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HERMENUTICA-DIALTICA COMO CAMINHO DO PENSAMENTO SOCIAL
Maria Ceclia de Souza Minayo
Neste texto busco aprofundar um tema sobre o qual trabalhei no
livro O desafio do Conhecimento (1993) e, a respeito do qual
considero haver ficado devendo ao leitor um maior aprofundamento: a
hermenutica-dialtica como mtodo de anlise qualitativa, ou melhor de
anlise das cincias humanas e sociais. Por causa disso retomo o
assunto, investindo nas razes dessa discusso, no do ponto de vista
apenas do como fazer e sim, tambm, do como pensar, no sentido
proposto neste livro. Na verdade, a abordagem desse assunto junta
duas questes fundamentais: a subjetivao do objeto e a objetivao do
sujeito, temas cruciais da sociologia do conhecimento, que do ponto
de vista metodolgico, costumam ser reduzidas aos problemas das
relaes entre quantitativo e qualitativo na prxis cientfica.
Comeo, portanto, problematizando os dois conceitos centrais nos
quais o texto se sustenta, a hermenutica e a dialtica. Para a
seguir, articul-los como caminho de possibilidades de construo
terico-metodolgica de base emprica e documental. O conceito de sade
ser tratado apenas como um caso de aplicao dessa abordagem, na
medida em que, seguindo a tradio da medicina social e da sade
coletiva, o processo sade-doena assume um sentido ampliado de
hbrido biolgico-social, embora, neste texto, s ser tratado o
componente social desse hbrido (Latour, 1994;Minayo,1993).
De incio, mostrarei como cada um dos dois conceitos-chaves se
apoia num campo histrico-semntico. A hermenutica se move entre os
seguintes termos: compreenso como a categoria metodolgica mais
potente no movimento e na atitude de investigao; liberdade,
necessidade, fora, conscincia histrica, todo e partes, como
categorias filosficas fundantes; e, significado, smbolo,
intencionalidade e empatia como balizas do pensamento. A dialtica,
por sua vez, desenvolvida por meio de termos que articulam as idias
de crtica, de negao, de oposio, de mudana, de processo, de
contradio, de movimento e de transformao da natureza e da realidade
social.
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2. A hermenutica como a arte da compreenso
A vida pensa e o pensamento vive (Gadamer, 1999,326).
A hermenutica considerada a disciplina bsica que se ocupa da
arte de compreender textos. O termo texto est sendo usado num
sentido bastante amplo: biografia, narrativa, entrevista,
documento, livro, artigo, dentre outros. gnese da conscincia
histrica, ou seja, capacidade de colocar-se a si mesmo no lugar do
outro, (que o outro ou o tu do passado, ou o diferente de mim no
presente, mas com o qual eu formo a humanidade), que a hermenutica
deve sua funo central. Sua unidade temporal o presente onde se
marca o encontro entre o passado e o futuro, ou entre o diferente e
a diversidade dentro da vida atual, mediada pela linguagem. No
entanto, na lgica hermenutica, nem sempre a linguagem considerada
transparente em si mesma, pois tanto possvel chegar a um
entendimento (nunca completo e nunca total) como a um
no-entendimento. Por isso, a idia de alteridade e a noo de
mal-entendido so possibilidades universais tanto no campo cientfico
como no mundo da vida.
O enunciado bsico do pensamento hermenutico de que as cincias
humanas e sociais, nominadas por Gadamer, em Verdade e Mtodo como
cincias do esprito, (1999,15) administram uma herana humanista que
as distingue da prxis da chamada cincia moderna. No centro de sua
elaborao est a noo de compreender. Gadamer vai mais alm na tese que
defende no livro citado quando diz:
a presente investigao coloca uma questo filosfica, o
compreender. E no a coloca unicamente s assim chamadas cincias do
esprito; e sobremodo no a coloca somente cincia e a suas formas de
experincia essa investigao coloca a questo hermenutica ao todo da
experincia humana de mundo e da prxis da vida (1999,16).
Ou seja, o conceito de hermenutica, que se funda na compreenso
tratado por esse filsofo considerado um dos maiores estudiosos do
assunto, como um movimento abrangente e universal do pensamento
humano. Inclui toda a experincia cientfica sem fazer dicotomias
entre as cincias da natureza e as humanas e sociais. E visto de
forma mais ampla do que a que abrange a experincia cientfica.
Origina-se de todo o processo de intersubjetividade e de objetivao
humana. Para Gadamer, compreender jamais
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apenas um comportamento subjetivo frente ao objeto dado, esse
movimento pertence ao ser daquilo que compreendido. (1999,19):
compreenso em princpio, entendimento e compreender significa
entender-se uns com os outros. Assim, uma das idias centrais que
fundamenta a hermenutica de que os seres humanos, na maioria das
vezes se entendem ou fazem um movimento interior e relacional para
se porem de acordo. A compreenso s se transforma numa tarefa quando
h algum transtorno no entendimento, um estranhamento que se
concretiza numa pergunta. A necessidade de uma hermenutica aparece,
pois, com o desaparecimento do compreender-por-si-mesmo (Gadamer,
1999,287).
Quais so as trilhas do compreender? Gamader (1999) comea por um
exerccio de negao: esclarece que no buscando a inteno do autor,
pois as palavras e discursos dizem muito mais do que quem o
escreveu quis dizer. E num raciocnio dialtico, comenta que, embora
muitos tenham pretenso de dizer mais do que realmente dizem,
importante ter em conta que cada individualidade uma manifestao do
viver total e, portanto, a compreenso se refere, ao mesmo tempo, ao
que comum, por comparao; e ao que especfico, como contribuio
peculiar de cada autor. Ainda no exerccio de negao diz que
compreender no contemplar, pois a auto-alienao na contemplao no
aproxima o investigador da realidade histrica. Da mesma forma,
acrescenta que, compreender no um mero captar da vontade ou dos
planos que as pessoas fazem, pois nem o sujeito se esgota na
conjuntura em que vive, nem o que ele chegou a ser, foi apenas
fruto de sua vontade, inteligncia e personalidade.
Schleiermarcher (2000), um dos autores seminais, consultados por
Gadamer, assinala que o trao essencial do compreender o fato de que
o sentido do peculiar sempre resultante do contexto e, em ltima
anlise, do todo. Ou seja, do ponto de vista lgico, aqui se aplica
um raciocnio circular, que Gadamer assim expressa, a partir de
Schleiermarcher:
j que o todo, a partir do qual se deve compreender o individual,
no pode ser dado antes do individual(...) o compreender sempre
mover-se nesse crculo, e portanto essencial o constante retorno do
todo s partes e vice-versa. A isso se acrescente que este crculo
est sempre se ampliando, j que o conceito do todo relativo, e a
integrao em contextos cada vez maiores afeta sempre tambm a
compreenso do individual (1999,297).
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Gadamer e Schleiermacher aplicam, hermenutica, uma descrio
dialtica polar, com a qual descrevem a provisoriedade interna e as
mltiplas possibilidades de interpretao e compreenso de um autor ou
de um texto. Evidenciam ento, que a compreenso no um procedimento
mecnico e tecnicamente fechado: nada do que se interpreta pode ser
entendido de uma vez s e de uma vez por todas. Dentro dessa lgica
Gadamer conclui que o investigador deve buscar entender um autor
melhor do que ele prprio teria se compreendido ou se compreende,
tentando desvendar o que ficou inconsciente para ele. Essa imerso
no texto de um autor pode ser considerada melhor quando criadora de
relevncias (Schutz, 1964) e acrescenta conhecimento novo, pois, diz
Gadamer, a hermenutica no deveria se esquecer de que ningum
interprete vocacionado de sua obra. (...) No momento em que se
converte em intrprete, o autor converte-se em seu prprio leitor
(1999,300).
A leitura de qualquer realidade constitui um exerccio reflexivo
sobre a liberdade humana, no sentido de que os acontecimentos se
seguem e se condicionam uns aos outros, mediados por um impulso
original: a cada momento pode comear algo novo. Ou seja, no existe
determinao total dos acontecimentos e nada e ningum esto a por
causa do outro ou se esgotam totalmente na sua realidade. Os
acontecimentos histricos ou da vida cotidiana so governados por uma
profunda conjuno interna da qual ningum completamente independente,
na medida em que penetrado por ela de todos os lados.
Mas, junto liberdade est sempre a necessidade. Ela se encontra a
no que j se formou, que no pode ser desfeito, que ser base para
toda atividade emergente. O que veio a ser constitui o nexo com o
que advm. Mas esse nexo no deve ser tomado arbitrariamente, porque
ele se constituiu de uma maneira determinada e no de outra, a
partir de um conjunto de mltiplas possibilidades. A esse elo que
amalgama o presente com o passado e com o futuro os antroplogos
denominam a cultura de um povo, de uma nao, de uma classe, de uma
poca. So as determinaes que os marxistas reconhecem como pano de
fundo da realidade social e da histria; a que filsofos como Ortega
Y Gazet denominam as circunstncias da biografia; e que Sartre chama
de possvel social, condicionante da liberdade.
Dilthey (1956) adiciona o conceito de fora ao de liberdade, para
falar de um impulso que move ou de uma projeo do sentido na ao.
Para esse autor, a noo de fora ocupa
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um lugar central na explicao das cincias do esprito. Diz que na
fora se acham unidas interioridade e exterioridade, numa unidade
tensa. Toda fora s existe na sua exteriorizao, mas mais que a
exteriorizao, na medida em que significa uma disponibilidade
interior da infinitude de vida. Atravs da experincia do limite, da
presso e da resistncia o indivduo se d conta da prpria fora. Porm,
o que experimenta no so as duras paredes da facticidade. Como ser
histrico, experimenta tambm realidades histricas, e essas so
sempre, ao mesmo tempo, algo que o sustenta, e espao onde d
expresso a si mesmo (1956,281). Em outras palavras: a o sujeito
realiza a objetivao de sua vida. Assim, a categoria fora representa
o elemento da interioridade e da liberdade: tudo poderia ser
diferente e cada indivduo que age de uma forma atuasse de outra.
Por isso, conclui-se que a fora que faz a biografia e a histria no
um movimento mecnico, vem da vida interior e s passa a existir
quando objetivada.
A necessidade, que se ope liberdade, o poder daquilo que
sobrevem e o poder dos outros atuando, como um dado prvio desde o
comeo da atividade livre. A necessidade exclui muitas coisas como
impossveis, restringe a ao ao possvel, ou seja, quilo a que o
sujeito est aberto. Por isso, a necessidade procede da liberdade e
a liberdade precisa contar com ela. Do ponto de vista lgico, a
necessidade hipottica, e diz respeito a um modo de ser histrico e
no da natureza: o que se tornou realidade no pode ser desfeito. O
que vir , na verdade, livre, mas a liberdade pela qual chegar a
ser, encontra, em cada caso, sua limitao no que veio a ser, isto ,
nas circunstncias em que ir atuar: a idia encontra na histria,
apenas uma representao imperfeita. Igualmente, os planos e as
concepes dos que atuam, so uma fora viva que se atualiza nos
acontecimentos. Por isso, o momento histrico-efeitual, (Gadamer,
1999) do mesmo modo que o indivduo, finito e nunca conseguir
abranger o sentido total e definitivo das coisas: sua leitura ser
sempre a possvel, se dar sob o olhar do presente e ser guiada por
questes, pressupostos e interesses, que por sua vez orientam
perguntas e repostas. A finitude do prprio compreender o modo como
e onde a realidade se apresenta, da mesma forma que a conscincia
histrica uma forma de auto-conhecimento.
Qual matria prima sobre a qual se exerce o compreender? O ato do
entendimento, mais que um desvendamento da verdade do objeto, a
revelao do que o outro, (o tu) coloca como verdade.
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O modo como vivenciamos uns aos outros,(...) isso que forma um
universo verdadeiramente hermenutico, no qual no estamos encerrados
com barreiras intransponveis, mas para o qual estamos abertos.
(Gadamer, 1999,35).
A categoria bsica, o cho das cincias compreensivas o senso
comum, termo cuja origem se encontra em Vico e cujo sentido engloba
no apenas a capacidade universal de pensamento que existe em todas
as pessoas, mas tambm o sentido do que institui a comunidade. O
senso comum um juzo despido de qualquer reflexo, comumente
esperimentado por toda uma ordem, por todo um povo, por toda uma
nao, ou por todo o gnero humano (Vico,1979,34). Este o artigo 12 do
clebre texto Do Estabelecimento dos Princpios, com que esse filsofo
do sculo XVII, j naquela ocasio, se insurgia contra a contabilizao
da vida dentro de propostas quantitativistas, e pela sua fragmentao
com base no cartesianismo. O senso comum tal como definido por
Vico, assumido por Gadamer como um saber que se dirige para o
verdadeiro e para o correto, que busca o que plausvel e prtico e se
apoia em vivncias e no em fundamentaes racionalistas.
um conhecimento positivo que o senso comum transmite. (...)
Tambm no assim, em absoluto que a tal saber convenha apenas um
valor reduzido de verdade.(...) Ele serve para nos guiar nos
afazeres comuns da vida, quando nossa faculdade racional nos deixa
no escuro".(Gadamer, 1999,69).
A idia de senso comum se articula, como num par, noo de bom
senso, que tambm remonta a Vico e retomada por Gadamer. Os dois
termos, constituem uma das mais controversas questes que se
levantam sobre a cientificidade das cincias humanas e sociais.
Sobretudo por causa do avano do positivismo e da lgica
hipottico-dedutiva, que cada vez criaram a iluso de que existe
neutralidade racional e possibilidade da cincia se desenvolver sem
se contaminar por pr-comceitos e pr-juzos.
O conceito de senso comum ir sendo retomado sempre na histria da
cincia. Num dos seus livros que se chama Introduo a uma Cincia
Ps-moderna, editado em 1989, Boaventura Santos (1989) faz uma
pormenorizada dissertao de como, em vrios momentos histricos de seu
desenvolvimento, a cincia trata essa problemtica, ora dando nfase a
seus aspectos positivos ou negativos, segundo o grau de
racionalismo racionalismo com que o mtodo cientfico tratado. De um
lado, est um um grupo que ope mundo da vida a mundo racional e
cientfico, colocando no termo senso comum a carga de suspeita das
referncias sobre pr-conceitos. o caso de Durkheim, em As
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regras do mtodo sociolgico(1978); e de Marx & Engels em A
Ideologia Alem (1984). Nesses autores, senso comum considerado como
juzo leigo, ignorante ou falsa conscincia sobre as coisas, devendo
ser derrubado e vencido pela objetividade da cincia. Outros
recuperam a positividade do conceito tanto como matria prima da
investigao emprica, mas tambm como fonte de criatividade, como
expressam Gunnar Myrdal em Objectivity in Social Research (1969);
Thompson em The Voice of the Past: Oral History (1978); Thomas em
The Definition of Situation (1970); Schutz em Commonsense and
Scientific Interpretations of Human Action (1982). Na sua
positividade, senso comum tratado como um gnio da vida prtica, que
leva ao ajustamento em relao realidade, ao meio social, contendo,
portanto, um valor prtico-moral. Sendo originado e lapidado na
prpria cotidianeidade, o senso comum permitiria o deslocamento de
uma pessoa para o ponto de vista da outra, ou seja, para uma
atitude compreensiva. Um terceiro grupo de autores problematiza o
conceito, nele encontrando polos de positividade e de negatividade
em relao construo cientfica da realidade social. o que se l em
Gramsci na obra Concepo Dialtica da Histria (1981); em Weber em A
Objetividade do Conhecimento nas Cincias e na Poltica Social
(1974); em Granger em Pense Formalle et Science de LHomme
(1967).
Da mesma forma que senso comum, outra idia importante para a
atividade compreensiva a de vivncia. Gadamer observa que,
diferentemente do termo vivenciar que mais antigo, vivncia surge no
sculo XIX, carregando o sentido de imediaticidade com que abrangido
algo real. Vivenciar diferente de ouvir falar, de deduzir ou de
intuir. um termo que vem da literatura biogrfica e foi primeiro
desenvolvido por Dilthey (1956), significando, configuraes de
sentido, unidades de sentido que so reinterpretaes, ou realidades
pensadas e intencionadas, como objetivao da experincia e como sua
posse duradoura. Mas vivncia no sinnimo de contedo, pois sua fonte
a vida mesma.
Outro termo que compe o campo da anlise hermenutica smbolo.
Denomino smbolo quilo que vale, no somente pelo seu contedo, mas
por fazer uma mediao comunicacional, por existir como um documento
e uma senha que permitem aos membros de determinada comunidade se
identificarem. O significado do smbolo est em sua funo
representativa de algo visvel e invisvel, refletindo, ao mesmo
tempo, uma idia do real e sua expresso fenomnica. Ou seja, smbolo a
ntima unidade da
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imagem e do significado, que no anula a tenso entre o mundo das
idias e o mundo dos sentidos, mas permite pensar o desequilbrio
entre forma e essncia, expresso e contedo. A compreenso simblica
deve ser entendida como parte da ocorrncia, da formulao e do
sentido de todo enunciado.
Com Husserl, (1980) a hermenutica se aproxima da fenomenologia.
Essa corrente de pensamento se afasta da idia de investigao do ser
numa abordagem filosfica essencialista para ir busca de compreenso
de como as coisas de apresentam e acontecem dos modos subjetivos de
viver. O mundo da vida tal como pensado por Husserl , ao mesmo
tempo, um mundo pessoal (no qual se juntam tradio e projeto de
futuro) e um mundo comunitrio que contm a co-presena dos outros com
os quais se vive em intersubjetividade. So dois os termos centrais
do pensamento de Husserl: intencionalidade e significado. O
primeiro quer dizer dirigir-se para, visar alguma coisa: a
conscincia intencionalidade o que significa: toda conscincia
conscincia de (...) e todo objeto apreendido em sua relao com a
conscincia O segundo pode ser traduzido como a concepo de que os
objetos so compreendidos de uma certa maneira subjetiva pela
conscincia que lhes do maior ou menor relevncia. Desta forma, a
fenomenologia no concebe a subjetividade em oposio objetividade,
porque esses dois termos esto em correlao: o sujeito que realiza,
objetiva-se em sua ao; e seu produto sua prpria subjetivao.
A ingenuidade do discurso que fala da objetividade que deixa
totalmente fora da questo a subjetividade, a qual experimenta e
conhece e a nica que produz de maneira verdadeiramente concreta; a
ingenuidade do cientista da natureza e do mundo em geral, que cego
para o fato de que todas as verdades que ele entende como
objetivas, e mesmo o prprio mundo objetivo que o substrato de suas
frmulas, a sua prpria configurao de vida (Husserl, 1980, 16).
Em sntese, compreender implica a possibilidade de interpretar,
de estabelecer relaes e extrair concluses em todas as direes. Mas,
compreender acaba sempre sendo compreender-se. A estrutura geral
dessa forma de abordagem atinge sua concreo na compreenso histrica,
na medida em que a se tornam operantes as vinculaes concretas de
costumes e tradies e as correspondentes possibilidades de seu
futuro. Mas compreender significa tambm e sempre estar exposto a
erros e a antecipaes de juzos. A compreenso s alcana sua verdadeira
possibilidade quando as opinies prvias com as quais se inicia, no
so arbitrrias. Existe realmente uma polaridade entre
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familiaridade e estranheza e nela se baseia a tarefa da
hermenutica, buscando esclarecer as condies sob as quais surge a
fala.
3. A dialtica como a arte do estranhamento e da crtica
Na histria da dialtica, caracterizam-se duas fases, a antiga,
desde os pr-socraticos at Hegel; e a moderna, de Hegel at os dias
de hoje. A dialtica antiga dentro do pensamento grego, chegou a se
constituir como um mtodo de busca da verdade pela formulao de
perguntas e respostas, para trazer baila as incongruncias das
concepes falsas. Significava a arte do dilogo ou a arte de
discutir, mas tambm a arte de separar, distinguir as coisas em
gnero e espcie e classificar as idias para melhor analis-las, como
desenvolve Plato em Os Sofistas.
Socrtes chamava a esse mtodo questionador de maiutica, o que
significa mtodo de parto das idias. Entre os filsofos gregos, o
debate se iniciava pela definio do tema. Seguiam-se perguntas,
respostas e outras indagaes, at que os debatedores chegassem idia
mais clara sobre o tema. Os historiadores de Scrates comentam que
ele costumava usar essa estratgia para obter a confisso de
ignorncia de seus interlocutores, a partir das contradies que
manifestavam na apresentao de idias que o filsofo considerava
falsas. Em Plato a dialtica o mtodo de passagem de um conhecimento
sensvel para o conhecimento racional. Em Aristteles, significa a
deduo que parte de premissas formuladas sobre opinies provveis. No
pensamento estico, dialtica sinnimo de lgica formal.
No Ocidente, ao longo de toda a histria da filosofia, o conceito
de dialtica assumiu muitos significados, freqentemente no
relacionados ao seu sentido original. No sculo XI, o filsofo
Abelardo retomou o sentido grego da noo de dialtica, considerando-a
o mtodo adequado para formular dvidas e crticas. Mas, em Descartes
que viveu do final do sculo XVI at a metade do sculo XVII e
considerado o filsofo dos fundamentos da cincia moderna e pai do
racionalismo, pelo mrito do conjunto de toda a sua obra, mas
sobretudo pelo Discurso do Mtodo, escrito em 1636 (Descartes,
1978), a dialtica s aparece referida como lgica falsa e inadequada
ao correto uso da razo.
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Mais tarde, Kant mostrou em Crtica da Razo Pura (1980) que as
idias e os princpios da razo levam a contradies quando so usados
como transcendentes. Schleiermacher (2000), um dos filsofos da
hermenutica, recupera a condio da dialtica como mtodo de
conhecimento, retomando seu sentido na filosofia de Plato: para
esse autor, ela uma regra que serve a todo entendimento, na medida
em que se constitui como uma arte de conduzir o discurso para
produzir uma representao verdadeira.
Foi com Hegel em A Fenomenologia do Esprito escrita em 1813
(1980) que a dialtica recebeu um tratamento mais amplo e
aprofundado em trs dimenses: ontolgica, lgica e metodolgica. A
partir de ento, o conceito passa a dominar a teoria filosfica sendo
abordada em vrios sentidos e com as mais diferentes conotaes: a
dialtica do ser: o ser e o nada um e o mesmo. A dialtica da
essncia: a essncia o ser enquanto aparncia de si mesmo. A dialtica
do conceito: o conceito a unidade de ser e essncia. A dialtica da
relao entre ser, essncia e conceito: a essncia a primeira negao do
ser que, dessa forma se torna aparncia; o movimento da negao da
negao, isto , o ser recuperado, porm, enquanto infinita mediao e
negatividade do mesmo em si prprio. A dialtica do ser, da essncia,
e do conceito: transformar-se em outro o processo dialtico na
esfera do prprio ser. Em Hegel, a dialtica a forma mesma como a
realidade se desenvolve, pois, no universo tudo movimento e
transformao e nada permanece como . considerado um filsofo
idealista pois coloca a primazia das idias na construo da
realidade: na origem, o universo seria a idia materializada e antes
de qualquer coisa um esprito pensou o universo. Mas, dentro de sua
reflexo, tanto o esprito como o universo se encontram e se acham em
movimento dialtico.
No marxismo a dialtica se transformou numa maneira dinmica de
interpretar o mundo, os fatos histricos e econmicos, assim como as
prprias idias, sob a gide do materialismo histrico. Marx se apoiou
nas idias de Hegel relativas ao perene movimento universal e ao
constante processo de transformao, mas o fez, invertendo os termos
da reflexo desse autor. Em Marx, a dialtica est presente como mtodo
de transformao do real que por sua vez modifica a mente criando as
idias. Todos os grandes pensadores marxistas desenvolveram uma
reflexo sobre a dialtica. Mencionarei apenas alguns, buscando
compor as idia tericas que vieram a se tornar a espinha dorsal do
mtodo do materialismo dialtico.
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Para Engels, a dialtica est presente na realidade, como forma de
articulao das partes num todo e como processo de desenvolvimento
das mesmas. Ela se manifesta no conhecimento enquanto forma de
pensar a histria da natureza e da natureza humana das quais so
abstradas as leis da dialtica: a morte como momento essencial da
vida, a negao da vida como contida na prpria negao da vida, de
forma que a vida seja sempre pensada com relao a seu resultado
necessrio, o qual est sempre contido nela em germe, a morte
(Engels, 1952,37).
Para Lnin, a realidade um todo dinmico, em permanente
desenvolvimento, em unidade de contrrios, cujo conhecimento um
processo de conquistas de verdades relativas, como parte de uma
verdade nica e absoluta. Metodologicamente, a dialtica o estudo da
oposio das coisas entre si. Metodologicamente ela se traduziria
numa forma de abordagem: necessrio, segundo o autor, desvendar as
relaes mltiplas e diversificadas das coisas entre si; o
desenvolvimento do fenmeno dentro de sua prpria lgica; a contradio
interna no interior do fenmeno; a unidade dos contrrios; a unidade
da anlise e da sntese numa totalizao das partes; a relao das coisas
como uma relao universal; a unidade dos contrrios na passagem de
uma determinao para outra. A dialtica se constitui, segundo Lnin,
num processo infinito de revelao de novos aspectos e correlaes;
processo incessante de busca de aprofundamento do conhecimento
humano; movimento de encontro da coexistncia da causalidade com
formas mais complexas de interdependncia, de reproduo e de passagem
da quantidade para qualidade (Lnin,1971).
Em sntese, a grande contribuio marxista sobre a dialtica
primeiro, inverter, tericamente e na sua aplicao prtica, a viso
hegeliana de primazia do pensamento sobre a ao na construo da
realidade, para orient-la da terra para o cu, a partir da sua
historicidade e da sua base material. Entender que do ponto de
vista da histria, nada existe de eterno, fixo e absoluto, portanto,
no existem nem idias, nem instituies nem categorias estticas. So os
seguintes os princpios com os quais o mtodo dialtico trabalha, a
partir das contribuies de Hegel e do marxismo:
1. Cada coisa um processo, isto , uma marcha, um tornar-se.
Teles (1982) exemplifica essa dinmica falando de um pra que, em sua
concretude uma sntese momentnea desse processo. Mas antes de ser a
fruta foi flor, depois ser rvore.
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Isso significa que no momento est submetida lei interna do
movimento, contm em si o passado, mas est em plena realizao. As
coisas, as relaes, as idias se transformam em virtude das leis
internas de seu autodinamismo.
2. H um encadeamento nos processos: a flor se transformou em pra
que se transformar em rvore e que um dia morrer, recompondo o ciclo
dos outros momentos vitais de mudanas. Mas nunca ser a mesma pra,
nem a mesma rvore, pois os processos se do em espiral, ou seja, no
de forma linear nem de forma circular. O que vem uma promessa,
poder ou no acontecer, mas nunca ser uma mera repetio.
3. Cada coisa traz em si sua contradio, sendo levada a
transformar-se em seu contrrio. O vivo marcha para a morte porque
vive; a felicidade contm a dor que vir; e assim por diante. Segundo
a concepo de Hegel, uma coisa ao mesmo tempo ela prpria e seu
contrrio. Qualquer coisa que se concretiza apenas um momento, uma
sntese de sua afirmao e de sua negao.
4. A quantidade se transforma em qualidade. Nos processos de
transformao, as mudanas so quantitativas e concomitamente
qualitativas. A superao do dualismo entre quantidade e qualidade se
expressa no fato de que toda qualidade comporta sempre certos
limites quantitativos e vice-versa, como tambm mostrou Kant nas
leis da matemtica transcendental. (1980). Ou seja, sob o ngulo da
dialtica, as qualidades perdem a natureza fixa e estvel que lhes so
atribudas nas concepes clssicas da fsica e da lgica. So estados ou
situaes momentneas, em transformao incessante motivada por mudanas
interiores. Assim, a oposio entre ambas dialtica e complementar: a
quantidade se apresenta sempre como uma distino no interior da
qualidade; e a qualidade est sempre presente nas quantidades, sendo
a quantidade em si mesma, uma qualidade do objeto ou da realidade.
Essa forma de compreender a realidade em processo de transformao
qualitativa sendo gerada no seio da mudana quantitativa, permite
superar, no plano do pensamento, a falsa polmica que acometeu a
prtica cientfica moderna, onde o quantitavismo se estabeleceu de
forma hegemnica, colocando todas as qualidades no mesmo plano,
(portanto no as distinguindo e diferenciando) e considerando que, a
realidade se esgota na sua expresso matemtica. Mas tambm busca
ultrapassar a
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posio contrria, que se restringe a compreender a realidade
apenas nas suas expresses qualitativas.
4. As possibilidades da articulao entre hermenutica e
dialtica
A partir dos anos 60, o debate sobre Hermenutica e Dialtica ,
entabulado por Habermas e Gadamer (1987) veio beneficiar as
discusses sobre mtodos em Cincias Sociais, na medida em que esses
dois autores buscaram forma de objetivar a prxis de produo de
conhecimento. Referindo-se discusso pblica sobre os termos citados,
entabulada por Gadamer e Habermas, Stein comenta a importncia da
colaborao desses autores, dizendo que filosofia no pode se omitir
do dilogo com as Cincias Sociais e Humanas, pois so elas que
constituem a base da filosofia hermenutica: sem o dilogo com as
cincias humanas, a filosofia se torna vazia(Stein, 1987,131). O
movimento contrrio de aproximao das cincias sociais e humanas do
pensamento filosfico tambm crucial, sob pena dos mtodos dessas
cincias se transformarem em meras tcnicas, como chama ateno Adorno
quando faz a crtica da sociologia americana positivista: a
investigao social emprica toma equivocadamente o epifenmeno, o que
o mundo fez de ns como a prpria realidade. Seu mtodo ameaa tanto
fetichizar seus assuntos quanto degenerar-se em fetiche, ou seja, a
colocar as questes de mtodo acima das questes de contedo
(1979,219).
Para Stein, trabalhar dentro do movimento hermenutico-dialtico
significa um esforo de proteger no s o objeto das cincias sociais,
mas os prprios procedimentos cientficos contra a ameaa da selvagem
atomizao dos procedimentos do conhecimento (1987,129). Isso no
significa que a hermenutica e a dialtica devam se reduzir a uma
simples teoria de tratamento de dados. Mas, por possibilitarem uma
reflexo que se funda na prxis, o casamento das duas abordagens
fecundo na conduo do processo ao mesmo tempo compreensivo e crtico
de anlise da realidade social.
A hermenutica oferece as balizas para a compreenso do sentido da
comunicao entre os seres humanos; parte da linguagem como o terreno
comum de realizao da intersubjetividade e do entendimento; faz a
crtica do das pretenses do Iluminismo que leva a cincia moderna a
crer na iseno do possvel dos pr-juzos, colocando-se fora do
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mundo da vida; investe nas possibilidades da comunicao, mas as
considera em seu processo finito, marcado pela histria e pela
cultura; e filosoficamente prope a intersubjetividade como o cho do
processo cientfico e da ao humana.. Por isso, sob a tica
hermenutica, entender a realidade que se expressa num texto tambm
entender o outro, entender-se no outro, movimento sempre possvel,
por mais difcil que parea primeira vista. No entanto, concordando
com uma das leis da dialtica, para a hermenutica, tal como definida
por Gadamer (1999), a compreenso s possvel pelo estranhamento, pois
a necessidade do entendimento nasce do fracasso da transparncia da
linguagem e da prpria incompletude e finitude humana. Assim, a
atividade hermenutica se move entre o familiar e o estranho, entre
a intersubjetividade do acordo ilimitado e a quebra da
possibilidade desse acordo.
As balizas da postura hermenutica podem ser assim resumidas a
partir de Gadamer (1999); Habermas (1987); Stein (1987); Minayo
(1993): (1) o investigador deve buscar, ao mximo, com dados
histricos e tambm pela
empatia o contexto de seu texto: dos entrevistados e dos
documentos que analisa. O discurso sempre expressa um saber
compartilhado com outros e marcado pela tradio, pela cultura e pela
conjuntura.
(2) O pesquisador que analisa documentos passados ou atuais
(biografias, material de entrevistas, textos oficiais, etc), para
entend-los, necessita adotar uma postura de respeito pelo que
dizem, supondo que, por mais obscuridade que apresentem primeira
vista, sempre tero um teor de racionalidade e de sentido. Assim,
como interprete, seu dever levar a srio o documento que tem sua
frente.
(3) O investigador no deve buscar nos textos uma verdade
essencialista, mas o seu sentido que quis expressar quem os emitiu.
Assim, o investigador s estar em condies de compreender o contedo
significativo de qualquer documento (termo usado aqui no sentido
amplo), se fizer o movimento de tornar presente, na interpretao, as
razes do autor. Por outro lado, na interpretao nunca h ltima
palavra, o sentido de uma mensagem ou de uma realidade estar sempre
aberto em vrias direes, mas principalmente, frente aos novos
achados do contexto no qual foi produzido e frente, tambm, s novas
perguntas que lhe so colocadas.
(4) Toda interpretao bem conduzida acompanhada pela expectativa
de que, se o autor estivesse presente ou pudesse realiz-la,
compartilharia dos resultados da anlises. Gadamer (1999), exige
mais: recuperando o pensamento de vrios autores
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como Dilthey (1956) e Schleiermarcher (2000), dizem que a
interpretao deve ir alm de quem escreveu o texto, pois o autor
quando o elaborou, no tinha conscincia de tudo o que permite ser
lido nele sobre seu tempo e sobre seus coetneos.
Enquanto prxis interpretativa pode ser assim resumida: (1)
Buscar as diferenas e as semelhanas entre o contexto do autor do
contexto do
investigador. (2) Explorar as definies de situao do autor, que o
texto ou a linguagem em anlise
permite. claro que freqentemente essa definio de situao no se
apresenta de forma explicita, mas deve constituir-se num labor
interpretativo do pesquisador. Para os hermeneutas, o mundo da
cotidianeidade onde se produz o discurso o parmetro da anlise, pois
o nico mundo possvel do consenso, da compreenso ou do estranhamento
da comunicao intersubjetiva, por isso o mundo objetivo.
(3) Supor o compartilhamento entre mundo observado e os sujeitos
da pesquisa com o mundo da vida do investigador (porque compreender
sempre compreender-se). E a partir de tal postura, perguntar porque
e sob que condies o sujeito da linguagem que busca entender, cria
determinadas situaes, valoriza determinadas coisas, atribui
determinadas responsabilidades a certos atores sociais, em sntese,
expressa-se e se posiciona de tal maneira e no de outra.
(4) Buscar entender as coisas e os textos neles mesmos,
distinguindo o processo hermenutico do saber tcnico que elabora um
conjunto de normas para analisar um discurso; da lingustica, cujo
objetivo a reconstruo do conjunto de regras que subjazem linguagem
natural; da da fenomenologia cuja linguagem tomada como sujeito da
forma de vida e da tradio, como se a conscincia lingstica
determinasse o ser material da prxis vital; e do objetivismo
positivista que estabelece uma conexo ingnua entre os enunciados
tericos e os dados factuais, como se fosse possvel haver verdade
fora da prxis.
(5) Apoiar a reflexo sobre o contexto histrico, partindo do
pressuposto de que o investigador-intrprete e seu sujeito de
observao e pesquisa so momentos expressivos de seu tempo e de seu
espao cultural.
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Em relao dialtica, assinalarei com base em Habermas (1987) e
Stein (1987) as aproximaes e as diferenciaes que permitem s duas
abordagens se complementarem, buscando de antemo, ressaltar suas
potencialidades complementares:
(3) Em primeiro lugar, enquanto a hermenutica busca
essencialmente a compreenso, a dialtica estabelece uma atitude
crtica. Habermas expressa esta diferenciao, afirmando que a razo
humana pode mais que simplesmente compreender e interpretar. Ela
possui uma fora transcendental que lhe permite exercer crtica e
superar prejuzos: A mesma razo que compreende, esclarece e rene,
tambm contesta e dissocia (Habermas,1987,20). A estrutura do
significado presente na linguagem, na qual a hermenutica coloca
maior nfase, para a lgica dialtica apenas um dos fatores na
totalidade do mundo real. Goldmann(1980) e Habermas (1987) realizam
uma crtica extensiva do campo compreensivista, que vai da
hermenutica fenomenologia e etnometodologia, dizendo que esse tipo
de abordagem ignora a totalidade da vida social. Move-se num espao
de comunicao restrito da vida cotidiana como se esse universo desse
conta da totalidade do processo scio-histrico e cultural. Habermas
(1987) critica Gadamer, dizendo que ele se esquece de que o
contexto da tradio no apenas o espao da verdade, mas tambm da
falsidade ftica, pois atravessado por interesses e pela violncia.
Argumenta que, a seu ver, o mundo se compe de trabalho, poder e
linguagem, portanto, a linguagem que reflete esse mundo est marcada
e limitada pelo carter ideolgico das relaes de trabalho e
poder:
Linguagem tambm meio de dominao e de poder social. Serve s
relaes de violncia organizada. Na medida em que as legitimaes no
manifestam a relao de violncia, cuja institucionalizao possibilita,
e na medida em que isso s se expressa em legitimaes, a linguagem
tambm ideolgica (Habermas, 1987,21).
(2) O marxismo reafirma que toda a vida humana social e est
sujeita s leis histricas, raciocnio no qual a lgica dialtica se
assemelha fundamentao hermenutica de Gadamer: quem voltar a ler a
histria da tribo {dos esquims} daqui a 50 ou 100 anos, no s achar
que essa histria velha, porque nesse meio tempo ele sabe mais ou
interpreta melhor as fontes mais corretamente, mas ele pode admitir
tambm que no ano de 1960 liam-se as fontes de modo diverso, porque
as pessoas estavam motivadas por outras questes, por outros
pressupostos e por outros interesses (1999). Assim o exerccio
dialtico considera como fundamento da comunicao as relaes sociais
historicamente dinmicas, antagnicas e contraditrias entre
classes,
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grupos e culturas. Ou seja, entende a linguagem como um veculo
de comunicao e de dificuldade de comunicao, pois seus significantes
com significados aparentemente iguais para todos, escondem e
expressam a realidade conflitiva das desigualdades, da dominao, da
explorao e tambm da resistncia e da conformidade. Uma anlise
compreensiva hermenutica-dialtica busca apreender a prtica social
emprica dos indivduos em sociedade em seu movimento contraditrio.
Portanto, tendo em conta que os indivduos vivendo determinada
realidade pertencem a grupos, classes e segmentos diferentes; so
condicionados por tal momento histrico; e por isso, podem ter
simultaneamente, interesses coletivos que os unem e interesses
especficos que os distinguem e os contrapem. Sendo assim, a
orientao dialtica de qualquer anlise diz que fundamental realizar a
crtica das idias expostas nos produtos sociais (textos, monumentos,
instituies) buscando, na sua especificidade histrica, a
cumplicidade com seu tempo; e nas diferenciaes internas, sua
contribuio vida, ao conhecimento e s transformaes.
(3) Enquanto a hermenutica busca as bases dos consenso e da
compreenso na tradio e na linguagem, o mtodo dialtico introduz na
compreenso da realidade o princpio do conflito e da contradio como
algo permanente e que se explica na transformao.
(4) Na medida em que nada se constri fora da histria, qualquer
texto (em sentido amplo) necessita estar referido ao contexto no
qual foi produzido, porque s poder ser entendido na totalidade
dinmica das relaes sociais de produo e reproduo nas quais se
insere. Mais que isso, o cientista que analisa as questes sociais
nunca poder se esquecer de que os seres humanos no so s objeto de
investigao, so tambm sujeitos de relaes: na defesa dessa posio a
hermenutica de Gadamer se aproxima da dialtica marxista. Diz
Goldmann: A deformao cientfica no comea quando se tenta aplicar, ao
estudo das comunidades, mtodos das cincias fsico-qumicas, mas no
fato de considerar-se essa comunidade objeto de estudo. (1980,22).
Diz Gadamer: a compreenso jamais um comportamento subjetivo frente
a um objeto dado. Mas frente histria factual, e isso significa que
pertence ao ser daquilo que compreendido (Gadamer, 1999,19).
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(5) A dialtica marxista em seu vis articulador dos polos da
objetividade e da subjetividade (Goldmann,1980) considera que a
vida social o nico valor comum que rene a todos os seres humanos e
de todos os lugares. Nisso coincide com a hermenutica que proclama
o terreno da intersubjetividade como o locus da compreenso. Nesse
sentido possvel haver um dilogo de ambas as abordagens
preconizando: (a) a compreenso da conscincia e das atitudes
fundamentais dos indivduos e dos grupos em anlise, em face dos
valores da comunidade e do universo; (a) a compreenso das
transformaes do sujeito da ao dialtica ser
humano/natureza/sociedade, numa busca de sntese entre passado,
presente e projeo para o futuro; (c) a compreenso das aes humanas
de todos os tipos e dos diferentes lugares e do acontecimentos
inevitveis ligados a elas, forem quais forem as intenes dos atores
sociais e os significados que atribuam aos eventos e a seu prprio
comportamento; (d) a compreenso de que as estruturas que
condicionam os seres humanos em seu processo individual ou coletivo
so construes humanas objetivadas; (e) a compreenso de que a
liberdade e a necessidade se condicionam mutuamente no processo
histrico. Joja resume a prxis metodolgica dialtica com a seguinte
expresso:
apreender os fenmenos em sua auto-relao e hetero-relao; em suas
relaes com a multiplicidade de seus prprios ngulos e com seus
aspectos inter-condicionados; em seu movimento e desenvolvimento;
em sua multiplicidade e acondicionamento recproco com outros
fenmenos ou grupos de fenmenos(Joja, 1964,55).
Dentro da lgica que articula a hermenutica e a dialtica, eu
apenas substituiria o termo apreender com que Joja inicia a citao
acima, pela expresso compreender. Parece pouco, mas o sentido da
prxis metodolgica mudaria essencialmente: deslocaria o investigador
da postura de observador externo que apreende, pelo pesquisador que
se posiciona junto, no meio, em intersubjetividade e parte da
histria. Tal seria um rearranjo filosfico de sada da filosofia da
conscincia para a filosofia da comunicao, como prope Habermas
(1987).
(6) Por fim, levando em conta as relaes entre quantidade e
qualidade, a dialtica convida superao do quantitativismo e do
qualitativismo na pesquisa. No primeiro caso, prope uma reviso do
positivismo que exclui e no leva em conta os que h de essencial nos
processos de que se constitui a realidade objetiva: a transformao
qualitativa, a passagem de uma qualidade a outra. No segundo, induz
a pensar no
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apenas na especificidade e diferenciao interna dos fenmenos, mas
tambm no seu conjunto e na sua configurao unitria como realizao da
realidade objetiva. Aqui a dialtica d um passo frente e se contrape
s hermenutica e fenomenologia (embora Husserl fale de uma
investigao de correlaes) que promovem a crtica ao quantitivismo sem
propor nenhuma sada para o processo de articulao entre os nveis
concomitantes, intensivos e extensivos dos fenmenos da natureza e
da vida social.
5. Concluses: busca de integrao dialgica e crtica
A proposta deste texto foi ressaltar a contribuio e os limites
da hermenutica e da dialtica na compreenso e na crtica da realidade
social. Ao mostrar como a primeira realiza o entendimento dos
textos, dos fatos histricos, da cotidianeidade e da realidade na
qual ocorrem, ressaltar que suas limitaes podem ser fortemente
compensadas pelas propostas do mtodo dialtico. A dialtica, por sua
vez, ao sublinhar o discenso, a mudana e os macroprocessos, pode
ser fartamente beneficiada pelo movimento hermenutico que enfatiza
o acordo e a importncia da cotidianeidade. Desta forma, busco
concluir que, enquanto a prxis hermenutica, assentada no presente,
penetra no sentido do passado, da tradio, do outro, do diferente,
buscando alcanar o sentido das mais diversas formas de texto, a
dialtica se dirige contra o seu tempo. Enfatiza a diferena, o
contraste, o dissenso e a ruptura do sentido.
Assim, a hermenutica e a dialtica se apresentam como momentos
necessrios da produo de racionalidade em relao aos processos
sociais e, por conseguinte, em relao aos processos de sade e doena,
constitudos, de forma complexa, como um hbrido (Latour, 1994) ou
como se realizando pela mediao da cultura:
os determinismos sociais no informam jamais o corpo de maneira
imediata, atravs de uma ao que se exerceria diretamente sobre a
ordem biolgica, sem a mediao do cultural que os reinterpreta e
transforma em regras, em obrigaes, em proibies, em repulsa ou
desejos, em gostos e averses(Boltanski,1979,119).
Nessa combinao de oposies complementares, o mtodo dialtico tem
como pressuposto o mtodo hermenutico, ainda quando as duas concepes
tenham sido desenvolvidas atravs de movimentos filosficos
diferentes. Pois, como ressalta Stein
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(1987): (a) ambas trazem em seu ncleo, a idia fecunda das
condies histricas de qualquer manifestao simblica, de linguagem e
de trabalho do pensamento; (b) ambas partem do princpio de que no h
observador imparcial nem h ponto de vista fora da realidade do ser
humano e da histria; (c) ambas superam a simples tarefa de serem
ferramentas do pensamento, pois consideram o investigador parte da
realidade que investiga; (d) ambas questionam o tecnicismo como
caminho capaz de realizar a compreenso e a crtica dos processos
sociais: (e) ambas se referem prxis e desvendam as condicionantes
da produo intelectual, marcada tanto pela tradio, pelos pr-juzos,
como pelo poder, pelos interesses e pelas limitaes do
desenvolvimento histrico.
Em resumo, pelo aprofundamento das duas idias centrais propostas
como mtodo de abordagem e de anlise entendido mtodo como caminho de
pensamento - espero estar contribuindo com os estudiosos dos
processos sade-doena, na forma de pensar e investigar os fenmenos a
eles relacionados. Considerei um dado e no desenvolvi nenhuma
reflexo sobre o fato bvio de que sade e doena so realidades
biolgicas em primeiro lugar. Apenas quis contribuir com a anlise do
componente social desse hbrido, tal como pensado por Latour (1994)
e por Boltanski (1979), quando mostram que os fenmenos biolgicos so
mediados pela cultura e cuja complexidade de abordagem pode ser
trabalhada atravs da combinao entre a hermenutica e a dialtica.
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