I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos 23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES 1514 GT 07 - ANTROPOLOGIA E PLURALISMO JURÍDICO Coordenadores: Prof. Dr. Júlio Pompeu (UFES) Prof. Dr. Sandro José da Silva (UFES) Debatedores: Prof.ª Dr.ª Brunela Vieira de Vincenzi (UFES)
170
Embed
GT 07 - ANTROPOLOGIA E PLURALISMO JURÍDICOconacsoufes.com.br/gt07.pdf · I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
This document is posted to help you gain knowledge. Please leave a comment to let me know what you think about it! Share it to your friends and learn new things together.
Transcript
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1514
GT 07 - ANTROPOLOGIA E PLURALISMO JURÍDICO
Coordenadores:
Prof. Dr. Júlio Pompeu (UFES)
Prof. Dr. Sandro José da Silva (UFES)
Debatedores:
Prof.ª Dr.ª Brunela Vieira de Vincenzi (UFES)
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1515
A DECISÃO DAS CORTES LATINAS EM MATÉRIA DE DIREITO DOS POVOS
TRADICIONAIS: UM ESTUDO EMPÍRICO
Alceu Fernandes da Costa Neto Faculdade de Direito da UnB
Resumo: Conflitos entre o desenvolvimentismo energético, movidos pelo capitalismo, e o
reconhecimento territorial latino-indígenas desafiam o judiciário no continente. Essa crise
institucional suscita problemas constitucionais complexos à medida que direitos conquistados pelos
povos-tradicionais são relativizados em função da influência do sistema econômico sobre o jurídico.
Nessa tela, objetivamos, pelo método do estruturalismo genético de Pierre Bourdieu, investigar como
Cortes Constitucionais, lugar último da interpretação-aplicação normativa na hierarquia jurídico-
estatal, decidem sobre essas matérias, as quais necessitam do aporte de conhecimentos sociais e
antropológicos. Como pano-de-fundo empírico utilizaremos os microcosmos das Cortes
Constitucionais brasileira e colombiana (decisões 3300/RR – Demarcação das Terras Indígenas
Raposa-Serra-do-Sol e SU-039/97 – Consulta para licença da exploração de hidrocarbonetos na
comunidade indígena U’wa). Examinaremos como o direito articula-se operativamente e quais forças
simbólicas interagem no campo, buscando mostrar a conjuntura do problema estudado.
Seguidamente, pela análise epistemológica de Toulmin (2006), desvelaremos até que ponto normas
internacionais em matéria de direitos-humanos pró-indígenas, destacadamente a convenção 169 da
OIT, caracterizada por apreciar demandas dos povos-tradicionais, têm sido vilipendiadas pelo
judiciário, proliferando uma construção jurisprudencial pouco reflexiva, que combina pura aplicação
da lei com interesses específicos. Finalmente, na conclusão, discutiremos como abordagem
transdisciplinar nas decisões fortalece os Direitos-Humanos-Fundamentais e a democracia.
Palavras-chave: Cortes Constitucionais; direito dos povos tradicionais; conflitos territoriais.
Abstract: Conflict between the energetic developmentalism, driven by capitalism, and Latin
indigenous territorial recognition challenges the judiciary on the continent. This institutional crisis
raises complex constitutional issues as the rights won by the traditional people are relativized due
the influence of the economic system over the legal. On this screen we aimed, by Pierre Bourdieu´s
genetic structuralism method, investigate how Constitutional Courts, the last place of normative
interpretation application on legal-state hierarchy, decide on these subjects, which require the
contribution of social and anthropological knowledge. As empirical background we will use the
microcosm of Brazilian and Colombian Constitutional Courts (decisions 3300 / RR – Demarcation
of Indigenous Lands Raposa-Serra do Sol and SU-039/97 – Consultation for hydrocarbon exploration
license in the indigenous community U'wa). We examine how the law is operationally linked and
which symbolic forces interact in the field, trying to show the situation of the studied problem. As
the next step, by the epistemological analysis of Toulmin (2006), we show the extent to which
international human rights standards for pro-indigenous, notably the 169 ILO Convention,
characterized by enjoying demands of traditional peoples, have been vilified by the judiciary,
proliferating a low reflective jurisprudential construction, which combines pure law application with
specific interests. Finally, in conclusion, we will discuss how a transdisciplinary approach in
decisions strengthens Fundamental Human Rights and democracy.
Keywords: Constitutional Courts; rights of traditional peoples; territorial conflicts.
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1516
Introdução
As comunicações jurídicas, pela reprodução de seus símbolos buscam autonomia
sistêmica, diante de uma sociedade “multicêntrica” ou “policontextual” (LUHMANN 1983,
p. 64). A autonomia aqui citada ocorre em dois níveis: o direito busca ser autônomo em
relação ao ambiente e em relação às demais racionalidades nele contido, sendo que esse
exercício suscita tensões a medida que os sistemas se influenciam e podem se impor, uns
sobre os outros (TEUBNER, 2002). Com a globalização, observa-se que o sistema
econômico passou criar uma estrutura de poder que interfere nos demais códigos,
notadamente nos jurídicos (SANTOS, 2003, p. 19).
Nessa linha, se o direito passa a ser afetado por componentes econômicos, é possível
que os códigos jurídicos se comportem como instrumentos de dominação, sopesando, nas
relações de força, àquele que detiver maior capital1 (BOURDIEU, 2007, 210-214). O
problema desse desalinhamento no estado-das-coisas é que o direito é um componente
fundamental para um regime de democracia, especialmente quando tratamos dos direitos
humanos. Se ele passa a servir interesses específicos, por estar corrompido sistemicamente,
há um desafio às instituições democráticas.
A visão de nossa metodologia converge para o fato de que a construção do mundo
jurídico depende muito de como os interesses sociais se articulam operativamente
(GARCIA, 1999) sendo que o Estado aparece, então, como a instituição que reivindica, além
da força física, a força simbólica para impor a norma considerada oficial. Ele detém tanto as
estruturas objetivas, isso é, a arquitetura de formulação do direito, quanto as estruturas
subjetivas como esquemas de percepção mental (BOURDIEU, 2004, p. 98).
No âmbito dessas estruturas subjetivas está a luta pela interpretação aplicável em cada
caso, aplicação do direito, que, em última instância, será executada pelos juízes constitucionais.
São agentes que têm posição privilegiada, qualificada pela competência de desvelar como se
aplica a Norma Constitucional, a qual fundamenta todas as demais normas. Daí infere-se que a
Corte Constitucional retém o maior coeficiente de capital simbólico dentro do campo jurídico,
1 Numa primeira análise, o conceito de capital está relacionado à economia, conceitualmente, pode ser
equivalente à riqueza e/ou patrimônio (PIKETTY, 2014, p. 51), mas aqui esse é apenas uma das multifaces do
termo capital. Para Bourdieu (2007) o capital está ligado ao coeficiente de poder do agente social, que procurará
se distinguir a partir de sua representatividade simbólica, noutra instância os atores sociais procurarão
hierarquizar os grupos para manter as práticas específicas de sua classe. É possível identificar quatro tipos de
capitais, em Bourdieu: (i) capital social, (ii) capital simbólico, (iii) capital econômico e (iv) capital cultural.
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1517
porque à medida que decide sobre os casos concretos, é ela que diz o que é ou não direito2 para
cada situação, podendo criar, a partir da leitura das conjunturas específicas, os precedentes
jurisprudenciais a ser seguido por todo o sistema da burocracia judiciária. Ao fazer essa ação,
ela, a Corte, condiciona práticas, cria moldes e parâmetros de agir aos demais agentes. Por isso
a homologação condiciona o habitus, a medida que é capaz de influenciar aparelhamentos
sociais na contemporaneidade, causando reflexos nas relações de identidade e unidade, nas
escolhas do estilo de vida e nas tendências homogeneizantes de uma classe.
Este artigo apresenta uma possibilidade analítica da argumentação das
fundamentações de dois acórdãos sobre os “direitos à permanência das populações
indígenas” segundo o entendimento das Cortes Constitucionais do Brasil e da Colômbia. Os
casos utilizados como macrocosmos empíricos servirão como pano de fundo, objetivando
verificar se os magistrados constitucionais têm ponderado questões de Direitos Humanos em
suas decisões. Feito o corte metodológico, é importante ressaltar que o estudo de “casos
difíceis” no direito é essencial, uma vez que as decisões tomadas a partir desses “lugares
comuns do direito” são capazes de vincular toda população de um país em mesmo tempo
que revelam o posicionamento dos juízes frente a demandas sociais sensíveis.
A escolha do caso de “Demarcação de Terras Raposa Serra do Sol”, no Brasil e da
“Consulta para Licença da Exploração de Hidrocarbonetos na Comunidade Indígena de
U’wa”, na Colômbia, se deu por uma série de variáveis que demonstram a similaridade dos
casos. Primeiramente, as Constituições do Brasil e da Colômbia foram promulgadas em um
curto espaço de aproximação entre elas, 1988 e 1991 respectivamente. Outro fato marcante foi
a utilização da convenção 196 da Organização Internacional do Trabalho como parte do
conteúdo argumentativo. Também foi observada a existência de direitos indígenas nas Cartas
Constitucionais de ambos os Estados. O mais importante, sobretudo, é a semelhança do objeto
dos litígios – o direito dos povos de serem ouvidos e permanecerem, e, sobretudo, decidirem
sobre seu próprio território. Após inferir se as Cortes têm levado em consideração as normas
internacionais em matéria de direito dos povos tradicionais, o artigo verificará qual o grau de
influência que o direito internacional público exerce sobre as Cortes Constitucionais e como
os magistrados têm as utilizado em suas decisões. A depender do grau de interferência,
2 O poder das cortes constitucionais alcança grandes dimensões e pode atingir nocivamente os outros poderes.
Atualmente um desses desvios é o chamado ativismo judicial qualificado quando o judiciário adentra em
competências atípicas retraindo os outros poderes, usurpando funções que não estão em sua competência e,
muitas vezes, impedindo que as demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva (BARROSO, 2008).
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1518
poderemos analisar a abertura cognitiva de cada tribunal para o respeito aos direitos humanos
provenientes de normas internacionais, que são as maiores fontes de direitos humanos.
1. Análise do objeto
1.1 O corpus de direito internacional em matéria indígena: do Estado protecionista à
tentativa de um Estado pluralista.
O desenvolvimento do Direito Internacional indígena ocorreu gradualmente, em um
cenário de fortes embates políticos caracterizados pela competição econômica que se deu no
pós-guerra. Nesse sentido consideremos que
O conjunto de práticas e categorias discursivas de natureza jurídica
responde a uma lógica de construção bem específica. Essa lógica própria
se qualifica tanto pelas relações de força, que lhe confere a estrutura e
orienta as lutas internas pela concorrência ou competência entre os agentes,
quanto pela produção jurídica, que delimita cada momento o universo das
soluções aptas ao reconhecimento social (MARCHIONI, 2010, p. 97).
Práticas jurídicas podem se inclinar a responder questões que reproduzem lógicas
econômicas e de exploração, por isso muitos obstáculos apareceram na formação de um direito
indígena de fato protetivo, especialmente porque os povos tradicionais têm uma forte relação
com o território, alvo do desenvolvimentismo capitalista do século XX. Foi assim que a
exploração de matérias-primas, especialmente provindas da América Latina3, a necessidade de
reindustrialização dos países envolvidos nas grandes guerras, a existência de acordos
internacionais de integração econômica4, entre outras conformidades dos códigos econômicos
impediram a formação de uma legislação autônoma, comprometida, com os povos tradicionais.
3 Sobre exploração em territórios indígenas, especialmente na Amazônia, constata a Comisión Económica para América
Latina y el Caribe, órgão das Organizações das Nações Unidas (2014, p. 13) “A mediados del siglo XX, con los procesos
de colonización en la Amazonía y otras “zonas periféricas” de la región tuvo lugar un segundo ciclo de
desterritorialización de los pueblos indígenas, con graves consecuencias sobre sus condiciones de vida. Más
recientemente, el ciclo de la presión extractiva sobre los recursos naturales por parte de las empresas nacionales y
transnacionales y la ejecución de grandes obras civiles con impactos negativos sobre los ecosistemas, han irrumpido
con fuerza inusitada en todo el continente, agravando el cuadro histórico de despojo y vulnerabilidad. El último y más
reciente ciclo, el de la apropiación de los conocimientos tradicionales, la biodiversidad asociada a estos y los recursos
genéticos es el corolario de este extenso proceso histórico de desposesión de los pueblos indígenas de América Latina”. 4 A respeito dessa modalidade de acordos econômicos internacionais, reflete, Marchioni (2011, p. 16) “[...] o
‘Consenso de Washington’ (1989) foi exemplo de ‘micro-discurso-globalizante’ utilizado pelos Estados
Unidos para exigir um conjunto de reformas estruturais nas economias latino-americanas. Liberalização
comercial e financeira, abertura das contas de capital, privatização do patrimônio nacional e até
desregulamentação normativa de natureza tributária, trabalhista e ambiental, têm sido algumas das diretrizes
seguidas por esses países, ao longo de mais de uma década”.
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1519
A primeira medida relevante, a promulgação do Convênio 107 (1957) da
Organização Internacional do Trabalho (OIT), apenas chancelou o posicionamento de
Estado dominador predominante na época, segundo o preâmbulo, a norma tem como
objetivo as populações “que não estão integradas ainda na coletividade nacional” (ONU,
1957). Dessa semântica compreende-se que há uma marcha de integração a ser seguida pelas
populações indígenas, rumo ao ambiente civilizado.
No final do século XX pode-se observar a migração do paradigma assimilacionista para
um ambiente de pluralismo étnico com autonomia participativa. Tal cenário estimulou a
formulação do convênio 169 da OIT, sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes
(no Brasil Decreto n. 5051 de 19.04.2004 e na Colômbia Lei 21 de 07.08.1991). O documento,
que substitui o Convênio 107/57 da OIT, privilegia aspectos da subjetividade indígena como a
consciência da identidade como definição de sujeito de direito5. Além disso, o convênio destaca
que deve ser considerada a participação dos povos em decisões, governamentais ou privadas, em
qualquer matéria que possa afetá-los (CONVENÇÃO 169/OIT, art. 6º, 7º; 15).
Segundo o dispositivo, os indígenas devem ter a possibilidade de utilizar, administrar e
conservar os recursos naturais localizados em seu território, mesmo que o Estado tenha a posse
dominial. Por isso deve sempre haver a consulta os habitantes locais, além disso, eles deverão
ser indenizados na medida em que o Estado lhe causem danos. E isso só é possível se os povos
tradicionais possuírem as regulamentações necessárias à propriedade e posse territorial. Assim
reconhece-se a fundamental do índio e seu chão (CONVENÇÃO 169/OIT, art. 14).
Em 2007, a 107ª plenária da Assembleia Geral (AG) das Nações Unidas (ONU)
aprovou a Declaração de Direitos dos Povos Indígenas (DDPI/07). Destaca-se nesse diploma
o direito à autonomia e ao autogoverno dos povos, o que implica em dizer que as comunidades
étnicas são livres para buscar o seu desenvolvimento (DDPI/07, art. 3, 4º) e, inclusive, deve-
se respeitar a justiça comunitária e valores tradicionais das comunidades (DDPI/07, art. 5º).
Dessa forma, há dois instrumentos jurídicos de proteção aos povos tradicionais.
Enquanto a Convenção 169/OIT é um instrumento legal cogente, para seus signatários, a
DDPI/07 ocupa um papel principiológico, sintetizando os debates relevantes, conceitos e
5 O Convênio 169 é muito influente nos países Latinos, especialmente pela recente onda de redemocratização
inspirada em estados sociais. No México, por exemplo, o Convênio baseou os movimentos indígenas criando aporte
jurídico às suas demandas. Houve até mesmo questionamentos à reforma constituinte daquele país a partir de uma
interpretação do acordo (ARELLANO, 2002). Outro exemplo foi na Guatemala. A assinatura do Acordo de Paz
com o governo foi condicionada pelos grupos rebeldes indígenas exigindo a ratificação pelo Estado do Convênio
169. No Chile, por outro lado, a pressão para a ratificação do Convênio (algo que somente ocorreu em março de
2008) funcionou como elemento de articulação interna para as organizações indígenas (MARIOTTI, 2004).
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1520
princípios, sintetizando em seu âmago as demandas das comunidades (LANA et al, 2008, p.
205). Habermas (2003, p. 216) lembra que, se bem que a positivação (de um direito) implique
na diferença entre direito e moral, a fundamentação direta das normas deve ser balizada por
princípios. Em outras palavras, o direito precisa ser justificado no âmbito de uma moral pós-
convencional ou universalista (NEVES, 2013, p. 114). Diante da tensão entre “facticidade” e
“validade” o direito na contemporaneidade perdeu seu fundamento sacro e precisa ser
legitimado por procedimentos de agir racional e que sejam moralmente justificáveis
(HABERMAS, 2000). Nesse caso, a DDPI/07 poderá indicar, por ser um documento-base,
como os atores interessados poderão negociar politicamente com os Estados o provimento de
suas demandas servindo à fundamentação de decisões judiciais e produção legislativa.
2. O desenvolvimento dos fatos sociais: relatos da construção dos casos concretos.
2.1 O processo de demarcação da Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol e a
complexidade das diversas relações de poder.
Se bem que os primeiros grupos de trabalho, visando a demarcação das Terras
Indígenas (TI) tenham surgido entre as décadas de 70 e 80 (BRASIL, 1996), o processo
demarcatório formal da Raposa Serra do Sol6 tem como marco inicial o ano de 1993, quando
foram dimensionadas suas coordenadas geográficas. A partir desse momento surgiu uma
série de controvérsias que passaram a contestar o procedimento administrativo de
demarcação de Terras Indígenas (TI) no país7, como resposta, o então presidente, Fernando
6 A área denominada “Raposa Serra do Sol” corresponde a uma parcela territorial inteiramente localizada no estado de
Roraima, compreendendo três municípios, Normandia, Pacaraima e Uiramutã. Esse espaço, que equivale a pouco mais
de 7,5% do estado, mede 1.678.000 há (GALAFASSI et al, 2009). Ali é possível encontrar aproximadamente dezenove
mil indígenas, de cinco etnias diferentes (Ingarikó, Makuxi, Taurepang, Wapixana e Patamona) distribuídas em 194
comunidades (GALAFASSI et al, 2009, p. 11). Antes do processo demarcatório, a economia local se baseava na
rizicultura, que ocupava uma área de 100.000 ha. Fontes indicam que 160 mil toneladas de arroz eram produzidas na
região localizada ao sul da reserva, às margens do rio Surumu (FACULDADE GETÚLIO VARGAS, 2009). 7 O fim da década de 80 foi marcado por práticas de governo caracterizadas pela implementação de políticas
desenvolvimentistas na região amazônica. Nesse quadro destacou-se o Projeto Calha do Norte, cuja finalidade
era apresentar medidas de segurança na região ao norte das calhas dos Rios Solimões e Amazonas. No âmbito
dessas políticas, o referido projeto apresentou medidas relacionadas também à política indigenista na região.
Foram eleitas as seguintes áreas como prioridade para as ações do governo: área Yanomami, Alto Rio Negro,
Roraima e a área do Alto Solimões. Em decorrência da implementação do projeto, o governo federal instituiu
dois modelos de demarcação das terras indígenas, conforme o grau de contato: as “colônias indígenas”,
pretendendo estabelecer o convívio entre índios e não índios; e as “áreas indígenas”. As medidas tomadas em
relação aos direitos dos povos indígenas foram duramente criticadas por especialistas, bem como por entidades
da sociedade civil organizada, de vez que havia a suspeita de existirem interesses nessas áreas indígenas em
razão da presença de jazidas minerais (DINIZ, 1994). De toda sorte, uma das consequências do Calha do Norte
foi o decreto 94.976/87 (já revogado) que estabeleceu modelos de demarcação das terras indígenas, inclusive
em parte do territorial hoje chamado de Raposa Serra do Sol (GALAFASSI et al, 2009, p. 20-21).
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1521
Henrique Cardoso (1995-2002), expediu um decreto (1.775/96) que garantiu os princípios
do contraditório e da ampla defesa aqueles procedimentos. Como consequência, no estado
de Roraima, no município de Normandia, fazendeiros e uma mineradora apresentaram 46
contestações8 contra o processo de demarcação (MARCHIONI, 2011, p. 267).
Cada uma das solicitações foi avaliada pela FUNAI, levada até o ministro da justiça
Nélson Jobim (1995-1997), que impugnou a maioria, ressalvando pontos que foram
ajustados9. Essa revisão resultou na diminuição de 300 mil ha. do total original.
Os embates políticos envolvendo as lideranças indígenas que se sucederam após o
despacho somado ao posicionamento favorável do Ministério Público Federal (MPF) e da
Advocacia Geral da União (AGU) criaram uma conjuntura de pressão que estimulou o novo
ministro da justiça, Renan Calheiros (1998-1999), a assinar a portaria nº 820 de 14 de novembro
de 1998, declarando a área como de posse permanente de terras indígenas de área contínua10,
que não foi capaz de apaziguar o ambiente. Os anos subsequentes foram marcados por invasões
por parte de fazendeiros, ampliação de áreas agrícolas e pelo ajuizamento de muitas ações que
atravancavam o processo do Executivo de Constituição da reserva. Essa situação perdurou até o
ano de 2005, quando o chefe do Ministério da Justiça Márcio Thomaz Bastos (2003-2007)
assinou a Portaria nº 534 que, ao revogar a Portaria nº 820/98, procurou sanar as questões
judiciais suscitadas. Em conjunto com essa medida, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva
(2003-2010) publicou o decreto presidencial sem número cujo fito foi homologar a Terra
Indígena (TI). Essa demarcação administrativa estabeleceu a autorização para que fosse criado
o Parque Nacional do Monte Roraima11, qualificado por ser uma área de preservação ambiental
submetido ao regime jurídico de dupla afetação, o que implica em dizer que ao mesmo tempo
em que se destina a realização dos direitos constitucionais dos índios, também realiza a
preservação do meio ambiente, daí admitir uma administração compartilhada, por parte de dois
8 Para verificar o conteúdo de cada uma das contestações, verificar o despacho 080/96 da FUNAI. 9 “Em síntese, o Despacho n. 080/96 estabeleceu, em relação à demarcação anteriormente proposta: (i) a
exclusão das propriedades privadas tituladas pelo INCRA, a partir de 1982, bem como a Fazenda denominada
“Guanabara”, da área da terra indígena; (ii) a exclusão da sede municipal do recém criado município de
Uiramutã e das vilas de Surumu, Água Fria, Socó e Mutum, da área da terra indígena; e (iii) a vedação do uso
exclusivo pelos indígenas das vias públicas e respectivas faixas de domínio público existentes dentro da área
delimitada”. A justificativa para esse redimensionamento foi a necessidade de convergir interesses
concorrentes que são, em medida política e também jurídica necessários para resguardar o interesse público na
região (GALAFASSI et al, 2009, p. 20-21). 10 A área é contínua em regra, mas exceptua o 6º pelotão especial de fronteiras, assim como a sede municipal
de Uiramutã. 11 Houve um acréscimo na área, objeto do decreto ministerial, que passou a ser de 1,74 milhão ha. A justificativa são
correções que puderam ser feitas por novas tecnologias em medição geográfica (BRASIL, 2009).
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1522
órgãos públicos de competências distintas, a FUNAI e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente
e Recursos Renováveis, IBAMA (MLYNARZ, 2008).
A portaria assegura de forma explícita que, para garantia da segurança nacional, as
Forças Armadas e a Polícia Federal podem ingressar nos territórios em qualquer tempo, sem
solicitar qualquer permissão. Trata-se de um livre trânsito, no acesso das tropas, assim como
implantação de programas e projetos de controle e proteção da fronteira, com a reafirmação
de criação e manutenção de unidades militares (GALAFASSI et al, 2009, p. 31).
A homologação, feita nesses termos, não foi capaz de conformar todas as demandas de
atores sociais envolvidos, especialmente os não-índios, já que o território é o lugar de lutas e
busca da hegemonia por meio das diversas violências. Numa situação de enfraquecimento do
direito, o poder da norma, ainda que contrafactual e chancelado pela força de império estatal,
não é capaz de se fazer eficaz, uma vez que o estado-das-forças comportamentais da sociedade
já se estruturou de modo que apenas a ordem mandamental do Estado não é o suficiente para
o cumprimento, preferindo os atores permanecer na ilicitude. Outro fator que é relevante é a
falta de estabilização de expectativas dentro do próprio Estado, projetando lutas internas dentro
da máquina pública. A FUNAI (Fundação Nacional do Índio) passou a ser impedida, através
de liminares de juízes federais de Roraima, de executar as ações de retirada dos ocupantes não-
índios. Nas hierarquias organizativas, assim como em qualquer texto jurídico, estão em jogo
lutas de poder entre os agentes concorrentes do campo (GARZÓN, 2008, p. 22), nesse passo
a União se vale de sua competência constitucional para demarcar terras. Todavia o Judiciário
local e o estado de Roraima, que também se aparelham nos seus espaços de poder, contestam
essa competência no caso concreto, criando uma verdadeira instabilidade institucional,
fenômeno cada vez mais comum se considerarmos a intenção de cada agente em procurar ser
hegemônico, ainda que independente do cumprimento às regras.
Uma das funções das Cortes é a busca pela universalização, que ocorre pelo processo de
codificação do direito (BOURDEIU, 2007). Nessa conjuntura, os “casos-particulares-do-possível”
servem como parâmetros para contingência de normas gerais. Essa operação se destina à função
precípua do direito que é “confirmar que uma lógica precedente, que liga o presente ao passado e
fornece garantias de que o porvir também será solucionado àquela imagem”12 (MARCHIONI,
2011, p. 284). Nesse contexto, em junho de 2006, o STF considerou-se competente para julgar as
12 Sobre tópico, relevante é fala do então presidente do supremo (2008-2010), ministro Gilmar Mendes
afirmando que o julgamento sobre a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, não deverá ficar
restrito ao caso específico, mas definirá o futuro da política demarcatória (BRASIL, 2009).
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1523
ações que questionam a demarcação da Terra Indígena, avocando competência exclusiva sobre a
matéria, após a provocação feita pela ação popular 3.388/RR13.
2.2 Entre o mercado e a lei: as disputas simbólicas na Colômbia.
Em 1994 a subdireção de Ordenamento e Avaliação Ambiental, órgão direto ligado ao
Ministério do Meio Ambiente colombiano, emitiu um laudo técnico favorável (nº 90) permitindo
a realização de projetos de pesquisa e exploração no território correspondente aos departamentos
de Boyacá, Arauca e Norte de Santander, localizado no setor norte do país14. Esse laudo
objetivava verificar a existência de jazidas de petróleo. Os procedimentos eram reflexos de
acordos comerciais feitos entre a Sociedad Occidental de Colombia, Inc e a empresa estatal
Ecopetrol. O procedimento, aparentemente, tomado em uma única via, sem qualquer consulta
passou a ser contestado pela comunidade local, a qual afirmava que a permissão deveria ser
avaliada pelas comunidades nativas (OLSEN, 2008, p. 17). O cenário, de protestos enérgicos,
passou a chamar os holofotes internacionais, quando os habitantes ameaçaram suicídio coletivo,
caso as terras ancestrais fossem objeto de violação (VÉASE, 2005, p. 246-266).
Como consequência dos protestos, o Ministério do Meio Ambiente realizou uma
reunião consultiva nos dias 10 e 11 de janeiro de 1995. Segundo os autos do processo, a adesão
das populações locais foi baixa, embora tenham comparecido membros ministeriais e dos
órgãos de controle das empresas envolvidas. Esse fato coloca “em que cheque” a legitimidade
da expedição de quaisquer licenças, em função do baixo quórum de populações locais.
Em setembro do mesmo ano, o caso chegou ao Tribunal Superior de Santafé de Bogotá
(1º instância daquele país), movida por uma ação de nulidade proveniente da defensoria pública.
O tribunal determinou suspensão do ato administrativo que permitia as ações empresariais porque
13 Ação Popular Petição n. 3388. Autor: República Augusto Affonso Botelho Neto (PT-RR), assistido pelo também
Senador Francisco Mozarildo de Melo Cavalcanti (PTB-RR). Re: União e Fundação Nacional do Índio (FUNAI).
Relator: Carlos Britto. Descrição: Ação popular com efeitos jurídicos liminares pleiteando a impugnação da Portaria
MJ n. 534/2005. O autor afirma que a portaria apresenta diversos vícios materiais semelhantes à Portaria 820/98,
representando ofensa aos princípios da razoabilidade, proporcionalidade, segurança jurídica, legalidade e devido
processo legal. O pedido de liminar foi declarado improcedente. O julgamento iniciou em 27 de agosto de 2008, época
em que o relator manifestou-se pela improcedência do pedido de Ação Popular, com a demarcação das Terrar Indígenas
Raposa Serra do Sol em forma contínua, e a consequente extrusão dos não-índios presentes nas áreas. Em dezembro do
mesmo ano o julgamento foi retomado, tendo o ministro Menezes Direito apresentado seu voto vista pela demarcação
contínua das terras da região, contudo, sujeita a dezoito condições. Depois de apresentados os votos de sete ministros,
suspendeu-se o julgamento que retornou em março do ano seguinte (MARCHIONI, 2011, p. 284). 14 O espaço em questão tem características do bioma da Amazônia colombiana, por isso lá há uma quantidade
expressiva de parques naturais e áreas de proteção. O local é o território de um grupo étnico denominado U’wa
tem 208.934 ha. e comporta uma população de mais de 5000 habitantes.
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1524
considerou que o desenvolvimento do país não podia se dar em detrimento das comunidades
tradicionais15. Além disso, a exigência de consulta prévia, disse a corte, seria fundamental, a
inexistência desse processo iria de encontro a normas constitucionais16 e, portanto, anulavam
qualquer ato do poder público, por considerar uma atuação de estado de exceção.
Adotando uma posição diversa, a Corte Suprema de Justiça (segunda instância),
revogou a decisão, por não considerar a inexistência de consulta prévia um atentado
fundamental à vida. Além disso, o Conselho de Estado17 considerou as audiências
promovidas nos dias 10 e 11 de setembro de 1995 como válidas, fato que supre as demandas
jurídicas por participação. Como a questão suscita importantes direitos constitucionais
fundamentais, a Corte Constitucional foi provocada, através de uma ação de nulidade, pelo
Defensor do Povo, Jaime Córdoba Triviño, representando Grupo étnico Indígena U’WA,
contra o Ministério do Meio Ambiente e a empresa Occidental de Colômbia, Inc.
3. Stphen Toulmin: da teoria da argumentação ao caso concreto
O lugar da decisão jurídica é caracterizado pela pretensão à neutralização em relação
aos interesses equipolentes. Naquele campo onde se mediam conflitos aparentemente
irreconciliáveis, hard cases, acabam sendo reguladas soluções (veredictos), legitimadas
socialmente pelo cumprimento procedimental das regras do jogo.
15 Na visão do tribunal de primeira instância “El proyecto de exploración, y eventual futura explotación, de
hidrocarburos en zona geográfica nacional que comprende territorios reservados para el hábitat de comunidades
indígenas natural y previsiblemente ha de tener importantes y profundas consecuencias en la ecología, la
cultura, la economía y el ordenamiento social de aquéllas pues no resulta difícil vaticinar que los trabajos que
se realicen no sólo afectarán la estructura geológica de esos territorios y la fauna y flora que allí se dan sino
que causarán impacto en las costumbres, la lengua, las tradiciones, la cosmovisión y las instituciones familiares
y tribales porque no en vano se produce el encuentro de una cultura y una civilización con otras (COLÔMBIA,
1997)” A reprodução desse trecho sintetiza o argumento contrário em relação a deterioração da comunidade,
os defensores do povo que argumentaram e a literatura utiliza argumentos na mesma linha de raciocínio. 16 Os artigos constitucionais mais relevantes à decisão nesse sentido foram os art.7º, art.8º, art.14, art. 40, art.79,
art. 330. Esses artigos reconhecem e protegem a diversidade político cultural, garantem um ambiente saudável
às populações indígenas e estabelecem os procedimentos para consulta e informação resguardando o
autogoverno e autodeterminação. 17 É integrado por conselheiros-magistrados e desempenha as funções do Supremo Tribunal e atua como supremo
corpo consultivo do governo em assuntos de administração, dirigido em salas e seções. Além disso, apresenta e
elabora projetos de reforma da Constituição e de leis; assessora o governo em relação com os atos diplomáticos e
administra justiça. Ainda realiza algumas atividades em comum com a Corte Constitucional, o Conselho Superior
da Judicatura, a Corte Suprema de Justiça e a Fiscalização Geral da nação (COLOMBIA, 1991).
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1525
No caso em tela, durante a decisão da Suprema Corte do Brasil, pode-se constatar até
certa unanimidade em relação à legalidade do processo demarcatório18. Houve uma anuência
dos ministros sobre o fato de que o modelo de demarcação encampado pelo presidente Lula
não gerou riscos a soberania estatal. Mas o voto triunfante foi aquele proposto pela tese do
ministro Menezes Direito que confirmou, por um lado, a regularidade do processo
demarcatório, todavia, por outro, impôs 18 condicionantes que, segundo o ministro, foram
fundamentais para assegurar o interesse público sobre o território que, resguardadas as
devidas proporções, pertence a União.
Como esse voto foi seguido pela maioria dos membros da corte, é sobre ele que se
pesará a avaliação. No referido voto, a fundamentação baseada em normas de direito
internacional se concentraram em quatro páginas e buscaram funcionar como avais para a
conclusão, que ao final resumiu-se nas 18 condicionantes. Esses avais, sob a ótica da
metodologia do “leyout de argumentos” de Stephen Toulmin (2006, 148-149) são chamados
de “apoios” ou “backing”. A função deles é mostrar que as proposições argumentativas são
pertinentes e gozam de legitimidade perante o auditório (TOULMIN, 2006, p. 141-142). Os
artigos da Convenção 169/OIT, utilizados como apoio, são similares aqueles encontrados na
Constituição Federal, sobre a mesma matéria, fato que foi reconhecido pelo ministro19. Noutra
face, a DDPI/07, ainda que aderida pelo Estado brasileiro, foi desvalida pelo magistrado20.
18 Sobre as falas dos ministros teremos “quando o estado de Roraima foi criado, os indígenas já ocupavam as
terras objeto da presente demarcação” (Min. Lewandowski). Assim “a posse dos indígenas é remota e
incontestável” (Min. Eros Grau). É daí que “a demarcação não exclui a presença do Estado brasileiro” (Min.
Carmen Lúcia). Nesse contexto o “Estado brasileiro deve se mobilizar para o pagamento de uma dívida ancestral
que o país tem com a população indígena” (Min. Ellen Gracie e Min. Peluzo) (MARCHIONI, 2011, p. 285). 19 Em relação a Convenção 169/OIT, os artigos utilizados pelo ministro foram: art. 2 §1, art. 5 (a), art.7 §4, art.
14 § 1 e 2, art. 15 §2 e art. 16 §1. Os artigos escolhidos pelo Ministro de fato têm similaridade com os art. 231
e 232 da CF/88, todavia acreditamos que a comparação é simplória tendo em vista que a Convenção 169/OIT
é muito mais abrangente em relação a quantidade de direitos e específica em relação ao objeto jurídico. Os
próprios artigos citados contemplam mais conteúdo do que pode ser encontrado na CF/88, então afirmar que
eles se equivalem, quanto ao volume de conteúdo, não nos parece a interpretação mais coerente. 20 Para justificar o rechaço da DDPI/07 o ministro afirma que ela é ambígua quando se trata de direitos de propriedade
territorial. Segundo o magistrado, o documento tem forte conotação política e, se levado às últimas consequências, não
se alinha com os princípios topográficos constitucionais e ameaça a unidade nacional. Por essa razão, ele justifica que
Estados como Austrália, Estado Unidos, Canadá e Nova Zelândia não a assinaram. O Min. Menezes Direito afirma que
os art. 32 e o art. 36, § 1, do DDPI/07, desprezam as fronteiras, de modo que a ambiguidade textual pode levar, por
alguns radicais, a pensar que os povos indígenas vão em “[...] direção a uma autonomia frente ao Estado do qual são
súditos (grifo nosso)”. Ainda não fugiu da apreciação do magistrado que a comunidade internacional não mediria
esforços para fazer valer direitos de propriedade indígenas, independente de como estejam colocados nas constituições
domésticas, assim como já tem feito a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Caso Awas Tingni vs. Nicarágua).
Após exprimir suas temeridades, o Min. Menezes Direito esvaziou o conteúdo jurídico de obrigatoriedade da DDPI/07,
afirmando que o documento supracitado não poderia se categorizar na classificação de normas de direitos humanos
recepcionadas pela Constituição Federal, porque não foi integralizado pelos procedimentos adequados, como bem
elenca o art. 5 § 3º (após a emenda 45/2004) da Carta. Assim ele mostra-se “convencido que não é possível qualificar a
DDPI/07 como um instrumento normativo de Direito Internacional”, porque é uma resolução resultante de assembleia
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1526
Noutro lado, o voto colombiano, diferente do brasileiro, é unificado. A decisão
corresponde à vontade da corte, não havendo diferenciação entre os argumentos individuais.
Todavia, quando o magistrado faz considerações personalíssimas relevantes, ela pode
aparecer anexa à decisão colegiada. Assim é possível fazer a análise de toda norma, não
apenas de parcela dela. A decisão da Corte constitucional inclinou-se à confirmação daquilo
que já tinha sido proferido pelo Tribunal de Primeira Instância.
Para a Corte Constitucional da Colômbia, a convenção 169/OIT (internalizada pela
lei 21/1991) tem status de norma constitucional, sendo parâmetro, inclusive, para bloqueio
de constitucionalidade. Nesse âmbito, a norma internacional tem uma função integrativa, de
soma à Carta Política (COLÔMBIA, 1991). Nas palavras da Corte, as normas constitucionais
são reforçadas pelas internacionais (COLÔMBIA, 1997, p. 20). É uma situação diferente
daquela encontrada no Brasil, onde a Convenção 169/OIT, aparentemente, não apresenta
relevância no cenário normativo interno, pois, segundo o magistrado Menezes Direito a
Constituição já abarca tudo aquilo que dito por ela, não significando novidade alguma
(BRASIL, 2009, p. 395-399). Em outras palavras, para o colegiado constitucional da
Colômbia, artigos constitucionais que são refletidos pela norma de direito internacional são
contidos de uma força semântica que precisa ser levada em consideração. Por isso os artigos
da Convenção 169/OIT utilizados como apoio21, no caso da Colômbia, não se confundem
com os artigos constitucionais utilizados da mesma forma, assim, há dois apoios que operam
diferentemente, mas com um único objetivo que é o reconhecimento dos direitos indígenas.
Em resumo, a utilização da norma internacional, no voto do ministro brasileiro foi
meramente ilustrativa, pois ao dizer que os dispositivos internacionais não significam
nenhuma novidade (porque já são contemplados pela Constituição) o Min. Menezes Direito
está aplicando apenas a própria Constituição e informado que a Convenção 169/OIT é
desnecessária. Como em seguida informou que a DDPI/07 não é pertinente ao caso, pois
falta-lhe carga jurídica, podemos inferir que o caso da Demarcação de Terras Raposa Serra
do Sol não teve nenhuma observância às regras de Direito Internacional, sendo nenhuma
e, segundo o autor citado Ian Brownilie, esses documentos não são vinculantes, antes servem para evidenciar
manifestações dos Estados rumo ao progresso de direitos. Para finalizar, informa que o art. 38 do Estatuto da Corte
Internacional de Justiça não menciona resoluções da assembleia geral como normas de direito. Por todos esses
argumentos ele informa que a DDPI/07 dos povos indígenas carece de ausência de integração porque é baldia de força
vinculante, por si só, como fonte de direito internacional (BRASIL, 2009). 21 Os artigos utilizados como apoio foram os art. 6, 7 e 15 da Convenção 169/OIT.
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1527
delas utilizadas para apoiar o acórdão do Brasil, como visto, no caso colombiano em questão,
a situação foi formulada de maneira diversa.
Considerações Finais: todos somos intérpretes da constituição?
No Ocidente, a pós-modernidade está vinculada ao modelo de Estado Democrático de
Direito, lastreado pelo ordenamento constitucional que o dá validade. Trata-se de um processo
cíclico e lógico, no qual as condições do regime político dependem da estabilidade do respeito
às regras do jogo e vice-versa. Nesse sistema, as Cortes têm um papel fundamental à medida
que traz luz para os casos concretos à aplicação do direito por meio da interpretação judicial.
Todavia, o sistema jurídico não é monádico, portanto é influenciado e reproduz as lógicas e os
padrões que tendem a obedecer a interesses dos atores que dominam as forças do direito. Por
outro lado, também é verdade que o direito criou a humanidade o escape necessário a uma
convivência mais harmônica diante das grandes crises e revoluções, não é difícil esquecer que
é provável que os direitos trabalhistas conquistados pelo que Karl Marx chamou de
proletariado pode ter evitado suas previsões apocalípticas em relação ao Capitalismo. De todo
modo, o direito e a democracia, a arena do discurso, a racionalidade argumentativa, a defesa
da opinião contrária, nada mais significam do que a ratificação de que vivemos em uma
atmosfera social capaz de se modificar a partir dos acontecimentos históricos. Assim
indagamos: nos dias atuais, até que ponto as Cortes Constitucionais são – de fato – as únicas
e últimas intérpretes da Constituição? Pelo método de Toulmin pudemos questionar se a Corte
Brasileira aplicou adequadamente as normas de direitos humanos em matéria de defesa dos
povos indígenas. A partir da negativa, indaguemos: se o judiciário nesse hard case decidiu
adverso aos direitos dos povos, o que garante que ele não agirá da mesma forma em relação a
outros direitos humanos? O voto brasileiro, diferente do colombiano, utilizou como rationes
decidendi normas pátrias e que, nesse caso, limitam direitos já conquistados na seara
internacional. A Corte da Colômbia, de outro modo, ampliou as esferas de direito, por meio
do que Neves (2009) denomina como “transconstitucionalismo”, que seria a troca e influência
recíproca (pontes-de-transição) entre os ordenamentos internacionais e domésticos. Questões
constitucionais muitas vezes fogem a rigidez dos códigos, exigindo a interdisciplinaridade para
que as decisões mais adequadas sejam dadas. E são essas análises mais complexas que
subsidiam respostas mais adequadas para problemas morais da sociedade, como casamento de
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1528
pessoas homoafetivas, autonomia da mulher frente ao aborto ou a descriminalização do uso de
drogas. Um exemplo mais alinhado às questões econômicas é a consagrada proliferação do
argumento da “reserva do possível”, muito comum quando o poder público se esquiva de
prover os serviços públicos de sua incumbência atestando não ter verba o suficiente. Esses
fatos apenas demonstram que o judiciário, embora afirme quase sempre o contrário, recebe
influências capazes de interferir em suas decisões. O veredicto é parte das atribuições de um
poder, não inerte e não irreflexivo. Assim, deve-se desmistificar o entendimento de que o
argumento do judiciário, especialmente do “Colegiado Constitucional” ao priorizar a técnica
da lei não é capaz de conter outros argumentos fora desse sistema. Assim, quando é necessário
compreender questões que o direito per si é incapaz de trazer respostas, isso precisa ser
levantado e não apenas como apoios deslocados. A relação do povo indígena com o seu solo
é, também, uma questão antropológica e argumentos dessas áreas precisam ter espaço dentro
da decisão. À medida que problemas complexos fossem lidos sob uma lupa com mais
variáveis, respostas mais eficientes poderiam ser tomadas, inclusive para solucionar decisões
que, embora sejam positivas, do ponto de vista da concessão de direitos, não podem ser
realizadas, porque o estado-das-coisas, em concreto, não cria o ambiente de possibilidades
para que o poder público densifique sua vontade. Decisões como a colombiana, que procurou
levar em consideração outras variáveis, dentre elas, a necessidade social dos habitantes de
decidir sobre seu próprio território cria às normas o caráter de universabilidade, isso é,
cristaliza o direito e amplia o grau de previsibilidade necessária, inclusive, a estabilização de
expectativas tão almejada pela ordem jurídica.
Referências
ARELLANO, Alejandro. As raízes do fenômeno Chiapas: o já basta da resistência
zapatista. São Paulo: Alfarrábio, 2002.
BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática.
Atualidades Jurídicas - Revista Eletrônica do Conselho Federal da OAB, Brasília, n. 4,
A3o%20OIT%20n%20%C2%BA%20107%29.pdf>. Acessado em: 13 de setembro de 2014.
_____. ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. 76ª Conferência
Internacional do Trabalho em l989. Convenção nº 169. Brasília: OIT, 2011.
SANTOS, M. Por uma Outra Globalização: do pensamento único à consciência
universal. Rio de Janeiro: Record, 2003.
TEUBNER, Gunther. Direito e Cidadania na pós-modernidade. Piracicaba: Unimep, 2002.
TOULMIN, S. E. Os usos do argumento. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1531
OUTROS POSSÍVEIS MODOS DE HABITAR PROFISSIONALMENTE O PODER
JUDICIÁRIO
Anne Karoline Ferrari Salazar Mestre em Psicologia Institucional pela UFES. Assistente Social no TJ/ES.
Gilead Marchezi Tavares Doutora em Psicologia pela UFES. Professora Associada do Departamento de Psicologia e do
PPGPI da UFES.
Resumo: partindo do resgate histórico sobre as formas jurídicas e problematizando como a
judicialização de acontecimentos cotidianos tornou-se o signo de nossa organização social, a
dissertação de mestrado que dá origem a este artigo propõe-se analisar o modo pelo qual as práticas
de assistentes sociais e psicólogos atuantes no campo sociojurídico capixaba vêm se constituindo e
revelar os outros possíveis modos de habitar profissionalmente esta esfera de poder. Serviram de
campo de investigação da pesquisa os espaços institucionais destinados à interlocução e à formação
continuada dos profissionais e o próprio dia a dia da pesquisadora atuando nas Varas de Família e
Sucessões de Vitória. Nossa principal ferramenta de investigação foi o diário de campo, cujos
registros de narrativas, posições políticas, sentimentos e dificuldades, não só dos profissionais com
quem trabalhamos, mas também da própria pesquisadora, possibilitaram-nos a apreensão de
analisadores em plena operação. Desse modo, utilizando os conceitos-ferramenta da Análise
Institucional, partimos de analisadores que desvelavam tanto os modos de funcionamento instituídos
naquele espaço laboral, quanto provocavam a desestabilização do saber-poder daquelas categorias
profissionais, descortinando as formas de resistência que têm sido forjadas em favor de uma postura
ético-política de defesa da vida em meio a sua recorrente judicialização.
Palavras-chave: campo sociojurídico; práticas jurídicas; judicialização da vida.
Abstract: From the historic rescue of the legal forms and questioning how the legalization of regular
events has become the sign of our social organization, the dissertation that gives rise to this article
aims to analyze the way in which practices of social assistants and psychologists working in
Capixaba's social-juridical field have been constituting and show other possible ways of
professionally inhabit this sphere of power. The institutional spaces designated for interlocution and
continuing education of the professionals and also the daily work in Vitoria’s Family and Probate
Court were the research field. Our main research tool was the field journal, in which the registers of
narratives, political views, feelings and difficulties, not only the professionals with whom we work,
but also the researcher, allowed us to capture analyzers in full operation. Thus, using the concepts-
tool of Institutional Analysis, we start with analyzers that unveiled both operating modes established
in that work space, as caused the destabilization of knowledge-power of those professional
categories, revealing the forms of resistance that have been forged in favor of an ethical-political
stance in defense of life in the midst of its recurring judicialization..
Keywords: socio-juridical field; legal practices; judicialization of life.
Apresentação
A dissertação de mestrado que dá origem a este artigo é resultado de indagações em
torno do que conta a história do judiciário como um espaço laboral do serviço social e da
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1532
psicologia, pretendendo, nessa medida, amplificar o modo de compreensão das práticas dessas
categorias profissionais na instituição Poder Judiciário a partir das múltiplas realidades e
verdades enredadas nas histórias que seu fazer profissional cotidianamente sistematiza.
Em tempos de maciço alargamento da importância conferida à dimensão jurídica no
cotidiano das práticas profissionais, problematizar o Poder Judiciário, como estrutura de
manutenção do status quo, torna-se fundamental ao desafio de efetivação dos projetos ético-
políticos das categorias profissionais em tela. Nesse sentido, é indiscutível a necessidade de
compreender que as demandas apresentadas como jurídicas se inscrevem no bojo da necessidade
de controle e manipulação da realidade, e correspondem aos interesses dominantes em vigor.
Torna-se comum, assim, a formulação de requisições aos profissionais do serviço
social e da psicologia, inscritos no campo sociojurídico, em favor de atuações de cunho
tecnicista e cientificista que possibilitem a compreensão da realidade, frequentemente
auferida pelo direito a partir de avaliações e intervenções guiadas por modelos idealizados
pela sociedade burguesa. É desafiador, desse modo, manter um fazer profissional que não
incorpore verdades jurídicas, que representam, na maior parte das vezes, interesses políticos
incompatíveis com os compromissos éticos e políticos de assistentes sociais e psicólogos.
1. O aporte teórico-metodológico
No bojo do que se apresenta como características natas ao judiciário como espaço
laboral de assistentes sociais e psicólogos, a dissertação comprometeu-se com a
imprescindível “crítica daquilo que somos”, e buscou recorrer a acontecimentos como forma
de demarcar diferentes experiências históricas, elucidando o jogo de forças desses
profissionais e de suas práticas. Para tanto se tornou imprescindível a demarcação do aporte
teórico-metodológico da Análise Institucional e dos conceitos-ferramenta utilizados por ele,
que sustentaram o processo de pesquisa e sua sistematização. Convém explicitar a noção
foucaultiana de prática, recuperada por Veyne (1998) e descrita por Cardoso Júnior (2005)
como o que permite delinear, no plano discursivo, a diferença temporal de um acontecimento
e a operação conceitual a que a ele se destina, expressando
[…] aquilo que os homens efetivamente fazem, não aquilo que eles pensam
a respeito do que fazem. Mais ainda: prática é o fazer que se reitera em
toda uma série de acontecimentos, disto derivando sua maneira de ser
oculta, disto derivando sua raridade (CARDOSO JÙNIOR, 2005, p. 108).
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1533
Conforme Cardoso Júnior (2005), se as práticas definem acontecimentos históricos,
ao mesmo tempo em que se constituem como configurações históricas determinadas, a
pergunta sobre elas deve sempre aguçar a capacidade de visão, já que as práticas também
permitem estranhar o mundo, conduzindo à sua interrogação. Desse modo, a requisição
judicial pela atuação técnico científica de assistentes sociais e psicólogos parece disparar
nestes profissionais a “[...] necessidade de se analisar os vínculos afetivo libidinais, políticos,
profissionais e institucionais [...]” (COIMBRA; NASCIMENTO, 2007, p. 27), das práticas
no campo sociojurídico.
Alimentadas pelo cotidiano de excessivas tarefas a acumularem-se, e da imperiosa
necessidade de respostas técnicas céleres, algumas práticas de sobreimplicação1 têm sido
potencializadas pela ausência de espaços coletivos capazes de fomentar a constante análise
das práticas e seus efeitos no judiciário capixaba. Tal ausência de espaços coletivos de
discussão contribui para a conservação das dificuldades em desnaturalizar, como assinala
Prado Filho (2012a), as obviedades inquestionáveis do cotidiano, assim como limita a
construção de possibilidades favoráveis ao abrir-se ao encontro com o outro (seja ele um
outro profissional, um outro usuário, uma outra instituição).
A recente constituição de grupos de trabalho dedicados às diversas matérias do
judiciário capixaba nas quais se inscreve a atuação dos profissionais de serviço social e
psicologia pode, no entanto, tornar-se um dispositivo potente para a percepção da realidade
como constante produção, para a interrogação da realidade que as práticas no campo
sociojurídico têm produzido, podendo revelar-se, enfim, “[...] um dispositivo de intervenção
que se faz com o outro na medida em que é construído em articulação com aquilo que
interessa ao outro [...]” (MORAES, 2010, p. 30).
Assim, entendemos que colocar em análise a atuação desses profissionais no campo
jurídico é, exatamente, inventar junto com eles modos de exercitar criticamente o olhar sobre
o cotidiano das práticas que operam no espaço do judiciário sob a lógica da fiscalização, do
julgamento e da punição, afirmando a defesa da legalidade ao promover o efeito ameaçador
do policiamento mútuo, fundamental ao funcionamento da sociedade em tempos de
1 A sobreimplicação, conceito ferramenta desenvolvido por Rene Lourau, pode ser compreendida como o
conjunto de práticas sobre o qual a análise é realizada de forma isolada por meio da referência a um único
nível, a um só objeto, o que torna impossível que outras dimensões possam ser problematizadas, pensadas, e
multiplicidades se façam presentes neste processo. Para Coimbra e Nascimento (2007, p. 27), “[...] é a crença
no sobretrabalho, no ativismo da prática, que pode ter como um de seus efeitos a dificuldade de se processar
análises de implicações [...]”.
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1534
biopoder. Analisar as práticas, neste trabalho, diz respeito, portanto, à abertura de um campo
sensível capaz de apreender os acontecimentos que podem fazer irromper novas práticas.
Apostando que o “estar com” possa atravessar o dia a dia das práticas no espaço do
judiciário, favorecendo uma nova ação política, a dissertação pretendeu discutir as práticas
dos profissionais de serviço social e psicologia nas Varas de Família e Sucessões do
judiciário capixaba. Na busca por alcançar o objetivo do trabalho, elegeu-se como campo
prioritário de investigação as reuniões da Comissão Temática na Área de Família, instituída
a partir das alterações no regimento interno do Fórum dos Assistentes Sociais do Poder
Judiciário do Estado do Espírito Santo.
2. O campo e a análise
As reuniões mantiveram-se como campo de investigação da pesquisa, assim como a
aposta metodológica de que um diário compartilhado pudesse favorecer as discussões e a
produção cooperativa da pesquisa. Também serviram de sustentação aos registros
sistematizados no diário de campo as experiências profissionais da pesquisadora no
cotidiano do judiciário capixaba. A organização do diário de campo se deu pela afetação
produzida pelas práticas institucionalizadas; pelas práticas derivadas das novas requisições
judiciais; pelas estratégias forjadas individualmente ou coletivamente em meio a rotina de
trabalho, tornando-se o registro das impressões de sentimentos da pesquisadora tão
importante quanto o registro dos diálogos que mantinha com os demais assistentes sociais e
psicólogos do campo sociojurídico, com os demais serviços da rede formatada pelas políticas
públicas do município de Vitória e com as demais categorias profissionais (professores,
pedagogos, agentes comunitários de saúde, terapeutas ocupacionais, enfermeiros, médicos,
etc.) que atravessaram o cotidiano profissional e, assim, o campo de investigação da
pesquisa. A intenção da construção coletiva desse instrumento de pesquisa norteou-se pela
proposta metodológica de “pesquisar com o outro e não sobre o outro”.
Do mesmo modo, nos propusemos a realizar o resgate da pesquisa histórica ordenada
por Foucault em torno das formas jurídicas para instrumentalizar a apresentação do campo
de análise da dissertação, a judicialização da vida, e das histórias que assistentes sociais e
psicólogos inscrevem no campo sociojurídico a partir de suas práticas. Aplicando-a ao
contexto das práticas profissionais de assistentes sociais e psicólogos desempenhadas no
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1535
campo jurídico, torna-se imprescindível recuperar a análise de Foucault (1995) em torno das
relações de poder constituídas nos espaços institucionais fechados.
Isto implica na observação de fatores importantes, como os mecanismos de poder
que a instituição aciona para assegurar sua própria conservação, criando relações de poder
de caráter essencialmente reprodutor, e do hábito de se analisar as relações de poder a partir
da instituição, de sua origem e função quando, na realidade, o que se torna necessário é que
se parta da análise das relações de poder que a instituição abriga.
A mudança do foco de análise sobre as relações de poder nos espaços institucionais
proposta por Foucault (1995) é defendida como essencial para minimizar o risco de se
compor formulações que apontem, exclusivamente, para “modulações da lei e da coerção”.
Pensar as estratégias de luta às relações de poder inerentes à atuação profissional do serviço
social e da psicologia na instituição judiciária implica, portanto, na análise da ação tomada
sobre a ação possível, ou seja, a análise dos mecanismos utilizados por ambos (instituição e
categorias profissionais) nas relações de poder que estabelecem.
A dissertação pretendeu, desse modo, explorar, a partir dos analisadores2 que
emergiram no percurso da pesquisa, as estratégias construídas pelo serviço social e
psicologia do judiciário capixaba em favor de movimentar experiências que ultrapassem o
esperado alinhamento de suas práticas com a moralização, a culpabilização e a
criminalização dos conflitos familiares sobre os quais são chamados a formular um saber.
Pretendeu, ainda, como estabelece Souza Filho (2008, p. 22), “[...] dar ênfase na escuta de
saberes singulares, dos testemunhos de experiências específicas das pessoas [...]”, dar
visibilidade aos desdobramentos de suas atuações e invenções.
Nesse sentido, a articulação do nosso campo de análise3 – a judicialização da vida –
e do campo de intervenção – as práticas profissionais de assistentes sociais e psicólogos nas
Varas de Família e Sucessões do judiciário capixaba – pautou-se na compreensão de que
para experimentar é preciso construir um modo de permanecer como parte integrante do
2 Os analisadores são compreendidos como situações concretas, tensões, conflitos e/ou mudanças que
perpassam a instituição, a oferta profícua de elementos que possibilitarão a análise, tomando por referência a
disposição de Lourau, para quem o analisador é o que “[…] permite revelar a estrutura da instituição, provocá-
la, forçá-la a falar […]” (LOURAU apud L’ABBATE, 2012, p. 205). 3 Torna-se indispensável demarcar os conceitos atribuídos por Baremblitt (2002) ao “campo de análise” e ao “campo
de intervenção”. O primeiro corresponde ao “recorte” da vida social que se delimita para, a partir dos conceitos-
ferramenta do Institucionalismo, buscar a compreensão de suas causas, suas determinações, o modo pelo qual opera e
os efeitos que gera. O segundo corresponde ao âmbito que se delimita para que sobre ele recaiam as estratégias a serem
planejadas, os meios de gestão e operacionalização a serem forjados em favor de sua efetiva transformação.
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1536
processo que demanda intervenção. Buscando estranhar domínios de referência teórico-
metodológica e técnico-operativa tornou-se, desse modo, fundamental colocar em cena a
experimentação de um modo de produção de conhecimento no encontro com outros atores e
com outros saberes, que auxiliava a descoberta dos possíveis caminhos a serem percorridos
para que novas formas de habitar o campo sociojurídico fossem inventadas.
O processo de pesquisar com o diário de campo permitiu narrar histórias de vidas
atravessadas pela intervenção do Poder Judiciário, braço do Estado a quem compete a
sentença sobre suas dinâmicas conflituosas, e possibilitou, com isso, um olhar sensível para
cenas geralmente desfocadas pelo “tarefismo” cotidiano de assistentes sociais e psicólogos
trabalhadores do Poder Judiciário. Desse modo, ao dar visibilidade àquilo que estava no
ponto cego dos profissionais, os analisadores que emergiram espontaneamente na pesquisa
propiciaram ampliar a discussão das práticas de assistentes sociais e psicólogos no campo
sociojurídico, apontando para um trabalho cotidiano de progressiva formulação de
alternativas inventivas e avaliação crítica da realidade.
Considerações Finais
A investigação dos modos pelos quais as práticas têm sido compreendidas e
apropriadas e o que disparam com sua execução é o que nos permite provocar o
tensionamento de saberes, poderes e verdades, desnaturalizando as práticas postas em análise
e contribuindo para o desvelamento de caminhos de resistência ao instituído. Nessa
perspectiva, nossa análise sobre as práticas no campo sociojurídico convergiu com o trabalho
de Vasconcelos e Morschel (2009) em torno da inexistência da formulação de políticas que
sejam boas ou que sejam ruins em si mesmas mas que colocam em operação movimentos
instituintes que imputam diferenciação, transformação e ampliação dos sentidos, permitindo
assim a produção de novas realidades.
De maneira semelhante, a dissertação alinhou-se com a aposta de Neves e Heckert
(2007) de que as atuações coletivas de formação e de expansão de redes revelam-se
dispositivos potentes à desestabilização de processos instituídos, promovendo movimentos
afirmadores de vida. O aquecimento, a construção e a expansão de redes no judiciário
permitem a problematização de saberes-poderes, o compartilhamento de experiências e a
deflagração de estratégias de atuação frente aos desafios colocados pelo modo de
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1537
funcionamento das instituições. A aposta em práticas pautadas na composição de redes
pressupõe corresponsabilizações pela pactuação coletiva na produção de novos possíveis,
desvia-se de prescrições e abre-se ao imprevisível da experiência (NEVES; HERCKET,
2007). Essa conjuntura permitiu considerar que nossa pesquisa contou histórias em
permanente produção e, portanto, distantes de uma verdade única e de um final categórico.
Este trabalho acredita na potência que os espaços de formação e interlocução, como
os das Comissões Temáticas, que serviram de campo de investigação da pesquisa, contêm
para impulsionar análises sobre os processos de trabalho de assistentes sociais e psicólogos
no campo sociojurídico que possibilitem “[...] perceber não somente o que foi feito, mas
como foi feito, o que se deixou de fazer, o que foi desfeito e o que não se conseguiu fazer”
(NEVES; HECKERT, 2007, p. 5). Acredita, ainda, que se trata de perceber, como propõem
Lazzarotto e Carvalho (2012, p. 27) “[...] que nossas questões são feitas de vidas”, e que
nossas práticas podem contar histórias que suscitem e garantam a ampliação da vida.
Referências
BAREMBLITT, G. Compêndio de Análise Institucional e outras correntes: teoria e
prática. 5. ed. Belo Horizonte: Instituto Félix Guattari, 2002.
CARDOSO JR., H. R. Acontecimento e história: pensamento de Deleuze e problemas
epistemológicos das Ciências Humanas. Trans/Form/Ação, São Paulo, 2005, p. 105-116.
COIMBRA, C, M, B.; NASCIMENTO, M. L. do. Sobreimplicação: práticas de
esvaziamento político? In: ARANTES, E.; FONSECA, T. G.; NASCIMENTO, M. L. do
(Org.). Práticas Psi: inventando a vida. Niterói: EDUFF, 2007, p. 27-36.
FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, H. L.; RABINOW, P. Michel
Foucault: uma estratégia filosófica - além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de
Janeiro: Forence Universitária, 1995, p. 231-249.
L'ABBATE, S. Análise Institucional e Intervenção: breve referência à gênese social e
histórica de uma articulação e sua aplicação na Saúde Coletiva. Mnemosine, Rio de
Janeiro, v. 8, n. 1, 2012, p. 194-219.
LAZZAROTTO, G. D. R.; CARVALHO, J. D. de. Afetar. In: FONSECA, T. M. G.;
NASCIMENTO, M. L. do; MARASCHIN, C. Pesquisar na Diferença: um abecedário.
Porto Alegre: Editora Sulina, 2012, p. 25-31.
MORAES, M. PesquisarCOM: política ontológica e deficiência visual. In: MORAES, M.;
KASTRUP, V. Exercícios de ver e Não Ver: arte e pesquisa com pessoas com deficiência
visual. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2010, p. 26-51.
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1538
NEVES, C. A. B.; HECKERT, A. L. C. Modos de formar e modos de intervir: quando a
formação se faz potência de produção do coletivo. In: Ministério da Saúde/Política
Nacional de Humanização do SUS (PNH). (Org.). Cadernos de Formação da PNH.
Brasília: Ministério da Saúde, 2010, v. 1, p. 1-15.
SOUSA FILHO, A. de. Foucault: o cuidado de si e a liberdade ou a liberdade é uma
agonística. In: Albuquerque Júnior, D. M. de; Veiga-Neto, A.; Sousa Filho, A. de. (Org.).
Cartografias de Foucault. Belo Horizonte: Autêntica, 2008, v. 1, p. 13-26.
VASCONCELOS, M. de F. F. de; MORSCHEL, A. O apoio institucional e a produção de
redes: do desassossego dos mapas vigentes na Saúde Coletiva. Interface - comunicação,
saúde e educação, São Paulo, v. 13, 2009, p. 729-738. Disponível em:
VEYNE, P. Como se escreve a história; Foucault revoluciona a história. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 1998.
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1539
A ARQUITETURA DA VULNERABILIDADE: A ESTRUTURA DAS INSTITUIÇÕES
DE ACOLHIMENTO E OS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
Alessandra Dale Giacomin Terra Professora da UFRJ e Mestre pelo PPGSD/UFF com bolsa CAPES.
Bárbara Terra Queiroz Graduada em Direito pela UVV e Bolsista de Iniciação Cientifica pela FAPES.
Lílian Cazorla do Espírito Santo Nunes Professora do Centro Universitário UniCarioca e Mestre pelo PPGDC/UFF com bolsa CAPES.
Thiago Guerreiro Bastos Mestre pelo PPGDC/UFF com bolsa CAPES.
Resumo: A presente pesquisa tem por objetivo refletir sobre a atual estrutura física das instituições
de acolhimento, outrora denominadas orfanatos, e sobre como tal arquitetura pode afetar o
desenvolvimento psicossocial das crianças e adolescentes ali abrigados. Tal questão ganha
importância a partir da adoção da doutrina da proteção integral inaugurada pela nova ordem
constitucional e consolidada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A partir desta
pesquisa, formulou-se o conceito de arquitetura da vulnerabilidade a fim de destacar o papel que a
ambiência possui no processo de desenvolvimento do público infanto-juvenil. O presente artigo parte
da aplicação de uma Avaliação Pós Ocupação (APO) em uma unidade de Abrigo Institucional
localizada no Município de Cariacica no Estado do Espírito Santo, à luz da doutrina da proteção
integral, inaugurada no ordenamento jurídico brasileiro pela Constituição de 1988 e consolidada pela
edição do Estatuto da Criança e do Adolescente, e tem como marco teórico a doutrina de Pierre
Bourdieu sobre como a arquitetura, em que esta, apesar de constituir uma potencial ferramenta de
desenvolvimento psicossocial, muitas vezes acaba sendo um instrumento de exclusão, reforçando a
situação de vulnerabilidade vivenciadas por milhares de menores que hoje residem em abrigos
institucionais. Para desenvolver esta pesquisa, adotou-se metodologia empírica, com levantamento
de bibliografia interdisciplinar nas áreas do Direito, Arquitetura e das Ciências Sociais. Concluiu-se
que pela necessidade de aperfeiçoamento de tais ambientes a fim de assegurar o conforto e bem estar
das crianças, garantindo seu desenvolvimento saudável.
Palavras-chave: políticas públicas; Direitos da Criança e do Adolescente; vulnerabilidade.
Abstract: This research aims to reflect on the current physical structure of the host institutions,
formerly called orphanages, and how such architecture can affect the psychosocial development of
children and adolescents housed there. This issue gains importance from the adoption of the doctrine
of full protection inaugurated by the new constitutional order and consolidated by the Child and
Adolescent Statute (ECA as known in Portuguese). From this research, we formulated the concept of
architecture of vulnerability in order to highlight the role that the ambience has in the development of
children and youth public. This article presents the application of a Post Rating Occupation (APO) in
an Institutional Shelter located in Cariacica Municipality in the State of Espírito Santo, in the light of
the doctrine of full protection, inaugurated by the Brazilian legal system in the 1988 Constitution and
consolidated by the Statute of Children and Adolescents, and its theoretical framework is the doctrine
of Pierre Bourdieu that explains how the architecture, in this, although it is a psychosocial development
potential tool, often ends up being an instrument of exclusion, reinforcing the vulnerability experienced
by thousands of children currently residing in Institutional Shelters. To develop this research, we
adopted empirical methodology, with a survey of interdisciplinary literature in the fields of law,
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1540
architecture and social sciences. It was concluded with the need for improvement of such environments
to ensure the comfort and well being of children, ensuring their healthy development.
Keywords: public policy; Rights of Children and Adolescents; vulnerability.
Introdução
O presente artigo tem por objetivo refletir sobre a atual estrutura física das instituições
de acolhimento, outrora denominados orfanatos, e sobre como tal arquitetura pode afetar o
desenvolvimento psicossocial das crianças e adolescentes ali abrigadas. Tal preocupação com o
bem-estar do público infanto-juvenil ganhou importância após a adoção da doutrina da proteção
integral inaugurada pela nova ordem constitucional e consolidada pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA) e por diversos tratados internacionais do qual o Brasil é signatário.
A pesquisa foi desenvolvida a partir de metodologia empírica com a utilização de
Análise Pós-Ocupação de uma instituição de acolhimento, visitas in loco, análise de
documentos, normas técnicas e da bibliografia básica sobre o tema. Justifica-se pela necessidade
de aperfeiçoamento dos ambientes destinados a acolhimento de crianças e adolescentes afastadas
do convívio familiar, de modo que estes assegurem conforto e bem-estar necessários para seu
saudável desenvolvimento, bem como permita a integração com as famílias e a comunidade.
Conforme levantamentos do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), mais
de 30.000 crianças e adolescentes no Brasil encontram-se afastados de seu convívio familiar e
inseridos em instituições de acolhimento. Dentre os inúmeros motivos que levam o
encaminhamento destes aos serviços de acolhimento, destacam-se como as principais causas:
a negligência dos pais e/ou responsáveis, o abandono; a pobreza das famílias; a dependência
química; o abuso sexual; a violência doméstica; a vivência de rua; a orfandade; entre outros1.
A infância e a adolescência são importantes períodos de desenvolvimento e de
construção do sujeito. A qualidade dos cuidados nessa época, nos aspectos físico e afetivo-
social, proporcionam o crescimento e amadurecimento sadio. O ambiente habitacional torna-
se importante tão quanto as relações afetivas e estimulantes dos moradores, assegurando
sensação de acolhimento, bem-estar e segurança.
1 CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO (CNMP). Relatório da Infância e Juventude –
Resolução nº 71/2011: Um olhar mais atento aos serviços de acolhimento de crianças e adolescentes no País.
Brasília: Conselho Nacional do Ministério Público, 2013.
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1541
1. Arquitetura da vulnerabilidade
Na sociedade brasileira, milhares de crianças encontram-se afastadas de seu convívio
familiar e inseridas em instituições de acolhimento. Estes espaços, muitas vezes, são
desconhecidos pela população, tornando invisíveis seus direitos e necessidades. Grande
parcela das edificações destinadas a este tipo de uso são construções já existentes que, para
seu funcionamento, sofreram adaptações, sendo desprezadas em tais ambientes
características fundamentais que influenciam diretamente na relação ambiente-usuário.
A situação de vulnerabilidade em que se encontram tais atores sociais não se restringe
às problemáticas envolvendo a suspensão ou destituição do poder familiar ou ao óbito de
seus familiares, mas também é inerente a todo e qualquer menor em razão de sua delicada
condição de pessoa em desenvolvimento.
Os Abrigos Institucionais são locais que oferecem acolhimento provisório a crianças
e adolescentes de 0 a 18 anos afastados de seu convívio familiar por meio de medidas
protetivas. A edificação deve conter infraestrutura adequada para receber vinte crianças e
estar inserida em uma área residencial, na qual seja possível estabelecer vínculos com a
comunidade e fazer utilização de equipamentos e serviços públicos disponíveis no local2.
No Brasil, há aproximadamente 50 anos, vem sendo desenvolvidos estudos relacionados
ao controle de qualidade, através de avaliações sistemáticas, do ambiente construído. Tais
estudos visam à satisfação dos usuários em relação à edificação, assim como também a detecção
do desempenho, a fim de proporcionar melhorias se caso constatada a necessidade. Estas
análises são obtidas através da metodologia de Avaliação Pós-Ocupação (APO), que utiliza
métodos e técnicas variadas para o desenvolvimento do diagnóstico arquitetônico3.
Nesse contexto, a qualidade física e funcional da edificação é de extrema
importância, sendo necessária a reavaliação do conjunto já existente e que encontra-se em
uso, a fim de apurar seus principais problemas e desconfortos e, a partir de um diagnóstico
propor condições adequadas de moradia, trabalho e desenvolvimento, visando a otimização
do convívio entre os habitantes e a integração com a sociedade. A arquitetura do ambiente
habitacional pode constituir uma ferramenta de desenvolvimento psico-social, estimulando
2 CONANDA; CNAS. Orientações técnicas: serviços de acolhimento para crianças e adolescentes. Brasília, 2009. 3 ORNSTEIN, S e ROMERO, M. Avaliação pós-ocupação do ambiente construído. São Paulo: Studio
Nobel/Edusp, 1992.
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1542
o desenvolvimento da criança ao oferecer uma ambiência de conforto e infraestrutura
adequada que lhe permita uma integração com tal espaço.
O desenvolvimento infantil considerado de qualidade está associado aos diversos e
diferentes estímulos e cuidados proporcionados às crianças ao longo do seu crescimento. A
qualidade destes cuidados, nos aspectos físico e afetivo-social, provém de condições estáveis de
vida. Sendo assim, conforme o meio onde se encontra inserido, a construção afetiva nas relações
provocam aconchego, proteção, intimidade, além de induzir a autonomia e independência.
O espaço físico destinado ao ambiente habitacional da criança torna-se importante
tão quanto as relações afetivas e estimulantes dos moradores. A sensação de bem estar,
segurança e acolhimento nestes locais são fundamentais para tal desenvolvimento
psicossocial sadio. Desta forma, o espaço construído pode tanto ser uma ferramenta para o
desenvolvimento ou pode acabar constituído um instrumento de exclusão, ao reforçar uma
situação de vulnerabilidade, razão pela qual a partir desta pesquisa formulou-se o conceito
de arquitetura da vulnerabilidade, a fim de se destacar o papel que a ambiência possui no
processo de desenvolvimento do público infanto-juvenil.
O conceito arquitetura da vulnerabilidade não tem por fim abarcar apenas a estrutura
de imóveis mais simples e desconfortáveis, utilizados por grupos marginalizados, mas
também visa a destacar como esta estrutura pode contribuir para reproduzir tal condição,
intensificando ainda mais a vulnerabilidade.
2. Dos direitos da criança e do adolescente
A história da política de atendimento de crianças e adolescentes em situação de
negligência, no Brasil e no mundo, sofreu diversas transformações. Segundo Marcílio, o
abandono de crianças é um ato presente em todos os tempos, variando apenas os motivos,
causas e circunstâncias que levam a concretização do fato e sua aceitação4.
No Brasil, até o início do período Republicano o acolhimento de crianças e adolescentes
órfãos ou afastadas do convívio familiar era realizado preponderantemente pela Igreja Católica.
Segundo relata Amin, a primeira casa de recolhimento de crianças do Brasil foi fundada em 1551
e era “gerida pelos jesuítas que buscavam isolar as crianças índias e negras da má influência dos
4 MARCÍLIO, M.L. História social da criança abandonada. São Paulo: Hucitec, 1998.
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1543
pais, com seus costumes ‘bárbaros’”5. A autora destaca, ainda, que no século XVIII intensificou-
se o abandono de crianças (crianças ilegítimas e filhos de escravos, principalmente), razão pela
qual importou-se da Europa a Roda dos Expostos, mantida pelas Santas Casas de Misericórdia.
No período republicano, em decorrência do aumento da população dos centros urbanos
e dos problemas sociais em razão do fim da escravidão, foram fundadas entidades assistenciais
voltadas à “prática de caridade e medidas higienistas”. Essas instituições se dividiam em
escolas de prevenção (destinadas a educar menores abandonados), bem como escolas de
reformas e colônias correcionais (voltadas a atender menores em conflito com a lei)6.
Em relação aos direitos das crianças e adolescentes, a partir da Constituição de 1988,
e posteriormente com a edição do Estatuto da Criança e do Adolescente, houve uma mudança
de paradigma, passando a viger no Brasil a doutrina da proteção integral, na qual além de
se reconhecer a criança e o adolescente como sujeitos de direitos e deveres, destacou os
mesmos como pessoas humanas merecedoras de especial atenção e tutela do Estado, devido
a sua delicada condição de pessoa em desenvolvimento. Assim, a ordem legal reconheceu a
situação de vulnerabilidade das crianças e adolescentes por constituírem pessoas em
formação psicológica, emocional e moral. Segundo Andrea Rodrigues Amin:
Coroando a revolução Constitucional que colocou o Brasil no seleto rol de
nações mais avançadas na defesa dos interesses infanto-juvenis, para as
quais crianças e jovens são sujeitos de direitos, titulares de direitos
fundamentais, foi adotado o sistema garantista da proteção integral.
Objetivando regulamentar e implementar o novo sistema, foi promulgada
a Lei 8. 069 de 12 de julho de 1990, de autoria do Senador Ronan Tito e
relatório da Deputada da Rita Camata, que incorporou em seu texto os
compromissos expostos na Convenção Sobre os Direitos da Criança, de 20
de novembro de 1989, da qual o Brasil é signatário7.
A adoção da Doutrina da proteção Integral constituiu em uma verdadeira mudança
de paradigma. Crianças e adolescentes passam a ser titulares de direitos subjetivos, que para
serem assegurados, foi estabelecido um sistema de garantias de direitos. Amin caracteriza
este novo paradigma como um modelo universal, democrático e participativo, em que o
Estado e a sociedade civil são co-gestores do sistema de proteção8.
5 Amin, Andréa Rodrigues. Evolução histórica do direito da criança e do adolescente. In MACIEL, Kátia
Regina Ferreira Lobo Andrade. Curso de direito da criança e do adolescente: aspectos teóricos e práticos. 8ª
ed. Saraiva, São Paulo, 2015, p. 45-50. 6 Idem, p. 50 7 Ide, p. 50 8 P. 51
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1544
Até então vigia a Doutrina do Menor, que surgiu no início do século e teve como
marco internacional o Congresso Internacional de Menores (1911) e a Declaração de Genova
de Direitos da Criança (1924), e no plano interno O Código de Menores (1927), decreto
5.083 posteriormente revogado pelo Decreto n. 17.943A, o Código Mello Mattos. Tal
doutrina também era conhecida como doutrina da situação irregular, uma vez que era
fundada no binômio carência-delinquência, ou seja, tinha por público alvo crianças e
adolescentes em situação de miserabilidade ou em conflito com a lei.
Segundo Fuscaldi, a implantação do ECA colaborou para transformações eficazes no
que se refere às instituições de assistência e a sua estrutura como um todo, partindo não de uma
visão assistencialista, mas se configurando em espaços de desenvolvimento e socialização9.
Desta forma, até a Constituição de 1988, vigia a doutrina da situação irregular, que se
preocupava apenas com crianças e adolescentes em situação de risco, isto é, em situação de carência
ou abandono e os menores em conflito com a lei. Já a doutrina da proteção integral tem por
característica a universalidade, pois atribuiu-se direitos fundamentais todas as crianças e
adolescentes, impondo, como contrapartida, deveres ao Estado. A Carta Magna garantiu, além dos
mesmos direitos fundamentais assegurados a todos os cidadãos, outros em razão da sua delicada
condição de pessoa em desenvolvimento, isto é, em processo de formação psíquica, mental e física.
Reconheceram-se direitos especiais e específicos a todas as crianças e adolescentes10. Outrossim,
verifica-se que a Constituição também estabeleceu que era dever do Estado e da sociedade zelar pela
efetivação de direitos fundamentais da criança e do adolescente, garantindo-lhes absoluta prioridade.
A Doutrina da Proteção Integral tem um importante marco internacional, a Convenção
dos Direitos da Criança da ONU (1989), internalizado pelo Decreto Legislativo nº 28 de 1990 e
que influenciou diretamente no ECA. Enquanto, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e
do Adolescente (CONANDA) foi uma importante medida de proteção aos menores, criada para
atender ao comando do artigo 88 do ECA. Tal órgão visa impulsionar a implantação do Estatuto
e garantir, através de parâmetros de funcionamento e ações, os direitos das crianças e
adolescentes perante as instituições competentes envolvidas. Outrossim, a partir de tal lei as
instituições, anteriormente conhecidas como orfanatos, casa dos expostos, asilos, educandários
ou colégios internos, passaram a ser denominadas abrigos. Estes locais de acolhimento,
caracterizam-se por receber crianças e adolescentes com distintos e múltiplos problemas sociais,
9 Fuscaldi, Solange Viegas. Filhos Sobre medida de Proteção em Abrigo: os significados construídos por suas
famílias. Belo Horizonte: UFMG, 2004. 10 Ishida, p. 1.
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1545
variando desde a orfandade até o afastamento do convívio familiar devido a decisões judiciais.
Conforme Amin, a Doutrina da proteção integral se assenta em três pilares:
reconhecimento da peculiar condição da criança e jovem como pessoa em
desenvolvimento, titular de proteção especial; 2) crianças e jovens têm
direito à convivência familiar; 3) as Nações subscritoras obrigam-se a
assegurar os direitos insculpidos na Convenção com absoluta prioridade11.
O princípio da prioridade absoluta encontra-se previsto no art. 227 da CF88 e nos
artigos 4º e 100, parágrafo único, inciso II do ECA e, segundo Amin, o mesmo:
Estabelece a primazia em favor de crianças e dos adolescentes em todas as
esferas de interesse. Seja no campo judicial, extrajudicial, administrativo,
social ou familiar, o interesse infanto-juvenil deve preponderar. Não
comporta indagações ou ponderações sobre o interesse a tutelar em
primeiro lugar, já que a escolha foi realizada pela nação por meio do
legislador constituinte [...] Ressalta-se que a prioridade tem um objetivo
bem claro: realizar a proteção integral, assegurando primazia que facilitará
a concretização dos direitos fundamentais enumerados no art. 227. Caput,
da Constituição da República e renumerados no caput, do art. 4 do ECA.
Mais. Leva em conta a condição de pessoa em desenvolvimento, pois a
criança e o adolescente possuem uma fragilidade peculiar de pessoa em
formação, correndo mais riscos que um adulto por exemplo12.
Desta forma, o executivo deve orientar suas escolhas administrativas e orçamentárias
atentando ao princípio da prioridade absoluta. Contudo, infelizmente a distribuição de verbas
e a liberação os recursos são comumente realizadas sem atentar para tal princípio.
O ECA estabeleceu no art. 4º um rol exemplificativo de situações que deverá ser dada
preferência a infância e juventude, sendo importante destacar que o parágrafo único do art.4
do ECA determina a destinação preferência de recursos públicos nas áreas relacionadas a
infância e juventude. Assim cabe ao ente estatal prever recursos para promoção de interesses
infato-juvenis, a fim de assegurar que as instituições de acolhimento tenham as verbas e
infraestrutura indispensáveis para cumprir seus fins.
Muitas vezes, a administração alega não possuir recursos suficientes para desenvolver
determinada política pública, suscitando, assim, a reserva do possível, ou ainda que não pode
realizar determinada ação estatal por ausência de previsão orçamentária. Importante destacar que
11 Idem p. 55. 12 P. 62.
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1546
o judiciário já consolidou jurisprudência no sentido de que não há colidência entre princípios
orçamentários e o princípio da prioridade absoluta. Conforme Amin, o superior interesse da criança
e do adolescente “trata-se de princípio orientador para legislador como para o aplicador
determinado a primazia das necessidades da criança e do adolescente como critério de
interpretação da lei, deslinde de conflitos, ou mesmo para elaboração de futuras regras”13.
Desta forma, tanto a Constituição, quanto o ECA impõem a observância do princípio
da primazia ou da prioridade absoluta, que atribui preferência na formulação e execução das
políticas sociais públicas, destinando de modo privilegiado recursos nas áreas correlatas à
proteção da infância e juventude. Neste contexto, a criação de um ambiente confortável (apto
a permitir o sadio desenvolvimento de seus acolhidos) nas instituições de acolhimento não é
ato discricionário do administrador, mas direito constitucionalmente assegurado àqueles
tutelados pelo Estatuto. Portanto, valer-se de subterfúgios como limitação ou ausência
orçamentária não é válido, pois a implementação da estrutura arquitetônica adequada tem
prioridade no orçamento público por força do princípio constitucional elencado.
O ECA, por sua vez, em seu art. 7º, tutela a vida e a saúde das crianças e adolescentes
por meio de políticas sociais públicas que permitam seu total desenvolvimento em um ambiente
sadio e harmonioso. O Princípio da Prioridade Absoluta tem assento no artigo 227 do Texto
Constitucional, materializando-se por meio do artigo 4º do Estatuto no qual pormenoriza como
sociedade e o poder público irão priorizar o atendimento aos direitos infanto-juvenis14.
Cumpre destacar que a colocação da criança e adolescente em instituição de
acolhimento é reputada pelo ECA como medida provisória e excepcional (arts. 19 e 101,
parágrafo primeiro), prevendo-se, ainda, a necessidade de avaliação da situação
semestralmente, sendo certo que a permanência do menor em tal instituição não poderá ser
superior a dois anos, salvo comprovada necessidade que atenda ao seu superior interesse.
A provisoriedade é uma regra que, na prática, pode ser entendida como exceção, já que
a maior parte dos menores permanece nestas instituições por tempo prolongado. Este cenário,
associado com a falta de investimento e a inadequação de sua infraestrutura, impossibilita o
surgimento de um ambiente verdadeiramente acolhedor. Logo, por mais que os acolhidos
passem anos nas instituições, é possível observar que não lhes despontem qualquer sentimento
13 P. 70. 14 Barros, p. 23.
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1547
sobre os abrigos que se aproxime do conceito de “lar”. Não há que se falar, assim, em ambiente
sadio, acolhedor e muito menos apto a desenvolver dignamente nenhum de seus internos.
Segundo levantamentos do Conselho Nacional do Ministério Público - CNMP, mais de
30.000 crianças e adolescentes no Brasil encontram-se afastados de seu convívio familiar e
inseridos em instituições de acolhimento. O artigo 92 do ECA impõe que as instituições de
acolhimento devem observar os seguintes princípios: preservação dos vínculos familiares e
promoção da reintegração familiar; integração em família substituta, quando esgotados os recursos
de manutenção na família natural ou extensa; atendimento personalizado e em pequenos grupos;
desenvolvimento de atividades em regime de coeducação; não desmembramento de grupos de
irmãos; evitar, sempre que possível, a transferência para outras entidades de crianças e
adolescentes abrigados; participação na vida da comunidade local; preparação gradativa para o
desligamento e, participação de pessoas da comunidade no processo educativo.
Considerações Finais
O acolhimento das crianças e adolescentes, historicamente realizado por instituições
religiosas e beneficentes, ainda é simbolicamente visto como caridade. Contudo, a partir da nova
ordem constitucional, tornou-se um direito fundamental, de dever do Estado e da Sociedade.
Conclui-se pela necessidade de aperfeiçoamento de tais ambientes a fim de assegurar
o conforto e bem-estar das crianças, garantindo seu desenvolvimento saudável. O espaço
físico destinado ao ambiente habitacional da criança é tão importante quanto suas relações
afetivas, pois estimulam seus moradores. As sensações de bem-estar, segurança e
acolhimento nestes locais são fundamentais para tal desenvolvimento.
Pode-se afirmar que um ambiente com instalações adequadas juntamente com
condições psicológicas favoráveis proporcionam o crescimento e amadurecimento sadio,
gerando adultos aptos a viver em sociedade.
A utilização destas instituições como empilhamento de atores sociais vulneráveis por
meio do prolongamento de suas internações em condições totalmente inadequadas e
contrastantes aos mandamentos constitucionais e legais é característica que merece repúdio.
Enquanto estas instituições não assumirem seu real papel, isto é, de propiciar um ambiente
arquitetônico e psicologicamente equilibrado apto a gerar adultos sadios.
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1548
Referências
AMIN, Andréa Rodrigues. Evolução histórica do direito da criança e do adolescente. In
MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade. Curso de direito da criança e do
adolescente: aspectos teóricos e práticos. 8ª ed. Saraiva, São Paulo, 2015
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Lei Federal 8.069/1990.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>.
CONANDA; CNAS. Orientações técnicas: serviços de acolhimento para crianças e
adolescentes. Brasília, 2009.
BRASIL. Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e
Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária. Brasília, 2006. Disponível em:
<http://www.mds.gov.br>.
CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO (CNMP). Relatório da Infância
e Juventude - Resolução nº 71/2011: Um olhar mais atento aos serviços de acolhimento de
crianças e adolescentes no País. Brasília: Conselho Nacional do Ministério Público, 2013.
Disponível em: <http://www.mds.gov.br>.
CUNHA, Rogério Sanches; LEPORE Paulo Eduardo; ROSSATO, Luciano Alves.
Estatuto da criança e do adolescente comentado. 6ª edição. São Paulo: editora Revista
dos Tribunais. 2014
FUSCALDI, Solange Viegas. Filhos Sobre medida de Proteção em Abrigo: os
significados construídos por suas famílias. Belo Horizonte: UFMG, 2004
ISHIDA, Valter Kenji. Estatuto da Criança e do Adolescente. Doutrina e Jurisprudência.
Atlas, São Paulo, 2014
MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade. Curso de direito da criança e do
adolescente: aspectos teóricos e práticos. 8ª ed. Saraiva, São Paulo, 2015.
MARCÍLIO, M.L. História social da criança abandonada. São Paulo: Hucitec, 1998.
ORNSTEIN, S e ROMERO, M. Avaliação pós-ocupação do ambiente construído. São
Paulo: Studio Nobel/Edusp, 1992.
RHEINGANTZ, Paulo A.; AZEVEDO, Giselle; BRASILEIRO, Alice; ALCANTARA,
Denise; QUEIROZ, Mônica. Observando a Qualidade do Lugar: procedimentos para a
avaliação pós-ocupação. Rio de Janeiro: FAU-UFRJ (Coleção PROARQ), 2009.
_lei_de_adocao.pdf.>. Acesso em: 30 de agosto de 2015.
TERCIOTI, Ana Carolina Godoy. Famílias Monoparentais. Campinas: Editora
Millennium, 2011.
TJPR. Site oficial do tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Disponível em:
<https://www.tjpr.jus.br/ >. Acesso em: 30 de agosto de 2015.
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1576
O HOMEM DA RELAÇÃO: O PROCESSO LEGISLATIVO DE
RECONHECIMENTO DE DIREITOS DOS HOMOSSEXUAIS
Janaína Gomes Garcia de Moraes UFES
Resumo: O projeto de pesquisa apresentado para o Mestrado em Direito da UFES visa discutir os
direitos civis dos homossexuais na atualidade. Como, para negar o acesso desses grupos a tais
direitos, a defesa da família é frequentemente invocada, é necessário examinar o conceito desta.
Assim, o presente trabalho visa discutir a essência social e histórica da noção de família, a fim de
inseri-la, posteriormente, no contexto da formação familiar por homossexuais, sua composição e suas
formas de filiação. No trabalho que ora se apresenta, o objetivo é apresentar o estado da arte no que
tange às noções de família que permeiam o imaginário brasileiro, por meio de revisão bibliográfica,
demonstrando que a configuração de família conhecida e compartilhada no Brasil não é uma ideia
natural e intrínseca ao instituto.
Palavras-chave: família; adoção; construção social.
Abstract: The dissertation research project presented to the UFES Law Masters intends to discuss
the homosexual´s civil rights nowadays. As, for denying the access of these groups to such rights,
the defense of the family é frequently called for aid, it is necessary to examine its concept. Therefore,
this paper aims to discuss the social and historical essence of the family notion in order to insert it in
the context of homosexual families, its arrangements and parenting forms. In this paper, the goal is
to present the state of art about the family concepts that surround Brazilian collective imagination,
through bibliographic review, showing that the family feature known and shared in Brazil is not a
natural and an inherent idea to the institution.
Keywords: family; adoption; social construction.
Introdução
Não é preciso muito esforço para encontrar filmes, propagandas e programas de TV
que contenham uma imagem da família ideal: papai, mamãe e filhinhos. Ao vê-la,
pressupomos que o pai e a mãe se apaixonaram e, então, casaram-se. Em seguida, vieram os
filhos. Assim, formou-se a família e todos viveram felizes para sempre.
Não é difícil, também, encontrar histórias cujo objetivo do protagonista é estabelecer essas
relações, superando adversidades para conquistar seu grande amor, e com este se casar e ter filhos.
Porque essas histórias são tão frequentes e porque, hoje, muitas pessoas se identificam com
elas, a impressão que se tem é de que esse é o curso natural da vida e que essa imagem de família
corresponde à família mesma, tal qual é e sempre foi. Assim, identificam-se as famílias atuais com
as antigas, como se essa instituição fosse natural e inerente ao homem.
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1577
No entanto, o estudo de dados históricos e sociológicos dão conta de que essa
formação familiar, centrada no casal e nos filhos, vivendo numa mesma casa, onde impera
o amor, surgiu em um determinado momento histórico relativamente recente, e estava, então,
circunscrita a um grupo da sociedade. Somente com o tempo, a configuração hoje tida por
tradicional se estendeu a outros grupos.
São os apontamentos históricos e sociais a esse respeito que pretendo abordar neste
trabalho, a fim de desconstruir a ideia de naturalidade na formação familiar contemporânea.
Isto é, por meio de revisão bibliográfica, pretendo demonstrar que a noção de família
atualmente vigente é fruto de uma construção social. E, então, tendo isso em vista, refletir
criticamente sobre a exclusão de outros modelos.
Antes, porém, de entrar no tema do trabalho propriamente dito, são necessários
alguns esclarecimentos e delimitações.
Primeiro, a fim de não gerar interpretações errôneas ou enviesadas, esclareço que
reconhecer o caráter eminentemente social, em detrimento do natural, da ideia de família
não importa em juízo de valor bom/mau, certo/errado ou afins. De acordo com os textos que
serão citados ao longo deste artigo, verifica-se que a família conjugal fundada no amor do
casal não é um dado da natureza, mas uma criação humana. Contudo, isso não significa que
haja algo de ruim nesse modelo. Não há correspondência que implique natural = bom e social
= mau, neste trabalho. A intenção, aqui, é demonstrar que esse modelo tradicional não
precisa excluir outros, em nome de uma naturalidade que lhe seria intrínseca.
É preciso esclarecer também quais são os limites da investigação. Considerando que
o modelo de família propagado no Brasil do século XXI é este fundado no amor do casal
que procria, tem-se que sua origem está na Europa Ocidental, no período após a queda do
Antigo Regime. Assim, uma vez que o objetivo deste trabalho é demonstrar a construção
desse modelo, e dadas as limitações temporais e espaciais, serão excluídas as formas de
organização familiares indígenas (dos nativos do Brasil), africanas (tanto dos escravos
trazidos quanto das pessoas que ficaram na África), orientais (aí incluída a Índia, a China, o
Japão, os países do Oriente Médio, as ilhas da Polinésia e da Melanésia etc). O objetivo deste
trabalho não é fazer um tratado sobre todas as organizações possíveis para as famílias, mas
apenas demonstrar que o atual modelo ocidental não é o único existente e nem mesmo no
próprio Ocidente ele foi sempre assim. Dessa maneira, o corte metodológico engloba apenas
o Ocidente, em especial a Europa e o Brasil, a partir da queda do Antigo Regime.
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1578
Dito isso, cabe um último esclarecimento prévio: estou ciente de que procurar na
Europa Ocidental um modelo de família que se aplica ao Brasil é incorrer no vezo de se
tomar a história da França como a história do mundo, obliterando as particularidades
regionais que fazem com que os modelos e as visões acerca do tema não sejam
completamente coincidentes. No entanto, é reconhecida aqui a influência que o modelo
emergido com a ascensão da burguesia provocou no Ocidente, inclusive no Brasil, de
maneira que entendo possível sua consideração para os fins desse trabalho.
Assim, fixado o campo de investigação e seu método, é possível passar ao estudo do tema.
1. A família conjugal: uma construção social
Diz-se do Direito que ele é uno, sendo dividido em ramos com objetos, princípios e
regras diferentes para fins apenas didáticos.
Um desses ramos do Direito é voltado expressamente para regular e tutelar a família.
Embora esse fato revele a importância que essa instituição ostenta no meio jurídico, é de se
notar que nenhuma lei se preocupe em conceituá-la.
Isso se deve ao fato de que a sociedade brasileira regida pela Constituição Federal de
1988 e pelo Código Civil de 2002 tem uma ideia compartilhada do que seja uma família, de
maneira que o seu conceito possa estar implícito na legislação sem prejuízo à compreensão
dos destinatários da lei. É possível, então, afirmar que a noção de família protegida pelo
Direito brasileiro é uma representação social, entendida como um conhecimento prático
acerca de um objeto ao qual os membros de um grupo aderem e do qual participam
(JODELET, 1989). Desse modo, sendo o conceito de família um saber prático partilhado na
comunidade, o legislador pode prescindir de defini-la. No entanto, ele deixa pistas muito
sugestivas daquilo que entende como família.
No Código Civil, a estrutura do Livro IV, que trata do Direito de Família, deixa claro
que ela é pensada a partir do casamento; após, pensam-se outros temas, como os filhos. Assim,
a disposição das seções esclarece o que ora se afirma, como se infere da reprodução abaixo:
LIVRO IV
Do Direito de Família
TÍTULO I
Do Direito Pessoal
SUBTÍTULO I
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1579
Do Casamento
[...]
SUBTÍTULO II
Das Relações de Parentesco
CAPÍTULO I
Disposições Gerais
CAPÍTULO II
Da Filiação
A escolha dessa sequência, dentre tantas outras possíveis, revela como se organizam
(ou devem organizar-se) as famílias no imaginário brasileiro.
Com base nela, verifica-se que, embora não haja nenhum impedimento legal ou fático
para que os filhos venham antes do casamento (ou mesmo a despeito dele), a ordem dos
dispositivos demonstra como a nossa cultura está impregnada pela ideia de que o casamento
entre homem e mulher – que pressupõe fidelidade recíproca; vida em comum, no domicílio
conjugal; mútua assistência; sustento, guarda e educação dos filhos; respeito e consideração
mútuos (art. 1.566, CC) – funda a noção de família no Brasil.
A par disso, não se pode deixar de notar que o Código Civil dedica, no que tange aos
Direitos Pessoais de Família, 71 artigos ao casamento (arts. 1.511 a 1.582) e 55 (arts. 1.5831
a 1.638) a outros assuntos – estando excluídos, dessa conta, os dispositivos referentes aos
Direitos Patrimoniais relativos à Família (Título II do Livro), como as regras que regulam o
regime de divisão de bens do casal.
Do mesmo modo que o Código Civil, a Constituição, no capítulo dedicado à família, à
criança, ao adolescente, ao jovem e ao idoso, refere-se, tão logo quanto possível – isto é, no
primeiro parágrafo do primeiro artigo – ao casamento, como se confere da transcrição a seguir:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 1º O casamento é civil e gratuita a celebração.
§ 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre
o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua
conversão em casamento.
§ 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada
por qualquer dos pais e seus descendentes.
§ 5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos
igualmente pelo homem e pela mulher.
§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio.
1 Os artigos 1.583 a 1.590 estão no subtítulo que trata do casamento, no entanto, por se referirem à guarda
compartilhada dos filhos, entendi adequado não os contabilizar como relativos ao casamento, mas a outros
temas. Se fossem recolocados no grupo que versa sobre o casamento, a diferença seria ainda mais expressiva.
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1580
§ 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da
paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal,
competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o
exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de
instituições oficiais ou privadas.
§ 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos
que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de
suas relações.
Esse protagonismo do casamento, e, após sua menção, a referência aos filhos,
demonstra como o Brasil aderiu a uma configuração específica da instituição familiar.
Como dito anteriormente, esse modelo de família, entendido, nas palavras de
MELLO (2005, p. 34), como o grupo “[...] formado por um homem provedor e uma mulher
afetuosa que se amam, que são casados civil e religiosamente, [...] que têm pelo menos dois
filhos, de preferência um casal [...]”, é uma representação social. E como tal, “é importante
reconhecer que o objeto-mundo vai além de nossos esforços para representá-lo. [...] porque
a pluralidade humana abre este objeto para os esforços de representação de outros diferentes
e diferentes contextos [...]” (JOVCHELOVITCH, 2004, p. 23-24), fazendo com que as
famílias adquiram configurações diversas nas variadas sociedades e ao longo da história.
Em razão disso, ou seja, de que a família não é uma entidade em si (ZAMBRANO,
2006), parto da premissa de que ela “é apenas uma palavra, uma simples construção verbal,
[e assim] trata-se de analisar as representações que as pessoas têm do que designam por
família” (BOURDIEU, 1996, p. 125). Nesse sentido, são os esforços desse trabalho.
De acordo com BOSWELL (1994), imersos que estamos nessa cultura segundo a qual o
propósito da vida é encontrar seu grande amor e com ele se casar, não percebemos como essas
ideias não estavam presentes no passado ocidental e não estão em muitas sociedades atuais, em
que se enfatizam, por exemplo, as histórias de heróis ou as sagas de famílias, sem que o amor
romântico desempenhe qualquer papel relevante. Embora, segundo o autor destaca, não haja
estudos explicando o porquê disso, é possível relacionar essa tendência romântica a uma
mudança estrutural nas relações familiares e sociais existentes no passado recente.
O casamento foi, por muito tempo, visto como uma aliança entre grupos. O amor só
passou a fazer parte do seu conceito recentemente, com o sucesso das técnicas de vigilância
sobre as famílias e sobre o corpo que se instituíram a partir do século XVIII. Nesse sentido,
ZAMBRANO (2006) ensina que a família passou “ser o local privilegiado da afetividade,
uma das características da família nuclear, apenas no século XIX”.
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1581
Segundo DONZELOT (1986), em meados do século XVIII, na Europa Ocidental, os
médicos, imbuídos da finalidade de conservar as crianças, em razão da alta taxa de
mortalidade, passaram a se preocupar com dois objetos que haviam ficado fora do interesse
da medicina: as mulheres e as crianças. Elas estavam, até então, restritas ao domínio dos
cuidados das comadres, posteriormente, tidos como perniciosos e supersticiosos.
O movimento de preocupação com essas pessoas levou a uma ressignificação do
papel da mulher, enquanto responsável pela criação dos filhos e intermediária entre o médico
e a família (DONZELOT, 1986). Isso acabou por construir uma imagem da mulher que é
permeada por ideias que tampouco são naturais, a exemplo do instinto materno2, da
feminilidade3 e da intuição feminina4. Sendo assim, com efeito, a mulher não existe5.
Nesse contexto, houve, também, uma ressignificação da noção de criança, como
destinatária de cuidados especiais e específicos, diferentes dos cuidados dos adultos. A nova
concepção instaurou uma noção de criança como objeto de zelos, retirando-lhes a capacidade
de serem sujeitos de ações. Isso se irradiou no imaginário popular, de modo a enviesar a
interpretação de narrativas, em razão da “percepção das crianças como vítimas às quais
emprestamos pouca ou nenhuma capacidade de agência”, como o notou RIFOTIS (2007, p.
3) em relação à história de João e Maria.
O discurso médico, em nome da saúde dos membros da família, pregava uma série
de regras higienistas que, combinadas com o controle social visado pelo Estado, conduziu
ao enclausuramento do grupo familiar, que “se retirou da rede extensa de parentela e
compartimentalizou os espaços de seus membros, tornando a rua fora do âmbito de mulheres
2 De acordo com ZAMBRANO (2006): “Chodorow (1990) argumenta que o aprendizado do ‘cuidado com as crianças’
é parte fundamental da socialização das mulheres, em nossa sociedade. É importante salientar, também, a existência de
trabalhos clássicos, como o de Elisabeth Badinter (1985), contrapondo-se às teorias que postulam a existência de um
‘instinto materno’, inato e universal, compartilhado por todas as mulheres. A autora defende que amor materno é, na
verdade, um mito, que assume um valor social incalculável e exerce uma imensa coerção sobre os nossos desejos. Isso,
porém, não implica ser ele universal, nem estar presente nas mulheres sob forma de um instinto”. 3 Segundo BOURDIEU (2012, p. 82): “Delas se espera que sejam ‘femininas’, isto é, sorridentes, simpáticas,
atenciosas, submissas, discretas, contidas ou até mesmo apagadas. E a pretensa ‘feminilidade’ muitas vezes
não é mais que uma forma de aquiescência em relação às expectativas masculinas, reais ou supostas,
principalmente em termos de engrandecimento do ego. Em consequência, a dependência em relação aos outros
(e não só aos homens) tende a se tornar constitutiva de seu ser”. 4 BOURDIEU (2012, p. 42) observa, quanto à intuição feminina, o seguinte: “Forma peculiar da lucidez especial dos
dominados, o que chamamos de ‘intuição feminina’ é, em nosso universo mesmo, inseparável da submissão objetiva e
subjetiva que estimula, ou obriga, à atenção, e às atenções, à observação e à vigilância necessária para prever desejos
ou pressentir desacordos. Muitas pesquisas puseram em evidência a perspicácia peculiar dos dominados, sobretudo das
mulheres [...]: mais sensíveis aos sinais não verbais (sobretudo à inflexão) que os homens, as mulheres sabem identificar
melhor uma emoção não representada verbalmente decifrar o que está implícito em um diálogo [...]”. 5 Valho-me da célebre frase de Lacan, em trocadilho, para enfatizar a ideia de construção social da imagem do
feminino. Não há alusão à psicanálise aqui.
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1582
e crianças” (FONSECA, 1995, p. 20), a fim de permitir o pleno e sadio desenvolvimento
destas, sem a interferência corruptora da criadagem (DONZELOT, 1986). Com isso, de
acordo com FOUCAULT (1988, p. 9):
A sexualidade é, então, cuidadosamente encerrada. Muda-se para dentro de
casa. A família conjugal a confisca. E absorve-a, inteiramente, na seriedade
da função de reproduzir. Em torno do sexo, se cala. O casal, legítimo e
procriador, dita a lei. Impõe-se como modelo, faz reinar a norma, detém a
verdade, guarda o direito de falar, reservando-se o princípio do segredo. No
espaço social, como no coração de cada moradia, um único lugar de
sexualidade reconhecida, mas utilitário e fecundo: o quarto dos pais.
Essa preocupação médica com a saúde das crianças e dos demais membros da família
(focalizando no controle das doenças venéreas), no entanto, não se desenvolveu na forma da
aliança médico-mulher nas camadas mais pobres. Nelas, segundo DONZELOT (1986), as
práticas eram coercitivas. Para que tivessem acesso a benefícios sociais, as famílias populares
tinham que aderir ao modelo de família pai-mãe-casados-filhos-legítimos, bem como à divisão
da habitação em quartos separados para o casal e para os filhos (estes apartados por sexo),
retirando-se os agregados e quaisquer terceiros. Nas palavras de DONZELOT (1986, p. 27):
Não se trata mais de arrancar as crianças às coerções inábeis, mas sim de
entravar liberdades assumidas (abandono de crianças em hospícios para
menores, abandono disfarçado em nutrizes), de controlar as uniões livres
(desenvolvimento do concubinato com a urbanização na primeira metade
do século XIX), de impedir linhas de fuga (vagabundagem dos indivíduos,
particularmente das crianças). Em tudo isso não se trata mais de assegurar
proteções discretas, mas sim, de estabelecer vigilâncias diretas.
Assim, foi no contexto da implantação das novas práticas médicas e das imposições
estatais de controle social (estímulo ao casamento oficial, concessão de habitações que
evitassem o contato dos corpos e a agregação de terceiros, fechamento das rodas e dos
hospícios) – visando a diminuir gastos públicos, o crescimento de indigentes e a mortalidade
infantil – que surgiu a concepção atual de família.
Desse modo, verifica-se que a “definição dominante, legítima, da família normal [...]
apoia-se em uma constelação de palavras – casa, unidade doméstica, house, home, household –
que, sob a aparência de descrevê-la, de fato constroem a realidade social” (BOURDIEU, 1996,
p. 124) e se referem a um período específico da história, em um espaço delimitado. Como resume
DONZELOT (1986, p. 11), “o sentimento moderno da família teria surgido nas camadas
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1583
burguesas e nobres do Antigo Regime estendendo-se, posteriormente, através de círculos
concêntricos, para todas as classes sociais, inclusive o proletariado do fim do século XIX”.
2. A família conjugal: um mito e um fato
Segundo visto no capítulo anterior, “a família que somos levados a considerar como
natural, porque se apresenta com a aparência de ter sido sempre assim, é uma invenção
recente” (BOURDIEU, 1996, p. 124).
Não bastasse isso, essa “imagem, manifesta em cartilhas escolares reproduzidas a
partir da década de 50, de papai, mamãe e filhos reunidos em torno da mesa de jantar”
(FONSECA, 1995, p. 115) não só é uma criação histórica artificial, como também não
corresponde à maioria das organizações entre pessoas verificadas desde sua invenção.
Nesse sentido, BOURDIEU (1996, p. 124):
[...] uma série de grupos que designamos como “famílias” absolutamente não
correspondem à definição dominante nos Estados Unidos na atualidade e que
a família nuclear é, na maior parte das sociedades modernas, uma experiência
minoritária em relação aos casais que vivem juntos sem serem casados, às
famílias monoparentais, aos casais casados que vivem separados etc.
Essa mesma constatação foi verificada no Brasil, onde a família tradicional, chefiada
pelo pai, casado com a mãe, que tinha muitos filhos, também seria uma minoria, segundo os
dados apontados por FONSECA (1995, p. 73):
Na última década, avanços no campo de pesquisas históricas têm
demonstrado que este modelo nunca foi realizado por mais do que uma
pequena minoria da população. O que se verifica, na realidade, é a
preponderância de uniões consensuais (nas quais é muito difícil julgar a
taxa de estabilidade ou de separação conjugal), de famílias nucleares
pequenas, e a presença persistente de crianças “em circulação”. Em certas
instâncias (cidades de Minas Gerais e São Paulo no início do século XIX),
a família chefiada por uma mulher, o suposto protótipo da família
desagregada, chegava a ser tão comum quanto a família conjugal.
Desse modo, percebe-se que a imagem evocada pelas leis atuais não se refere, em
absoluto, a um modelo natural, nem no sentido de algo que independe da vontade humana,
nem no sentido usual de algo que represente a maioria.
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1584
Tendo isso em vista, não se sustentam os discursos que pregam que a família precisa ser
protegida de ameaças diversas, como o casamento gay e a adoção por homossexuais. Sendo
construída socialmente, a família está sujeita a mudanças em sua configuração, à medida que mude
a sociedade. Demais disso, enquanto ente abstrato, ela não pode ser defendida ou ameaçada. Tais
discursos fazem parte de uma ideologia que, com a finalidade de prescrever a “maneira correta de
viver as relações domésticas” (BOURDIEU, 1996, p. 126), antropomorfiza a família.
Em todo caso, o mito da família perfeita existe, e ele está assentado sobre o
casamento reprodutor. Por isso, pertencer a uma dessas famílias concede aos membros um
capital simbólico importante: “o de ser como se deve, dentro da norma, portanto, de obter
um lucro simbólico da normalidade” (BOURDIEU, 1996, p. 130). Conhecedores, ainda que
inconscientes, desse privilégio na nossa sociedade, queremos desfrutá-lo.
Esse capital é capaz de explicar o motivo por que os homossexuais objetivam a
normalização de suas relações por meio da positivação legal de seu casamento (a despeito de
poderem celebrá-lo atualmente sem maiores embaraços), bem como por que enfatizam, nos
processos de adoção, a “adequação de suas famílias aos modelos hegemônicos, evidenciados
pelas características heterossexuais, [como] uma forma de confirmar o sucesso de sua
paternidade/maternidade, ainda que ‘homoafetiva’” (COITINHO FILHO, 2014, p. 38).
3. A dádiva da criança
Como visto, a representação que se tem da família embute a presença de filhos que
sejam legítimos.
A ideia de legitimidade dos filhos de hoje nada tem a ver com aquela do início do
século XX, por exemplo. Atualmente, uma criança formalmente adotada, mediante o uso
dos aparelhos do Estado, é, por muitos, considerada legítima.
De qualquer modo, em geral, para que, no Brasil do XXI, se afirme ter constituído
uma família, os filhos são necessários. Nesse contexto, aqueles que, por qualquer motivo,
não podem biologicamente se reproduzir buscam, muitas vezes, a adoção.
No direito, conforme ensina FONSECA (1995, p. 115), “ainda existe em muitos
tratados jurídicos, uma 'naturalização' da família conjugal. Evidentemente, a maioria dos
juristas têm isto em mente quando diz que a adoção deve ‘imitar a natureza’, ou quando fala
da ‘família normalmente constituída’”.
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1585
No entanto, sem embargo da concepção jurídica de adoção, há outras maneiras de
um grupo de pessoas receber uma criança.
Durante os séculos XVIII e XIX, vigoraram no Brasil e na Europa as rodas de crianças
expostas, como forma daqueles que não podiam manter seus filhos poderem enjeitá-los de uma
maneira mais “humana” (DONZELOT, 1986; VENÂNCIO, 1999). No Brasil, as crianças que
sobreviviam (a taxa de mortalidade infantil era a mais alta, superando até mesmo a entre os
escravos), eram entregues a nutrizes, que com elas tinham responsabilidade até os sete anos. Após
essa idade, algumas famílias permaneciam com as crianças em seu meio (VENÂNCIO, 1999).
Contudo, dentre essas famílias que ficavam com as crianças, a adoção propriamente dita,
ou seja, em sentido formal, não era comum. Segundo VENÂNCIO (1999, p. 137), isso se devia
ao fato de as que “as regras da adoção legal mais pareciam regras da 'não-adoção', tal era o grau
de dificuldades impostas ao casal que quisesse integrar o enjeitado à própria família”.
De acordo com FONSECA (1995), há uma explicação econômica sobre porque,
antes do século XX, “os poderes centrais agiam contra a adoção” (FONSECA, 1995, p. 118):
Assim, mantinham relativamente alto o número de pessoas sem herdeiros,
fazendo com que o patrimônio de muitas famílias escoasse para o senhor
feudal ou para a Igreja (ver Godoy, 1982).
Apesar do grande número de enjeitados deixados na roda dos expostos,
assim como os bandos de jovens que viviam nas vias públicas (Donzelot,
1980, Rizzini, 1993), antes do século XX houve poucos movimentos ou
debates para adaptar as leis sobre adoção ao problema destas “crianças
abandonadas”. Não era raro as pessoas receberem no seu lar um jovem
desamparado. Filhos de criação existiam de fato. Mas raras vezes pensava-
se em legalizar sua situação pela adoção.
Ainda hoje, a adoção “prática” é uma realidade, e talvez seja mais frequente que a
formal. Dentre as camadas populares contemporâneas, verifica-se, com regularidade, a
criação de crianças por outras pessoas que não os pais biológicos, sem que haja qualquer
participação do Estado. É o que FONSECA (1995) denomina de “crianças em circulação”.
Essas crianças que circulam, como aponta a autora, muitas vezes, designam mais de uma
pessoa como pai ou mãe, o que revela um senso familiar mais amplo.
Essa prática da circulação é observada também, segundo ZAMBRANO (2006), entre
travestis e transexuais, que, em razão de sua baixa escolaridade e de suas profissões
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1586
frequentemente ligadas ao sexo, sequer cogitam recorrer ao Judiciário (ao contrário de como agem
os homossexuais cis6, como informado acima). Nesse sentido, ZAMBRANO (2006) informa:
O recorte de classe torna-se obrigatório para a compreensão do modo
escolhido pelas travestis e transexuais para chegar à parentalidade. Além
da escolaridade (apenas uma das oito informantes completou o primeiro
grau) pesa, também, a profissão das entrevistadas que, com exceção de
uma, são ou foram profissionais do sexo. A baixa escolaridade e o tipo de
profissão – objetos de restrições por parte das instituições oficiais –
dificultam não apenas a possibilidade de adoção e guarda, mas, também, o
acesso aos meios para lutar por ela.
A mudança nos documentos de identidade é, para as transexuais, de
enorme importância para o acesso à parentalidade, pois é pelo uso de
documentos adequados à sua identidade social que pensam conseguir a
adoção legal de uma criança. Assim, algumas fazem planos de adotar
legalmente, mesmo tendo presente a possibilidade de serem impedidas
devido às diferentes formas do poder judiciário tratar a questão.
As travestis, porém, raramente pensam na possibilidade de acionar a via
judicial para adotar, devido ao preconceito que temem sofrer quando
tentarem uma adoção. Como não fazem a cirurgia de transgenitalização,
dificilmente conseguem trocar os documentos, o que, junto com a classe
social (popular), a escolaridade (baixa) e a profissão (prostituição), torna
muito pouco provável o deferimento de um pedido de adoção. Como diz
uma informante: “Se para os heterossexuais já é complicado adotar,
imagina pra nós travestis que já sofremos tanto preconceito”.
Como se infere dos dados apontados (FONSECA, 1995; ZAMBRANO, 2006), sem
embargo das regras legais e das representações sociais, as famílias se organizam e sempre
se organizaram, na realidade, de inúmeras formas diferentes do modelo pai-mãe-filhos.
Sendo assim, é de se refletir acerca da legitimidade de outras configurações, como o
fez o operador do direito entrevistado por ZAMBRANO (2006), que observou que:
[...] uma criança infectada [pelo HIV], a mais cuidada do ambulatório, a
mais paparicada, a que não tinha uma assadurinha, era cuidada por uma
travesti... acho que em relação a travestis e transexuais a gente teria que
repensar, estudar, desconstruir alguma coisa... ou reconstruir, não é?
6 Cis é aqui tomado no sentido de coincidência de identidade de gênero com sexo biológico.
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1587
Conclusão
Neste trabalho, procurei demonstrar que a literatura especializada é farta em
apontamentos no sentido de que a família conjugal, formada pelos pais casados e pelos filhos
biológicos concebidos dentro do casamento, não é um dado da natureza. Trata-se de um
modelo construído historicamente, “que teria sido impossível ele se consolidar sem certos
elementos históricos – a centralização do Estado, por exemplo, e a individualização de
salários” (FONSECA, 1995, p. 20).
Ademais, pretendi esclarecer que esse modelo é tampouco majoritariamente
verificado na sociedade, não sendo válido senão para uma parte das pessoas. Entretanto, por
ser imposto como o padrão, ele permeia o senso de normalidade, conferindo aos que nele se
amoldam um capital simbólico na sociedade. Dessa forma, os grupos excluídos do padrão
visam à sua inclusão no modelo.
A par do modelo pai-mãe-filhos ser difundido como legítimo, tem-se que as pessoas
organizam as relações de parentesco e afetividade de inúmeras maneiras, como sempre o
fizeram, de maneira que a “naturalidade” de uma configuração não precisa excluir outras.
Referências
BOSWELL, John. Same-sex unions in pre-modern Europe. Vintage books, e-book. New
York, 1994.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Bertrand Brasil: 11 ed. Rio de Janeiro, 2012.
Abstract: Memory is an articulating element in the construction of individuals discourse whose content is
to value the past and their recreations and reinterpretations of present. This fact occurs with the practitioners
of Jongo/Caxambu in Espírito Santo (Brazil), as in despite of the current legal situation by Articles 215 and
216 of Brazilian 1988 Constitution, promote it patrimonialization policies of cultural practices by the State.
Thus, these ethnic actors enter from this perspective in the game negotiations with the representatives of
these agencies in order to plead actions of political and social character. Thus, it´s proposes an analysis of
some speeches during the ethnographic field work developed by two programs of extension and research at
the Federal University of Espírito Santo (UFES). The jongueiros and caxambuzeiros from the State of
Espírito Santo legitimize their cultural practice because is a way through which will be assigned a
representation of the struggle for social and political recognition in the public space.
Keywords: jongo/caxambu; memory; patrimony.
Introdução
Esta comunicação se propõe a realizar uma discussão inicial sobre os processos de formação
da categoria jongueiros/caxambuzeiros capixabas em vistas ao reconhecimento das “manifestações
das culturas populares” (CFB, 1988) por parte da União, garantido pelos os artigos 215 e 216 da
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CFB/1988), sendo os assegurados aqueles
que fazem parte dos “grupos participantes do processo civilizatório nacional” (CFB 215).
1 O presente artigo é uma reedição do artigo “Dança Direito, menino, na roda desse tambor”: A construção da
categoria jongueiro/caxambuzeiro no Espírito Santo” apresentado no Grupo de Pesquisa “Descolonialidade e
América Latina”, durante o V Congresso da Associação Brasileira de Pesquisadores em Sociologia do Direito
(ABRASD), ocorrido em novembro de 2014, na Faculdade de Direito de Vitória (FDV).
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1603
Nessa linha de análise, serão exploradas de forma analítica as políticas de
salvaguarda vinculadas aos patrimônios imateriais brasileiros, sobretudo a prática do Jongo
e, por isso, preliminarmente, se faz jus uma pequena apresentação dessa estrutura. Isso será
necessário, pois é por objetivo perceber como essas políticas são formas de intervenção do
Estado no processo de construção das identidades coletivas e da memória dos grupos
subalternizados e que, por consequência, lutam pelo seu reconhecimento e pelo direito de
falarem por si (GONÇALVES, 2007; SANSONE, 2011).
Nesse sentido, serão expostos aqui alguns discursos de jongueiros e caxambuzeiros
do Espírito Santo proferidos durante algumas ações dos Programas de Pesquisa e Extensão
“Territórios e Territorialidades rurais e urbanas: processos organizativos, memórias e
patrimônio cultural afro-brasileiro nas comunidades jongueiras do Espírito Santo” e “Jongos
e Caxambus: culturas afro-brasileiras no Espírito Santo”, desenvolvidos pelo Departamento
de Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo (DCSO/UFES), sob
coordenação do professor e antropólogo Osvaldo Martins de Oliveira, do qual a autora
participou como bolsista durante os dois anos de execução.
De forma estrutural, o presente artigo está dividido em três seções subsequentes a esta
introdução. Na seção segunda será apresentado sobre a prática do Jongo/Caxambu2,
especialmente no Espírito Santo, a fim de situar ao leitor como as identidades dos grupos
praticantes são construídas e reconstruídas sob a memória transmitidas por seus ancestrais. Na
seção terceira, abordarei o cenário jurídico das políticas de patrimonialização brasileira e suas
atuações com os jongueiros no Espírito Santo. Na seção quarta, será verificado como essa
memória é de grande embasamento na construção dos discursos desses agentes étnicos em sua
luta pelo reconhecimento sócio-político. E, por fim, encerrando o artigo, as considerações finais.
1. Jongo/Caxambu
Ah, eu acho assim uma alegria muito importante (dançar o Caxambu),
porque vem do tronco, né? Então a gente tem que valorizar o que [...] foi
ensinado. Então se eu jogasse pra escanteio, igual muitos, parece que a
2 O Jongo e o Caxambu são denominações que correspondem ao mesmo ritual afro-brasileiro. Mesmo obtendo
variações na forma de condução do ritual pelas comunidades que o pratica, o Inventário Nacional de
Referências Culturais (INRC), desenvolvido pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(Iphan), reconhece esses dois nomes, além de tambu, batuque e tambor. No Espírito Santo, tal diferenciação
pode ser vista regionalmente, a saber: ao norte capixaba é denominado Jongo, enquanto, ao sul, é chamado de
Caxambu (nome que se refere ao principal instrumento da roda, o tambor). Ainda nessa região, há exceções,
como os grupos dos municípios de Itapemirim e de Presidente Kennedy que o denomina como Jongo.
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1604
gente, não tem, assim, amor. Que a gente tem que ter amor pelas coisas.
Principalmente as coisas que os mais antigos ensinam (PROGRAMA
TERRITÓRIOS E TERRITORIALIDADES, 2012a).
O valor do ensinamento ancestral, como é destacado na epígrafe, é um ponto crucial na
fala da mestra de caxambu. A expressão é dita com propriedade, pois por meio dela, é possível
entender que o Jongo/Caxambu não somente é uma manifestação folclórica, mas sim, uma
herança de um momento histórico brasileiro, dos quais negros africanos escravizados afirmavam
não serem sujeitos passíveis da dominação escravocrata, e sim de indivíduos que buscavam
protestar e lutar individualmente e coletivamente pela sua humanidade.
O Jongo/Caxambu têm suas raízes nos saberes, ritos e crenças dos povos africanos,
sobretudo, os de língua bantu, provenientes do sul da África, especialmente de Angola. A
consolidação dessa expressão cultural se deu pelos negros escravizados que trabalhavam nas
lavouras de café localizadas no Sudeste brasileiro, região que abriga exclusivamente tal
manifestação (ABREU; MATTOS, 2008).
Praticado em comunidades que se definem como negras e/ou quilombolas dos meios
rurais e urbanos dessa região, os jongueiros e caxambuzeiros reinventam-se a partir de sua
prática cultural pela luta por reconhecimento sócio-político no cenário público. Essa memória
herdada é um elemento articulador na construção dos discursos dos indivíduos, cujo conteúdo
é de valorizar o passado e suas recriações, e releituras do presente (LE GOFF, 2003).
Por meio de sua prática é possível compreender uma reconstituição do passado em
tempos atuais. Ajuda-nos a responder como a memória é elemento articulador da construção
de identidade e “[...] também um instrumento e um objeto de poder” (LE GOFF, 2013, p.
435). Ela é transformada em uma função legitimadora do discurso; decreta a apropriação por
parte dos agentes étnicos de suas heranças culturais.
O modo de condução do ritual é uma particularidade que cada uma dessas
comunidades possui, mas, em comum, o ritual é caracterizado por sua forma circular,
constituído por homens e mulheres que dançam e tocam o tambor incessantemente à beira
de uma fogueira. Nessa sincronia, há a criação de pontos, que são versos musicalizados
criados (ou recantados) durante a roda. Na “brincadeira” (como muitos deles se referem a
esse momento) são retratados os fatos do cotidiano, histórias, personalidades, trabalho e
crença religiosa da localidade praticante. Tais versos são categorizados pelos próprios
praticantes como: ponto de louvação, ponto de saudação, ponto de despedida e os pontos de
demanda, sendo esse último também chamado de jongo de ponto ou desafio (RIBEIRO,
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1605
1984). Ele simboliza, verbalmente, um ataque, um acerto de contas de situações que
ocorreram dentro ou fora do círculo entre alguns indivíduos. Acredita-se que esses pontos
possuem um sentido mágico-fetichista.
[...] o termo Jongo refere-se não apenas à dança, mas também, às cantigas que
o acompanham, também conhecidas como pontos. [...] os jongos [...] são
cantados em português, mas com frequência apresentam palavras e expressões
de origem bantu [...]. O jongo tem uma característica central o uso de uma
linguagem poética metafórica [...], que serve para transmitir mensagens ou
enigmas a serem decifrados (PACHECO, 2007, p. 25, grifo do autor).
Os tambores são de modelagem arcaica, feitos de tronco escavado e recoberto numa
extremidade por uma membrana, em sua maioria, de couro de boi, salvos relatos que diziam
que, em algumas vezes, utilizava-se couro de bode. Durante as celebrações festivas é
possível perceber nas narrativas dos jongueiros e caxambuzeiros que esse instrumento é
revestido por um caráter mágico, seja pela sua constituição e/ou pela sua sonoridade.
Variando em forma, dimensão e material empregado na sua produção, os tambores recebem
nomes que lhe são próprios como caxambu (nome que também caracteriza a dança) e ainda
outros, como nome de pessoas e/ou apelidos.
A regência da roda de jongo/caxambu é realizado pelo(a) mestre(a). Essa principal
função é ocupada por um homem ou por uma mulher que, geralmente, são os mais velhos
ou velhas da comunidade. Entretanto, tal maestria é transmitida por gerações dentro do
próprio laço de parentesco, permitindo que, o saber e fazer desse patrimônio permaneça
dentro do núcleo familiar nessas comunidades.
No Espírito Santo, foram mapeados por meio do trabalho de campo desenvolvidos
pelos programas de pesquisa e extensão que exporei mais adiante, vinte e quatro
comunidades praticantes do Jongo/Caxambu em todo o território. São distribuídos
espacialmente em quatorze comunidades na região sul e dez na região norte.
Na abordagem a seguir, serão demonstrados o cenário jurídico e político em torno
dessa prática cultural, a qual a União passa a englobá-la como um “patrimônio imaterial
cultural”. Nesse sentido, serão analisados três vieses distintos na forma de apropriação desse
“patrimônio” pelos próprios jongueiros e caxambuzeiros e pelos agentes da política de
patrimonialização, na qual, leva-se em consideração, o ponto de onde esses sujeitos estão
situados em um dado momento e para quem eles se dirigem.
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1606
2. Em torno das políticas públicas, seus diferentes agentes
No contexto jurídico e político cultural que compreende os artigos 215 e 216 da CFB
de 1988, é de dever do Estado o apoio, o incentivo a valorização, a difusão, promoção e a
produção dos patrimônios culturais, da mesma maneira que fica estabelecido suas duas
categorias: os bens de natureza imaterial (também chamados de intangível) e os bens de
caráter material (os conhecidos por “pedra e cal”).
Os bens imateriais são expressões simbólicas, os saberes e fazeres das práticas
cotidianas dos grupos étnicos, suas memórias, relações sociais e “experiências diferenciadas
nos grupos humanos-fundamentos das identidades sociais” (VIANNA, 2004, p. 15) e, por
outro lado, os bens materiais, são monumentos de caráter arquitetônico, urbanístico e
arqueológico. Ambos compõem o grande guarda-chuva denominado de patrimônio cultural
brasileiro, esse um processo de gestão das práticas culturais empreendidas pelo Estado.
Com propósitos em atender as exigências postas nos artigos supracitados, foi
fomentado pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)3, a edição do
Decreto nº 3.551 de 04 de agosto de 2000, emanado pelo Ministério da Cultura (MinC), que
institui o registro de bens culturais de natureza imaterial, criando o Programa Nacional do
Patrimônio Cultural Imaterial (PNPI), cujo caráter é de nortear e organizar os processos de
registros dos inventários dos bens imateriais e que, por sua vez, consolida o Inventário
Nacional de Referências Culturais (INRC)4. Ainda nesse sentido, sobre as políticas de
salvaguarda do patrimônio imaterial, foi criado dentro do Iphan um setor que abrangerá
assuntos de pertinência à legislação e às políticas públicas vinculadas aos patrimônios
imateriais, o Departamento do Patrimônio Imaterial (DPI).
Dito isso, o “Jongo do Sudeste” foi identificado, reconhecido e titulado por essas
políticas públicas no ano de 2005, como um patrimônio imaterial brasileiro. Tal ação não se deu
de uma forma espontânea por parte das agências patrimonializadoras, mas sim, por uma série de
ações de mobilizações sócio-políticas das comunidades praticantes do Jongo/Caxambu.
3 Uma agência federal criada no final dos anos de 1930 que, inicialmente, foi nomeada de Serviço do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) e dirigida por Rodrigo Melo Franco de Andrade. A sua
criação tornava evidente os propósitos em que o Estado tinha em construir ou de inventar tradições
(HOBSBAWM, 1997) que legitimariam uma memória oficial traçada em prol de uma totalidade, o que
justificaria a ideia de Estado-nação (ABREU e FILHO, 2007). 4 O INRC é um instrumento metodológico de pesquisa regida pelo Iphan, na qual, por ele é realizado pesquisas de
cunho investigativo em identificar bens culturais imateriais, além de gerenciar ações direcionadas a essa categoria.
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1607
Essas atuações iniciaram em redes de encontro dos jongueiros no Rio de Janeiro e em São
Paulo desde 1996 que, até 2008, já haviam realizado onze encontros. Essas mobilizações foram
fomentadas pelos próprios agentes étnicos que contavam com a colaboração e participação da
Universidade Federal Fluminense (UFF), que atuou de forma mediadora na organização, e com
recursos comunitários e pequenas doações (MONTEIRO e SACRAMENTO, 2009).
Destacam-se nesses momentos a criação da Rede de Memória do Jongo/Caxambu durante
o V Encontro dos jongueiros, em Angra dos Reis, no Rio de Janeiro, no ano de 2000. A Rede e os
Encontros culminaram a aprovação do registro do Jongo/Caxambu como patrimônio cultural
brasileiro pelo Iphan, após a realização do INRC sob coordenação da antropóloga Letícia Vianna
(VIANNA, 2008). Nesse ritmo, em 2007, o Iphan, juntamente com o MinC, propuseram a criação
dos Pontões de Cultura de Bens Registrados, que atuariam em três linhas, que seriam: na
articulação, na capacitação e na divulgação e difusão desses bens registrados.
Diante disso, foi estabelecida parceria com a UFF que dela foi criado o programa
Pontão de Cultura do Jongo/Caxambu, sob coordenação geral de Elaine Monteiro, e que
tinha como vertente “[...] o desafio de ‘fazer com’ [as comunidades] e não ‘fazer para’”
(MONTEIRO e SACRAMENTO, 2009).
Essa movimentação das políticas culturais públicas acerca do Jongo/Caxambu
resultou em dois programas de pesquisa e extensão desenvolvidos pelo Departamento de
Ciências Sociais da UFES. O “Territórios e Territorialidades rurais e urbanas: processos
organizativos, memórias e patrimônio cultural afro-brasileiro nas comunidades jongueiras
do Espírito Santo” e “Jongos e Caxambus: culturas afro-brasileiras no Espírito Santo”, foram
executados em diferentes momentos, sendo o primeiro cumprido no ano de 2012 e, o
segundo, de caráter prolongador das atividades do primeiro, no ano de 20135.
Esses programas partiram de duas categorias analíticas do campo da Antropologia, a
saber: memória e patrimônio. Para isso, o locus das pesquisas foram nas comunidades negras
praticantes do Jongo/Caxambu no estado do Espírito Santo, do qual, a partir disso, foi
possibilitado verificar as interações entre os sujeitos étnicos políticos e intelectuais dessas
localidades e os agentes públicos externos durante os eventos propostos pelos programas.
5 Ambos foram coordenados pelo Professor Dr. Osvaldo Martins de Oliveira e contaram com a participação dos
professores Sandro José da Silva (Departamento de Ciências Sociais/UFES) e Aissa Afonso Guimarães (Departamento
de Teoria da Arte e Música/UFES). Incluiu também estudantes de graduação e pós-graduação em Ciências Sociais,
Programa de Pós-Graduação em Artes (PPGA/UFES) e do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE/UFES).
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1608
Para isso, a metodologia empregada durante a pesquisa foi a abordagem etnográfica,
que coube em averiguar a situação das relações sociais em torno dessa prática, atentando-se
para aos elementos de auto-atribuição (BARTH, 2000) dos sujeitos da pesquisa.
Resumidamente, os programas realizaram cinco eventos de grande visibilidade a
respeito da prática cultural no Espírito Santo. São eles: quatro encontros regionais nomeados de
“Oficinas de Mobilização e Organização Comunitária” e o “II Encontro Estadual de Jongos e
Caxambus no Espírito Santo”. Nesse último evento, foi de grande valia a elaboração da “Carta
dos jongueiros e caxambuzeiros”, onde nela foram expostas todas as demandas exigidas pelos
grupos em prol de sua prática cultural. Ela foi entregue às instâncias políticas culturais, que
também estavam sendo representados pelos seus agentes em todo o processo de elaboração dela.
Após essas apresentações, é pertinente realizar uma análise prévia em torno das questões
das políticas de patrimonialização, já que há um projeto em torno da identidade e da memória afro-
brasileira, vista aqui, como exemplo, em torno da prática do Jongo/Caxambu.
Novas demandas por parte dos grupos subalternizados estão emergindo diante desse
período em que se encontram vários fomentos na política cultural pública, sobretudo ao de
natureza imaterial. Isso se dá pelo poder de que o estado tem de se apropriar do que é popular
e torná-lo nacional (SANSONE, 2011), ou seja, “patrimonializar a cultura afro-brasileira
subentende também definir, de alguma forma, o que é esta cultura, de quais elementos ela se
compõe” (idem, p. 34), o que, de fato, acarreta um choque entre as fronteiras estabelecidas
entre os grupos étnicos detentores da herança cultural e o Estado, o que proporciona novas
construções identitárias e simbólicas.
Nessa linha de pensamento, foi possível perceber durante os trabalhos de campo dos
programas de extensão da UFES, que o Jongo/Caxambu vem sendo realizado em três formas
distintas, levando em consideração o ponto de onde ele está situado em um dado momento
e para quem ele se dirige.
O primeiro deles é o “jongo como tradição”, visto pelos próprios sujeitos da
comunidade que o pratica. Esses são conscientes da sua herança cultural, que é perpassada
por meio de sua prática doméstica. Esses sujeitos desempenham seu self "como realmente
é” ou “como realmente somos” (GONÇALVES, 2007), ou seja, praticam a roda
informalmente sem desempenhar papéis de instância política, mas sim, de transmitir ao seu
sucessor o que lhe foi herdado: o jongo como um produto familiar (“a brincadeira”).
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1609
O segundo é do ponto de vista da patrimonialização. Como dito em linhas anteriores,
as agências culturais públicas adotaram uma nova linguagem para designar essas práticas
culturais que, no caso aqui analisado, o Jongo/Caxambu. As políticas de salvaguarda dos
patrimônios culturais imateriais é o termo “inventado” (no sentido hobsbawniano) para
designar essa tradição. A patrimonialização é uma “invenção das tradições”, pois é por meio
dela que o poder público se re-legitima diante das transformações do cenário social.
Como é dever do Estado o apoio, o incentivo a valorização, a difusão, promoção e a
produção dos bens culturais, fomentam-se eventos e datas comemorativas, dos quais, contam
com a participação dos grupos nessas ocasiões. Diante disso, foi percebido como os grupos
de Jongo/Caxambu fazem participações em eventos como em: seminários municipais,
festejos em comemoração a aniversários das cidades e festejos religiosos. Assim, foi possível
notar que não é realizada uma “apresentação” autêntica (GONÇALVES, 2007) do Jongo,
mas sim, uma “representação” dele, ou seja, o conteúdo dos pontos são articulados de acordo
com a temática do evento. São cantando versos em agradecimento ao prefeito e outros
representantes ou uma homenagem para algum outro grupo participante e/ou para a cidade.
Quando se fala em salvaguardar o patrimônio “para não o perder”, como são
percebidas nas ações e nos discursos dos agentes das políticas de patrimonialização, suas
mobilizações giram em torno da figura dessa perda (GONÇALVES, 2003). Entretanto, essa
“proteção” vem respaldar o Estado daquilo que ele quer que seja catalogado, ou seja, há um
engessamento da prática sob os seus moldes do que declara ser o legítimo.
A partir dessa interpretação, constitui-se uma tradição inventada pelo Estado, pois a
“verdadeira” prática social, é reconstruída pelos sujeitos étnicos de acordo com as situações
cotidianas. O “Jongo do Sudeste”, o salvaguardado pelas políticas de patrimonialização, é diferente
da “brincadeira” realizada na comunidade de São Mateus, no município de Anchieta (ES), do
mestre Renélio, por exemplo. Aquele segue os moldes estabelecidos pela agência, em que
determina o que mostrar, como mostrar e para quem mostrar6. Fora desses parâmetros
estabelecidos, não seriam o patrimônio de forma “legítima”, em vistas dos interesses do Estado.
Por fim, a terceira análise a ser empreendida é como essa tradição inventada é tomada
pelos sujeitos étnicos como uma bandeira de luta política da comunidade. A organização de
um grupo de Jongo/Caxambu que se “apresenta representando”, não é apenas uma maneira
6 A partir disso pode-se analisar também como a patrimonialização se direciona para o fomento de um turismo
étnico, mas esse debate será realizado em uma próxima abordagem.
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1610
de propagar a política de patrimonialização realizada pelo Estado7, mas sim, se apropriam
dessa forma e a reinterpretam como uma maneira de lhes conferirem visibilidade diante a
outra parcela da sociedade.
A política de patrimonialização mesmo “inventando a tradição” possibilita pensar
como o jongueiro e caxambuzeiro se posiciona no ato de “representar”. Eles são o “[...]
próprio locus de significado e realidade” (GONÇALVES, 2007, p. 119) e, por isso, temos
que nos ater ao direcionamento do nosso olhar.
No ato de “representação” do grupo, não somente temos que observar o modelo
estabelecido pela agência, mas de ampliarmos o nosso campo de visão e notar a situação em
disputa do qual se desenvolvem os conflitos tanto simbólicos, quanto materiais.
Em suma, é percebido como os sujeitos étnicos estabelecem negociações com os
agentes da patrimonialização, na qual visam fazer emergir suas memórias que foram caladas
e ocultadas durante todo o contexto histórico-nacional. Esse posicionamento vem “fortalecer
a identidade pessoal e coletiva presente” (GONÇALVES, 2007, p. 123) do grupo étnico.
Nesse sentido, a próxima sessão terá como caráter expor alguns exemplos dessas
negociações que são refletidas por meio dos discursos. As falas e as ações de ambos os
interessados se interagem e se moldam no contato.
3. “Eu vim com Deus/ E cheguei com Nossa Senhora/ Caxambu mixiriqueiro/ Está
chegando aqui agora”8: Na situação de cada dia, a reafirmação e a reconstrução das
fronteiras.
Durante os eventos articulados pelos programas de pesquisa e extensão da UFES, foi
notório a autodeclaração9 dos sujeitos étnicos como descendentes de negros escravizados e
praticantes do jongo/caxambu. A partir disso, tomam-se por debate os elementos atributivos
que esses indivíduos definem como fatores significativos fundamentais para se considerarem
pertencentes a esse grupo. Essa definição é construída diante daqueles que não pertencem a
7 Essa divulgação é realizada de várias formas, dentre elas: desde a presença dos sujeitos étnicos em um
determinado evento político até a criação de um ponto de jongo homenageando alguma figura política (o/a
prefeito/a da cidade ou o/a gerente de cultura). 8 PROGRAMA JONGOS E CAXAMBUS, 2013a. 9 A autoidentificação como descendentes de negros escravizados é afirmada pelos sujeitos durante vários
momentos das entrevistas e percebida nos processos sociais observados em campo. Refere-se isso às ações
desencadeadoras das memórias, das lembranças, dos rituais, das narrativas e das transmissões dos saberes e
fazeres nessa comunidade sobre a sua origem. Além disso, é válido afirmar que a auto identificação é um
direito garantido pela Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) promulgado na
Constituição Federal Brasileira sob decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004.
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1611
ele. Ademais, esses elementos são atribuídos levando em consideração suas representações
coletivas (BARTH, 2000).
Diante do exposto, Barth (2000) mostra que a noção de fronteiras étnicas compreende
um instrumento metodológico-conceitual para definição de um grupo social, e não de seu
conteúdo cultural demarcado por essa fronteira. Segundo esse autor, com base nos sistemas
sociais abrangentes fundados nas interdependências étnicas, a definição de um grupo,
enquanto auto atribuição encontra seu fundamento na sua forma de organização e
pertencimento étnico interno a cada grupo. Nas palavras de Barth (2000), a identidade étnica
é demarcada pelos “[...] sinais e signos [...] diacríticas que as pessoas buscam e exibem para
mostrar sua identidade" e pelas "[...] orientações valorativas básicas, ou seja, padrões de
moralidade e excelência pelos quais as performances são julgadas” (BARTH, 2000, p. 32).
Dessa maneira, esses limites invisíveis categorizam e mantêm as diferenças de cada
grupo, esses que sustentam sua estabilidade às suas categorias culturais. Reforço neste
momento que para Barth (2000) as fronteiras étnicas não são isoladas, nem tampouco recaem
no engessamento cultural. Elas interagem, se relacionam com outros grupos étnicos e
Este vocabulario y lenguaje ha conllevado a que se transformen los liderazgos al interior
de las comunidades indígenas y lleve hacia una cierta politización de sus organizaciones.
Entonces aparece un líder indígena dirigente o representante de las comunidades ante la sociedad
colombiana, en los escenarios político- legislativos conformados y controlados por el Estado.
Estos nuevos líderes, han logrado converger en espacios nacionales e internacionales,
estableciendo nuevas alianzas y documentándose de otras experiencias indígenas en el
continente; sin embargo estas nuevas formas de liderazgo, han desarrollado otros peligros, que
va en contra de las mismas luchas indígenas, por ejemplo, una mala comprensión del poder de
la representación, repitiendo prácticas clientelistas entre los líderes, partidos políticos y el
Estado; poca legitimidad de las comunidades locales que dicen representar, y divisiones,
corrupción y debilitamiento de las organizaciones indígenas. Así el líder indígena que para su
comunidad, en algunos casos también era el médico tradicional, o el capitán del gobierno propio,
termina convertido en el funcionario cooptado por el Estado.
Otra situación importante en los últimos años para las organizaciones indígenas en
Colombia es la apertura hacia la transformación de la mirada racista y peyorativa de la
sociedad colombiana sobre la identidad indígena. La emergencia del diálogo intercultural
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1649
sobre la diversidad y otros modos de desarrollo, de economías, de organización política, y
principalmente de visiones de mundo, ha cambiado en cierto sentido la mirada de la llamada
sociedad que en su mayoría hace parte de la Colombia urbana, frente al ser indígena.
Así los movimientos indígenas y las organizaciones configuraron en los últimos años
una manera de percibir y representar la cultura indígena en espacios configurados para la
sociedad “mayor” colombiana. Es la otra cara de la moneda que ha marcado el tránsito de
las comunidades y organizaciones en el mundo de la democracia participativa en el Estado
social de derecho neoliberal. Aquí es importante mencionar que las reivindicaciones del ser
indígena son logros de las propias organizaciones y comunidades en un mundo donde la
identidad y la etnicidad, tomaron relevancia. Sin embargo, esta reivindicación del ser
indígena también presenta tensiones y contradicciones entre el esencialismo y una verdadera
participación política. Por ejemplo los discursos alrededor del medio ambiente sobre el
indígena como cuidador de la naturaleza, y estandarte de la biodiversidad, cuando en la
práctica sus territorios están siendo concesionados por el Estado y las multinacionales5.
Los territorios de las comunidades indígenas, tienen que convivir con la guerra entre
los actores armados legales e ilegales y la presencia amenazante de empresas multinacionales
interesadas en bienes ambientales y recursos mineros. El asesinato de líderes y voceros
indígenas es una constante en la lucha por la defensa de su territorio. Frente a esta situación,
el Estado colombiano ha generado una serie de medidas jurídicas y políticas públicas para
mitigar los efectos del conflicto en las comunidades. Sin embargo, estas acciones no han sido
suficientes y permanece la crisis humanitaria para las comunidades indígenas.
El movimiento indígena a colombiano, al ser heterogéneo históricamente de alguna
forma sostiene sus formas de organización adoptando o más bien adaptándose a la propuesta
del modelo de la multiculturalidad, e invita a pensar el multiculturalismo como la posibilidad
de pensar un mundo donde quepan muchos mundos, entender no solamente el tipo de
estrategias que plantea el movimiento social indígena en el marco del derecho al territorio
colectivo, la autonomía política y cultural, y a su vez las lógicas de dominación y relaciones
de poder, en el marco de un Estado colombiano bipolar que orgullosamente se nombra
multiétnico y pluricultural a partir de la Constitución de 1991.
5 ULLOA, Astrid. (2004) El Nativo Ecológico: Movimientos indígenas y medio ambiente en Colombia.
Instituto Colombiano de Antropología e Historia (ICANH); Colciencias.
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1650
Referências
ARANGO, Raúl; SÁNCHEZ, Enrique. (2004). Los Pueblos indígenas de Colombia en el
umbral del nuevo milenio. Departamento Nacional de Planeación. Bogotá.
ARCHILA NEIRA, Mauricio. (2002). Colombia 1975-2000: de crisis en crisis. En 25
años de luchas sociales en Colombia. Bogotá: CINEP.
BORRERO, Camilo. (2010). “Derecho Humanos, multiculturalismo e interculturalidad”
In. Multiculturalismo, interculturalidad y derechos humanos. Universidad Libre,
Bogotá, p. 15.
COLOMBIA, República de. Constitución Política de Colombia, 1991. Asamblea
Nacional Constituyente.
GROS, Christian. (1991). Colombia indígena. Identidad cultural y cambio social. Bogotá:
Fondo Editorial CEREC.
JARAMILLO J, Efraín. (2011). Los indígenas colombianos y el Estado. Desafíos
ideológicos y políticos de la multiculturalidad. Colombia. Editorial: IWGIA.
LAURENT, Virgine. (2005). Comunidades indígenas, espacios políticos y movilización
electoral en Colombia, 1990-1998. Motivaciones, campos de acción e impactos. Bogotá,
Instituto Colombiano de Antropología e Historia e Instituto Francés de Estudios Andinos.
MOLIN Hernán; SANCHEZ Ernesto (Compiladores). (2010). Documentos para la historia
del movimiento indígena colombiano contemporáneo. Bogotá: Ministerio de Cultura.
QUIJANO: Aníbal. (2006). “Estado-nación y movimientos indígenas en la región andina:
cuestiones abiertas”. En Observatorio Social de América Latina. Año Vil n. 19. Enero-
abril de. Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales. Argentina, pp. 15-24.
VASCO URIBE, Luis. (2008). “Quintín Lame: Resistencia y liberación” En Revista
Tabula Rasa. Bogotá - Colombia, n. 9: julio-diciembre. p. 371-383.
ULLOA, Astrid. (2004). El Nativo Ecológico: Movimientos indígenas y medio ambiente
en Colombia. Instituto Colombiano de Antropología e Historia (ICANH); Colciencias.
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1651
DEMARCAÇÃO DE TERRAS QUILOMBOLAS: FUNDAMENTAÇÃO DAS
DECISÕES DOS JUÍZES DO ESPÍRITO SANTO
Natane Franciella de Oliveira UFES
Resumo: O trabalho que ora se apresenta visa analisar a sentença proferida no processo judicial que
busca a Anulação de Processo Administrativo promovido pelo INCRA, em que foi reconhecida a
titulação da propriedade à remanescentes de quilombos da comunidade de São Domingos. Busca-se
fazer uma breve análise da legislação concernente ao tema e da ADI 3.239/04 que tramita no STF há
11 anos e que não possui previsão para julgamento. Os elementos da decisão proferida pelo juiz de
instância foram analisados sobre o enfoque de Pierre Bourdieu, para o qual, o Direito constrói o
mundo social e também é por ele construído.
Palavras-chave: quilombolas; decisão judicial; campo jurídico.
Abstract: The work presented here aims to analyze the veridict announced in the judicial process that
look for the cancellation of the Administrative Procedure promoted by INCRA, which recognized the
property entitling to the quilombo holdovers of São Domingos community. Seeks to do a brief
legislation analysis concerning the theme and the ADI 3239/04 pending in the Brazilian Supreme Court
for 11 years that hasn´t prediction to trial. The elements from ruling by the trial judge were analyzed
using Pierre Bourdieu's approach, where the law constructs the social world and is also built for it.
Keywords: the quilombolas; judicial decision; legal field.
Introdução
A Constituição Federal de 1988 estabeleceu em seu art. 68 dos Atos das Disposições
Constitucionais transitórias que aos remanescentes das comunidades quilombolas, que
estejam ocupando suas terras, é reconhecido o Direito da propriedade definitiva, devendo o
Estado emitir-lhes os respectivos títulos. Com o advento da Constituição, ficou reconhecido
às comunidades tradicionais a propriedade coletiva de suas terras, surgindo um novo modelo
de propriedade com características próprias.
Como forma de regulamentar o artigo 68 da Constituição Federal, o Decreto
4.887/2003 trouxe os procedimentos para identificação, reconhecimento, delimitação,
demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos
quilombos, tratando-os como sujeitos coletivos de Direito e desprendendo-se da ideia do
senso comum de que o quilombo era somente esconderijo dos escravos fugitivos. O referido
Decreto traz importantes considerações sobre o Direito ao reconhecimento da propriedade
dessas comunidades, caracteriza os remanescentes de quilombos, os procedimentos para a
demarcação das terras e a propriedade que lhes é assegurada.
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1652
No entanto, apesar do inegável avanço no tratamento às comunidades negras rurais, o
Decreto 4.887/2003 é objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.239/2004, proposta pelo
antigo PFL e atual DEM, em que se questiona a forma escolhida para o conteúdo
(inconstitucionalidade formal), bem como a desapropriação prevista no art. 13 e o critério de
autoatribuição (inconstitucionalidade material). O julgamento se iniciou em 2012 com voto do
Ministro Cesar Peluso pela procedência da Ação, ocasião em que foi suspenso, e só retomado em
2015 com voto pela improcedência e constitucionalidade do Decreto pela Ministra Rosa Weber.
A ADI se prorroga no tempo e, passados mais de 10 anos da sua propositura, ainda
não houve decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a sua inconstitucionalidade. Teria
essa demora ao decidir significado e consequências no campo jurídico?
Enquanto aguarda julgamento da ADI, são propostas Ações na justiça ordinária que
visam o reconhecimento do direito à propriedade dos remanescentes das comunidades
quilombolas, proferindo o julgador uma decisão em que se leva em consideração a luta
simbólica entre as partes, resguardando ou não a possibilidade dessas comunidades de terem
o seu Direito reconhecido.
Busco aqui, em específico, além da análise dos aspectos ditos acima, a análise da
sentença proferida no processo de n. 2010.50.03.000484-7, em que os autores, intitulados
proprietários das terras que serão desapropriadas por pertencerem à comunidade quilombola
na região de São Domingos, buscam a Anulação do Processo Administrativo
54340.000581/2005-71 promovido pela INCRA, em que figuram também como pertences à
referida comunidade quilombola. Houve sentença de procedência da Ação, em que o
magistrado da primeira instância, fundamenta a racionalidade da sua decisão na
inconstitucionalidade do Decreto 4.887/2003.
A análise da construção da sentença no processo em questão é ponto de relevo no
presente trabalho, pois se observará quais os argumentos utilizados na decisão, além da
forma como a sentença é produzida num determinado campo de atuação.
1. As características singulares da propriedade quilombola
Inicialmente, quando falamos de quilombo, a primeira ideia que vem à mente é a de
escravos fugidos que se escondiam nesses lugares em razão da dominação e exploração a
que eram submetidos. Esse pensamento remete à história do Brasil à época em que ainda
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1653
havia escravidão, e que os negros, como forma de se manifestar contra o sistema vigente e
preservar a sua identidade étnica e sociocultural, organizavam-se em quilombos.
Em 1988, ano em que foi promulgada a Constituição Federal, houve um extenso debate
de movimentos sociais sobre assuntos que ficaram adormecidos durante o período autoritário.
O movimento negro foi um dos que mais se destacou promovendo um diálogo sobre o papel
do negro na construção histórica da sociedade brasileira, revisitou-se a época da escravidão e
o seu período pós-abolição, em que foram marginalizados e excluídos da nova sociedade
republicana que se formava. Esse movimento que abordava um conflito referente a questões
raciais e sociais do povo negro, participou do processo constituinte que resultou no art. 68 dos
Atos das Disposições Constitucionais Transitórias. Tal artigo prevê que
Art. 68 Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam
ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o
Estado emitir-lhes os respectivos títulos (Brasil, 1988, p. 123).
A Constituição Federal expôs um novo termo, qual seja “remanescente de quilombos”,
levantando a discussão acerca da sua significação. Para orientar na aplicação do dispositivo, a
Associação Brasileira de Antropologia divulgou, em 1994, por meio do Grupo de Trabalho sobre
Comunidades Negras Rurais, um documento referência sobre a conceituação do termo.
O termo “quilombo” tem assumido novos significados na literatura
especializada e também para indivíduos, grupos e organizações. Ainda que
tenha um conteúdo histórico, o mesmo vem sendo ressemantizado para
designar a situação presente dos segmentos negros em diferentes regiões e
contextos no Brasil. Definições têm sido elaboradas por organizações não
governamentais, entidades confessionais e organizações autônomas de
trabalhadores, bem como pelo próprio movimento negro [...].
Contemporaneamente, portanto, o termo não se refere a resíduos ou
resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou de comprovação
biológica. Também não se trata de grupos isolados ou de uma população
estritamente homogênea. Da mesma forma nem sempre foram constituídos
a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados, mas, sobretudo,
consistem em grupos que desenvolveram práticas de resistência na
manutenção e reprodução de seus modos de vidas característicos num
determinado lugar (Associação Brasileira de Antropologia, 1994, p. 81).
Em junho de 2002, o Brasil ratifica a Convenção 169 da OIT sobre povos indígenas
e tribais, que por meio do Decreto 5.051/04, garantiu ações coordenadas e sistemáticas para
assegurar os direitos desses povos. Ela estabelece que a consciência da identidade indígena
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1654
ou tribal será determinante para se aplicar a referida convenção1. Estabelece, também, que a
esses povos que devem possuir auto-determinação étnica, é assegurado o direito de
propriedade e de posse sobre as terras que ocupam tradicionalmente2.
Os critérios e direitos assegurados na Convenção 169 da OIT, foram tratados na
legislação nacional com maior abrangência e detalhamento no Decreto 4.887/2003 que
regulamenta o art. 68 do ADCT. O Decreto em comento trata dos procedimentos administrativos
para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação da propriedade
definitiva das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos. Em seu artigo
2º especifica que se “consideram remanescentes das comunidades de quilombos os grupos
étnico-raciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de
relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a
resistência à opressão histórica sofrida” (BRASIL, 2003, p. 1). Reforça-se, aqui, o critério de
autoatribuição já anteriormente previsto na Convenção 169 da OIT.
O Decreto 4.887/2003 traz características da propriedade quilombola que a diferem
de qualquer outra, isto porque os princípios que a regem são: a coletividade, inalienabilidade
e titularidade do território. A terra não pertence apenas a uma pessoa, mas sim a toda
comunidade que pode dela usufruir. Todos são sujeitos que buscam, coletivamente,
assegurar que suas características étnicos-culturais sejam mantidas e passadas para as
próximas gerações. Por ser um direito coletivo que busca a continuidade da comunidade, a
propriedade quilombola não possui fim comercial e não pode, dessa forma, ser alienada, ela
jamais pertencerá a alguém que não faça parte daquela comunidade. É necessário esclarecer
que o art. 173 do Decreto 4.887/03 informa que a titulação deverá ser registrada mediante
outorga de título coletivo e pró-indiviso às comunidades, com inserção das cláusulas de
inalienabilidade, imprescritibilidade e de impenhorabilidade.
Quanto à titulação, no parágrafo único desse artigo fica estabelecido que “as
comunidades serão representadas por suas associações legalmente constituídas” (BRASIL,
2003, p. 3). Assim, o título será registrado em nome da pessoa jurídica constituída denominada
Associação que irá representar coletivamente todos os membros da comunidade.
1 Art. 2º A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser tida como critério fundamental para
determinar os grupos aos quais se aplicam as disposições desta convenção (OIT, 1989, p. 2). 2 Art. 14 Dever-se-á, com isso, reconhecer aos povos interessados os direitos de propriedade e de posse sobre
as terras que tradicionalmente ocupam (OIT, 1989, p. 4). 3 A titulação prevista neste Decreto será reconhecida e registrada mediante outorga de título coletivo e pró-
indiviso às comunidades a que se refere o art. 2º, caput, com obrigatória inserção de cláusula de
inalienabilidade, imprescritibilidade e de impenhorabilidade (BRASIL, 2003, p. 3).
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1655
Esse Decreto trouxe efetivos avanços na concretização do direito constitucionalmente
previsto de demarcação e titulação de terras quilombolas, tendo o INCRA (órgão responsável
pelo processo de titulação) até a presente data, emitido 154 títulos, regularizando
1.007.827,8730 hectares em benefício de 127 territórios, 217 comunidades e 13.145 famílias
quilombola4. Ocorre que, apesar dos avanços trazidos e dos processos de titulação, o decreto
4.887/03 tem discutida a sua constitucionalidade por meio da ADI 3.239/2004 em razão de
supostos vícios formais e materiais presentes. A ADI foi proposta há mais de uma década e de
lá para cá apenas dois Ministros proferiram os seus votos.
2. Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.239/2004 e sua perpetuação no tempo
Em 25 de agosto de 2004 foi proposto pelo Partido da Frente Liberal – atual DEM –
Ação Direta de Inconstitucionalidade face ao Decreto 4.887/03. É alegado a
inconstitucionalidade formal do Decreto que por lei secundária necessitaria de uma lei prévia
que lhe conferisse validade. Além disso, questiona-se a desapropriação citada por não estar
no rol trazido na constituição Federal, e o critério de autoatribuição utilizado para considerar
determinada comunidade como remanescentes de quilombo.
Passados oito anos da propositura da ADI, em 18 de abril de 2012 o relator Cesar
Peluso, em julgamento iniciado votou pela procedência da Ação, alegando padecer de
diversas inconstitucionalidades. Para o relator, possuía inconstitucionalidade formal, uma
vez que somente por lei poderia regulamentar o art. 68 da ADCT. Além disso, aduz ser
materialmente inconstitucional ao permitir que os próprios remanescentes de quilombos
indiquem a extensão de suas terras, bem como o estabelecimento de uma nova forma de
desapropriação, que a seu ver se faz desnecessária, já que, a propriedade é concedida pela
própria Constituição. Informa também que a titulação coletiva é inconstitucional por ser a
previsão na Carta Magna de somente propriedade individual.
Verifica-se no voto do Ministro uma visão estritamente legalista, sem fazer
intercâmbio com outras áreas do conhecimento, que há muito se dedicam ao estudo do
assunto, como a sociologia, a antropologia e a ciência política. No seu voto é possível
perceber uma barreira à compreensão de que outras formas de propriedade e organização
social são possíveis, além daquela estabelecida pelo senso comum.
4 Informação retirada do site <http://www.incra.gov.br/quilombola>.
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1656
O julgamento foi suspenso a pedido da Ministra Rosa Weber e retomado somente em
25 de março de 2015. Seu voto foi contrário ao relator, pela improcedência da ADI e
constitucionalidade do Decreto 4.887/03. Em seu voto, além de abordar juridicamente o
assunto, a Ministra Rosa Weber fez uma análise histórica e antropológica sobre a importância
das comunidades tradicionais na construção da nossa identidade, destacando que a titulação
das terras das comunidades remanescentes de quilombo é um Direito Fundamental
autoaplicável. Destaca também a validade do critério de autoatribuição informando que
“ignorar o autorreconhecimento significaria descumprir o princípio da Dignidade Humana”.
Abaixo, transcrevo trechos do voto proferida pela Ministra Rosa Weber:
Em qualquer hipótese, é obrigação do Estado agir positivamente para
alcançar o resultado pretendido pela Constituição, ora por medidas
legislativas, ora por políticas e programas implementados pelo Executivo,
desde que apropriados e bem direcionados.
[...] Disponíveis à atuação integradora tão-somente os aspectos do art. 68 do
ADCT que dizem com a regulação do comportamento do Estado na
implementação do comando constitucional, não identifico invasão de esfera
reservada à lei nem concluo, por conseguinte, pela violação, pelo Poder
Executivo, do art. 84 da Carta Política ao editar o Decreto 4.887/2003.
[...] Ao assegurar aos remanescentes das comunidades quilombolas a posse
das terras por eles ocupadas desde tempos coloniais ou imperiais, a
Constituição brasileira reconhece-os como unidades dotadas de identidade
étnico-cultural distintiva.
[...] Nesse contexto, a eleição do critério da autoatribuição não é arbitrário,
tampouco desfundamentado ou viciado. Além de consistir em método
autorizado pela antropologia contemporânea, estampa uma opção de
política pública legitimada pela Carta da República, na medida em que visa
à interrupção do processo de negação sistemática da própria identidade aos
grupos marginalizados, este uma injustiça em si mesmo.
[...] Recusar a autoidentificação implica converter a comunidade remanescente
do quilombo em gueto, substituindo-se a lógica do reconhecimento pela lógica
da segregação (Brasil, 2015, pg. 19, 20, 32, 33 e 36).
Verifica-se que a decisão da Ministra trabalha com outros ramos do saber. Além do
jurídico, ela faz uma contextualização histórica, demonstra a dívida que o Estado tem com a
população negra rural, não apenas pelos anos de escravidão, mas também pelo período pós-
abolição em que não foram sujeitos de nenhuma política social de integração, o que contribui
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1657
ainda hoje para o contexto de desigualdade. A autoatribição aparece em seu discurso,
associado ao sentimento de pertença e à identidade coletiva.
O voto da Ministra Rosa Weber foi o último proferido no processo que aguarda hoje
a manifestação do ministro Dias Toffoli após pedido de vista.
O processo em referência engloba uma questão complexa e possui diversas entidades
ingressantes como amicus curiae, que manifestaram-se pela improcedência da ADI, já que
a inconstitucionalidade do Decreto seria um regresso na busca pela igualdade e amparo
dessas comunidades tradicionais, colocando-os mais uma vez em condição de invisibilidade
perante a ordem jurídica e social.
É certo que um processo de tamanha importância e complexidade proporcione debates na
sociedade, sendo os mesmos necessários para a construção da decisão que irá afetar uma parcela
específica da população. Ocorre que a ADI 3.239 já tramita no Supremo Tribunal Federal há mais
de onze anos, e não há previsão para o seu julgamento. Essa demora para finalizar o julgamento
de uma questão com tamanha importância possui diversos significados. Primeiramente é
necessário falar que a demora para julgamento pode se dar pela quantidade de trabalho no âmbito
do Supremo Tribunal Federal, no entanto, essa justificativa não parece razoável, já que tramita há
mais de uma década e possui manifestação apenas de dois ministros.
Pode-se falar também no significado que esta demora traz. A prorrogação desse
processo no tempo apenas demonstra que o assunto em questão não carece de decisão rápida
por tocar em um assunto tão caro como o Direito de propriedade. Bourdieu acredita que o
tempo possui um papel decisivo e que o ato inicial que estabelece uma comunicação carrega
em si questionamentos
O ato inaugural que institui a comunicação (ao dirigir a palavra, ao oferecer
um dom, ao fazer um convite ou lançar um desafio etc.) tem sempre algo
de intrusão ou até de questionamento [...]; além disso, ele sempre contém,
queiramos ou não, a potencialidade de um constrangimento, de uma
obrigação (Bourdieu, 1996, p. 5).
Ele acrescenta ainda que após instaurado o ato inicial, pode-se optar por não
responder à interpelação, ao convite ou desafio, ou por não responder de imediato, por adiar,
por deixar na expectativa. No caso da ADI o ato inicial é a propositura da ação que questiona
a constitucionalidade do Decreto 4.887/03 que ainda não se tem a resposta, o seu julgamento
é adiado por pedidos de vistas, criando uma expectativa em relação ao seu resultado final.
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1658
Por outro lado, para Bourdieu (1996, p. 4), uma resposta imediata seria praticamente
uma ingratidão, uma vontade de livrar-se daqueles questionamentos. O STF, ao dar uma
resposta imediata, poderia deixar de analisar questões e debates das audiências públicas e
manifestações dos diversos amicus curiae no processo, demonstrando que o que importa
unicamente é desobrigar-se. A resposta imediata, dado de pronto, poderia não ser suficiente
para abordar todo a complexidade da questão.
No entanto, o tempo exacerbado para a sua resposta vai além da construção de uma
decisão participada, carrega em si também uma resposta
Ocorre que a não-resposta é ainda uma resposta e que ninguém se livra
com facilidade do questionamento inicial, que age como uma espécie de
fatum, de destino: sem dúvida, o sentido da resposta positiva, réplica,
contradom, objeção, é inequívoco como afirmação de reconhecimento da
igualdade em honra (isotimia), que pode ser considerada como o ponto de
partida de uma longa série de trocas; ao contrário, a ausência de resposta é
essencialmente ambígua e pode sempre ser interpretada, por quem tomou
a iniciativa da troca ou por terceiros, como uma recusa a responder e uma
espécie de gesto de desprezo, ou como uma evasiva provocada pela
impotência ou covardia, que lança na desonra (Bourdieu, 1996, p. 4).
O STF, ao longo dos onze anos em que tramita a ADI, construiu debates sólidos
suficientes para uma tomada de decisão. A sua não-resposta apenas demonstra o excesso de
cuidado ao tratar do tema, pois coloca-se em discussão o Direito de propriedade de
remanescentes de comunidades quilombolas, a propriedade coletiva, baseada no
componente étnico-cultural e ao sentimento de pertencimento ao grupo, e por outro, o Direito
de propriedade de grandes empresas e ruralistas. Parte das terras que pertencem às
comunidades quilombolas são hoje de propriedade de fazendeiros ou mesmo de empresas
que exploram o agronegócio na região.
A ausência de decisão pela Corte é significativa não apenas aos estritamente interessados,
mas também para terceiros. Quando a resposta for proferida, caso tenha reconhecida a
inconstitucionalidade do Decreto, obrigará todos os tribunais do país nos processos em andamento
a segui-la, além de impossibilitar a propositura de novos Processos Administrativos para
demarcação e titulação de terras da população negra rural. Entretanto, enquanto o STF não se
pronuncia sobre a questão, os juízes de primeira instância que atuam nos processos de demarcação
decidem segundo a sua própria racionalidade. Não há, assim, unanimidade sobre o assunto.
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1659
A falta de resposta carrega, em si, o temor do Supremo Tribunal Federal em decidir sobre
assunto tão controverso e que poderá afetar camadas de poder tão distintas da sociedade.
3. A construção da sentença na Ação Anulatória de Processo Administrativo para
titulação das terras da comunidade remanescente quilombola de São Domingos -
Processo nº 2010.50.03.000484-7
Em 03 de agosto de 2010 foi proposta Ação de anulação de processo administrativo
na Justiça Federal da Comarca de São Mateus, tendo como partes camponeses pequenos
proprietários de terras e o INCRA, no pólo ativo e passivo, respectivamente. A ação visava
a anulação do processo administrativo 54340.000581/2005-71 promovido pelo INCRA, em
que os autores figuravam como pertencentes aos remanescentes quilombolas da Comunidade
de São Domingos, bem como figuravam, também, na lista de proprietários de terras a serem
desapropriados em favor da Associação.
A parte autora, por meio da advogada constituída alega que o processo deve ser
anulado, tendo em vista o cerceamento no direito de defesa, já que, nas suas palavras, são
pessoas com “pouca cultura e conhecimento”, e não souberam responder ao que lhe era
perguntado na época em que se desenvolvia o procedimento administrativo, e nem mesmo
possuíam conhecimento do conteúdo da notificação da sua inclusão como remanescentes
quilombolas. Questiona, ainda, o critério de autoatribuição e a constitucionalidade do
Decreto 4.887/03, citando inclusive, a pendência da ADI 3239/04. Já o INCRA atesta pela
legalidade do procedimento administrativo, informa e comprova por meio de documentos
que todos os requisitos foram seguidos.
Em 20 de agosto de 2014 foi publicada a sentença em que o magistrado declarou a
inconstitucionalidade do Decreto 4.887/2003, com a procedência do pedido formulado na inicial
para anular o Processo Administrativo 5430.000581/2005-71. Na sentença, inicialmente, o juiz
faz um breve relato do que foi alegado pelas partes, fundamenta o seu ato decisório, e encerra
com o dispositivo, como preceitua o art. 5485 do Código de Processo Civil.
Na fundamentação ele faz uma breve análise das legislações do direito à propriedade
pelos remanescentes de quilombos. Cita, para fundamentar o seu ato, a decisão proferida
5 Art. 458. São requisitos essenciais da sentença:
I - o relatório, que conterá os nomes das partes, a suma do pedido e da resposta do réu, bem como o registro
das principais ocorrências havidas no andamento do processo;
II - os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito;
III - o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões, que as partes lhe submeterem.
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1660
pelo Ministro Cesar Peluso na ADIN 3239/04 em que votou pela inconstitucionalidade do
Decreto, e também a decisão proferida pelo próprio Tribunal Regional da 2ª Região, em que
menciona a decisão do Ministro como indicativa de inconstitucionalidade da referida norma.
Após contextualizado o processo acima, necessário se faz analisar os componentes
presentes na decisão. Para tanto, é preciso esclarecer que, conforme ensina Bourdieu (1989,
p. 209) em o Poder Simbólico, o Direito não é um sistema fechado e autônomo capaz de
fundamentar a si mesmo, ao contrário, é impossível separá-lo da realidade social.
O campo jurídico é um espaço social constituído por peculiaridades próprias, em que há uma
hierarquia pela qual os vários agentes disputam internamente ao próprio campo. Para Bourdieu
Campo jurídico é o monopólio do direito de dizer o direito, quer dizer, a
boa distribuição ou a boa ordem, na qual se defrontam agentes investidos
de competência ao mesmo tempo social e técnica que consiste
essencialmente na capacidade reconhecida de interpretar (de maneira mais
ou menos livre ou autorizada) um corpus de textos que consagram a visão
legítima, justa, do mundo social (BOURDIEU, 1989, p. 212).
O autor ressalta, ainda, que os operadores do direito estão inseridos num corpo
hierarquizado de instâncias que são aptos de resolver os conflitos entre os intérpretes e as
interpretações. No processo judicial, verifica-se a existência de forças conflitantes, o autor e
Réu, no caso, pequenos proprietários que buscam a Anulação do Procedimento
Administrativo, e o INCRA que busca afirmar a sua validade.
O magistrado de primeira instância não pode desconsiderar as duas forças antagônicas
inseridas numa realidade social e que disputam pela decisão que irá atender o seu interesse.
Ao decidir, ele deve levar em consideração um corpo hierarquizado de instâncias, qual seja, o
Tribunal de 2ª Instância, que por meio dos desembargadores, podem reformar a sua decisão e
criar sua própria jurisprudência. Acima dos Tribunais de Segunda Instância, há os tribunais
especiais: STJ e STF. O STJ e STF guardam os assuntos mais caros do ordenamento jurídico,
trabalhando com a legalidade e constitucionalidade de determinado ato normativo.
Para a presente discussão da demarcação e titulação de terras quilombolas, o STF
possui papel de relevo, pois a sua decisão irá nortear todas as outras decisões de órgãos
hierarquicamente inferiores. Hoje, apesar de ainda não se ter uma decisão sobre a questão,
os votos proferidos pelos ministros Cesar Peluso e Rosa Weber podem orientar os julgadores
ao decidir as causas sobre o assunto. Foi o que ocorreu no caso, o juiz, ao construir sua
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1661
decisão cita como forma de embasar o seu posicionamento, o voto do ministro Cesar Peluso,
utilizando dos mesmos argumentos para decidir pela anulação do processo administrativo.
O referido Decreto 4887/2003 é objeto da Ação Direta de
Inconstitucionalidade nº 3239/DF, pendente de julgamento no Supremo
Tribunal Federal, cujo relator era o então Ministro César Peluso, que antes
de se aposentar proferiu seu voto naqueles autos pela inconstitucionalidade
[...]. Nesse sentido, em seu voto proferido em abril/2012, o então Ministro
Relator Cesar Peluso pontua que o dispositivo de transição (art. 68 -
ADCT) guarda hipótese afeita à usucapião, não havendo que se cogitar
inovadora modalidade de desapropriação. [...] Embora ainda não tenha sido
definitivamente julgada a ADI 3239 pelo Supremo Tribunal Federal, o voto
acima mencionado apresenta-se como referencial válido para orientar
julgamentos a respeito da matéria quilombola, conforme, inclusive,
assentou o Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Pelo exposto, declaro
a inconstitucionalidade do Decreto 4887/2003 e julgo procedente o pedido
formulado na inicial para anular o processo administrativo
54340.000581/2005-71 (São Mateus, 2014, p. 7, 10, 13).
Bourdieu (1989, p. 220) traz considerações sobre a decisão dos juízes de instância.
Para ele, os juízes ordinários e outros práticos, mais atentos às aplicações que dele podem ser
feitas, orientam-se para uma espécie de casuística das situações concretas e opõem, aos
tratados teóricos do direito puro, instrumentos de trabalho adaptados às exigências e à urgência
da prática, repertórios de jurisprudência, formulários de atos e dicionários de direito.
Ele também afirma que o Direito é um importante instrumento para manutenção da
ordem social e econômica e que os textos jurídicos são muitas vezes elásticos e
indeterminados, possibilitando que o intérprete possa atribuir diversas significações. Os
juízes seguem parte do que está previsto no sistema jurídico, mas também acabam por
inventar sua racionalidade decisória, “ficando sempre uma parte de arbítrio, imputável às
variáveis organizacionais como a composição do grupo de decisão ou os atributos dos que
estão sujeitos a uma jurisdição, nas decisões judiciais” (Bourdieu, 1989, p 223).
Nesse sentido, a decisão judicial é o resultado de uma luta simbólica, uma vez que
cabem aos profissionais do direito utilizar dos mecanismos necessários para que ao final
obtenham êxito na sua demanda. A advogada da parte autora utilizou de diversos recursos
jurídicos, como a linguagem, destacando sempre que eles eram “pessoas humildes”, “sem
cultura” e de “pouco conhecimento”, e não sabiam o conteúdo do Processo Administrativo.
Por outro lado, a parte Ré tentou demonstrar por meio de documentos e relatórios que o
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1662
Procedimento Administrativo se pautou na legalidade, conferindo à comunidade de São
Domingos a Titularidade de suas terras.
A sentença proferida é vista, levando em conta essa luta simbólica, como resultado
de uma relação de forças, ela resolve os conflitos publicando a solução encontrada, pertence
de tal forma à classe de atos de nomeação ou de instituição, ou seja, “atos mágicos que são
bem sucedidos porque estão a altura de se fazerem reconhecer universalmente, portanto, de
conseguir que ninguém possa recusar ou ignorar o ponto de vista, a visão, que eles impõem”
(BOURDIEU, 1989, p. 237).
A sentença como ato de nomeação visa encerrar o processo, vincula as partes e
terceiros àquela decisão e cria uma nova verdade sobre a questão. É a palavra autorizada
pelo Estado que o tem monopólio de dizer o direito. Bourdieu (1989, p. 237) acrescenta que
os veredictos visam por um termo à luta, ou pelo menos um limite acerca de todo o trabalho
prático de worldmaking. A sentença, caso a parte Ré não apresentasse recurso, encerraria a
discussão sobre a questão nesse processo e os seus efeitos recairiam sobre as partes e também
sobre os remanescentes de comunidades quilombolas da comunidade de São Domingos, que
não mais teriam o seu direito à titulação da propriedade reconhecido, já que o processo
Administrativo foi declarado nulo.
Ademais, Bourdieu (1989, p. 209) ainda ressalta que a decisão judicial não se
fundamenta apenas no direito, como acreditava Hans Kelsen, com a finalidade de disciplinar
todos os fatos sociais que tenham relevância para manutenção de um sistema político-
jurídico. Ao contrário, é impossível dissociá-lo da realidade e das pressões sociais, bem
como das convicções pessoais, ao habitus6 de classe, ou seja, o contexto social no qual o
julgador cresceu e se encontra inserido.
Ao proferir o seu veredicto, o julgador leva em consideração todos esses
condicionantes: as normas jurídicas, pressões e seu contexto social. Por meio da linguagem
da universalidade e neutralidade aliado à formalidade do processo, o julgador visa ocultar os
6 Andrés García INDA (in BOURDIEU, 2001, p. 25) comenta sobre a definição de Habitus: “Bourdieu define
los habitus del seguiente modo: “las estructuras que son constitutivas de un tipo particular de entorno (v.g. las
condiciones materiales de existencia de un tipo particular de condición de clase) y que pueden ser asidas
empíricamente bajo la forma de regularidades asociadas a un entorno socialmente estructurado, producen
habitus, sistemas de disposiciones duraderas, estructuras estructuradas predispuestas a funcionar como
estructuras estructurantes, es decir, en tanto que principio de generación y de estructuración de prácticas y
representaciones que pueden ser objetivamente ‘reguladas’ y ‘regulares’ sin ser em nada el producto de
obediencia a reglas, objetivamente adaptadas a su finalidad sin suponer la mirada consciente de los fines e la
maestría expresa de las operaciones necesarias para alcanzar-las y, siendo todo eso, colectivamente orquestadas
sin ser el producto de la acción organizadora de um jefe de orquesta”.
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1663
seus pré-conceitos e sua visão de mundo, tenta demonstrar que sua decisão se deu de forma
imparcial, pautada unicamente na legalidade.
Assim, é verdadeiro afirmar que “O direito é uma forma por excelência do discurso
atuante, capaz, por sua própria força, de produzir efeitos. Não é demais dizer que ele faz o mundo
social, mas com a condição de se não esquecer que ele é feito por este” (BOUDIEU, 1989, p. 237).
Conclusão
Nesse trabalho procurei analisar a decisão proferida no processo judicial, em que a
questão principal gira em torno da anulação de Processo Administrativo que reconheceu o direito
à titulação da propriedade dos remanescentes de quilombos da comunidade de São Domingos.
Para isso, analisei brevemente as legislações que tratam sobre o tema, ganhando destaque
o art. 68 do Atos das Disposições Constitucionais Transitórias e o Decreto 4.887/03 que o
regulamenta. O referido Decreto é objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.232/04, que
questiona a sua legalidade formal e material. A ADI tramita há mais de onze anos no Supremo
Tribunal Federal e apenas dois ministros se manifestaram sobre a questão: Cesar Peludo, voto
favorável à inconstitucionalidade do Decreto e Rosa Weber, que votou de forma contrária.
Conforme analisado acima, a demora para uma decisão final da ADI também é
significativa, uma vez que a decisão irá afetar camadas de poder distintas da sociedade, de
um lado os proprietários e empresas que trabalham com o agronegócio, e do outro,
remanescentes de comunidade quilombolas. Sempre há um cuidado especial ao tratar do
direito de propriedade. A não resposta, como afirma Bourdieu, acaba por significar uma
resposta perante as partes e terceiros.
Enquanto o STF não se pronuncia sobre a questão, os juízes de instância têm
liberdade para proferir a sua própria decisão. No processo analisado de n.
2010.50.03.000484-7 que tramita na Comarca de São Mateus, a parte autora buscava
anulação de Processo Administrativo promovido pelo INCRA.
O juiz, ao proferir sua decisão pelo Inconstitucionalidade do Decreto, trabalha com
o monopólio do Direito pertencente ao Estado, observa camadas de hierarquia e fundamenta
a sua racionalidade no voto proferido pelo Ministro César Peluso. À época da decisão, a
Ministra Rosa Weber ainda não havia proferido seu voto pela constitucionalidade do
Decreto. Será que, de alguma forma, ele poderia ter contribuído para um veredicto diverso?
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1664
Certo é que o magistrado ao decidir não fundamenta apenas no ordenamento jurídico, apesar
de assim tentar demonstrar, por meio da linguagem universal e impessoal. Ele se baseia
também em pressões sociais e no contexto em qual foi criado, como família, escola,
faculdade, e o contexto ao qual atualmente está inserido.
Referências
Associação Brasileira de Antropologia. Documento do Grupo de Trabalho sobre
Comunidade Negras Rurais. 1994, p. 81. Disponível em <http://www.abant.org.br/
conteudo/005COMISSOESGTS/quilombos/DocQuilombosABA_1a.pdf>. Acesso em 2 de
setembro de 2015
BOURDIEU, Pierre. Marginalia. Algumas notas adicionais sobre o dom. v. 2, n. 2 Rio de
Janeiro, 1996.
BOURDIEU, Pierre. O Poder simbólico. Rio de Janeiro, 1989.
BRASIL. Congresso Nacional. Constituição da República Federativa do Brasil de
1988. Brasília. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em 28 de agosto de 2015.
OIT. Convenção n. 169. Convenção no 169 da OIT sobre povos indígenas e tribais.