas do ensino secundário - é
o resultado de u n i modelo de pensar o direi to e os
saberes jur ídicos que se estabeleceu, há cerca de 2 0 0
anos, quando a general idade dos juristas pensava que
o direito tinha que ser uma criação do Estado, um reflexo
da sua soberania, um resultado da sua vontade. E m par te ,
isto era u m a consequência da implantação dos mode los
democráticos de Estado, em que a vontade popula r se
expr imia sob a forma das leis emanadas do Es t ado .
Mas esta verdade, nas condições em que foi po l í t i ca
e institucionalmente realizada, tinha pés de b a r r o .
Por um lado, a democracia foi, no séc. X I X , um r e g i m e
muito elitista, part icipado po r muito poucos c idadãos .
O alheamento da general idade das pessoas em r e l a ç ã o
à vida política e ao direito do Estado era muito g r a n d e
e, por isso mesmo, outras formas de direito, o u t r o s
direitos, desligados do Estado, surgiam e s p o n t a n e a
mente na comunidade, por vezes como sobicvi\ èiu i.is
de antigas normas sociais ge ra lmen te aceites, ou t r . i s
2<i I C A l i l I >< >S< :( )IM( ) l)() DIKI I TO...
vezes c o m o produto cia doutrina de unia elite de
juristas q u e t ambém não esquecera nem as suas dou
trinas t r a d i c i o n a i s , nem o papel dirigente cjue ocupara
na s o c i e d a d e de Antigo Reg ime 9 . Por outro lado, a
d e m o c r a c i a - a fim de reduzir esta dispersão da tareia
fundamen ta l de definir um novo direito - procurou
impor um de t e rminado processo para emitir o direito.
As razões p a r a se prescrever um processo regulado de
lazer o d i r e i t o eram justificadas do ponto de vista
d e m o c r á t i c o , mas a sua complexidade, artificialidade
e demora a i n d a aumentavam mais a distância entre o
direito e o s cidadãos.
A c o n s e q u ê n c i a desta desconfiança em relação ao
direito do E s t a d o foi uma revalorização dos elementos
não estatais d o direito - a doutr ina dos juristas, o
costume e essas formas espontâneas e dinâmicas de
regular q u e surgiam da vida de todos os dias.
Nesta r e a c ç ã o contra o direito do Fstado convergi
ram escolas de pensamento e intenções políticas muito
diversas. U n s , pura e s implesmente, tinham em muito
pouca con ta os princípios democrát icos e procuravam
substituir o direi to das assembleias representativas por
um direito aristocrático, oriundo da elite dos juristas
ou das prát icas governativas das altas burocracias do
Kstado. Foi o que aconteceu na Alemanha na última
fase do II Impér io , sob a batuta do chanceler Bismarck
e com a caução de uma elite respeitadíssima de juristas,
9 Cf. A. M. Hespaii l ia, (Uiltura jurídica europeia. Síntese de um
milénio, Lisboa, Ki i ropa-Amér ica , 2 0 0 3 .
IMU.I.IMINARKS | 27
que haveriam d e marcar o s abe r jur íd ico durante
décadas (a c h a m a d a Pandedística, Pandektisitk, Pan-
dektenwissenschafi). Outros, partidários de uma arquitec
tura liberal da sociedade, entendiam que a democracia
era, sobretudo, a abs tenção do Estado, o Estado mí
nimo (Etat-veilleur de nuit, Etat-gendarme), com um
direito que cor respondesse a esta ausência do Estado
e ao mero livre curso das vontades individuais. Outros,
ainda, levando mais sério todo o espectro de direitos
não oficiais, valorizavam as instituições criadas pela
vida, vendo nestas um verdadeiro direito do povo,
liberto dos cons t rangimentos do direito oficial ou
doutrinário, o que - valha a verdade - os transformava
nas ovelhas negras da comunidade dos jur is tas bem
pensantes. Out ros , finalmente, en tenderam que o
direito, longe de se deixar enlear na legislação dos
par lamentos ou dos governos po r eles eleitos, devia
seguir a vontade ou o interesse do povo, definido por
dirigentes ou partidos que se autodefíniam c o m o iden
tificados com o próprio "povo", fosse este en tendido
c o m o uma Nação histórica, como uma raça predes
tinada ou c o m o uma classe que, tendo sido explorada ,
era agora d i r igente .
Durante os últimos 2 0 0 anos, este movimento anti-
estatalista não deixou de se fortalecer, insistindo alter
nadamen te nos seus vários argumentos. O s regimes
políticos autoritários dos meados do séc. X X (fascismos,
nazismo, bolchevismo), identificando o d i re i to com
leis e com a autoridade totalitária do Kstado, Coram
apenas a cere ja no topo do bolo. A partir daí , mesmo
i í H I (lAI.KlI)í )S( :< )IM() l)() DIKl.no.. .
< I c p o i s de se terem restabelecido as democracias na
m a i o r parte da Europa ocidental, uma concepção
l e g a l i s t a do direito passou a ser suspeita de t razer
c o n s i g o novos riscos de absolutismo legalista e de
t o t a l i t a r i s m o do Estado.
Aparte isto, o certo é que as sociedades ocidentais
s e tornavam cada vez mais dinâmicas e diferenciadas.
N a s últimas décadas, a imigração acentuou ainda mais
o p lura l i smo destas sociedades, ao trazer para dentro
d e l a s comunidades com sentimentos jurídicos muito
d i fe renc iados , nomeadamente em relação aos padrões
usua i s na Europa central-ocidental e nas populações
b r a n c a s dos Estados Unidos. Esta erupção do plura
l i s m o étnico-cultural, a que o direito oficial tem res
p o n d i d o de forma muito deficiente (entre o desconhe
c i m e n t o e um integracionismo violento), foi ainda
a c o m p a n h a d a pela crescente importância atribuída a
fo rmas alternativas de vida, cujo reconhec imento era
ex ig ido pelos movimentos feministas, juvenis, ecologis
tas ou sexualmente dissidentes. Cada um destes movi
mentos trazia consigo propostas novas de viver a vida
e, c o m elas, novos ideais de just iça e novas normas de
compor t amen to . O próprio cidadão c o m u m , cada vez
mais consciente dos seus direitos e ex ig indo ser bem
governado e tratado pelas agencias públicas e privadas
de aco rdo com "boas práticas", ensaia a construção
autónoma de "direitos de proximidade", que instituam
princípios de relacionamento correspondentes aos sen-
t intentos de jus t iça da generalidade das pessoas, inde
pendentemente da sua consagração na legislação esta
2 3 L a w r e n c e M. F r i e d m a n , Law in America / . . . / , El.
individualismo agressivo da cultura local, temerosa da
concen t r ação do poder , desconfiada do Kstado
e propícia a uni governo disperso e fragmentado2'*.
A grande dificuldade que , a este propósito, se põe
é a de que, ao passo que a cultura constitucional a m e
ricana, além das característ icas peculiares antes referi
das, se fundou num patr inmnio moral (/.c, quanto aos
[bons] costumes) la rgamente partilhado e pôde, neste
ambien te (boje, em cr ise) , consolidar um catálogo cie
direitos constitucionais razoavelmente unânime, a cul
tura constitucional e jurídica europeia foi muito mais
variada e divergente, não tendo podido chegar a
posições unanimes quanto a estes direitos. Km virtude
disso, é muito menos claro, para um jurista europeu,
definir o elenco e pr ior idade relativa dos direitos
consti tucionais sem o recurso àquilo que as consti
tuições e as leis efect ivamente consignaram (ou incor
poraram na ordem jur íd ica de cada país) e, por isso
mesmo, o risco de arbitrariedade e de impressionismo
de um direito baseado em direitos pré-constituc ionais
é, aqui na Kuropa, se não muito maior, pelo menos
mui to mais presente nos espíritos.
O enunciado anter ior de perguntas (e de respostas)
já mostra que responder e perguntar têm a ver entre
si. Ou seja, que, se se conceber o direi to de certo
modo , daí flui uma série de questões pertinentes
quanto ao seu método, enquanto outras não lêin lugar
PRKLIMINARKS | M)
nesse contexto . Alterado o grande modelo (o paradig
ma) segundo o qual o direito é encarado, certas q u e s
tões submergem, enquanto outras, novas, se manifes
tam. O saber jurídico mostra, assim, um perfil histórico
que não evolui em linha recta , segundo uma l inha
evolutiva sem rupturas. Pelo contrário, segue um r u m o
inconstante, explorando, segundo estratégias mui to
variadas, um capital de regras e de problemáticas que,
ao longo de mais de dois mil anos, não variou tanto
c o m o isso- 1 .
Por isso é que é indispensável ter em conta, ao
analisar as "proposições técnicas" do direito, os gran
des modelos de entender o direito. Pois tais "propo
sições técnicas" variam de sentido consoante o con
texto filosófico ou cultural em que andem inseridas.
1.2 Uma primeira e provisória aproximação
Costuma dizer-se que o direito é um conjunto de
normas que rege a vida em sociedade. Nesta regulação
da vida social, o direito coexiste , no entanto , com
outros complexos de normas, como - nas modernas
sociedades oc iden ta i s 2 5 - a religião, a moral, o s <<>s-
2 4 A s i tuação não é s ingular. Pense-se, apenas, c o m o tem sido
d i v e r s a m e n t e recons tru ída a t r a d i ç ã o bíblica, d<> A n t i g o < do
Novo T e s t a m e n t o , por judeus , p o r diversas conlissncs « I I M . I S e
p o r d iversos r a m o s d o i s lamismo.
->;' Q u a s e tudo e que é d i to nesta iniiodiiç.K• ao di ir i ln s e
r e l a c i o n a c o m aquilo que hoje cons idc i amos dnei io . i i a t vme
40 I C A L E I D O S C Ó P I O DO DIREITO...
lumes, as n o r m a s técnicas , as "boas praticas" e as pró
prias "leis" cia na tu reza . Tradicionalmente,a distinção
entre o d i re i to e a general idade destes outros comple
xos normat ivos e r a feita recorrendo à característica da
coerc ib i l idade , o u seja, ao lacto de o direito ser
virtualmente i m p o s t o pela força do l\sia<lo-r\ Deste
cindes (to O c i d e n t e . S i - a b o r d á s s e m o s o u t r a s sociedades o u ,
m e s m o , a nossa n o u t r a s é p o c a s , pouco d o que não ler t er ia
c a b i m e n t o . N e m as d i s t i n ç õ e s e n t r e direito e outros c o m p l e x o s
n o r m a t i v o s s e r i a m a s m e s m a s (porventura , n e m haveria n a d a
que pudesse ser i d e n t i f i c a d o c o m o o nosso d ire i to , mui pe la sua
lor ina , q u e r p e l a s u a f u n ç ã o ) , n e m o d ire i to leriii a l o n n a d o
nosso, n e m c u m p r i r i a as m e s m a s funções, nem seria g u i a d o
pelos m e s m o s v a l o r e s . De t u d o isto se o c u p a a a n t r o p o l o g i a
jurídica, cujos e n s i n a m e n t o s d e v e m ser t idos muito ein c o n t a ,
s o b r e t u d o n u m a é p o c a e m que a mobi l idade das pessoas e d a s
e x p e r i ê n c i a s h u m a n a s t o r n a m q u o t i d i a n o o nosso c o n t a c t o
d i r e c t o c o m p e s s o a s p o r t a d o r a s d e outras culturas, de o u t r a s
c o n c e p ç õ e s d o d i r e i t o , d e o u t r o s valores jurídicos e m e s m o d e
o u t r o e s t a t u t o j u r í d i c o pessoal , r e c o n h e c i d o pelo nosso d i r e i t o
(d ire i to i n t e r n a c i o n a l p r i v a d o ) . V., sobre o assunto, A r m a n d o
M a r q u e s G u e d e s , Entre Factos e Razões - Contextos c Enquadra
mentos da Antropologia Jurídica, C o i m b r a , Almedina, 2 0 0 1 . 2 U E s t e c r i t é r i o d e d i s t inção é, c o m o v e r e m o s , cada ve/. m a i s
p r o b l e m á t i c o . Note - s e , de sde l o g o , q u e n e m todas as n o r m a s
j u r í d i c a s c o n t ê m a a m e a ç a de u m a s a n ç ã o . Muitas apenas e s t a b e
l e c e m uni r e g i m e jur íd ico ( c f , e n t r e m u i t o s outros , o ar t ." 1 7 1 7 ,
ou 1 7 2 1 , e t c , d o C C ; art ." 1 1 , o u a r t . ° 1 1 0 da CRI'): a n o r m a
que e s t a b e l e c e a s a n ç ã o ex is te , e faz p a r t e da ordem j u r í d i c a ,
mas , o m a i s das vezes, é p r e c i s o f i g u r a r u m a longa sér i e cie
n o r m a s i n t e r m é d i a s a t é e n c o n t r a r a n o r m a que c o n t é m a
s a n ç ã o : u m a pena , a p e r d a ( c a d u c i d a d e ) d e u m a v a n t a g e m o u
b e m j u r í d i c o ; a nul idade ou inef icác ia d e u m ac to jur ídico e a
c o n s e q u e n t e ex t inção dos seus efe i tos v a n t a j o s o s . Por o u t r o l a d o ,
PRKLIM1NARKS | 11
modo, a violação das normas jurídicas importaria unia
consequência forçosa (pena ou prémio) a ser efectivada
pelos poderes públicos. Por isso se distinguiria da
religião, cuja sanção, para os crentes, se efectivará no
desamor de Deus (dos deuses), com as consequências
que cada religião liga a i s so 2 7 . Por isso se distinguiria
da moral, cuja sanção teria u m a natureza meramen te
interior, no "foro" (note-se a l inguagem jur ídica, em
todo o caso) da consciência. Por isso se distinguiria
dos bons costumes ou da urbanidade ("cortesia", "boa
educação"), cuja violação é objecto de uma censura
a palavra "virtualmente" já p r e t e n d e sugerir que as soluções
jurídicas não são s i s t e m a t i c a m e n t e impos tas c o e r c i v a m e n t e ,
d e i x a n d o a soc iedade que subsistam muitas s i tuações n ã o jurídi
cas: cr imes n ã o punidos , r e n d i m e n t o s não d e c l a r a d o s e impos
tos não pagos , obr igações j u r i d i c a m e n t e const i tu ídas m a s não
c u m p r i d a s , e tc . Kstas e o u t r a s s i tuações cie n o r m a s jurídicas não
c u m p r i d a s p o d e m m e s m o ser e s ta t i s t i camente d o m i n a n t e s . Por
isso, a coerc ibiliclacle c a p e n a s u m a v ir tual idade d e c o e r ç ã o , não
u m a c o e r ç ã o electiva. Mas há mais . d o m a p r o p o s t a liberal de
"ret irada do Ksiado", c lamo-nos c o n t a cie que, p a r a se lazer
cumprir , o direito c o n t a c a d a vez mai s c o m a i m p o s i ç ã o de
m e r a s desvantagens, no c a s o d e i n c u m p r i m e n t o , q u e são de
natureza p u r a m e n t e e c o n ó m i c a ( c o i m a s , por vezes r id ículas em
lace das vantagens cie não c u m p r i r as n o r m a s , p o r e x e m p l o no
domín io do direito do a m b i e n t e , d o o r d e n a m e n t o d o territó
r io , da violação das r e g r a s d e t r a n s p a r ê n c i a n o m e r c a d o de
valores imobiliários, e t c ) , r e s u l t a n d o a dec i são de c u m p r i r <>
direito de u m a mera análise "custos-benel íc ios" e n ã o d o teor
de u m a acção compulsiva d o E s t a d o (v., a d i a n t e , c a p . 10) . 2 / Algumas das quais p o d e m ter, e m t o d o o c a s o , reflexos
e x t e r n o s (penitência, e x c o m u n h ã o ) .
V2 I CALEIDOSCÓPIO l>< ) D I R I M O
social, inas d i fusa 2 8 . Por isso se distinguiria da "vin
gança privada" (ou da "justiça popular"), eni <jue a
comunidade ou a lguns dos seus elementos se encarre
gam de inlligir unia sanção a quem violaras regras de
convívio es tabelec idas . 1'or isso se distinguiria das
"boas praticas", cu ja violação apenas daria lugar a
uma censura dir igida à consciência deontológica do
agente, mas não a u m cast igo cjue lhe losse imposto
pelo Estado. J á q u a n t o ás "leis da natureza" (a "natu
reza das coisas", humanas ou do mundo Tísico), elas
estão garantidas, t an to pela impossibilidade de as
violar, c o m o pelo au tomat i smo da sanção (por exem
plo: estar em dois lugares ao mesmo tempo; lalar uma
língua que nunca se aprendeu; cruzar os céus no cabo
de uma vassoura; c a m i n h a r sobre as águas).
A esta o rdem normativa que comanda a actividade
livre das pessoas p o r meio da ameaça de sanções se
chama "direi to object ivo", po r oposição a "direito
subjectivo", que se pode definir - agora encarando as
coisas do lado dos sujeitos de direito - como a
(acuidade que o direito confere a cada uni de agir (de
acordo com a sua vontade, facultas agevdt, WUIensmacht;
mas também de acordo com o d i r e i t o ) 2 9 .
J S Dis t ingui i - se-á tias "leis da e c o n o m i a " ? As consequênc ias
negativas da p e r d a de eficiência (de c o m p e t i t i v i d a d e ) ou do
peso excess ivo d a s despesas públ icas n ã o s erá u m a das lais
desvantagens a s s o c i a d a s à v io lação d e u m a lei? N o m e a d a m e n t e ,
em face d a t e n d ê n c i a para "desestat izar" o d i re i to? Veremos isso
mais a d i a n t e , c a p . 10. 2 9 N ã o p o d e r e m o s ver as coisas d e u m p o n t o de vista opos to ,
c o l o c a n d o os d i r e i t o s subjectivos c o m o a var iáve l i n d e p e n d e n t e
3 . O que é, para nós, o d ire i to?
Tratemos, agora, de operac iona l i / a r um concei to de
direito que tenha em consideração as considerações
anteriores e que permita reconstruir, sobre isso, uma
dogmática mais actualizada, ou seja, mais l iberta da
dependência estadual i st a.
Segundo as regras da lógica, a definição faz-se pela
indicação do género e da diferença espec í f i ca 6 0 .
O género a que o direi to per tence é o dos comple
xos normativos que regulam as acções livres (depen
dentes da vontade) dos h o m e n s . A questão principal
reside na diferença específica do direito em relação às
E comum a opinião de que a diferença específica reside
na coercibil idade estadual das normas j u r í d i c a s 6 1 .
0 0 Ou seja, a d i ferença e n t r e u m a espéc ie e as o u t r a s que
integrara o m e s m o g é n e r o . 6 1 Ou seja, n a v i r tua l idade d e o seu c o m p o r t a m e n t o ser
imposto p e l o E s t a d o sob a a m e a ç a d e u m a sanção . Note - se , e m
todo o caso, eme há n o r m a s a p e n a s permiss ivas ou disposit ivas,
outras que a p e n a s c o n t ê m def inições , e tc . A coerc ib i l idade t e m
que se referir a c o n j u n t o s de n o r m a s e não , s e m p r e , a n o r m a s
isoladas.
H2 I CALI IDOSt .ÓPIO 1K) DIKI I IO.
Esta o p i n i ã o liga indissociavclmciitc direito c Estado
e, por isso, é característ ica das concepções legalistas
do direito, cujas limitações e irrealismo já lórani abor
dados. Mas há mais. Será, realmente , que basta q u e o
Kstado a m e a c e , com uma sanção, quem violar u m a
norma, para que, por esta simples característica ex te rna
(ou formal), essa norma se torne numa norma jurídica'?
Por outras palavras: não haverá nada de substancial, de
interno - t o m o , por exemplo , uma certa lõnte de
legi t imidade (gerando uma razão específica para o b e
decer) , a referência a um certo valor a proteger (a uma
certa f inalidade a prosseguir) , distinto de outros, pro
tegidos (ou prosseguidos) por outras ordens normat i -
vas ( ) 2 no conce i to de direito? E será que, por ou t ro
lado, tudo o que estiver privado dessa es tampilha
estadtial es tá , i r remediavelente , fora do d i r e i t o ? 0 3
Perguntar isto significa, nomeadamente , questionar se
o direi to n ã o se distingue p o r estar ao serviço (por ter
c o m o função assegurar a realização) de certos valores
específicos (digamos, a jus t iça deste mundo, a ordem da
c idade) , seja ele formulado por quem for.
(>-' Por e x e m p l o , o d ire i to i e f e r i r - s e - i a à Just iça; c o m o a
c i ê n c i a se re fere à Verdade; a m o r a l , à perfe ição individual; a
r e l i g i ã o , à c o m u n h ã o c o m Deus; o u a estét ica, à IWle/.a. ( ) í Por e x e m p l o , n ã o se n e g a r á o c a r á c t e r de jurídica a u m a
n o r m a que n ã o vise a J u s t i ç a ( m a s a oportunidade , o de senvo l
v i m e n t o e c o n ó m i c o , a sa lvação d a a l m a , a perfeição individual)?
O q u e , p o r sua vez, nos r e m e t e p a r a u m outro r o s á r i o d e
q u e s t õ e s , a g o r a sobre o c o n t e ú d o e a forma da Justiça: o q u e é
a J u s t i ç a ? c o m o se es tabelece , c o n h e c e ( reconhece ) a Jus t i ça?
UMA DKFINIÇÃO RK ALISTA DC) DIREITO | 8 3
N o início de um livro seu - que se tornou c lás
sico - o jurista inglês Herbert L. A Hart ( 1 9 0 7 - 1 9 9 2 ) 6 4
afirma que "poucas questões relativas à sociedade foram
postas com tanta persistência e respondidas por gran
des pensadores de forma tão diversa, estranha o u
mesmo contraditória, como a questão «o que é o
direito?»" Mas ele m e s m o também observa que, se
passarmos dos grandes pensadores ao senso comum,
se verifica uma situação paradoxal, que também ocorre
em relação a entidades de todos os dias, como o
"tempo" ou o "amor": somos incapazes de as definir,
apesar de todos as reconhecermos no plano da expe
riência 6" 1.
Os juristas romanos - que, a partir de certa altura
(aprox. séc. Il l a . C ) , também tiveram uma noção
específica ("diferenciada") de direito, definiram-no
como "a arte do bom e do justo" - "ut eleganter Celsus
definit, jus est ais boni et aequi", prosseguindo com
frases que exprimiam muito claramente a auto-estima
que os dominava: "é por isto que nos chamam sacer
dotes. Na verdade, prestamos culto à just iça , t i rando
partido do conhec imento do bom e do equitativo:
separando o justo do injusto, o lícito do ilícito, no
intuito de promover os bons costumes não apenas pelo
í v l ( X , para aspectos biográficos: http://www.law.ox.ac.uk/juris-
prudence/hart .°shtml; h t tp : / /www.oup .co .uk / i sbn /0 -19-927497-r ) . , K ' Herbert L. Hart , The concept of law, cit., 13 s. (existe | b o a |
t r a d . port.: de A r m i n d o Ribe iro Mendes . L i sboa , C a l o u s t e
Trata-se, c o m o se vê, de uma definição de direito
muito densa de sentidos, pois pressupõe que é possível
ident i f icar objec t ivamente o que seja o bem especifi
camente p r o c u r a d o pelo direito (o 4 jus to") e una série
de va lo res a e le relativos ("bom e equitativo'', "bons
cos tumes") , dos quais depende a t ontra-distinçio entre
o direi to e não-direi to, por um lado, e, depois, entre
direito e ou t r a s ordens normativas. Mas, além disso,
é uma d e f i n i ç ã o que não toma, tão pouco, grandes
cautelas, q u e r quanto à objectividade do conhecimento
desses va lo re s densos que se pressupõe, quer quanto
aos m e i o s adequados a real i /a r tais valores - já que
Ulpiano n ã o t inha grandes dúvidas acerca (his espe
ciais capac idades dos juristas para sondar estas coisas.
Quem (e c o m o ) reconhece objectivamente o "bem", em
termos de o poder impor c o m o norma de acção a toda
a comun idade? C o m o se identificam, também objecti
vamente, os meios (as "penas", os "prémios", os cri
térios da sua distribuição) que são "bons" para atingir
o bem? Mas, mais do que isso, c o m o se distingue o
bem procurado pelo direito do bem procurado pela
moral ou pela religião?
, ) ( ) "Cuius m é r i t o quis nos s a c e r d o t e s appe l l e i ; iuslitiam n a m -
que coli inus, et boni et aequi not i t iam p r o í i t c m u r , a e q j u m ab
iníquo separantes , l icitum ab illicito disc e m e n t e s , boiios non
solum m e t u p o e n a r u m , v e r u m et iani p i a e m i o r u m qnoque e x h o r -
tat ione e i l i ccrc cupientes"
U M A D E F I N I Ç Ã O R E A L I S T A D O D I R E I T O J 8 5
As perplexidades ainda aumentam quando nos der
mos conta de que muitas culturas diferentes da nossa
- como também a nossa, se recuarmos uns trezentos
anos - não distinguiam, pe los seus objectivos, o direito
da moral ou da religião, confundindo mesmo, frequen
temente, o direito com a o rdem do mundo (a "natureza
das coisas"), a qual também era expressa pela religião,
pela moral , pelos costumes legados pela tradição.
Os riscos de uma def inição assim densa - da qual
transparece a autoconfiança que um grupo de espe
cialistas, que se presumiam dotados de poderes quase
divinos para reconhecer o justo e o injusto, de forma
a extrair daí normas jurídicas concretas - são, po r isso,
muito grandes. Não apenas não se estabelece nenhum
critério objectivo para reconhecer o direito na socie
dade, distinguindo-o de outras ordens normativas
vizinhas que também aí existem (religião, moral social,
utilidade comum) , como também não se definem, de
forma objectiva ("argumentável", "inteicomunicável"),
noçc~)es tão abstractas e dependentes dos sentimentos
de cada um como as de "justo" ou "injusto" (em suma,
de "justiça"). Finalmente, nada se diz sobre a legiti
midade dos processos adequados ou legítimos para
prosseguir os valores visados. K neste sentido que se
tem afirmado que uma definição de direito tão densa
([tlikk], M. Walzer r > 7 ) , tão dependente de "valores", e
( > 7 Michael Wal /er , Thick and Thin: Moral Argument at Home and
Abroad, N o t r e D a m e , University ol Notre D a m e Press, 19(H).
8(> l C:AI . I i n o s c o i M o n o DIRKITO. .
tão ind i fe ren te aos "processos" para os atingir, corres
p o n d e a unia Corina de totalitarismo. Poi\ ainda que
os v a l o r e s estejam certos (e consensualmente certos
para todos, ou para a maioria), todos os meios usados
para os prosseguir íicam automaticamente legitimados
(a m a g n i t u d e dos (ins justifica a pluralidade dos
n ie ios ) ( i 8 .
V i n t e séculos depois, uni jurista português notável,
João Baptista Mat liado (1927-1991 ) r > < \ relaciona a exis
tência e a nature/a do direito com a abertura e
indeterminação naturais ao homem (a que normalmente
c h a m a m o s livre arbítrio, ou liberdade) e com a neces
sidade de compatibil izar estas características com a
necess idade de vida em sociedade segundo regras
c o m u n s 7 0 . Parece, à partida, uma noção menos exigen-
M C o m o , q u a n d o es tamos p r e o c u p a d o s e m reilizar c e r t o s
valores , "o c r i t é r i o d e validade da a c ç ã o ou d o juízo é a sua
eficiência ein r e l a ç ã o a o fim ( . . . ] , p o d e n d o o mais nobre va lor
justificar a m a i s abjec ta acção", isto leva C u s i a v o /agrebclsky a
concluir q u e "o a g i r e o julgar "por valores" sã>, de l a c t o ,
re frac tár ios a c r i t é r i o s regulativos o u del imita i ivos de n a t u r e z a
objectiva, n ã o p o d e n d o ser reconduz idos a r a z õ e s rac iona lmente
controláveis [e as s imJ são incompatíve is c o m as es igencias d o
Kstado d e Dire i to , pois contém i m p l i c i t a m e n t e u m ; p r o p e n s ã o
totalitária" ("Dirit to p e r valori, pr incipi o r e g o l c (;i p r o p ó s i t o
delia do t t r ina d e i principi di R o n a l d Dworkin)", em Qjiaderni
1'iomitini per la storia dei pensiero giuridico moderno, vol. . ' 11 (2002) . , , ( ) Sobre e le , v. h t tp: / /www.f í l ( )S í ) í iay( lerec l io .com / rt íd /n i in ie -
r o 6 7 p o r t u g a l . h t m . 7 0 João B . M a c h a d o , Introdução ao direito e ao discurso legitima
Para l e v a r m o s es ta a f i r m a ç ã o a sério, temos q u e e squecer
p i e d o s a m e n t e a l g u m a s d a s pos ições d e Larenz sobre a exc lusão
dos j u d e u s d a c o m u n i d a d e j u r í d i c a a l e m ã . Ele p r ó p r i o o c u p o u
a c á t e d r a d o filósofo d o d ire i to G. Husserl , a fas tado do e n s i n o
p o r ser j u d e u . Enf im, e r a m os t e m p o s d o nazismo, e m que os
tais sent idos d e j u s t i ç a se o b s c u r e c e r a m para muita gente . C) que
j á diz a lgo s o b r e a sua fal ibil idade. . .
UMA DEFINIÇÃO REALISTA DO DIREITO | 89
para se reger a si mesmo. Princípio este que, hoje, está
estreitamente ligado ao da soberania popular.
Normalmente , este direito querido pe lo povo con
cretiza-se (i) num momen to consti tuinte originário,
numa Constituição; (ii) em momentos constituintes sub
sequentes, e m reformas ou revisões (ou emendas [angli
cismo]) a essa constituição; e, instituída a constituição,
(iii) na edição de normas jurídicas pelos órgãos que ela
declare competen tes para tal.
Esta posição quanto à definição do direito - que
identifica o direito com uma vontade, a vontade
expressa mais ou menos so lenemente pelo povo - é
denominada, tradicionalmente, de positivismo legalista
ou legalismo.
A fama de que o positivismo gozou, sobretudo nos
últimos c inquenta anos, não foi br i lhante , porque ele
apareceu no rma lmen te associado à conversão da von
tade arbitrária de Estados autoritários em direito legí
timo - ou seja, em direito a que se devia o b e d e c e r 7 2 .
E, por isso, muito se tem escri to con t ra esta con
cepção7'*.
/ 2 Veja-se, a i n d a ho je , o ar t ." 8 . ° d o C C ( s o b r e t u d o o seu
n.° 2 ) . A sua g e n e a l o g i a a s c e n d e , e m P o r t u g a l , a o E s t a t u t o
Jud ic iár io d o E s t a d o N o v o , nos a n o s 3 0 d o séc . XX. l S A v u l g a r i z a ç ã o des ta ideia d a r e l a ç ã o e n t r e l ega l i smo e
total itarismo deve-se a G. R a d b r u c h ( d e m i t i d o pelos naz i s e m
1 9 3 3 : Gustav R a d b r u c h , "(¿esetzlich.es U n r e c h t und ü b e r g e s e t -
executar as leis ["All power o f suspending laws, or the
execution o f laws, by any authority, without consent o f
the representatives o f the people, is injurious to their
rights, and ought not to be exerc i sed]" . O mesmo
aconteceu em Inglaterra, país considerado, desde o
início da época contemporânea , c o m o um modelo de
liberdades e de democracia; aí, não só se prolongou
até hoje o princípio da soberania do parlamento, como
também a tradição jurídica inglesa tem sido, nos
últimos duzentos anos, fortemente marcada pelo posi
tivismo legalista (John Austin [ 1 7 9 0 - 1 8 5 9 ] ; H. L. Hart
[1907-1992] , Joseph Raz [ 1 9 3 9 - . . . ] ) 7 5 . Km contrapartida,
as posições antilegalistas têm consti tuído um sinal
característ ico da política do direito de Estados autori
tários, para os quais a lei (ou a const i tuição) - mesmo
que sejam as suas leis e as suas consti tuições - podem
ser sempre um embaraço para o arbítr io do poder.
E, por isso, os líderes desses Estados frequentemente
apelaram para normas ou valores supralegais (como o
direi to natural, o génio nacional, o interesse do povo
ou da Nação, a tradição, a opor tunidade política, a
moral e os bons costumes, a religião, quando não para
a simples vontade de chefes carismáticos) para ultra
passarem os limites rigorosos da lei ("decisionismo") 7 0 .
7 ; > C L unia breve s íntese e m http://en.wikipedia.org/wiki/
Legal_posit ivism Legal_positivism_in_the_Knglish_speaking_worlcl . / ( ) U m e x e m p l o : a C o n s t i t u i ç ã o d o E s t a d o Novo ( 1 9 3 3 )
d e c l a r a v a que "A N a ç ã o p o r t u g u e s a const i tui u m Estado inde
p e n d e n t e , cuja soberan ia só r e c o n h e c e c o m o limites, na ordem
i n t e r n a , a m o r a l e o d i r e i t o [...]" ( a r t . ° 4 ) . O r a nem esta