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Grande sertão: veredas: o sertão como símbolo do inconsciente Tradutor (italiano/português) para o IEA- USP. Professor de língua italiana.“Tese di Laurea” defendida na “Università di Roma La Sapienza”, intitulada: “João Guimarães Rosa: O Homem do Sertão”. Enrico Lippolis GUIMARÃES ROSA
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Grande sertão: veredas: o sertão como símbolo do inconsciente

Feb 19, 2023

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Grande sertão: veredas: o sertão como símbolo do inconsciente

Tradutor (italiano/português) para o IEA-USP. Professor de língua italiana.“Tese di Laurea” defendida na “Università di Roma La Sapienza”, intitulada: “João Guimarães Rosa: O Homem do Sertão”.

Enrico Lippolis

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A interpretação do sertão como símbolo do inconsciente e da vereda como símbolo da cons-ciência, em Grande sertão: veredas, foi formulada por Paulo Rónai sob a direta orientação de João Guimarães Rosa:

O sertão acaba sendo caos ilimitado de que só uma parte ínfima nos é dado conhecer, precisamente a que se avista ao longo das veredas, tênues canais de penetração e comunicação. Assim, o sinal -:- entre os dois elementos do título teria valor adversativo, es-tabelecendo a oposição entre a imensa realidade ina-brangível e suas mínimas parcelas acessíveis.[...] E também, segundo me confirmou certa vez o próprio Autor, entre o inconsciente e o consciente (RónAi, 1978, p. 156).

Mais uma vez foi Candido (1956) o primeiro a intuir a simbologia da vereda, quando afirma que no sertão “o narrador busca as veredas da verdade”.

Seguindo o mesmo caminho, Oliveira (1970, p. 442) pondera: “Que será, pois, sertão? Símbolo de toda a região escura, sua realidade não é só geográ-fica ou ecológica, e sim, psicológica. Sua consistência, existencial. [...] Grande sertão é o inconsciente”. E é assim que o próprio Riobaldo apontará a vereda como

RESUMOA interpretação do sertão como símbolo do inconsciente, e da vereda como símbolo da consciência em Grande Ser-tão: Veredas foi formulada inicialmente por Paulo Rónai num ensaio da coletânea Encontros com o Brasil, de 1958. Partindo da definição junguiana de inconsciente como o ignoto do mundo interior, o romance nesse prisma se desvela e estrutura como rede sutil de comunicação (e conflito) entre polaridades: vida e morte, Bem e Mal, mundo interior e realidade social, norma interior e norma coletiva, consciente e inconsciente. O itinerário de Riobaldo pode ser lido como uma busca de conciliação entre opostos, e o pacto com o diabo como a opção pelo poder em detrimento do amor. Monólogo do Homem, do Brasil e do Mundo, o debate ético desencadeado pelo protagonista se torna escolha entre a vida e a morte, com repercussões que envolvem tanto o destino individual quanto o coletivo.

PalavRaS-chavEGrande sertão: veredas; Consciência; Inconsciente; Amor e poder; Guimarães Rosa.

aBSTRacTThe interpretation of sertão as a symbol of unconsciousness, and of veredas as a symbol of conscience in the Grande Sertão: Veredas was initially proposed by Paulo Rónai in an essay published in the collection Encontros com o Brasil- 1958. Starting from Jungian definition of unconscious as the unknown of the inner world, the novel from this point of view reveals and structures itself as a thin network of communication (and conflict) between polarities: life and death, Good and Evil, inner world and social reality, inner law and collective law, conscience and unconscious. The path of Riobaldo can be read as a research of conciliation of opposites, and the agreement with devil as the choice for power, to the detriment of love. Monologue of Man, of Brazil and World, the ethic debate stirred up from the protagonist becomes choice between life and death, with consequences that reflect both individual and collective destiny.

KEywORdSGrande sertão: veredas; Conscience; Unconscious; Love and power; Guimarães Rosa.

dimensão do saber, e o sertão como dimensão do ig-noto, ao declarar ao senhor da cidade: “Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas – e só essas poucas veredas, veredazinhas”. Para Jung o inconsciente é “o ignoto do mundo inte-rior” (JUNG, 2005, p. 20). E, na obra de Rosa, o ignoto concerne tanto o mundo interior do homem, quanto toda a Criação, como mistério que tudo envolve. Mas, as repercussões mais imediatas deste mistério cós-mico são interiores: “Sertão: é dentro da gente”. Se-gundo essa leitura, o grande sertão e seus habitantes invisíveis, Deus e o diabo, correspondem a realidades interiores da alma do homem, como Rosa sugeria na entrevista a Lorenz (1994): “O sertão é a alma de seus homens”, como confirma o próprio Riobaldo (“O dia-bo vige dentro do homem”), e a que alude Candido (1994, p. 89), assinalando uma dimensão psicológica do pacto: “O pacto com o demônio representa as cau-dalosas águas turvas da personalidade”.

A minha hipótese é que Riobaldo vendeu de fato o coração e a alma ao diabo: a um diabo chamado am-bição. Nessa troca pagou um alto preço, sacrificando os sentimentos mais genuínos da sua alma; e então sua existência toda (HERáCLITO , 1991, Fr. 85)1.

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Em Grande sertão o diabo como personificação do Mal tem características diversas, mas todas con-fluem na destruição do homem e de seus valores: o diabo separa, confunde, promete fama e sucesso. Rio-baldo não se sente senhor das suas ações: de fato é o diabo no fim que as inspira e comanda, e é ele então o verdadeiro protagonista do romance. Protagonista que não tem rosto nem voz, mas que se manifesta na conduta das personagens, nas suas dúvidas e lacera-ções; na escolha do mal. O diabo habita a confusão, simbolizada pelo “redemunho”: a cultura folclórica o imagina sentado no meio de um redemoinho, que é seu meio de locomoção. E diabo é também, etimologi-camente, o que separa: o pacto ameaça a integridade e a inteireza do narrador. Trata-se de uma ameaça que, no romance, se torna condenação definitiva a uma morte em vida. Os dons que o diabo oferece não po-dem ser senão efêmeros, se a contrapartida é o dilace-ramento interior e a perda do amor. No fim, Riobaldo consegue, através do pacto, eliminar seu antagonista e ganhar a guerra entre jagunços. Mas, como observa justamente Galvão (apud COUTINHO, 1983, p. 421),

[...] o diabo cumpre o prometido da maneira mais dolorosa e mais inesperada para aquele que lhe ven-deu a alma: Riobaldo acaba com Hermógenes, mas no mesmo ato Diadorim morre. Afinal, foi Riobaldo o instrumento da morte de Diadorim: ele conduziu-o para a morte. [...] Daí a culpa que menciona desde o início da narração: culpa de ter vendido a alma ao Diabo e assim ter levado o amigo à morte.

Riobaldo nunca admite sua culpa e sua responsa-bilidade em termos tão claros; tenta negar a existência do diabo e consequentemente a efetiva realização do pacto; e tende a culpar o destino pela morte do com-panheiro. Porém a sua responsabilidade é evidente, principalmente porque em um momento crucial da narração, Diadorim lhe oferecera a possibilidade de uma mudança de rumo: “Menos vou, também, punin-do por meu pai Joca Ramiro, que é meu dever, do que por rumo de servir a você, Riobaldo, no querer e cum-prir”. Esta declaração de Diadorim é de importância fundamental: em muitas ocasiões de fato Riobaldo tem a tentação de subtrair-se ao destino de jagunço. Quando porém Diadorim lhe revela a sua devoção, maior que o desejo de vingar a morte do pai, Riobal-do já está possuído pela perspectiva da glória pelas armas, e não dá ouvido às palavras do amigo. Além disso em Grande sertão o diálogo entre os dois per-sonagens se fecha toda vez que ameaça versar sobre a natureza do sentimento que os envolve, pelo medo por parte do Riobaldo de enfrentar o ignoto, ou seja o seu profundo sentimento de amor por outro homem: que é medo também de enfrentar a censura do gru-

po em relação ao homossexualismo. Quem, como ele, insiste em afirmar a sua individualidade e a sua dis-tância dos sentimentos do bando, depois sufoca seus sentimentos mais genuínos em nome do respeito às normas sociais. E dá lugar deste modo a um insanável dilaceramento interior e à perda irreversível da sua identidade. O conflito entre indivíduo e sociedade é colocado por Jung (2005, p. 297) nesses termos: “Mas tornar-se-á neurótico quem quiser fazer as duas coisas ao mesmo tempo: seguir sua meta individual e adap-tar-se à coletividade”.

Se, antes do pacto, Riobaldo afirmava: “Eu gos-tava tanto de Diadorim, tinha um escrúpulo – queria que ele permanecesse longe de toda confusão e peri-gos” - a partir do pacto estes escrúpulos são silencia-dos, e no fim Diadorim é deixado morrer. Riobaldo vende a alma ao diabo para tornar-se um chefe, para adquirir fama de comandante vitorioso eliminando seus inimigos, e então para entrar na restrita roda dos detentores do poder (OLIVEIRA, 1970, p. 432; BOLLE, 2000, p. 13). O diabo então é também sím-bolo da sedução do poder, entendido como domi-nação do homem sobre o homem.

O que caracteriza o narrador é uma tendência à desresponsabilização: torna-se mais fácil, mesmo que totalmente inútil, culpar o destino, o diabo ou Hermó-genes pelo mal que o aflige: “Quem que diz que na vida tudo se escolhe? Eu estava ali era feito um escravo de morte, sem querer meu. Tem um ponto de marca, que dele não se pode mais voltar para trás. Tudo tinha me torcido para um rumo só”. Culpar o destino pode ser um modo de projetar inconscientemente no mundo externo, problemas de ordem interna. É um modo de afastar responsabilidades que não fornece um alívio real, porque se torna condenação na ordem do ab-soluto e aguça as fragmentações interiores. Amiúde, como Riobaldo, atribuímos males e negatividade a um objeto externo carregando-o de conteúdos que pertencem à nossa pessoal zona de sombra. Um pro-cesso parecido era definido por Jung “projeção da sombra”, causa de muita dor no mundo e no conví-vio entre os homens. Causa das guerras. Nesse con-texto o diabo é a personificação da sombra. A sombra coletiva gera as guerras, manifestações da violência coletiva; não é casual que Hermógenes seja chamado por Riobaldo de “caramujo de sombra”. Em varias ocasiões ele sugere uma analogia ou um parentesco que o ligaria ao Hermógenes, o qual “estava deitado ali, em mim encostado – era feito fosse eu mesmo”. E Riobaldo, fazendo um pacto com o diabo, emula e se equipara ao seu adversário, também pactário. Leite (1979), seguido por Meneses (2002), nos convida a ler este romance como uma sessão psicanalítica.

Se Riobaldo se confrontasse com a percepção de

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Hermógenes como parte de si mesmo, ou como pro-jeção inconsciente da sua sombra pessoal, seu destino provavelmente teria sido diferente, porque haveria de se defrontar com a sua própria disposição ao mal, e as-sim fazer uma escolha ética consciente. Ele certamente é uma personagem literária, mas o seu papel de “pa-ciente” da vida é imagem que fala sobre o profundo de cada um de nós. Talvez Riobaldo nos ensine, como anti-mestre, que não vale a pena matar inimigos se, com isso, se põe em risco o amor da própria alma. A ambição e o poder são desumanizantes e constituem a sombra diabólica de Riobaldo. Antes de tornar-se o Urutu-branco, ele vive na indecisão e se deixa ar-rastar pelos acontecimentos, apesar do horror que a violência lhe desperta (mas não se deixa conduzir por este horror para tomar nova direção); uma vez pactário, não terá mais dúvidas mas se deixará con-duzir por impulsos sombrios e fatais à sua realização de ser humano. A essa altura, admite, quem manda-va em mim, já eram os meus avessos. E a Riobaldo na velhice não restará que a reza para a salvação da sua alma, praticando uma religiosidade defensiva e exorcística que não o abre ao mistério de si mesmo e da vida, mas se explicita como mero ritual apo-tropáico. Nessa luta entre Bem e Mal, que tem como palco o mundo inteiro em todas as épocas, reside a palpitante autenticidade do mundo rosiano, e sua ressonância em nível universal.

Afirma Riobaldo: “As coisas que acontecem, é porque já estavam ficadas prontas, noutro ar”. Mas este “outro ar” é dimensão preclusa ao homem. Ao ser humano resta a habitabilidade precária e mi-noritária de veredas de sentido e de liberdade, no meio de um mare magnum de inconsciência: “Mas liberdade – aposto – ainda é só alegria de um pobre caminhozinho, no dentro do ferro de grandes pri-sões. Tem uma verdade que se carece de aprender, do encoberto, e que ninguém não ensina: o beco para a liberdade se fazer”. Esses pobres caminho-zinhos são as veredas da verdade que o indivíduo pode encontrar e habitar no meio do caos e da des-truição: como, no sertão geográfico, as veredas são oásis habitáveis em meio ao deserto, assim o ho-mem deve descobrir no seu mundo interno e ex-terno o seu locus amoenus, espaço de sentido e de afetividade realizada. A vereda é o que se opõe à ameaça do desequilíbrio e da falta de direção: é o nicho de liberdade no meio de um universo poten-cialmente perigoso. Nesses termos a vereda não é somente “consciência”, mas a implica e a transcen-de; nas palavras de Gambini (2005): “Nós temos dentro de nós um olho d’água que não seca”.

É a inconsciência que domina Riobaldo nas en-cruzilhadas da existência, isto é, nos momentos em

que precisa optar entre soluções diferentes; e a en-cruzilhada da escolha é onde aparece o demo, em forma de dúvida, hesitação ou impulso decisivo. Como por exemplo no momento em que ele assume a chefia: “Não era de propósito; só disse, Quem é que é o Chefe? - eu era quem menos sabia – porque o Chefe já era eu”.

Riobaldo geralmente se deixa levar por aconte-cimentos externos e se deixa arrastar por forças des-conhecidas internas. Ele é menos protagonista que espectador passivo da sua vida. Propõe-se a con-templar as leis que regulam a conduta humana: “Eu queria decifrar as coisas que são importantes. [...] Queria entender do medo e da coragem, e da gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder. O que induz a gente para más ações estra-nhas [...]”, para em seguida admitir sua impotência perante o ignoto: “A gente vive não é caminhando de costas?” nesta pergunta está condensado todo o seu desespero, sua incapacidade de visão, sua falta de equilíbrio. E a fragilidade existencial do ser hu-mano em geral.

O homem pode se abrir a situações e sentimen-tos novos, e “caminhar de frente”, desde que tenha a coragem de desafiar o moralismo coletivo. Riobal-do afirma: O mais importante e bonito, do mundo, é que as pessoas não estão sempre iguais – elas vão sempre mudando. Mas se deixa vencer pelo medo do novo, e prevalece nele o terror de errar, pela in-capacidade de decifrar o signo das forças em jogo. É sempre difícil reconhecer o signo das forças do inconsciente, e a variabilidade dos fatores psíqui-cos gera incertezas, como Jung (1999, p. 49-54) sabia muito bem:

As forças psíquicas não têm uma direção única e muitas vezes até se dirigem umas contra as outras. [...] Freqüentemente é difícil, ou mesmo impossí-vel, perceber a corrente fundamental e, com isto, a direção certa: colisões, conflitos e enganos são inevitáveis. [...] O consciente vê-se isolado num mundo de fatores psíquicos. [...].

A direção certa a que se refere Jung consis-te na aderência àquilo que verdadeiramente nos pertence e àquilo que verdadeiramente somos. É a consciência que deve procurar uma mediação com essas forças: sem esse diálogo o inconsciente domi-na a consciência, em vez de alimentá-la. O diálogo com o inconsciente é também o único modo para ampliar a consciência. E nisso consiste o objetivo declarado de narrador, o seu desejo de saber. Mas como estabelecer uma conexão com o inconscien-te? Essa é uma das questões de Riobaldo:

Rebulir com o sertão, como dono? Mas o sertão era

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para, aos poucos e poucos, se ir obedecendo a ele; não era para à força se compor. Todos que malmon-tam no sertão só alcançam de reger em rédea por uns trechos; que sorrateiro o sertão vai virando tigre debaixo da sela.

Se se interpreta a palavra “sertão” como incons-ciente, observo nesta frase uma perigosa dupla de ter-mos: “dono” e “obedecendo”. Creio que não se deva obedecer cegamente ao inconsciente, nem negá-lo, nem tentar domá-lo (e neste último caso Riobaldo me dá razão). Em todos esses casos o risco é de sermos dominados por ele, e de cairmos em poder da sua face ora benéfica ora maléfica. Mais profícuo é que o ego se coloque à disposição do inconsciente de olhos abertos. Do inconsciente pode advir a inspiração poética ou a vontade autodestrutiva. Cada um de nós deve achar o “modo” deste diálogo, para evitar quer o monólo-go de uma falsa consciência, quer o monólogo de um inconsciente desconexo. Para não sermos unilaterais, e bidimensionais. Ainda na tentativa de comprovar a validade da interpretação do sertão como inconscien-te, quero comparar agora outras duas observações do Riobaldo: "Ou ele [o sertão] ajuda, com enorme poder, ou é traiçoeiro muito desastroso. [...] Sertão nao é ma-lino nem caridoso... ele tira ou dá, ou agrada ou amar-ga, ao senhor, conforme o senhor mesmo".

Se a primeira frase sublinha como o inconscien-te pode ser benéfico (como no caso da inspiração) ou maléfico (como no caso das psicoses), a segunda frase afirma que tudo depende da atitude consciente pe-rante o inconsciente. As duas frases dizem o que mais de um século de experiência psicanalítica confirma. Estou convencido de que o inconsciente seja sempre “caridoso”, quando a consciência faz a sua parte e se dispõe ao diálogo com ele: assim interpreto a expres-são “conforme o senhor mesmo”; tudo depende do tipo de atitude consciente. Também estou convencido de que exista uma tendência das forças psíquicas a alcançar o equilíbrio. Isso é evidente por exemplo na função compensatória assumida por alguns sonhos e fantasias. Roberto Gambini2 explica que Jung concebe a psique como um sistema auto-regulatório.

O inconsciente é regido por uma espécie de dire-triz teleológica que tem como fim a realização de si. E creio que também a sua face diabólica seja um modo de provocar uma resposta e um diálogo por parte do ego: isto é, uma reação. No fim o “diabo” também po-deria ter uma função positiva neste âmbito. O diabo imaginado por Rosa em Grande sertão, porém, nun-ca é positivo. No romance a sua positividade relativa é mencionada somente uma vez: na hipótese de que Deus o use para combater o mal com o mal, assim como Joca Ramiro se serve de um sombrio Hermóge-

nes como lugar-tenente, e assim como o próprio Rio-baldo faz o pacto para poder eliminar outro pactário. Mas de modo geral o diabo rosiano é o Mal absoluto, "inimigo de Deus e do homem", como o escritor afir-mou na entrevista a Lorenz (1994).

Ainda Riobaldo: "Em seguir, sem eu nem saber, o roteiro de Deus nas serras dos Gerais...". O encontro com Diadorim seguiu um roteiro divino. Mas a opção pelo poder, e a morte de Diadorim em conseqüência disso, seguiram um roteiro demoníaco.

Nunes (1994, p. 133), inspirando-se nos estudos de Jung, associa “Sofia” a Dona Rosalina, personagem de a estória de lélio e lina (corpo de Baile): "na escala da simbologia amorosa em que devemos situá-la, Rosalina merece o lugar de Sofia, Sapientia, última etapa da cultura de Eros". E sobre Diadorim, Nunes (1998, p. 34) escreve: "Natureza: Diadorim ensina Rio-baldo a vê-la".

Nunes (1998) baseia esta última afirmação nas declarações de Riobaldo: "Mas eu gostava de Diado-rim para poder saber que esses Gerais são formosos.[...]. Quem me ensinou a apreciar essas belezas sem dono foi Diadorim". Se dona Rosalina representa a sabedoria no percurso de Lélio, poder-se-ia dizer que Diadorim assume o papel de Sofia na vida de Riobal-do. E também, a partir do pacto com o diabo, o papel de “voz da consciência” do narrador-protagonista, criticando-lhe os arbítrios. Em termos junguianos, nesse romance o ego seria representado por Riobaldo, a sombra seria associada ao Hermógenes, e a alma a Diadorim. E para acessar a alma, antes de mais nada é necessário encarar e reconhecer os próprios diabos interiores, isto é a sombra, porque quem é dominado pela sombra perde a conexão com a sua própria alma. Não é casual que, depois do pacto, Riobaldo afirme ter parado de sonhar: isto é, ele perde a conexão com o seu inconsciente. Ele pára de sonhar e perde de vista Diadorim, porque perdeu o contato com os conteúdos mais nobres da sua alma.

A história deste "espírito atormentado", como Rosa define Riobaldo (em carta ao tradutor francês J. J. Villard, 21 nov. 1962), é a de um homem que se deixa vencer pelo medo: medo do poder diabólico, medo de ser homossexual, medo de errar. Mas, desta forma, por causa de um monólogo que, por medo, nunca se torna diálogo autentico, nem consigo mesmo nem com Dia-dorim, Riobaldo se deixa seduzir pela quimera diabó-lica e efêmera do poder; e permanece entre os limites da aceitação e das regras sociais, perdendo assim o amor da sua vida. Em Grande sertão: veredas a sede de poder, o desejo de vingança e a conveniência ma-tam o amor. Eis a atitude prevalente de Riobaldo em relação a Diadorim: "Ia, por paz de honra e temência, sacar esquecimento daquilo de mim" – condenando-se

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assim a uma morte em vida, e a uma saudade insaná-vel, em nome de um falso senso de honra e da obser-vância a normas sociais e religiosas. A Riobaldo falta a coragem de trilhar um caminho contra as regras da coletividade, que o obrigaria ao isolamento e à falta de pontos de referência habituais. E ele sabe disso, e indi-retamente o confirma: "Homem com homem, de mãos dadas, só se a valentia deles for enorme". É difícil ter esta valentia, e na maioria das vezes prevalece o medo de viver, e de enfrentar o ignoto contra tudo e todos em nome dos sentimentos da própria alma. Riobaldo procura negar o seu sentimento por Diadorim, porque estigmatizado pela sociedade; isso também é vender-se: não ao diabo mas a um seu parente próximo, que se chama aceitação social. Jung (2005, p. 285) se dedicou intensamente a esses problemas e nos deixou a respei-to reflexões fundamentais:

Nada pode poupar-nos do tormento da decisão ética. Mas por mais rude que isto possa parecer, é necessá-rio, em certas circunstancias, ter a liberdade de evitar o que é reconhecido como moralmente bom, e fazer o que é estigmatizado como mal, se a decisão ética o exigir [...]. O individuo, porém, é, em regra geral, de tal modo inconsciente, que não percebe suas possibi-lidades de decisão; por isso procura ansiosamente as regras e as leis exteriores às quais possa ater-se nos momentos de perplexidade.

“Consciência” é também aceitar o fato que o ser humano tem direito ao erro: para usar uma expressão do filosofo Luigi Pareyson, “è meglio il male libero che il bene imposto” (PAREySOn , 1995). Mas o homem sempre corre o perigo de sacrificar seus sentimentos profundos no altar do moralismo de grupo. Obedecer a um bem imposto não é certamente sinal de consci-ência nem de responsabilidade, mas uma forma de se entregar a uma condição infantil e passiva perante os acontecimentos. É a escolha de um caminho já traçado por outros, e por isso mais tranqüilizador, e também menos corajoso. O ideal da E eu infalibilidade, por outro lado, é ilusória promessa diabólica e pretensão que está na origem da violência; e torna-se por certo falibilidade. Já observei como Riobaldo vive constan-temente no terror de errar, correndo o risco de cair na inação. E surge mais um problema: o mal do Riobaldo não é um mal livre, mas um mal imposto por forças inerentes à sua personalidade inconsciente. Ele não questiona o lado diabólico do seu mundo interior em procura de respostas. E, estabelecer um diálogo hones-to com o diabo, isto é, se examinar verdadeiramente e corajosamente, lhe permitiria libertar-se do seu es-tado de opressão interior e abrir-se ao diálogo com Diadorim. Prevalece porém esta atitude: "Eu tinha de gostar tramadamente assim, de Diadorim, e calar

qualquer palavra". Em termos junguianos, entre a persona ou máscara social e a anima, Riobaldo esco-lhe a persona, traindo assim seus sentimentos mais profundos e sua identidade essencial. A traição do próprio sentimento de amor é o incêndio e a disso-lução do oásis-vereda existencial. nas palavras de Gambini (comunicação pessoal): "L’hybris di Rio-baldo consiste nel disprezzare Eros".

Em Grande sertão se opera uma trágica e final ruptura entre homem e Deus, entre Riobaldo e Eros. Aterrorizado pela possibilidade de ser homossexual, ele expõe Diadorim ao perigo e o perde. Riobaldo nega a sua alma em nome da persona e da sombra. No seu caso vender a alma ao diabo significa ter pri-vilegiado o poder, perdendo assim a humanidade. Quem evita esse corajoso reconhecimento, e ignora ou nega a existência efetiva do diabo como mal inte-rior, cai inexoravelmente nas mãos dele. E Riobaldo sabe disso: A gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo.

Candido (1991, p. 90) escreve: "viver é muito pe-rigoso – repete Riobaldo a cada passo; não só pelos acidentes da vida, mas pelas dificuldades em saber como vivê-la". No fim Riobaldo se demonstra incapaz de vivê-la, por falta de uma direção interior e pela au-sência de uma consciência que sempre implica uma escolha de valores. A deliberação consciente lhe per-mitiria não ser espectador passivo da sua existência antes de fazer o pacto com o diabo, e não ser o carrasco de si mesmo em conseqüência do pacto.

Se o sertão interior não pode ser domado, assim como não é possível cavalgar um tigre, ao homem resta a esperança de saber decifrar sua linguagem, de achar um sentido para a experiência, e de saber identificar as misteriosas forças em ação: achar o ru-mozinho forte das coisas, caminho do que houve e do que não houve.

A ética, mais do que a ontologia, é a maior preo-cupação de Riobaldo, como Candido (1971, p. 88) con-firma: "O intuito fundamental é o angustiado debate sobre a conduta e os valores que a escoltam". E que esse debate permeia a obra de Rosa como um todo, o atesta Oliveira (1970, p. 84):

O ideal que informa a arte de Guimarães Rosa é o do homem harmonioso. Ele sabia que o ser humano não se desenvolve por igual, nele ficando sempre amplas áreas de sombra a serem iluminadas. De onde a perversidade, o crime, - os seres incomple-tos, que povoam a sua ficção. [Ele] acreditava na salvação do homem, através do aperfeiçoamento da consciência individual. Poderia repetir, como Goethe: “de que me serve fabricar um bom ferro se o meu interior está cheio de escória?” Rosa acre-ditava na eficácia da vida ética (grifos nossos).

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Essa é a luta entre o bem e o mal, entre a luz e a sombra, que envolve Riobaldo assim como cada um de nós. A expressão “seres incompletos” me pa-rece extremamente apropriada: a trágica grandeza de Grande sertão nasce de um desejo de plenitude, de clareza, de completude, que no fim é sempre ne-gado e dolorosamente frustrado. É essa a frustração que Proença (1958, p. 14) descobre até na etimologia do nome dessa personagem: “Riobaldo: Rio-baldo”. Somos finitos e temos saudade do infinito que nos ori-ginou, e cujo símbolo encerra o romance. Aspiramos a uma harmonia superior vivendo na imperfeição. Mas nessa tensão dolorosa e nessa saudade radical reside também toda a beleza, vitalidade e poesia dos seres humanos. É saudade humana de uma pátria espiritu-al, ou de uma vereda interior em que possamos reco-nhecer-nos e em que possamos nomear as coisas. Não podemos realizar a perfeição nesta vida, mas a tensão em direção ao infinito é ao mesmo tempo dolorosa e vital. E é o anseio de Riobaldo: "Eu queria poder sair para terras que não sei, aonde não houvesse sufocação em incerteza. [...] A gente quer Céu é porque quer um fim: mas um fim com depois dele a gente tudo vendo". Essa é a saudade frustrada de Riobaldo. Como escreve Arrigucci (1994, p. 29), porém,

cada vez mais, Riobaldo se desgarrará da origem e do absoluto a que aspira; por isso, cada vez mais será [...] o homem desterrado de sua verdadeira pátria, errante numa travessia solitária, sem retorno possí-vel – homem moderno, descentrado e sem volta a uma verdadeira casa, que já não pode existir.

De fato assistimos a um processo de gradual de-sumanizacão do protagonista que se torna trágico em-blema da fragmentação interior do homem moderno.

O verdadeiro problema de Riobaldo não é tanto o fato de ter dúvidas, mas a maneira como as resolve: o pacto significa que ele deixará prevalecer dentro de si a crueldade sobre a compaixão, a sede de glória so-bre o desejo de fugir da guerra com Diadorim. Riobal-do parece oscilar entre dois objetivos profundamente diversos: "Eu queria ser era eu mesmo / Eu queria ser mais do que eu".

Se a primeira frase revela o objetivo do homem harmonioso, a segunda é proferida por Riobaldo no momento em que faz o pacto com o diabo. A primei-ra frase é filosoficamente associada ao conceito de “verdadeiro si mesmo”: este é um ideal de identidade essencial e de completude que o homem mira desde séculos, começando pelo atman dos Upanishad e che-gando ao Self de Jung. A propósito de outra afirmação parecida do Riobaldo, "eu somente queria era – ficar sendo", Rosa forneceu esta explicação ao seu tradu-tor alemão: "Cada um de nós ainda não é o que 'é',

tem de esforçar-se por chegar a ser" (BUSSOLOT -Ti , 2003, p. 258).

Querer ser mais do que si próprio, por outro lado, é claramente uma ilusão diabólica, e uma hybris. Escolhendo este objetivo, Riobaldo sofre sua grande derrota: a morte de Diadorim. A sua segunda derrota é ter se casado com Otacília. Como sublinha Aguiar (2001, p. 75): "O encontro de Otacília foi para Riobaldo uma neutralização do pânico provocado pela desco-berta do amor por Diadorim".

E a terceira derrota é a de não ter conseguido admitir claramente suas culpas e então se perdoar. (Perdoar-se só é possível somente após uma admissão consciente da culpa). nestes casos, nem a religião pode ajudar muito. E, no caso do Riobaldo, no fim a religião, como eu já referi, é vivida exclusivamente como exor-cismo, espécie de rito mágico para proteger-se do so-frimento e do mal com suas personificações.

Riobaldo, mesmo admitindo que existem muitas coisas importantes que não têm nome, sofre também de ânsia de onisciência, que é uma forma de hybris. Se, ao invés de se questionar sobre as razões do so-frimento do mundo e de colocar enigmas insolúveis, ele tivesse começado por uma reflexão sobre o seu sofrimento e os caminhos dos seus sentimentos, e ti-vesse conversado sobre isso com Diadorim enquanto era tempo, Riobaldo teria podido descobrir que Dia-dorim era mulher, ou teria podido se confrontar com o seu homossexualismo. Em todo caso, se colocaria na condição de fazer uma livre escolha. Ainda nas palavras de Jung (1999, p. 62): "A deliberação ética só existe onde o conflito é consciente em todos os seus aspectos". Também o desejo de onisciência impede ao Riobaldo de viver sua vida e seu amor, porque o afasta de seus problemas reais.

Candido (1995, p. 172) escreve: "Riobaldo seria um instrumento de forças que o transcendem". Se o bem e o mal são forças inerentes à natureza humana, amiúde inconscientes, a consciência deve sempre fa-zer uma opção, e assumir na maioria dos casos uma função de filtro seletivo. O diálogo entre consciência e inconsciente é necessário para o enriquecimento da consciência; e é a única esperança que temos de não sermos tragados pelo inconsciente. A propósito da ne-cessidade desse “diálogo interior”, um dos nomes do diabo elencados por Riobaldo é “O Solto-Eu”. Colocar em conexão e comunicação as partes “soltas” e desa-tadas que compõem a nossa personalidade é extrema-mente árduo, também porque implica uma distancia tanto necessária quanto improvável: "Sei o grande ser-tão? Sertão: quem sabe dele é urubu, gavião, gaivota, esses pássaros, apalpando ares com pendurado pé, com o olhar remedindo a alegria e as misérias todas". É a visão do alto que alcançam somente homens fora

p. 73-81.

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do comum, mas que é objetivo de muitos. E é através do coração que o homem pode librar-se nesse vôo contemplativo em busca dos valores da vida. Assim Diadorim ensina ao Riobaldo: "Não sabe que quem é mesmo inteirado valente, no coração, esse também não pode deixar de ser bom?" O adjetivo “inteirado” é muito importante, porque remete ao ideal de integra-ção, inteireza e integridade da personalidade. A ima-gem do coração reaparece em outra importantíssima assertiva do protagonista:

Ah, um recanto tem, miúdos remansos, aonde o demônio não consegue espaço de entrar, então, em meus grandes palácios. no coração da gente. Meu sertão, meu regozijo! Que isto era o que a vozinha dizia: - Tento, cautela, toma tento, Riobaldo: que o diabo fincou pé de governar tua decisão!

É a voz do coração, que se opõe ao predomínio diabólico sobre a vontade e personalidade de Riobal-do. O regozijo é a conseqüência palpável da eliminação do conflito. O coração aqui se torna função unificadora da personalidade, vereda e locus amoenus incorruptí-veis e inalienáveis, imunes às fragmentações e feridas causadas pela luta entre forças opostas. Outra confir-mação vem do Riobaldo: "Meu coração é que entende, ajuda minha idéia a requerer e traçar". Por que Rio-baldo nunca interpela seu coração para dirimir suas dúvidas? Por que não permanece fiel a essas suas palavras? Por que não se volta para seu coração nos momentos cruciais (nas encruzilhadas) da vida? Con-tudo ele sabe e comunica ao ilustre interlocutor que o coração tem uma função de orientação e representa a diretriz mestra para a conduta individual; sabe en-tão que o coração é a chave de acesso àquela “norma” interior a que tanto aspira. De fato é essa a visão de Riobaldo sobre o papel do homem no mundo, e sobre a dificuldade de individuar este papel:

O que há é uma certa coisa – uma só, diversa para cada um – que Deus está esperando que esse faça.[...] Só o que eu quis, todo o tempo, o que eu pelejei para achar, era uma só coisa – a inteira – [...]. A que era: que existe uma receita, a norma dum caminho certo, estreito, de cada uma pessoa viver, mas a gen-te mesmo, no comum, não sabe encontrar.

“A inteira”: assim Riobaldo se refere a esta nor-ma, orientação interior e essencial que é associada ao ideal de integridade e inteireza: visão existencial de um indivíduo não interiormente dividido, como a eti-mologia da palavra “indivíduo” indica. É essa norma a “direção certa” a que Jung antes se referia.

Diz ainda Riobaldo: Mas, esse norteado, tem. Tem que ter. Se não, a vida de todos ficava sendo sempre o confuso dessa doi-

deira que é. [...] Com Deus existindo, tudo dá espe-rança: o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, a vida é burra. É todos contra os acasos. Tendo Deus, [...] no fim dá certo.

Deus então é garantia de equilíbrio e esperan-ça de solução dos conflitos no mundo e na vida do homem. Segundo a concepção do narrador, cada ser humano é originariamente destinado a um papel es-pecifico no mundo, e é portador de uma lei interior de conduta individual. Mas Riobaldo desconhece esse papel, ou o descobre quando já é demasiado tar-de. O homem é parte de um desígnio transcendente, e tem que descobrir e reconhecer em si mesmo a sua colocação harmônica no universo. Mas este desenho-desígnio, que “tem que ter” para compensar o lado destrutivo do cosmos, é um enigma de difícil decifra-ção. Isso faz de Grande sertão: veredas um clássico universal: todos nós somos potencialmente Riobal-do e podemos nos reconhecer nele: porque cada um de nós se apóia sobre verdades parciais e é presa de preocupações e conflitos que constituem seus limi-tes. Existe uma norma individual que o homem deve conscientemente seguir para tornar-se parte integran-te e funcional do universo, e que é o signo do divi-no no homem: mas é difícil identificar os sinais e o sentido do próprio caminho individual como parte de uma totalidade, e acessar a norma interior que trans-cende a mutabilidade dos acontecimentos. A totalida-de é visão fugaz raramente intuível, no seu desenho, para quem a vive de dentro como “parte”. À parte é negado ou parcialmente negado o todo, exceto para poucos homens iluminados.

O ego de Riobaldo é cego: "O real não está na saída nem na chegada, ele se dispõe para a gente é no meio da travessia. [...] Eu atravesso as coisas – e no meio da travessia não vejo". Se a realidade se dispõe no meio da travessia, Riobaldo não a vê; e nesse espa-ço intermédio também se encontraria Deus: "Traves-sia, Deus no meio". Riobaldo então não vê a realidade e não vê Deus. A dúvida de Riobaldo sobre a efetiva existência do diabo, contém no fundo a dúvida sobre a efetiva existência de Deus. Isto também faz de Ri-obaldo um nosso irmão. E ele ao menos tenta enxer-E ele ao menos tenta enxer-gar, e tenta fazê-lo desesperadamente. Prado Jr. (1968, p. 10), analisando o comportamento inconsciente de Riobaldo, observa que por parte do narrador de Grande sertão se verifica a tentativa de reconciliação com um si mesmo que se perdera na inconsciência e com o qual perdera todo contacto no mais profundo de sua própria identidade.

Riobaldo procura o sentido da vida: "Que o que gasta, vai gastando o diabo dentro da gente, aos pou-quinhos, é o razoável sofrer. E a alegria de amor".

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“Razoável” quando se descobre o sentido da dor. Mas nenhum filósofo nos deu até hoje uma explica-ção deveras convincente sobre a origem do mal e do sofrimento (RICOEUR , 1988).

Há sofrimentos que não conseguimos explicar. Temos então de admitir também uma ausência de sentido nesta realidade, e uma coexistência de senti-do e de falta de sentido. Isto dificulta mais ainda a tarefa de quem se propõe de achar um sentido para a própria vida. Não é por acaso que o adjetivo razoá-vel tenha sido colocado por Rosa somente a partir da terceira edição do livro, como se tratasse de uma re-flexão e discriminação posteriores (SPERBER , 1982, p. 79). Os cavalos que morriam "não entendiam a dor também", assim como nós permanecemos atônitos perante a dor e o mal.

Em Grande sertão “tudo é misturado”, e o uni-verso revela uma face ora benéfica ora maléfica e po-tencialmente diabólica, tornando-se complexo jogo de espelhos sob o signo da contradição permanente: a ambigüidade e a perplexidade impregnam todos os níveis da realidade, e impedem uma comunicação duradoura entre as criaturas. O sentimento de comu-nhão entre o homem e o mundo é sempre acenado mas nunca estavelmente realizado. Rosa afirma a Lo-renz (1994): "O sertão é o terreno [...] onde o interior e o exterior não podem ser separados". Mas o sertão, que aqui potencialmente é o espaço da conciliação e da totalidade, no desfecho desse romance se corrom-pe em pântano, “vereda morta” de água estagnante e da ambigüidade irresolvida. Veredas Mortas é também o primeiro título que foi dado ao livro, e é o nome do lugar onde Riobaldo faz o pacto, enveredando assim pela morte e tendo que renunciar a uma vida plena-mente vivida.

Grande sertão: veredas é a luta de uma consciên-cia para emergir, e o homem é teatro de um conflito entre forças transcendentes, opostas e sem fisionomia nítida. A tentativa de emersão por parte da consciên-A tentativa de emersão por parte da consciên-cia no fim naufraga: prevalece o sentimento de cisão, de incompletude e de inconsciência. Mesmo que a vida não seja “entendível”, a esperança é que o ser hu-mano defenda, cultive e amplie as veredas de sentido que atravessam o seu sertão interior; que nunca fuja daquela tensão entre os opostos, que é a vida; e que nunca desista da busca de um equilíbrio, individual e coletivo, que seria o resultado da cooperação entre o consciente e o inconsciente (JUNG, 2005, p. 290).

Nas palavras de Oliveira (1970, p. 435): Grande sertão é um monólogo do Brasil inteiro: Brasil que ainda não conseguiu decidir-se entre o Bem e o Mal – impotente para encontrar o seu destino. Prisionei-ro de perplexidades. Enleado na impotência. Grande sertão é um monólogo do mundo inteiro.

REfERênciaS

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1 Lutar contra o coração é difícil pois se paga com a alma. Agradeço Adélia Bezerra de Meneses por essa indicação.

2 Trabalho inédito.

p. 73-81.