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5/28/2018 GLUCKMAN, Max. Anlise de uma situao social na
Zululndia moderna
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Introduo e Organizao Bela Feldman-Bianco
ANTROPOLOGIA DAS SOCIEDADESCONTEMPORNEASMtodos
S.F Nadei /J. Clyde Mifchell /Adrian C. Mayer / J.A. Barnes
Jeremy Boissevain / Max Gluckman/J.Van Velsen /Joan Vincent
Bela Feldman-Bianco, paulista, antroploga, com doutoramento pela
Columbia University, EUA, leciona no Departamento de
Cincias Sociais da UNICAMP. Suas pesquisas e publicaes tm sido
na rea de famlia e formao de classes, papis sexuais,poltica local e
metodologia.Foi Fulbright Scholarna Yale University (Histria) e na
Columbia University (Antropologia). Temporariamente, est residindo
emNew Bedford onde, como professora visitante em Estudos
Portugueses da Southeastern Massachusetts University est
iniciandopesquisa sobre imigrao portuguesa.
A Antropologia das sociedades contemporneas / organizaao
eintroduo Bela Feldman-Bianco. So Paulo : Global, 1987.(Global
universitria)
Bibliografia. ISBN 85-260-0119-1
1. Antropologia 2. Antropologia social 3. Sistemas sociais I.
Feldman-Bianco, Bela. II. Srie.
g lobal universitria
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Zululndia moderna
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ANLISE DE UMA SITUAO SOCIAL NA ZULULNDIAMODERNA 1
Max Gluckman
I
A organizao social da Zululndia moderna
Introduo
A frica do Sul um Estado nacional habitado por 2.003.512brancos,
6.597.241 africanos e vriosoutros grupos raciais.1 Esta populao no
forma uma comunidade homognea porque o Estadobasicamente est
constitudo por sua diviso em grupos raciais de vrios status.
Portanto, o sistema social
do pas consiste, predominantemente, de relaes interdependentes
em cada grupo e entre os vriosgrupos enquanto grupos raciais.Neste
ensaio, analisarei as relaes entre africanos e brancos do norte da
Zululndia, baseando-me emdados coletados durante dezesseis meses de
pesquisa de campo, realizada entre 1936e 1938.2Cerca de2/5 dos
africanos da frica do Sul moram em reas reservadas, distribudas por
todo pas. Apenas algunseuropeus (administradores, tcnicos do
governo, missionrios, comerciantes e recrutadores) vivem
nestasreservas. Os homens africanos costumam migrar das reservas,
por curtos perodos de tempo, a fim detrabalhar para fazendeiros
brancos, industriais ou se empregar como criados domsticos. Findo o
trabalho,retornam s suas casas. A comunidade de africanos de cada
reserva mantm estreitas relaeseconmicas, polticas, bem como outros
tipos de relaes com o restante da comunidade africana brancado pas.
Por isso, ao explicitar os problemas estruturais em qualquer
reserva, preciso analisaramplamente como e em que profundidade a
reserva est inserida no sistema social do pas, quais relaesdentro
da reserva envolvem africanos brancos e como estas relaes so
afetadas e afetam a estrutura de
cada grupo racial.Pesquisei, no norte da Zululndia, uma seo
territorial do sistema social da frica do Sul,
especificando suas relaes com o sistema enquanto um todo.
Acredito, entretanto, que provavelmente opadro dominante da rea
pesquisada se assemelhe ao de qualquer outra reserva do pas.3Deve,
alm domais, apresentar possveis analogias com outras reas
localizadas em Estados heterogneos onde, emboravivendo separados,
grupos socialmente inferiores (do ponto de vista racial, poltico e
econmico) inter-rela-cionam-se com os grupos dominantes. No
pretendo neste ensaio desenvolver nenhum estudocomparativo. No
entanto, vale a pena salientar o contexto mais amplo dos problemas
sob investigao.
Como forma de iniciar esta anlise, descrevo uma srie de eventos
conforme foram registrados pormim num nico dia. As situaes sociais
constituem uma grande parte da matria-prima do antroplogo,pois so
os eventos que observa. A partir das situaes sociais e de suas
inter-relaes numa sociedadeparticular, podem-se abstrair a
estrutura social, as relaes sociais, as instituies, etc. daquela
sociedade.
Atravs destas e de novas situaes, o antroplogo deve verificar a
validade de suas generalizaes.Como o meu enfoque dos problemas
sociolgicos da frica moderna no foi previamente utilizadono estudo
do que se convencionou chamar "contato cultural", estou
apresentando um material de pesquisadetalhado. Desta maneira,
poder-se- avaliar melhor e criticamente a abordagem adotada.4
Escolhideliberadamente estes eventos particulares, retirados de meu
dirio de campo, porque ilustram de formaadmirvel o que estou
tentando enfatizar neste ensaio. Poderia, entretanto, ter
selecionado igualmenteinmeros outros eventos ou citado outras
ocorrncias do cotidiano da Zululndia moderna. Descreverei oseventos
da forma em que os documentei ao invs de adicionar minha descrio
tudo aquilo que jconhecia previamente sobre a estrutura total da
Zululndia moderna. Espero que, dessa forma, a fora domeu argumento
possa ser apreciada melhor.
1Do original em ingls: "Analysis of a Social Situation in Modern
Zulu-land" in The Rhodes Livingstone Paper, 1958, vol. 28, pp.
1-75. Traduo de Roberto Yutaka Sagawa e Maura Miyoko Sagawa.
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As situaes sociais
Em 1938, estava morando no stio (homestead) de Matolana Ndwandwe
5um conselheiro do regentee representante governamental. O stio
localiza-se a treze milhas da magistratura europia e da Vila
deNongoma, e a duas milhas do armazm de Mapopo-ma. No dia 7 de
janeiro, acordei ao amanhecer e mepreparei para ir a Nongoma na
companhia de Matolana e de meu criado Richard Ntombela, que vive
num
stio aproximadamente meia milha distante da casa do meu
anfitrio. Naquele dia, meu plano era com-parecer de manh inaugurao
de uma ponte no distrito vizinho de Mahlabatini e logo aps, tarde,
aum encontro distrital na magistratura de Nongoma.
Richard, um cristo que morava com trs irmos pagos, veio vestido
com suas melhores roupaseuropias. Ele um "filho" para Matolana,
pois a me de seu pai era irm do pai de Matolana. Richardpreparou o
vesturio de Matolana para ocasies especiais: uniforme de jaqueta
caqui, calas de montaria,botas e polainas de couro.
Estvamos a ponto de deixar a casa de Matolana, quando fomos
retardados pela chegada de umpolicial uniformizado do governo zulu,
empurrando a sua bicicleta, e acompanhado por um
prisioneiroalgemado, um estranho no nosso distrito que estava sendo
acusado de roubar ovelhas em algum outrolugar. O policial e o
prisioneiro cumprimentaram Matolana e a mim. Respondemos ao
cumprimento dopolicial, que membro de um ramo colateral da famlia
real zulu, com as saudaes dignas de umprncipe (umwana). Ento, o
policial relatou a Matolana como tinha capturado o prisioneiro com
a ajudade um dos guardas particulares de Matolana. Matolana
repreendeu o prisioneiro dizendo que noadmitiria escrias
(izigebengu) no seu distrito. Voltou-se, em seguida, para o
policial e criticou o governopor esperar que ele e sua guarda
particular ajudassem a capturar pessoas perigosas, sem pagar nada
poresse servio, nem levar em considerao qualquer recompensa aos
seus dependentes, caso fossem mortos.Matolana frisou ainda que
trabalhava muitas horas administrando a lei para o governo, sem
recebersalrio; disse, tambm, que era suficientemente inteligente
para deixar de fazer esse trabalho e voltar sminas, onde costumava
ganhar dez libras por ms como capataz.
O policial foi embora com seu prisioneiro. Em seguida, partimos
em meu carro para Nongoma.Paramos no meio do caminho para dar
carona a um velho, lder de sua pequena seita crist, fundada porele
prprio e cuja parquia foi construda em seu stio. Esse velho lder
atribui a si o ttulo de supremo na'sua igreja, mas as pessoas
consideram a sua seita, que no reconhecida pelo governo, como sendo
partedos zionistas, uma grande igreja separatista nativa.7O velho
lder estava se dirigindo a Nongoma para
comparecer ao encontro da tarde como um representante do
distrito de Mapopoma. Ele sempredesempenhou esse papel, em parte
devido sua idade e, em parte, por ser o lder de um dos grupos
deparentesco local. Embora qualquer um possa comparecer e falar
nessas reunies, h pessoas que soreconhecidas como representantes
pelos pequenos distritos. Nos separamos no hotel, em
Nongoma.Enquanto os trs zulus foram cozinha para tomar o caf da
manh, por minha conta eu resolvi tomarbanho, antes do desjejum. Ao
voltar para o caf da manh, sentei-me mesa com L.W.
Rossiter,veterinrio do governo para os cinco distritos da
Zulu-lndia do Norte." Conversamos sobre as condiesdas estradas e
sobre as vendas de gado pelos nativos locais. Ele tambm estava indo
inaugurao daponte e tinha, como eu, um interesse particular nesse
evento, pois a ponte havia sido construda sob adireo de J.
Lentzner, da equipe de engenharia do Departamento de Assuntos
Nativos, um grande amigoe velho colega de escola de ambos.
O veterinrio do governo sugeriu que Matolana, Richard e eu
viajssemos em seu carro at a ponte,pois estava acompanhado por
apenas um nativo da sua equipe. Por meu intermdio, ele j havia
estabelecido relaes cordiais com Matolana e Richard. Fui cozinha
dizer a Matolana e Richard queseguiramos no carro do veterinrio, e
ali fiquei por uns instantes, conversando com os dois e com
osempregados zulus do hotel. Quando samos ao encontro do
veterinrio, todos trocaram cumprimentos,cada um indagando
cerimoniosamente sobre o estado de sade do outro. Matolana tinha
uma srie dereclamaes (pelas quais j era conhecido entre os
funcionrios qualificados do governo) sobre o exter-mnio dos
parasitas de gado. A maioria das reclamaes era tecnicamente
injustificada. O veterinrio e eusentamos no banco da frente do
carro, enquanto os trs zulus sentaram atrs.9
A cerimonia de inaugurao da ponte tornou-se relevante por ser a
primeira construda naZululndia pelo Departamento de Assuntos
Nativos, aps a implementao dos novos planos dedesenvolvimento
nativo. A ponte foi inaugurada por H.C. Lugg, comissrio chefe dos
nativos daZululndia e de Natal.10 construda sobre o rio Umfolosi
Negro na direo de Malungwana, no distritomagistratorial de
Mahlabatini, numa estrada secundria para o Hospital Ceza da Misso
Sueca, algumas
milhas acima de onde a estrada principal Durban-Nongoma
atravessa o rio num caminho de concreto. Orio Umfolosi Negro sobe
rapidamente seu nvel durante as chuvas pesadas (s vezes at vinte
ps),tornando-se inavegvel. O principal objetivo da construo dessa
ponte, nvel baixo (cinco ps), foi o de
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permitir a comunicao do magistrado de Mahlabatini com a parte de
seu distrito localizada alm do rio,durante as pequenas subidas do
rio. Alm disso, essa ponte torna possvel o acesso ao Hospital
Ceza,famoso entre os zulus por sua especializao em obstetrcia. As
mulheres zulus freqentemente viajam atsetenta milhas para serem
internadas nesse hospital.
Durante nossa viagem, discutimos, em zulu, sobre os vrios
lugares pelos quais passvamos. Dessaconversa, somente anotei que o
veterinrio do governo perguntou a Matolana qual era a lei zulu
de
punio ao adultrio, pois um de seus funcionrios zulus estava
sendo processado pela polcia por morarcom a esposa de outro homem,
embora at ento ignorasse o fato dela ser casada.No local onde a
estrada bifurca-se para Ceza, o magistrado de Mahlabatini havia
colocado um zulu,vestindo trajes de guerreiro, para orientar os
visitantes. Na estrada secundria, ultrapassamos o carro dochefe
Mshiyeni, regente da Casa Real Zulu, que viajava de sua casa,
localizada no distrito de Nongoma,para assistir inaugurao da ponte.
Nossos acompanhantes zulus dirigiram-lhe a saudao real e ns
ocumprimentamos. Alm de seu chofer, que dirigia seu carro, Mshiyeni
tambm estava acompanhado porum oficial militar armado, de uniforme
aide-de-camp, e mais outro auxiliar.
A ponte est localizada num aluvio, entre margens bem ngremes.'
Quando chegamos, um grandenmero de zulus estava reunido em ambas as
margens (em A e B no mapa). Na margem ao sul, em umdos lados da
estrada (no ponto C do mapa), havia uma barraca, onde a maioria dos
europeus estavaconcentrada. Os europeus haviam sido convidados pelo
magistrado local e incluam a equipe
administrativa de Mahlabatini, o magistrado, o assistente do
magistrado e o mensageiro da corte deNongoma; o cirurgio do
distrito; missionrios e funcionrios do hospital; comerciantes e
agentesrecrutadores; policiais e tcnicos; e vrios europeus com
interesses centrados no distrito, entre eles C.Adams, leiloeiro nas
vendas de gado nos distritos de Nongoma e Hlabisa. Muitos estavam
acompanhadospor suas esposas. O comissrio chefe dos Nativos e
Lentzner, bem como um representante doDepartamento de Estradas da
Provncia de Natal, chegou mais tarde. Dentre os zulus presentes
estavamchefes locais, lderes (headman) e seus representantes; os
homens que haviam construdo a ponte;policiais do governo; o
funcionrio dos nativos da magistratura de Mahlabatini, Gilbert
Mkhize; e zulusresidentes nas proximidades. ramos, ao todo,
aproximadamente vinte e quatro europeus e 400 zulus.
Arcos de ramagem tinham sido erguidos em cada extremidade da
ponte. Uma fita esticada passavapelo arco da extremidade sul da
ponte e seria rompida pela passagem do comissrio-chefe dos Nativos
emseu carro. Um guerreiro zulu, em trajes marciais, estava postado
em posio de guarda perto deste arco. O
veterinrio do governo conversou com o guerreiro (um induna11
local) sobre a desinfeco do gado local.Nessa ocasio, fui
apresentado ao guerreiro para que pudesse lhe falar sobre o meu
trabalho e solicitar asua assistncia.
Enquanto o veterinrio do governo e eu conversvamos com vrios
europeus, nossos zulusjuntaram-se ao grupo de zulus. Mato-lana foi
recebido com o respeito devido a um importante conselheirodo
regente. Quando o regente chegou, recebeu a saudao real e se juntou
aos seus sditos, reunindorapidamente ao seu redor uma pequena corte
de pessoas importantes. O comissrio-chefe dos Nativos foio prximo a
chegar: cumprimentou Mshiyeni e Matolana, e quis saber sobre a
artrite de Matolana. Peloque pude deduzir, tambm discutiu com eles
alguns assuntos zulus. Depois passou a cumprimentar oseuropeus. A
inaugurao foi retardada devido ao atraso de Lentzner.
Aproximadamente s 11 e meia da manh, um grupo dos zulus que
construiu a ponte reuniu-se naextremidade norte da ponte. No usavam
trajes marciais completos, mas portavam lanas e escudos.Quase todos
os altos dignitrios zulus trajavam roupas de montaria europias,
embora o rei estivesse
usando um terno de passeio. Pessoas comuns trajavam combinaes
variadas de roupas europias ezulus.12A tropa de guerreiros armados
marchou atravs da ponte, passando atrs da fita na extremidadesul;
ali cumprimentaram o comissrio-chefe dos Nativos com a saudao real
zulu, bayete. Depois,voltaram-se para o regente, saudan-do-o. Tanto
o comissrio-chefe dos Nativos como o regente respon-deram saudao
levantando o brao direito. Os homens comearam a cantar o ihubo
(cano de cl), docl Butezeli (o cl do chefe local que o principal
conselheiro do regente zulu), mas foram silenciadospelo regente.
Ento, os procedimentos da inaugurao se iniciaram com um hino ingls,
conduzido porum mis* sionrio de misso sueca Ceza. Todos os zulus,
inclusive os pagos, ficaram de p e tiraram seuschapus.
Mister Phipson, o magistrado de Mahlabatini, fez um discurso em
ingls, traduzido sentena porsentena para o zulu pelo seu funcionrio
zulu, Mkhize.13 O magistrado deu as boas-vindas a todos eagradeceu
especialmente aos zulus por comparecerem inaugurao. Parabenizou os
engenheiros e ostrabalhadores zulus pela construo da ponte e
ressaltou o valor que esta teria para o distrito. Em seguida,passou
a palavra para o comissrio-chefe dos Nativos, que conhece bem a
lngua e os costumes zulus.Este falou sobre o grande valor da ponte,
primeiro em ingls para os europeus, depois em zulu para os
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zulus. O comissrio-chefe dos Nativos salientou que a construo da
ponte era apenas um exemplo do queo governo estava fazendo para
desenvolver as reservas tribais zulus. Aps o comissrio, o
representantedo Departamento de Estradas da Provncia falou
brevemente, ressaltando que embora tivesse sidopressionado a
construir uma, seu Departamento nunca tinha acreditado na
resistncia de uma ponte baixas cheias do rio Umfolori. Continuando
seu discurso, cumprimentou os engenheiros dos Assuntos Nativospela
implementao da ponte que, mesmo sendo construda a baixo custo,
tinha resistido cheia de cinco
ps. Anunciou, tambm, que o Departamento da Provncia iria
construir uma ponte alta na estradaprincipal.14 Adams, um velho
zulu, foi o prximo a discursar em ingls e em zulu, mas no disse
nada derelevante.
O ltimo discurso foi o do regente Mshiyeni, em zulu, traduzido
por Mkhize para o ingls, sentenapor sentena. Mshiyeni agradeceu ao
governo pelo trabalho que estava sendo realizado na Zululndia.Disse
que a ponte possibilitaria a travessia em poca de cheia e tornaria
possvel s suas esposas iremlivremente para o Hospital Ceza ter seus
filhos. Apelou ao governo para que no se esquecesse da
estradaprincipal, onde tambm era necessrio construir uma ponte,
pois l o rio freqentemente impedia a pas-sagem. Mshiyeni anunciou
ainda que o governo estava dando uma cabea de gado ao povo e que
ocomissrio-chefe dos Nativos havia lhe dito que deveriam, de acordo
com o costume zulu,15 derramar ablis nos ps da ponte, para dar boa
sorte e segurana s crianas quando a atravessassem. Os zulus rirame
aplaudiram. O regente considerou seu discurso encerrado e recebeu a
saudao real dos zulus que,seguindo o exemplo dos europeus, haviam
aplaudido os outros discursos.
O comissrio-chefe dos Nativos entrou em seu carro e, precedido
por vrios guerreiros em trajesmarciais cantando o ihubo Butelezi,
atravessou a ponte. Foi seguido, sem nenhuma ordem hierrquica,pelos
carros de outros europeus e do regente. O regente pediu aos zulus
trs vivas (hule, em zulu). Aindatendo os guerreiros frente, os
carros fizeram o contorno na margem oposta e retornaram. No
caminho,um funcionrio europeu da magistratura, que queria
fotograf-los, pediu que parassem. Todos os zuluspresentes cantaram
o ihubo Butelezi.
Os europeus entraram na barraca para tomar ch com bolo. Uma
missionria serviu o regente fora dabarraca. Na barraca, os europeus
estavam discutindo assuntos zulus e outros mais gerais. No
acompanheias discusses porque fui margem norte onde os zulus
estavam reunidos. Os zulus locais haviampresenteado o regente com
trs cabeas de gado. Na margem norte, numa atmosfera de grande
euforia, oregente e seu oficial militar atiraram nesses trs
animais, bem como no animal doado pelo governo. Oregente pediu a
Matolana para selecionar homens, a fim de esfolar e cortar o gado
para distribuio.
Depois se dirigiu a um local de vegetao rasteira nas
proximidades (D no mapa) para conversar com seupovo e tomar cerveja
zulu, da qual lhe haviam ofertado grande quantidade. O regente
enviou quatro potesde,cerveja, carregados por garotas, ao
comissrio-chefe dos Nativos. Este bebeu de um pote que reservoupara
si, dizendo s carregadoras para beber dos outros potes e ento
distribu-los entre o povo.16 Deacordo com a etiqueta zulu, este
procedimento o apropriado.
O comissrio-chefe dos Nativos e quase todos os europeus foram
embora. A maioria dos zulus tinhase reunido na margem norte,
dividindo-se, grosso modo, em trs grupos. Na mata de arbustos (item
D nomapa) estava o regente com seus indunas locais, sentados
juntos, enquanto mais longe ficaram osplebeus. Estavam tomando
cerveja e conversavam, enquanto esperavam pela carne. Logo acima
damargem do rio (item A do mapa) estavam alguns grupos de homens
cortando rapidamente trs animaissob a superviso de Matolana; faziam
muito barulho, batendo papo em tom alto e rindo. O veterinrio
dogoverno, Lentzner e o tcnico de agricultura europia do distrito
os estavam observando. Logo atrs, auma maior distncia da margem, o
missionrio sueco havia arregimentado diversos cristos zulus que
estavam alinhados em filas e cantavam hinos sob sua direo. Entre
os cristos enfileirados, observei apresena de alguns pagos.
Lentzner pediu a dois guerreiros para posarem ao seu lado numa
fotografiatirada na sua ponte. Os diferentes grupos continuaram
cantando, batendo papo, conversando e cozinhandoat irmos
embora.
Eu tinha passado de grupo em grupo, exceto pelos cristos que
cantavam os hinos. Porm, passei amaior parte do tempo conversando
com Matolana, Matole e o chefe Butalezi, a quem conheci
somentenaquele dia. Matolana tinha que ficar para assessorar o
regente e por isso combinamos que o regentelevaria Matolana reunio
de Nongoma. Partimos com Richard e o ofjice-boy do veterinrio. A
reuniona ponte iria durar ainda o dia todo.
Almoamos, novamente separados dos zulus, em Nongoma, e fomos, o
veterinrio do governo e eu,separadamente, reunio na magistratura.
Cerca de 200 a 300 zulus estavam presentes. Entre eles,
chefes,indunas e plebeus. A reunio comeou um pouco atrasada, porque
Mshiyeni no havia chegado ainda.
Finalmente o magistrado iniciou a reunio sem a sua presena. Aps
uma discusso geral sobre assuntosdo distrito (leiles de gado,
gafanhotos e reproduo de touros de qualidade 17), os membros de
duas dastribos do distrito foram dispensados da reunio.
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H trs tribos: 1) os Usuthu, a tribo da linhagem real, que
constituem o squito de clientes pessoaisdo rei zulu (hoje o
regente). Somente o rei detm jurisdio legal sobre os Usuthu, muito
embora quasetodas as outras tribos na Zuzulndia acatem sua
autoridade; 2) os Amateni, que constituem uma das tribosreais e que
so governados por um dos pais classificatrios do rei; e 3) os
Mandlakazi, que sogovernados por um prncipe de um ramo colateral da
linhagem real, e que se separaram da nao Zulu emguerras civis que
se seguiram Guerra Anglo-Zulu de 1879/80.
Os Mandlakazi foram requisitados a permanecer na reunio, pois o
magistrado queria discutir asbrigas entre faces que estavam
ocorrendo entre duas das sees tribais. O chefe Amateni e seu
chefeinduna foram autorizados a permanecer na reunio (Mshiyeni, o
chefe Usuthu, ainda no estava l), mas omagistrado no queria que os
plebeus de outras tribos o ouvissem reprimindo os Mandlakazi.'8
Omagistrado dirigiu a palavra aos Mandlakazi num longo discurso,
reprovando-os por terem saqueado apropriedade dos Zibebu
(umzikaZibebu, isto , a tribo do grande prncipe, Zibebu) e por
estarem numasituao em que so obrigados a vender seu gado para pagar
multas para o tribunal de justia, ao invs dealimentar, vestir e
educar seus filhos e esposas.19Entrementes, Mshiyeni, acompanhado
por Matolana,entrou e todos os Mandlakazi se levantaram para
saud-lo, interrompendo o discurso do magistrado.Mshiyeni se
desculpou por estar atrasado e se sentou com os outros chefes.
Aps ter feito suas reprimendas durante um bom tempo, o
magistrado pediu que o chefe Mandlakazise pronunciasse sobre a
questo. O chefe Mandlakazi reprovou seus indunas e os prncipes das
seestribais em conflito, sentando-se depois. Vrios indunas falaram,
justificando seus atos e culpando osoutros; um deles, um indivduo
que, de acordo com os outros zulus, estava adulando o magistrado
para sepromover politicamente, fez seu discurso elogiando a
sabedoria e a bondade do magistrado. Um prncipeda linhagem
Mandlakazi, que alm de membro de uma das sees em conflito tambm um
policial dogoverno, reclamou que a outra seo tribal estava sendo
auxiliada nas disputas por seus vizinhos,membros da tribo Usuthu
que moravam no distrito de Matolana. Finalmente chegou a vez de
Mshiyenifalar. Ele interrogou rigorosamente os indunas Mandlakazi,
dizendo-lhes que tinham obrigao deverificar quem iniciou as brigas
e prender os culpados, sem permitir que a culpa recasse sobre todos
queagora brigavam. Incitou os Mandlakazi a no destrurem a
propriedade dos Zibebu afirmando que, se osindunas no pudessem
zelar pela nao, seria melhor que fossem depostos. Finalmente,
repudiou aacusao de que seu povo estaria participando das
brigas.20O magistrado endossou tudo que o regentetinha acabado de
falar e encerrou a reunio.
Anlise da situao social
Apresentei acima uma amostra tpica dos meus dados de pesquisa de
campo. Estes consistem devrios eventos que, embora ocorridos em
diferentes partes da Zululndia do Norte e envolvendodiferentes
grupos de pessoas, foram interligados pela minha presena e
participao como observador.Atravs destas situaes, e de seu
contraste com outras situaes no descritas, tentarei delinear
aestrutura social da Zululndia moderna. Denomino estes eventos de
situaes sociais, pois procuroanalis-los em suas relaes com outras
situaes no sistema social da Zululndia.
Todos os eventos que envolvem ou afetam seres humanos so
sociais, desde a chuva ou terremotoat o nascimento e a morte, o ato
de comer e defecar, etc. Se as cerimnias morturias so
executadaspara um indivduo, esse indivduo est socialmente morto; a
iniciao transforma socialmente um jovemem um homem, qualquer que
seja sua idade cronolgica. Os eventos envolvendo seres humanos
soestudados por muitas cincias. Assim, o o ato de comer objeto de
anlise fisiolgica, psicolgica esociolgica. O ato de comer uma
atividade fisiolgica, quando analisado em relao defecao,circulao
sangunea, etc. uma situao psicolgica, em relao personalidade de um
homem. umasituao sociolgica, em relao aos sistemas de produo e
distribuio da comunidade, aos seusagrupamentos sociais, aos seus
tabus e valores religiosos. Quando se estuda um evento como parte
docampo da Sociologia, conveniente trat-lo como uma situao social.
Portanto, uma situao social ocomportamento, em algumas ocasies, de
indivduos como membros de uma comunidade, analisado ecomparado com
seu comportamento em outras ocasies. Desta forma, a anlise revela o
sistema derelaes subjacente entre a estrutura social da comunidade,
as partes da estrutura social, o meio ambientefsico e a vida
fisiolgica dos membros da comunidade.21
Inicialmente, devo salientar que a situao principal estava se
configurando pela primeira vez deuma forma particular na
Zululndia.22O fato dos zulus e dos europeus poderem cooperar na
inaugurao
da ponte mostra que formam conjuntamente uma nica comunidade com
modos especficos decomportamento. Somente a partir desta
perspectiva pode-se comear a entender o comportamento dosindivduos
da forma em que os descrevi. Apesar de parecer desnecessrio, quero
enfatizar este tipo de
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abordagem porque foi recentemente criticada por Malinowski em
sua introduo aos ensaios tericossobre "cultura de contato" escritos
por sete pesquisadores de campo. Malinowski ataca Shapera e
Fortespor adotarem uma abordagem similar quela que me foi imposta
pelo meu material de pesquisa. 23 Nasegunda parte deste ensaio,
examinarei a validade desta abordagem para o estudo da mudana
social nafrica; aqui, quero somente salientar que a existncia de
uma nica comunidade branco-africana naZululndia deve
necessariamente ser o ponto de partida da minha anlise.
Os eventos ocorridos na ponte Malungwana que foi planejada por
engenheiros europeus econstruda por trabalhadores zulus, que seria
usada por um magistrado europeu governando os zulus e pormulheres
zulus indo a um hospital europeu, que foi inaugurada por
funcionrios europeus e pelo regentezulu numa cerimnia que incluiu
no somente europeus e zulus, mas tambm aes historicamentederivadas
das culturas europia e zulu devem ser relacionados a um sistema no
qual, pelo menos umaparte, consiste de relaes zulu-europias. Essas
relaes podem ser estudadas enquanto normas sociais,como pode ser
demonstrado pela maneira em que zulus e brancos adaptam, sem coero,
seucomportamento uns aos outros. Por isso posso empregar os termos
Zululndia e zululandeses paraabranger brancos e zulus
conjuntamente, enquanto o termo zulu designa africanos somente.
Seria possvel enunciar inmeros motivos e interesses diferentes
que causaram a presena de vriaspessoas inaugurao da ponte. O
magistrado local e sua equipe compareceram por dever profissional
eorganizaram a cerimnia porque estavam orgulhosos de dar ao
distrito a contribuio valiosa daconstruo da ponte. De acordo com
seu discurso, o comissrio-chefe dos Nativos concordou eminaugurar a
ponte para demonstrar seu interesse pessoal e dar relevncia aos
planos de desenvolvimentoassumidos pelo Departamento de Assuntos
Nativos. Uma consulta ao rol de europeus presentes cerimnia mostra
que aqueles do distrito de Mahlabatini que compareceram inaugurao
tinhaminteresse governamental, ou pessoal, pelo distrito ou pela
cerimnia. Alm do mais, qualquer eventoconstitui uma recreao na
montona vida dos europeus numa reserva. A maioria dos europeus
sentetambm obrigao em comparecer a esses eventos. Essas duas ltimas
razes poderiam ser atribudas aosvisitantes de Nongoma. O veterinrio
do governo e eu fomos atrados inaugurao devido a laos deamizade e
tambm pelo nosso trabalho. Podia observar-se que vrios europeus
levaram suas esposas, oque somente alguns poucos zulus cristos
(como Mshiyeni) fariam em situaes similares.24
Entre os zulus, o regente, honrado por ter sido convidado (o que
no teria sido necessrio), veio, semdvida alguma, para mostrar seu
prestgio e para reencontrar alguns de seus sditos que ele raramente
v.O escrivo zulu e a polcia governamental compareceram a servio; o
chefe Matole e os indunas locais
vieram por se tratar de um evento importante no seu distrito. Os
trabalhadores zulus, que tinhamconstrudo a ponte, sentiam-se
especialmente honrados. Provavelmente muitos dos zulus presentes
foramat l atrados pela festa, pela excitao e pela presena do
regente.26
Vimos que a vinda de Matolana e Richard inaugurao da ponte foi
motivada pelas relaesincomuns que mantinham comigo. Com exceo do
grupo do regente, eles eram, juntamente com o zuluque acompanhava o
veterinrio do governo, os nicos zulus a viajarem de uma certa
distncia paracomparecer cerimnia. Para os zulus, a inaugurao da
ponte era um evento mais local do que para oseuropeus. Esta uma
indicao da existncia de maior mobilidade e comunicao entre os
europeus,cujos grupos dispersos em reservas tribais tm um forte
senso comunitrio. Enquanto a maioria doseuropeus de Nongoma sabia
da inaugurao, alguns zulus de Nongoma sequer sabiam da existncia
daponte.
O magistrado local desejava exibir o trmino das obras da ponte.
Por isso convidou europeus e zulusinfluentes e solicitou o
comparecimento dos zulus locais em um dia especificamente
estabelecido. Dessa
maneira o magistrado focalizou todos os seus interesses na
cerimnia. Foi tambm o magistrado localquem determinou a forma da
cerimnia de acordo com a tradio de cerimnias similares
emcomunidades europias. Entretanto, acrescentou elementos zulus,
onde fosse possvel, para tornarplausvel a participao dos zulus e,
provavelmente, tambm para dar um toque de cor e brilho celebrao
(por exemplo, no lugar de um policial comum, colocou um guerreiro
zulu em trajes marciaispara indicar o caminho). De forma similar,
aps um hino ter sido cantado, o comissrio-chefe dos Nativossugeriu
que a ponte fosse abenoada maneira zulu. Portanto, a caracterstica
principal da cerimnia emsi (guerreiros zulus marchando atravs da
ponte, hinos, discursos, rompimento da fita, chs, etc.)
foideterminada pelo fato de ter sido organizada por um
representante do governo com formao culturaleuropia, vivendo em
contato ntimo com a cultura zulu. Entretanto, o magistrado somente
teve o poderde fazer o que fez como representante do governo e foi
o governo que construiu a ponte. Na Zululndia,alm do regente,
somente o governo pode promover um evento de importncia pblica para
zulus e
europeus. Por isso, podemos dizer que foi o poder organizatrio
do governo no distrito que deu umaforma estrutural particular aos
inmeros elementos presentes na inaugurao da ponte. Da mesma forma,o
poder governamental tambm deu forma estrutural reunio em Nongoma.
Por outro lado, quando
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Mshiyeni promoveu um encontro de 6.000 zulus na cidade de
Vryheid para analisar os debates daprimeira reunio do Conselho
Nativo Representativo da Nao, apesar de funcionrios europeus,
policiaise espectadores estarem presentes, e os assuntos discutidos
dizerem respeito principalmente s relaeszulu-europias, foram o
poder e o capricho pessoal do regente, dentro do padro herdado da
cultura zulu,que orientaram o encontro. Isto , o poder poltico
tanto do governo quanto do rei zulu constituem hojeforas
organizatrias importantes. Mas a polcia europia estava presente na
reunio do regente para
ajudar a manter a ordem, embora isto no tenha sido necessrio. Na
realidade, durante a inaugurao daponte, o regente (como
freqentemente faz em ocasies semelhantes) roubou a celebrao dos
europeus eorganizou uma festa prpria.
O magistrado planejou a cerimnia, teve o poder para organiz-la
dentro dos limites de certastradies sociais e pde fazer inovaes de
acordo com as condies locais. Mas, obviamente, a divisodas pessoas
em grupos e muitas das aes no foram planejadas. A configurao
subsidiria e noplanejada dos eventos do dia tomou forma em
conformidade com a estrutura da sociedade zululandesamoderna.
Muitos dos incidentes que registrei ocorreram espontaneamente e ao
acaso, como, por exemplo,o veterinrio do governo discutindo com o
induna, postado em guarda junto ponte, sobre banhosparasiticidas de
gado; ou o missionrio organizando o coral dos hinos. Entretanto,
estes incidentes se en-caixam facilmente num padro geral, da mesma
maneira em que situaes semelhantes envolvendoindivduos se amoldam
em cerimnias funerrias ou de casamento. Portanto, a parte mais
significativadas situaes do dia as configuraes e as inter-relaes de
certos grupos sociais, personalidades eelementos culturais
solidificou um pouco mais a estrutura social e as instituies da
Zululndiacontempornea.
Os presentes cerimnia dividiam-se em dois grupos raciais: os
zulus e os europeus. As relaesdiretas entre estes dois grupos eram
predominantemente marcadas por separao e reserva. Enquantogrupos,
reuniram-se em lugares diferentes, sendo impossvel para eles
confrontarem-se em condies deigualdade. Embora eu estivesse vivendo
na propriedade de Matolana e tivesse grande intimidade com asua
famlia, tivemos que nos separar para nossas refeies, no ambiente
cultural do hotel de Nongoma.No poderia comer na cozinha com os
zulus, tanto quanto eles no poderiam comer comigo norestaurante do
hotel. A separao transparece atravs de todos os padres de
comportamento zulu-europeu. Entretanto, uma separao socialmente
reforada e aceita pode representar uma forma indiretade associao,
na realidade uma cooperao, mesmo quando levada ao extremo do
esquivamento, comotestemunha o comrcio clandestino na frica
Ocidental em tempos antigos. Esta separao envolve mais
do que a diferenciao axiomticamente presente em todas as relaes
sociais. Pretos e brancos so duascategorias que no devem se
misturar, como o caso das castas na ndia ou as categorias de homens
emulheres em muitas comunidades. Por outro lado, embora em suas
relaes sociais um filho seja distintode seu pai, tambm se tomar um
pai. Na Zululndia, um africano nunca poder transformar-se
numbranco.26 Para os brancos, a manuteno desta separao um valor
dominante que transparece na polticada assim chamada "segregao" e
"desenvolvimento paralelo", termos esses que apresentam uma falta
decontedo como tentarei demonstrar na anlise que se segue.
Apesar dos zulus e europeus estarem organizados em dois grupos
na ponte, seu comparecimento aoevento implica estarem unidos na
celebrao de um assunto de interesse comum. Mesmo assim,
ocomportamento de um grupo em relao ao outro desajeitado, o mesmo
no ocorrendo no interior decada grupo racial. De fato, as relaes
entre os grupos so muito freqentemente marcadas por hostilidadee
conflito, o que, de certa forma, transparece tanto nas reclamaes de
Matolana contra o banho
parasiticida do gado, como na existncia de uma igreja
separatista zulu.A ciso existente entre os dois grupos raciais em
si o fator de sua maior integrao em apenas uma
comunidade. Eles no se separam em grupos de status similar: os
europeus so dominantes. Os zulus nopodiam entrar nas reservas dos
grupos brancos exceto pedindo permisso, como no caso dos
criadosdomsticos encarregados de servir ch. Entretanto, os europeus
podiam movimentar-se mais ou menoslivremente entre os zulus,
observando-os e fotografando-os, apesar de poucos terem feito isso.
Mesmo axcara de ch oferecida ao regente, como tributo sua realeza,
foi-lhe servida fora da barraca doseuropeus. A posio dominante dos
europeus transparece em qualquer situao em que indivduos dosdois
grupos renem-se devido a um interesse em comum, abandonando a
separao, como, por exemplo,na discusso verificada entre o
veterinrio do governo e os dois indutnas sobre os banhos
parasiticidas degado, ou no fato do regente chamar qualquer europeu
que encontra, mesmo aqueles que no ocupam posi-o governamental, de
nkosi (chefe), nkosana (chefe menor, se jovem) ou numzana (homem
importante).
Os dois grupos diferenciam-se em suas inter-relaes na estrutura
social da comunidade da fricado Sul, da qual a Zululndia constitui
uma parte. Atravs dessas inter-relaes, podem-se delinearseparao,
conflito e cooperao em modos de comportamento socialmente
definidos. Alm disso, os dois
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grupos tambm se diferenciam em relao a cor, raa, lngua, crenas,
conhecimento, tradies e possesmateriais. No tocante cooperao entre
os dois grupos, estas diferenas so permeadas por hbitos
decomunicao. Esses dois tipos de problemas envolvidos esto
intimamente inter-relacionados, mas podemser tratados
separadamente, at certo ponto.
O funcionamento da estrutura social da Zululndia pode Ser
observado nas atividades polticas,ecolgicas, etc. Politicamente,
fica claro que o poder dominante est investido no governo do
grupo
branco, sob o qual os chefes so, num de seus papis sociais,
funcionrios subordinados. O governodetm a autoridade suprema da
fora, da penalidade e do aprisionamento. Assim, pode paralisar
osconflitos entre faces na tribo de Mandlakasi, muito embora o
magistrado, que representa o governo,tente manter a paz atravesse
funcionrios zulus que lhe so subordinados. Apesar das efusivas
boas-vindas dadas por Mandlakazi a Mshiyeni indicarem que a
superioridade social de Mshiyeni reconhecida, foi o poder do
governo que o habilitou a interferir nos assuntos internos de uma
tribo quehavia se desligado da sua linhagem real zulu.28
Atualmente, o governo o agente dominante em todos os assuntos
polticos. Embora um chefenomeie seus indunas, havia comentrios de
que um induna estava procurando lisongear o magistrado coma
finalidade de conseguir poder poltico. Os zulus que ocupam posies
governamentais constituem umaparte importante da mquina judicial e
administrativa do governo. Tm como dever, em relao aogoverno,
manter a ordem, auxiliar a poltica governamental, assumir causas
jurdicas, ajudar nos banhosparasiticidas de gado e muitos outros
assuntos de rotina. Entretanto, no tm direito algum de julgarcausas
criminais importantes, sendo que somente o governo pode perseguir
malfeitores (como, porexemplo, os ladres de ovelhas) de um distrito
a outro. Contudo, como resultado da diviso existenteentre os dois
grupos raciais, h uma diferena nas relaes do povo zulu com os
administradoresgovernamentais europeus zulus. Tanto o
comissrio-chefe dos Nativos como o regente receberam asaudao real
dos guerreiros mas, enquanto o comissrio-chefe dos Nativos recebeu
trs vivas, a presenado regente e do chefe local motivou a entoao de
canes tribais zulus. O comissrio-chefe dos Nativosconversou com os
zulus importantes que conhecia. Enviaram-lhe cerveja zulu, mas
preferiu tomar chcom o grupo branco. O regente sentou-se com os
zulus, tomou cerveja e conversou com eles, at muitodepois dos
europeus terem se dispersado. O governo forneceu uma cabea de gado
ao povo e o regente foipresenteado pelo povo com trs cabeas de gado
e cerveja, que o prprio regente distribuiu entre ospresentes.
O governo no tem somente funes judiciais e administrativas,,
desempenhando tambm parte
importante nas atividades ambientais. Mesmo nas informaes
precedentes, vimos que o governoconstruiu a ponte, que foi paga com
os impostos coletados entre os zulus; emprega cirurgies
distritais,tcnicos agrcolas e engenheiros; organiza os banhos
parasiticidas e vendas de gado; e constri estradas.Mesmo quando
chefes e indunas participam neste tipo de empreendimento
governamental, no o fazemto facilmente quanto na organizao judicial
e administrativa.
Embora os chefes pudessem ter simpatizado com a faco em conflito
dos Mandlakazi de umaforma que o magistrado compreenderia,
concordavam com o magistrado que a paz numa tribo deve
servalorizada. Mas Matolana tinha uma srie de reclamaes sem
fundamento cientfico contra os banhosparasiticidas, os quais
avaliava num idioma cultural diferente daquele do veterinrio do
governo."' Apesarde os zulus terem acolhido favoravelmente a
construo da ponte e de Mshiyeni ter agradecido, em nomede seu povo,
por tudo que o governo estava fazendo em prol dos zulus, em muitas
ocasies o povo julgaque seus chefes tm o dever de manter oposio aos
projetos governamentais.30
Os zulus e europeus esto igualmente interligados no que se
refere ao aspecto econmico maisamplo da vida da Zululndia. Eu havia
salientado que os criados domsticos eram admitidos na barracados
europeus e que a ponte foi planejada por europeus, mas construda
pelos zulus. O recrutador detrabalhadores da Rand Gold Minas estava
presente inaugurao da ponte. Estes fatos so indicativos dopapel que
africanos da Zululndia, bem como africanos de outras reas,
desempenham comotrabalhadores no-qualificados nas atividades
econmicas da frica do Sul. Estavam presentes tambm inaugurao da
ponte zulus que trabalham como policiais do governo e um escrivo
zulu. Os zulusdependem do dinheiro que recebem dos europeus pelo
seu trabalho, para pagar seus impostos (quecustearam a construo da
ponte e os salrios de tcnicos governamentais) e para comprar
produtosvendidos por comerciantes europeus ou, ainda, para negociar
gado com os europeus, atravs das vendasde gado promovidas pelo
governo, cujo leiloeiro havia comparecido inaugurao da ponte. Os
zulusdependem, em grande parte da sua subsistncia, da lavoura que o
governo est tentando melhorar atravs
de seus tcnicos em agricultura.
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Esta integrao econmica da Zululndia no sistema industrial e
agrcola da frica do Sul domina aestrutura social. O fluxo de
trabalhadores inclui praticamente todos os zulus fisicamente
capacitados. Emqualquer poca, aproximadamente 1/3 dos homens do
distrito de Nongoma est ausente, trabalhandolonge da reserva. So
organizados, por seus empregadores, em grupos de trabalho similares
aos queexistem em todos os pases industriais. Parentes e membros de
uma mesma tribo tendem a trabalhar emorar juntos nos acampamentos
ou locaes municipais.'" Alguns empregadores, como no caso das
Minas Rand, agrupam deliberadamente seus trabalhadores de acordo
com sua identidade tribal.Entretanto, nos locais de trabalho, os
zulus encontram-se, lado a lado, com os bantus de toda a frica
doSul. Apesar de sua nacionalidade zulu envolv-los em conflito com
membros de outras tribos, chegam aparticipar de agrupamentos cuja
base mais ampla que a nao zulu. Raramente esto sob a autoridadedos
seus chefes, embora as Minas Rand e os acampamentos Durban
empreguem simultaneamente prnci-pes zulus como induna e policiais.
Os chefes visitam seu squito de clientes na cidade para
coletardinheiro e conversar. Significativamente, mesmo as
demonstraes de lealdade ao rei zulu em reuniesurbanas tm sido
marcadas por alguns indcios de hostilidade. Apesar dos chefes zulus
imporem-seenquanto tais em suas visitas, no tm, nos locais de
trabalho, qualquer status legal sobre os indivduos:as autoridades
legais so os magistrados brancos, os supervisores de locao, a
polcia, os administradorese empregadores. So somente os
administradores brancos que mantm a ordem e controlam as condiesde
trabalho, implementando contratos, promulgando leis, etc. O chefe
zulu pode protestar oralmente, no
mais que isso. Mesmo nas reservas, onde zulus vivem de
agricultura de subsistncia, e embora o grupobranco governe atravs
de organizaes zulus, aqueles que trabalham para europeus
acabamsubordinando-se, atravs desta relao particular, diretamente
aos administradores brancos. O chefe zuluno tem a palavra em
assuntos que envolvam membros de sua tribo e europeus. O governo e
aCorporao de Recrutamento de Nativos das Minas Rand agem atravs dos
chefes a fim de que asreivindicaes dos zulus sejam expressas, e,
ocasionalmente,, paream ser atendidas por seu intermdio.Os chefes
constantemente reivindicam melhor tratamento e salrios mais altos
para os trabalhadoreszulus; ao mesmo tempo, esto sempre (Mshiyeni,
m particular) incitando os homens de sua tribo asarem para
trabalhar.
Uma tarefa importante do governo manter e controlar o fluxo de
mo-de-obra para satisfazer, sepossvel, as necessidades de
mo-de-obra dos brancos. Alm disso, tenta evitar que o fluxo de
mo-de-obra resulte na fixao de grande nmero de africanos nas
cidades. O trabalhador migrante zulu deixa sua
famlia nas reservas, para as quais depois retorna. Isto
inevitavelmente envolve o governo numa srie decontradies, das quais
luta para escapar. Nas reservas, a tarefa bsica do governo manter a
lei e aordem, tendo, secundariamente (desde 1931-32), comeado a
desenvolver as reservas. O governo foiforado a implementar as
reservas, devido ao estado precrio em que se encontravam em
conseqncia dam agricultura e da excessiva alocao em terras
inadequadas. Isso se deve, em parte, ao fluxo de mo-de-obra que
proporciona dinheiro aos zulus para compensar as deficincias
tcnicas existentes nasreservas, sendo possvel que a demanda dessa
mo-de-obra possa, em ltima instncia, tornar sem efeito oplano
desenvolvimentista.
No posso analisar aqui mais detalhadamente estas importantes
questes. Como evidncia de que odesenvolvimento secundrio ao fluxo
de mo-de-obra e s demandas nacionais, cito o caso das MinasRand,
que desejam tomar a iniciativa de desenvolver o Transkei, onde o
empobrecimento das reservastem debilitado a sade da populao em um
de seus maiores reservatrios de mo-de-obra. Em segundolugar, o
magistrado de Nongoma deu incio aos leiles, atravs dos quais os
zulus podiam vender suas
cabeas de gado nas feiras livres. As vendas fizeram muito
sucesso, sendo que em um ano,aproximadamente, 10 mil cabeas de gado
foram vendidas por 27 mil libras. Em 1937, houve escassez
demo-de-obra africana na frica do Sul e, como os empreendimentos
agrcolas europeus foram afetados,uma comisso governamental foi
nomeada para investigar a situao. Cartas publicadas nos jornais
deNatal atriburam a escassez de mo-de-obra ao fato dos zulus terem
permanecido em suas casas vendendogado, ao invs de sarem para
trabalhar (na realidade, as vendas de gado eram realizadas somente
em trsdistritos).O magistrado, que estava orgulhoso com o sucesso
de suas vendas, aparentemente julgou que as mesmasestavam ameaadas,
pois em seu depoimento Comisso frisou repetidamente que as vendas
de gado demodo algum tinham afetado o fluxo de mo-de-obra.
Entretanto um velho zulu, reclamando para mim dossalrios baixos,
disse: "um dia vamos dar uma lio na Corporao de Recrutamento. Vamos
ficar emcasa, vendendo nosso gado, sem sair para trabalhar". Devido
falta de espao, deixarei de examinar as
outras contradies da estrutura da frica do Sul a partir da forma
em que emergem na Zululndia.Os chefes zulus tm pouca influncia
poltica nos aspectos econmicos fundamentais da vida daZululndia. No
esto presentes para controlar a vida comunitria nos locais de
trabalho, onde proliferam
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5/28/2018 GLUCKMAN, Max. Anlise de uma situao social na
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dormitrios para trabalhadores, grupos sociais e sindicatos que
possibilitam a associao dos zulus combantus de outras tribos e
naes, e at mesmo de outros Estados brancos. No examinarei estas
situaesem detalhe, pois coletei poucos dados a respeito.
Quanto aos sindicatos, h em Durban 750 africanos que pertencem a
quatro diferentes sindicatos,estimando-se que aproximadamente 75%
tm seus lares nas reservas. Em Johannesburg, h 16.400africanos
sindicalizados, 50% dos quais so das reservas,83segundo estimativas
da Secretaria do Comit
Conjunto dos Sindicatos Africanos. Os ndices so irrisrios em
relao ao nmero total de trabalhadoresafricanos. Em um encontro que
contou cm a presena de aproximadamente 6 mil zulus em Durban, almdo
regente, prncipes, chefes, missionrios e professores, um
organizador industrial africano tambmdiscursou num palanque como um
dos lderes da nao, sendo bastante aplaudido. Os sindicatos
africanosesto negociando para obter melhores condies para os
trabalhadores, mas no tm ainda fora polticaefetiva. Entretanto, a
oposio africana dominao europia, liderada por capitalistas e
trabalhadoresqualificados, est comeando a se expressar em termos
industriais. H, no entanto, pouca cooperaoentre sindicalizados
africanos e brancos.34
Esta forma de agrupamentos nos locais de trabalho tem uma base
completamente diferente da dosgrupos tribais, que confere lealdade
aos chefes. Entretanto, no parece estar radicalmente em conflito
comesta lealdade, mesmo quando depende da oposio aos brancos. As
vidas dos trabalhadores migranteszulus esto nitidamente divididas,
sendo que as organizaes s quais se associam nas cidades,
juntamente com outros bantus, negros, indus e mesmo
trabalhadores brancos, funcionam em situaesdistintas daquelas que
demandam lealdade tribal. As duas formas provavelmente entraro em
conflito e oresultado depender da reao dos chefes s organizaes
sindicalistas. Atualmente, estas duas formas deagrupamento
desenvolvem-se sob condies diferentes.35
Mais adiante examinarei como a oposio zulu ao domnio europeu est
expressa em organizaesreligiosas. Toda esta oposio atravs de
chefes, igrejas e sindicatos de trabalhadores no efetivae no
momento redunda principalmente em satisfao psicolgica, pois a
severidade da dominaoeuropia est aumentando.36Por isso a oposio
ocasionalmente irrompe em revoltas e ataques polcia
efuncionrios,37os quais so energicamente reprimidos. Estes eventos
provocam reao violenta do grupobranco e, sem fundamento aparente
mas semelhana do pensamento moderno de feitiaria e sem baseem
qualquer investigao, a acusao imediata das partes envolvidas
atribuda propaganda comunista.
A ascendncia poltica e econmica dos europeus sobre os zulus,
como capitalistas e trabalhadoresqualificados de um lado e
camponeses e trabalhadores no-qualificados de outro, pode ser em
alguns
aspectos comparada com outros pases. Em todos estes pases, a
estrutura pode ser analisada em termossimilares de diferenciao e
cooperao entre grupos econmicos e polticos. Na Zululndia, a
estruturatem adicionalmente caractersticas distintivas que, no
todo, acentuam a separao dos dois grupos e difi-cultam sua
cooperao. A diferenciao entre os dois grupos em relao a atividades
polticas eecolgicas, feita flagrantemente com base em critrios de
raa e cor,38 coincide com outras diferenasacima detalhadas. Ao
descrever a situao, no esbocei estas diferenas com particular ateno
e nopretendo aprofundar-me aqui nestes detalhes.
Podemos notar que os dois grupos falam lnguas diferentes. O
conhecimento da lngua de cada grupopelos membros do outro grupo
possibilita a comunicao entre ambos os grupos, sendo a posio
dointrprete uma instituio social que ultrapassa a barreira da
lngua. Na inaugurao da ponte, ambos osrecursos possibilitaram a
cooperao dos dois grupos. Dentro de sua esfera isolada, cada grupo
usa suaprpria lngua, embora palavras da outra lngua sejam comumente
usadas. O pidgin zulu-ingls-afrikaans
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desenvolveu-se como outro modo alternativo de comunicao.Os dois
grupos tm, no geral, modos de vida, costumes e crenas diferentes.
Todos os europeus dasreservas tm atividades especializadas; os
zulus, apesar de tambm trabalharem para os europeus, socamponeses
no-especializados com permisso de praticarem agricultura somente
nas reas que lhes soreservadas. L, os zulus vivem sob um tipo de
organizao social e por valores e costumes que sodiferentes daqueles
do grupo europeu, embora sejam afetados em todos os aspectos pela
sua presena.Entretanto, mesmo onde as diferenas entre zulus e
europeus so marcantes, eles adaptam seuscomportamentos em modos
socialmente determinados, quando se associam uns aos outros.
Assim,funcionrios europeus freqentemente fazem um esforo deliberado
para satisfazer os grupos zulus, comose viu no uso de guerreiros
zulus e no derramamento de blis na inaugurao da ponte. Alm do mais,
emsituaes de associao h um modo regular de reao de cada grupo em
relao a certas prticascostumeiras do outro, mesmo quando os dois
avaliam essas prticas diferentemente. Zulus pagospermaneceram de p
e tiraram o chapu durante a entoao dos hinos em ingls, tendo tambm
aplaudido
os discursos adotando costumes europeus. O comissrio-chefe dos
Nativos aceitou a cerveja que lhe foipresenteada como um chefe zulu
aceitaria, mas permaneceu separado do grupo zulu como um chefe
zuluno poderia ter agido. Entretanto, ainda subsiste um campo amplo
de costumes zulus que muito raramente
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5/28/2018 GLUCKMAN, Max. Anlise de uma situao social na
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aparecem nas suas relaes com os europeus, exceto o fato de que
todas as relaes entre os zulustransparecem para o governo, em
termos de leis e administrao.40 O grupo europeu tambm tem
suacultura distinta, aliada s culturas dos pases europeus
ocidentais, porm completamente marcada por suasrelaes com os
africanos.Existe tambm a base material da diferenciao e cooperao
entre zulus e europeus. Na situao descrita,a cooperao est centrada
na ponte e no rio a ser cruzado, sendo a mesma geralmente
determinada pela
mtua explorao, mesmo que diferenciada e separada, dos recursos
naturais. Os bens materiais dosindivduos que pertencem aos grupos
diferem amplamente, tanto em quantidade como em qualidade etcnicas
de uso. Alguns pou-cos zulus tambm possuem alguns bens que so
comuns entre os europeus,como carros, rifles e boas casas. Nas
reservas, os zulus possuem mais terras e gado que os europeus quel
residem, mas, por toda a nao, a distribuio diferenciada de terra
entre africanos e europeus tem umefeito importante nas suas relaes.
No tenho espao para discutir a riqueza relativa de zulus e
europeuse difcil comput-la; os salrios nos centros de mo-de-obra,
onde praticamente cada zulu umtrabalhador assalariado, so bem mais
baixos para africanos do que para brancos. Nas reservas da
Zulu-lndia do Norte (mas no em algumas reservas do sul ou em
propriedades agrcolas europias), a maioriados zulus tem terra e
gado suficiente para suas necessidades imediatas, sendo que alguns
deles tmgrandes rebanhos. Seu padro de vida notadamente mais baixo
do que o dos europeus nas reservas. Nosdois grupos existe tambm uma
distribuio diferenciada de bens entre os indivduos. Como a
separao
em grupos raciais representa, para o grupo branco, padres de
vida ideais, e como muitos brancos estoabaixo enquanto africanos
esto ascendendo acima destes padres, isto tem efeitos importantes
nasrelaes entre africanos e brancos.41O desejo dos zulus por bens
materiais dos europeus e a necessidadedos europeus do trabalho
zulu, bem como a riqueza obtida por este trabalho, estabelecem
interesses fortese interdependentes entre os dois grupos. , tambm,
uma fonte latente de seus conflitos. No grupo zulu,os polgamos que
precisam de muita terra, homens com grandes rebanhos de gado,
homens que desejamardentemente a riqueza europia, e outros,
constituem diferentes grupos de interesse. Por isso, a posse debens
materiais diferentes entre os dois grupos dificulta a diferenciao
baseada em critrio racial.
Deve-se acrescentar que as relaes entre indivduos zulus e
europeus variam de inmeros modos entermos de norma social geral,
apesar de serem sempre afetadas por essa norma. Existem
relaesimpessoais e pessoais entre zulus e europeus. As relaes do
comissrio-chefe dos Nativos com seusmilhares de sditos zulus
impessoal, mas com Mshiyeni e Matolana sua relao tambm pessoal.Onde
quer que zulus e europeus se agrupem, acabam desenvolvendo relaes
pessoais de diferentes tipos,ainda que sempre afetadas pelo padro
tpico de comportamento. Eu, como antroplogo, estava emcondies de me
tornar um amigo ntimo dos zulus, de uma forma que os outros
europeus noconseguiriam. E fiz isto devido a um tipo especial de
relao social reconhecido como tal pelas duasraas. Mesmo assim,
nunca pude ultrapassar completamente a distncia social entre ns
existente.
Dentro de ambientes sociais especiais, europeus e zulus tm
relaes amigveis, como acontece emmisses, centros de treinamento de
professores, conferncias conjuntas bantu-europias, etc. Nesse
caso,cordialidade e cooperao so a norma social, afetadas pela norma
mais ampla de separao social. Emoutras relaes sociais entre
administradores governamentais e seus s-sditos, e
empregadoresbrancos e empregados africanos, tcnicos governamentais
e seus assistentes as relaes pessoaisdesenvolvem-se de modo a
facilitar ou exacerbar as relaes entre os dois grupos raciais. Como
exemplodo primeiro tipo de relaes (cordialidade e cooperao), cito a
maneira com que o veterinrio do governo
preocupou-se em ajudar seu auxiliar africano, pedindo
esclarecimentos sobre a lei zulu referente aoadultrio. O veterinrio
informou-se sobre o assunto com Matolana porque tinha estabelecido,
por meuintermdio, relaes mais prximas e mais cordiais"com meus
amigos zulus do que com outros zulus.Alguns empregadores brancos
tratam bem seus criados zulus, respeitando-os como seres humanos;
outrosos tratam somente como empregados, enquanto outros, ainda,
praguejam e espancam42seus empregadosconstantemente. Embora seja
ilegal na Africa do Sul e seja socialmente desaprovado pelos dois
grupos,brancos mantm relaes sexuais com zulus.
Estas relaes pessoais, que dependem em parte de ambientes
sociais especficos na organizaosocial e em parte de diferenas
individuais, constituem s vezes grupos diferentes na estrutura
social. So,freqentemente, variaes de normas sociais e tm efeitos
importantes sobre estas mesmas normas que,por sua vez, sempre
afetam essas relaes. Posso observar que cada grupo escolhe prestar
atenoexatamente s aes do outro grupo que so totalmente fora de
proporo, por serem as que melhor seajustam aos seus valores. Por
exemplo, os fazendeiros europeus que residem nas proximidades
dasreservas tm a fama de maltratarem seus empregados zulus.
Indepentemente desta reputao ser
justificada ou no, os zulus so sempre capazes de citar casos
individuais de maus-tratos para reafirmar a
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Zululndia moderna
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crena social. Se apenas um dos fazendeiros tratar bem seus
empregados zulus, sua atitude no afetar aimagem que os outros zulus
tm dele, ou a imagem que seus empregados zulus tm dos
outrosfazendeiros. Mesmo se a maioria dos fazendeiros tratasse bem
seus empregados zulus, os zulus nopoderiam generalizar a partir de
suas prprias experincias. E como o bom tratamento
rapidamenteesquecido e a opresso sempre lembrada, a crena social
permanecer, mesmo que inmeros fazendeirostratem bem seus
empregados. Similarmente, uma mera sugesto de um zulu ter feito
investidas sexuais
sobre uma garota europia foi o suficiente para provocar violenta
animosidade entre muitos brancos emrelao aos zulus, na base de que
todos os africanos tinham desejos sexuais por mulheres brancas.
Narealidade, durante muitos anos nada parecido havia ocorrido na
Zululndia.
Passo agora a considerar uma relao particular entre os zulus e
os europeus, que tambm constituiuma diviso social dentro do grupo
africano, a diviso entre pagos e cristos. Durante o canto dos
hinos,sob a direo do missionrio, essa ciso era marcante, apesar dos
pagos juntarem-se aos cristos e oscristos aos pagos. Todos os
cristos usam somente roupas europias enquanto, com exceo
dasautoridades polticas importantes, poucos pagos o fazem. Mas os
pagos tiraram seus chapus durante ohino europeu e os cristos
cantaram o ihubo. Ambos comeram e beberam com o regente. Ambos
estavampresentes reunio de Nongoma. Isso porque a ciso no absoluta.
Observei, alm do mais, queenquanto meu criado Richard cristo,
Matolana pago; Richard, tanto quanto seus irmos pagos, comquem
vive, deve tratar Matolana como um pai. Cristos e pagos saudaram o
regente. O regente, que
cristo, tomou providncias para que a blis fosse derramada na
ponte. Acima de tudo, cristos e pagosno podiam misturar-se aos
europeus.A ciso entre cristos e pagos est entremeada por laos de
parentesco, cor, aliana poltica e
cultura. O grupo de zulus cristos est associado em certas
situaes e sob certos critrios ao grupode europeus, opondo-se ao
grupo de pagos. Entretanto, sob outros critrios e em outras
situaes, partedo grupo zulu como um todo, em oposio ao grupo
europeu como um todo. Dentro de sua composioenquanto grupo cristo,
conta tambm com a participao do missionrio branco. Este permaneceu
comos europeus at que se dispersassem. Somente abandonou sua filiao
ao grupo branco e juntou-se aogrupo zulu para organizar o canto dos
hinos, cristalizando, dessa forma, a diviso social dos zulus
emcristos e pagos. Esta filiao dos zulus cristos aos dois grupos
raciais cria uma certa tenso entrecristos e zulus pagos, que
resolvida apenas parcialmente pelos laos que mantm em comum.
Estatenso reflete-se na existncia da seita separatista zulu crist,
cujo lder levei a Nongoma. Esta seita, que uma dentre muitas
outras, aceita alguns dogmas e crenas do cristianismo com base em
crenas debruxaria, porm protesta contra o controle europeu sobre as
igrejas zulus e, por isto, no est ligada aoseuropeus, como as
outras igrejas que so controladas pelos europeus.
Outras relaes entre os zulus e os europeus, acima discutidas,
podem tambm ser consideradascomo constituindo divises sociais
dentro do grupo africano, mesmo que no sejam to formalizadasquanto
a diviso existente entre cristos e pagos. Eu mencionei o efeito da
diferenciao da riqueza.Poderamos classificar os zulus entre aqueles
que trabalham e aqueles que no trabalham para os europeusmas, como
quase todos os zulus fisicamente capacitados o fazem durante uma
parte do ano, tomariamparte, em diferentes perodos, de grupos
diferentes. Entretanto, se o critrio da classificao estabelecerque
devemos separar os zulus que so empregados permanentemente pelo
governo (funcionriosburocrticos, tcnicos assistentes africanos,
policiais e mesmo indunas e chefes), temos um grupo cujotrabalho e
interesses coincidem com os do governo, enquanto que os dos outros
zulus freqentemente nocoincidem. A mesma observao se aplica queles
zulus que desejam vender seu gado, que esto ansiosos
para melhorar sua agricultura ou ir para escolas e hospitais.
Pode-se tambm notar que estes sogeralmente cristos. A diviso,
baseada nestes critrios, torna-se flagrante nas reunies
magistratoriaisonde os cristos esto mais dispostos que os pagos a
apoiar o magistrado, o que constitui uma fonte deconflitos entre
cristos e pagos. Portanto, a associao de certos zulus com europeus,
bem como comseus valores e crenas, cria grupos entre os zulus que
transpassam. em certas situaes, a separao dosinteresses dos
africanos e dos brancos, enfatizando, porm, suas diferenas.
Outras divises que apareceram dentro do grupo zulu durante o
dia, embora afetadas pelas relaesafricano-brancas, tm tradio de
continuidade na organizao social da Zululndia, anterior
ocupaobritnica. Os zulus dividiam-se em tribos que mais tarde foram
divididas em sees tribais e distritosadministrativos. Nesta nova
organizao poltica, h uma hierarquia definida de prncipes do cl real
zulue de plebeus, de regente e chefe induna da nao, chefe
Mandlakazi, alm de outros chefes indunas.Alguns destes grupos
polticos e administradores so unidades no sistema de dominao do
governoeuropeu, conforme ficou demonstrado quando, na reunio em
Nongoma, o magistrado interferiu nasrelaes locais. Ainda assim,
embora sejam parte do sistema governamental, so tambm grupos
com
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base tradicional, o que atualmente lhes confere uma importncia
em relao aos zulus que no somenteadministrativa.
Apesar do regente no ter sido oficialmente reconhecido pelo
governo como chefe da nao Zulu,todos os zulus respeitam a sua
supremacia.44 parcialmente atravs de sua organizao poltica que
oszulus tm reagido dominao europia, pois as autoridades polticas
zulus recebem lealdade de seussditos, no somente como burocratas do
governo ou devido a sentimentalismo e conservadorismo, mas
tambm porque parte da tenso poltica contra o governo expressa
nessa lealdade.45
Na vida social daZululndia moderna, esta organizao poltica
importante, pois determina os agrupamentos noscasamentos, os
crculos de amigos nas cidades, os pactos de aliana em conflitos
entre faces e as rodasde cerveja. Alm do mais, as casas dos chefes
e indunas so tanto um centro da vida comunitria como deadministrao.
Esta diviso em tribos cria uma fonte de dissenso dentro do grupo
zulu, pois as tribos sohostis entre si. Alm disso, os zulus sentem
sua comunidade como uma nao, tanto em relao a outrasnaes Bantu
quanto em relao aos europeus. Entretanto, deve-se salientar que os
zulus esto cada vezmais unindo-se a outros Bantu, em um nico grupo
africano.
Finalmente, deve-se observar que os zulus, tanto quanto outros
bantus, expressam em certasocasies forte lealdade ao governo, como
D/esta e na ltima guerra. Dentro de um distrito, um admi-nistrador
governamental, que popular, pode ganhar a amizade e a lealdade dos
zulus, porque para eles importante e agradvel t-lo no cargo. Mas
ainda no entendo a lealdade dos zulus ao governo: , emparte,
resultado da dependncia do chefe zulu ao governo, e, em parte,
porque expressam seus fortessentimentos guerreiros em tempo de
guerra.
O ltimo conjunto de agrupamentos a ser mencionado aquele
constitudo por stios habitados porum grupo de agnatas com suas
esposas e filhos. O stio de Matolana comportava, na poca, o
prprioMatolana, trs esposas, um filho de vinte e um anos de idade
que ficou noivo quando trabalhava emTohannesburg (depois que se
casou passou a morar l com sua esposa e filho), quatro outros
filhos cujasidades variavam entre dez e vinte anos, dos quais os
dois mais jovens so cristos, e mais trs filhas. Umairm
classificatria de Matolana tambm l pousava freqentemente, tendo ali
se casado, apesar de suaprpria residncia ser em outro lugar. Um de
seus filhos, com doze anos, arrebanhava o gado para omarido de uma
das outras irms de Matolana, num stio que distava aproximadamente
uma milha. Pertodo stio de Matolana, localizavam-se os stios de
dois de seus irmos; um era irmo por parte da me e ooutro, por parte
de um av comum. O meio-irmo deste ltimo (por parte de pai) era
considerado parte domesmo umdeni (grupo de parentesco local),
embora residisse em territrio vizinho pertencente triboAmateni. O
stio de Richard ficava prximo ao de Matolana. Richard e sua esposa
eram os nicos cristosque l residiam, sendo o lder do stio seu irmo
mais velho, abaixo do qual estava outro irmo, depoisRichard e ento
o irmo mais novo. Todos eram filhos de uma mesma me, que tambm
morava comeles. Todos os irmos eram casados, cada um dos dois mais
velhos tinha duas mulheres e todos tinhamfilhos. Este stio foi
recentemente mudado, sendo que Richard construiu a sua moradia um
pouco distncia das de seus irmos porque queria uma cabana mais
permanente. Perto deste stio Ntombela ha-via quatro outros stios
Ntombela (Ntombela o sobrenome de um cl), alm do stio de um homem
cujame era uma Ntombela. Ela havia se casado longe dali, mas deixou
seu marido para morar no distrito deseu pai.
Estes grupos de stios agnaticamente relacionados, de muitos cls
diferentes, distribuem-se por todoo pas; esto relacionados a grupos
similares de seu prprio cl, atravs de laos agnticos, e a
outrosgrupos, atravs de laos de matrimnio e afinidade. Mesmo onde
no existem laos de parentesco entrevizinhos, as relaes so
geralmente baseadas em termos amigveis de cooperao.
Grande parte da vida de um zulu dispendida nesses agrupamentos
de parentes e vizinhos. Sepossvel, um zulu associa-se s mesmas
pessoas nas cidades, como nas reservas. Os agrupamentos deparentes
constituem particularmente fortes unidades cooperativas, seus
membros ajudando-semutuamente e dependendo uns dos outros. Possuem
terras em proximidade umas das outras, arrebanhamseu gado
conjuntamente, dividem as atividades agrcolas, freqentemente
trabalham juntos em reaseuropias, e ajudam-se em conflitos e em
outras atividades. Esto sujeitos s suas prprias tenses,tenses essas
que explodem em brigas e culminam em processos judiciais e acusaes
de bruxaria,resultando s vezes na diviso dos stios e de seus grupos
de residncia. Entretanto, nos grupos ondeexistem fortes ligaes
sentimentais, as tenses causadas por conflitos de filiao a outras
divises nogrupo zulu so parcialmente resolvidas.
Embora muitos pagos sc oponham e sejam hostis ao cristianismo,
afirmando que essa religio est
abalando a cultura e a integridade zulu, no discriminam entre
seus parentes cristos e pagos. H forteslaos na vida familiar,
capazes de superar a clivagem entre cristos e pagos, entre homens
progressistasque adotam costumes europeus e aqueles que no os
adotam. Por outro lado, o efeito dos novos costumes
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est se fazendo sentir cada vez mais, especialmente nestes
grupos, sendo que os laos de parentesco estose enfraquecendo. Por
isso, quando tratarmos dos problemas referentes mudana social,
veremos que ogrupo europeu influencia marcadamente o comportamento
destes grupos zulus, atravs dos cristos quemoram com seus parentes
pagos e os jovens que moram com seus parentes mais velhos.
Podem-se, igualmente, delinear divises sociais dentro do grupo
branco e examinar sua relao coma principal organizao em dois grupos
raciais. Tal estudo no faz, a priori, parte do escopo de minha
investigao, mas este tipo de informao levado em considerao desde
que seja relevante s relaeszulu-brancas ou estrutura interna do
grupo zulu. J me referi s relaes entre funcionrios do
governo,missionrios, comerciantes, empregadores, tcnicos
especializados, de um lado, e zulus do outro. Aquiquero indicar
alguns problemas que surgem, quando consideramos as relaes entre
esses europeus. Umaanlise dos valores, interesses e motivos que
influenciam em diferentes perodos os europeus comoindivduos
mostraria que, de acordo com a situao, poderiam fazer parte,
exatamente como os zulus, deagrupamentos diferentes na estrutura
social da Zululndia. Vimos que o missionrio at
uniu-setemporariamente ao grupo zulu, abandonando o grupo branco. O
encontro harmonioso na inaugurao daponte uma caracterstica das
relaes entre zulus e brancos no territrio das reservas. Entretanto,
istono ocorreria facilmente nas fazendas europias ou nas cidades,
onde os conflitos entre os grupos somaiores.
Enfatizei que os funcionrios governamentais fazem um esforo
deliberado para satisfazer os zuluse devo salientar que isto tambm
mais comum nas reservas. Embora funcionrios sejam obrigados
aimplementar as decises do governo branco, muitos deles tornam-se
pessoalmente ligados ao povo zuludurante a rotina da administrao.
Como eles prezam seu trabalho, desejam que seus distritos progridam
eesto interessados no bem-estar dos habitantes, tomam
ocasionalmente o partido dos zulus contra o grupobranco, cuja
dominao representam. Controlam, em nome do governo, as relaes dos
comerciantes,recrutadores e empregadores com os zulus,
freqentemente a favor dos interesses dos zulus. Assim, svezes,
quando afetados em seus interesses, estes outros grupos de europeus
se opem ao trabalho daadministrao. Mais freqentemente, seus
interesses vis--vis entram em conflito, tanto quanto entre osgrupos
constitudos de acordo com cada tipo de empreendimento europeu.
Contudo, unem-se como umtodo contra o grupo africano, quando agem
como membros do grupo branco em oposio ao grupoafricano. Alguns
missionrios freqentemente tomam o partido dos zulus contra a
explorao dosbrancos, mas deve-se acrescentar que esto, ao mesmo
tempo, influenciando os zulus a tornarem-se maisdispostos a
aceitarem os valores europeus e conseqentemente sua dominao, muito
embora a barreira
racial possa forar muitos a se tornarem hostis.Tentei delinear o
funcionamento da estrutura social da Zululndia, em termos das
relaes entre
grupos, tendo indicado algumas das complexidades que permeiam
essas relaes, j que uma pessoa podepertencer a inmeros grupos que
esto s vezes em oposio entre si ou unidos contra outro grupo.
Comomuitas relaes e interesses podem interseccionar-se em uma
pessoa, exemplificarei brevemente o queocorre no comportamento dos
indivduos. J fiz algumas sugestes a respeito, ao analisar o grupo
cristo:vimos que o missionrio branco juntou-se por algum tempo aos
zulus aps os outros brancos terem sedispersado e que Richard era
influenciado por seus laos de parentesco com pagos e por modos
decomportamento comuns a cristos e pagos. H outros exemplos.
Matolana saudou um policial dogoverno como um prncipe zulu, logo
aps passou a fazer reclamaes sobre o mau tratamento que ogoverno
lhe dispensava, muito embora ele prprio fosse um representante
governamental. Matolanaajudou a prender um ladro para o governo; em
prol de seu povo, protestou ao veterinrio do governo
sobre o banho parasiticida; ficou exultado com a possibilidade
de ajudar e trabalhar para o regente;ponderou que seria mais
lucrativo abandonar sua posio poltica junto ao governo e ao regente
paratrabalhar para si prprio. Na reunio de Nongoma, um policial do
governo, que tambm um prncipeMandlkazi, reclamou contra a ajuda dos
Usuthu do distrito de Matolana faco em conflito com suafaco tribal,
embora ele prprio tenha agido como um policial do governo em uma
briga entre essasmesmas faces. Na ponte, funcionrios auxiliares e
policiais zulus do governo uniram-se ao grupo doszulus,
permanecendo isolados dos brancos, a quem tm o dever de ajudar a
governar o pas.
Os grupos principais de brancos e zulus esto divididos em grupos
subsidirios, formalizados e noformalizados, sendo que, de acordo
com os interesses, valores e motivos que determinam
seucomportamento em situaes diferentes, o indivduo modifica sua
participao nesses grupos. Apesar deeu ter realizado a minha anlise
atravs de agrupamentos, uma outra anlise, em termos de como valores
ecrenas determinam o comportamento dos indivduos, chegaria a
concluses similares. Como socilogo,
estou interessado em estudar as relaes dos grupos formados por
estes interesses e valores, bem como osconflitos causados pela
participao de um indivduo em diferentes grupos.
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Para resumir a situao na ponte, pode-se dizer que o
comportamento dos grupos e indivduospresentes expressava o fato da
ponte, que era o centro de seus interesses, t-los unido numa
cerimniacomum. Como resultado de seu interesse comum, agiram
segundo os costumes de cooperao ecomunicao, apesar dos dois grupos
raciais estarem divididos de acordo com o padro da estruturasocial.
Igualmente, a celebrao uniu os participantes dentre cada grupo
racial, apesar deles terem seseparado de acordo com as relaes
sociais existentes no interior do grupo. Nesta situao de
cooperao,
o poder do governo e a base cultural dos seus representantes
organizam as aes dos grupos e indivduosdentro de um padro que
exclui o conflito. Grupos menores separam-se com base em interesses
comuns e,se isso for apenas devido localizao espacial (exemplo:
cristos e pagos), no entram em conflito umcom outro.46Nesta situao
todas estas reunies grupais, incluindo a concentrao geral na ponte,
soharmoniosas devido ponte ser o fator central, constituindo-se em
uma fonte de satisfao para todas aspessoas presentes.
Atravs da comparao desta situao com inmeras outras situaes,
seremos capazes de delinear oequilbrio da estrutura social da
Zululndia em um certo perodo do tempo. Por equilbrio, entendo
asrelaes interdependentes entre partes diferentes da estrutura
social de uma comunidade em um perodoparticular. Devo acrescentar,
como sendo de fundamental importncia para esta anlise, que a
hegemoniado grupo branco (que no apareceu na minha anlise) o fator
social principal na manuteno desteequilbrio.
Tentei mostrar que, no perodo atual, a estrutura social da
Zululndia pode ser analisada como umaunidade funcional, em
equilbrio temporrio. Vimos que a existncia de dois grupos de cor
emcooperao dentro de um nica comunidade constitui a forma
predominante dessa estrutura. Esses doisgrupos esto diferenciados
por um grande nmero de caractersticas que os leva a se oporem e at
mesmoa serem hostis entre si. O grupo branco domina o grupo zulu em
todas as atividades nas quais cooperam,sendo que, embora afete
todas as instituies sociais, esta dominao somente se expressa em
algumasdelas. A oposio desigual entre os dois grupos raciais
determina o carter de sua cooperao. Interesses,crenas, valores,
tipos de empreendimentos e variaes de poder aquisitivo diferenciam
grupos menoresdentro de cada grupo racial. H uma concordncia entre
alguns destes grupos que transpassa as fronteirasde cor,
interligando os grupos raciais atravs da associao de alguns de seus
membros numa identidadede interesses temporria. Entretanto, o
equilbrio entre estes grupos afetado pelas relaes raciais
deconflito e cooperao, de modo que cada um destes grupos une os
grupos raciais por um lado,enfatizando, por outro, sua oposio. As
mudanas de participao nos grupos em situaes diferentes
revela o funcionamento da estrutura, pois a participao de um
indivduo em um grupo particular em umasituao particular determinada
pelos motivos e valores que o influenciam nesta situao. Os
indivduospodem, assim, assumir vidas coerentes atravs da seleo
situacional de uma miscelnea de valorescontraditrios, crenas
desencontradas, interesses e tcnicas variadas.47
As contradies transformam-se em conflitos na medida em que a
freqncia e importncia relativasdas diferentes situaes aumentam no
funcionamento das organizaes. As situaes que envolvemrelaes entre
africanos e brancos esto rapidamente tornando-se as dominantes,
sendo que um nmerocada vez menor de zulus est se comportando como
membro do grupo africano em oposio ao grupobranco. Estas situaes,
por sua vez, afetam as relaes entre os africanos.
Assim, as influncias de valores e grupos diferentes produzem
fortes conflitos na personalidade doindivduo zulu e na estrutura
social da Zululndia. Estes conflitos fazem parte da estrutura
social, cujoequilbrio atual est marcado por aquilo que costumamos
normalmente chamar de desajustamentos. Osprprios conflitos,
contradies e diferenas entre e dentre grupos zulus e brancos, alm
dos fatores queultrapassam estas diferenas, constituem a estrutura
da comunidade zulu-branca da Zululndia.48
So exatamente estes conflitos imanentes no interior da estrutura
da Zululndia que iro desencadearseu futuro desenvolvimento. Atravs
da definio precisa desses conflitos em minha anlise do
equilbriotemporrio, espero poder relacionar meu estudo seccional
comparativo ao meu estudo de mudana social.Portanto, sugiro que,
para estudar a mudana social na frica do Sul, o socilogo deve
analisar oequilbrio da comunidade africana-branca em diferentes
perodos de tempo e mostrar como sucessivosequilbrios esto
relacionados entre si. Na segunda parte deste ensaio espero
examinar maisprofundamente este processo de desenvolvimento na
Zululndia. Analisarei a alterao e o ajustamentoda estabilidade dos
grupos (a mudana no equilibrio) envolvidos, durante os ltimos 120
anos, naconstituio da comunidade da Zululndia em grupos raciais de
culturas relativamente diferentes.
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Notas
1 767.984 euro-asiticos/euro-africanos (de cor); 219.928
asiticos. Cifras de acordo com o censo de 1936, Relatrio Preliminar
U.G.50/1936.
2 Financiado pelo Ministrio Nacional de Educao e Pesquisa Social
do Departamento de Educao da Unio (Fundo Carnegie), aoqual agradeo
pela verba. Trabalhei nos distritos de Nongoma, Mahlabatini,
Hlabisa, Ulombo, Ingwavuma, Ngotshe e Vryheid(vide o mapa da frica
do Sul). O dr. A. W. Hoernl supervisionou e estimulou meu trabalho
de tal modo que nem consigo
agradecer adequadamente.3Posso assinalar aqui que as pesquisas
da sra. Hilda Kuper na Swazi-lndia, o territrio vizinho que est sob
proteo britnica,
mostram muitas dessas similaridades. Reconheo com gratido minha
dvida para com a sra. Kuper, com quem discuti emdetalhes os nossos
resultados. No posso indicar aqui, em detalhe, o muito que devo a
ela. O sr. Godfrey Wilson, A. W. Hoerl eo professor Shapera
criticaram o primeiro rascunho deste meu ensaio.
4A tcnica, claro, tem sido amplamente empregada por outros
antroplogos: vide abaixo.5 Ele o representante do rei zulu no
subdistrito de Kwadabazl (Mapo-poma). O rei era, ento, legalmente,
o nico chefe da pequena
tribo Usuthu. A posio do representante reconhecida pelo governo,
sendo que ele pode julgar casos civis. Suas decises, depoisde
registradas na magistratura, sero reforadas pela Corte Mensageira
do Governo, se necessrio. Ele um dos conselheiros maisimportantes
do rei.
6 Nomeados por Matolana com a aprovao do magistrado e do rei
zulu. Eles recebem uma pequena parte dos impostos da
corte.7Encontrada na Zululndia, Natal, Swazilndia e outros lugares
do pas.8 Ele funcionrio do Departamento de Agricultura e no do de
Assuntos Nativos, e independente dos funcionrios do
AssuntosNativos.9O veterinrio, que representa o governo, nasceu na
Swazilndia. Ele fala um zulu rpido e melhor ainda a lngua franca,
com forte
tendncia pronncia Swazi.10Em relao ao seu status, vide P. H.
Rogers, Native Administration in South A/rica.Johannesburg: Editora
da Universidade de
Witwatersrand. 1933. Na posio de chefe do Departamento de
Assuntos Nativos na Zululndia e Natal, ele subordinado Secretaria
de Assuntos Nativos para o pas. Abaixo dele, na hierarquia, esto os
comissrios nativos(que so tambm magistrados) de cada um dos
distritos em que Natal e a Zululndia esto divididos.
11 Isto , um funcionrio poltico menor. Uso o termo como
empregado na legislao governamental. Essa palavra est sendoaceita
na frica do Sul e pode ser encontrada no Dicionrio Ingls de
Oxford.
12Os cristos usam roupa europia completa. Os pagos geralmente
usam camisas e s vezes casacos sobre cintos de pele (ibeshu =cinto
de pele, pago).
13 No posso reproduzir em detalhe este discurso ou qualquer
outro, j que no pude fazer anotaes detalhadas dos mesmos.
Aquimenciono apenas os pontos relevantes.
14 As estradas principais e suas pontes so conservadas pela
provncia;as estradas secundrias em territrios nativos soconservadas
pelo Departamento de Assuntos Nativos do pas.
15 Mshiyeni cristo.16 Observei do outro lado do rio.17 Estas
reunies acontecem pelo menos uma vez por trimestre e todos os
assuntos relacionados ao distrito so discutidos pelos
funcionrios, chefes e o povo. So tambm convocadas reunies
extraordinrias quando necessrio.18 Ele me confidenciou isso
parte.19 O desentendimento era sobre alguma ofensa banal.20 Mais
tarde ele proibiu seu povo de comparecer aos casamentos dos
Mandlakazi, onde as lutas tinham comeado. Baixou tambm
uma lei segundo a qual ningum deveria danar com lanas, para que
no houvesse feridos se alguma briga eclodisse.21 Vide M. Fortes,
"Communal Fishing and Fishing Magic in the Northern Territories of
the Gold Coast", Journal of the Royai
Anthropological Institute, vol. LXVII, 1937, pp. 131 e ss., e,
especialmente, E. E. Evans-Pritchard, Witchcraft, Magic andOracles
among the Azande (Oxford: Editora Claredon, 1937); e The Nuer
(Oxford: Editora Claredon, 1940). Tambm B.Malinowski,Argonauts of
the Western Pacific (Londres: Routledge, 1922), sobre o significado
sociolgico de situaes sociais.
22 Entretanto, similar s inauguraes de pontes, etc. em regies
euro-ias e inaugurao de escolas e demonstraes agrcolasna
Zululndia.
23Methods of Study of Culture Contact in Africa (Londres:
Editora da Universidade de Oxford, 1938), Memorando XV do
InstitutoInternacional de Lnguas e Culturas Africanas, passim.
Acredito que a falta de percepo da importncia terica deste
pontoenfraqueceu, ou mesmo distorceu, alguns estudos recentes de
mudana social na frica, embora certamente todos osespecialistas
lenham reconhecido muitos dos fatos [Vide, por exemplo, M. Hunter,
Reaction to Conquest (Londres: Editora daUniversidade de Oxford,
1936), sobre os Pondo na frica do Sul; L. Mair,An African People in
the Twentieth Century (Londres:Routledge, 1934), sobre os Ganda; C.
K. Meek, Law and Authority in a Nigerian Tribe (Londres: Editora da
Universidade deOxford, 1937), sobre os Ibo]. surpreendente que os
antroplogos apresentem uma falha que no poderia ocorrer com
oshistoriadores (por exemplo, W. M. Macmillan e |. S. Marais),
economistas (por exemplo, S. H. Frankel), psiclogos (porexemplo, I.
D. Macrone) ou mesmo algumas comisses governamentais (por exemplo,
a Comisso Econmica Ativa e Grficado Governo da Unio, Pretria,
1922/1932). Possivelmente porque, ao contrrio do que dizem, os
antroplogos no se livraramda tendncia arqueolgica. Entretanto, em
algum outro ponto da mesma introduo, Malinowski mesmo aponta o
absurdo que no adotar o ponto dc. vista que cie teoricamente
critica: "Gostaria de encontrar o etngrafo que conseguisse isolar
as partescomponentes de um africano ocidentalizado" (loc. cit., p.
22).
24 As nicas mulheres zulus presentes eram da vizinhana, porm a
esposa de Mshiyeni freqentemente o acompanha a celebraessimilares.
Nunca soube de um chefe pago que levasse sua esposa a reunies
pblicas.
25 No pesquisei estas questes com o necessrio cuidado.26 Houve,
e possivelmente ainda h, casos de homens brancos "virando nativos".
Quando isto ocorre, no podem mais se misturar ao
grupo branco.27 Uso este termo para abranger todas as atividades
diretamente relacionadas ao meio ambiente agricultura, minerao,
etc. ou
fisiologia do povo sade, morte, etc. Como foi colocado acima,
todos estes recursos e eventos so socializados.
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5/28/2018 GLUCKMAN, Max. Anlise de uma situao social na
Zululndia moderna
18/51
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28 Pode-se notar que foi a posio do governo britnico na poltica
zulu em 1878/88 que viabilizou a independncia dos Mandlakazida Casa
Real.
29 Do mesmo modo, nem todos os fazendeiros europeus valorizam as
necessidades cientficas como os tcnicos.30 Vide meu artigo sobre os
zulus em African Politicai Systems, editado por Evans-Pritchard
& Fortes (Londres: Editora daUniversidade de Oxford. 1940).31
Sobre isso, vide R. E. Philips. The Bantu in the City (Lovedale
Press, 1938,passim.32Embora servios de sade, veterinria e alguns
outros tenham comeado muito cedo.33
Nmeros fornecidos gentilmente pelo sr. Lynn Saffery, secretrio
do Instituto de Relaes Raciais, Johannesburg, que por suavez
recebeu-os dos organizadores dos sindicatos trabalhistas africanos.
No posso dizer quantos so zulus, mas provavelmente amaior parte dos
homens de Durban so filiados nao Zulu.
34 Vide Phillips, op. cit., captulo I.35 O mesmo argumento se
aplica a outros agrupamentos urbanos. Acerca desta questo das
relaes entre a reserva e as
organizaes urbanas, devo muito a uma carta estimulante do dr.
Jack Simons, cujas pesquisas em reas urbanas parecem t-lolevado a
um ponto de vista similar ao que cheguei ao pesquisar o final do
fluxo de mo-de-obra.
36 Vide J. S. Marais, "The Imposition and Nature of European
Control", Bantu-speaking Tribes of South Africa, (ed.)
Shapera(Londres: Rout-ledge, 1937).
37 Por exemplo, em Vereeninging, em 1937, quando vrios guardas
civis foram mortos. Zulus se amotinaram em Durban em 1930.38 quase
desnecessrio notar que o termo "raa" usado num sentido totalmente
no-cientfico na frica do Sul. H muitos
escritos e pronunciamentos pseudo-cientficos sobre raa (vide,
por exemplo, G. M. Heaton-Nicholls, Th