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Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 11, n. 23, p.
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GOIS: A INVENO DA CIDADE PATRIMNIODA HUMANIDADE
Andra Ferreira DelgadoUniversidade Federal de Gois Brasil
Resumo: Neste artigo, investigo a instituio de Gois como uma
cidade histricae turstica, entrelaando sries discursivas que
conferem visibilidade e sentidos cidade ao trabalhar as relaes do
espao urbano, o tempo e a histria: adelimitao da cidade como bem
cultural por meio da incorporao na ordem dodiscurso do Patrimnio
Nacional; a inveno das tradies locais promovida pelaOrganizao
Vilaboense de Artes e Tradies; a produo da cidade Patrimnioda
Humanidade no Dossi de Gois e a escrita da memria de Cora Coralina,
queconfigura significados para o passado inscrito na textura
material da cidade.
Palavras-chave: cidade, literatura, memria, patrimnio.
Abstract: In this article, I investigate the institution of Gois
as a historical andtouristic town, interweaving discoursives series
that gives visibility and meaningsto the town by working the
relations of urban space, time and the history: thedelimitation of
the town as a cultural values through the incorporation of
theNational Patrimony discourse; the invention of local traditions
promoted byOrganizao Vilaboense de Artes e Tradies; the production
of the townPatrimony of Humanity in the Dossier of Gois and the
writing of CoraCoralinas memory that takes the form of the past
inscribed in the texture of thetown material.
Keywords: literature, memory, patrimony, town.
Em 2001, a Organizao das Naes Unidas para a Educao, Cinciae
Cultura (Unesco) referendou, por unanimidade, a indicao do
ConselhoInternacional de Monumentos e Stios (Icomos) para que o
centro histricode Gois recebesse o ttulo de Patrimnio da
Humanidade. Esse eventocoroou uma mobilizao que iniciou em 1998,
coordenada pelo MovimentoPr-Cidade de Gois Patrimnio da Humanidade,
e reuniu entidades dacidade de Gois, o Instituto do Patrimnio
Histrico e Artstico Nacional(Iphan) e os governos municipal e
estadual.
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Ao examinarmos esse episdio da histria da memria, parece
haverconsenso entre as instituies protagonistas do processo de
inveno deGois como uma cidade histrica e turstica. O Iphan, rgo
federalresponsvel pela criao do Patrimnio Nacional, que atua nessa
cidadedesde a dcada de 1950, est agindo em parceria com as
entidades que seorganizaram em Gois para produzir e gerir uma
poltica cultural, cujasdiretorias so compostas por um conjunto de
moradores que seinstitucionalizaram como guardies da memria da
cidade ao criar a entidadecultural pioneira, a Organizao Vilaboense
de Artes e Tradies (Ovat), nadcada de 1960.
No entanto, para alm das alianas, a pesquisa histrica
configuradaneste artigo delineia principalmente os conflitos e as
disputas que marcaramo campo da memria na cidade de Gois (Delgado,
2003).
A expresso inveno da cidade pretende chamar a ateno para
otrabalho de produo, gesto e imposio de determinada memria
coletivaque objetiva Gois como testemunha da histria e guardi do
patrimnionacional, merecedora, por isso, do ttulo de Patrimnio da
Humanidade.Investigar a instituio de Gois como cidade histrica ,
portanto, indagaracerca dos atores e das estratgias de
enquadramento da memria, naacepo de Michel Pollak (1989).
No processo de constituio de contedos para o passado,
oinvestimento para solidificar e dotar de durao e estabilidade
umadeterminada memria para representar o conjunto da sociedade
configuraoperaes de seleo, organizao e uniformizao da
multiplicidade designificados atribudos ao passado. Nessa
perspectiva terica, a memriacoletiva concebida enquanto coero, como
imposio, uma formaespecfica de violncia simblica (Pollak, 1989, p.
3).
A declarao e classificao de algumas cidades como
histricasatribui territorialidade histria que as instituies dotadas
do poder deconsagrar os smbolos nacionais querem perpetuar,
engendrando lugares damemria, como nos ensina Pierre Nora (1993, p.
18), onde a estabilidadee preservao do espao favorecem o relembrar
e o reencontrar dopertencimento, princpio e segredo da identidade
que se pretendeuniformizar e impor como nacional ou regional.
O reconhecimento de Gois como cidade histrica no pode ser
apenasexplicado pelo fato de ter sido a capital por mais de 200
anos e conservar
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na estrutura urbana as construes do sculo XVIII. A insero de
Goisno mapa do patrimnio no se justifica simplesmente pelo desejo
depreservar suas construes como vestgios do passado, cujos valores
seriamsupostamente intrnsecos aos objetos e preexistentes a
qualquerclassificao. O rgo do Patrimnio Nacional no descobre o
valor estticoe histrico dos bens; pelo contrrio, ele institui esses
valores.
A cidade de Gois somente passou a ter visibilidade como bem
culturale lugar histrico quando foi inscrita na rede discursiva do
patrimnio, medida que o tecido da linguagem lhe foi atribuindo
determinados contedospara torn-la smbolo da memria coletiva.
Nesse processo de composio do campo da memria, um dosmecanismos
fundamentais o trabalho de constituio do patrimnioimaterial de Gois
empreendido pela Organizao Vilaboense de Artes eTradies. Fundada
com a proposta de resgatar e manter as tradiesde Gois, essa
entidade torna-se responsvel pela instituio da cidade comobero da
cultura goiana.
Outro agente da construo de Gois como ncora da
identidaderegional e nacional Cora Coralina. Ao entretecer o
rememorar do tempoaos espaos da cidade, ela torna-se artfice de
significados para o passadoe compe um mapa da memria que pea
estratgica na consagrao deGois enquanto cidade histrica e
turstica.
A incorporao na ordem do discurso do Patrimnio Nacional, ainveno
das tradies locais e a monumentalizao de Cora Coralina comosmbolo
emblemtico so maquinarias discursivas que se entrelaam
paraobjetivar a cidade de Gois como um lugar da memria. Em
outraspalavras, diferentes formas narrativas, categorias
discursivas e estratgiassimblicas instauram, de forma articulada, o
passado, o presente e o futuroda cidade. Essas sries discursivas
que produzem o patrimnio material eimaterial da cidade configuram o
documento-monumento Dossi de Gois como ficou conhecido o Dossi
Proposio de Inscrio da cidade deGois na Lista do Patrimnio da
Humanidade (1999) que delineia ascategorias simblicas que instituem
o Patrimnio da Humanidade.
Investigar essas prticas discursivas que trabalham as relaes
entre oespao, o tempo e a histria para conferir visibilidade e
sentidos a essacidade constitui a trama deste artigo.
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A ao da DPHAN na dcada de 1950 e o tombamento de bens
isolados
Quando o rgo responsvel pela instituio do Patrimnio
Nacional,ento denominado Diretoria do Patrimnio Histrico e Artstico
Nacional(DPHAN) chegou cidade de Gois, no incio da dcada de 1950,
pararealizar o tombamento dos principais edifcios pblicos e
religiosos, querepresentavam o acervo arquitetnico setecentista,
foi recebido comdesconfiana.
A cidade ainda vivia o trauma da transferncia da capital para
Goinia,ocorrida em 1937. Sua identidade estava at ento
estreitamente vinculada condio de sede do poder poltico, como
capital da Capitania, da Provnciae do Estado de Gois,
sucessivamente.
Sndrome da mudana e trauma da mudana so expressesutilizadas
pelos vilaboenses entrevistados para explicar o
comportamentodaqueles que identificavam o tombamento com o atraso,
a estagnao dacidade, enquanto que o sonho de Gois era crescer, se
igualar Goinia(Hercival Alves de Castro ex-secretrio municipal da
Cultura, entrevistaconcedida a mim em 14 de novembro de 2001).
A mesma opinio compartilhada pelo advogado Elder Camargo
dePassos, presidente da Organizao Vilaboense de Artes e Tradies
desdea fundao, ao se referir resistncia das famlias tradicionais da
cidade ao da DPHAN:
Eu fui contrrio ao tombamento nos primeiros anos, liderado por
um grupoque no via a preservao como estmulo ao futuro de Gois.
Seria um atrasopara a cidade, voc no poderia mudar a fachada, no
poderia mandar dentro.Voc no mandaria na sua casa. [] Seria
condenar a cidade morte, comofalavam: voc quer condenar nossa
cidade morte, voc no pode mexernada, no pode fazer nada, voc no
dono da sua casa, voc no donode nada. [] Inclusive o termo tombado
j liga queda, deteriorao.(Elder Camargo de Passos, entrevista
concedida a mim em 19 de agosto de1999).
No campo discursivo do patrimnio, o tombamento expressa o ritual
deregistro de um bem nos livros de tombo, momento de sua nomeao
oficialenquanto patrimnio e da sua inscrio como objeto de interesse
pblico sobguarda do Estado. O poder pblico deve zelar pela
preservao econservao das caractersticas que o tornam representativo
do passado.Em contrapartida, no discurso contrrio ao tombamento, os
argumentos
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exploram outros significados semnticos do termo, associando o
ato aodeclnio, deteriorao e queda, interpretando-o como sinnimo do
atrasoe da estagnao, constituindo a condenao da cidade morte.
Do mesmo modo, os moradores de Gois receberam com reservas
ahomenagem prestada, em 1961, pelo governador Mauro Borges Teixeira
filho do governador Pedro Ludovico Teixeira, que liderou a
transferncia dacapital ao promulgar um decreto determinando que o
governo do Estadofosse anualmente transferido para a antiga capital
durante uma semana acontar do dia de aniversrio da cidade, 25 de
julho, perodo no qual o PalcioConde dos Arcos seria novamente sede
do governo e residncia dogovernador.
Nos dois momentos histricos, Gois configurava-se como campo
deconflitos. O ato do governador Mauro Borges e, principalmente, a
ao dorgo federal do Patrimnio representavam a imposio de uma
identidadede monumento do passado para uma cidade que, at poucas
dcadas, erasmbolo da histria do tempo presente.
Nessa primeira interveno na cidade de Gois, a Diretoria
doPatrimnio Histrico e Artstico Nacional consagrou bens isolados
comomonumentos histricos, a partir da concepo de patrimnio que
orientavasua atuao desde a criao.
A instituio foi fundada em 1937, com o nome de Servio
doPatrimnio Histrico e Artstico Nacional (Sphan) e, at o final da
dcadade 1960, foi dirigida pelo mineiro Rodrigo Melo Franco de
Andrade, que,juntamente com o grupo de intelectuais modernistas que
se integrou aorgo, foi responsvel pela institucionalizao de um
conjunto de prticasculturais, enquanto poltica oficial do Estado,
que sacramentou determinadosobjetos como patrimnio nacional.
Na historiografia oficial produzida no interior da prpria
instituio, esseperodo denominado fase herica, ressaltando-se que o
adjetivo parececorresponder realidade do trabalho que se levou a
efeito (MEC-Sphan/Pr-Memria, 1980, p. 28).
Os tcnicos de notrio saber que compunham o conselho consultivo
doSphan detinham poder publicamente reconhecido para enunciar o
regime deverdade acerca do patrimnio. Ao pautar a atuao em
rigorosas pesquisase na escrita de artigos jornalsticos, relatrios
tcnicos e trabalhosespecializados publicados pela prpria instituio,
os membros do ConselhoConsultivo produziam uma massa documental que
fez muito mais do que
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inventariar, pois foi responsvel pela inveno do Patrimnio
Histrico eArtstico Nacional.
Mariza Veloso Santos (1996) e Jos Reginaldo Gonalves
(1996),utilizando-se de referenciais tericos semelhantes,
investigam essasestratgias de construo discursiva que objetivam a
nao ao encarn-lamaterialmente em objetos fsicos que so postulados
como sagrados eprotegidos como patrimnio nacional. Segundo Mariza
Santos (1996, p. 82),a produo discursiva do Iphan culmina na nomeao
simblica dos objetosmveis e imveis, que so transformados em ndices
de nacionalidade, emreferenciais coletivos por possurem densidade
histrica e esttica. Essesdiscursos do patrimnio cultural
constituem, conforme Jos ReginaldoGonalves (1996, p.11), uma
modalidade de inveno discursiva do Brasilpor produzirem narrativas
nacionais [] cujo propsito fundamental aconstruo de uma memria e de
uma identidade nacionais.
Para investigar os mecanismos de inscrio da cidade de Gois
nessarede discursiva, o Dossi de Gois (1999) nos oferece algumas
pistas: adeclarao de valor de Gois, enquanto patrimnio,
estabelecida pelaanlise comparativa com as cidades fundadas no
ciclo do ouro. Goisadquire visibilidade quando sua conformao urbana
aproximada a outrascidades histricas j consagradas. Assim, podemos
inferir que o inventrio,a qualificao e a designao dos bens a serem
protegidos em Gois tomoucomo referncia o conjunto de valores
atribudos s cidades mineiras que,conforme Silvana Rubino (1992),
foram paradigmticas para a construo doPatrimnio Nacional.
Em 1950, a ento Diretoria do Patrimnio Histrico e Artstico
Nacionaltombou, por meio da inscrio no Livro do Tombo das
Belas-Artes, a Igrejade Nossa Senhora da Boa Morte (construda em
1779), a Igreja de SoFrancisco de Paula (1761), a Igreja de Nossa
Senhora do Carmo (1786), aIgreja de Nossa Senhora da Abadia (1790),
a Igreja de Santa Brbara(1780). No Livro do Tombo Histrico, foi
registrado o Quartel do Vinte(1747). Em 1951, no Livro do Tombo das
Belas-Artes, ocorreu a inscrioda Casa de Cmara e Cadeia (1761); do
Chafariz de Cauda da Boa Morte(1778), da Casa de Fundio e do Palcio
Conde dos Arcos (construescontguas que resultam de adaptaes
realizadas em cinco edifciosresidenciais, datadas do incio do sculo
XVIII).
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O tombamento de edificaes isoladas justifica-se a partir do
conceitode monumento histrico: determinadas construes so
consagradas comotestemunhas da histria e passam a incorporar a funo
de suscitar arememorao do passado. Com isso, o conjunto dos bens
tombados peloSphan constri uma narrativa material de determinada
histria do Brasil,considerada como a Histria Nacional, cuja matriz
discursiva foi produzidano Instituto Histrico e Geogrfico
Brasileiro (IHGB).
Esses monumentos, conforme Rodrigo Melo Franco de Andrade
(1961apud Rubino, 1992, f. 11), so considerados documentos de
identidade danao brasileira, revelando a relao fundamental que se
estabelecia entrea construo da nao e a instituio do patrimnio
histrico e artsticonacional.
Essa poltica preservou os testemunhos do poder de uma elite e
comeles se props a construo da identidade histrica e cultural da
naobrasileira. Alijando do campo do patrimnio os vestgios, por
exemplo, dostemplos no catlicos, das senzalas e dos bairros
operrios, legitimou-se aexcluso dos outros grupos sociais. A produo
da memria coletiva nassociedades contemporneas configura-se,
portanto, como uma formaespecfica de dominao simblica.
Capturados para o campo do patrimnio, determinados
monumentosisolados da cidade de Gois foram investidos de
significados pelo processode tombamento e consagrados como
artefatos de valor excepcional portestemunharem tanto a histria
colonial nessa regio quanto a formao danao. Contudo, esse processo
teve pouca influncia na dinmica urbana,visto que a DPHAN no
promoveu imediatamente restauraes nos bens etampouco estimulou a
visitao pblica.
Percebe-se, portanto, que a primeira interveno do rgo federal
doPatrimnio Histrico e Artstico Nacional em Gois no foi acompanhada
deuma poltica de gesto efetiva dos bens tombados, que viesse a
provocaralteraes no desenvolvimento urbano. A configurao da cidade
histrica eturstica ser um processo lento e complexo, que no pode
ser compreendidosem a anlise das prticas discursivas da Organizao
Vilaboense de Artese Tradies, que prope o resgate e a manuteno das
tradies comogesto do futuro da cidade.
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A Ovat e a inveno das tradies
Numa poesia intitulada Cidade de Gois I (a cidade a quem
chega),Carlos Rodrigues Brando (1976, p. 42) declara:
H uma Goisque de si mesmaconta mais casosque um almanaqueConta e
recontaat que a menteguarde para sempreo antigo e o raro.
O antroplogo registra o movimento de produo discursiva de
Goisque a institua paulatinamente como cidade histrica, fazendo
proclamas deum tempo raro e contando de si mesma mais casos que um
almanaque.Agenciam-se categorias como passado, cultura e tradio
para construir aidentidade da cidade de Gois como bero da cultura
goiana, ttulonaturalizado atualmente, mas do qual nos interessa
investigar as estratgiasde produo.
A abertura de vrios prdios histricos para visitao, a elaborao
dosprimeiros roteiros tursticos e folhetos informativos e o
lanamento de livrosacerca da histria da cidade e de suas
manifestaes culturais contam erecontam Gois. Historiando essa
produo, nossa ateno converge paraa criao, em 1965, da Organizao
Vilaboense de Artes e Tradies(Ovat).
Os fundadores da Ovat consideram-se herdeiros do
movimentoantimudancista, e a concebem enquanto institucionalizao do
movimentode ao cultural organizado na esteira da reao mudana da
capitalpara Goinia. Elder Camargo de Passos, que preside a
instituio desde suacriao, estabelece o discurso fundador:
A na dcada de sessenta ns criamos a Ovat, Organizao Vilaboense
deArtes e Tradies, que era um grupo de pessoas ligadas cultura e
artee comeamos a planejar o que seria Gois para o futuro. De que
ela poderiaviver, de qu? Ns partimos a pesquisar e ver que o
passado de Gois eraum passado muito rico em tradies, em arte, em
cultura, em histria. Desde
H uma Goisque de seus anoslana editaise faz proclamasde um tempo
rarono ouvido atentode qualquer genteque surja, passe.
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1 A expresso inveno das tradies tem sido amplamente utilizada e
foi criada por EricHobsbawm, em livro homnimo (Hobsbawn; Ranger,
1997). Na operacionalizao que faodesse conceito, considero
importante estabelecer aproximaes e distanciamentos tericos.Por um
lado, compartilho a idia de que a tradio inventada compreende a
instituio deum conjunto de prticas, de natureza ritual ou simblica,
baseadas na invariabilidade erepetio, implicando uma continuidade
em relao ao passado. Por outro, distancio-me daconcepo terica de
Hobsbawm, que define esse passado como real ou
forjado,diferenciando as tradies genunas daquelas tradies realmente
inventadas, construdase formalmente institucionalizadas. Discordo
dessas dicotomias, pois acredito que prticasdiscursivas constroem
narrativas que atribuem sentido a determinados acontecimentos e
osarticulam para forjar o passado e construir a fico do resgate de
um real preexistente.
a fundao at 1937, a vida do Estado rolou aqui dentro. Ento, quer
queira,quer no queira, isso j um ponto fantstico. E ns tnhamos
vrios prdiosque estavam a abandonados, que estavam deixados,
emprestados a rgospblicos, a escolas, a n coisas. A ns comeamos a
fazer um levantamentohistrico. [] Ns vimos que o futuro de Gois era
o passado.
Categorias como tradio, arte, cultura e histria so arroladas
paracompor o passado que esse discurso prope que seja resgatado
paraconstruir o futuro da cidade de Gois.
Ao vislumbrar que o futuro de Gois era o passado, a
Ovatempreende e estimula vrias aes culturais: o Gabinete Literrio,
fundadoem 1864, foi reaberto; os saraus foram revitalizados; as
manifestaesfolclricas e musicais foram pesquisadas e registradas; o
acervo de artesacra foi reunido no Museu da Cria e, posteriormente,
no atual Museu deArte Sacra da Boa Morte; modificaes foram
implementadas nacelebrao da Semana Santa, que passou a contar com a
Procisso doFogaru.
A cidade de Gois, incorporada ao campo do patrimnio pelo Iphan,
investida de significados por esse processo de inveno de uma
tradio,1que objetiva a construo da identidade vilaboense. Para
produzir opatrimnio imaterial, atribuem-se contedos simblicos a
determinadasprticas culturais, sacralizando-as como genunas e
autnticas portestemunharem a identidade regional cuja origem
configura-se na cidadeancestral, onde se deu o incio da formao
intelectual do povo goiano.
O resgate e a preservao desse patrimnio cultural vilaboense
soreivindicados pela Ovat. No depoimento de Elder Camargo de
Passos, aao da entidade caracteriza-se como recuperao do passado
porintermdio das pesquisas empreendidas por seus membros.
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O presidente da Ovat notabilizou-se como historiador da cidade
aoproferir palestras, escrever livros, organizar folders tursticos,
alm defornecer informaes para trabalhos a respeito da cidade de
Gois. Essasprticas de construo de um capital simblico para si e
para o grupo sochamadas por Pierre Bordieu de aes de representao
que tm comoobjetivo tornar manifesto um grupo, seu nmero, sua fora,
sua coeso, faz-lo existir visivelmente e, a um s tempo,
configuram-se como estratgiasde apresentao de si [] destinadas a
manipular a imagem de si esobretudo de sua posio no espao social
(Bourdieu, 1990, p. 161-162).
No discurso da Ovat, tal como ocorria no rgo do
PatrimnioNacional, a histria agenciada na produo de Gois como lugar
damemria. No entanto, enquanto que nesse momento a ao do
patrimnioainda no compreendia o turismo cultural, as narrativas da
OrganizaoVilaboense de Artes e Tradies j vislumbravam a produo da
cidadeturstica.
No depoimento do presidente, os membros dessa instituio
aparecemcomo pioneiros das iniciativas de fomentar o turismo,
disputando com oIphan o poder de instaurar os efeitos materiais e
simblicos da instituio dopatrimnio da cidade de Gois. Como parte da
estratgia de atribuir a umgrupo pequeno de pessoas as aes que
resultaram no afluxo constante ecrescente de turistas para a
cidade, a partir da dcada de 1970, enfatiza-seo esforo voluntrio
para abrir o Museu de Artes Sacras e as igrejas visitao pblica.
Ao estabelecer, manter e reinventar constantemente as
prticasculturais que so institudas como tradio, a Organizao
Vilaboense deArtes e Tradies vem mantendo a vigilncia comemorativa,
que PierreNora (1993) considera indispensvel para a instituio dos
lugares damemria. No final da dcada de sessenta e ao longo dos anos
setenta foiestabelecido um calendrio de comemoraes que atribui
significados aosbens tombados pelo patrimnio e institui os
personagens a seremcelebrizados como referncias culturais.
A Ovat promove a associao entre a preservao do patrimniocultural
e o impulso ao turismo, atribuindo-se a responsabilidade
pelaalterao no desenvolvimento da cidade. De acordo com as palavras
dopresidente da Ovat, e de outros vilaboenses em entrevistas
concedidas aosjornais, o ttulo de Patrimnio da Humanidade aparece
como um
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coroamento para o esforo empreendido ao longo de mais de 30 anos
detrabalho desse grupo que dirige as instituies culturais.
Ao longo desse processo, a multiplicao das instituies criou
umaburocracia da rea cultural, onde alguns homens e mulheres
participam dadiretoria de todas as entidades e alternam-se no cargo
de presidente. Porexemplo, Elder Camargo de Passos presidente da
Ovat, Marlene Gomes deVellasco preside a Associao Casa de Cora
Coralina e Antolinda Borges diretora do Museu de Arte Sacra cada um
ocupando o cargo desde acriao das instituies. Todos participam da
diretoria ou do conselho dasinstituies citadas. Portanto, um
pequeno grupo controla o patrimnio egerencia a poltica cultural de
Gois, alm de participar de negcios ligados aoturismo.
Esse grupo se auto-representa como guardio da cultura vilaboense
eportador de virtudes que so compartilhadas por todos os membros, e
queos singulariza em relao aos outros moradores da cidade, evocando
otrabalho pioneiro realizado nas entidades culturais e o
pertencimento sfamlias tradicionais, que no abandonaram a cidade
aps a transfernciada capital, e cujos antepassados se destacaram,
quer nas artes, quer napoltica, desde tempos remotos.
O monoplio dos principais cargos nas entidades culturais
constituiestratgia fundamental para o exerccio do poder simblico
que, na acepode Pierre Bordieu (1989), institui princpios de viso,
diviso e classificaodo mundo social. Como especialistas da produo
simblica (produtores atempo inteiro), eles travam lutas pelo
monoplio de fazer ver e fazer crer,de dar a conhecer e de fazer
reconhecer, de impor a definio legtima dasdivises do mundo social
(Bourdieu, 1989, p. 113).
Em seu depoimento, ao mesmo tempo em que exalta a viso,organizao
e servio dos membros da Organizao Vilaboense de Artes eTradies,
Elder Camargo de Passos expe que o grupo sofre oposio, eseus
componentes so acusados de se comportarem como donos da cidade:
Esse grupo que tambm no muito benquisto na cidade [] tem a
partebenquista, mas tem uma parte que no gosta, que acha que ns
queremosser donos de tudo, queremos mandar em tudo. Por qu? Porque
ns temosviso, ns temos organizao, muito servio, ns arregaamos as
mangas epegamos e fazemos. Agora, sempre tem os que criticam e no
realizam. Falar fcil. Criticar fcil.
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As relaes entre o grupo que dirige as entidades culturais e
outrosmoradores da cidade envolvem lutas e conflitos pelo controle
do conjunto deeventos que compem o cotidiano da cidade, pela gesto
do espao urbanoe pela definio das polticas pblicas.
O domnio do campo do patrimnio na cidade de Gois
constitui,portanto, um instrumento e um objetivo do poder (Le Goff,
1984). Noprocesso de inveno das tradies, determinados agentes
controlam oslugares da memria e, por meio de diferentes estratgias,
produzemdeterminada interpretao do passado a partir da imposio dos
signos quepretensamente representam a memria coletiva.
O exemplo mais significativo a Procisso do Fogaru, evento
queatrai o maior nmero de turistas para a cidade. Introduzida nas
celebraesda Semana Santa pela Ovat, na dcada de 1960, essa festa
citada porMaria Ceclia Fonseca (2003, p. 57, 66) como exemplo de
patrimnioimaterial que deveria ser tombado pelo Iphan, ao criticar
a ao do rgoque atribui a condio de patrimnio cultural apenas ao
conjunto urbanoedificado das cidades histricas. Classificando a
Procisso do Fogaru comomanifestao cultural que constitui o
patrimnio intangvel, Fonsecacorrobora o discurso da Ovat e
demonstra a efetivao do projeto daentidade de produzir a memria
coletiva da cidade.
Na histria da memria na cidade de Gois, tal como delinearei
naseqncia, estratgias diversas foram construindo a aliana entre a
Ovat eo Iphan para o estabelecimento de uma poltica hegemnica de
preservaodo patrimnio cultural, que culmina atualmente na elaborao
das diretrizesdo desenvolvimento da cidade Patrimnio da
Humanidade.
A atuao do Iphan na cidade de Gois e a delimitao do centro
histrico
Em 1978, com o apoio da Organizao Vilaboense de Artes eTradies,
o rgo do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional realizou asegunda
interveno na cidade de Gois, incluindo o entorno dos
principaismonumentos no mbito de proteo do patrimnio.
No Livro Arqueolgico, Etnogrfico e Paisagstico, foram inscritoso
Conjunto Arquitetnico e Urbanstico do Largo do Chafariz e oConjunto
Arquitetnico e Urbanstico da Rua da Fundio, que j
estavamregistrados no Livro das Belas-Artes desde 1951. Tambm
foram
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incorporados vrios conjuntos paisagsticos formados pelas ruas
que fazema ligao entre os prdios tombados, assim como a Praa
Castelo Branco,antigo Largo do Palcio.
O vnculo entre patrimnio e conjunto urbano denota uma alterao
deconcepo estabelecida at ento pelo rgo pblico, pois a
exemplaridadeno est mais situada em monumentos destacados da
paisagem da cidade.Ao contrrio, o tombamento incidiu sobre a
paisagem urbana como um todoe estabeleceu que parte considervel da
cidade se submeteria s regras depreservao. A ao do poder pblico
conforma, portanto, um conjunto debens culturais e delimita o
centro histrico para caracterizar Gois comomonumento nacional.
Se at ento a ao do Sphan concentrava-se em zelar pela aplicaoda
legislao que garantisse a preservao dos bens tombados, a partir
deoutros conceitos, o rgo passa a intervir para manter, restaurar,
revitalizare gestar a rea urbana protegida. Essas prticas
demonstram que, mais doque a produo de um determinado passado para
as cidades consideradashistricas, o novo arcabouo discursivo do
campo do patrimnio volta-separa a inveno de um futuro. Para
compreendermos essa nova concepo,devemos considerar as transformaes
no campo discursivo do patrimniohistrico.
Conforme a historiografia oficial do Sphan
(MEC-Sphan/Pr-Memria,1980), esse perodo inaugura uma segunda fase
da histria da instituio. Em1970, o rgo passou a denominar-se
Instituto do Patrimnio Histrico eArtstico Nacional e a direo foi
assumida por Renato Soeiro, quepermaneceu no cargo at 1979.
No campo discursivo do patrimnio, observa-se a incorporao de
umacategoria que se torna fundamental para a compreenso da ao atual
doIphan: o turismo cultural. Em 1966, com a criao pelo governo
federal doConselho Nacional de Turismo e da Empresa Brasileira de
Turismo(Embratur), as polticas pblicas passaram a abranger o
turismo.
O Iphan, ainda na gesto de Rodrigo Melo Franco de Andrade,
solicitou Unesco a assessoria de tcnicos especializados no
aproveitamento tursticodo patrimnio histrico. Nessa nova
conjuntura, incluram-se, no conjunto deaes do rgo, as prticas de
revitalizao das cidades histricas,atribuindo-se novos significados
para o patrimnio a partir da relao dascategorias passado e
futuro.
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A atuao do Iphan em Gois estava de acordo com as concepes
eestratgias do Programa das Cidades Histricas, criado pelo
governofederal em 1973 para estimular o turismo.
Denotando ruptura com o campo discursivo elaborado na primeira
faseda instituio, est em construo uma concepo de patrimnio
interligadacom categorias discursivas construdas na esfera da
economia. O objeto dapoltica estatal no apenas o monumento isolado
e/ou o conjuntoarquitetnico e paisagstico tombado, mas compreende
todo o ncleo urbano.Os objetivos do Patrimnio no so mais explicados
apenas em termos dapreservao de bens excepcionais que materializam
a nao, mas incluema preocupao com o uso social que deve
proporcionar a gerao de rendanas cidades histricas.
Em 1979, ano que a histria oficial considera como um marco
natrajetria da preservao e valorizao do patrimnio cultural no
Brasil(MEC-Sphan/Pr-Memria, 1980, p. 55), Alosio Magalhes assumiu
adireo do Iphan. Simultaneamente, ocorreu a primeira reformulao
naestrutura administrativa do rgo, com a criao de duas
entidadesinterligadas, inseridas na estrutura do Ministrio da
Educao e Cultura: oIphan foi transformado em Secretaria do
Patrimnio Histrico e ArtsticoNacional e unificado com a recm-criada
Fundao Nacional Pr-Memria,sob a sigla Sphan/Pr-Memria.
Esse perodo caracterizado por alteraes nas categorias
simblicasque inventam o patrimnio cultural brasileiro.
Diferentemente da narrativapatrimonialista de Rodrigo Melo Franco
de Andrade, construda em relao histria oficial, a narrativa de
Alosio Magalhes incorpora noes oriundasdo campo da antropologia, ao
propor que as prticas do Iphan se voltassempara identificar,
documentar, classificar, proteger e divulgar os bens
culturaisbrasileiros, procedentes sobretudo do fazer popular que
esto inseridos nadinmica viva do cotidiano (Magalhes, 1984, p.
42).
Embora afirmasse que a instituio Sphan credora doreconhecimento
nacional, Alosio Magalhes (1984, p. 42) criticava apoltica
implementada at ento pelo rgo e propunha sua ampliao,revitalizao e
dinamizao a fim de cobrir maior espectro do bensculturais, pois
considerava que:
[] o conceito de bem cultural no Brasil continua restrito aos
bens mveise imveis, contendo ou no valor criativo prprio,
impregnado de valorhistrico (essencialmente voltados para o
passado), ou os bens de criao
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individual espontnea, obras que constituem o nosso acervo
artstico(msica, literatura, cinema, artes plsticas, arquitetura,
teatro), quase semprede apreciaes elitistas.
Nesse novo perodo do rgo do Patrimnio, mais importante que
aproduo de uma massa documental que atestasse a autenticidade dos
benstombados era a investigao da dinmica atual de relao destes com
acomunidade em que esto inseridos. Se antes a produo cultural
tombada erapensada em termos da arquitetura, privilegiando-se os
perodos mais remotos,nesse momento valoriza-se a diversidade
cultural brasileira e enfatizam-se osbens culturais preservados e
produzidos pelas comunidades no presente.
Embora a gesto de Magalhes dure pouco, devido sua
morteprematura, seu trabalho foi fundamental para sedimentar a
ampliao daconcepo de patrimnio cultural no Brasil. Mrcia SantAnna
(2003, p. 52)considera que a principal herana desse perodo foi a
introduo, naConstituio Federal, de um conceito mais largo de
patrimnio, que inclui osbens de natureza material e imaterial.
Interessa investigar como essas mudanas discursivas e
estratgicas,no campo do patrimnio, consubstanciaram-se em polticas
pblicas nacidade de Gois.
Nas dcadas de 1970, 1980 e 1990, o Iphan executou, por meio
deparcerias, diversas restauraes Casa de Fundio, Quartel do
Vinte,Igreja da Boa Morte, Igreja So Francisco e Igreja de Santa
Brbara.
At o incio da dcada de 1980, no havia escritrio de representaodo
Iphan na cidade de Gois. Sua ao mais efetiva ocorria no Museu
dasBandeiras, que funciona na Casa de Cmara e Cadeia, e no Museu de
ArteSacra, cujo acervo est na Igreja da Boa Morte. As duas
instituies eramdirigidas por vilaboenses, Malu Brando e Antolinda
Borges, que foramincorporadas ao quadro de funcionrios do rgo. A
atuao do Iphan nacidade passou, ento, a ser personificada e
intimamente relacionada com ogrupo que dirigia a Organizao
Vilaboense de Artes e Tradies.
Um marco da relao do Iphan com os moradores da cidade de Goisfoi
a implantao do escritrio da Diretoria Regional do Iphan, em
1983,dirigido pelo arquiteto Gustavo Coelho, que permaneceu no
cargo at junhode 1986. Tanto ele quanto sua sucessora a tambm
arquiteta MariaCristina Portugal em seus depoimentos enfatizam as
relaes tensas comos moradores da cidade, decorrentes das limitaes
que o tombamento docentro histrico acarretava para os proprietrios
de imveis tombados.
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Em 1997, ocorreu uma nova mudana na 17a Sub-Regional quando,pela
primeira vez, o cargo de diretora foi assumido por uma vilaboense:
ahistoriadora Salma Saddi Waress de Paiva, uma militante ativa
dosmovimentos culturais da cidade de Gois, secretria da Associao
Casa deCora Coralina desde a criao da entidade. Sua gesto foi
marcada peloincentivo, apoio e participao na campanha para que a
cidade de Goisconquistasse o ttulo de Patrimnio da Humanidade.
Dossi de Gois: sntese da produo da cidade Patrimnio
daHumanidade
No Dossi de Gois configuram-se diversas sries discursivas
quecompem o campo do patrimnio e da memria. Proponho, ento,
nosvoltarmos para a anlise desse documento-monumento a fim de
delinearmosa produo discursiva da cidade histrica e turstica.
Nesse documento, a inscrio de Gois como bem cultural
justifica-se por critrios que agenciam categorias estabelecidas
pelo rgo federal doPatrimnio para circunscrever os lugares da
memria como testemunhada histria:
Gois testemunha a maneira como os exploradores de territrios
efundadores de cidades, portugueses e brasileiros isolados da me
ptria edo litoral brasileiro, adaptaram a realidade difceis de uma
regio tropical osmodelos urbanos e arquitetnicos portugueses, e
tomaram de emprstimoaos ndios diversas formas de utilizao dos
materiais locais.Gois o ltimo exemplo de ocupao do interior do
Brasil conformepraticado nos sculos XVIII e XIX. [] Exemplo tanto
mais admirvel namedida em que a paisagem que a rodeia permaneceu
praticamente inalterada.(Dossi, 1999, p. 5-6).
A zona proposta para inscrio na lista do patrimnio corresponde
aocentro histrico tombado pelo Iphan em 1978, acrescida de uma zona
deentorno, compreendendo ruas tpicas do sculo XIX, com uma
arquiteturaecltica ou art-noveau consideradas muito importantes
para acompreenso da permanente evoluo da cidade (Dossi, 1999, p.
5-6). Talconcepo denota uma alterao na poltica do Iphan que, at
ento,recortava da malha urbana o conjunto arquitetnico e
paisagsticorepresentativo do perodo mais remoto de formao da
cidade. A nova
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proposta pretende considerar a multiplicidade temporal inscrita
no traadourbano, preservando os vestgios de outros momentos da
histria da arquitetura.
Percebemos, contudo, que as condies de possibilidade do discurso
nocampo do patrimnio ainda se pautam pela arquitetura como ndice
porexcelncia de bem patrimonial e pela delimitao de um centro
histrico a serprotegido pelo valor excepcional.
No Dossi de Gois ressoam ecos de outras categorias simblicas
que,ao longo da histria do rgo federal do Patrimnio, agenciam as
prticaspblicas. No Anexo IV, encontram-se os resultados da pesquisa
Cadastro deBens Culturais de Natureza Imaterial, realizada na
cidade de Gois, entre junhoe agosto de 1999, que integra o
Inventrio Nacional de Referncias Culturais,projeto-piloto realizado
pelo Iphan em algumas cidades histricas tombadas.
Na apresentao do documento, observam-se os marcos discursivos
queorientam a ao do rgo:
Este sobretudo um trabalho de contato com a populao da Cidade de
Gois.Foram realizadas 90 entrevistas no centro histrico e em
povoados no seuentorno, numa tentativa de apreender a dinmica
cultural dessa regio eampliar nosso conhecimento sobre o contexto
sociocultural onde o ncleotombado assumiu historicamente uma posio
convergente. Os entrevistadosrelatam sua vivncia cotidiana de
costumes, tradio, as histrias e lendas queguardam na memria, os
sentimentos e opinies sobre a rea tombada e oambiente natural. []
Alm dos monumentos arquitetnicos, constituem-secomo referncias
culturais, por configurarem uma identidade e um sentimentosimblico
da regio para seus habitantes, as festas e comemoraes, asmsicas, as
artes e ofcios artesanais, os documentos e objetos antigos,
opatrimnio natural que se destaca na paisagem. (Dossi, 1999, p.
1-2).
O emprego de categorias como dinmica cultural e
contextosociocultural, operacionalizadas em pesquisas junto s
comunidades dascidades tombadas, e a ampliao do conceito de bem
cultural para abrangermanifestaes de natureza imaterial ou
intangvel, associadas identidadee sentimentos simblicos da regio,
denotam a incorporao das propostasde Alosio Magalhes.2
2 O Inventrio Nacional de Referncias Culturais aplicado pelo
Iphan em 1999 buscavaconsolidar uma metodologia de pesquisa para
subsidiar as aes de identificao, inventrioe registro dos bens
culturais imateriais, conforme concepo registrada no Decreto
3.551/2000, que estabeleceu o Programa Nacional do Patrimnio
Imaterial (Abreu; Chagas, 2003).
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Noventa pessoas foram entrevistadas na cidade de Gois,
todasmoradoras do centro histrico. Com isso, delimita-se a
comunidade dacidade, desconsiderando-se aqueles que habitam outros
bairros. Nada constaa respeito dos critrios de seleo dos moradores
ouvidos.
Na anlise das entrevistas, os coordenadores da pesquisa arrolam
bensculturais intangveis e apontam a produo de um texto cultural
particularque distingue Gois e a consagra como um depositria do
passado regional:
A existncia de um repertrio de histrias (ou lendas) que se
reproduzem acada gerao fonte indicativa de sua distino. Tambm o so
a reiteraode personagens de outros tempos, recuados e imersos na
experincia culturalpresente, sinalizando para uma constante busca
coletiva de significados. Asfestas, suas performances, na forma
como aparecem hoje e como o foram nopassado, parecem cumprir o
mesmo destino, como linhas invisveis socosturadas as humanidades
constitutivas do contexto patrimonial local.Tudo se passa como se
alheios s novas snteses e transformaespropostas pelo final do
milnio, os vilaboenses insistissem em manter umimaginrio povoado
por fantasmas e alegorias de tempos passados. (Dossi,1999, p.
3-4).
Emerge desse discurso, um contexto do patrimnio local
homogneo,marcado pela busca coletiva de significados e pela
perpetuao de umamemria coletiva que est sendo transmitida s novas
geraes. Paradelinear o patrimnio cultural, idealiza-se a relao do
vilaboense com opassado e o patrimnio: O valor do patrimnio
histrico de Gois para seushabitantes inteiramente natural, est
arraigado em seu viver. (Dossi,1999, p. 3-4).
Esse discurso silencia as tenses e conflitos constitutivos do
processode atuao do Iphan e das instituies locais como a Ovat, e
oculta quantoo poder simblico coercitivo, atribuindo ao conjunto do
espao social asrepresentaes construdas no campo do patrimnio.
Assim so os Vilaboenses. Retiram do passado, da experincia
coletiva fixadano tempo, a substncia que funda e que organiza a
continuidade de suasingular trajetria cultural. [] Tudo se passa
como se o rememorar, constantee reiteradamente o passado, pudesse,
no presente, exorcizar do futuro osimponderveis derruidores do seu
patrimnio. (Dossi, 1999, p. 30-31).
A definio do ser vilaboense naturaliza o valor atribudo
aopatrimnio e essencializa determinada concepo de passado que
histrica
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e socialmente construda, anunciado os atributos que estabelecem
aidentidade como se fossem constituintes da prpria natureza dos
moradoresda cidade. Enquanto que, como afirma Pierre Bordieu (1989,
p. 115), essascaractersticas nada tm de natural e so, em grande
parte, produto de umaimposio arbitrria, quer dizer de um estado
anterior da relao de forano campo das lutas pelo poder simblico de
produzir nesse espao socialuma viso nica da sua identidade, uma
viso idntica da sua unidade.
A singular trajetria cultural dos vilaboenses
cuidadosamenteconstruda no Anexo III do Dossi, no texto Gois:
histria e cultura.Agenciam-se as pesquisas que produzem a cidade
bero da cultura goianaa fim de buscar as origem das manifestaes
culturais que permanecemvivas at os dias atuais.
No Dossi de Gois, encontramos rastros de outras
categoriassimblicas que influenciam atualmente prticas pblicas do
patrimnio:defende-se que o tombamento pela Unesco promova a extenso
da proteoinstituda pelo Iphan, para abranger reas naturais da
cidade de Gois. Essaincluso das questes ambientais demonstra o
cruzamento do discursopatrimonial com o discurso ecolgico, que
constitui um importante espao deluta poltica na sociedade
contempornea.
Em vrias passagens do Dossi, delineia-se a idia de que a
prpriamajestade da natureza em Gois, [] aliada cultura que ali se
desenvolve,distante dos principais centros urbanos, tenha motivado
um tipo particular derelao homem e meio ambiente. A concluso que,
na cidade de Gois,manteve-se singular equilbrio entre a riqueza
histrico-cultural e oriqussimo patrimnio ambiental, testemunho
eloqente do binmio Homem-Cerrado em sua correta acepo (Dossi, 1999,
p. 5-7).
Esse discurso que pretende estabelecer a origem da identidade
regional,associada a uma diviso natural do espao, est preso
dizibilidaderegionalista e rede de poder que sustenta a idia de
regio comoreferencial vlido, tal como analisa Durval de Albuquerque
Jnior (1999),constituindo importante estratgia de poder-saber na
construo da noo deregio como uma identidade fixa, esttica e
homogeneizadora.
No Dossi de Gois, o patrimnio ambiental que testemunha essarelao
singular entre homem e natureza o binmio Homem-Cerrado passa a ser
objeto de polticas pblicas para a cidade de Gois, ao constituirum
dos eixos do Plano Diretor, definido pela lei municipal no 206, de
agostode 1996. Esse documento define os princpios norteadores da
poltica
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urbana, destacando preceitos e diretrizes referentes preservao
dopatrimnio cultural e de reas de Preservao Ambiental.
Anuncia-se no Dossi que a elaborao do Plano Diretor de Gois
resultoude discusses com a comunidade. Os dirigentes das entidades
culturais dacidade enfatizaram, em seus depoimentos, o papel que
desempenharam nesseprocesso.
Diferentemente do que ocorreu em outros perodos, nos quais
aspolticas pblicas municipais no priorizavam o campo do patrimnio,
omomento conjuntural de elaborao do Plano Diretor e do Dossi de
Goiscaracterizou-se pela aliana entre Iphan, entidades culturais e
prefeituramunicipal com o objetivo de elaborar propostas para a
cidade, orientadaspela preservao do patrimnio histrico.
Os planos de interveno no espao urbano apresentados no
Dossiorganizam-se tendo como referncia os Programas de preservao da
zonatombada como monumento histrico nos quais Estado, Prefeitura e
Iphancomprometeram-se, entre outras medidas, com obras de
restaurao,retirada de postes e fios eltricos, que sero substitudos
por uma redesubterrnea e despoluio do Rio Vermelho (Dossi, 1999, p.
22). Essasobras j foram realizadas e contriburam significativamente
para adequarGois s normas da Unesco para preservao das cidades
inscritas na Listado Patrimnio Mundial.
Outras reas urbanas no so sequer objeto de problematizao noPlano
Diretor e no Dossi de Gois. Essa excluso do campo
discursivosignifica a invisibilidade de vrios bairros e a
desconsiderao de demandasde parte significativa da populao. O
futuro e o desenvolvimento da cidadeso planejados a partir do
centro histrico, demonstrando a eficcia daprtica, tanto do Iphan
quanto da Ovat, que circunscreve Gois a umdeterminado espao
institudo como histrico que, metonimicamente,representaria toda a
cidade.
Do mesmo modo, a relao dos habitantes com os bens tombados
considerada apenas sob a perspectiva de quem mora no centro
histrico,naturalizando-se a idia de que todos usufruem dos
benefcios de organizara cidade em torno do patrimnio tombado e
ocultando-se os conflitos econfrontos que envolvem a implantao
dessa poltica de patrimnio e gestourbana.
A fora simblica da reinveno constante da cidade como lugar
damemria produzida por uma multiplicidade de prticas discursivas
foipotencializada com o Movimento Pr-Cidade de Gois e a obteno do
ttulode Patrimnio da Humanidade.
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3 Tais mapas no tm valor descritivo como os mapas usuais da
cidade, construdos a partirde um lugar absoluto e inexistente, mas
seu interesse de outra ordem, mais vivencial enarrativo, em que os
trajetos esto amarrados s histrias e no ao presente contnuo
dadescrio neutra e absoluta. (Freire, 1997, p. 70).
A anlise do Dossi Proposio da Cidade de Gois na Lista
doPatrimnio da Humanidade demonstrou a historicidade das sries
discursivasque se cruzam no campo do patrimnio, referendando a idia
de que a instituiode Gois como cidade histrica configura um
processo de disputa entre diferentesagentes, categorias discursivas
e formas narrativas que produzem os contedossimblicos da memria
coletiva.
Nesse documento, para a construo de Gois como cidade histrica
eturstica, outra importante srie discursiva agenciada: a
monumentalizao deCora Coralina como smbolo da cidade, entrelaando o
ofcio da doceira queinstitui a comida-signo com o ofcio da literata
que inscreve determinado passadona materialidade urbana e elabora
um mapa da memria3 pessoal e coletiva.
A escrita da memria topogrfica da cidade de Gois
Na dcada em que a DPHAN realizou os primeiros tombamentos
emGois, mais precisamente no ano de 1956, Cora Coralina retornou
para acidade, aps 45 anos morando no Estado de So Paulo. Logo em
seguida,ela escreveu e mandou publicar um folheto intitulado Cntico
da Volta(1956), que considerava o marco inaugural de sua prtica de
escrevermemrias.
No Cntico da Volta, Cora mitifica e ritualiza o retorno Gois.
Anarrativa no expe os dados sensorialmente percebidos no reencontro
coma cidade, mas traa a ressignificao promovida pelo trabalho da
memria.A poeta inscreve na perenidade do espao urbano a
possibilidade deencontrar o passado no presente, redescobrindo
costumes, cheiros, sons deGois:
Velha casa de Gois. Acolhedora e amiga, recende a coisas antigas
de genteboa.Vem de dentro um cheiro familiar de jasmins, resed, e
calda grossa docede figo ou caju.Um tacho de cobre areado referve
numa trempe de pedras. Uma braada delenha e gravetos acende o fogo
ancestral. []
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Sombras do passado deslizam pelas ruas estreitas e curtas,
quebradas emngulos imprevistos, abrindo-se em largos de simetria
obsoleta. []O Rio Vermelho de guas avolumadas, corre, como sempre,
cantando epulando de pedra em pedra, como nos dias da minha
infncia.
Cntico da Volta (Cora Coralina, 1956)
Diante do trauma causado pela transferncia da capital, a
poetacontrape a permanncia do passado no conjunto urbano: A cidade
bi-centenria, assentada sobre pedras, sobre pedras se apruma e se
sustenta.[] Sentiu com altivez o impacto da mudana. No se despovoou
nem sedesagregou com a grande espoliao. (Cora Coralina, 1956).
A poeta penetra na trama da disputa da memria ao identificar
aquelesque haviam permanecido em Gois, chamados de gente da velha
ala,considerados, no Cntico da Volta, como velhas sentinelas que
morrem noposto de honra; defensores tenazes e valentes do que aqui
resta, qual seja,o valioso Patrimnio histrico e cultural e as
nobres tradies de Gois.
No entanto, Cora Coralina se diferencia dessa velha ala ao
encerraro Cntico da Volta com um prognstico da nova identidade da
cidade deGois: Uma nova esperana acena no horizonte. Com a expanso
de Goiniae com a possibilidade da mudana da Capital Federal para o
planalto, Goisser, sem dvida, um centro de turismo, dos mais
interessantes do pas.
Com isso, a poeta se aproxima da posio preservacionista do rgo
doPatrimnio Histrico, saudado explicitamente, no Cntico da Volta,
comoaquele que estava impedindo, em tempo, maiores atentados ao seu
feitiocaracterstico e tradicional que merece ser inteligentemente
resguardado.
Portanto, no momento em que a elite da cidade de Gois ainda vive
seuressentimento com a transferncia da capital e ope resistncias s
aesdo DPHAN, Cora Coralina uma voz dissidente ao vislumbrar que
opatrimnio arquitetnico e urbanstico pode trazer o turismo para a
cidade.
A poeta trata de transformar o valioso patrimnio histrico
cultural eas nobres tradies de Gois em matria da memria e escreve
seuprimeiro livro, Poemas dos Becos de Gois e Estrias Mais,
publicado em1965 (Cora Coralina, 1980).
Na primeira pgina, a poeta revela as motivaes da sua escrita
aoleitor:
Algum deve rever, escrever e assinar os autos do Passadoantes
que o Tempo passe tudo a raso.
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o que procuro fazer, para a gerao nova, sempreatenta e enlevada
nas estrias, lendas, tradies, sociologiae folclore de nossa
terra.Para a gente moa, pois, escrevi este livro de estrias.Sei que
serei lida e entendida.
Ao Leitor (Cora Coralina, 1980, p. 39).
Na pgina seguinte, faz uma ressalva:
Este livro foi escritopor uma mulherque no tarde da Vidarecria e
poetiza sua prpriaVida. []Este livro:Versos NoPoesia Noum modo
diferente de contar velhas estrias.
Ressalva (Cora Coralina, 1980, p. 41).
A memria o fio que Cora Coralina utiliza para esboar o plano
dolivro: a poeta acredita na memria capaz de recuperar o passado
coletivo,mas reconhece que essa tarefa desempenhada a partir de uma
perspectivaparticular: a memria da mulher, da mulher velha, da
mulher que escrevepara recriar e poetizar sua prpria vida.
O amlgama entre autobiografia e memorialismo est na tessitura
daescrita e dos depoimentos de Cora Coralina, que so, ao mesmo
tempo,momentos de construo de uma memria autobiogrfica e uma
formaespecfica de criao da memria coletiva.
Em todos seus livros, ela escreve e assina os autos do Passado
aocompor poemas e contar histrias cujos enredos emergem do jogo
dalinguagem com as mltiplas camadas do tempo, interligando o
passado, opresente e o futuro pela memria que reconstitui os espaos
da cidade deGois.
O conjunto de textos de outros autores apresentaes e
prefcios,fotografias e desenhos que integram os livros de Cora
Coralina tambmpromovem a inveno imagtica-discursiva da cidade
histrica e turstica.
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Interessa, portanto, investigar como o discurso literrio de Cora
Coralinaproduz determinada forma de dizer e ver a cidade.
No estudo da obra da poeta, no compreendo a escrita da
memriacomo recuperao do que foi vivido, pois, como nos ensina
Walter Benjamin(1994), o tecer da rememorao, ao abrir o
acontecimento vivido para tudoque veio antes e depois, compe
possibilidades infinitas de agenciamentos desentidos e significados
para o passado, tanto para o prprio autor quantopara o leitor.
Com Gaston Bachelard (1996, p. 2), compartilho a idia de que
aimagem potica no eco do passado. antes o inverso: com a explosode
uma imagem, o passado longnquo ressoa de ecos e j no vemos em
queprofundezas esses ecos vo repercutir e morrer. Em outras
palavras, aconstruo do passado pela memria operao do presente e
estenvolvida na produo do futuro.
Na anlise dos jogos que a poeta teceu entre tempo e espao,
aslembranas se associam configurao material da cidade, onde
ruas,edifcios, logradouros evocam as vivncias do passado, tal como
enfatizou osocilogo Maurice Halbwachs (1990, p. 143), ao estudar os
espaos damemria e afirmar que a estabilidade do espao pode
constituir-se emncora da memria:
[] o espao uma realidade que dura: nossas impresses se sucedem,
uma outra, nada permanece em nosso esprito, e no seria possvel
compreenderque pudssemos recuperar o passado, se ele no se
conservasse, com efeito,no meio material que nos cerca.
A escrita da memria de Cora Coralina transfigura as casas, o
rio, osbecos, as paisagens em matria literria e em marcos da memria
que seabrem ao rememorar infinito do tempo entrecruzado com a vida.
A paisagemurbana emerge entrelaada poeta, tornando-se espessa de
mltiplossentidos, temporalidades e memrias.
Para investigar como Cora Coralina, valendo-se de diferentes
recursosficcionais, tece o tempo e o espao num s movimento,
recriando a cidadede Gois, tomo emprestado o conceito de memria
topogrfica que WilliBolle (1994) construiu para analisar a obra de
Walter Benjamin.
A escrita da memria de Cora Coralina compe movimentos
deapropriao da cidade como forma de encontrar-se a si mesma. Num
nicomovimento, o trabalho mnemnico delineia um mapa afetivo e
aautobiografia da poeta, tal como na poesia Minha Cidade:
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Gois, minha cidade[]Eu sou aquelamenina feia daponte da Lapa.Eu
sou Aninha.
Eu sou aquelamulher,que ficou velha,esquecida,nos teus
larguinhose nos teus becostristes,contando
estrias,fazendoadivinhao.
Cantando teupassado.Cantando teu futuro.
Eu sou aquele teumuro []
Eu sou estas casasencostadascochichando umascom as outras.
Eu sou a ramadadessas rvores []Eu sou o cauledessas trepadeiras
[]
Minha vida,meus sentidos,minha esttica,todas as vibraesde
minhasensibilidade demulhertm, aqui, suasrazes.Eu sou a
meninafeiada ponte da Lapa.Eu sou Aninha.
Minha Cidade (Cora Coralina, 1980, p. 47-49).
A cidade de Gois emerge entrelaada poeta, que constri
significadospara as caractersticas do espao urbano ao se apropriar
da cidade eentretec-la s fases de sua vida, lugar onde a menina, a
mulher e a velhaencontram seus sentidos, esttica, vibraes da
sensibilidade. A tessitura detodos os tempos da cidade matria da
potica daquela que vive a velhicecontando histrias, cantando o
passado e fazendo adivinhaes, cantandoo futuro de Gois.
As composies poticas de Cora Coralina so tambm arte
detopografar, porque configuram um inventrio minucioso de lugares e
objetoscomo forma de recriar o passado, compondo temporalidades
para revisitarpercepes, sensibilidades e emoes associadas s
vivnciasespacializadas.
A poeta escreveu as experincias da infncia, adolescncia e
velhicereconstituindo o espao para configurar a matria das
recordaes. A escrita
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4 A cadeia refere-se Casa de Cmara e Cadeia, e o quartel o
Quartel do Vinte, ambostombados na primeira interveno do Iphan em
Gois, no incio da dcada de 1950.
autobiogrfica volta-se para o espao privado e o auto-retrato vai
seesboando medida que as recordaes vo desvendando
personagens,objetos e acontecimentos associados Casa Velha da
Ponte.
Na descrio do espao pblico da cidade, a autobiografia cede
lugarao memorialismo, e o olhar da escritora est menos voltado s
experinciasindividuais que s experincias coletivas, menos voltado
vivncia interiorque aos eventos compartilhados. Desde o primeiro
livro, o tom intimista daspoesias autobiogrficas convive com a
aspirao monumentalidade, quemarca o memorialismo potico.
Em algumas poesias, a histria se confunde com o pico:
Bartolomeu Bueno,bruxo feiticeiro,num passe de
magiahistricatirou Goyaz de um pratode aguardentee ficou sendo
Anhangera.
Anhangera (Cora Coralina, 1994, p. 30-31).
Aos prdios que so considerados referncias arquitetnicas de
Gois,Cora imprimiu, num trabalho minucioso, determinadas lembranas
longnquasque os incorporam memria coletiva da cidade.
C bem bo c bem bo c bem bo,Assim, no dizer da gente da
cidade,Respondia o sininho da cadeiaAo toque de silncio do
quartel.4
O quartel da polcia de GoisSempre foi a segurana da
cidade.Guardio de um passado bem passado.Antigos tempos superados.
[]
A vida do quartel comandava a vidinha das cidades.Sempre foi o
quartel o corao da gente de Gois.
O Quartel da polcia de Gois (Cora Coralina, 1984, p.
189-190).
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O Palcio dos Arcostem estrias de valorque no quero aqui
contar.Vou contar a estria do soldado caraj.
O Palcio dos Arcos (Cora Coralina, 1980, p. 129-132).
Num conjunto de poemas, Cora Coralina d visibilidade aos
becosdiscriminados e humildes de Gois. Entrelaado s
refernciastopogrficas, ela exalta os vrios tempos inscritos nesses
lugaresesquecidos e abandonados, e recorda que, na geografia da
cidade, elesconstituem o espao da memria dos escravos, lenheiros,
lavadeiras,prostitutas, onde famlia de conceito no passava.
Becos da minha terradiscriminados e humildes,lembrando passadas
eras []Conto a estria dos becos, dos becos da minha terra,suspeitos
mal afamadosonde famlia de conceito no passava.Local de gentinha
diziam, virando a cara.De gente do pote dgua.De gente de p no
cho.Becos de mulher perdida.Becos de mulher da vida.Becos de Gois
(Cora Coralina, 1980, p. 103).
Beco da Vila RicaBaliza da cidade,do tempo do ouro.Da era dos
polistasde botas, trabuco, gibo de couro.Dos escravos de sunga de
tear, camisa de baeta,pulando o muros dos quintais,correndo para o
jequed e o batuque.
Do Beco da Vila Rica (Cora Coralina, 1980, p. 107-116).
Os becos so caminhos caractersticos do traado urbano
setecentista,onde circula a vida humilde da cidade. Eles esto,
entretanto, ausentes domapa traado pelo Iphan ao realizar os
tombamentos nas cidades histricas.
Marcelo YuriRealce
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Abandono. Silncio.Desordem.Ausncia sobretudo.[]
Fechado. Largado.O velho sobrado colonialde cinco sacadas,de
ferro forjado,cede. []
Bem que podia ser conservado,bem que podia ser retocado,to alto,
to nobre-senhorialO sobrado dos Vieirascai aos
pedaos,Abandonado.Parede hoje.Parede amanh. []
Quem se lembra?Quem esquece? []
O Passado.
A escadaria de patamaresVai subindo subindoPortas no alto.
A visibilidade que adquirem em Gois foi construda pela escrita
da memriade Cora Coralina. Os becos, reproduzidos na capa do livro
da poeta eagenciados pela mdia no processo de construo da poeta dos
becos deGois, foram singularizados e transformados em marcos do
conjuntourbano.
O belo poema Velho Sobrado um exemplo do jogo temporal
impregnadoao espao tecido por Cora Coralina. O abandono e o
desmoronamento do prdioanunciam o perigo do esfacelamento dos
quadros do Passado, quando amemria no mais encontrar os vestgios
materiais ancorados na cidade.
direita. esquerda.Se abrindo, familiares.[].
O Passado
Gente que passaindiferente,olha de longe,na dobra das
esquinas,as traves despencam. Que vale para eles o sobrado? []
Quem v nas velhas sacadasde ferro forjadoas sombras
debruadas?Quem que est ouvindoo clamor, o adeus, o chamado?Que
importa a marca dos retratos na parede?Que importa as salas
destelhadas,e o pudor das alcovas devassadasQue importam?
E vo fugindo do sobrado,aos poucos,os quadros do Passado.
Velho Sobrado (Cora Coralina, 1980, p. 95-99).
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Diante do sobrado desmoronando, a poeta pergunta: Quem se
lembra?Quem se esquece?, para, com gestos de memria, reconstruir os
espaos dosobrado e povo-los de personagens, eventos, modos de
sociabilidade. Apoesia permeada da dor de no encontrar mais com
quem compartilhar OPassado, evocado repetidamente, intercalando as
recordaes. Oconsentimento daqueles que contemplam o desabamento faz
com que a poetapergunte que vale para eles o sobrado? Eles no
conseguem ver as sombrasdebruadas na sacada, ouvir o clamor e o
adeus, perceber as marcas deretrato nas paredes, enfim, so
incapazes de reencontrar na memria aressignificao para o espao.
Contra o trabalho do esquecimento, a poeta evoca o poder da
palavra.O texto potico cartografa o espao e desenha, a um s tempo,
o mapa damemria autobiogrfica da poeta e o mapa da memria coletiva
da cidade deGois, instituindo a Mulher-Monumento que inventa o
passado, o presente eo futuro da cidade histrica e turstica.
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Recebido em 06/12/2005Aprovado em 31/03/2005