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CATALOGAO NA FONTEDO
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DEPARTAMENTO NACIONAL DO LIVRO_
H114d Habermas, Jurgen, 1929-
Direito e democracia: entre facticidade e validade, volume I/
Jurgen Habermas; traduo: Flvio Beno Siebeneichler. -Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997.
354 p. ; cm. - (Biblioteca Tempo Universitrio; 101)ISBN
85-282-0091-4Inclui bibliografia.
1.
Sociologia jurdica. 2. Direito - Metodologia. 3.Comunicao. I.
Ttulo. H Srie.
CDD - 340.115
Jurgen Habermas
DIREITO E DEMOCRACIAEntre facticidade e validade
Volume I
Traduo:FLVIO BENO SIEBENEICHLER - UGF
TEMPO BRASILEIRORio de Janeiro - RJ - 1997
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BIBLIOTECA TEMPO UNIVERSITRIO, 101
Coleo dirigida por EDUARDO PORTELLAProfessor da Universidade
Federal do Rio de Janeiro
Traduzido do original alemo: Faktizitt und Geltung. Beitrge
zurDiskurstheorie des Rechits und des demokratische Rechitstaats.
4- edi-o revista e complementada por um psfcio e uma lista
bibliogrfica,Frankfurt/M
, Ed. Suhrkamp, (1992) 1994
Capa:Antnio Dias com montagem de VIDA Informtica(vista de
Frankfurt, s margens do Main)
Reviso:Daniel Camarinha da Silva
. Copyright:Suhrkamp Verlag Frankfurt am Main 1992 (Todos os
direitosreservados)
Este livro foi traduzido da 4 edio revista e complementadapor um
posfcio e uma lista bibliogrfica.
Direitos reservados sEDIES TEMPO BRASILEIRORua Gago Coutinho, 61
- LaranjeirasTel.: (021) 205-5949 Fax: (021) 225-9382Caixa Postal
16099 - CEP 22221-070Rio de Janeiro - RJ - Brasil
NOTA DO TRADUTOR
O presente trabalho de Jiirgen Habermas constitui sem dvidaum
dos momentos mais interessantes de seus exerccios de
razocomunicativa. Nele se entrelaam elementos da filosofia
, do direi-
to e das cincias sociais, capazes de provocar discusses
fecundasacerca das ingentes questes de integrao social, a serem
enfren-tadas pelo homem neste final de milnio.
Tal construo levanta verdadeiros desafios a uma verso doidioma
alemo para o portugus, agravados pelo fato de Habermasutilizar como
pano de fundo a tradio jurdica alem e anglo-sax.
A fim de enfrentar esta tarefa, a traduo contou com o apoio eas
sugestes valiosas dos Profs. Vicente Barreto e Ubiratan B.Macedo,
da ps-graduao em filosofia da Universidade GamaFilho e do Prof.
Ricardo Lobo Torres, da ps-graduao em direito,da mesma
universidade.
Por razes editoriais, a traduo aparece dividida em dois
volu-mes. Foram mantidas em ingls as citaes e passagens que oprprio
Habermas preferiu apresentar desta maneira. No final dosegundo
volume haver uma lista bibliogrfica completa dos au-tores citados
no texto.
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SUMRIO
PREFCIO.9I
.
O DIREITO COMO CATEGORIA DA MEDIAOSOCIAL ENTRE FACTICIDADE E
VALIDADE.17I
.
Significado e verdade: sobre a tenso entre facticidadee validade
no interior da linguagem.26
D.
Transcendncia a partir de dentro: superao do riscode dissenso a
nvel arcaico e do mundo da vida.35
Hl. Dimenses da validade do direito.48
n.
CONCEITOS DA SOCIOLOGIA DO DIREITOE DA FILOSOFIA DA
JUSTIA.65I
.
O desencantamento do direito por obra das cinciassociais.66
II. Retorno do direito racional e impotncia do dever-ser.83DL
Parsons versus Weber: a funo social integradora do
direito.94
m.
PARA A RECONSTRUO DO DIREITO (I):O SISTEMA DOS DIREITOS.113I
.
Autonomia privada e pblica, direitos humanos esoberania do
povo.116
II. Normas morais e jurdicas: Sobre a relao decomplementaridade
entre moral racional e direitopositivo.139
IH. Fundamentao dos direitos bsicos pelo caminhoda teoria do
discurso: princpio do discurso, formado direito e princpio da
democracia.154
-
IV. PARA A RECONSTRUO DO DIREITO (2):OS PRINCPIOS DO ESTADO DE
DIREITO.169I
.
A relao interna entre direito e poltica.170II. Poder
comunicativo e formao legtima do direito.190DI. Princpios do Estado
de direito e lgica da diviso
dos poderes.211
V.
INDETERMINAO DO DIREITO ERACIONALIDADE DA JURISDIO.241I
.
Hermenutica, realismo e positivismo.245n
.
Dworkin e a teoria dos direitos.261EH. Sobre a teoria do
discurso jurdico.276
VI. JUSTIA E LEGISLAO. SOBRE O PAPELE A LEGITIMIDADE DA
JURISDIOCONSTITUCIONAL.297I
.
Dissoluo do paradigma liberal do direito.299II. Normas versus
valores: Crtica a uma
autocompreenso metodolgica falsa do controleda
constitucionalidade..314
HE. O papel da jurisdio constitucional na viso dapoltica
liberal, republicana e procedimental.330
PREFCIO
Na Alemanha, a filosofia do direito no mais tarefa exclusivados
filsofos. No presente trabalho quase no cito o nome de Hegel eme
apio muito mais na doutrina kantiana do direito: essa atitude fruto
da timidez perante um modelo cujos padres no conseguimosmais
atingir. E o fato de a filosofia do direito - quando ainda busca
ocontato com a realidade social - ter emigrado para as faculdades
dedireito bastante sugestivo1. Entretanto, evito cair no lado
oposto, ouseja, no pretendo limitar-me a uma filosofia do direito
especializadajuridicamente, que tem o seu ponto forte na discusso
dos fundamen-tos do direito penal2.0 que antigamente podia ser
mantido coeso emconceitos da filosofia hegeliana, exige hoje um
pluralismo de proce-dimentos metodolgicos que inclui as
perspectivas da teoria do direito,da sociologia do direito e da
histria do direito, da teoria moral e dateoria da sociedade.
Tal estado de coisas bem-vindo, uma vez que permite focalizaruma
faceta pluralista da teoria do agir comunicativo,
frequentementeignorada. Os conceitos bsicos da filosofia no formam
uma lingua-gem prpria ou, pelo menos, no constituem mais um sistema
capazde tudo incorporar: eles no passam de simples meios para a
apropria-o reconstrutiva de conhecimentos cientficos. E o singular
poliglo-tismo da filosofia, que deriva de sua competncia em
tornar
1 HASSEMER, W. "Rechtsphiloeophie, Rechtswissenschaft,
Rechtspoli-tik", in: Archivjur Rechts - u. Sozialphibsophie, Supl.
44,1991,130-143.
2 K. Giinther esboa a contribuio da teoria do discurso para
essetema. Cf. Id. "Mglichkeiten einer diskursethischen
Begriindungdes Strafrechts", in: JUNG, H. et al. (Eds.). Recht und
Moral.Baden-Baden, 1991, 205-207.
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transparentes os conceitos fundamentais, permite-lhe
descobrir
coerncias surpreendentes a nvel metaterico. Por conseguinte,
asproposies fundamentais da teoria do agir comunicativo
ramifi-cam-se em diferentes universos de discurso e contextos de
argu-mentao nos quais elas tm que comprovar-se.
O primeiro captulo enfoca alguns pontos da relao entre
facti-cidade e validade, envolvendo aspectos bsicos da teoria do
agircomunicativo. E esse problema, abordado no ttulo, necessitaria,
semdvida alguma, de um esclarecimento mais detalhado, o que nopoder
ser feito, infelizmente. O segundo captulo esboa um
princpioextremamente amplo, capaz de incorporar as teorias
filosficas dajustia e as teorias sociolgicas do direito. Os dois
captulos subse-quentes procuram levar a termo a reconstruo de
partes do direitoracional clssico no quadro de uma teoria do
direito apoiada numateoria do discurso. E, nessa operao, sirvo-me
de princpios da ticado discurso, desenvolvidos alhures3. Convm
notar, todavia, queatualmente eu no determino mais a relao
complementar entre morale direito seguindo a linha traada nas
Tanner Lectures4. No captuloquinto e no sexto, tento comprovar o
princpio da teoria do discursoem temas centrais da teoria do
direito. Refiro-me a discusses atuaisna Repblica Federal da
Alemanha e nos EUA, dada minha maiorfamiliaridade com essas duas
tradies jurdicas. No captulo stimoe no oitavo, esclareo o conceito
normativo de poltica deliberativa eexamino, na perspectiva
sociolgica, condies para uma regulamen-tao jurdica da circulao do
poder em sociedades complexas. E,neste ponto, prefiro abordar a
teoria da democracia sob aspectos dalegitimao. O ltimo captulo
tenta reconduzir as consideraes sobre
3 HABERMAS, J. Moralbewusstsein und kommunikatives
Handeln.Frankfurt a/M., 1983; Id. Erluterungen zur
Diskursethik,Frankfurt a/M., 1991.
4 No meu entender, o acesso escolhido por K. O. Apel por
demaisnormativista. Cf. "Diskursethik vor der Problematik von Recht
undPolitik", in: APEL, K. O., KETTNER, M. (Eds.). Zur Anwendungder
Diskursethik in Politik, Recht und Wissenschaft. Frankfurta/M.,
1992, 29-61.
10
teoria do direito e sobre teoria da sociedade a uma
unidade,servindo-se do paradigma procedimentalista do direito
.
Pretendo mostrar,
por este caminho, que a teoria do agircomunicativo, ao contrrio
do que se afirma muitas vezes
, no
cega para a realidade das instituies5 - nem implica
anarquiaf.Concordo, no entanto
, que qualquer potencial de liberdades comu-
nicativas, imprescindveis em todo o Estado democrtico de
direi-to, disposto a garantir efetivamente liberdades subjetivas
iguais,traz em seu bojo certos germes anrquicos.
Apesar de leigo no assunto, tive que me deter em discusses
jurdicas especializadas, muito mais do que eu imaginara no
incio.
E,nesse meio tempo, cresceu meu respeito ante as significativas
realiza-es construtivas dessa disciplina. As sugestes para a
clarificao dacompreenso paradigmtica que serve de pano de fundo ao
direito e moral deveriam ser vistas como uma contribuio discusso
quese dirige contra o ceticismo cada vez mais difundido entre
colegas darea do direito - especialmente contra o que eu denomino
de falsorealismo, que subestima a eficcia social dos pressupostos
normativosdas prticas jurdicas existentes. Nas controvrsias sobre a
constitui-o jurdica da comunidade poltica, iniciadas j no sculo
XVII,articula-se uma autocompreenso prtico-moral da modernidade
to-mada em seu todo. Ela tambm se expressa nos testemunhos de
umaconscincia moral universalista e nas instituies livres do
Estadodemocrtico de direito. O sentido normativo prprio da teoria
dodiscurso procura reconstruir essa autocompreenso de maneira
aafirmar-se contra redues cientificistas7 e contra assimilaes
estti-cas
.
As trs dimenses de validade, nas quais a autocompreenso da
5 Essa a opinio de R. Bubner, reiterada em seu recente livro:
Antike Themen
und ihre moderne Verwandlung. Frankfurt a/M., 1992,
188-202,especialmente no captulo intitulado "Das sprachliche Mdium
der Politik".
6 HFFE, O. Politische Gerechtigkeit. Frankfurt a/M., 1987,
193ss.7 LUHMANN, N. Beobachtungen der Moderne. Colnia, 1992.8
DERRIDA, J. Gesetzeskraft. Der 'mystische Gr und der Autoritt'.
Frankfurt a/M., 1991.
11
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modernidade se diferencia, no podem entrar em colapso. Apsum
sculo que, como nenhum outro, nos ensinou os horrores dano-razo
existente, os ltimos resqucios da confiana numa razoessencialista
evaporaram-se. E a modernidade, uma vez conscientede suas
contingncias, cada vez mais fica dependente de uma
razoprocedimental, isto , de uma razo que conduz um processo
contrasi mesma. Ora, a crtica da razo obra dela prpria: tal
ambigui-dade kantiana resulta de uma idia radicalmente
antiplatnica,segundo a qual no existe algo mais elevado ou mais
profundo aoqual possamos apelar, uma vez que, ao chegarmos,
descobrimosque nossas vidas j estavam estruturadas
linguisticamente.
H trs dcadas critiquei a tentativa de Marx em trazer afilosofia
hegeliana do direito para uma filosofia da histria mate-rialista,
utilizando as seguintes palavras:
"Com a crtica ao Estado de direito burgus... Marx desacre-ditou
de tal maneira a idia da juridicidade e a inteno do direitonatural
enquanto tal, dissolvendo sociologicamente a base dosdireitos
naturais, que o liame entre revoluo e direito natural sedesfez. Os
partidos de uma guerra civil internacionalizada dividi-ram o legado
de modo desastroso: um dos lados assumiu a heranada revoluo, o
outro a ideologia do direito natural"9.
O colapso do socialismo de Estado e o final da "guerra
civilmundial"
colocaram em evidncia a falha terica do partido fra-cassado:
descobriu-se que ele confundira o projeto socialista como esboo - e
a imposio forada - de uma forma de vida concreta.Todavia, se
entendermos "socialismo" como prottipo de condi-es necessrias para
formas de vida emancipadas, sobre as quaisos prprios participantes
precisam entender-se preliminarmente,no difcil verificar que a
auto-organizao democrtica de umacomunidade jurdica forma o ncleo
normativo desse projeto. Deoutro lado, o partido que se considera
vitorioso no pode come-morar o seu triunfo. Pois, no momento em que
poderia assumir a
9 As conferncias sobre "Direito natural e revoluo", proferidas
em
outubro de 1962, foram publicadas in: HABERMAS, J. Theorie
undPraxis. Frankfurt a/M., 1971, 89-127, aqui cf. Cap. III, Seo
I.
12
herana indivisa da autocompreenso prtico-moral da moderni-dade,
ele desanima perante a tarefa ingente de levar adiante adomesticao
social e ecolgica do capitalismo no mbito de umasociedade mundial
ameaada. certo que ele se apressa a respeitaro sentido sistmico
prprio de uma economia orientada pelosmercados; e pelo menos est
protegido contra uma dilataoexagerada do mdium do poder de
burocracias estatais. Entretanto
,
falta-lhe uma sensibilidade semelhante para a fonte que
propria-mente est ameaada - uma solidariedade social a ser
recuperadae conservada em estruturas jurdicas.
Nas atuais sociedades ocidentais, a poltica perde sua
autocons-
cincia e a orientao perante o desafio iminente de uma
delimitaoecolgica iminente do crescimento econmico e da disparidade
cres-cente entre as condies de vida no Norte e no Sul; perante a
tarefahistoricamente peculiar da reorganizao de sociedades onde
impera-va o socialismo de Estado; perante a presso das correntes
migratriasoriundas das regies empobrecidas do Sul e do Oriente;
perante osriscos de novas guerras tnicas
, nacionais e religiosas, de chantagensatmicas e de lutas
internacionais de partilha.
Aqum dos floreiosretricos
, predomina a pusilanimidade. Nas prprias democracias
estabelecidas, as instituies existentes da liberdade no so
mais
inatacveis, mesmo que a democracia aparentemente continue
sendo
o ideal das populaes. Suponho, todavia, que a inquietao
possui
uma razo mais profunda: ela deriva do pressentimento de que,
numa
poca de poltica inteiramente secularizada, no se pode ter
nem
manter um Estado de direito sem democracia radical.
A presentepesquisa pretende transformar esse pressentimento num
saber expl-cito. Finalmente
, convm ter em mente que os sujeitos jurdicosprivados no podem
chegar ao gozo das mesmas liberdades subjetivas,se eles mesmos - no
exerccio comum de sua autonomia poltica - notiverem clareza sobre
interesses e padres justificados e no chegarema um consenso sobre
aspectos relevantes
, sob os quais o que igualdeve ser tratado como igual e o que
diferente deve ser tratado comodiferente.
No me iludo sobre os problemas e os estados de nimoprovocados
por nossa situao. Todavia, estados de nimo - efilosofias de estados
de nimo melanclicos - no conseguem
13
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justificar o abandono derrotista dos contedos radicais do
Estadodemocrtico de direito; eu proponho, inclusive, um novo modo
deler esses contedos
, mais apropriado s circunstncias de umasociedade complexa. Caso
contrrio, eu deveria escolher um outrognero literrio - talvez o do
dirio de um escritor helenista,preocupado apenas em documentar para
a posteridade as promes-sas no cumpridas de sua cultura
decadente.
Em anexo aparecem dois trabalhos, publicados anteriormenteem
alemo. O primeiro introduz o conceito procedimental dedemocracia
num contexto histrico mais amplo; o outro esclarecetrs aspectos
diferentes do conceito de patriotismo constitucional,quase sempre
mal interpretado. As Tanner Lectures, ministradash seis anos, na
Harvard University, foram publicadas em ingls,holands e italiano.
Elas nasceram em Frankfurt, durante o anoacadmico de 1985/86, de
prelees sobre filosofia do direito.
Na mesma poca, o "Programa-Leibniz", da Comunidade Ale-m de
Pesquisa (Deutsche Forschungsgemeinschaft), surpreendeu-me com a
possibilidade de escolher e de executar um projeto depesquisa com a
durao de cinco anos. Tal casualidade propciaensejou a instaurao de
uma comunidade de trabalho voltada para ateoria do direito. Ela
constituiu o contexto excepcionalmente estimu-lante e instrutivo,
no qual consegui desenvolver a linha ento iniciada.Senti essa
cooperao como excepcionalmente feliz10; dela resultarammuitas
publicaes e uma srie de monografias. Sem o auxlio produ-tivo de
colaboradores competentes, eu no teria tido a coragem deassumir o
projeto de uma filosofia do direito; nem teria
conseguidoapropriar-me dos conhecimentos e argumentos necessrios
para suaexecuo. Alm disso, sou grato aos membros permanentes do
grupode trabalho: Inge Maus, Rainer Forst, Gunter Frankenberg,
Klaus
10 GNTHER, K. Der Sinn fur Angemessenheit. Frankfurt a/M.1991;
PETERS, B. Rationalitt, Recht und Gesellschaft. Frankfurta/M.,
1991; MAUS, I. Zur Aufklrung der Demokratietheorie.Frankfurt a/M.,
1992; PETERS, B. Die Integration modernerGesellschaften. Frankfurt
a/M., 1993; WINGERT, L. Gemeinsimund MoraL Frankfurt a/M., 1993;
FORST, R. Kontexte derGerechtigkeit. Frankfurt a/M., 1994.
14
Giinther, Bernhard Peters e Lutz Wingert, por seus
comentrios
valiosos s primeiras verses de meu manuscrito.
Tambm agra-deo a Thomas A. MacCarthy por sugestes. Devo tantos
ensina-mentos percia jurdica de Klaus Giinther
, que quase hesitaria emeximi-lo, como tambm os outros
, da responsabilidade pelos meuserros - o que, no entanto
, fao expressamente.
Frankfurt, julho de 1992.
15
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I. O DIREITO COMO CATEGORIA
DA MEDIAO SOCIAL ENTREFACTIC IDADE E VALIDADE
A modernidade inventou o conceito de razo prtica comofaculdade
subjetiva. Transpondo conceitos aristotlicos par y e-missas da
filosofia do sujeito, ela produziu um desenraizamentoda razo
prtica, desligando-a de suas encarnaes nas formas devida culturais
e nas ordens da vida poltica. Isso tornou possvelreferir a razo
prtica felicidade, entendida de modo individua-lista e autonomia do
indivduo, moralmente agudizada - liberdade do homem tido como um
sujeito privado, que tambmpode assumir os papis de um membro da
sociedade civil, doEstado e do mundo. No papel de cidado do mundo,
o indivduoconfunde-se com o do homem em geral - passando a ser
simulta-neamente um eu singular e geral. O sculo XIX acrescenta a
esserepertrio de conceitos, oriundo do sculo XVIH, a
dimensohistrica: O sujeito singular comea a ser valorizado em
suahistria de vida, e os Estados - enquanto sujeitos do
direitointernacional - passam a ser considerados na tessitura da
histria,das naes. Coerente com essa linha, Hegel constri o
conceito"
esprito objetivo". Sem dvida, tanto Hegel como Aristtelesesto
convencidos de que a sociedade encontra sua unidade na vidapoltica
e na organizao do Estado; a filosofia prtica da moder-nidade parte
da idia de que os indivduos pertencem sociedadecomo os membros a
uma coletividade ou como as partes a um todoque se constitui atravs
da ligao de suas partes.
Entrementes, as sociedades modernas tornaram-se to com-plexas,
ao ponto de essas duas figuras de pensamento - a de umasociedade
centrada no Estado e a da sociedade composta de
17
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indivduos - no poderem mais ser utilizadas indistintamente.
Aprpria teoria marxista da sociedade convencera-se da necessidadede
renunciar a uma teoria normativa do Estado. Aqui, no entanto,a razo
prtica deixa seus vestgios filosfico-histricos no con-ceito de uma
sociedade que se administra democraticamente a simesma, na qual o
poder burocrtico do Estado deve fundir-se coma economia
capitalista. O enfoque sistmico, no entanto, renun-ciando a
qualquer tipo de contedo normativo da razo prtica, notrepida em
apagar at esses derradeiros vestgios. O Estado passaa formar um
subsistema ao lado de outros subsistemas sociaisfuncionalmente
especificados; estes, por sua vez, encontram-senuma relao
configurada como "sistema-mundo circundante", omesmo acontecendo
com as pessoas e sua sociedade. Partindo daidia hobbesiana da
auto-afirmao naturalista dos indivduos,Luhmann elimina
consequentemente a razo prtica atravs daautopoiesis de sistemas
dirigidos auto-referencialmente. E tudoleva a crer que os esforos
de reabilitao e as formas empiristasretradas no conseguem devolver
ao conceito de razo prtica afora explanatria que ele tivera no
mbito da tica e da poltica,do direito racional e da teoria moral,
da filosofia da histria e dateoria da sociedade.
A filosofia da histria pode decifrar, verdade, elementos
deracionalidade nos processos histricos, porm, somente os que
ekmesma neles introduzira, servindo-se de conceitos
teleolgicos;tampouco possvel extrair da constituio histrica e
natural dohomem imperativos normativos para uma conduta racional
davida. No menos que a filosofia da histria, uma antropologia
nosmoldes de Scheler ou de Gehlen alvo da crtica das cincias quea
antropologia tenta em vo tomar a seu servio - as fraquezas deuma so
simtricas em relao s da outra. A renncia contextua-lista
fundamentao tambm no convence, uma vez que selimita a responder s
fracassadas tentativas de fundamentao daantropologia e da filosofia
da histria, teimando em invocar a foranormativa do ftico. A
enaltecida linha de desenvolvimento doEstado democrtico de direito
do "Atlntico Norte" certamente nosproporcionou resultados que
merecem ser preservados; todavia, osque casualmente no se encontram
entre os felizes herdeiros dos
18
fundadores da constituio americana no conseguem encontrar,
em sua prpria tradio, boas razes que aconselhem a separar oque
digno de ser conservado daquilo que merece crtica.
Os vestgios do normativismo do direito racional perdem-se,
pois, no trilema: aps a imploso da figura da razo prtica
pelafilosofia do sujeito, no temos mais condies de fundamentar
osseus contedos na teleologia da histria, na constituio do homemou
no fundo casual de tradies bem-sucedidas. Isso explica osatrativos
da nica opo que ainda parece estar aberta: a dodesmentido intrpido
da razo em geral nas formas dramticas deuma crtica da razo
ps-nietzscheana, ou maneira sbria dofuncionalismo das cincias
sociais, que neutraliza qualquer ele-mento de obrigatoriedade ou de
significado na perspectiva dosparticipantes. Ora, todo pesquisador
na rea das cincias sociaisque no deseja apostar tudo em algo
contra-intuitivo, no seratrado por tal soluo. Por esta razo
, eu resolvi encetar um
caminho diferente, lanando mo da teoria do agir
comunicativo:substituo a razo prtica pela comunicativa. E tal
mudana vaimuito alm de uma simples troca de etiqueta.
Nas tradies culturais da velha Europa, havia uma ligao
demasiado direta entre razo prtica e prtica social. Isso fez
comque essa ltima fosse abordada unicamente pelo ngulo de
ques-tionamentos normativos ou criptonormaivos - filtrados atravs
deuma filosofia da histria. At Hegel
, a razo prtica pretendiaorientar o indivduo em seu agir, e o
direito natural devia configu-rar normativamente a nica e correta
ordem poltica e social.Todavia
, se transportarmos o conceito de razo para o mdiumlingustico e
o aliviarmos da ligao exclusiva com o elementomoral, ele adquirir
outros contornos tericos
, podendo servir aosobjetivos descritivos da reconstruo de
estruturas da competnciae da conscincia
, alm de possibilitar a conexo com modos de verfuncionais e com
explicaes empricas1.
1 HABERMS, J. "Rekonstruktve vs. verstehende
Sozialwissenschaften",
in: Id. Moralbewusstsein und kommumkatives Handeln. Frankfurt
a/M.,1983,29ss.
19
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A razo comunicativa distingue-se da razo prtica por noestar
adscrita a nenhum ator singular nem a um
macrossujeitosociopoltico.
O que torna a razo comunicativa possvel omdium lingustico
, atravs do qual as interaes se interligam e
as formas de vida se estruturam. Tal racionalidade est inscrita
notelos lingustico do entendimento, formando um ensemble decondies
possibilitadoras e, ao mesmo tempo, limitadoras. Qual-quer um que
se utilize de uma linguagem natural, a fim de enten-der-se com um
destinatrio sobre algo no mundo, v-se forado aadotar um enfoque
performativo e a aceitar determinados pressu-postos. Entre outras
coisas, ele tem que tomar como ponto departida que os participantes
perseguem sem reservas seus finsilocucionrios, ligam seu consenso
ao reconhecimento intersubje-tivo de pretenses de validade
criticveis, revelando a disposiode aceitar obrigatoriedades
relevantes para as consequncias dainterao e que resultam de um
consenso. E o que est embutidona base de validade da fala tambm se
comunica s formas de vidareproduzidas pela via do agir
comunicativo. A racionalidade co-municativa manifesta-se num
contexto descentrado de condiesque impregnam e formam estruturas,
transcendentalmente possi-bilitadoras; porm, ela prpria no pode ser
vista como umacapacidade subjetiva
, capaz de dizer aos atores o que devem fazer.A razo
comunicativa
, ao contrrio da figura clssica da razoprtica, no uma fonte de
normas do agir. Ela possui um contedonormativo, porm somente na
medida em que o que age comuni-cativamente obrigado a apoiar-se em
pressupostos pragmticosde tipo contrafactual. Ou seja
, ele obrigado a empreender ideali-zaes, por exemplo, a atribuir
significado idntico a enunciados,a levantar uma pretenso de
validade em relao aos proferimentose a considerar os destinatrios
imputveis
, isto , autnomos e
verazes consigo mesmos e com os outros. E, ao fazer isso, o
que
age comunicativamente no se defronta com o "ter que"
prescritivode uma regra de ao e, sim, com o "ter que" de uma
coerotranscendental fraca - derivado da validade deontolgica de
ummandamento moral, da validade axiolgica de uma constelao
devalores preferidos ou da eficcia emprica de uma regra tcnica.Um
leque de idealizaes inevitveis forma a base contrafactual
20
de uma prtica de entendimento factual, a qual pode
voltar-secriticamente contra seus prprios resultados, ou
transcender-se asi prpria. Deste modo, a tenso entre idia e
realidade irrompe naprpria facticidade de formas de vida
estruturadas linguisticamen-te. Os pressupostos idealizadores
sobrecarregam, sem dvida
, a
prtica comunicativa cotidiana; porm, sem essa
transcendnciaintramundana, no pode haver processos de
aprendizagem.
A razo comunicativa possibilita, pois, uma orientao nabase de
pretenses de validade; no entanto, ela mesma no fornecenenhum tipo
de indicao concreta para o desempenho de tarefasprticas, pois no
informativa, nem imediatamente prtica. Deum lado, ela abrange todo
o espectro de pretenses de validade daverdade proposicional, da
veracidade subjetiva e da correonormativa, indo alm do mbito
exclusivamente moral e prtico.De outro lado, ela se refere apenas s
inteleces e asserescriticveis e abertas a um esclarecimento
argumentativo - perma-necendo neste sentido aqum de uma razo
prtica, que visa motivao e conduo da vontade. A normatividade no
sentidoda orientao obrigatria do agir no coincide com a
racionalidadedo agir orientado pelo entendimento em seu todo.
Normatividadee racionalidade cruzam-se no campo da fundamentao de
intelec-es morais, obtidas num enfoque hipottico, as quais detm
umacerta fora de motivao racional, no sendo capazes, no entanto,de
garantir por si mesmas a transposio das idias para um
agirmotivado2.
preciso levar em conta tais diferenas, ao considerar oconceito
de razo comunicativa, que situo no mbito de uma teoriareconstrutiva
da sociedade. Nesse contexto modificado, o prprioconceito
tradicional de razo prtica adquire um novo valor heu-rstico. No
funciona mais como orientao direta para uma teorianormativa do
direito e da moral. Mesmo assim, ele se transformanum fio condutor
para a reconstruo do emaranhado de discursosformadores da opinio e
preparadores da deciso, na qual estembutido o poder democrtico
exercitado conforme o direito.
2 Id. Erluterungen zur Diskursethik. Frankfurt a/M., 1991
(a).
21
-
Nessa perspectiva, as formas de comunicao da formao pol-
tica da vontade no Estado de direito, da legislao e da
jurispru-
dncia, aparecem como partes de um processo mais amplo
deracionalizao dos mundos da vida de sociedades
modernaspressionadas pelos imperativos sistmicos. Tal reconstruo
co-loca-nos nas mos uma medida crtica que permite julgar asprticas
de uma realidade constitucional intransparente.
Apesar da distncia em relao aos conceitos tradicionaisda razo
prtica, no trivial constatar que uma teoria contem-pornea do
direito e da democracia continua buscando umengate na conceituao
clssica. Ela toma como ponto de par-tida a fora social integradora
de processos de entendimentono violentos, racionalmente
motivadores, capazes de salva-guardar distncias e diferenas
reconhecidas, na base da manu-teno de uma comunho de convices. H
muitos filsofosda moral e do direito conduzindo seus discursos
normativosnesta direo, de uma forma at mais animada do que
anti-gamente. Ao se especializarem em questes de validadenormativa,
no enfoque performativo de participantes e atin-gidos, eles caem
certamente na tentao de p&rmanecer nointerior do horizonte
limitado de mundos da vida h muitotempo exorcizado pelos
observadores das cincias sociais.Teorias normativas expem-se
suspeita de no levarem nadevida conta os duros fatos que
desmentiram
, faz tempo, aautocompreenso do moderno Estado de direito
, inspiradano direito racional. Pelo ngulo da objetivizao das
cinciassociais, uma conceituao filosfica que insiste em operarcom a
alternativa: ordem estabilizada atravs da fora eordem legitimada
racionalmente
, remonta semntica de
transio da baixa modernidade, que se tornou obsoleta a
partir do momento em que se passou de uma sociedadeestratificada
para sociedades funcionalmente diferenciadas.E a prpria estratgia
terica que privilegia um conceito comu-nicativo capaz de substituir
a "razo prtica" obrigada asublinhar uma forma especialmente e
agente e pretensiosa decomunicao
, a qual cobre apenas uma pequena parte do amploespectro das
comunicaes observveis: "com tais restries, o
22
novo paradigma dificilmente conseguir preencher as condiesde uma
teoria da sociedade suficientemente complexa"3.
Arrastada para c e para l, entre facticidade e validade, a
teoria
da poltica e do direito decompe-se atualmente em faces que
nadatm a dizer umas s outras. A tenso entre princpios
normativistas,que correm o risco de perder o contato com a
realidade social, eprincpios objetivistas, que deixam fora de foco
qualquer aspectonormativo, pode ser entendida como admoestao para
no nos
fixarmos numa nica orientao disciplinar e, sim, nos
mantermosabertos a diferentes posies metdicas (participante versus
observa-dor), a diferentes finalidades tericas (explicao
hermenutica dosentido e anlise conceituai versus descrio e explicao
emprica),a diferentes perspectivas de papis (o do juiz, do poltico,
do legislador,do cliente e do cidado) e a variados enfoques
pragmticos na pesquisa(hermenuticos, crticos, analticos, etc.)4. As
pesquisas delineadas aseguir movimentam-se nesse amplo espao.
O princpio da teoria do discurso, configurado inicialmentede
acordo com a formao da vontade individual, comprovou-seno campo
tico e no da filosofia moral5. Entretanto, possvelprovar, sob
pontos de vista funcionais, por que a figura ps-tradi-cional de uma
moral orientada por princpios depende de umacomplementao atravs do
direito positivof. Por esta razo, ques-tes da teoria do direito
rompem a limine o quadro de uma reflexomeramente normativa. Apoiada
no princpio do discurso, a teoriado direito - e do Estado de
Direito - precisa sair dos trilhosconvencionais da filosofia
poltica e do direito, mesmo que conti-nue assimilando seus
questionamentos. Nos dois primeiros cap-
3 LUHMANN, N. "Intersubjektivitt oder Kommunikation", in:Archivo
di Filosofia, Vol. LIV, 1986, 51, nota 28.
4 PETERS, B. Rationalitt, Recht und Gesellschaft. Frankfurt
a/M.,
1991, 33ss.5 Para Habermas, a tica refere-se ao bem do indivduo
ou da
comunidade, ao passo que a moral tem a ver com a justia.
(N.T.).6 Cf
.
, adiante, Cap. III.
23
-
tulos procuro atingir um duplo fim: esclarecer por que a teoria
doagir comunicativo concede um valor posicionai central categoriado
direito e por que ela mesma forma, por seu turno, um
contextoapropriado para uma teoria do direito apoiada no princpio
dodiscurso. E
, ao desenvolver este ponto, eu tento elaborar um
princpio reconstrutivo capaz de assumir duas perspectivas
dife-rentes: a da teoria sociolgica do direito e a da teoria
filosfica dajustia. Nos captulos terceiro e quarto desenvolve-se
uma recons-truo do contedo normativo do sistema de direitos e da
idia doEstado de direito, seguindo a linha da teoria do discurso.
Retoman-do questionamentos do direito racional, eu tento mostrar
como avelha promessa de uma auto-organizao jurdica de cidadosiguais
e livres pode ser compreendida de modo novo sob ascondies de
sociedades complexas. Em seguida, passo a exami-nar, e a elaborar,
o conceito discursivo do direito e do Estadodemocrtico de direito
no contexto de discusses contemporneas.O quinto captulo aborda
genericamente o problema da racionali-dade da jurisdio, enquanto o
sexto est voltado para o problemada legitimidade da jurisdio
constitucional. O stimo captulodesenvolve o modelo da poltica
deliberativa atravs de um debatecom teorias da democracia que se
apoiam num conceito empiristade poder. No oitavo captulo, eu
pesquiso como funciona a regu-lamentao poltica constitucional da
circulao do poder emsociedades complexas. E esta linha de uma
teoria da sociedade ede uma teoria do direito
, apoiada no princpio do discurso, tornapossvel introduzir um
paradigma procedimentalista do direito, oqual, como tentarei
mostrar no captulo final, nos permitir ultra-passar a oposio entre
os modelos sociais do direito formalburgus e do Estado social.
*
* *
Na teoria do direito, socilogos, juristas e filsofos
discutemsobre a determinao apropriada da relao entre facticidade
evalidade
, chegando a premissas e estratgias de pesquisa diferen-tes. Por
este motivo
, eu desejo esclarecer preliminarmente as
24
questes de uma teoria da sociedade nas quais se apia o
meuinteresse na teoria do direito. A teoria do agir comunicativo
tentaassimilar a tenso que existe entre facticidade e validade
. E, ao
tomar tal deciso arriscada, ela preserva, de um lado, o engate
na
interpretao clssica de um nexo interno entre sociedade e
razo,
que pode ser mediado de diferentes maneiras, portanto um
nexoentre circunscries e coeres pelas quais transcorre a reproduoda
vida social; de outro lado, ela no abandona a idia de umaconduo
consciente da vida7.
E, ao optar por isso, envolve-se numproblema: como explicar a
possibilidade de reproduo da socie-dade num solo to frgil como o
das pretenses de validadetranscendentes? O mdium do direito
apresenta-se como um can-didato para tal explicao, especialmente na
figura moderna dodireito positivo. As normas desse direito
possibilitam comunida-des extremamente artificiais, mais
precisamente, associaes demembros livres e iguais, cuja coeso
resulta simultaneamente daameaa de sanes externas e da suposio de
um acordo racional-mente motivado.
O conceito do agir comunicativo atribui s foras ilocucion-rias
da linguagem orientada ao entendimento a funo importanteda
coordenao da ao. Por este motivo, procuro lembrar, emprimeiro
lugar, como a compreenso clssica da relao entrefacticidade e
validade, delineada na tradio platnica, se modificaquando a
linguagem passa a ser considerada como um mdiumuniversal de
incorporao da razo (Seo I). A tenso entrefacticidade e validade,
que se introduz no prprio modo de coor-denao da ao, coloca
exigncias elevadas para a manutenode ordens sociais. O mundo da
vida, as instituies que surgemnaturalmente e o direito tm que
amortizar as instabilidades de umtipo de socializao que se realiza
atravs das tomadas de posio
7 De modo semelhante, Husserl leva em conta o papel
fundamental
de pretenses de validade na constituio do mundo da vida.
Cf.HABERMAS, J. "Vorlesungen zu einer
sprachtheorethischenGrundlegung der Soziologie", in: ld. Vorstudien
und Ergnzungenzur Theorie des kommunikativen Handelns. Frankfurt
a/M., 1984,especialmente p. 35ss.
25
-
- em termos de sim/no - com relao a pretenses de
validadecriticveis (Seo D). Nas modernas sociedades econmicas
esseproblema geral se agudiza, principalmente no tocante ao
envolt-rio normativo das interaes estratgicas, no englobadas
pelaeticidade tradicional. Isso explica, de um lado, a estrutura e
osentido de validade de direitos subjetivos e, de outro lado,
asconotaes idealistas de uma comunidade jurdica que,
enquantoassociao de cidados livres e iguais, determina por si mesma
asregras de sua convivncia (Seo Hl).L Significado e verdade: sobre
a tenso entre facticidadee validade no interior da linguagem
Transportando os conceitos fundamentais da "razo prtica"para os
da "racionalidade comunicativa", no h necessidade delanar fora os
questionamentos e as solues desenvolvidas nafilosofia prtica, desde
Aristteles at Hegel, o que constitui umagrande vantagem para a
teoria da sociedade. Em nenhum lugar estescrito que as premissas do
pensamento ps-metafsico implicamnecessariamente indiferena em relao
a questes que jamaisemudecem no mundo da vida. E, enquanto a teoria
mantiver abertoo acesso ao fundo de intuies cotidianas do leigo,
ela no podeignorar os problemas que se impem objetivamente aos
participan-tes, por simples questo de mtodo. E verdade que as
questesfundamentais da filosofia prtica tinham sido extradas do
dia-a-dia: "o que devo fazer?", ou ainda: "o que bom para mim
emgeral e a longo prazo?", porm, sem nenhuma mediao, sempassar pelo
filtro da objetivao social. A renncia ao conceitofundamental da
razo prtica sinaliza a ruptura com esse normati-vismo. Todavia, o
conceito sucessor "razo comunicativa" conser-va fragmentos
idealistas desta herana, os quais nem sempre sovantajosos, no
contexto modificado de uma teoria comprometidacom o
esclarecimento.
Atualmente pouco importa saber at que ponto o conceito derazo se
distanciou de suas origens platnicas e o quanto ele foiafetado pela
mudana dos paradigmas; uma coisa certamentecontinua sendo
constitutiva: a sua relao com a formao
26
idealizadora de conceitos, que circunscreve os limites atravs
decontedos ideais ou de idias. Qualquer idealizao gera
conceitossobre a adaptao mimtica a uma realidade dada e carente
deum esclarecimento. Ora, quando essa operao com o conceitoda razo
comunicativa adscrita prpria realidade social
, e de
certa forma incorporada a ela, as cincias experimentais tememque
haja confuso entre razo e realidade. Em que sentido a
razocomunicativa poderia incorporar-se em fatos sociais? Mesmosem
pretender recapitular os pontos fundamentais da teoria doagir
comunicativo, convm lembrar rapidamente de que modo seapresenta a
relao entre facticidade e validade aps a guinadalingustica, a qual
surge inicialmente no nvel elementar daformao dos conceitos e dos
juzos.
1
A partir do momento em que as idias sobre a oposio abstrataentre
o inteligvel e o fenomenal
, que serviam de pano de fundo metafsica kantiana, no convenciam
mais a ningum e a partir domomento em que o entrelaamento
especulativo e dialtico entre asesferas da essncia e da
aparncia
, criado por Hegel, perdeu suaplausibilidade, entraram em cena,
no decorrer do final do sculo XIX,interpretaes empiristas que
passaram a dar preferncia a uma expli-cao psicolgica das relaes
lgicas ou conceituais: contextos devalidade foram assimilados a
processos fticos da conscincia. Contratal psicologismo
levantaram-se
, utilizando quase os mesmos argu-mentos
, Ch. S. Peirce na Amrica, Gottlob Frege e Edmund Husserl
na Alemanha e G. E. Moore e B.
Russell na Inglaterra. E, ao se
recusarem a tomar a psicologia como base para a lgica, a
matemtica
e a gramtica, eles lanaram as bases para a filosofia do sculo
XX.
Frege resume a objeo central na seguinte tese: "H umadiferena
entre nossos pensamentos e nossas representaes"8.Representaes
sempre so minhas ou tuas representaes; elastm que ser atribuveis a
um sujeito identificvel no espao e no
FREGE, G. Logische Untersuchungen. Gttingen, 1966, 49.
27
-
tempo, ao passo que os pensamentos ultrapassam os limites de
umaconscincia individual. Mesmo
quesejamapreendidosporsujeitosdiferentes, em lugares e pocas
distintas, eles continuam sendo, deacordo com o seu contedo e em
sentido estrito, os mesmospensamentos.
A anlise de proposies predicativas simples revela, alm disso,que
os pensamentos possuem uma estrutura mais complexa que osobjetos do
pensamento representador. Com o auxlio de nomes,caraterizaes e
expresses decticas, ns nos referimos a objetossingulares, ao passo
que asseres, nas quais tais termos singularesassumem o lugar da
expresso do sujeito, exprimem na sua totalidadeuma proposio ou
reproduzem um estado de coisas. Quando talpensamento verdadeiro, o
enunciado que o reproduz representa umfato. A crtica opinio,
segundo a qual o pensamento no mais doque conscincia
representadora, repousa nesta considerao simples.Na representao so
dados somente objetos; enquanto que estadosde coisas ou fatos so
apreendidos em pensamentos. Com essa crtica,Frege d o primeiro
passo rumo guinada lingustica. A partir deagora, no podemos mais
apreender simplesmente e sem mediaopensamentos e fatos no mundo dos
objetos representveis; eles s soacessveis enquanto representados,
portanto em estados de coisasexpressos atravs de proposies.
2
Os pensamentos articulam-se atravs de proposies. E fcilobter
clareza sobre isso, tomando como exemplo a construogramatical de
proposies assertricas simples. No h necessida-de de me deter nesse
ponto. O importante saber que podemos lera estrutura dos
pensamentos observando a estrutura das proposi-es; e as proposies
so as partes elementares de uma linguagemgramatical, passveis de
verdade. Dependemos, pois, do mdiumda linguagem quando queremos
explicar a diferena entre ospensamentos e as representaes. Ambos os
momentos, o dopensamento que vai alm dos limites de uma conscincia
indivi-dual emprica e o da independncia do contedo do pensamentoem
relao corrente de vivncias de um indivduo, podem indicar
28
que certas expresses lingusticas tm significados idnticos
parausurios diferentes. Na prtica, os membros de uma
determinadacomunidade de linguagem tm que supor que falantes e
ouvintespodem compreender uma expresso gramatical de modo
idntico.Eles supem que as mesmas expresses conservam o
mesmosignificado na variedade de situaes e dos atos de fala
nosquais so empregadas. No prprio nvel do substrato significa-tivo,
o sinal tem que ser reconhecido como sendo o mesmosinal, na
pluralidade de eventos significativos correspondentes
.
Nessa relao entre type e token, percebida concretamente,
reflete-se a relao lgica entre o geral e o particular, que o
idealismo filosfico entendera como a relao entre essncia
eaparncia. O mesmo vale para o conceito ou o significado e asformas
de manifestao de sua expresso. A idealidade
, apoiadaem sinais lingusticos e regras gramaticais, carateriza
um pen-samento geral, idntico consigo mesmo
, aberto e acessvel, algotranscendente em relao conscincia
individual
, no se con-
fundindo com as representaes particulares, episdicas, aces-
sveis apenas privadamente ou imanentes conscincia. Taisregras
emprestam uma forma determinada aos eventos lingus-ticos, numa
relao fontica
, sinttica e semntica, reconhec-
vel e solidificada atravs das variaes.
3
A idealidade e a generalidade do conceito e do
pensamentointerligam-se com outro tipo de idealidade, inteiramente
diferente.O contedo de todo pensamento completo determinado por
umestado de coisas que pode ser expresso numa proposio assert-rica.
Entretanto
, todo pensamento exige, alm do contedo asser-tivo
, uma determinao ulterior: pergunta-se se ele verdadeiroou
falso. Sujeitos pensantes e falantes podem tomar posio emrelao a
qualquer pensamento dizendo "sim" ou "no"; por isso,ao simples "ter
um pensamento" vem acrescentar-se um ato deapreciao crtica.
Somente o pensamento traduzido em proposi-es ou a proposio
verdadeira expressam um fato. A avaliaoafirmativa de um pensamento
ou do sentido assertrico de uma
29
-
proposio pronunciada coloca em jogo a validade do juzo ou
dafrase e, com isso, um novo momento de idealidade.
A crtica semntica ao pensamento representador significa,
porexemplo, que a proposio: "Essa bola vermelha" no exprime
arepresentao individual de uma bola vermelha. Ela representa,
aoinvs disso, a circunstncia de que a bola vermelha. Isso
significaque um falante que afirma 1p, no modo assertrico, no est
sereferindo, com sua afirmao ou apreciao afirmativa, existn-cia de
um objeto, mas permanncia de um estado de coisascorrespondente. Se
expandirmos 1p, para a proposio: "Existepelo menos um objeto, que
uma bola e do qual vale que ele vermelho"
, veremos que a verdade de ,p, e o ser-o-caso do
correspondente estado de coisas ou circunstncias no pode
serinterpretado em analogia com a existncia de um objeto. O
sentidoveritativo no pode ser confundido com a existncia9. Caso
con-trrio, seramos induzidos, do mesmo modo que Frege, Husserl
emais tarde Popper, interpretao platnica do significado, ouseja,
estaramos afirmando que os pensamentos, proposies ouestados de
coisas contm um ser ideal em si. Esses autores vem-semovidos a
completar simplesmente a arquitetnica da filosofia daconscincia
atravs de um terceiro mundo de configuraes ideaisatemporais, o qual
se contrape ao mundo dos fenmenos locali-zveis no espao, seja o dos
objetos e acontecimentos experimen-tveis ou manipulveis do mundo
objetivo, seja o das vivncias domundo subjetivo, que implicam um
acesso privilegiado.
No entanto, essa doutrina dos trs mundos, elaborada
pelos"platnicos do significado", no menos metafsica do que a
"doutrinados dois reinos" do idealismo subjetivo. Pois no soluciona
o enigmada comunicao entre esses trs mundos: Frege opina que o
elemento"atemporal tem que estar entrelaado de alguma maneira com
otemporal"10. A partir do momento em que os significados e
pensa-mentos foram hipostasiados em objetos idealmente existentes,
as
9 Cf. TUGENDHAT, E. Einfhrung in die
sprachanalytischePhilosophie. Frankfurt a/M., 1976,35ss.
10 FREGE (1966), 52.
30
relaes entre os mundos colocam questes renitentes, com as
quais a semntica formal se ocupou em vo durante dcadas.4
O status ideal que empresta aos pensamentos uma
estruturaproposicional a salvo da corrente das vivncias, garantindo
aos con-ceitos e aos juzos contedos gerais, reconhecveis
intersubjetivamen-te e, deste modo, idnticos, sugere a idia de
verdade
.
Porm, a
idealidade da validade veritativa no pode ser explicada nos
mesmostermos que a idealidade da generalidade do significado
, lanando moapenas de invarincias gramaticais, ou seja
, da estrutura da linguagem
em geral, que se configura atravs de regras. Ora, a semntica
formal
de Frege opera com um nico conceito semntico de linguagem,
que
no focaliza os demais aspectos da utilizao da linguagem,
deixan-
do-os entregues anlise emprica; por isso, ela no consegue
explicar
o sentido da verdade no horizonte da comunicao lingustica.
Aoinvs disso, ela recorre relao ontolgica entre linguagem e
mundo
,
entre proposio e fato, ou entre pensamento e fora de
pensamento
(como a capacidade subjetiva de produzir pensamentos e de
avali-los). Contrapondo-se a essa linha
, Ch. S. Peirce completou a guinada
lingustica, incluindo na anlise formal o uso da linguagem.Peirce
considera a comunicao e
, em geral, a interpretaode sinais, como o nervo centrl das
performances lingusticas -Humboldt j pensara isso acerca do dilogo.
E, ao tomar essemodelo da prtica de entendimento
, ele conseguiu explicar nosomente o momento da formao dos
conceitos
, que funda ageneralidade, mas tambm o momento da formao de
juzosverdadeiros
, que superam o tempo. No lugar do conceito bipolar
de um mundo representado linguisticamente, surge em Peirce o
conceito tripolar da representao lingustica de algo para
umpossvel intrprete11. O mundo como sntese de possveis fatos sse
constitui para uma comunidade de interpretao, cujos membrosse
entendem entre si sobre algo no mundo, no interior de um mundo
11 HABERMAS, J. "Charles S. Peirce iiber Kommunikation", in:
Id.
Texte und Kontexte. Frankfurt a/M., 1991 (b), 9-33.
31
-
da vida compartilhado intersubjetivamente. "Real" o que podeser
representado em proposies verdadeiras, ao passo que "ver-dadeiro"
pode ser explicado a partir da pretenso que levantadapor um em
relao ao outro no momento em que assevera umaproposio. Com o
sentido assertrico rle sua afirmao, umfalante levanta a pretenso,
criticvel, validade da proposioproferida; e como ningum dispe
diretamente de condies devalidade que no sejam interpretadas, a
"validade" (Gultigkeit) temde ser entendida epistemicamente como
"validade que se mostrapara ns" (Geltung). A justificada pretenso
de verdade de umproponente deve ser defensvel, atravs de
argumentos, contraobjees de possveis oponentes e, no final, deve
poder contar comum acordo racional da comunidade de interpretao em
geral.
Todavia, no suficiente a referncia a qualquer tipo decomunidade
de interpretao particular, instalada em formas devida particulares.
Mesmo que no possamos sair da esfera dalinguagem e da argumentao e
sejamos constrangidos a com-preender a realidade como a totalidade
daquilo que representvelatravs de proposies verdadeiras, na relao
com a realidade nose pode perder o nexo com algo que independe de
ns e que ,nesse sentido, transcendente. Qualquer pretenso de
verdade levafalantes e ouvintes a transcenderem os padres
provincianos dequalquer coletividade, de qualquer prtica de
entendimento loca-lizada aqui e agora. Por isso Peirce constri uma
espcie detranscendncia a partir de dentro, servindo-se do conceito
contra-factual "final opinionr de um consenso obtido sob
condiesideais: "The real, then, is that which, sooner or later,
informationand reasoning would finally result in, and which is
thereforeindependem ofthe vagaries of me and you. Thus, the very
originof the conception ofreality shows that this conception
essentiallyinvolves the notion of a community, without definite
limits, andcapable of a definite increase of knowledge"11. Peirce
entende a
12 PEIRCE, Ch. Collected Papers. Vol. 5, 311; Cf. tb. APEL, K.
O.Der Denkweg von Charles S. Peirce. Frankfurt a/M., 1975;MCCARTHY,
J. E. "Semiotic, Idealism", in: Transactions of theCh. S. Peirce
Society, Vol. 20, 1984, 395ss.
32
verdade como aceitabilidade racional, isto , como o resgate
de
uma pretenso de validade criticvel sob as condies
comunica-cionais de um auditrio de intrpretes alargado idealmente
noespao social e no tempo histrico.
5
Com essa explicao lingistico-pragmtica da idia de verdadetocamos
num ponto da relao entre facticidade e validade
, constitu-
tivo para a prtica do entendimento e, nesta medida, relevante
para a
realidade da sociedade, a qual inclui a "community
ofinvestigators"
,
de Peirce, sendo mais elevada do que a realidade da natureza que
objetivada no agir instrumental ou na prtica metdica das
cincias
.
A idealidade da generalidade conceituai colocara-nos frente
tarefade explicar, com o auxlio das regras da linguagem
, o modo como
significados idnticos podem manter-se em meio variedade de
suasrespectivas realizaes lingusticas.
Ao passo que a idealidade davalidade veritativa nos confrontara
com a tarefa de longo alcance, deexplicar, com o auxlio das condies
comunicativas da prtica deargumentao,
como as pretenses de validade, levantadas aqui eagora e voltadas
ao reconhecimento ou aceitao
, podem ir alm dosstandards para tomadas de posio em termos de
sim/no
, exercitadas
em qualquer comunidade particular de intrpretes. Ora, esse
momento
transcendente, e somente ele, distingue as prticas de
justificao
orientadas por pretenses de verdade em relao a outras
prticas,
reguladas apenas por convenes sociais. Para Peirce, a referncia
a
uma comunidade comunicativa ilimitada consegue substituir o
cartersupratemporal da incondicionalidade pela idia de um
processo deinterpretao aberto e voltado a um fim
, o qual, partindo de umaexistncia finita
, localizada no espao social e no tempo histrico,
transcende-o a partir de dentro. Ainda segundo Peirce
, os processosde aprendizagem da comunidade comunicacional
ilimitada devemformar no tempo o arco
que sobrepuja todas as distncias espao-temporais; devem ser
realizveis no mundo as condies quesupomos suficientemente
preenchidas para a pretenso incondi-cional de
pretenses de validade transcendentes. E pode ser tidacomo
"suficiente" a medida de preenchimento que qualifica espa-
33
-
ciai e temporalmente nossa respectiva prtica de argumentaocomo
parte do discurso inevitavelmente universal de uma comu-nidade de
interpretao ilimitada. Tal projeo faz a tenso entrefacticidade e
validade imigrar para pressupostos comunicativos,os quais, apesar
de seu contedo ideal, que s pode ser preenchidoaproximativamente,
tm de ser admitidos factualmente por todosos participantes, todas
as vezes que desejarem afirmar ou contestara verdade de uma
proposio ou entrar numa argumentao parajustificar tal pretenso de
validade.
Dado o seu interesse numa transformao semitica dequestes da
teoria do conhecimento e da teoria da cincia, Peircetinha em mente
a prtica de argumentao de uma repblica deeruditos. Ora, o que vlido
para o entendimento no mbito dacomunidade comunicativa dos
pesquisadores, vale tambm, mu-tatis mutandis, para as comunicaes do
dia-a-dia. Pois a teoriados atos de fala mostra que a prtica
comunicativa cotidianapossui estruturas e pressupostos semelhantes.
Aqui tambm osparticipantes entendem-se entre si sobre algo no
mundo, aopretenderem validade para suas expresses. Mesmo que,
naprtica cotidiana, a linguagem no seja utilizada exclusivamenteem
sua funo representadora, como nos processos de pesquisadirigidos
pela argumentao, pois nela entram em jogo todas asfunes da
linguagem e todas as relaes com o mundo, de talmodo que o espectro
das pretenses de validade se alarga, ultra-passando o das pretenses
de verdade. Alm disso, essas preten-ses de validade, que incluem -
alm de pretenses assertricas-
pretenses veracidade subjetiva e correo normativa, socolocadas
de modo ingnuo, portanto, intentione recta, mesmoque permaneam
referidas implicitamente possibilidade de umresgate discursivo.
O modo como esse espectro alargado de validade est situadono
mundo da vida impe uma generalizao do conceito peirceanoda
comunidade de comunicao ilimitada e da busca cooperativada verdade
entre cientistas: A tenso entre facticidade e validade,que Peirce
descobriu nos pressupostos ineludveis da argumenta-o que permeia a
prtica cientfica, pode ser detectada tambmnos pressupostos de
diferentes tipos de argumentao e, inclusive,
34
nos pressupostos pragmticos dos atos de fala singulares e
doscontextos interacionais por eles conectados13.
H.
Transcendncia a partir de dentro: a superao do risco dedissenso
a nvel arcaico e do mundo da vida.
Pouco importa o modo como nos posicionamos em relaoaos detalhes
dessa concepo controversa e ainda carente de ummelhor
esclarecimento. O fato que, ao explicarmos o signifi-cado de
expresses lingusticas e a validade de proposiesassertricas, tocamos
em idealizaes ligadas ao mdium dalinguagem: a idealidade da
generalidade do conceito e dosignificado acessvel a uma anlise
pragmtica da linguagemutilizada para o entendimento. Tais
idealizaes embutidas nalinguagem podem assumir, alm disso, um
significado relevan-te para a teoria da ao, caso as foras de ligao
ilocucionriasde atos de fala venham a ser utilizadas para a
coordenao deplanos de ao de diferentes atores. O conceito "agir
comuni-cativo"
, que leva em conta o entendimento lingustico comomecanismo de
coordenao da ao, faz com que as suposiescontrafactuais dos atores
que orientam seu agir por pretensesde validade adquiram relevncia
imediata para a construo ea manuteno de ordens sociais: pois estas
mantm-se no mododo reconhecimento de pretenses de validade
normativas. Issosignifica que a tenso entre facticidade e
validade
, embutida na
linguagem e no uso da linguagem, retorna no modo de integra-
o de indivduos socializados - ao menos de indivduos
socia-lizados comunicativamente - devendo ser trabalhada
pelosparticipantes. Veremos mais adiante que essa tenso
estabilizadade modo peculiar na integrao social realizada por
intermdio dodireito positivo.
13 HABERMAS, J. "Zur Kritik der Bedeutungstheorie", in: Id.
Nachmetaphysisches Denken. Frankfurt a/M., 1988, 105ss.;
cf.WELLMER A
.
"Konsens ais Telos sprachlicherKommunikation?,\ in: GIEGEL H
. J. (Ed.).Kommunikation una
Konsens in modernen Gesellschaften. Frankfurt a/M.,
1992,18-20.
35
-
1Toda integrao social no violenta pode ser entendida comoa soluo
do seguinte problema: como possvel coordenar entresi os planos de
ao de vrios atores, de tal modo que as aes deum partido possam ser
"engatadas" nas do outro? Tal engatecontnuo reduz o jogo das
possibilidades de escolha, duplamentecontingentes
, a uma medida que possibilita o entrelaamento
menos conflituoso possvel de intenes e aes, portanto o
surgi-mento de padres de comportamento e da ordem social em
geral.Enquanto a linguagem utilizada apenas como mdium para
atransmisso de informaes e redundncias
, a coordenao da ao
passa atravs da influenciao recproca de atores que agem unssobre
os outros de modo funcional. To logo, porm, as forasilocucionrias
das aes de fala assumem um papel coordenador naao, a prpria
linguagem passa a ser explorada como fonte primriada integrao
social. nisso que consiste o "agir comunicativo". Nestecaso os
atores
, na qualidade de falantes e ouvintes, tentam
negociarinterpretaes comuns da situao e harmonizar entre si os
seusrespectivos planos atravs de processos de entendimento
, portantopelo caminho de uma busca incondicionada de fins
ilocucionrios.Quando os participantes suspendem o enfoque
objetivador de umobservador e de um agente interessado
imediatamente no prpriosucesso e passam a adotar o enfoque
performativo de um falanteque deseja entender-se com uma segunda
pessoa sobre algo nomundo, as energias de ligao da linguagem podem
ser mobiliza-das para a coordenao de planos de ao. Sob essa
condio
,
ofertas de atos de fala podem visar um efeito coordenador na
ao,
pois da resposta afirmativa do destinatrio a uma oferta
sriaresultam obrigaes que se tornam relevantes para as
consequn-cias da interao.
No uso da linguagem orientada pelo entendimento, ao qual o
agir comunicativo est referido, os participantes unem-se em
torno
da pretensa validade de suas aes de fala, ou constatam
dissensos,
os quais eles, de comum acordo, levaro em conta no decorrer
da
ao. Em qualquer ao de fala so levantadas pretenses devalidade
criticveis
, que apontam para o reconhecimento intersub-
36
jetivo. A oferta de um ato de fala adquire eficcia para a
coorde-nao, porque o falante, com sua pretenso de validade,
assumeuno actu uma garantia suficiente e digna de f, de que a
pretensolevantada poder eventualmente ser resgatada atravs de
razesadequadas. Entretanto, as pretenses de validade incondicionais
eideais ultrapassam todos os padres regionais exercitados e
aceitosnum determinado local; isso faz com que a supracitada tenso
idealimigre para a facticidade do mundo da vida, que Peirce
analisoutomando como exemplo o valor de verdade das proposies
cien-tficas. A idia da resgatabilidade de pretenses de validade
criti-cveis impe idealizaes, produzidas pelas pessoas que
agemcomunicativamente; com isso, elas so arrancadas do cu
trans-cendental e trazidas para o cho do mundo da vida. A teoria
doagir comunicativo destranscendentaliza o reino do inteligvel,porm
com o nico intuito de aninhar a fora idealizadora deantecipaes
transcendentes nos pressupostos pragmticos inevi-tveis dos atos de
fala, portanto no corao da prtica comunicativacotidiana - a fora
que Peirce comprovou existir nas formas decomunicao da prtica de
argumentao cientfica, as quais decerta forma escapam ao dia-a-dia.
O fato de se tratar de ofertas deatos de fala fugidios ou de
tomadas de posio em termos desim/no convencionais no muda nada:
eles sempre apontam pararazes potenciais e, deste modo, para o
auditrio da comunidadede interpretao ilimitada, idealmente
alargado, o qual elas teriamque iluminar para poderem ser
justificadas, ou seja, aceitveisracionalmente.
2
Fizemos uma distino entre a idealidade da generalidade
dosconceitos e dos significados e a idealidade dos conceitos de
vali-dade. Tais aspectos podem ser clarificados, de um lado, com
oauxlio da estrutura de regras da linguagem em geral e, de
outrolado
, lanando mo dos pressupostos do uso da linguagem orien-
tada pelo entendimento. Ambos os nveis de idealizao
estoembutidos na prpria comunicao lingustica, intervindo na
cons-tituio da realidade social de interaes interligadas, que
se
37
-
irradiam no espao e no tempo, seguindo o caminho do
agircomunicativo. A idealidade da generalidade do significado
marcaos contextos do agir comunicativo na medida em que os
partici-pantes no conseguem formular a inteno de entender-se entre
sisobre algo no mundo, nem atribuir s expresses utilizadas
signi-
ficados idnticos, caso lhes seja vedado apoiar-se numa
linguagemcomum (ou traduzvel). E os mal-entendidos s podem ser
desco-bertos como tais, quando esta condio estiver preenchida.
Asuposio da utilizao de expresses lingusticas com
significadoidntico pode s vezes parecer errnea na perspectiva de
umobservador, e, inclusive, parecer sempre errnea luz do
micros-cpio dos etnometodlogos; entretanto
, tal pressuposto necess-rio, ao menos contrafactualmente, para
todo o uso da linguagemorientada pelo entendimento.
Qualquer sociologia desejosa de ter acesso ao seu campode
objetos, passando pela compreenso hermenutica do senti-do, tem que
levar em conta essa tenso entre facticidade evalidade. Tal
circunstncia
, porm, no deve afetar sua auto-compreenso experimental
convencional
, uma vez que ela podeatribuir aos prprios sujeitos que agem
comunicativamente acapacidade normal de superar estorvos de
comunicao resul-tantes de simples mal-entendidos. Ora
, mal-entendidos des-
mentem toscamente idealizaes necessrias. Algo semelhante
vale para uma outra suposio inevitvel no agir comunicativoe
igualmente idealizadora. Os participantes da interao tmque
atribuir-se reciprocamente a conscincia de seus atos, ouseja, tm
que supor que eles so capazes de orientar seu agirpor pretenses de
validade. A partir do momento em que essaexpectativa de
racionalidade se revela falsa
, os participantes - bemcomo os observadores sociolgicos
enquanto virtuais participantes-
passam do enfoque performativo para o objetivador.Entretanto, um
outro grupo de problemas se coloca quando
passamos a considerar os pressupostos pretensiosos e
contraf-ticos do agir comunicativo, que devem assegurar s
pretensesde validade o carter de incondicionalidade
.
Esse segundo nvelde idealizao determina
, inclusive, a constituio da realidade
social, de tal modo que todo acordo obtido comunicativamente
38
e que torna possvel a coordenao de aes, bem como a estru-tura
complexa de interaes e a interligao de sequncias deaes, mede-se
pelo reconhecimento intersubjetivo de pretensescriticveis,
conferindo destarte uma funo-chave ao funciona-mento dos jogos de
linguagem cotidianos e s tomadas de posioem termos de sim/no, que
se apoiam numa dupla negao. Taistomadas de posio carregam os fatos
sociais, criados por elas, comuma tenso ideal, pois reagem a
pretenses de validade, as quais,para serem justificadas, pressupem
o assentimento de um audit-rio idealmente ampliado. A validade
pretendida para enunciadose normas (tambm para frases que expressam
vivncias) transcen-de, de acordo com seu sentido, os espaos e
tempos, ao passo quea pretenso atual levantada sempre aqui e agora,
no interior dedeterminados contextos, sendo aceita ou rejeitada - o
que acarretaconsequncias para a ao, gerando fatos. A validade
pretendidapor nossos proferimentos e pelas prticas de nossa
justificativadistingue-se da validade social dos standards
exercitados fac-tualmente, das expectativas estabilizadas atravs da
ameaa desanes ou do simples costume. O momento ideal de
incondiciona-lidade est enraizado nos processos de entendimento
factuais, por-que as pretenses de validade pem mostra a dupla face
de Jano:enquanto pretenses, elas ultrapassam qualquer contexto; no
entan-to, elas tm que ser colocadas e aceitas aqui e agora, caso
contrriono podero ser portadoras de um acordo capaz de coordenar a
ao-
pois no existe para isso um contexto zero. A universalidade
daaceitabilidade racional asserida explode todos os contextos;
entretan-to
, somente a aceitao obrigatria in loco pode fazer das
pretenses
de validade trilhos para uma prtica cotidiana ligada ao
contexto.Uma sociologia hermenutica, ciente de que essa segunda
tenso radical entre facticidade e validade est enraizada em
seuuniverso de objetos, v-se obrigada a rever sua
autocompreensocientfica convencional e a considerar-se como uma
cinciasocial que procede reconstrutivamente. Impe-se uma interven-o
reconstrutiva, a fim de explicar o modo de surgimento daintegrao
social que depende das condies de uma socializaoinstvel
, que opera com suposies contrafactuais, permanente-
mente ameaadas.
39
-
3O primeiro passo reconstrutivo das condies da integraosocial
nos leva ao conceito mundo da vida. O ponto de referncia dado pelo
problema: como possvel surgir ordem social a partirde processos de
formao de consenso que se encontram ameaa-dos por uma tenso
explosiva entre facticidade e validade? No casodo agir
comunicativo
, a dupla contingncia, a ser absorvida porqualquer formao de
interao, assume a forma especialmenteprecria de um risco de
dissenso, sempre presente, embutido noprprio mecanismo de
entendimento, ainda mais que todo dissensoacarreta elevados custos
para a coordenao da ao. Normalmenteh poucas alternativas disposio,
as quais podem se resumir asimples consertos
, desconsiderao de pretenses controversas-
atitude que faria encolher o campo das convices compartilha-das
- passagem para discursos mais pretensiosos
, cujo trmino imprevisvel e cujos efeitos de problematizao so
perturbado-res
, quebra da comunicao e sada de campo ou, finalmente,
mudana para o agir estratgico, orientado para o sucesso de
cada
um. A motivao racional para o acordo, que se apia sobre o
"poder dizer no", tem certamente a vantagem de uma
estabiliza-
o no-violenta de expectativas de comportamento. Todavia, oalto
risco de dissenso
, alimentado a cada passo atravs de expe-rincias, portanto
atravs de contingncias repletas de surpresas
,
tornaria a integrao social atravs do uso da linguagem
orientadopelo entendimento inteiramente implausvel, se o agir
comunica-tivo no estivesse embutido em contextos do mundo da
vida
, os
quais fornecem apoio atravs de um macio pano de fundo
con-sensual. Os entendimentos explcitos movem-se
, de si mesmos, no
horizonte de convices comuns no-problemticas; ao mesmotempo,
eles se alimentam das fontes daquilo que sempre foi fami-liar.
Na prtica do dia-a-dia
, a inquietao ininterrupta atravs daexperincia e da
contradio
, da contingncia e da crtica, bate deencontro a uma rocha ampla
e inamovvel de lealdades
, habilidades
e padres de interpretao consentidos.No h necessidade de expor
aqui a anlise pragmtico-for-
mal deste mundo da vida, tampouco o lugar terico do agir
40
comunicativo, situado entre discurso e mundo da vida. O mundoda
vida forma o horizonte para situaes de fala e constitui, aomesmo
tempo, a fonte das interpretaes, reproduzindo-se somen-te atravs de
aes comunicativas14.
O saber que constitui o panode fundo do mundo da vida revela um
aspecto que chama minhaateno: o carter pr-predicativo e
pr-categorial, que j desper-tara a curiosidade de Husserl, que fala
num fundamento "esqueci-do" do sentido da prtica cotidiana e da
experincia do mundo15.
Durante o agir comunicativo o mundo da vida nos envolveno modo
de uma certeza imediata, a partir da qual ns vivemos efalamos
diretamente. Essa presena do pano de fundo do agircomunicativo,
latente e imperceptvel, que tudo perpassa, pode serdescrita como
uma forma condensada e, mesmo assim, deficiente,de saber e de
poder. De um lado, ns nos servimos inadvertida-mente deste saber,
isto , sem saber que ns o possumos reflexi-vamente. O que empresta
ao saber que serve de pano de fundo umacerteza absoluta e lhe
confere subjetivamente a qualidade de umsaber condensado? De um
ponto de vista objetivo, a qualidadeque falta ao saber objetivo: ns
nos utilizamos desse tipo de sabersem ter a conscincia de que ele
pode ser falso. Ele no representaum saber em sentido estrito, pois
no falvel nem falsificvelenquanto tal. Falta-lhe o nexo interno com
a possibilidade de vir aser problematizado, pois ele s entra em
contato com pretensesde validade criticveis no instante em que
proferido e, nessemomento da tematizao, ele se decompe enquanto
pano de fundodo mundo da vida. Entretanto, h algo que lhe confere
uma surpreen-dente estabilidade, imunizando-o contra a presso de
experinciasgeradoras de contingncia: o curioso nivelamento da tenso
entrefacticidade e validade: na prpria dimenso da validade extinto
omomento contrafactual de uma idealizao, a qual ultrapassa
respec-
14 HABERMAS, J. (1981), vol. 2, 182-232; Id. "Handlungen,
Sprechakte, sprachlich vermittelte Interaktionen und
Lebenswelt",in: Id.
, (1988), 63-104.
15 Id.
"E.
Husserl iiber Lebenswelt, Philosophie und Wissenschaft",in: Id.
(1991b), 34-43.
41
-
tivamente o que factual e que poderia propiciar um
confrontodecepcionante com a realidade; ao mesmo tempo permanece
in-tacta a dimenso da qual o saber implcito extrai a fora
deconvices.
4
Em instituies arcaicas, que se apresentam com uma preten-so de
autoridade aparentemente inatacvel, pode-se detectar umafuso
semelhante entre facticidade e validade no nvel do saberdisponvel
tematicamente, portanto do saber que j passou peloagir
comunicativo, porm numa figura inteiramente diferente, aqual tambm
estabiliza expectativas de comportamento. Em insti-tuies de
sociedades tribais protegidas por tabus, as expectativascognitivas
e normativas solidificam-se, formando um complexoindiviso de
convices, que se liga a motivos e orientaes axio-lgicas. A
autoridade de instituies detentoras de poder atinge osque agem no
interior de seu mundo vital social. A partir da, esteno mais
descrito na perspectiva pragmtico-formal do partici-pante, como
saber que serve de pano de fundo, uma vez que objetivado na
perspectiva do socilogo observador. O mundo davida, do qual as
instituies so uma parte, manifesta-se como umcomplexo de tradies
entrelaadas, de ordens legtimas e deidentidades pessoais - tudo
reproduzido pelo agir comunicativo.
A teoria antropolgica das instituies, de Arnold Gehlen,focaliza
o fenmeno de um consenso normativo originrio, que podeser
diferenciado analiticamente das certezas do mundo da vida. Poisesse
acordo refere-se especialmente a expectativas de comportamento,as
quais, apesar de estarem amarradas profundamente a instituies,podem
ser transmitidas e exercitadas culturalmente como saber expl-cito
1f
.0 jogo de narrativas mticas e de aes rituais pode mostrar
porque esse saber s pode ser tematizado com reservas. Restries
comunicao, determinadas cerimonialmente, protegem contra
pro-blematizaes a validade autoritria dos contedos descritivos,
valo-
16 GEHLEN, A. Der Mensch. Bonn, 1950; Id. Urmensch undSptkultur.
Bonn, 1956.
42
rativos e expressivos que se entrelaam formando uma sndrome.
O complexo cristalizado de convices afirma um tipo de
validaderevestida com o poder do factual. De sorte que a juso
entrefacticidade e validade no se realiza no modo de uma
familiaridadeoriginria, atravs de certezas portadoras, que de certa
forma carrega-mos nas costas na forma de mundo da vida, mas no modo
de umaautoridade ambivalente que vem ao nosso encontro de forma
imposi-tiva. Durkheim elaborou a ambivalncia desse modo de
validade
,
tomando como base o status de objetos sagrados, os quais
imprimem
nos que os contemplam um sentimento que um misto de entusiasmoe
medo, e que provocam ao mesmo tempo venerao e pavor17. Aexperincia
esttica permite que ainda hoje tenhamos acesso a essasimbiose de
afetos conflitantes; no choque desencadeado surrealisti-camente e
descrito por autores tais como Bataille e Leiris
, ela
domesticada e colocada no quadro da reprodutibilidadede18.O
fascnio despertado por instituies detentoras do poder
,
que ao mesmo tempo atrai e repele, revela a fuso de dois
momen-tos aparentemente incompatveis. A ameaa de um poder vingadore
a fora de convices aglutinadoras no somente coexistem
,
como tambm nascem da mesma fonte mstica. As sanes impos-tas
pelos homens so secundrias: elas apenas vingam transgres-ses contra
uma autoridade cogente e obrigatria que vem antesdelas. Dela as
sanes sociais extraem
, por assim dizer, o seusignificado ritual. Parece que a
integrao de coletividades sociaisatravs de um agir que se orienta
por pretenses de validade s foiassegurada a partir do momento em
que o risco de dissenso pdeser interceptado na prpria dimenso de
validade.
Ainda hoje emdia nossas reaes
, profundamente arraigadas, em relao ao tabudo incesto
, fazem lembrar que, nos domnios nucleares de socie-dades
organizadas pelo parentesco
, a estabilidade de expectativas
de comportamento teve que ser garantida atravs de
convicesapoiadas numa autoridade "fascinosaao mesmo tempo
intimi-
17 HABERMAS, J. (1981), vol. 2, 79ss.
18 BENJAMIN.
W. Der Surrealismus, Gesammelte Schriften. II, 3,295ss.
43
-
dante e atrativa, e isso sob o umbral no qual a coao
sancionadorase separa irreversivelmente da coao sublimada em fora
deconvico oriunda de razes evidentes.
Aqum desse umbral, a validade mantm a fora do ftico,
seja na figura de certezas do mundo da vida, subtradas
comu-nicao, por permanecerem em segundo plano, seja na figura
deconvices disponveis comunicativamente, as quais dirigem
ocomportamento, porm sob os limites impostos comunicaopor uma
autoridade fascinosa, ficando, pois, subtradas proble-matizao.
5
Para chegar categoria do direito necessrio um terceiropasso
reconstrutivo. A introduo do agir comunicativo em con-textos do
mundo da vida e a regulamentao do comportamentoatravs de instituies
originrias podem explicar como possvela integrao social em grupos
pequenos e relativamente indiferen-ciados, na base improvvel de
processos de entendimento emgeral. certo que os espaos para o risco
do dissenso embutidoem tomadas de posio em termos de sim/no em
relao apretenses de validade criticveis crescem no decorrer da
evoluosocial. Quanto maior for a complexidade da sociedade e
quantomais se ampliar a perspectiva restringida etnocentricamente,
tantomaior ser a pluralizao de formas de vida e a individualizaode
histrias de vida, as quais inibem as zonas de sobreposio oude
convergncia de convices que se encontram na base domundo da vida;
e, na medida de seu desencantamento
, decomp-em-se os complexos de convices sacralizadas em aspectos
devalidade diferenciados, formando os contedos mais ou
menostematizveis de uma tradio diluda comunicativamente. Antesde
tudo, porm, os processos da diferenciao social impem umamultiplicao
de tarefas funcionalmente especificadas
, de papissociais e de interesses, que liberam o agir
comunicativo dasamarras institucionais estreitamente
circunscritas
, ampliando osespaos de opo, o que implica uma intensificao das
esferas doagir orientado pelo interesse do sucesso individual.
44
Esse breve esboo suficiente para levantar o problema tpicode
sociedades modernas: como estabilizar, na perspectiva dosprprios
atores, a validade de uma ordem social, na qual aescomunicativas
tornam-se autnomas e claramente distintas deinteraes estratgicas?
Naturalmente o quadro de uma ordemnormativa sempre comportou um
agir orientado por interesses. Emsociedades organizadas em forma de
Estado, a ordem normativanatural reformulada em normas do direito.
Entretanto, em socie-dades tradicionais, o prprio direito ainda se
alimenta da fora dosagrado religiosamente sublimado. Na fuso sacral
entre facticida-de e validade se enraza, por exemplo, a hierarquia
de leis, datradio jurdica europia, segundo a qual o direito
estabelecidopelo governante permanece subordinado ao direito
natural cristo,administrado eclesiasticamente.
Nas pginas seguintes vou tomar como ponto de partida asituao de
uma sociedade profanizada onde as ordens normativastm que ser
mantidas sem garantias meta-sociais. E as certezas domundo da vida,
j pluralizadas e cada vez mais diferenciadas, nofornecem uma
compensao suficiente para esse dficit. Por isso,o fardo da integrao
social se transfere cada vez mais para asrealizaes de entendimento
de atores para os quais a facticidade(coao de sanes exteriores) e a
validade (fora ligadora deconvices racionalmente motivadas) so
incompatveis, ao me-nos fora dos domnios de ao regulados pela
tradio e peloscostumes. Se for verdade
, como eu penso, seguindo Durkheim eParsons
, que complexos de interao no se estabilizam apenasatravs da
influncia recproca de atores orientados pelo sucesso,ento a
sociedade tem que ser integrada, em ltima instncia,atravs do agir
comunicativo19.
19 O conceito elementar "agir comunicativo" explica como
possvelsurgir integrao social atravs das energias aglutinantes de
umalinguagem compartilhada intersubjetivamente. Esta impelimitaes
pragmticas aos sujeitos desejosos de utilizar essasforas da
linguagem, obrigando-os a sair do egocentrismo e a secolocar sob os
critrios pblicos da racionalidade do entendimento.Nesta tica, a
sociedade se apresenta como um mundo da vida
45
-
Em tal situao, agudiza-se o seguinte problema: como integrar
socialmente mundos da vida em si mesmos pluralizados e
profaniza-dos, uma vez que cresce simultaneamente o risco de
dissenso nosdomnios do agir comunicativo desligado de autoridades
sagradas ede instituies fortes? Aps a descrio dessa cena, parece
que anecessidade crescente de integrao, nas modernas sociedades
econ-micas, sobrecarrega a capacidade de integrao do mecanismo
deentendimento disponvel, quando uma quantidade crescente de
inte-raes estratgicas, imprescindveis para a estrutura social, so
libe-radasi. Num caso de conflito, os que agem
comunicativamenteencontram-se perante a alternativa de suspenderem
a comunicao oude agirem estrategicamente - de protelarem ou de
tentarem decidir umconflito no solucionado. Parece haver uma sada
atravs da regula-mentao normativa de interaes estratgicas, sobre as
quais osprprios atores se entendem. A natureza paradoxal de tais
regras poderevelar-se luz da premissa, segundo a qual a facticidade
e validadese separaram, na perspectiva dos prprios sujeitos
agentes, forman-do duas dimenses mutuamente excludentes. Para
atores orienta-dos pelo sucesso todos os componentes da situao
transformam-se
estruturado simbolicamente, que se reproduz atravs do
agircomunicativo. Isso no impede o surgimento de
interaesestratgicas no mundo da vida. Essas, porm, no tm o
mesmocarter das de Hobbes ou da teoria do jogo: elas no so
maisentendidas como o mecanismo para a produo de uma
ordeminstrumental. Interaes estratgicas tm o seu lugar num mundoda
vida enquanto pr-constitudo em outro lugar. Mesmo assim, oque age
estrategicamente mantm o mundo da vida como um panode fundo; porm
neutraliza-o em sua funo de coordenao daao. Ele no fornece mais um
adiantamento de consenso, porqueo que age estrategicamente v os
dados institucionais e os outrosparticipantes da interao apenas
como fatos sociais. No enfoqueobjetivador, um observador no
consegue entender-se com elescomo se fossem segundas pessoas.
20 As objees que se fazem contra a teoria do agir
comunicativonormalmente desconhecem essa premissa; cf. GIEGEL H.
J.Einleitungzu Giegel (1992), 7-17.
46
em fatos, que eles valorizam luz de suas prprias
preferncias,
ao passo que os que agem orientados pelo entendimento dependemde
uma compreenso da situao, negociada em comum
, passandoa interpretar fatos relevantes luz de pretenses de
validadereconhecidas intersubjetivamente. Entretanto, sempre que a
orien-tao pelo sucesso e a orientao pelo entendimento chegam
aformar uma alternativa completa aos olhos dos sujeitos agentes
, a
regulamentao intersubjetivamente obrigatria de interaes
es-tratgicas precisa fazer jus a duas condies contraditrias
, as
quais no podem ser preenchidas simultaneamente na tica
dosatores. Tais regras representam, de um lado, delimitaes
fac-tuais que modificam de tal forma o leque de dados
, que o ator,no enfoque de algum que age estrategicamente
, sente-se obri-
gado a adaptar objetivamente seu comportamento linha dese-jada;
de outro lado, elas precisam desenvolver
, ao mesmo
tempo, uma fora social integradora, na medida em que elas
impem obrigaes aos destinatrios, o que s possvel,
segundo nosso pressuposto, na base de pretenses de validade
normativas reconhecidas intersubjetivamente.Nesta linha, a coero
ftica e a validade legtima deveriam
assegurar ao tipo procurado de normas a disposio em
segui-las.Normas desse tipo devem apresentar-se com uma autoridade
capazde revestir a validade com a fora do ftico
, porm desta vez soba condio da polarizao que j se estabeleceu
entre agir orientadopelo sucesso e agir orientado pelo entendimento
e, deste modo, soba condio de uma incompatibilidade percebida entre
facticidadee validade
.
Partimos do fato de que as garantias meta-sociais dosagrado
caram
, as quais tinham tornado possvel a fora de ligao
ambivalente de instituies arcaicas e, assim, uma ligao entre
facticidade e validade, na prpria dimenso da validade.
Encon-
tramos a soluo desse enigma no sistema de direitos que prov
as
liberdades subjetivas de ao com a coao do direito objetivo.
Doponto de vista histrico, os direitos subjetivos privados, que
foramtalhados para a busca estratgica de interesses privados e
queconfiguram espaos legtimos para as liberdades de ao
indi-viduais
, constituem o ncleo do direito moderno.
47
-
Hl. Dimenses da validade do direito.
Desde a poca de Hobbes, as regras do direito privado,apoiadas na
liberdade de contratos e na propriedade, valemcomo prottipo para o
direito em geral. Ao formular sua dou-trina do direito
, Kant tomara como ponto de partida direitos
naturais subjetivos, que concediam a cada pessoa o direito
deusar a fora quando suas liberdades subjetivas de ao,
juridi-camente asseguradas, fossem feridas. Quando o direito
positivosucedeu ao natural, momento em que todos os meios
legtimosde usar a fora passaram a ser monopolizados pelo Estado,
essesdireitos de usar a fora transformaram-se em autorizaes
parainiciar uma ao judicial. Ao mesmo tempo, os direitos priva-dos
subjetivos foram complementados, atravs de direitos dedefesa
estruturalmente homlogos, contra o prprio poder doEstado. Esses
direitos de defesa protegiam as pessoas privadascontra
interferncias ilegais do aparelho do Estado na vida,liberdade e
propriedade. Em nosso contexto interessa, em pri-meiro lugar, o
conceito de legalidade, do qual Kant se servepara esclarecer o modo
complexo de validade do direito emgeral, tomando como ponto de
partida os direitos subjetivos.Na dimenso da validade do direito, a
facticidade interliga-se,mais uma vez, com a validade, porm no
chega a formar umamlgama indissolvel - como nas certezas do mundo
da vidaou na autoridade dominadora de instituies fortes, subtradasa
qualquer discusso. No modo de validade do direito, a facti-cidade
da imposio do direito pelo Estado interliga-se com afora de um
processo de normatizao do direito, que tem apretenso de ser
racional, por garantir a liberdade e fundar alegitimidade. A tenso
entre esses momentos, que permanecemdistintos, intensificada e, ao
mesmo tempo, operacionalizada,em proveito do comportamento.
1
Para Kant, a relao entre facticidade e validade, estabilizada
navalidade jurdica, apresenta-se como uma relao interna entre
coer-
48
o e liberdade, fundada pelo direito. De si mesmo, o direito
estligado autorizao para o uso da coero; no entanto esse uso sse
justifica quando "elimina empecilhos liberdade"
, portanto,quando se ope a abusos na liberdade de cada um. Fssq
"relaointerna entre o poder geral e recproco de usar a fora e a
liberdadede cada um" se manifesta na pretenso de validade do
direito21.Regras do direito estatuem condies do uso da coero "sob
as quaiso arbtrio de uma pessoa pode ser ligado ao arbtrio de
outra
, segundouma lei geral da liberdade"22. De um lado
, possvel extorquir alegalidade do comportamento como "a simples
conformidade de umaao com a lei"23;
por isso os sujeitos devem poder obedecer lei porrazes no apenas
morais. Basta que os destinatrios percebam que as"condies do uso da
fora"
configuram apenas uma ocasio para umcomportamento conforme a
normas; pois razes analticas impedemque um agir por dever, isto , a
obedincia ao direito por motivosmorais, possa ser imposto com o uso
da coero. De outro lado
, porm,a integrao social, ou seja, a "associao" do arbtrio de
cada um como arbtrio de todos os outros
, s possvel sob o ponto de vista morale na base de regras
normativamente vlidas
, merecedoras do reconhe-
cimento no coagido e racionalmente motivado de seus
destinatrios-
"segundo uma lei geral da liberdade". Embora pretenses de
direito
estejam ligadas a autorizaes de coero, elas tambm podem ser
seguidas, a qualquer momento, por "respeito lei", isto , levando
em
conta sua pretenso de validade normativai4. O paradoxo das
regras
de ao, que exigem apenas um comportamento objetivamente con-
forme a normas, sem levar em conta a possibilidade de seu
reconhe-
cimento moral, se resolve com o auxlio do conceito kantiano
da
legalidade: normas do direito so, ao mesmo tempo e sob
aspectos
diferentes, leis da coero e leis da liberdade.
21 KANT, I. Einleitung in die Rechtslehre. Werke (Weischedel)
vol.
IV, 338s.
22 Ibid.
, 337.
23 Ibid.
, 324.
24 Ibid.
, 51 Os.
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O duplo aspecto da validade do direito, que ns
tentamosesclarecer com o auxlio de conceitos da doutrina kantiana
dodireito, tambm pode ser ventilado na perspectiva da teoria daao.
A coero e a liberdade, que so os dois componentes davalidade do
direito, pem disposio dos destinatrios a escolhada perspectiva do
ator. Para um modo de ver emprico, a validadedo direito positivo
determinada, antes de tudo e tautologicamen-te, pelo fato de que s
vale como direito aquilo que obtm forade direito atravs de
procedimentos juridicamente vlidos - e queprovisoriamente mantm
fora de direito, apesar da possibilidadede derrogao, dada no
direito. Porm, o sentido desta validade dodireito somente se
explica atravs da referncia simultnea suavalidade social ou ftica
(Geltung) e sua validade ou legitimidade(Gultigkeit)25. A validade
social de normas do direito determi-nada pelo grau em que consegue
se impor, ou seja, pela suapossvel aceitao ftica no crculo dos
membros do direito. Aocontrrio da validade convencional dos usos e
costumes, o direitonormatizado no se apia sobre a facticidade de
formas de vidaconsuetudinrias e tradicionais, e sim sobre a
facticidade artificialda ameaa de sanes definidas conforme o
direito e que podemser impostas pelo tribunal. Ao passo que a
legitimidade de regrasse mede pela resgatabilidade discursiv