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Os Tempos de Freud
[GONDAR, JOSAIDA DE OLIVEIRA. Tese de Doutoramento apresentada
ao Departamento de Psicologia da PUC-Rio, 1993.]
CAPITULO IV
ESTRUTURA E TEMPO:
REVERSIBILIDADE X IRREVERSIBILIDADE
Enfoquemos; agora o problema da orientao temporal que o
nachtrglich pe em jogo,
propondo uma articulao no sucessiva da trade
passado-presente-futuro. Vimos j que Freud rompe
com uma concepo do tipo linar-escoativo, onde o presente convoca
o futuro e responde ao passado,
numa relao regular e contnua entre o antes e o depois. Freud nos
prope, diversamente, uma
modalidade temporal retrospectiva, onde o sentido do passado
dado a partir do presente. Mas isto
significaria dizer que ele inverte a orientao da flecha do
tempo? Ou, perguntando de uma outra
maneira: Freud estaria admitindo, com a hiptese de um
determinismo a posteriori, um tempo
reversvel?
Segundo a nossa intuio mais ntima do tempo, este passa como um
fluxo irreversvel, trazendo
mudanas qualitativas que distinguem um momento presente de um
anterior. A idia de que o tempo s
caminha para a frente, no podendo retornar ao antes, nos parece
de uma extrema obviedade. Mas o que
bvio para a intuio nem sempre o para a filosofia ou para a
cincia. Esta ltima trabalha, em reas
diversas, com a idia da reversibilidade do tempo. Ela no afirma,
evidentemente, que o tempo anda para
trs; o que ela admite a possibilidade de realizar operaes nas
quais indiferente a orientao
progressiva ou, regressiva do tempo. Quando a cincia calcula a
posio da lua em sua rbita, por
exemplo, ela se vale de uma lei fsica que, embora considere o
tempo, despreza a sua orientao: a
mesma lei utilizada para calcular a posio da lua no ms que
passou ou no ms que est por vir; no
h, neste caso, qualquer direo temporal privilegiada ou qualquer
distino essencial entre passado,
presente e futuro.
Poderamos ento definir a questo ela reversibilidade e da
irreversibilidade, temporal da
seguinte forma: o tempo chamado reversvel quando se postula uma
simetria entre o antes e o depois,
tornando-se indiferente orientao temporal progressiva ou
regressiva. A irreversibilidade do tempo
supe, ao contrrio, que o antes e o depois so assimtricos: os
fenmenos exibem um sentido temporal
determinado , no ocorrendo a reverso a uma dada configurao
inicial. Retomemos agora a pergunta a
propsito da orientao temporal do nachtrglich estaramos diante de
um tempo reversvel ou
irreversvel?
1. O inconsciente como estrutura
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Existem autores que defendem a primeira hiptese. O nachtrglich
expressaria a possibilidade de
uma reverso temporal: sua orientao se daria em sentido
invertido, dirigindo-se do presente ao passado
- o que pressuporia a reversibilidade do tempo.
Para tanto utilizam o seguinte argumento: se o inconsciente
posto como uma estrutura, seu
modo de articulao se far segundo o modelo espacial
necessariamente reversvel. O que est cai jogo
numa estrutura a lei de organizao que define determinadas posies
e o modo como se articulam.
Essas posies so ocupadas por determinados elementos que podem
variar no tempo; entretanto a lei
que define as posies permanece a mesma. Nesse sentido, qualquer
estrutura deve ser compreendida
como intemporal, ainda que ela instaure um tempo medida que se
atualiza ou se encarna em
determinados elementos. Mas mesmo este tempo deve ser
compreendido segundo o modelo do espao:
trata-se, na verdade, de um locus temporal, de um tempo
espacializado, produzido por relaes que
supem uma variao reversvel entre os elementos que ocupam as
posies. Por conseguinte, torna-se
desprezvel a direo tomada pelo sendo de natureza relacional,
seus ~intervalos podem orientar-se para
frente ou para trs, desde que a lei de organizao seja mantida.
Em suma, a estrutura indiferente
existncia de uma progresso ou de uma retroao temporal: o tempo
reversvel.
Decorrem deste raciocnio afirmaes como a de Chaim, Katz, por
exemplo, que critica, no
pensamento psicanaltico, a valorizao de
um aparelho psquico com processos homogneos e equilibrados, o
que por isto
tem que ter uma nica direo de tempo, sempre recorrente,
nachtrglich, a postoriori.
Assim, no haveria futuro nem presente na estrutura psquica
sempre dada, s o passado
de sua organizao equilibrada, onde ela se fundaria, e que
garantiria a razo-a-vir como
nica medida adequada. Tempo sem intensidade e direo, tempo
espacializado,
equilibrado para sempre, e garantido (ou fundamentado) no plano
lgico pelo princpio
de razo suficiente (...) Sabemos que, desde a teorizao de
Leibniz o princpio de razo
suficiente diz que existe uma equivalncia regular e homognea
entre causa e efeito.1
Chaim se refere ao princpio de razo suficiente tal como foi
retomado por Prigogine e Stengers
(ele os cita em seguida) que dele se valem para pensar a
equivalncia reversvel entre causa e efeito
admitida pela cincia clssica. Mais exatamente pela Dinmica
newtoniana, que incorporava a idia de
um tempo reversvel. Naturalmente, se o tempo encarado como
irreversvel, torna-se impossvel se
pensar numa equivalncia entre causa e efeito; se o antes
dissimtrico ao depois, h sempre algo que se
perde ou que se produz entre um e outro. Mas sob a tica da
reversibilidade do tempo esta equivalncia
se torna perfeitamente inteligvel. Em outros termos: o
nachtrglich estaria pondo em jogo uma lgica
onde o tempo se encontra subordinado ao espao, o antes
assimtrico ao depois, a causa e o efeito so
perfeitamente reversveis.
2. O problema da reversibilidade
Se concordssemos com esta hiptese, teramos que admitir que Freud
a retoma uma concepo
clssica do tempo, formulada pela Dinmica newtoniana. no exame
das prprias leis de Newton que
encontramos a mais inequvoca demonstrao da reversibilidade
temporal. Com efeito, a segunda Lei de
Newton postula que F = m.a (a fora igual a massa multiplicada
pela acelerao), onde a = d2 x (a
acelerao a igual dupla diferenciao com respeito ao tempo t da
posio x). d t2
No precisamos aqui compreender em detalhes essas equaes. Basta
nos atermos ao fato de que
elas trabalham com o quadrado do tempo, e nos recordarmos de uma
regra matemtica bastante simples.
Sabe-se que tanto um numero positivo quanto um nmero negativo,
se elevados ao quadrado, daro o
mesmo resultado (j que dois nmeros negativos equivalem a um
positivo). Desse modo, se um tempo
1 Katz, C. Captulos da Psicanlisein Birman, J. (Org.) Freud 50
anos depois. Rio de Janeiro, Relume Dumar, 1989, pp.
62-63.
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retroativo for elevado ao quadrado, ele no diferir de um tempo
progressivo na resoluo da equao.
Em outras palavras, as leis da fsica newtoniana so indiferentes
a uma contagem do tempo progressiva
ou regressiva o que demonstra que o tempo reversvel. Qualquer
configurao dinamicamente
admissvel poderia ser mapeada para uma outra com sentido tempo
inverso. A previso e a retroviso se
equivalem.
Neste universo abstrato, onde o antes e o depois so
absolutamente simtricos, o princpio de
razo suficiente de Leibniz pode funcionar como uma luva. Sabemos
que a Dinmica pretende explicitar
as causas do movimento a partir das foras que o determinam.
Neste caso a relao entre a causa (fora)
e o seu efeito (movimento) postulada como reversvel: nenhuma
perda, nenhuma diferena se interpe
entre uma e outro. O movimento expressa inteiramente sua causa;
a fora pode ser inteiramente inferida
a partir de seu efeito. Desse modo, ao se conhecer a fora
possvel prescrever com exatido o
movimento que dela resultar; a movimento estar completamente
determinado em qualquer instante.
A idia que atravessar toda a fsica newtoniana encontra sua
expresso ltima no demnio de
Laplace: se houvesse um ser capaz de ter acesso a todas as foras
em ao num determinado instante,
ele poderia conhecer com exatido todos os movimentos que houve e
que haver no mundo. Para este
ser, presente, passado e futuro estariam igualmente fixados.
Temos aqui o mais absoluto determinismo: o
universo apresenta-se como um mecanismo de relgio, no qual cada
engrenagem se move de maneira
rigorosamente prescrita.
Gostaria neste momento de fazer um pequeno parntese. Poderia ser
argumentado que buscar em
Newton os fundamentos da reversibilidade do tempo, aps tantas
transformaes do campo cientfico,
seria um procedimento pueril. Entretanto, para o que nos
interessa, estes fundamentos no foram
substancialmente alterados, e os setores da cincia que trabalham
com um tempo mantm ainda um
rgido determinismo. Certamente, de Newton a Einstein o tempo
deixa de ser uma grandeza absoluta,
passa-se de trs para quatro dimenses e postula-se a curvatura do
espao-tempo. Todavia, como
sublinha Ivar Ekeland, a tentativa a mesma: o tempo reduzido ao
espao, o movimento substitudo
pela geometria. So universos fechados, regidos por um
determinismo estrito em que o escoamento do
tempo nada traz de novo, nada que j no se saiba e que no
tivssemos podido predizer desde
sempre.2
Ora, no seria possvel se admitir que o determinismo a posteriori
de Freud pe em jogo as
mesmas concepes de tempo e causalidade da cincia clssica. Um
tempo reversvel necessariamente
um tempo abstrato, como uma linha geomtrica que podemos
percorrer indiferentemente para trs ou
para diante. Apenas num universo ideal - onde no existe qualquer
perda, mas onde tampouco h lugar
para o novo ou o imprevisvel - o tempo pode ser pensado como
reversvel, possibilitando uma perfeita
equivalncia entre causa e efeito e, por conseguinte, a aplicao
do princpio de razo suficiente.
3. Tempo real e tempo abstrato
Poderamos retrucar, em primeiro lugar, que o nachtrglich no traz
consigo uma noo abstrata
de tempo, tal como se apresenta na fsica newtoniana e no tempo
espacializado dos relgios. A posio
de Newton nos Principia a de que "o tempo absoluto, verdadeiro e
matemtico, flui sempre igual por si
mesmo e por sua natureza, sem relao com qualquer coisa
externa".3 justamente com relao a esta
concepo que o inconsciente permanece atemporal, desprezando
qualquer grandeza absoluta e
quantificvel que se apresente como exterior ao sujeito. Se o
inconsciente implica um tempo, este no
pode ser entendido como grandeza e quantificabilidade
preexistentes por si mesmas, e tampouco um
tempo neutro onde se poderia dar indiferentemente este ou aquele
evento. O que est em jogo uma
temporalizao, isto , um modo pelo qual o sujeito se produz e se
organiza no tempo. Este tempo
intrnseco ao sujeito e s operaes que concorrem em sua produo.
Neste caso, devemos admitir que o
tempo em que se do os processos inconscientes real e prprio ao
seu modo de funcionamento, e no
2 Ekeland, I. O Clculo e o Imprevisto. So Paulo, Martins Fontes,
1987, p. 115.
3 Newton I. Principios Matemtcos. So Paulo, Abril, 1983, p.
8
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uma abstrao construda a partir deste funcionamento. Ele no
preexiste, nem existe ulteriormente a tais
operaes.
Em segundo lugar, devemos levar em conta a dissimetria temporal
implicada no nachtrglich.
Num tempo reversvel, nada permite diferenciar o antes do depois
- eles so simtricos. A
irreversibilidade supe, a o contrrio, que haja um marco
diferencial entre ambos, de modo que
possamos reconhec-los como desiguais Com relao a o inconsciente,
este marco reside na produo
de sentido. A cada vez que os traos mnmicos se rearranjam,
produz-se um novo sentido, e este sentido
irreversvel - no porque no possa ser produzido um outro que o
modifique, mas porque no h
possibilidade de retorno ao momento anterior. Este sentido s
pode ser destitudo ou ultrapassado pela
criao de um outro, que tambm se apresentar corno diferente com
relao aos que o precederam:
qualquer produo nova por si s suficiente para impedir a simetria
entre um antes e um depois. fato
que o nachtrglich implica uma repetio (lembremos aqui das duas
cenas descritas por Freud a
propsito do caso Emma, onde a segunda repete traos da primeira).
Mas isto no significa que tenha
havido uma reproduo psquica; para haver- enlace entre duas
representaes necessrio que existam
traos comuns a ambas, mas igualmente preciso que nesta repetio
se insinue um novo, elemento,
capaz de conferir primeira cena um sentido que no lhe havia sido
dado mesmo quando pensamos que
uni sintonia se repete no caso de Emma, por exemplo, o fato de
no conseguir entrar em lojas sozinha -
devemos ter em mente que, este sintoma jamais se manifesta
exatamente do mesmo modo, j que
cadeia de representaes posta em ao no se, reproduz de, forma
idntica a cada vez. Se fosse possvel
ocorrer no psiquismo uma repetio do mesmo, no haveria motivo
para nos surpreendermos com as
irrupes do inconsciente: elas seriam perfeitamente
antecipveis.
Este carter inantecipvel das produes inconscientes impede a
insero do pensamento
freudiano no quadro do determinismo clssico, da filiao linear da
causa ao efeito, da perfeita
equivalncia do passado e do futuro, ambos encerrados no instante
presente. Freud nos fala de um
inconsciente imprevisvel. E portanto, inovador. Entretanto seu
funcionamento compatvel com leis
que seriam deterministas: continua havendo uma relao de causa e
efeito, embora a causa esteja
presente s depois. As formaes inconscientes so o produto
inteligvel de um passado, ainda que- no
pudessem, a princpio, serem previstas. Estranhas ao determinismo
clssico, essas produes no se
ajustam tampouco ao determinismo aleatrio proposto pela cincia
contempornea, que substitui a
previso precisa pelo clculo probabilstico. Em Freud as condies
iniciais no- esto dadas, o
inconsciente no se atualiza sem ao mesmo tempo recriar o sentido
do passado, irreversvel porque novo
a cada vez.
4. Do virtual ao atual
Foi dito que a hiptese da reversibilidade do nachtraglich se
apoiava na concepo do
inconsciente enquanto estrutura; neste caso, seu modo de
articulao se daria segundo os critrios do
espao, e no do tempo. Todavia, este modo de compreender a relao
da estrutura com o tempo se
revela pouco hbil. certo que uma estrutura pode ser dita
intemporal medida que virtualmente az em
si todas as possibilidades de sua atualizao; essas
possibilidades coexistem na indiferena do passado,
presente e futuro. Todavia, a estrutura s organiza algo no
momento em que se encarna,- isto , no
momento em que a virtualidade se atualiza em certos elementos,
relaes e funes. Ora, no o todo
virtual, coexistente na estrutura, que se encarna a cada vez. No
a lngua total, por exemplo, que se
encarna numa articulao entre fonemas. o que se atualiza, no aqui
e agora, so determinadas relaes,
determinadas possibilidades de articulao dos elementos, segundo
uma direo exclusiva; nesse sentido
poderamos dizer que a estrutura instaura um tempo irreversvel,
como nos sugere Deleuze:
Convm observarmos que o processo de atualizao sempre implica
uma
temporalidade interna, varivel segundo aquilo que se atualiza
(...) Portanto, a posio
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do estruturalismo relativamente ao tempo bastante clara: o tempo
sempre um tempo
de atualizao, segundo o qual se efetuam, em ritmos diversos, os
elementos da
coexistncia virtual. O tempo vai do virtual ao atual, isto , da
estrutura s suas
atualizaes, e no de uma forma atual a outra forma.4
Um exemplo simples, como o jogo de xadrez, pode tornar mais
clara esta idia. Sabemos que o
xadrez funciona segundo uma lgica relacional que rege a disposio
das peas no tabuleiro. Mantendo-
se esta lgica, infinitas combinaes so possveis: poderamos dizer
que todas elas coexistem
virtualmente num reservatrio, ideal do xadrez. A cada jogo, ou a
cada momento do jogo, uma dessas
possibilidades se atualiza, ocasionando uma determinada disposio
das peas. Como pensar, neste caso,
a questo do tempo? Ora, se consideramos apenas as relaes atuais
entre os elementos, isto o modo
como as peas esto articuladas entre si num instante qualquer,
podemos afirmar o tempo como
reversvel: indiferente que, no decorrer da partida tenhamos
movido o cavalo antes ou depois do bispo;
o que importa a relao entre as peas no tabuleiro num determinado
momento. Mas se reconhecemos
o movimento de atualizao, ou seja, a passagem do xadrez virtual
para o atual, devemos admitir sua
irreversibilidade: a, cada momento em que uma pea movida, uma
outra disposio se estabelece, um
novo sentido, se instaura no jogo, e no h como retornarmos
configurao anterior. O tempo se exerce
nesta passagem do virtual para o atual, da estrutura sua
atualizao, diferenciando qualitativamente o
antes do depois.
Se o movimento de atualizao fundamental para entendermos o modo
da estrutura, ele o
mais ainda no caso da estrutura inconsciente, regida por uma lei
de articulao que s poderia ser
descrita como temporal. O inconsciente no funciona,
naturalmente, segundo uma lgica simples como a
do jogo de xadrez; sua estrutura mais aberta, o que torna a
temporalidade, nesse caso, ainda mais
decisiva: o conjunto das representaes inconscientes no est
fixado a priori, com tambm no o est o
movimento prprio de cada uma delas no jogo. A causa deste
movimento e de suas mudanas est
relacionada esfera pulsional que instituindo o vazio em torno do
qual as diversas representaes se
articulam, transforma a subjetividade num jogo extremamente
dinmico: s depois que se do,
simultaneamente, o jogo, as peas, e as regras de seu movimento.
Assim podemos dizer que o termo
virtualidade se aplica bastante bem ao inconsciente , com a
ressalva de que este no preexiste s
atualizaes pela quais se manifesta. Seria prefervel, de fato,
pensarmos o inconsciente no plano do
virtual/atual, ao invs de relacion-lo s dimenses do passado e do
presente. Pois estas sugerem ainda a
idia de sucesso temporal, que o inconsciente despreza. Como nos
diz Deleuze, o tempo numa estrutura
no vai de uma forma atual a outra, e no poderamos engendr-las
sucessivamente. Mas o processo de
atualizao se exerce numa direo exclusiva: as atualizaes do
inconsciente so sbitas e
descontinuadas, mas a cada momento que se efetuam, so
irreversveis. Vale acrescentar que o problema
da irreversibilidade do tempo no inconsciente no passou
desapercebido a Lacan, o menciona na
introduo de seu Seminrio sobre a Carta Roubada: a ligao da
cadeia de significantes dada sua
orientao, com efeito recproca, em outras palavras, ela no
reversvel, mas retroativa.5
5. A descontinuidade irreversvel
Seria talvez inusitada esta associao entre descontinuidade e
irreversibilidade que o
funcionamento inconsciente nos prope. Estamos acostumados a
criar uma certa imagem para a
irreversibilidade do tempo: a imagem do rio que corre,
continuamente, impossibilitando que nos
banhemos duas vezes nas mesmas guas. A descontinuidade do tempo
nos parece uma abstrao criada
pela cincia para possibilitar operaes matemticas. A este
respeito, tornou-se famosa a querela entre
4 Deleuze, G. "Em que se pode reconhecer o estruturalismo?" in
Chatelet, F.(Org.) Histria da Filosofia, Idias e doutrinas. Volume
8: O
sculo XX. Rio de Janeiro, Zahar,1974, pp. 284-5 5 Lacan, J.
"Seminrio sobre A carta roubada" in: Escritos. So Paulo,
Perspectiva, 1978, p. 56
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Bergson e Einstein, na dcada de 20: ao tempo reversvel e
abstrato da cincia, Bergson opunha o tempo
real e irreversvel da durao, fluxo contnuo identificado criao
constante do novo.6
Neste ponto Freud aproxima-se bem mais de um pensador como
Bachelard, para quem o tempo
consiste numa srie, de rupturas: a nica realidade temporal a do
instante, ou seja, o tempo
fundamentalmente descontnuo Enfatizando a existncia de lacunas
na durao, Bachelard chega a
afirmar que somos uma ponte de instante entre dois vazios.7 No
campo do inconsciente, provvel
Freud no o desmentisse. De qualquer modo, Freud nos apresenta a
possibilidade de um tempo que
simultaneamente irreversvel e descontnuo. Ele no flui, no dura,
mas nem por isso deve ser
considerado abstrato: trata-se de um tempo real, porque de
produo.
Uma ltima observao merece ser feita a propsito do nachtrglich. J
vimos que na esfera do
psiquismo a descontinuidade o dado bsico; mesmo a conscincia no
d lugar a uma temporalidade
contnua. Mas no da mesma maneira, e segundo o mesmo modelo de
tempo, que as operaes
conscientes e inconscientes so descontnuas. Temos no
funcionamento do sistema Pept-Cs uma
descontinuidade que nos permite demarcar instantes sucessivos;
justamente ma idia de sucesso que
ser descartada pelo nachtrglich. A partir da conscincia,
produzimos o conceito de um tempo linear,
compreendido como um conjunto de pontos que se sucedem regular e
previsivelmente. No inconsciente,
em contrapartida, o tempo que nos produz - um tempo no pontual,
mas espesso, trazendo consigo a
articulao de toda uma rede de lembranas.
6 A este respeito ver Bergson, H. A Evoluo Criadora. Rio de
Janeiro,_Zahar, 1979.
7 A este respeito ver Bergson, H. A Evoluo Criadora. Rio de
Janeiro,_Zahar, 1979.
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CAPTULO VI
UM TEMPO PARA A PULSO
A noo de nachtrglich tem sido considerada como o tempo por
excelncia da psicanlise.
Vimos que a ela poderamos subordinar inclusive a hiptese de um
tempo mtico. Mas poderia esta
noo abarcar todas as modalidades temporais que se colocam em
jogo na cena analtica?
Sabemos que Freud recusou a tentao de submeter toda a sua
metapsicologia a um monismo,
nela enfatizando, ao contrrio, a tenso entre dois domnios
irredutveis: o inconsciente e a pulso, o
campo das representaes e o campo das intensidades. Esses campos
no podem estar referidos a um
nico princpio: esta impossibilidade que permite definir o
pensamento freudiano como um
pensamento do complexo. (Aqui necessria uma rpida explicao:
complexo aquilo que no pode,
de nenhuma maneira, ser reduzido elementaridade, a uma estrutura
simples, regida por um princpio
nico. Freud no institui um saber do complexo porque o ser humano
complicado, mas porque, procura
tornar a sua clnica inteligvel a partir de dimenses tericas que
no encontram sua resoluo numa
sntese pacificadora). Se o princpio do prazer e o seu alm
constituem campos irredutveis, no
podemos supor que unia mesma modalidade temporal os atravessa.
Se o fizssemos, estaramos
valorizando o simples e no o complexo. E estaramos desprezando
justamente aquilo que confere vigor
psicanlise.
certo que Freud jamais se preocupou em problematizar a pulso sob
a tica do tempo: ele no
afirma que ela seja atemporal, mas no faz tampouco qualquer meno
temporalidade que a
constituiria. O que encontramos em seus escritos so vagas
indicaes de que o campo das pulses no
funciona segundo a lgica do nachtrglich. Um exemplo: o
nachtrglich supe uma descontinuidade no
tempo, ao passo que a pulso se exerce, nos prprios termos de
Freud, com presso constante, isto ,
contnua no tempo. Sem dvida, poderamos relacionar como Lacan o
fez o abrir e fechar-se do
inconsciente a uma pulsao temporal, cujo motor seria, em ltima
instncia, o dinamismo das pulses.
Mas neste caso estaramos subordinando a pulso ao campo das
representaes e, portanto, ao princpio
do prazer. Outra coisa seria pensarmos a pulso enquanto exterior
ao aparelho psquico. J vimos que o
nachtrglich prope uma articulao temporal entre diversas
lembranas, entre diversas representaes;
como poderia a pulso de morte, que no possui qualquer
representao no psiquismo, estar submetida
mesma lgica temporal que rege as representaes inconscientes?
O tempo da pulso surge como um problema para a psicanlise. E um
problema que costuma ser
mais rapidamente descartado do que pensado. A maneira mais
simples de se descartar o tempo da pulso
consiste em afirmar que ela est fora do, tempo, medida em que
permanece exterior temporalizao
subjetiva. Mas isto no impede que o problema permanea: ainda que
as pulses se mantenham fora do
psiquismo, elas so parte integrante da teoria freudiana; elas
poderiam estar fora do tempo com relao
ao sujeito, mas no com relao ao campo psicanaltico.
No seria ilcito afirmar que uma determinada concepo sobre o
tempo subjaz s diversas
caractersticas que Freud atribui s pulses, constituindo o prprio
fundamento do qual decorrem estas
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caractersticas. Podemos dizer inclusive que esta modalidade
temporal impele Freud a operar a sua
grande transformao terica, em 1920: basta lembrarmos que a
repetio, marco fundamental desta
passagem, s pode ser concebida no tempo.
Freud situa a pulso na fronteira entre o mental e o somtico. Se
ela o limite de ambos,
tambm o que permite articul-los: tendo sua fonte no registro
corporal e seu objeto no registro psquico,
a pulso faz a passagem das foras do corpo ao universo das
significaes. , portanto, condio, de
possibilidade do psiquismo e, como tal, um conceito mais vasto,
que o ultrapassa. A constituio do
aparelho psquica, do inconsciente, do desejo seria, na verdade,
um momento de atividade das pulses,
momento este em que a fora pulsional transformada em inscrio no
campo das representaes.
1. A pulso sexual e seu circuito
A teoria psicanaltica nos fala da pulso sexual a partir da sua
fixao em representantes
psquicos - a idia e o afeto.
Apenas por meio desses representantes poderia a pulso se
manifestar ruidosamente, nos diz
Freud. evidente que a idia e o afeto no so a prpria pulso - eles
simplesmente a representam. E
do lugar da representao que a psicanlise pode suspeitar da
existncia de uma fora que, enquanto
silenciosa, foge possibilidade de deteco, mas cuja potncia pode
ser inferida a partir dos efeitos que
produz. O momento anterior a esses efeitos, momento em que
nenhum sentido poderia estar j
configurado, seria apenas suposto, como um alm, indicando que a
representao deixa necessariamente
um resto, e que a fora no pode ser inteiramente abarcada na
linguagem.
Freud nos apresenta os quatro termos que balizariam, o
funcionamento das pulses: a presso, a
finalidade, o objeto e a fonte. Contudo, ele faz a distino:
trata-se de "termos utilizados com referncia
ao conceito de pulso8, e no do prprio conceito. Mas justamente
por serem outra coisa que no a
pulso, e por se apresentarem, como frisa Lacan, necessariamente
disjuntos9, que esses termos permitem
estabelecer um traado, fornecendo as marcaes daquilo que se
chama o percurso pulsional.
Assim, a pulso partiria de uma zona ergena (a fonte), movida por
uma certa tenso interna e,
visando a satisfao, dirigiria o seu impulso sobre determinado
objeto. Porm este objeto, assinala Freud,
o que existe de mais varivel na pulso ou, em outros termos, ele
no importa qual objeto - , de
certo modo, um "nada". Sem dvida, no poderamos estar no registro
da necessidade, onde um objeto
nico e preciso pode satisfazer integralmente um instinto. No
caso do humano, essa satisfao plena
barrada pela palavra, obrigando a pulso a uma perptua substituio
de objetos, tentando sempre mais
uma vez alcanar a satisfao impossvel - retomando, enfim, aquilo
que no poderia tomar. O que
configuraria um constante vaivm, sugerindo a circularidade do
percurso: a pulso se caracterizaria pelo
seu circuito ao redor do objeto e por seu retorno em direo
fonte, para novamente recomear. Da o
carter essencialmente repetitivo desta atividade - o movimento
visa desde j e desde sempre a sua
prpria repetio.
No difcil perceber-se que esse movimento se inscreve num
registro temporal - se a atividade
necessariamente um fenmeno no tempo, a atividade repetitiva traz
o tempo em sua prpria definio.
Se enfatizamos a forma circular do percurso pulsional, diramos
que ele supe a existncia de um tempo
em anel, que se fecha sobre si mesmo. Nesse caso, estaramos
associando repetio ao retorno do
idntico, e caracterizando o funcionamento pulsional pela
reversibilidade do seu tempo. Lacan nos
sugere esta hiptese, em determinado momento: Freud nos apresenta
como assentado, diz ele, que parte
alguma desse percurso pode ser separada do seu vaivm, de sua
reverso fundamental, do carter circular
da pulso"10
. Na esteira de Lacan, Alain Juranville levar esta hiptese ao
extremo:
8 FREUD, S. "A Pulso e suas Vicissitudes" (1915). ESB, vol. XIV,
p.142
9 LACAN, J. O Seminrio. Livro 11. Rio de Janeiro, Jorge Zahar,
1979, p. 155: "Perguntamo-nos agora o que aparece primeiro
quando
olhamos mais de perto os quatro termos enunciados por Freud, no
que concerne pulso. Digamos que esses quatro termos s podem
aparecer disjuntos. 10
LACAN, J. Ibidem, p. 168.
-
[Na pulso] sabemos antecipadamente que o objeto absoluto falta e
que, no tempo,
nada se marcar seno esta falta. Nesse sentido, o que pode advir
est determinado de
maneira antecipatria ( ... ) O que importa na pulso no a
passagem do tempo, se por
essa expresso entendemos que se passa de um modo de ser a outro
de maneira
irreversvel (...) [Na pulso] passa-se do primeiro modo de ser ao
segundo e vice-versa,
do segundo ao primeiro, indiferentemente (...) A pulso se
caracteriza pela
reversibilidade do tempo nela."11
Poderamos perguntar, contudo, se Freud nos permite pensar a
repetio pulsional como uma
repetio do mesmo, nica possibilidade de postular-se a um tempo
reversvel.
Seria preciso fazermos aqui uma distino entre "repetio do mesmo"
e "repetio diferencial"12
.
A primeira aproxima-se da idia de reproduo, enquanto que a
segunda demanda necessariamente o
novo, produzindo transformao. A experincia de Kierkegaard , a
este respeito, exemplar:13
Kierkeggard pretende retornar aos mesmos lugares onde outrora
vivera momentos de felicidade. Mas ele
comprova, ao realizar esta experincia, que os objetos, embora os
mesmos, j no so os mesmos,
porque no possuem para ele o mesmo sentido. Estando colocada a
dimenso do sentido e da linguagem,
a repetio necessariamente diferencial. Mesmo a repetio de uma
palavra no traz consigo a
repetio de um mesmo sentido.
Ora, s h pulso no falante, na medida em que Freud a define como
no biolgica. Poderamos
dizer, talvez, que um instinto conduz reproduo de um determinado
comportamento; com relao ao
homem, entretanto, no se poderia pensar em tal estereotipia. H
no cerne de toda satisfao pulsional
uma impossibilidade trazida pela linguagem, mas a pulso no cessa
de aspirar total satisfao. Pois o
que que se repete, se no o que tem razes para recomear? A pulso
encontra uma satisfao parcial,
porm nunca da mesma forma: justamente essa diferena entre a
satisfao encontrada e a esperada que
funcionar como mola impulsora da vida psquica, pois a procura ,
de fato, sempre de outra coisa.
Nesse sentido, a repetio o flagelo do homem, mas tambm a sua
condio de liberdade e a sua
possibilidade de criao. No poderamos retornar a um momento
passado simplesmente porque no
houve uma primeira vez; o objeto est, desde sempre, perdido, e a
satisfao jamais aconteceu ou, se
houve, ocorreu num momento em que no havia ainda uma diferenciao
entre sujeito e objeto - e desse
modo no caberia falar em objeto de satisfao. Ainda que Freud no
nos esclarea sobre a
temporalidade pulsional, ele incisivo em descartar a sua
reversibilidade:
(...) a diferena de quantidade entre o prazer da satisfao que
exigida e a que
realmente, conseguida, que fornece o fator impulsionador que no
permite qualquer
parada em nenhuma das posies alcanadas, mas nas palavras do
poeta, ungebndigt
immer vorwrts dringt [pressiona sempre para frente, indomado]. O
caminho para trs
que conduz satisfao completa acha-se, via de regra, obstrudo,
pelas resistncias que
mantm os recalcamentos, de maneira que no h alternativa seno
avanar na direo
que o crescimento ainda se acha livre ( ... )14
Ora, se s h caminho para a frente, somente a diferena poderia
assegurar o retorno da repetio:
se o inapreensvel tambm o irrenuncivel, sempre de outro modo que
tentamos apreend-lo.
A hiptese de uma repetio diferencial no coloca em questo a
circularidade do percurso da
pulso, e nem tampouco o tempo em anel que nele estaria
implicado. Ela apenas traz cena um
complicador: este tempo circular no poderia ser reversvel, no
poderia retornar ao que j foi. Pensar a
temporalidade pulsional nos conduzir, portanto, a combinar dois
diferentes modos temporais - um
circular e outro irreversvel - num nico e mesmo tempo. O que nos
sugere a imagem de um tempo em 11
JURANVILLE, A. Lacan e a Filosofia. Rio de Janeiro, Jorge Zahar,
1987, pp.154-155 12
A este respeito ver Garcia-Roza, L. A. Acaso e Repetio em
Psicanlise. Uma introduo teoria das pulses. Rio de Janeiro, Jorge
Zahar, 1986, p.24; e tambm DELEUZE, G. Diferena e Repetio. Rio de
Janeiro, Graal, 1988 13
A este respeito ver KIERKEGAARD, S. La rptition in: Oeuvres
Compltes. Vol. 5. Paris, ditions de I'Orante, 1972. 14
FREUD, S. Alm do Princpio do Prazer (1920). ESB, vol. XVIII, p.
60. Freud cita um trecho da fala de Mefistfoles, no Fausto, Parte
1, cena 4.
-
espiral, onde a repetio no conduz a uma mesmidade, e o recomeo
se faz sempre a partir de um novo
momento. Esta a tese de Edgard Morin, que atribui semelhante
combinao a nica possibilidade de
explicarmos o tempo nas organizaes ativas:
... o tempo, logo que se introduz na organizao ativa, torna-se
bfido, dissocia-se
entrada em dois tempos, sem deixar de continuar a ser o mesmo
tempo, e, sada, volta
a ser um s ( ... ) A unidade deste tempo vivo e duplo, associado
e dissociado, ,
imagem do movimento espiral, simultaneamente irreversvel e
circular, voltando-se
sobre si mesmo, mordendo a cauda, encerrando-se continuamente na
sua reabertura,
recomeando-se continuamente no seu escoamento.15
A idia de Morin nos parece bastante adequada para pensar a
temporalidade do percurso
pulsional. Trata-se, sem dvida, de uma organizao - pois sabemos
que este percurso estende-se at o
psiquismo, onde se d a fixao da pulso em seus representantes;
mas trata-se primordialmente de uma
organizao ativa, j que a atividade , na definio de Freud, a
caracterstica prpria da pulso.
Devemos nos lembrar, contudo, que este tempo no poderia estar
relacionado pulso em si mesma:
apenas do lugar da representao que pode se falar em circuito
pulsional, j que este necessariamente
ordenado, demarcado entre uma fonte e um objeto. E neste caso,
ordenao sinnimo de inscrio
psquica - a ordem, no humano, necessariamente simblica. Nesse
sentido, Lacan dir que a pulso
comporta uma dimenso histrica. Mas acrescenta: a rememorao, a
historicizao, coextensiva ao
funcionamento da pulso no que se chama de psiquismo humano.16
Deste modo, na medida em que a
pulso capturada pelo simblico que se pode estabelecer a sua
trajetria e o seu tempo, em busca de
uma satisfao tornada impossvel a partir da linguagem. Mas e
quanto pulso propriamente dita -
aquela que suposta como um alm da linguagem poderamos lhe
atribuir um tempo?
15
MORIN, E. O Mtodo 1. A natureza da natureza. Publicaes
Europa-Amrica 16
LACAN, J. O Seminrio. Livro 7. Op. cit., p.157. Grifos
nossos
-
CAPITULO VII
O TEMPO E O TRGICO
Uma conversa de Freud com o poeta Rilke deu origem a um dos mais
belos textos da literatura
psicanaltica: o pequeno ensaio Sobre a Transitoriedade17
, publicado em 1916. O poeta lastimava-se de
que tudo que belo na natureza ou nas criaes humanas estivesse
fadado corroso do tempo, o que o
impedia de extrair desta beleza qualquer alegria. Freud
responde, contra o pessimismo de Rilke, que
uma flor que dura apenas uma noite nem por isso nos parece menos
bela18 e que o valor da beleza
determinado apenas pela sua significao para ns, independendo de
uma durao absoluta. O que
retirava do poeta a fruio da beleza, pensa Freud, era a
antecipao do luto por seus objetos de estima.
Sua mente recuava diante desta experincia penosa, privando de
valor aquilo que lhe era mais caro. Freud entrelaa os temas da dor,
da perda e do luto para escrever sobre a transitoriedade. O que est
em
pauta o tempo como substrato de tudo aquilo que se degrada o
Chronos devorador - fora exterior ao
homem, capaz de roubar o que ele ama e de mostrar-lhe o quanto
so efmeras as coisas que ele toma
por imutveis. Rilke esmorece diante desta fora, enquanto Freud
se mantm positivo. Contudo, este
pequeno ensaio no nos fala do trgico. No h carter trgico naquilo
que se coloca como um "alhures"
com relao ao sujeito, como uma potncia fatal que vem de fora,
mas pela qual o prprio sujeito no
posto em questo. O "alhures" a prpria negao do trgico, escreve
Monnerot, este s se afirma
quando as foras exteriores, csmicas, naturais esto tambm em ns
(...)19 A respeito do que aqui nos
interessa, poderamos acrescentar: a transitoriedade no , em si
mesma, trgica; ela s toma esta
dimenso quando coloca o sujeito diante da sua prpria
transitoriedade.
Neste sentido, a dor da perda se apresenta como um modo de
assegurar, ao sujeito, o seu
afastamento do trgico. Lastimar que o tempo possa varrer os
objetos de amor e de admirao , de
algum nodo, acreditar ria perenidade de s mesmo. Pois dor, perda
e luto so noes que mantm como
referncia um objeto assinalvel; o fato do tempo faz-los passar
no garante ao sujeito que ele prprio
passe, com o tempo. Se um objeto valorizado passa, o sujeito se
depara com uma falta; mas esta falta
supe um contedo capaz de preench-la. Neste caso, ainda mantida a
expectativa de um encontro, de
um encaixe, de uma simetria - a falta , de algum modo,
protetora. O sujeito sofre pela perda do que
ama, e esse padecimento o protege do tempo: aferrado ao objeto,
ele escapa de confrontar-se com o
trgico de sua prpria condio finita.
Mas o que faria o homem transformar o tempo que passa numa
questo que lhe concerne?
A resposta mais imediata seria: a morte, ou melhor dizendo, a
relao que ele estabelece com a
sua morte. O vislumbre da morte prpria seria a questo trgica por
excelncia, e este o tema central de
Lacan em sua anlise da Antgona de Sfocles: "como o homem, isto ,
um vivente, pode aceder ao
conhecimento desse instinto de morte, de sua prpria relao com a
morte?" Lacan, enfatiza neste texto a
relao entre a morte e o tempo, ainda que ai permanea implcita a
vinculao de ambos. Recentemente,
17
FREUD, S. "Sobre a Transitoriedade" (1916 [1915]). ESB, vol.
XIV. Cabe observar que neste ensaio Freud no revela a identidade do
"poeta jovem mas j famoso" com quem mantivera esta conversa. Lou
Andreas-Salom quem declara mais tarde ter se tratado de Rainer
Maria Rilke. 18
Ibidem, p. 346. 19
MONNEROT, J. Les lois du tragique. Paris, PUF, 1969, p. 51. Esta
afirmao de Monnerot comentada por ROSSET, C. Lgica do Pior. Rio de
Janeiro, Espao e Tempo, 1989, p. 69.
-
dois psicanalistas franceses - Maurice Dayan e Alexandra
Triandafillidis20
interessaram-se pelo tema,
desenvolvendo o argumento de que o tempo s se torna uma questo
para o sujeito quando sua morte se
coloca no horizonte. Vamos examinar esta hiptese, a partir dos
textos freudianos.
1. A morte e o tempo
A grosso modo, o ponto de partida de Dayan e Triandafillidis o
mesmo: se Freud atribui ao
inconsciente a ignorncia da morte e do tempo, pode ser
estabelecido um lao entre ambos, marcado pela
negatividade. Para dizer em palavras simples: a morte chega e o
tempo passa - mas apenas para os
outros, jamais para o prprio sujeito. Por maior que seja a
evidncia destes dois fatos, eles no
constituem uma certeza ntima. A constatao emprica de que eles
ocorrem para outrem no suficiente
para um sujeito admitir que o mesmo ocorre ou ocorrer consigo.
Assim, quando o prprio sujeito est
em questo, a morte e o tempo so imediatamente descartados. O
famoso silogismo aristotlico (Todo
homem mortal/ Scrates homem/ Scrates mortal.) s objeto de
certeza com relao a terceiros: o
que garante a um sujeito que ele no possa constituir uma exceo
ao silogismo? Naturalmente, na esfera
lgica ele admite estar tambm includo, mas na esfera ntima esta
incluso colocada entre parnteses,
ou eternamente postergada para um futuro longquo: "Sei que vou
morrer ... mas um dia, no agora".
Com relao ao tempo, d-se um procedimento semelhante. O tempo que
passa para os outros,
uma evidncia, mas no o tempo que passa para si. So os outros que
vm e vo, enquanto que o sujeito
se cr permanecer, ainda que com a dor pela perda de outrem. Nada
mais fcil de afirmar, mas nada to
difcil de admitir quanto a passagem do tempo para si, e o fato
de que o prprio sujeito tambm passa,
com o tempo. Deste modo, a passagem do tempo e a morte prpria
seriam objeto de uma recusa (Dayan
utiliza o termo dni, referindo-se Verleunung de Freud), operao
muito sutil que implica numa
aceitao, no plano do discurso consciente, de algo que na verdade
no se cr, inconscientemente.
Dayan e Triandafillidis vo ento situar de maneira hierrquica a
recusa da morte prpria e a
recusa da passagem do tempo, pensando esta ltima em funo da
primeira. Neste contexto,
Triandafillidis poder escrever que a relao com o tempo se
constri a partir da relao com a
morte21, e Dayan admite, de modo semelhante, que porque recusa
seu fim inevitvel que o sujeito se
imagina imune ao tempo que passa22 Ora, neste caso seria preciso
se fazer igualmente o raciocnio
inverso: a possibilidade de admitir a prpria passagem no tempo
seria proveniente de uma subjetivao
da morte; apenas um vislumbre da morte seria capaz de produzir
no sujeito uma nova relao com a
temporalidade. Deste modo, o fim da vida seria capaz de dar
sentido ao problema da transitoriedade,
tanto em sua recusa quanto em sua aceitao.
O implcito desta hiptese o de que a finitude sinnimo de
mortalidade: a possibilidade da
prpria morte traria ao homem a idia de finitude, sem a qual no
poderia se colocar o problema do
tempo. Em outros termos, a morte seria o fim absoluto,
estabelecendo o limite a partir do qual a prpria
temporalidade se tornaria pensvel. Limite indeterminado mas
certo da vida, ela permitiria "dar sentido
s peripcias da histria individual"23
. Mas se nesta perspectiva o tempo pensvel a partir de seu
fim,
preciso que este fim esteja dado de antemo, para que seja
possvel ao homem questionar sua
transitoriedade. necessrio que este fim possa ser, de algum
modo, antecipado, para que o problema do
tempo ganhe um sentido trgico. E se este sentido advm da morte,
o homem se mede pela possibilidade
de seu desaparecimento: o que a se coloca a questo do
ser-para-a-morte.
20
A este respeito ver DAYAN, M. Dni de la mort et passage du temps
in: Psychanalyse l'Universit. Tome 15, N. 57. Paris, PUF, 1990; e
TRIANDAFILLIDIS, A. "Temps du savoir et temps de 1'incertitude" in:
Psychaiialyse lUnverst. Tome 15, N. 60. Paris, PUF, 1990. 21
TRIANDAFILLIDIS, A. Op. cit., p. 139. 22
DAYAN M. Op. cit., p. 11 23
DAYAN, M. Op. cit., p. 19: (essas peripcias so ordenadas tendo a
morte como ltimo termo, ou seja, ( ... ) a,prpria ordem do tempo
onde se faz esta histria orientada em direo a um limite certo mas
indeterminado da vida (...)
-
O colorido heideggeriano desta hiptese salta facilmente aos
olhos. Morrer , para Heidegger, o
que caracteriza o prprio modo de ser do homem24
. Da a sua noo de ser-para-a-morte, que significa
ser medida em que posta a possibilidade de no ser,
caracterizando o homem como o nico capaz de
admitir esta possibilidade. A morte sua nica certeza, fonte de
todas as demais certezas, e de todas as
indagaes a respeito de si mesmo. Mas embora seja certa, possvel
a cada instante, seu "quando"
permanece indeterminado. Neste caso, a relao do homem com a
morte implica numa antecipao da
iminncia da morte, no enquanto realidade, mas enquanto
possibilidade: possibilidade sempre aberta,
indeterminada, porm absolutamente certa. a partir desta
antecipao da morte que o tempo se coloca
como uma questo para o homem, A morte, o horizonte do ser, e a
temporalizao se faz na medida
em que o homem se projeta em direo ao porvir, onde se encontra a
possibilidade de seu aniquilamento
(anantissement). Em suma, na dmarche heideggeriana o tempo e o
trgico so pensados a partir da
morte.
Poderamos perguntar, todavia, se Freud nos permite chegar a uma
concluso semelhante em seus
textos: poderia o homem antecipar, de algum modo, a sua morte?
Ou seria esta antecipao incompatvel
com a teoria freudiana?
Tudo nos leva a crer na segunda hiptese. A forte influncia de
Heidegger na psicanlise
francesa, denuncia Jacques Derrida,25
termina por inverter a importncia de determinados temas na
obra
de Freud: no se pode ser fiel ambos ao mesmo tempo.
A condio para que a morte seja antecipada a possibilidade de sua
certeza. Pois no h como
anteciparmos algo de que no estamos certos - da o argumento de
Heidegger de que a morte a fonte de
toda certeza para o homem. Freud examina o problema da morte em
diversos textos, mas
principalmente em dois deles que o enfoque se d sobre a certeza
da morte. E, sob formas diversas, ele
levado a uma mesma concluso. No trabalho sobre O Estranho, de
1919, enfatizada a insuficincia de
nosso conhecimento cientfico a esse respeito:
"A biologia no conseguiu ainda responder se a morte o destino
inevitvel de todo ser
vivo ou se apenas um evento regular, mas ainda assim talvez
evitvel, da vida."26
Enunciado que merece destaque, num momento em que Freud j havia
concludo seu Alm do
Princpio do Prazer27
(publicado um ano mais tarde), onde se defronta com a pulso de
morte: a cincia
no capaz de nos oferecer, qualquer certeza de que possamos
morrer um dia - o que por si s j
indicaria uma distncia entre o fato biolgico da morte e a
hiptese metapsicolgica da pulso. Alguns
anos antes, Freud marcara esta distncia tambm com relao
metafsica:
(...) a escola psicanaltica pde aventurar-se a afirmar que no
fundo ningum cr em
sua prpria morte, ou, dizendo a mesma coisa de outra maneira,
que no inconsciente
cada um de ns est convencido de sua prpria imortalidade (...) no
existe nada de
pulsional em ns que reaja a uma crena na morte.28
Freud secundariza, portanto, o problema metafsico da morte,
excluindo-a tanto do registro
inconsciente quanto do campo pulsional: nem um nem outro podem
conduzir a uma certeza da morte.
Tornando-a to indeterminada quanto incerta, Freud apresenta uma
posio bem diversa da de
Heidegger, que a v como a possibilidade mais certa para o homem,
ainda que indeterminada. No h,
nos textos freudianos, nenhum sentido pressuposto, originrio,
com relao morte. E, por este motivo,
24
HEIDEGGER, M. QuIest-ce que Ia mtaphysique? Paris, Gallimard, p.
141.- (...) o fenmeno do ser-para-a-morte distingue-se (...) como o
ser para a possibilidade especfica, privilegiada, da relao humana.
Mas esta possibilidade absolutamente prpria, incondicional e
insupervel, a realidade humana no a constitui nem
posteriormente, nem ocasionalmente no curso de seu ser. No, se a
realidade humana
existe, que tambm ela j est lanada nessa possibilidade da
morte". 25
DERRIDA, J. Le Secret. Curso ministrado na cole de Hautes tudes
en Sciences Sociales. Paris, 1992, mimeo. 26
FREUD, S. O Estranho: (1919). ESB, vol. XVII, p. 301. 27
Ibidem, p. 297: [Sobre a compulso repetio] devo referir ao
leitor um outro trabalho, j concludo, no qual o problema foi
colocado em detalhes, mas numa relao diferente. 28
FREUD, S. "Reflexes para os tempos de guerra e morte" (1915).
ESB, vol. XIV, pp. 327 e 335.
-
ela no poderia revestir o tempo de qualquer significao trgica: a
antecipao da morte que define em
Heidegger o ser-para-a-morte - est descartada. Na verdade, se
quisssemos, a partir de Freud, atribuir
algum estatuto ao ser-para-a-morte, deveramos consider-lo uma
representao secundria, construda a
partir da morte de outrem - como alis, qualquer discurso sobre a
condio mortal do homem. Derrida,
marcando as diferenas entre Freud e Heidegger, procura se deter
sobre este aspecto: o ser-para-a-morte
em Freud permaneceria derivado, no originrio; ele seria de fato
uma formao de cultura que poderia
ter razes na angstia (de castrao, no de morte)29
, no luto ou na culpabilidade suscitada pela perda de
um ser prximo... mas jamais na morte prpria.30
Se possvel, a partir de Freud, atribuirmos um sentido trgico ao
tempo, este no pode decorrer
da finitude absoluta da morte. Neste caso, deve estar em jogo
uma finitude de outra ordem. Mas estando
descartada a morte, o que permitiria ao homem confrontar-se com
o tempo?
2. O tempo trgico
Talvez coubesse perguntar, antes de qualquer outra coisa: o que
quer dizer trgico? E o que
caracteriza um tempo trgico?
Ningum melhor do que Hlderlin, que se dedicou a pensar o tema do
tempo nas tragdias de
Sfocles, para nos responder a essas duas perguntas. Seguiremos
aqui suas Observaes sobre
dipo/Observaes sobre Antgona31, juntamente com o pequeno ensaio
de Jean Beaufret, "Hlderlin e
Sfocles"32
, que lhe serve de prefcio.
Aos olhos de Hlderlin, o afrontamento entre o divino e o humano
a questo trgica por
excelncia. O heri de Sfocles no o homem da desmedida (hybris)
ultrapassando o limite
estabelecido pelos deuses33, ao contrrio, quando este limite se
dissolve, quando todas as referncias
desaparecem que o acontecimento trgico encontra o seu lugar.
Hlderlin resume este momento numa
frase: "O Pai desviou dos homens o seu rosto,34
. No , portanto, a morte de Deus que est em questo -
j que Ele continua a "viver e a fazer infinitamente a sua obra,
mas acima de nossas cabeas, l no alto,
num mundo inteiramente outro"35
- mas uma infidelidade do divino com relao aos homens:
Hlderlin
a chama de desvio categrico dos deuses.
Este abandono do divino, contudo, no basta para definir a situao
trgica. Lembremos aqui de
Monnerot: o que se mantm "alhures" no capaz de instaurar o
trgico; para isso preciso que o
'inimigo' esteja no interior do prprio homem. Hlderlin no
descarta esta idia, mas a apresenta de
modo muito singular: infidelidade divina o heri trgico dever
responder com a sua prpria, fazendo
seu um tal abandono, suportando este distanciamento sem
preench-lo com queixas ou vs consolaes,
mantendo-o como lugar vazio, vivendo puramente esta separao. "E
pondo sobre os ombros uma carga
de achas de lenha, h muito a conter ... E o desejo caminha para
o ilimitado. Mas h muito a conter."36
Mas o que h a conter, seno a iluso do ilimitado, que s a presena
de Deus poderia garantir? O heri
trgico permanece entregue a seu vazio, a uma total despossesso,
sem que lhe seja possvel, contudo,
abandonar-se falta de mediao dessa experincia, porque o imediato
impossvel. esta a dimenso
29
A este respeito ver FREUD, S. "Inibies, Sintomas e Ansiedade"
(1926 [1925]). ESBI' vol XX, p. 153: o inconsciente parece nada
conter que pudesse dar contedo ao nosso conceito de aniquilamento
da vida. A castrao pode ser retratada com base na experincia
diria das fezes que esto sendo separadas do corpo ou com base na
perda do seio da me no desmame. Mas nada que se assemelhe morte
jamais pode ter sido experimentado (...) Estou inclinado,
portanto, a aderir ao ponto de vista de que o medo a morte deve ser
considerado
como anlogo ao medo da castrao. 30
DERRIDA, J. Op. cit. 31
HOLDERLIN. Remarques sur Oedipe / Remarques sur Antgone. Prcd de
Hlderlin et Sophocle par Jean BEAUFRET. Paris, Union Gnrale
dditions, 1965. 32
Ibidem. 33
Como em squilo, por exemplo, onde a ao trgica a histria de um
retorno ordem a partir de uma violao dos limites. Mas para
Hlderlin, squilo e Eurpides no vo ao corao do trgico, j que
dispem-se mais a objetivar o sofrimento e a clera, e menos o
sentido do homem, enquanto errante sob o impensvel. Op. cit. p. 13.
34
HOLDERLIN. Pain et Vin (lgie). Apud BEAUFRET, J. Op. cit. p. 15.
35
Ibidem 36
Apud BEAUFRET, J. Op. cit., p. 19
-
mais prpria da tragdia, exemplarmente retratada no dipo em
Colona. Deus no mais um pai ou um
amigo, e nem mesmo um adversrio a combater (tom-lo como
adversrio seria ainda buscar, pelo
avesso, a sua proteo e a sua garantia); Deus simplesmente
indiferente, lanando o homem no mais
puro acaso, no mais absoluto vazio, atravs do qual ele s poder
ser reenviado a si mesmo e ao prprio
desamparo.
Situar a indiferena dos deuses na origem de uma experincia
trgica no parece uma idia
estranha a Lacan, que a expressou em diversos momentos de seus
seminrios:
(...) a verdadeira frmula do atesmo no que Deus est morto -
mesmo fundando a
origem da funo do pai em seu assassnio, Freud protege o pai - a
verdadeira frmula
do atesmo que Deus inconsciente.37
Lacan no afirma que Deus o inconsciente; ele no est se
reportando a uma instncia psquica,
que poderia manter uma relao com Deus, enquanto tesouro dos
significantes. O que aqui est em
questo a figura de um pai incapaz de nos oferecer qualquer
garantia, j que perdeu a sua funo. Matar
o pai pode ser um modo de manter o seu lugar; por este motivo, a
morte de Deus no caracteriza
necessariamente um pensamento ateu. O prprio do atesmo no a
existncia ou no existncia do
divino, mas sua indiferena; a verdadeira frmula , neste caso, a
inconscincia de Deus com relao ao
mundo humano. Somente deste modo poderia lhe ser retirada toda e
qualquer funo paterna, seja ela a
de proteo ou a de tirania.
Lacan j havia introduzido este terna a propsito de lOtage de
Claudel e do dipo em Colona.
Na medida em que esta funo nos falta, ele escreve, tudo aquilo
que condio torna-se perdio38. O
Verbo, o Deus encarnado, funciona como lei onde nos inserimos
pela dvida a dvida com relao a um
pai morto, que nos propiciou a entrada na ordem simblica. Mas se
Deus desaparece,
(...) a prpria dvida onde tnhamos nosso lugar que nos pode ser
retirada, e ali que
podemos nos sentir ns mesmos totalmente alienados. Sem dvida o
At antigo nos
tornava culpados dessa dvida, mas ao renunciar a ela (...) somos
tomados por uma
infelicidade ainda maior, a de que nosso destino no seja mais
nada.39
Ao enfatizar o estado de perdio proveniente da ausncia de Deus,
Lacan estaria colorindo com
tintas mais vivas um argumento presente em Freud, que faz do
desamparo do homem diante de foras
que lhe parecem superiores o motivo da criao das figuras
divinas. Ao instituir os deuses, passamos a
acreditar que
"tudo o que acontece neste mundo constitui expresso das intenes
de uma inteligncia
superior para conosco (...) sobre cada um de ns vela uma
Providncia benevolente que
s aparentemente severa e que no permitir que nos tornemos um
joguete das foras
poderosas e impiedosas da natureza."40
O estado de desamparo , portanto, creditado ao acaso, ausncia de
inteno do que nos
acontece, quando nos tornamos joguetes de foras que no podemos
dominar. Freud no nos fala do
desamparo como uma experincia trgica; o nome por ele atribudo a
um tal tipo de experincia o de
"situao traumtica", e assim ele a descreve:
37
LACAN, J. O Seminrio. Livro 11. Op. cit. p. 60 38
LACAN, J. O Seminrio. Livro 8. Rio de Janeiro, Jorge Zahar,
1992, p. 295. 39
Ibidem. 40
FREUD, S. O Futuro de uma Iluso (1927). ESB, vol. XXI, p. 30.
curiosa a ressonncia neste trecho do argumento utilizado por
Kierkegaard, ao iniciar o Elogio de Abrao em Terror e Tremor : "Se
o homem no possusse conscincia eterna, se um poder selvagem e
efervescente produtor de tudo, grandioso ou ftil, no torvelinho
das paixes obscuras, existisse s no fundo de todas as coisas; se
sob elas
se escondesse infinito vazio que nada pudesse encher, que seria
da vida seno o desespero?
-
(...) a situao qual o ego est reagindo [pela angstia] de ser
abandonado pelo
superego protetor - os poderes do destino - de modo que ele no
dispe mais de
qualquer salvaguarda contra todos os perigos que o cercam.41
Mas podemos considerar esta situao como trgica na medida em que
as foras poderosas e
impiedosas no provm de uma natureza externa, mas de ns mesmos:
Freud afirma, neste mesmo
texto, que s h "desamparo psquico se [o perigo] for
pulsional."42
Perigo que no poderia provir,
evidentemente, das pulses sexuais, j capturadas pelo psiquismo,
mas apenas da pulses de destruio,
que podem transbordar no eu. esta luta entre o transbordamento e
o controle pulsional, escreve Freud,
"que nossas babs tentam apaziguar com sua cantiga de ninar sobre
o Cu."43
Os deuses so criados, de
fato, para nos proteger de um acaso que carregamos
permanentemente conosco.44
Deste modo, no apenas nos gregos que podemos distinguir os temas
da perdio, do acaso e do
desamparo que se entrecruzam para definir a experincia trgica.
Na prpria teoria analtica esses temas
comparecem, associados esfera pulsional. Nesse caso, trs outros
temas so acrescentados na definio
de uma tal experincia: o silncio, a repetio e a estranheza.
Podemos encontrar um bom exemplo na
leitura feita por Lacan de uma passagem enigmtica de A
Interpretao dos Sonhos. Vamos transcrever
inicialmente a sua fonte - o "sonho tocante" que abre o captulo
VII do texto freudiano:
"um pai estivera de viglia cabeceira do leito de enfermo do
filho por dias e noites a
fio. Aps a criana falecer, passou para o quarto contguo a fim de
repousar, mas deixou
a porta aberta de maneira a poder enxergar de seu quarto a pea
em que o corpo do filho
jazia, com longas velas erguidas em torno dele. Um velho fora
contratado para vel-lo e
sentou-se ao lado do corpo, murmurando preces. Aps algumas horas
de sono, o pai
teve um sonho de que seu filho estava de p ao lado de seu leito,
que o apanhou pelo
brao e lhe sussurrou em tom de censura: 'Pai, no vs que estou
queimando?' Ele
acordou, notou um claro brilhante no quarto contguo, correu para
ele e descobriu que
o velho vigia havia cado no sono e que as roupas e um dos braos
do cadver de seu
querido filho haviam sido queimados por uma vela acesa que
tombara sobre l".45
Freud aqui se preocupa apenas em confirmar tese de que os sonhos
so guardies do sono,
trazendo consigo a realizao de um desejo: "Por causa da efetivao
deste desejo, o pai prolongou seu
sono por um momento. O sonho foi preferido a uma reflexo
desperta, porque podia mostrar a criana
novamente viva.46
Mas Lacan no est interessado na confirmao desta tese; ele quer
ir alm, at o que
Freud denominou de umbigo do sonho, e por isso pergunta: o que
faz com que este pai desperte? Ser
simplesmente a realidade do acidente no quarto contguo - o sono
do velho vigia e o claro brilhante da
vela que queima? No, pensa Lacan, h neste sonho algo de "mais
fatal" repetindo-se por meio deste
acidente: trata-se da realidade ligada ao enigma da prpria morte
da criana, e que capaz de queimar
bem mais a vista do que o fogo no aposento ao lado:
Mas o filho morto pegando seu pai pelo brao, viso atroz, designa
um mais-alm que
se faz ouvir no sonho (...) Pai, no vs, estou queimando. Esta
frase, ela prpria uma
tocha ela sozinha pe fogo onde cai - e no vemos o que queima,
pois a chama nos cega
41
FREUD, S. "Inibies, Sintomas e Ansiedade" (1926 [1925] ESB, vol.
XX, p. 153. 42
Ibidem, p. 191. 43
FREUD, S. "O Mal-Estar na Civilizao, (1930 [1929]). ESB, vol.
XXI, p. 145. 44
Luiz Alfredo Garcia-Roza, em diversos trabalhos, aponta a pulso
de mort como dijnenso do acaso no campo psicanaltico. Ver, por
exemplo, O Mal Radical em Freud. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1990,
p. 127: "A pulso ocupa dm outro lugar, situado alm da ordem e
da
lei, alm do inconsciente e da rede de significantes, alm do alm
do princpio do prazer e do princpio de realidade, alm da
linguagem:
o lugar do acaso." 45
FREUD, S. "A Interpretao dos Sonhos11(1900). ESB, vol. V, p.
543. 46
Ibidem, p. 544.
-
sobre o fato de que o fogo pega no Unterlegt, no Untertragen [o
subjacente, a
sustentao] do real.47
A realidade neste sonho terrvel no est no acontecimento do
aposento contguo, nem na
realizao do desejo de um pai de esquivar-se da perda dolorosa de
um filho. Ela passa por esta frase,
pela voz, pela solicitao do olhar Pai, no vs - que o atingem da
maneira mais cruel: assim como o
velho vigia, ele, pai, no est altura de sua tarefa; ele no pde
garantir a vida de seu filho, porque ele
prprio no pode garantir-se com relao ao destino.
"[A realidade que determina o despertar] no ser o que se exprime
no fundo de
angstia desse sonho? - isto , o mais ntimo da relao do pai ao
filho, e que vem, a
surgir, no tanto nessa morte quanto no fato de ela estar mais
alm, no seu sentido de
destino."48
Lacan utiliza aqui o termo destino em sua expresso mais antiga,
utilizada pelos Trgicos gregos,
que lhe fornecem o sentido de no-necessrio, isto , de acaso.
apenas posteriormente, com
Aristteles, que o destino ser relacionado a algo que o homem
submetido para alm do seu controle,
mas que todavia est determinado.49
Assim, atribuir morte de um filho o carter de destino, no
sentido
aristotlico, uma forma de conjurar o acaso, tornando-a o efeito
de uma determinao exterior que,
mesmo pelo avesso, ainda capaz de funcionar como garantia. Mas
justamente esta garantia que se
esfacela quando, nas palavras de Lacan,"o fogo pega na sustentao
do real".
Este pai teria buscado proteger o filho de seu prprio desamparo
diante do acaso, e a este
desamparo ele devolvido: o reproche do menino testemunha o
fracasso paterno. Onde estaria, neste
momento, a Providncia, s vezes severa, outras benevolente, mas
sempre possuidora de uma inteno a
respeito de tudo o que nos acontece? A que Lei poderia um pai se
agarrar quando um filho morto o pega
pelo brao, solicitando-o em sua funo? Quando todos os
referenciais deixam de existir, quando a Lei
lhe vira as costas, revela-se a este pai tarde demais o que
estava dado desde o incio, ele j sabia, e que se
repete infinitamente: nada nos protege do acaso50
. E, contudo, ns o trazemos sempre conosco,
trabalhando em silncio, como j nos indicara Freud.
Assim, por meio do acidente casual - o barulho no quarto
contguo, a vela que tomba algo mais
fatdico que se repete e se reafirma: um real inoportuno,
mal-vindo, que , para Lacan, o maior cmplice
da pulso. O que nos desperta, ele escreve, a outra realidade
escondida por trs da falta do que tem
lugar na representao - o Trieb, nos diz Freud.51 O desamparo
psquico provm, necessariamente, da
esfera pulsional. Esta realidade silenciosa, irrepresentvel,
constitui o umbigo do sonho, o que o causa e no que ele fracassa,52
indicando-nos, em seu transbordamento, uma ciso maior do que aquela
que
atravessa o sujeito, a ciso entre o psiquismo e as pulses,
responsvel, em ltima instncia, por todo o
sentimento de estranheza que faz o homem reconhecer-se" naquilo
que acontece sua revelia. Se os
47
LACAN, J. O Seminrio. Livro 11. 0p. cit., pp. 60-61 48
Ibidem, p. 70. 49
A este respeito ver ROSSET, C. Lgica do pior. Op. cit., p. 66
67: Segundo Clment Rosset, possvel atribuir-se dois sentidos bem
diferentes noo de necessidade ou de destino~, conforme se
privilegie os prprios autores trgicos ou a interpretao fornecida
por
Aristteles. Para este ltimo, o destino possui um carter causal,
ainda que esta causa seja oculta para o homem. Os Trgicos,
contudo,
trabalham esta questo por um outra via; para eles a necessidade
"baseia-se no ser-a, no no ser porque: o destino no designa nada
alm
do carter irrefutavelmente presente de tudo o que existe ( ... )
No necessidade global de uma adeia de, necessidades fatais, assim
que
se pode definir o que os Trgicos gregos entendiam por esta noo
Ela se distingue da necessidade no sentido ordinrio, por designar
fatos
antes que efeitos." ROSSET, C. Lgica do Pior. Op. cit. , pp.
66-7. a nosso ver, Lacan parece aproximar-se mais desta concepo
trgica,
uma vez que relaciona a noo de Tych (encontro com o real) idia
de acaso, ao invs de associ-la a uma causa acidental onde
suposta
uma deliberao desconhecida (como em Aristteles). 50
O acaso reafirmado pela repetio pulsional no deve ser entendido
como desvio da ordem, como exceo casual de uma lei - pois desse
modo ele a confirmaria. Ele deve ser situado no alm da ordem e da
lei, como um acaso constituinte, como nos indica ROSSET, C. A
Lgica do Pior. Rio de Janeiro, Espao e Tempo, 1989, p. 82: "O
acaso, no sentido trgico, anterior a todo acontecimento como a
toda
necessidade, do mesmo modo que o caos pelo qual os antigos
filsofos gregos designavam o estado primeiro do mundo, anterior de
direito como de fato a toda 'ordem'. 51
LACAN, J. O Seminrio. Livro 12. Op. cit., p. 61. 52
lbidem, p. 72
-
deuses so varridos, ele no dispe mais de qualquer salvaguarda
contra aquilo que lhe mais distante e,
simultaneamente, mais ntimo.
Quando os deuses so varridos, pergunta-se Lacan, o que resta
como limite? Em sua anlise de
Antgona, o limite que permanece o da segunda morte - a morte
simblica. A pulso se presentifica na
tragdia nesta terra-de-ningum, nesse entre-duas-mortes onde
Antgona situa o seu desafio de viver a
partir desse limite onde ela j perdeu a vida.53 Em Freud,
contudo, a zona de no man's land no poderia
ser pensada nestes termos: um entre-duas-mortes supe, num de
seus extremos, a relao do homem com
a morte real, relao esta que ele no seria capaz de estabelecer,
nem no plano da pulso, nem na esfera
psquica, e tampouco no campo dos saberes que erige: a prpria
cincia no assegura, segundo Freud, o
carter inevitvel da morte. Mantenhamos ento a pergunta de Lacan.
O que que resta, quando os
deuses so varridos?
Hlderlin dir: o tempo. Quando o divino se distancia do humano
instala-se um hiato, um vazio
que a partir de ento dever constituir a relao entre os dois
mundos. neste vazio que Hlderlin ver a
dimenso prpria do tempo trgico, e ela que vamos agora
desenvolver
O afrontamento entre o homem e o Deus faz surgir o tempo, afirma
Hlderlin. No que antes
ele no existisse; mas tratava-se se um tempo subordinado ordem
divina - a ordem de Chronos -, que
lhe proporcionava uma curvatura, uma forma cclica, para que
assim ele pudesse se tornar imagem e a
semelhana do eterno: (O tempo como imagem mvel da eternidade,
como o definira Plato).
De fato, se a esfera do divino permanece idntica a si mesma-,
eterna e imutvel, o tempo dos
homens s pode a ela assemelhar-se pelo movimento circular, no
qual comeo e fim coincidem, e onde a
lei da recorrncia ao mesmo ponto garante, sob certo aspecto, a
permanncia e a perpetuidade: pois se
sempre o mesmo que retorna, o tempo no deixa de imitar, ainda
que atravs do movimento, a eternidade
imvel. Um tempo circular implica no apenas uma repetio do mesmo,
como tambm uma sucesso
logicamente encadeada de causas e efeitos, onde todos os
acontecimentos se encontram rigorosamente
prescritos. Temos assim um tempo obediente s determinaes
divinas, no qual no h lugar para o
acaso: o que define a temporalidade a ordem causal impingida por
Chronos e que se expressa no
encadeamento regular dos eventos que do ao tempo um contedo
material sucesso de coisas, de
estados, etc.54
Mas no momento em que o divino vira as costas aos homens, o
tempo liberta-se da curvatura que
era imposta por Chronos, perde o seu carter circular, e nele
incio e fim no mais coincidem. Ou, nas
palavras de Hlderlin, "incio e fim no se deixam mais combinar,
como rimas"55
. O homem, reenviado
a si mesmo pelo abandono do divino, v-se diante de um tempo onde
no h lugar para a repetio do
mesmo, estando tambm destitudo de toda ordenao causal capaz de
encadear um antes, um durante e
um depois: o tempo est ento sem governo, o esprito da selvageria
inexpressa e totalmente viva
(...).56 Hlderlin o chama de "tempo vazio" porque ele vazio de
toda determinao.- de todo
contedo. Nele no h, como no tempo de Chronos, causa e efeito,
antecedente e conseqente, em
sucesses diversas, mas sempre, segundo uma regra segura, que
encadeia uns aos outros57. Esta ordem
de sucesso no existe no tempo trgico; ao contrrio, ele vazio de
toda ordenao, , propriamente
falando, o no-lgado58, o disperso.
E contudo ele que permite separar a esfera divina e humana,
escavando um abismo entre os
dois mundos; o tempo trgico situa-se num entre-dois, entre a
eternidade o tempo institudo por Chronos
(um tempo do entretempo, o denomina Blanchot) para alm da Lei
eterna e da lei mundana, no lugar
do no-ligado, do acaso. O homem deve fazer seu este vazio, pois
no seu interior que o distanciamento
categrico se cumpre. Com este gesto, ele relanado a si prprio,
ao seu desnudamento e ao seu
desamparo. O homem perde a semelhana com Deus, e, interiorizando
este, afastamento, perde a
semelhana consigo mesmo, que lhe era garantida pela presena
divina.
53
LACAN, J. 0 Seminrio. Livro 7. Op. cit., p. 339. 54
A este respeito ver DELEUZE, G. Diferena e Repetio. Rio de
Janeiro, Graal, 1988, p. 154-5. 55
HOLDERLIN. Remarques sur Oedipe/Rernarques sur Antigone. Op.
cit., p. 65 56
Ibidem, p. 71 57
Ibidem, p. 49 58
Ibidem, p. 49
-
Se no h como relacionar a este tempo vazio nenhum contedo
material ou mnemnico -
nenhuma representao, diramos -; defrontamo-nos com um tempo
paradoxal, onde se torna impossvel
qualquer encadeamento lgico entre passado, presente ou futuro.
Na esfera trgica estas dimenses
temporais no se dispem com relao a uma ordem que permitiria
articul-las; o antes e o depois so
simultneos e jamais se relacionam a um contedo material capaz de
marear uma diferena entre o at
aqui e o doravante. o tempo da pura repetio, no havendo um algo
que se repita; o que retorna a
diferena - no uma diferena com relao a um momento precedente,
mas uma diferena em si mesma,
j que no h qualquer contedo que a ela esteja associado. Nesse
caso, o que retorna apenas o
movimento de tornar-se, sem que ainda se tenha tornado coisa
alguma.
Este tempo paradoxal, sempre j passado e eternamente ainda por
vir, j havia sido pensado pelos
gregos; Hlderlin o retoma, aplicando-o tragdia de Sfocles, mas
sem mencionar o seu antigo nome:
Aion.59
No desenvolveremos aqui a noo ele tempo ainico. Atravs de
Hlderlin j teramos apontado
aquilo que o caracteriza: o acaso, a ausncia de encadeamento
lgico entre o anterior e o posterior, o
puro vir a ser (ou tornar-se).
Naturalmente, Freud jamais chegou a abordar estes temas com
relao pulso de morte.
Entretanto eles nos permitem inseri-la na dimenso do tempo, e de
um tempo consonante com a
descrio que Freud nos fornece a seu respeito: uma energia livre,
dispersa e, como tal, excessiva. fato
que no podemos estabelecer marcaes de passado, presente e futuro
num campo de energia
indiferenciada, pois no seria possvel a distinguirmos o que
anterior do que posterior. Mas nem por
isso precisamos privar a pulso de temporalidade; s o fazemos
quando estamos de algum modo
aferrados s imposies de Chronos, para quem o tempo s se torna
pensvel quando h um
encadeamento lgico entre um antes e um depois, e quando
diferentes representaes permitem
articul-los. Na esfera do trgico ao contrrio, o tempo se d como
um vazio de determinaes um devir
no ligado, disperso, sem governo.
Ligar a pulso ao tempo implica em retirar de ambos a vinculao
com a morte prpria, seja esta
pensada em termos biolgicos ou metafsicos. Se a pulso se
relaciona com a morte, apenas na medida
em que promove a morte de tudo o que uno, possibilitando o
surgimento do diverso; ela antes uma
potncia separadora do que um "retorno ao inanimado". Ela no se
define como uma tendncia ao limite
ltimo e certo da vida, mas , em si mesma, o prprio limite do
princpio do prazer e do -campo
subjetivo que ele ordena; por se chocar com a energia
indiferenciada da pulso que esta ordem no
pode se tornar absoluta, e por este choque que o sujeito
impedido de unificar-se: a existncia do
conflito psquico, escreve Freud, dificilmente pode ser atribuda
a algo que no seja a interveno de
um elemento de agressividade, livre.60
Lacan chamar de "encontro com o real" este esbarro do psiquismo
com a energia pulsional
livre e indomada. Este encontro descrito como mal-vindo e
traumtico: nele marca-se, a um s tempo,
a falncia do imaginrio e o limite do simblico-, trazendo-nos o
esboroamento de todas as garantias - o
distanciamento dos deuses, segundo Hlderlin - e que se traduz na
sensao "de que nosso destino no
seja mais nada." Freud privilegiar a dimenso do unheimlich na
descrio desta experincia. Na medida
em que o aparato psquico no capaz de domar esta energia livre
que insiste em pression-lo, ele
escreve, o homem v-se tomado por uma "sensao de desamparo e
estranheza".61
Freud enfatiza que
ser percebido como estranho "o que quer que nos lembre esta
ntima compulso repetio62, e que o
transbordamento pulsional no campo estruturado do eu impe a idia
de algo fatdico e inescapvel, 63
que nos subjuga, a partir de ns mesmos.
59
Sobre a relao entre o tempo trgico em Hlderlin e o Aion ver
DELEUZE, G. Diferena e Repetio. Op. cit., p, 193-194. Vale tambm
ressaltar que o Aion conheceu entre os gregos acepes diversas;
estamos aqui privilegiando a que lhe foi dada por Herclito - um
dos filsofos trgicos segundo Nietzsche. Num de seus fragmentos o
Aion aparece, atravs da metfora do jogo de crianas, como
intimamente ligado ao acaso. Posteriormente, os filsofos
esticos, dizendo-se descendentes de Herclito, desenvolveram esta
noo,
enfatizando a simultaneidade entre passado e futuro que a
estaria implicada. 60
FREUD, S. "Anlise Terminvel e Interminvel" (1937). ESB, vol.
XXIII, p. 278 61
FREUD, S. "O Estranho"( 1919). ESB, vol. XVII, p. 296. 62
Ibidem, 298. 63
Ibidem, p. 296.
-
A pulso assim a potncia fatal que vem do exterior do psiquismo,
mas do interior do homem,
tornando-o dessemelhante consigo prprio. "Ver de sbito", escreve
Rosset, "o presente, o prximo, o
familiar, como ausente, longquo e estranho, a experincia trgica
por excelncia"64
. Desse modo, no
da morte, da qual no temos qualquer certeza e a qual no podemos
-antecipar, que o tempo retira o seu
carter trgico; mas de unia situao onde alguma coisa de
dissimtrico - que no mais permite a
combinao de rimas, segundo Hlderlin - aparece, no interior do
prprio homem. Dito de outro modo,
no pela relao com a morte que a finitude torna-se uma questo
para o homem, e sim pela
desproporo que o constitui e que ele porta consigo. A atividade
silenciosa da pulso de morte , em
ltima instancia, a causa desta disjuno, engendrando o tempo
"fora de seus gonzos" que dever ser
rearticulado pelo psiquismo. Nesse sentido, poderamos dizer que
o tempo vazio de qualquer
determinao e de qualquer contedo -prprio da pulso, enquanto que
a estrutura temporal o que
define a subjetividade. Ou, dito de outro modo: teramos de um
lado uma articulao temporal entre
diversas representaes e, de outro, um campo onde o tempo deixa
de ser um modo de operao para
apresentar-se em estado puro.
Sem dvida, h tambm uma desproporo interna ao campo subjetivo - o
sujeito do inconsciente
tambm um outro com relao ao sujeito da conscincia.. Mas neste
caso trata-se de uma alteridade
relativa, passvel de ser descrita como diversidade de lugares
psquicos, cada qual possuindo um regime
temporal determinado. Entre a pulso e o psiquismo, entretanto, -
ou entre a subjetividade e aquilo que
ameaa aboli-la - instaura-se uma alteridade radical, no mais
pensvel em termos tpicos (lugares
psquicos) e no demarcvel com relao a regimes de tempo. A relao
no se coloca entre dois
sujeitos, ou entre dois modos de articulao temporal, mas entre o
estruturado e o disperso, a
representao e o irrepresentvel, entre a funo organizadora do
tempo e um estado de indeterminao
onde ele no se liga a nenhum trao mnemnico.
Ou ainda, para exprimir no plano do tempo esta relao to
desigual, e, todavia, constitutiva da
subjetividade, a pulso se apresenta como eterno retorno do
outro, do Estranho, ameaando destruir as
articulaes temporais impostas por Chronos (mesmo que estas no
sejam, necessariamente, circulares).
Mas se conjugamos a destruio possibilidade do recomeo, podemos
considerar a pulso como a
causa primordial da temporalizao humana: o seu tempo selvagem e
no-ligado que o psiquismo
tentar dominar, produzindo modos de encadear logicamente o antes
e o depois, transformando o tempo
puro em ordenaes temporais.
64
ROSSET, C. Lgica do Pior. Rio de Janeiro, Espao e Tempo, 1989,
p. 69
-
CONCLUSO
Daimon kai tych
Ningum se banha, costumamos dizer, duas vezes nas guas de um
mesmo rio, porque este corre
irreversivelmente, e as guas que passam agora no so as mesmas
que passaram antes ou que passaro
depois. Costumamos nos utilizar desta metfora para pensar o
carter irreversvel do tempo: sua imagem
primordial seria a do fluxo, do escoamento, onde os instantes
passam como se pertencessem a uma
grande corrente, abarcando todas as coisas e empurrando-as
sempre para diante.
Rastreamos neste trabalho diversas concepes de tempo na obra de
Freud. Mas a imagem do
fluxo no se mostrou adequada para pensar nenhuma delas, e muito
menos para definir o seu conjunto. O
que pudemos encontrar nas entrelinhas de Freud foram acepes
variadas, e algumas vezes bastante
heterogneas entre si: uma idia abstrata, proveniente do
funcionamento descontnuo da conscincia;
uma lgica temporal a posteriori, regendo as operaes
inconscientes, e qual poderamos tambm
referir a origem do sujeito e a memria filogentica; o tempo
circular e irreversvel da pulso no
psiquismo; o tempo puro e vazio da pulso de morte. Seria
empobrecedor criarmos artificialmente um
plano de referncia sobre o qual estas diversas concepes pudessem
adquirir uma unidade; no
desejamos estabelecer aqui nenhuma sntese temporal na obra
freudiana, preferindo manter e frisar este
carter mltiplo, mais em consonncia com os funcionamentos
marcadamente distintos que Freud atribui
ao psiquismo e s pulses.
H, contudo, uma imagem do tempo que parece se destacar na teoria
freudiana - mesmo que no
englobe todas as suas concepes: a imagem da inquietude. Haveria
um no-repouso no tempo que,
sem fazer apelo a qualquer idia de fluxo ou de escoamento, se
expressaria na inquietude do mesmo pelo
outro, isto , na relao diferencial que constitui a
subjetividade. Em outros termos, o tempo estaria
referido sempre a uma disjuno, pela qual o mesmo impedido de
reunir-se ao mesmo. Esta disjuno
estaria presente nos diversos registros psquicos e pulsionais,
engendrando a modalidade temporal que os
caracteriza: no plano da pulso sexual, a disjuno aparece entre
os quatro termos que balizam o
funcionamento pulsional, possibilitando o seu circuito
espiralado; no registro inconsciente, ela ocorre
entre a experincia do real e a representao que permite
contorn-lo, produzida apenas a posteriori; o
campo da pulso de morte disjuntivo por excelncia, revelando-se
ento um tempo puro.
Mas a inquietude aparece tambm sobre uma outra forma, mais
fundamental, e que define o
prprio campo de operao da psicanlise. Freud expressou-a muito
bem, numa carta a Else Voigtlnder:
"Entendemos que no lidamos na psicanlise com uma nica disposio
mas com um
nmero infinito delas (...) a disposio , por assim dizer,
polimorfa (...). A questo de
saber o que mais importante, a constituio ou a experincia, qual
dos elementos
decide a personalidade, s pode ser respondida, a meu ver, com
damon kai tych
(destino e acaso) e no com um ou outro.65.
Considerar o acaso como parte do campo psicanaltico notvel para
um pensador que desejava
ver o saber que construra legitimado pelas cincias de seu tempo
(que, naturalmente, excluam o acaso,
encarando-o como um indcio de um aparato cientfico insuficiente,
e passvel de ser dominado pelo
progresso do conhecimento). Esta passagem notvel tambm com relao
ao prprio Freud, que,
alguns anos antes, escrevera A Psicopatologia da vida cotidiana
(1901), obra onde no h lugar para o
65
Letters. Carta de 1/10/1911. Apud FORRESTER, J. Sedues da
Psicanlise: Freud, Lacan e Derrida. Campinas, Papirus, 1990, p.
209.
-
acaso: sua tentativa neste livro fora a de demonstrar o quanto
as parapraxias que nos pareciam casuais
em nosso dia-a-dia eram regidas, de fato, por um frreo
determinismo. Mas agora Freud aponta para o
fato de que a psicanlise lida com uma dimenso que est para alm
da causalidade das cincias, e para
alm do prprio determinismo, inconsciente: o campo psicanaltico
envolve destino e acaso, e no um ou
outro.
Esta passagem foi escrita em 1911 e, portanto, bem antes da
hiptese da pulso de morte surgir
no horizonte da teoria freudiana. Aqui, o destino associado
constituio, concebida como um tipo de
padro determinante e fatdico, do qual no podemos fugir. Discutir
se tal padro ou no atribudo a
uma disposio inata no , neste caso, o elemento essencial; mais
importante o fato dos fatores
constitutivos no poderem ser explicados pelo plano da
experincia: "o que permanecer inexplicado aps
um estudo do acidental pode ser imputado constituio"66
. O acaso ento parece ser descrito como o
fortuito, o contingente, a dimenso inesperada da experincia que
capaz de desenvolver e fixar - ou no
- o padro constitucional.
Todavia, a noo de pulso de morte ser capaz de revolver estas
relaes. Pois Freud a ela
conduzido justamente quando a esfera do acidental no consegue
mais dar conta das explicaes de
alguns fenmenos observados na clnica. Porque repetimos, nossa
revelia, experincias que s nos
trazem desprazer? Como possvel imputarmos ao acidental este modo
de repetio cega? Nesse caso, o
acidental s poder explicar o que est para alm do princpio do
prazer se o pensarmos como acidente
original, constitutivo, e, como tal, inapreensvel segundo o
modelo da causalidade fortuita. Dito em
outros termos: esse "acidente" funcionaria como causa dos
encadeamentos psquicos, mas ele seria, em si
mesmo, indeterminado, no-causado: ele no estaria se desviando de
ou sendo produzido a partir de uma
ordenao qualquer, mas se colocaria para alm de qualquer ordenao
- entramos ento no terreno do
acaso.
Assim, com o advento terico da pulso de morte, a relao entre
destino/constituio e
acaso/experincia dever ser retraada, invertendo-se os termos que
a definiam anteriormente: o acaso
estar no lugar da pulso, e o destino ser associado ao
determinismo que preside os nossos gestos, falas
e atitudes, por mais casuais que estes nos possam parecer.
Contudo, mesmo que colocada sob novas
bases, a oposio que define o campo psicanaltico permanece:
destino e acaso, e no um ou outro.
J dissemos que o acaso era rechaado pelo campo cientfico
contemporneo a Freud. E, de fato,
este foi um tema que sofreu um constante repdio, tanto pela
cincia como pela filosofia, por furtar-se
toda tentativa de interpretao. A filosofia e a cincia constituem
diferentes modos de inteligibilidade
sobre o mundo, mas em ambos os casos trata-se de reduzir a
dimenso do arbitrrio. Esses sistemas
interpretativos j aparecem, portanto, comprometidos com a ordem,
ordem esta que o acaso teima em
revogar. Por este motivo, o acaso objeto de repdio: ele traz a
pane ao discurso, designando o momento
em que as explicaes estancam e emudecem.
Fala-se hoje numa metamorfose do saber cientfico. Nas ltimas
dcadas deste sculo, a cincia
abre um espao terico capaz de inscrever alguns temas que, at
ento, tinham definido as suas
fronteiras. A biologia molecular, a partir do trabalho de
Jacques Monod sobre o cdigo gentico, j havia
integrado o acaso em seu sistema interpretativo, explicando a
evoluo da vida como produto do acaso e
da necessidade: acaso das mutaes, necessidade das leis
estatsticas da seleo natural67
. Porm neste
caso, o acaso era concebido como um acidente fo