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Alberto Nepomuceno: vnculos modernistas no Trio em F sustenido
menor (1916)
Luiz Guilherme Duro Goldberg1 (Universidade Federal de
Pelotas)
Resumo:
Alberto Nepomuceno tem sido descrito, pela tradio historiogrfica
brasileira, invariavelmente, pelos seus vnculos com o nacionalismo
musical. No entanto, como interpretar as consideraes a respeito de
seu modernismo musical? Uma das obras pilares para esse
entendimento o seu Trio em f sustenido menor, para violino,
violoncelo e piano, composto em 1916. Tendo as crticas de sua
estreia e da Audicin de Obras de Compositores Brasileos, ocorrido
em Buenos Aires, em 1919, como substrato, procedeu-se a anlise
dessa obra para, a partir da, compreender os pareceres nelas
veiculados, bem como diagnosticar os seus vnculos com o modernismo
musical.
Palavras-chave: Alberto Nepomuceno; modernismo musical; Trio;
anlise musical.
1 Atualmente professor adjunto no Conservatrio de Msica da
Universidade Federal de Pelotas. Tem experincia na rea de Artes,
com nfase em Msica Brasileira na Primeira Repblica e Anlise
Grafotcnica atuando principalmente nos seguintes temas: modernismo
musical na Primeira Repblica, msica de Alberto Nepomuceno e edio de
partituras.
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No transcorrer da vida musical de Alberto Nepomuceno, o
caminho
iniciado em sua Variations sur un Theme Original op. 29, de
1902, mostrou-se
como um portal para novas expresses, cabendo ao crtico Luiz de
Castro um dos
primeiros diagnsticos sobre essas transformaes, cujas ousadias
harmnicas do
compositor, observadas em seu Trio para piano, violino e
violoncelo (1916), o
tinham convertido definitivamente em um compositor completamente
moderno.
Referindo-se ao seu concerto de estreia, em 31 de agosto de
1916, assim
Luiz de Castro prossegue:
A quem tem acompanhado de perto a carreira artistica de
Nepomuceno, a primeira impresso que logo se sente ao ouvir o Trio
da completa transformao operada no systema harmonico adoptado pelo
autor da Symphonia em sol menor. Acompanhando, como todo artista
digno desse nome, a evoluo musical, elle se tornou um compositor
completamente moderno, que no recua deante das mais ousadas
combinaes harmonicas, sem que, entretanto, haja nellas cousa alguma
que offenda os ouvidos; e assim que, no seu Trio, ha effeitos
novos, bizarros, curiosos, interessantes. Essa transformao, a que
me refiro, comeou a se manifestar na sua obra para piano, Thema e
Variaes,2 []. Depois, ella se accentuou na comedia musical O
Garatuja, [], e escripta em estylo completamente differente do
Abul. A segunda impresso deixada pelo Trio da sua completa unidade.
Toda a obra se basea no thema da introduco, do qual se originam os
themas dos quatro tempos do Trio. No seu desenvolvimento, nas suas
combinaes harmonicas, ha uma riqueza extraordinaria, a par de uma
suavidade pouco vulgar. Ao primeiro allegro, em que se notam
contrastes impressionantes, effeitos novos, preciso, succede um
andante de profundo sentimento, pagina de rara elevao, que commove
e traz a fielmente todo o sentimentalismo da alma cearense. Mas
essa alma feita de contrastes violentos. To depressa se absorve em
doce melancolia, quanto se entrega logo em seguida s travessuras
infantis. So estas travessuras que surgem no Scherzo, que como seu
nome indica, um gracejo. Dir-se-io creanas a brincar
extravagantemente, desordenadamente; mas eis que a brincadeira um
instante interrompida; o motivo central traduz como que repentina
contrariedade, que ennuvia o semblante das creanas. um instante, e
as travessuras recomeam, e quando ellas acabam, o publico pede bis.
O Final
2 Embora o nome Thema e Variaes seja o ttulo de seu op. 28,
creio que a obra a qual Luiz de Castro se refere a Variations sur
un Thme original op. 29. Tal avaliao se deve ao fato de a obra op.
28 ser tributria a Brahms, enquanto a sua op. 29 mostra-se mais
experimental e inovadora. Refora tal concluso a confuso apresentada
no catlogo da Exposio Comemorativa do Centenrio do Nascimento de
Alberto Nepomuceno, onde na vitrine n X, item 130, apresenta a
partitura do Tema e Variaes op. 28 com a observao manuscrito
original para piano com o ttulo de Variaes sobre um tema
original.
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L. G. D. GOLDBERG Alberto Nepomuceno: vnculos modernistas no
Trio em F# menor (1916)
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inicia-se com o thema do comeo, a que se segue logo um allegro
de uma alegria communicativa. a vontade de viver, a manifestao
radiosa da alma por tudo quanto ha de bom na vida, pelos prazeres
inegualaveis que a arte sadia e forte proporciona. E a obra termina
assim em um raio de luz fulgurante, que provoca o enthusiasmo do
auditorio.O Trio em f sustenido menor de Alberto Nepomuceno uma
obra prima. (A Noite, 1/9/1916)
Ainda de acordo com Luiz de Castro, na mesma coluna, entre as
figuras
ilustres que presenciaram a sua estreia, encontravam-se os
compositores e
maestros franceses Xavier Leroux e Andre Messager,3 cujo
entusiasmo o fez dirigir-
se a Nepomuceno exclamando Voc estreou por um golpe de mestre!,4
alm
de manifestar que faria executar o Trio em Paris pela Socit
Nationale de
Musique de Chambre.
Entretanto, a manifestao de Messager no se restringiria a
esta
declarao. Em 16 de setembro de 1916, faz publicar no Jornal do
Commercio
Na sala de concertos do Jornal do Commercio nos convocamos ontem
de manh, Xavier Leroux e eu, para escutar dois trios de dois
mestres brasileiros. Alguns raros privilgios deslizam
discretamente, [] admiradores dos dois compositores, e l passamos
duas horas deliciosas consagradas arte mais sincera e mais pura.
primeiro o Trio de Alberto Nepomuceno; e, desde os primeiros
compassos do tema que serve de base aos quatro movimentos da obra,
sentimo-nos tomados, movidos por este pensamento srio, nobre e
profundo. Esta , parece, a primeira obra de msica de cmara composta
por Nepomuceno, mas se pode, sem hesitar, aplicar-lhe os versos de
Corneille: Seus semelhantes duplamente no se fazem conhecer E para
suas tentativas querem os lances de mestre! Pattico no primeiro
movimento, comovente no andante, cheio de verve e originalidade
rtmica no Scherzo, potente e voluntrio no final que resume e
comenta a obra inteira, tal este Trio que coloca desde a primeira
ao seu compositor no rol dos melhores da msica moderna. (Jornal do
Commercio, 16/9/1916, traduo nossa)
3 Andr Messager (1853-1929) foi membro do comit de direo da
Socit Nationale de Musique, ao lado de Alfred Bruneau, Claude
Debussy, Paul Dukas, Henri Duparc e Vincent dIndy, durante a
presidncia de Gabriel Faur, em 1914 (Duchesneau, 1997, p. 47).
Dirigiu a orquestra da Opra-Comique (1898-1903), do Covent Garden,
em Londres, (1901-1907) e da Opra de Paris (1907-1913). Regeu a
estreia de Pellas et Mlisande de Debussy, sendo a ele dedicada.
(Angls, H., Pena, J. Diccionario de la Msica Labor, 1954, v. 2, p.
1522). 4 Vous avez dbut par un coup de matre! (A Noite, 1/9/1916,
traduo nossa).
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No ano seguinte, Darius Milhaud compartilhava da mesma opinio e
ansiava
pela sua publicao para lev-lo a Europa, conforme atesta sua
carta datada de 23 de
maio de 1917 e publicada no Jornal de Commercio no dia 28 de
maio.
Tenho a dizer-vos toda a alegria que provei ontem ouvindo vosso
bonito trio. Mr. Henrique Oswald tinha-me avisado do ensaio de seu
trio e do vosso no Instituto e fiquei muito feliz de ouvir as duas
obras nas quais se desenham claramente os diferentes temperamentos
dos dois maiores compositores do Brasil. Eu reencontrei, na audio
de ontem, todas as qualidades de vigor, de grandeza, de
profundidade de sentimento que havia sentido em vosso trio quando
amavelmente o havia mostrado ao piano. Espero que voc o publique
logo para que eu possa lev-lo Europa e o submeter a meus amigos em
Paris, logo que eu retorne. (Jornal do Commercio, 28/5/1917, traduo
nossa)
Entretanto, no se conclua da a unanimidade nas consideraes a
respeito deste Trio. Tal se depreende da Audicin de Obras de
Compositores
Brasileos ocorrida em Buenos Aires, em 10/12/1919, promovido
pela Asociacin
Wagneriana de Buenos Aires.5
Segundo o articulista da Revista de la Asociacin Wagneriana
de
Buenos Aires,
O Trio para piano, violino e violoncelo, de Alberto Nepomuceno,
com o qual iniciou a audio, uma obra de perfeita claridade, com
ideias meldicas belamente desenvolvidas e ponderada cincia musical,
que deixa sempre livre o vo da inspirao. Acusa, talvez, menos que
as demais do programa a influncia francesa, sem que isto signifique
que se aparte dela em absoluto. (Revista de la Asociacin Wagneriana
de Buenos Aires, 1919, p. 11-12, traduo nossa).
No mesmo vis, ressaltando aspectos positivos, encontram-se
consideraes sobre a sua forma e concepo clssicas (La
Argentina,
5 Neste concerto, alm do Trio em F sustenido menor de
Nepomuceno, figuraram no programa: Il Neige, para piano, Elegie,
para violoncelo e piano e Romance, para violino e piano, de
Henrique Oswald; Les Cloches e Les brebis qui rentrent, para piano
de Alfredo Oswald; Quarteto op. 56, para dois violinos, viola e
violoncelo, de Villa-Lobos. A obra de Villa-Lobos pode ser
identificada como sendo o Quarteto de Cordas n2 (1915), em virtude
de seus movimentos.
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L. G. D. GOLDBERG Alberto Nepomuceno: vnculos modernistas no
Trio em F# menor (1916)
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11/12/1919), cujo tema inicial de carter severo e arcaico (La
Prensa,
11/12/1919), um recitativo gregoriano de extraordinria nobreza
(La Nacin,
12/12/1919), alm do seu notvel sentido de proporo e perfeito
equilbrio entre
as sonoridades dos instrumentos (La poca, 11/12/1919).
Em contraponto, alguns jornais ressaltam certa falta de unidade
(Tribuna
Espaola, 11/12/1919), seu escasso interesse devido seu carter
confuso e trivial
nos ltimos movimentos (La Vanguardia, 12/12/1919), ou mesmo
uma
montona vulgaridade, que nem sequer tem a atenuante de um tema
folclrico;
simples msica italiana, de cinqenta anos, e com marcadas
tendncias lricas.6
(La Unin, 11/12/1919)
Embora este conjunto de crticas possa ser interpretado segundo
vrios
vieses, importa neste momento decifr-lo de acordo com os
aspectos tcnicos que
o norteou. Desta maneira, talvez se conclua as razes geradoras
das avaliaes
negativas acima referidas. No entanto, interessante observar que
enquanto as
crticas de Luiz de Castro ou Messager se referiam ao modernismo
deste Trio, os
escritos argentinos detectaram alguma influncia francesa.
Como denominador comum, encontra-se o fato de seu tema inicial
ser
percebido como bsico para toda a obra, o que remete as avaliaes
a sua
estrutura de sonata cclica. Possivelmente isto tenha contribudo
para que o Trio
fosse considerado de concepes clssicas, explicitado em seu
sentido de
proporo, e mais afastado da influncia francesa, embora seja um
exagero
consider-lo msica italiana ou trivial.
Deve-se lembrar que Alberto Nepomuceno estudara na Schola
Cantorum,
pilar educacional da Socit Nationale de Musique, que
privilegiava as grandes
formas tradicionais (Duchesneau, 1997, p. 155), entre elas a
sonata cclica. Segundo
Vincent dIndy, diretor da Schola e sucessor de Csar Franck na
presidncia da Socit
Nationale, incluindo uma franca propaganda nacionalista em seu
Cours de
6 La sesin daba comienzo con un tro en fa sostenido menor de
Alberto Nepomuceno, que consta de cuatro tiempos. En ninguno se nos
dice nada nuevo: transcurren en una montona vulgaridad, que ni
siquiera tiene la atenuante de un tema folklrico; es simples msica
italiana, de hace cincuenta aos, y con marcadas tendencias lricas.
(La Unin, 11/12/1919)
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Composition Musicale (1909), coube Frana levar essa forma cclica
perfeio pelo
trabalho de Franck, a quem considerava herdeiro direto de
Beethoven.7
Entretanto, se a princpio a Socit Nationale era considerada por
seu vis
moderno, em finais da primeira dcada do sculo XX isto no mais
ocorria. Da a
ciso responsvel pelo estabelecimento da Socit Musicale
Indpendante que
pregava a liberdade estrutural, em oposio s formas preconizadas
pela Schola.
Assim, sintomtico que enquanto a Socit Musicale Indpendante
j
havia realizado um Festival Arnold Schoenberg em 15 de dezembro
de 1927
(Duchesneau, 1997, p. 322), este compositor s tenha sido includo
nos
programas de concertos da Socit Nationale a partir de 1938
(Duchesneau, p.
48), apesar de isto tambm refletir um ordenamento estatutrio
sobre as questes
nacionalistas, responsveis pela prpria criao desta Socit.
Por outro lado, levando-se em considerao somente
compositores
franceses, observa-se que enquanto alguns tinham livre trnsito
entre ambas as
sociedades, como Claude Debussy,8 membro do Comit Executivo da
Nationale
em 1893, ou Gabriel Faur (1845-1924), que foi presidente tanto
da
Indpendante, em 1910, quanto da Nationale, em 1917, outros eram
exclusivos,
como Andr Messager, vinculado Nationale e membro da sua
diretoria durante
a presidncia de Faur, ou Maurice Ravel (1875-1937), fundador
da
Indpendante em 1910, ou Darius Milhaud, acolhido de braos
abertos por esta
sociedade (Duchesneau, 1997, p. 66).
Desta maneira, e retornando-se ao Trio de Nepomuceno, pode-se
concluir
que as consideraes efetuadas por Messager9 e Milhaud representem
os
posicionamentos estticos da Socit Nationale de Musique e da
Socit
Musicale Indpendante, respectivamente. Da o fato de este Trio,
de notvel
7 Segundo Vincent dIndy, em seu Cours de Composition Musicale,
C'est la France qu'il devait appartenir de poursuivre et de raliser
la transformation de la Sonate, clairement indique par Beethoven
(dIndy, 1909, p. 421), cujos elementos cclicos foram organiss
consciemment et dans toute leur plnitude par Csar Franck. (dIndy,
p. 375). 8 Sobre a relao entre Debussy, dIndy e a Socit Nationale
ver Davidian, Teresa (1991). 9 Importante observar que a inteno de
Messager, de executar a obra em concertos da Socit Nationale no se
concretizou, j que at 1917 no havia sido publicada (como se l na
declarao de Milhaud) e a partir de outubro desse ano tal Socit
fechara-se novamente para msicos estrangeiros, conforme alterao
estatutria (Duchesneau, 1997, p. 47-48). Quanto a alguma programao
em concertos da Socit Musicale Indpendante, nenhum registro foi
encontrado.
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L. G. D. GOLDBERG Alberto Nepomuceno: vnculos modernistas no
Trio em F# menor (1916)
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sentido de proporo em sua estruturao cclica, ser considerado
como obra
moderna por Messager enquanto que Milhaud restringe-se ao seu
vigor e
profundidade de sentimento.
No entanto, embora a forma cclica possa credenciar esta obra a
algum
vnculo com o modernismo musical, certamente este no foi o fator
determinante.
Mais fundamental se torna a observao de duas caractersticas do
tema cclico,
apresentado no incio do Trio (Exemplo 1).
Exemplo 1 Trio em F# menor: Frase inicial, geradora dos motivos
cclicos.
A primeira delas, diz respeito ao seu carter severo e arcaico,
como um
recitativo gregoriano, reflexo do modalismo empregado que
condiciona as suas
estruturas e progresses harmnicas, particularidade esta que
reverbera um dos
vieses do modernismo musical.
Outra caracterstica brota da especulao de uma provvel referncia
a
obras de Debussy. Se por um lado, parece haver uma citao da
ideia inicial de
Les Chansons de Bilitis (1900-1901), Exemplo 2, por outro,
conforme Corra do
Lago, em seu incio, este Trio assemelha-se, pela alternncia
entre as texturas
mondica em oitavas e cordal modal em registros semelhantes,
Hommage a
Rameau, n. 2 da primeira srie das Images (1905).
Exemplo 2 Paralelo entre fragmento meldico do Tema do Trio de
Nepomuceno com o incio de Pour invoquer Pan, Dieu du vent dt de Six
Epigraphes Antigues de C. Debussy.
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Embora em seu ttulo esteja indicado que se trata de uma obra
tonal,
tendo as relaes de mediantes cromticas e de quintas relevncia
estrutural, a
manuteno do contorno modal com a utilizao de acordes de stima
sem
trtonos, evitando assim possveis implicaes de acordes de stima
da dominante
que poderiam induzir a escalas maiores, gera certo
distanciamento das implicaes
tonais acarretando alguma ambiguidade harmnica e consequentes
percepes
politonais ou polimodais.
Diferente das Variations sur un Thma Original, em que
Nepomuceno
explicitava a bitonalidade, neste Trio ele se vale de uma
politonalidade
ocasional, termo utilizado por Huguette Calmel para designar
regies baseadas
em agregaes harmnicas onde a sensao politonal no caracteriza
tonalidades
realmente independentes.
Segundo Calmel, em estudo sobre as obras de Arthur Honegger,
este
tipo de politonalidade aquela onde sem que a diligncia das
diferentes
tonalidades seja realmente independente, encontra-se o emprego
de acordes
formados por superposies tonais cuja anlise diferente seria
artificial
(Calmel, 1978, p. 57).
Assim, o emprego de agregados modais de stima sem trtonos opera
uma
transformao no sistema tonal,10 embora mantenha a
direcionalidade das funes
diatnicas com a possvel pluralidade de um espectro de centros
tonais
(Noronha, 1998, p. 28).
Continuando nas consideraes estruturais, observa-se que embora
haja
uma eventual ambiguidade harmnica acarretada pelo emprego da
politonalidade
ocasional, deve-se manuteno das amarras ao suporte tonal a
possibilidade da
realizao de uma obra imensa, de 1096 compassos e com 50 minutos
de
durao, aproximadamente. Em outros termos, Nepomuceno torna este
suporte
mais flexvel ao empregar, ao lado do modalismo, cromatismo,
progresses
10 Segundo D. Milhaud, a anlise de um acorde uma questo
convencional e arbitrria e no h nenhuma razo, por exemplo, para
considerar [o] acorde de [d com] 9 maior como a superposio de um
acorde de sol menor e d maior []. [] l'analyse d'un accord est une
question conventionnelle et arbitraire et il n'y a aucune raison
par exemple pour ne pas considrer [cet] accord de 9e majeure comme
la superposition d'un accord de sol mineur et d'ut majeur [].
(Milhaud, 1923, p. 32).
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L. G. D. GOLDBERG Alberto Nepomuceno: vnculos modernistas no
Trio em F# menor (1916)
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diminutas e escala de tons inteiros, sem quebrar uma tradio
formal j
sedimentada, produzindo assim uma grande estrutura.
Destarte, pode-se verificar que esta obra de grande dimenso
apresenta a ordenao de seus movimentos de acordo com a crena de
Vincent
dIndy, apregoado em seu Cours de Composition Musicale, isto ,
Sonata,
Lento, Moderado e Rpido, sendo esta uma prtica formal ainda
corrente,
conforme testemunham o Trio op. 45 (1916) de Henrique Oswald,
executado
no mesmo recital de 31 de agosto de 1916, ou no Trio n1 (1911)
de Heitor
Villa-Lobos.
Contudo, no eram mais novidade as modificaes nas formas
musicais
resultantes do contedo empregado, devidas ao questionamento das
tcnicas de
composio musical, como as exploraes tmbricas ou harmnicas.
Mantendo-se o foco na forma cclica, tais transformaes podem
ser
diagnosticadas tanto no Quarteto de Cordas (1893) ou na Sonata
para violoncelo
e piano (1915), de Claude Debussy, quanto no Quarteto de Cordas
n2, op.10,
em F sustenido menor (1907-08), de Arnold Schoenberg.
Enquanto em seu Quarteto Debussy se vale, alm de um tema cclico,
de
uma identidade tmbrica como elemento recorrente e unificador de
seus
movimentos, em sua Sonata para violoncelo e piano, pelo emprego
de um
material subsidirio do primeiro movimento em seu movimento
final, Debussy
subverte um dos princpios da organizao cclica: o reconhecimento
do tema.11
J Schoenberg apresentou uma alternativa inusitada como soluo
ao
dilema enfrentado em seu Quarteto de Cordas n2, obra de transio
que,
embora ainda tonal, j tomava ares atonais. Segundo seu
compositor, tratava-se
de seu retorno a uma obra cclica, baseada em dois grupos de
temas principais e
alguns subsidirios. No entanto, o seu contedo harmnico, que
abandonava a
proteo do sistema tonal, exigia uma soluo formal para viabilizar
a realizao
de um quarteto. Logo, o emprego de um poema, do simbolista
Stefan George, em
seu terceiro e quarto movimentos, mostrou-se como uma
alternativa possvel para
a sua concretizao. Alm disto, tendo o primeiro movimento um
11 Sobre a utilizao por Debussy da forma cclica, ver Wheeldon
(2005).
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desenvolvimento restrito e o segundo a sua omisso, coube ao seu
terceiro
movimento, estruturado como Tema e Variaes e cujos motivos
geradores so
oriundos dos dois tempos anteriores, atuar como seo de
desenvolvimento do
Quarteto, segundo Anton Webern (1883-1945).12 Desta maneira, alm
da
introduo de texto em um Quarteto de Cordas, uma viso panormica
conduz a
idealizar uma obra de um nico movimento com quatro subdivises
(sees A e B,
desenvolvimento, final).
Outro vis questionador da manuteno das grandes formas
musicais,
principalmente daquelas oriundas da tradio wagneriana e
empregadas por
Richard Strauss e Gustav Mahler, manifestou-se no cultivo das
miniaturas.
Diferentemente do esgotamento formal oriundo do emprego da
tcnica atonal,
naturalmente geradora de miniaturas, a mesma tendncia se
manifestou em
algumas obras onde o tonalismo ainda era fundamental. Tal o caso
das Sinfonias
de Cmara (1917-1923) de Darius Milhaud, cuja primeira, Le
Printemps, foi
estreada no Brasil, em 22 de agosto de 1918, sob a batuta de
Alberto
Nepomuceno (Corra do Lago, 2005, p. 56).
Logo, a maneira que Nepomuceno emprega a modalidade, o
cromatismo,
as progresses de acordes diminutos ou as formaes de tons
inteiros no gerou a
necessidades de afastamento da forma tradicional da msica de
cmara. Assim, a
sua contribuio para o modernismo musical possivelmente se
encontre mais em
seu trabalho harmnico que formal ou instrumental.
Novamente, considerando os exemplos citados e tendo as
crticas
portenhas como pano de fundo, possivelmente este vnculo formal
com a tradio
seja um dos fatores responsveis pelas ponderaes sobre a falta de
atualidade
desta obra.
12 Sobre o Quarteto de Cordas n2, op.10, de A. Schoenberg, ver:
Samson (2002, p. 104-113). Tambm como referncia, a anlise realizada
pelo prprio compositor que consta no lbum Neue Wiener Schule
Schoenberg, Berg, Webern, Streichquartette. Hamburg: Deutsche
Grammophon, n. 419.994-2, 1971, p. 42-57.
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L. G. D. GOLDBERG Alberto Nepomuceno: vnculos modernistas no
Trio em F# menor (1916)
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Consideraes analticas
A anlise do Trio mostra uma obra de extrema complexidade,
apresentando o seu primeiro movimento na forma sonata cclica com
Introduo e
Coda (Tabela 1).
Tabela 1 Resumo estrutural do primeiro movimento
Por sua vez, cada seo subdivide-se em vrias partes onde ao
motivo
cclico associa-se um carter dinmico especfico, singularizando um
tema-
personagem que, conforme dIndy, o elemento que permite a
unificao
cclica dos diversos trechos da obra (dIndy, 1909, p. 377).
Assim, tem-se que o
componente e suas variantes esto associados ao Molto lento,
enquanto o
elemento ao Doppio movimento. J o componente A, vincula-se ao
Allegro
energico e marcato, enquanto B1 est relacionado com o Meno mosso
ou Meno
mosso e calmo, respectivamente na exposio e na reexposio, da
mesma
forma que B2 ao Un poco pi mosso e ao Agitato. Na seo de
desenvolvimento, esta associao se confirma pela organizao das
regies
temticas de acordo com suas afinidades de carter. Em outras
palavras, estando
o desenvolvimento subdividido em 3 sees, Nepomuceno aproxima
as
figuraes A (Allegro enrgico marcato) e B2 (Un poco pi mosso),
seguindo-se
de B1 (Meno mosso). Resulta da um primeiro bloco Enrgico come
prima (A-
B2) seguido de outro Meno mosso e calmo (B1). Desta maneira,
devido
inverso dos motivos cclicos da segunda regio temtica, o carter
geral da
exposio est mantido.
Em sua introduo Molto lento-Doppio movimento-Molto lento
come
prima, de forma ternria, (-)--, encontram-se os motivos meldicos
cclicos
que posteriormente sero transformados e desenvolvidos
(Exemplo3).
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Exemplo 3 Desenvolvimento motvico
Em seu primeiro perodo (), duas texturas distintas so
apresentadas.
A primeira, onde o tema principal encontra-se explcito, uma
monodia em
oitavas graves que progride do quinto ao primeiro graus de F
sustenido
menor elio, seguida por outra cordal arpejada que acompanha
movimentaes meldicas no violino e no violoncelo e conclui em
uma
cadncia no quinto grau.
O perodo seguinte () parece afirmar a tonalidade com a repetio
da
textura mondica na tonalidade principal. Entretanto, por um
movimento
cromtico, a textura cordal progride em D menor elio antes de
concluir em R
maior, sexto grau do tom principal.
A prxima seo da introduo, , apresenta o tema que ser utilizado
na
primeira regio da exposio (A), alm de ser harmonicamente
expandida no
desenvolvimento. Subdividindo-se em 3 regies, exibe progresses
harmnicas
mais complexas. Assim, 1 progride de Sol menor elio para L
maior, (bemol ii7-
III), sendo que suas progresses se caracterizam pelo emprego de
acordes de
stima sem trtonos. Em 2, que repete a mesma textura, progride de
Mi menor
elio D9/7 sustenido maior, (vii7-V9/7), em uma progresso de
dominantes
individuais sem resoluo. J 3 torna-se uma regio enigmtica e
atonal, que
progride cromaticamente enquanto as vozes das cordas so
tratadas
polifonicamente (Exemplo 4).
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L. G. D. GOLDBERG Alberto Nepomuceno: vnculos modernistas no
Trio em F# menor (1916)
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Exemplo 4 Figurao de 3, cromatismo atonal
A introduo termina com a recapitulao da primeira seo, (),
agora
com o predomnio de uma textura polifnica que contrapem a monodia
inicial
de , no piano, com uma nova variao motvica no violino e no
violoncelo. Sua
concluso se d por um movimento cadencial dissimulado devido a
ausncia da
sensvel, o que refora o seu carter modal. Colabora ainda com
este sentido
cadencial a movimentao dos baixos, em uma relao v-i, em conjunto
com uma
rarefao de suas densidades e dinmicas. Por fim, um extenso pedal
de F
sustenido, apoia uma harmonia oscilante no quinto grau,
concluindo em F
sustenido menor com a sexta agregada (Exemplo 5).
Exemplo 5 Cadncia final da Introduo
No compasso 51 tem incio a exposio, com sua primeira regio
temtica Allegro enrgico e marcato (A). Como j mencionado, a
figurao
temtica da melodia j havia sido apresentada pelo violoncelo na
seo da
introduo, estando agora tratada por aumentao na tonalidade de
F
sustenido menor (Exemplo 6).
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Exemplo 6 Incio da primeira regio temtica
A resposta do violino, em L menor, inicia no compasso 62,
mantendo, estruturalmente, uma relao de mediante cromtica com
a
exposio anteriormente apresentada pelo violoncelo, concluindo em
uma
cadncia suspensiva.
Estes dois teros iniciais desta primeira regio temtica
caracterizam-se
pelo emprego constante de acordes de stima, preferencialmente
sem trtonos, e
pela falta de resoluo em seus encadeamentos, invariavelmente
apresentados
sem a sensvel.
O tero final desta seo, diferencia-se pela utilizao de
encadeamentos
de acordes aumentados, sugerindo o emprego de tons inteiros
(Exemplo 7).
Conclui em uma cadncia suspensiva diminuta, [(ii) sustenido],
encaminhando-se
para a transio segunda regio temtica.
Exemplo 7 Sugesto de tons inteiros
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Trio em F# menor (1916)
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A transio segunda regio temtica Animato () segue a figurao
meldica do tero final da regio A, extrada da melodia inicial do
Trio, sendo esta
figurao um dos elementos cclicos mais importantes. Observa-se
ainda uma
maior proximidade com , da introduo, devido a semelhana entre as
texturas
empregadas, apesar da fragmentao meldica. Harmonicamente,
progride pelas
tonalidades de D sustenido menor - Mi menor - Sol menor, sendo
esta ltima
prolongada sobre baixos cromticos.
Nos compassos 105-144 principia a segunda regio temtica Meno
mosso
(B), que se divide em 3 subsees. A primeira, B1, que se
desenvolve entre os
compassos 105-112, inicia-se por uma aparente configurao
polimodal e
politonal, sugerida pela sobreposio de um pedal de R maior nas
cordas a uma
figurao temtica em Si menor elio no piano. Entretanto, a conduo
da voz
interna do piano orienta a fixao de R maior como tonalidade
bsica, embora
no haja cadncias harmnicas que a defina.
Tambm aqui pode ser observado o tratamento de mais dois
elementos
cclicos: o emprego de acordes arpejados e os trmolos. O elemento
arpejado j
pode ser encontrado na introduo do Trio, remetendo a sonoridade
da harpa
pela ambientao criada, bem como na intensificao da densidade
do
acompanhamento empregado na primeira regio temtica.
Esta seo, B1, caracteriza-se por uma expresso mais delicada e
etrea, em
contraste com a ebulio da primeira regio temtica (A). Tal
expresso obtida pela
combinao de um conjunto de elementos, tais como o distanciamento
entre os
registros empregados, o andamento menos movido, a dinmica
pianssimo e a linha
ascendente de trmolos intercalados por pausas (Exemplo 8).
Na subseo seguinte, B2, Un poo pi mosso, compassos 113-128,
os
desenvolvimentos motvicos so relevantes e asseguram a unidade
dos elementos
meldicos. A melodia apresentada, primeiramente pelo violino,
oculta um
elemento linear ascendente, marcado com crculos na figura abaixo
(Exemplo 9), e
outro composto de um salto de oitava seguido da sua stima, ou
segunda se
realizado o tratamento da inverso intervalar, marcado por um
retngulo. Estes
elementos esto presentes na figurao de parte considervel do
acompanhamento do piano.
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Exemplo 8 Transio e incio da Segunda Regio Temtica
Exemplo 9 Desenvolvimento motvico
possvel ainda observar a unidade cclica ao efetuar-se um
paralelo entre
as figuraes meldicas de B2 e de A, conforme a figura abaixo
(Exemplo 10).
Exemplo 10 Desenvolvimento motvico entre A e B2
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Trio em F# menor (1916)
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Desta maneira, observa-se que tanto o elemento motvico linear
quanto os
desvios de figurao entre os diversos elementos meldicos tambm se
relacionam
com um fragmento da frase inicial do Trio, importante componente
para a forma
cclica da obra (Exemplo 11).
Exemplo 11 Motivos temticos
Harmonicamente uma regio menos complexa, onde as progresses
cromticas no baixo so o fio condutor. Desta maneira, avana de Si
menor elio
para Si bemol maior e da para F sustenido menor elio. Conclui de
forma plagal
novamente em Si menor elio.
Encerra-se a segunda regio temtica retornando ao Meno mosso,
B1,
sendo agora uma reexposio resumida de B1 em uma disposio
distinta. Desta
vez o pedal de R maior encontra-se no piano, enquanto a figurao
meldica,
em stretto, ambienta-se nas cordas, que concluem com um grande
pedal de R
maior que se prolonga por seis compassos. Interessante observar
a sobreposio
de dois pedais ao final: enquanto as cordas apresentam um ambguo
F sustenido
em posio de quinta, o piano, por sua vez, mantm o pedal de R,
tambm em
posio de quinta.
Novamente os elementos cclicos trmolo e arpejo de duas oitavas
so
empregados no acompanhamento do piano com certa complexidade
rtmica
devido a utilizao da proporo 8x6.
O desenvolvimento, compassos 145-202, mantm a estrutura ternria
j
empregada na introduo e segunda regio temtica, na forma
A-B2-B1.
Entretanto, a semelhana com a seo A da exposio restringe-se a
sua figurao
meldica. Desta vez, a textura est mais densa, j que polifnica
imitativa entre as
cordas, enquanto o seu ritmo harmnico mais dinmico, baseando-se
na
progresso harmnica da parte 1 da introduo.
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Desta forma, a poro A do desenvolvimento segue uma inusitada
progresso entre Sol menor e D menor ao efetuar um desvio por
dominantes
individuais, conforme ilustrado a seguir.
Sol menor: i7-VI-i-III7-VI7-vii
D menor: iv-v-iv7-vii7-iv7-v-iv7-III- II-(V)
III-(V)II-(V)V-III-V-i
Segue uma nova exposio meldica de A, agora progredindo de D
menor F sustenido menor.
A seo B2, Exemplo 12, mantm a textura linear de A, embora
mais
densa em virtude dos amplos arpejos do piano. Sua densidade
cromtica, no
entanto, cria uma regio de complexa compreenso harmnica, j que
realizada
em progresses harmnicas remotamente relacionadas. Contudo, sua
concluso
ocorre em uma cadncia IV-I, em Mi maior, retomando B1(Exemplo
12).
Encerrando a seo de desenvolvimento, retorna-se ao
politonalismo
ocasional e regularidade formal de B1. No entanto, o vnculo com
a parte anterior,
B2, continua pela manuteno, no violoncelo, da sua figurao rtmica
em ostinato.
Novamente o elemento de transio apresentado, transposto uma
tera menor acima, reconduzindo reexposio onde A repetida
literalmente.
Uma terceira exibio de , extremamente condensada e disposta em
relao de
mediantes, conduz segunda regio temtica, B.
Por sua vez, a reexposio de B segue a tradio da resoluo dos
conflitos
harmnicos gerados no transcurso deste movimento. Destarte,
mantendo a mesma
estrutura regular, B1 encontra-se em F sustenido maior; B2
reapresentada uma
tera maior acima da sua realizao na exposio; termina com a
reexposio de
B1. Conclui com um longo pedal de F sustenido maior.
Este primeiro movimento finaliza com uma Coda que resgata o
temperamento grave do incio da obra. O ciclo se fecha com a
reapresentao do
material da introduo, encerrando-se por uma cadncia plagal.
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L. G. D. GOLDBERG Alberto Nepomuceno: vnculos modernistas no
Trio em F# menor (1916)
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Exemplo 12 Desenvolvimento, seo B2
O segundo movimento, ao lado do primeiro, recebeu os mais
positivos
comentrios de seus crticos. Fazendo-se uma composio entre eles,
talvez melhor
se perceba a ndole deste Lentamente: Particularmente expressivo
(La Argentina,
11/12/1919) e atraente (La Razn, 11/12/1919), o comovente
(Messager,
16/9/1916) movimento lento transmite um profundo sentimento
(Luiz de
Castro, 1/9/1916) de indiscutveis belezas (Tribuna Espaola,
11/12/1919).
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Pelo fato de no oferecer surpresas formais (Tabela 2), j que
segue a
forma da Sonate lente avec dveloppement, conforme terminologia
empregada
por Vincent dIndy (dIndy, 1909, p. 301), deve-se ao seu contedo
expressivo
suscitar tais sentimentos.
Tabela 2 Resumo estrutural do segundo movimento
Possivelmente a sua maior proximidade com a tradio, j que
estruturada em tonalidades diatonicamente relacionadas, o tenha
tornado mais
palatvel. No entanto, mantm-se a predominncia da densidade das
progresses
de harmonias de stima sem trtono, o que lhe d uma cor
caracterstica.
Assim, harmonicamente este movimento progride em sua
macroestrutura
nas tonalidades vizinhas de seu tom principal. Em outras
palavras, enquanto a
seo A de sua exposio apresenta um novo material meldico em Si
maior, aps
uma curta transio, B exibe uma variao do motivo cclico (Exemplo
13) em
Sol sustenido menor elio (deve-se lembrar que o elemento modal),
seu
relativo menor. J em sua reexposio, as tonalidades/modalidades
envolvidas so
as homnimas Si maior e Si menor elio.
Exemplo 13 Variao do motivo cclico
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L. G. D. GOLDBERG Alberto Nepomuceno: vnculos modernistas no
Trio em F# menor (1916)
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Alm das relaes harmnicas citadas, isto , de uma organizao
tonal
contrastando com outra modal, outros elementos definidores das
regies A e B
so, respectivamente, a textura cordal frente linear, alm da
aggica lentamente
contraposta ao molto espressivo, con ansia.
Em seu curto desenvolvimento, construdo sobre fragmento de A,
observa-
se o emprego de um cnone invertido entre as vozes das cordas,
sob o qual o
piano realiza um acompanhamento cordal em escala ascendente. Sua
progresso
harmnica, no entanto, encontra-se em relao de mediante cromtica
com a
tonalidade bsica de Si maior, substituindo-a como referncia na
seo. Desta
maneira, encontra-se nesta seo uma progresso entre R menor e F
Maior,
ambas em relao diatnica de proximidade.
Duas particularidades ainda devem ser abordadas neste
desenvolvimento. Aps atingir a tonalidade de F maior, e antes de
convert-
lo em uma harmonia de stima da dominante, ocorre um desvio
harmnico
para L bemol maior, uma pequena dissimulao que retorna
repentinamente
para a progresso Mi7 menor, Sol7 menor, D menor e, por fim, F7
maior,
fechando em uma cadncia suspensiva. A seguir, observa-se o
abrupto retorno
a Si maior, incio da reexposio.
Conclui em uma coda que recapitula a seo A. Interessante
observar
neste final a inteno expressiva por Nepomuceno ao empregar
surdinas nas
cordas em conjunto com a indicao Con racoglimento. Neste
contexto, enquanto
o violino apresenta uma variao rtmica da melodia e o violoncelo
mantm um
baixo de dominante, o piano realiza uma escala ascendente de
pouco mais de
duas oitavas, em dinmica pianssimo e com articulao ligada.
Possivelmente
aqui se possa inferir a antecipao da simbologia utilizada em Le
Miracle de la
Semence, que ser abordada na prxima seo, na busca pelo
infinito.
O terceiro movimento, na forma Scherzo-Trio, embora tambm no
apresente novidades formais (Tabela 3), combina um elemento
potencialmente
desestabilizador, a escala hexatnica, com uma estrutura
definitivamente
dependente das relaes diatnicas. Assim, deve-se aos modelos
rtmicos
empregados a estabilizao da estrutura como um todo.
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Tabela 3 Resumo estrutural do terceiro movimento
Sua originalidade rtmica, que j havia sido diagnosticada tanto
por Andr
Messager em seu concerto de estreia, em 1916, quanto na Audicin
de Obras de
Compositores Brasileos, trs anos aps (La Prensa, 11/12/1919),
origina-se da
variao rtmica de um dos motivos cclicos extrados da regio da
introduo
do Trio (Exemplo 14), fundamental na seo A do Scherzo.
Exemplo 14 Tema cclico e sua variao rtmica
No entanto, seus encadeamentos harmnicos tambm guardam
sonoridades e movimentos inslitos, como se observa na sua
tonalidade inicial, Si
menor, camuflada por figurao de tons inteiros, ou nas relaes no
diatnicas
apresentadas na seo B do Scherzo.
Estruturalmente, a exposio da primeira seo fixa a tonalidade
(a
Exemplo 15), enquanto sua repetio (a) a conduz dominante,
preparando a
entrada de B.
Em sua seo B, uma nova figurao meldica torna sua movimentao
mais fluida, enquanto o piano mantm um ostinato rtmico extrado
do modelo
de seu primeiro compasso. Harmonicamente realiza o arco Si maior
- Mi bemol
maior Si maior. Segue-se a reexposio de a, onde se manifesta
uma
ambiguidade harmnica: embora esta seo esteja em Si maior, seu
final, aps um
compasso de silncio, pontua a movimentao V-I em R maior.
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Exemplo 15 Incio do Scherzo exposio a
O Trio, um Quasi andante em L maior, mais gracioso e expressivo
que
o Scherzo. Nele as relaes harmnicas so preferencialmente
diatnicas e em sua
figurao meldica encontra-se uma lembrana da primeira regio
temtica da
exposio do segundo movimento (Exemplo 16).
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Exemplo 16 Elemento cclico do 2 movimento encontrado no Trio
Estruturalmente, pode-se definir uma forma ternria contnua,
no
seccional, definida por suas texturas, tendo, perto de seu
final, um enxerto a
tempo giocoso, em tons inteiros. Em sua transio de retorno ao
Scherzo,
apoiado novamente em um ritmo ostinato, encontra-se uma raridade
na tcnica
composicional de Nepomuceno: uma passagem polimtrica de 3/4
contra 5/8
(Exemplo 17).
Exemplo 17 Trecho polimtrico na transio do Trio reapresentao
do
Scherzo
Segue-se a reexposio quase literal do Scherzo, diferenciando-se
somente
na seo B que, ao progredir no arco F sustenido maior -Si bemol
maior - F
sustenido maior, prioriza a regio de dominante da tonalidade
principal, Si
menor, embora, novamente, conclua em R maior.
Por fim, seu quarto movimento volta densidade e complexidade
encontrada no movimento inicial da obra. Tal como nas partes
anteriores,
vale-se de um modelo da tradio, a forma sonata, para que seu
contedo seja
comunicado. Pode-se considerar que, em virtude de suas
progresses entre
harmonias remotas e de seu denso cromatismo, a utilizao desta
estrutura
musical atue como ncora para a realizao de algo inteligvel. Isto
pode ser
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L. G. D. GOLDBERG Alberto Nepomuceno: vnculos modernistas no
Trio em F# menor (1916)
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inferido pelo fato de que, apesar dessas progresses, suas
principais sees
procuram se manter prximas das concepes de tenso e resoluo
que
estruturam essas formas. Seu resumo estrutural pode auxiliar na
compreenso
das relaes das vrias sees deste movimento (Tabela 4).
Tabela 4 Resumo estrutural do quarto movimento
Como se viu, Messager, em sua considerao sobre este Trio,
constatou
que este ltimo tempo resumia e comentava a obra inteira. No
entanto, sua
inteno no se restringe a, j que tambm se mostra como um
componente
complementar ao restante da composio.
Tais diagnsticos podem ser confirmados na introduo encontrada
nas
sees de Exposio e Reexposio, bem como em sua Coda, tanto quanto
nos
motivos geradores das 1 e 2 regies meldicas.
Assim, no incio deste ltimo movimento encontra-se o resumo
da
introduo do primeiro tempo do Trio, isto , aps fragmento do
motivo inicial
aumentado, excerto de , cuja fermata a seguir contm a expresso
de seu
complemento, segue-se um recitativo contrapontstico a duas vozes
nas cordas que
nada mais do que uma lembrana da mesma figurao meldica executada
na
reexposio daquela seo introdutria, (Exemplo 18).
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Exemplo 18 Incio do 4 movimento: Condensao de e da introduo
do 1 movimento
Em sua continuao, novamente o excerto de encontrado, agora
em
tratamento sequencial uma segunda maior abaixo, apresentando
como
consequente o restante da melodia de .
Importante observar o desenvolvimento motvico realizado por
Nepomuceno no elemento meldico realizado pelas cordas. Como se
mostra no
Exemplo 19, a figurao de (1) pode ser considerada a matriz de
(2), da
figurao 3, seu complemento nesta introduo, bem como do elemento
meldico
da seo B (4) deste movimento.
Exemplo 19 Desenvolvimento motvico: primeiro grupo
Ainda deve-se levar em considerao a importncia cclica assumida
pelo
componente ao transformar-se no mote das sees que molduram a seo
B, em
R maior e, posteriormente, em F sustenido maior.
J em sua Coda, o resumo de sua introduo d lugar a expresso
integral
da frase geradora da obra, que reaparece em um Largo maestoso
tratada por
aumentao, onde a modalidade inicial cede tonalidade maior.
Seu aspecto complementar aos demais movimentos deve-se ao
motivo
gerador do elemento meldico da seo A, utilizado pela primeira
vez na obra.
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Trio em F# menor (1916)
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Interessante observar as fragmentaes da frase geradora do
primeiro movimento
e de suas parties como motivos cclicos para o restante da obra
(Exemplo 20).
Exemplo 20 Partio motvica entre os movimentos do Trio
Assim, o trecho inicial da segunda metade desta frase
fragmentado e
variado cromaticamente em retrogradao, gerando a o motivo
meldico da
primeira seo temtica (Exemplo 21).
Exemplo 21 Desenvolvimento motvico para a seo A
Retornando recepo pblica do Trio, tambm uma srie de
diagnsticos negativos lhe foi atribudo. Em sua execuo portenha,
este
movimento foi considerado confuso (La Vanguardia, 12/12/1919),
responsvel
pela falta de unidade (Tribuna Espaola, 11/12/1919) e
consequente
enfraquecimento da obra.
Parcialmente se encontra a justificativa para isto por ser a
parte mais
hermtica do Trio, em virtude de seu denso cromatismo, gerador de
um constante
senso de falta de centro tonal, alm de efetivamente empregar
encadeamentos
harmnicos de remotssima relao diatnica.
Assim, aps a sua introduo e tendo como motivo a variao
retrgrada,
a seo A inicia com um longo trecho cromtico que beira ao
atonalismo
(Exemplo 22), resultante da sobreposio polifnica entre o piano e
as cordas,
antes de chegar ao porto seguro de F sustenido menor,
progredindo da para Mi
bemol menor, D menor e L bemol menor. Segue-se uma sequncia
cromtica
de quintas aumentadas e de acordes de stima da dominante. Logo,
tem-se
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que o cromatismo o elo condutor desta seo que conduz a uma
breve
transio para a seo B.
Exemplo 22 Incio cromtico da seo A
A segunda regio, B, em forma ternria, remete-se a mesma
estrutura
condensada do incio do movimento, embora muito mais ampliada. O
curto
fragmento mondico, em R maior, encontra-se expandido por repetio
e
tratamento sequencial, emoldurando a seo intermediria. Tambm
aqui pode
ser constatado o emprego da figurao em oitavas, configurando
outro elemento
cclico j que frequente em todos os movimentos do Trio (Exemplo
23).
Exemplo 23 Incio da seo A, baseada em fragmento do motivo
mondico
Por sua vez, a seo intermediria tem a sua melodia construda a
partir
da resposta das cordas ao fragmento mondico do incio do
movimento,
conforme tratado anteriormente e ilustrado no Exemplo 19. Tambm
subdividida
em trs partes, definidas harmonicamente pela progresso Si maior
- D maior -
D menor (Exemplo 24), verifica-se que enquanto as duas
primeiras, sequenciais,
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concluem em cadncia suspensiva, a ltima, uma variao de seu
fragmento
descendente, conduz ao retorno da seo moldura, em R maior. Ao
final, o
rebaixamento para R bemol maior encaminha a volta do cromatismo
na seo
de Desenvolvimento.
Exemplo 24 Parte intermediria da seo B
Em sua seo de Desenvolvimento, o gesto romntico se manifesta
no
lirismo empregado, resultante tambm do predomnio de
acompanhamento
arpejado no piano. Novamente Nepomuceno se vale da tripartio,
entretanto
supervalorizando a regio B.
Na primeira parte, que tem como fundamento motvico a figurao
do
trecho A da Exposio, h o retorno do cromatismo cena, o que
reflete as
progresses harmnicas empregadas. Desta forma, e devido textura
polifnica,
notas no diatnicas so agregadas aos acordes ao mesmo tempo em
que h a
predominncia de harmonias de stima, diminutas ou sequncias de
acordes por
trtonos. A grande densidade do trecho deve-se tambm a evaso das
suas
resolues tonais, o que torna mais turva as suas identificaes
(Exemplo 25), que
aqui progridem entre D menor, Mi bemol menor e F maior.
Particular interesse se encontra em dois encadeamentos que mantm
a
tenso do movimento. O primeiro revela uma resoluo inusitada, na
passagem
entre os compassos 4 e 5 do Exemplo 25, onde um acorde diminuto
do segundo
grau, sobre pedal de dominante, evita a resoluo tradicional no
quinto grau ao
ser conduzido a este rebaixado, agrupado como stima da dominante
(ii7/5-
bemol V7). O seguinte, entre os compassos 6-8, pode ser
observado na
movimentao que a formao harmnica por trtonos realiza, onde
encontra
a sua resoluo em um acorde de stima da dominante (Mi bemol 7
maior)
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que, entretanto, evita a resoluo ao encadear-se em uma harmonia
de nona
(D9/7 maior).
Os dois teros restantes deste Desenvolvimento se detm em
elementos
oriundos da regio B da exposio. Contudo, o inesperado no se
restringe s suas
progresses harmnicas, que se mantm no mesmo vis at agora
empregado dos
encadeamentos no diatnicos. Neste incio, Nepomuceno eleva um
tema
subsidirio, que atuava como contraponto de B em sua Exposio,
melodia
principal (Exemplo 26).
Exemplo 25 Incio do trecho A do desenvolvimento
Exemplo 26 Incio do trecho B do desenvolvimento
No obstante, embora ainda seja possvel pelas figuraes meldicas
das
cordas definir as tonalidades das suas regies, Si bemol maior e
R maior, a
harmonizao realizada no as torna evidentes, j que parecem
orientar para
terrenos indefinidos, isto , a expectativa meldica parece
divergir da harmnica.
A soluo desta aparente incompatibilidade realiza-se pelo
elemento cromtico
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que surge como condutor da movimentao expressiva. Logo, aps uma
sequncia
cromtica de acordes aumentados, entra-se no ltimo tero do
Desenvolvimento.
Em seu ltimo tero, a melodia principal de B reapresentada.
Todavia,
desta vez o piano a realiza solo, transposta uma segunda maior
acima e nas
tonalidades menores de D sustenido e R. Intermediando estas
exibies,
encontra-se um recitativo de fragmento da melodia subsidiria
anteriormente
utilizada. Encerra com uma cadncia suspensiva no segundo grau da
tonalidade de
F sustenido menor, (ii7)i.
A conduo Reexposio se d pelo mesmo elemento meldico das
demais transies deste quarto movimento, aparentado ao fragmento
mondico
do incio, j na tonalidade principal da obra. Harmonicamente,
trata-se de uma
cadncia suspensiva sobre um acorde de stima diminuta.
Na seo de Reexposio, Nepomuceno repete literalmente o
material
empregado na introduo e na 1 regio temtica da exposio. A
alterao, de
acordo com a expectativa da forma sonata, se d pelo resgate da 2
regio
temtica das tonalidades remotas em que se aventurava na Exposio
para a
tonalidade principal do Trio, F sustenido. Assim, o material
empregado na regio
B encontra-se agora transposto uma tera maior acima e em seu
modo maior,
onde estabelece a progresso harmnica F sustenido maior/Mi bemol
maior-Mi
maior-Mi menor/F sustenido maior.
Como Coda, a frase inicial do Trio, em variao rtmica faz o
fechamento
Largo maestoso em F sustenido maior. Desta vez, o carter
grandioso obtido
pelo unssono do tutti em fortssimo.
Assim, aps esta anlise, observam-se como elementos bsicos na
construo deste Trio o emprego de relaes de mediantes cromticas
costuradas
por cromatismos que assumem funes estruturais j que substituem
os padres
cadenciais convencionais.
No entanto, considerando-se que esta tcnica no era uma exceo,
pois
j encontrada em alguns Lieder de Hugo Wolf, deve ser observado
que se tratava
de uma importante conquista da tcnica musical do final do sculo
XIX, embora
tivesse como ponto de partida as ltimas obras de Beethoven.
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Conforme demonstrado por Deborah Stein em Hugo Wolfs Lieder
and
the Extensions of Tonality (Stein, 1985) o emprego de relaes de
mediantes
cromticas carrega intrinsicamente ambiguidades funcionais que
podem ocasionar
uma organizao tonal muito mais complexa ou mesmo levar ao
rompimento das
relaes de tonalidade fixadas pela tradio.
Neste Trio, contudo, Alberto Nepomuceno no se restringe utilizao
de
uma cadeia de mediantes estruturalmente dispostas, agregando um
outro
elemento que no s ser responsvel pelo colorido da obra, mas que
tambm
reforar as ambiguidades tonais. Trata-se do modalismo que,
invariavelmente
harmonizado por acordes de stima sem trtonos, acarreta a percepo
de uma
politonalidade ocasional. Importante observar que esta qualidade
de acorde, por
no possuir a nota atrativa que o transfiguraria em uma
dominante, refora o seu
carter modal.
Ainda deve ser mencionada a utilizao da escala hexatnica,
sinnimo de
Debussy, como elemento estruturante e colorstico que, em
conjunto com
progresses aumentadas e diminutas sem resoluo concorrem para o
turvamento
de sua compreenso harmnica.
A soluo para a combinao destes elementos de expanso tonal,
que
causam distanciamento da tradio romntica e abrem caminhos para
uma nova
expresso, manifesta-se em uma forma de compensao atravs do
emprego de
padres motvicos rtmicos e meldicos e por algum tipo de simetria
formal.
(Stein, 1985, p. 221). Assim, Nepomuceno apresenta uma forma
cclica
extremamente simtrica em cada um de seus movimentos.
Destarte, Nepomuceno apresenta uma obra ecltica, cujo cromatismo
e
densidade aproximam-se da expresso da msica germnica enquanto
parte de
seu colorido modal e hexatnico o colocam na direo da msica
francesa.
Contudo, pela maior nfase naquela, possvel entender o porqu para
o crtico
da Revista de la Asociacin Wagneriana de Buenos Aires este Trio
seria a obra de
menos influncia francesa daquele programa de msica
brasileira.
Logo, mesmo que este Trio em F sustenido menor no seja de fato
a
primeira obra de cmara de Nepomuceno, como pressupunha Messager,
pois j
havia composto os Quartetos de Cordas em finais do sculo XIX,
fica patente a sua
-
L. G. D. GOLDBERG Alberto Nepomuceno: vnculos modernistas no
Trio em F# menor (1916)
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86
importncia no conjunto da sua produo artstica e para a moderna
msica de
cmara brasileira, tal como expressou Henrique Oswald na crtica
de Luiz de
Castro para A Noite, em setembro de 1916.
No hesito em afirm-lo, porque essa opinio de outros mais
competentes do que eu, como Henrique Oswald, que no hesitou em
dizer, com a mais absoluta sinceridade, que no conhece na moderna
literatura de trio nenhuma obra que lhe seja superior. (A Noite,
1/9/1916)
Tal diagnstico compartilhado por musiclogos que consideram ser
esta
obra uma das mais importantes de Alberto Nepomuceno. Almeida
(1942, p. 433)
refere-se ao Trio como uma das suas melhores peas de msica de
cmara;
Azevedo (1956) o considera uma das composies mais importantes
nos ltimos
anos do compositor; Neves (1977, p. 22) o julga de grande
importncia.
Entretanto, e aps a anlise realizada, torna-se intrigante o fato
de ela somente ser
citada de passagem nas biografias do compositor.
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E-mail: [email protected] Artigo recebido e
aprovado em 18 de outubro de 2010