5/13/2018 GilCambuleQuestao-De-factoeQuestaodeDireito-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/gil-cambule-questao-de-facto-e-questao-de-direito 1/5 Questão-de-Facto e Questão-de-Direito: Distinção e Consequências no Direito Moçambicano Por Gil Cambule Advogado 1 Assistente universitário 2 1 SCAN, Advogados e Consultores 1
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5/13/2018 Gil Cambule Questao-De-facto e Questao de Direito - slidepdf.com
Propomo-nos a tratar neste do tema d’ A Questão de facto e a Questão de Direito:
determinação e consequências no ordenamento Direito moçambicano.
O Direito é estudado, cultivado, aplicado e até mesmo pensado sempre sob o signo de um
postulado geralmente tido como dado, de modo pacífico: o postulado do binómio facto-
norma, ou se quisermos, o postulado do binómio «facto» e «Direito».
Há uma crença generalizada de que a experiência jurídica implica a aceitação – e, de certomodo, o entendimento – da existência de duas categorias de realidades, ou, mais
correctamente, de duas ordens de realidade, de dois mundos: o mundo do ser e o mundo
do dever ser.
O facto pertencerá, assim, a esse mundo do ser, da realidade dada, a realidade concreta,
neutra, desprovida de qualquer significação normativa, ao mundo do ser… o mundo do
caso.
Diante desse mundo neutro, dessa realidade a-jurídica, existe o mundo do dever ser o
mundo normativo, constituído pelo conjunto de normas de carácter geral, abstractas,
hipotéticas, destinadas a ser aplicadas aos factos, conferindo-lhes significado e
consequência no mundo do dever ser. O facto, entidade concreta, deve subsumir-se à
norma, entidade abstracta.
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Desse postulado, resulta que a actividade forense pode incidir a sua investigação na
determinação e delimitação das realidades próprias do mundo do ser – e aí teremos a
questão de facto – bem como pode, já com base em conceitos dotados de valor normativo e
jurídico, indagar sobre o valor dos mesmos factos na tentativa de lhes conferir um
significado já hipoteticamente fixado pela norma – e aí teremos a chamada questão de Direito.
Intentamos no presente texto – numa abordagem que desde já se reconhece modesta
inconclusiva – reflectir à volta da distinção destas duas questões.
Para tal, começamos por abordar a genérica distinção entre «facto» e «Direito», num
caminho que necessariamente leva à distinção entre a questão de facto e a questão de
Direito.
Partindo dos dados aí apresentados, pomos, a seguir, em causa a validade do próprio
problema da distinção de questão de facto e questão de Direito, nos moldes em que o
assume o modelo silogístico-subsuntivo da aplicação.
Porque inevitável, é com António Castanheira Neves que tentamos sustentar no segundo
capítulo que o problema da distinção é, na verdade um problema em crise, um problema
insanavelmente votado à sua própria insolubilidade, quando apresentado na perspectiva do
modelo do silogismo judicial, mas é também com Castanheira que tentamos, ainda nomesmo capítulo, seguir o caminho inverso: o da assunção e reposição do problema.
No terceiro Capítulo fazemos uma revista do nosso processo – do nosso Processo Civil – e
da nossa Organização Judiciária, na tentativa de surpreender aí as «marcas» que a distinção
deixou como suas consequências.
E terminamos com algumas notas conclusivas.
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“O elemento dinamizador da ordem jurídica é o facto. Os factos alteram as situações existentes ”3, diz José
de Oliveira Ascensão. Em outra obra, o mesmo autor acrescenta que
“a realidade circunstante só é transformada através de factos.
Nenhuma realidade histórica surge desacompanhada de um facto
histórico originante. Os factos alteram as circunstâncias de equilíbrio
pré-existente. As mudanças criam tristeza por levarem consigo os
estados felizes, como no trecho de Camões de «Sôbolos rios vão por
Babilónia», mas criam também a superação ou, pelo menos, a
esperança de superação das angústias e desajustamentos presentes ”4.
A realidade, a história, o mundo da vida decorre por uma sucessão de factos, sucessão de
eventos de ordem humana, social, convivencial mas também de factos de ordem natural
que criam mudança.
Esses «eventos», enquanto acontecimentos exteriores que modificam a «ordem das coisas»,são, como bem lecciona José de Oliveira Ascensão o elemento dinamizador da ordem
jurídica.
3 José de OLIVEIRA ASCENSÃO, O Direito, Introdução e Teoria Geral, uma Perspectiva Luso-Brasileira,
Almedina, Coimbra, 11.ª Edição, 2003, p14
4 José de OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil, Teoria Geral, Vol. II, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2003, p.10
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O nosso Direito processual, dizíamos, encontra-se construído com base na aceitação de
que facto e Direito são grandezas distintas e irredutíveis.
Outro não era, aliás, até há bem pouco o princípio fundamentador da Faculdade da Direito
da Universidade Eduardo Mondlane onde durante a totalidade dos anos do curso, oestudante estudava «o Direito» as normas abstractas, gerais e hipotéticas, relegando-se o
estudo do facto (ou pelo menos o conhecimento dele), da problemática da vida à margem
da abordagem. Actualmente, com a reforma curricular introduzida no ano de 2010,
introduzindo o método do estudo com base no caso concreto querer-se-á quiçá voltar a
reconhecer que o Direito não pode olvidar as suas origens: não pode o estudo do Direito
ignorar a análise da conturbada e conflituosa convivência social que lhe dá origem15.
Preocupação pelo conteúdo destes curricula em que manifestamente se privilegia o estudo
do «Direito» afastado do «facto» já foi apresentada também no Brasil, onde o destacado
processualista Ovídio Baptista da Silva nota que
“o estudante não tem acesso aos «factos», apenas às «regras» pois o Direito tanto na universidade como na
prática continua sendo uma ciência demonstrativa, não uma ciência da compreensão construída
dialecticamente. A retórica, enquanto ciência da argumentação forense, ainda não teve o seu ingresso na
universidade brasileira ”16.
Mais esclarecedor sobre o ensino do Direito tendo em conta o binómio facto-Direito e a
prevalência deste último e excluído o primeiro é ainda o processualista Ovídio Baptista em
outra obra sua em que nota que
15 No momento em que terminámos este texto, já outra mudança se verificou no plano do Curso de
Direito da UEM, parecendo voltar-se ao método anterior. Consta que este regresso não deve,
entretanto, afastar a preocupação por este cunho prático, “fáctico”, das lições… a ver vamos!
16 Ovídio Araújo Baptista da SILVA, Processo e Ideologia, o Paradigma Racionalista, Editora Forense, Rio
de Janeiro, 2004 pp. 36/7
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Na idade média, ao juiz era conferida uma ampla discricionariedade e uma considerável
faculdade de investigação dos factos no intuito de remediar a incerteza que se apresentava
no Direito. Aí, a norma jurídica não fixava elementos da situação fáctica19.
Já no ideário iluminista, muito ligado à ideia da certeza e segurança do Direito, com acorrespondente ansiedade em eliminar as arbitrariedades do juízes a lei vem a adquirir
primazia, o que supõe conferir maior importância e relevo à interpretação do Direito do
que na busca do facto que, entretanto, fica pré-determinado pela Lei com a denominada
fattispecie 20.
Os iluministas, em nome das mencionadas certeza e segurança jurídicas, impõem, então, a
“anulação total do julgador na actividade jurisdicional de aplicação da lei para garantir o postulado unívoco
da lei ”21.
Deste modo, a distinção entre a questão de facto e a questão de Direito aparece-nos com
fundamentos mais políticos em menos em razões de ordem prática.
O certo, porém, é que a distinção está lá, no nosso processo, nos nossos tribunais, na nossa
doutrina, no nosso Direito.
É nessa base que interessa o seu estudo, para lhe conferir fundamentação prática que
eventualmente não tenha ou, inversamente, para revelar o seu sem-sentido, pugnando pela
sua eliminação.
3. Critérios ou orientações de distinção
A distinção de questão de facto e questão de Direito tem se colocado fundamentalmente ao
nível de recurso sendo que historicamente, as orientações afirmadas a respeito
reconduzem-se principalmente a três:
19 Karinne Emanoela Goettems dos SANTOS, A Questão…, p.107
20 Cfr. ibidem
21 Idem, p. 108
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a) Orientação de carácter lógico – que recorre à distinção entre o conceito de facto e o
conceito de Direito.
“ Afirma esta orientação que temos a questão de facto quando estiver a
pensar-se algo mediante conceitos ou expressões de sentido comum,
técnico ou científico não jurídicos e uma questão de Direito, pelo
contrário, quando a expressão ou conceito legal for usado com sentido
especificamente jurídico (legal ou doutrinal)”22.
É este sentido adoptado por Ana Prata para quem “é ainda matéria de facto e não de
Direito toda a afirmação que envolve o recurso a conceitos não jurídicos, isto é, dotados do sentidoque têm na língua corrente ou de outras áreas científicas diversas do Direito”23.
b) Orientação de carácter gnoseológico, segundo a qual “questão de facto será a que se
resolve através de juízos e actos puramente cognitivos, questão de Direito a que implica juízos de
valor ou actos de avaliação”24.
c) Orientação de carácter objectivo – a que “recorre a um critério que traduz só por palavras
a distinção entre normas e factos opondo o que for individual-concreto (questão de facto) ao
conceitual (questão de Direito)”25.
“Esta terceira orientação” porém
22 Rui PATRÍCIO, O dolo… p. 34
23 Ana PRATA, Dicionário… p.1212
24 Rui PATRÍCIO, O dolo… 34
25 Ibidem
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“ ficou irremediável e naturalmente ultrapassada logo que se verificou o
carácter geral de certas determinações que se não podiam entender
rigorosamente como jurídicas mas que em virtude daquele carácter geral
não podiam subtrair-se à apreciação dos tribunais supremos, devendo-
se, para o efeito, ser tidos como verdadeira questão de Direito. Seria o
caso da determinação correspondente aos chamados factos gerais e,
sobretudo, às regras da experiência. Até porque, além do mais, não
pode deixar de entender-se que a violação de uma regra de experiência é
revisível na medida em que ela se traduz sempre na violação da
disposição legal cujo conteúdo é precisado graças à regra da
experiência ”26.
Restam-nos assim as duas primeiras orientações que pelo que nos é dado a ver da nossa
jurisprudência (que mais adiante será apresentada), parece que se utilizam de modo
concorrente.
Já entre nós, a nível doutrinal, pode se afirmar com toda a segurança (e correspondente
tristeza) que a distinção entre questão de facto e questão de Direito permanece um terreno
virgem, sem qualquer abordagem pelos autores moçambicanos. Percorrendo as nossas leis
processuais e considerando o importante relevo que a esta distinção é dado a nível dospoderes de cognição dos tribunais – como adiante em sede própria termos ocasião de ver –
só podemos concluir que a distinção entre facto e Direito – e a sua correspondente
distinção entre questão de facto e questão de Direito – são tidos como dados pacíficos pela
nossa doutrina. Distinção imanente no nosso formalismo processual mas sem suporte
doutrinal que auxilie o julgador a interpretá-la e a melhor aplicá-la na decisão do caso.
É neste sentido revelador a afirmação do jovem processualista Tomás Timbane, autor do
único livro de Direito Processual Civil escrito por um moçambicano, segundo o qual
26 Idem, pp.34/5
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3. E o que se passa em matéria de interpretação da lei sucede de igual forma quanto às situações factuais
esbatendo-se a rígida dicotomia entre o facto e o Direito enfeudada à lógica tradicional.
4. Nesta medida, não tem sido estranho o enriquecimento que o pensamento jurídico tem registado
nomeadamente pelo contributo das modernas ciências da linguagem e, em particular, pela investigação e progresso no domínio da hermenêutica que acentuadamente se tem feito sentir na metodologia e ciência do
Direito.
5. Em matéria de destrinça entre «questão de facto» e «questão de Direito» é hoje um dado adquirido que
muitos conceitos tidos como puros estão já imbuídos de um sentido e não se prende isoladamente a mero
facto ou ao Direito, antes se apresentado como uma simbiose entre ambos
6. São precisamente os casos em que o facto e o Direito são tão próximos na linguagem corrente que é muitodifícil indagar destes factos sem qualquer conotação jurídica prévia.
7. Por outro lado, também ao nível dos leigos, a expressão jurídica extravasou de há muito o campo técnico-
jurídico para se publicizar, tornando-se domínio comum.
8. Não é, pois, de se estranhar que no início do processo cognitivo de uma expressão se surpreenda já uma
pré-compreensão reportando-se à coisa de que o texto fala e à linguagem em que se fala dela. Esta pré-
compreensão que é um fenómeno da natureza não impede todavia o juiz de apreender a especificidade do
caso; só que na sua análise e tratamento, a questão de facto é inseparável da questão de Direito”29.
2. O modelo subsuntivo – o facto e o Direito no silogismo judicial
29 Ac. de 09.08.2004 do T. R. Coimbra, na Apelação n.º 293/04
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A crença aqui é de que existem os factos desprovidos de qualquer conteúdo de natureza
jurídica (de um significado valorado), realidades neutras, próprias do mundo do ser e, face a
elas, há a norma, entidade abstracta, hipotética, coercitiva que confere significado àqueles
factos no intuito do alcançar a decisão judicial que assim seria o culminar da aplicação do
Direito.
Neste sentido, neste binário modelo subsuntivo, a actuação judicial tem dois momentos
distintos: num deles incide seu foco nesses dados neutros, nestes factos que carecem de
prova e aí a questão que se levantar será a denominada questão de facto. Já num segundo
momento haverá a necessidade de determinar uma certa norma aplicável para aqueles
factos e qualificá-los conforme tal norma, onde se levanta, no seu literal sentido a questão
«quid juris », verdadeira questão de Direito.
Entretanto, a partir do momento em que como vimos os próprios processualistas apenas
tomam a distinção como um dado – e até os ordenamentos jurídicos lhe atribuem
consequências notáveis na marcha do processo judicial e até na fixação dos poderes
cognitivos dos tribunais e fixação dos graus de recursos – sem, no entanto, clarificar a
importante questão do critério da distinção, torna-se imperioso questionar, e aqui com
Chaim Perelman “será verdade, como pretendem vários juristas, que o raciocínio do juiz pode ser
reduzido a um silogismo, de um modo esquemático, no qual a premissa maior enunciaria a regra doDireito, a menor ofereceria os elementos fácticos e a decisão constituiria a decisão judicial? ” é o mesmo
Perelman que afirma logo a seguir que tal análise é inadmissível pois suprimiria todas as
dificuldades levantadas pela distinção do facto e do Direito33.
A distinção entre questão de facto e questão de Direito parece-nos, assim, uma questão por
ser repensada, por ser reavaliada, revisitada, uma questão em crise…
Entendimento que nos reporta ao estudo do pensamento que a nosso ver mais
profundamente tratou do nosso tema na língua portuguesa: António Castanheira Neves.
33 Chaim PERELMAN, Ética e Direito, Editora Martins Fontes, S. Paulo, 1996, pp. 571/2
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Na verdade, o carácter metodologicamente insolúvel da distinção começou a revelar-se
cedo, tendo se notado que mesma de modo algum poderia ter qualquer efeito útil no
campo do conhecimento e interpretação das normas jurídicas e determinação e prova dos
factos, tendo-se assim, restringido mesmo doutrinalmente ao momento ou ao acto de
aplicação concreta do Direito, por ser apenas aí, no momento da relação concreta entre o
Direito e o facto que a distinção teria algum sentido.
Fora desse momento, o facto e o Direito apresentam-se numa unidade tal que a sua
distinção como categorias separadas e irredutíveis torna-se impossível.
Com efeito, nota mestre português
“uma distinção, ainda quando pensada em geral ou qualquer que seja o seu tipo e natureza só tem sentido na base dos dois pressupostos
exigidos com lógica de necessidade: exige-se tanto uma «razão de
diferença» (pela qual os termos a distinguir e distintos se justifiquem
autónomos ou relativamente irredutíveis um perante o outro) como uma
«razão de coerência» (aquela em que haverá de pensar-se uma qualquer
unidade entre os termos, a possibilitar-lhes a propria relação por que se
diferenciem). Distinguir é necessariamente (ou tal como lógico-
puramente o exige a estrutura conceitual-fenomenológica de distinguir)
afirmar uma razão de diferença no fundo de uma razão de coerência,
pois sempre a análise pressupõe a síntese. E no nosso caso, a razão de
coerência, a unidade pressuposta, não deixa de impor-se-nos como uma
natureza muito particular ”40.
Sucede, entretanto, que o facto e o Direito não apresentam uma «razão de diferença» nosentido de se terem por autónomos e relativamente irredutíveis entre si, mas, curiosamente,
também não apresentam a tal «razão de coerência» por lhes faltar um «quê», aquela unidade
que nos servisse de base para diferenciar.
Na verdade, o facto e o Direito encontram-se conexionados não por uma correlatividade
puramente lógica, posto que há neles uma unidade de carácter analítico mas se encontram
conexionados por uma unidade de carácter sintético.
40 Idem, p.96
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Denominámo-las consequências da distinção, mas talvez a designação correcta fosse a de
«marcas» da distinção no ordenamento jurídico moçambicano. Em que aspectos concretos
do Direito moçambicano é que podemos surpreender estas marcas da distinção entre
questão de facto e questão de Direito? É o que passamos a analisar
1. Participação dos Juízes Eleitos
À luz das normas actualmente vigentes, respeitantes à Organização Judiciária em
Moçambique, os Tribunais podem funcionar como órgãos colegiais ou, antes, com um juiz
singular.
Com efeito, o Tribunal Supremo e os Tribunais Superiores de Recurso sempre devem
funcionar como órgãos colegiais na apreciação das causas e tomada de decisões (arts. 41; 42
e 48 da Lei n.º 24/2007 de 20 de Agosto, Lei da Organização Judiciária).
Diversamente, nos termos do art. 70, n.º 1 da Lei da Organização Judiciária, “em primeira
instância, o tribunal judicial de província pode funcionar como tribunal singular ou colegial, conforme
determinado pela lei de processo”.
Os tribunais judiciais de distrito, também esses, podem funcionar como tribunal singularou colegial, conforme for determinado pela lei de processo (art. 81 da mesma lei).
Em todos estes tribunais encontram afectas duas categorias de juízes, designadamente: os
juízes profissionais (também designados juízes de Direito) e os juízes eleitos (também
designados leigos, são pessoas de reconhecida idoneidade e residentes na área do tribunal
em causa, sem qualquer formação jurídica).
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A determinação ou distinção das questões de facto e questões de Direito no âmbito de um
processo judicial tem uma influência capital na fixação na competência ou do campo de
actuação destes juízes eleitos já que a lei, de modo geral, condiciona ou limita a sua
participação à discussão de matéria de facto.
Com efeito, o artigo 17 da Lei da Organização Judiciária estabelece que
“1. os juízes eleito participam nos julgamentos em primeira instância,
em todos os casos previstos na lei processual ou sempre que a sua
intervenção for determinada pelo juiz da causa, promovida pelo
ministério Público ou requerida pelas partes.
2. A participação dos juízes eleitos é restrita à discussão e decisão sobre matéria de facto.
3. Os juízes eleitos podem ainda ser ouvidos sempre que os tribunais
judiciais de distrito apreciarem em recurso as decisões dos tribunais
comunitários ”.
Desta disposição da Lei da Organização Judiciária que preferimos citar na íntegra ressaltam
dois pontos fundamentais: a) os juízes eleitos têm, na organização judiciária moçambicana
um amplo campo de actuação desde o órgão máximo da estrutura (Tribunal Supremo) até à
base (Tribunal Judicial de Distrito de 2.ª classe); e b) mais importante para a nossa
abordagem, os juízes eleitos não discutem matéria de Direito.
Do topo à base da orgânica dos Tribunais Judiciais, os juízes eleitos, onde participem,
apenas podem intervir quando em causa esteja a discussão e decisão sobre matéria de
facto.
É no artigo 646.º do Código de Processo Civil que encontramos o regime dasconsequências emergentes da violação das regras sobre esta participação dos juízes eleitos,
em tribunal colegial.
À luz daquele artigo (seu n.º2), o julgamento deve ser anulado quando se constate que as
questões de facto foram julgadas pelo tribunal singular quando o deviam ser pelo tribunal
colectivo.
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Na audiência preparatória não se mostra necessária a intervenção dos juízes eleitos já que não se discute
matéria de facto e, portanto, não se aplicam as regras contidas nos artigos 10, n.º1, 49, n.º1 alínea b) e
n.º1 do artigo 50 da Lei n.º 10/92 de 06 de Maio.
Exposição:
Nos presentes autos de apelação, na nota de revisão que antecede suscita-se como prévia uma questão de
natureza processual relacionada com a falta da constituição do tribunal colectivo que, a proceder, impedirá o
conhecimento do fundo da causa.
A questão levantada diz respeito ao facto de na audiência preparatória cuja acta se encontra junta a fls.
37, não terem participado juízes eleitos contrariando-se deste modo o estatuído no artigo 50 da Lei
n.º19/92 de 06 de Maio.
De acordo com a lei, só tem lugar a participação dos juízes eleitos nos tribunais de província quando
funciona em primeira instância e apenas quando decida sobre matéria de facto conforme o disposto no artigo
10, n.º1; 49, n.º1,a alínea b) e 50, n.º1, todos da Lei n.º 10/92 e conjugados.
Daqui se retira que a intervenção dos juízes eleitos só se efectiva quando haja que discutir e decidir sobre
matéria de facto.
Ora, a audiência preparatória tem lugar quando findos os articulados, se mostre possível ao juiz conhecer
do pedido com efeito de obter a conciliação das partes em primeiro lugar, discutir do pedido ou de excepções
em segundo lugar, como se alcança do artigo 508.º do CPC.
Resulta assim evidente que se está perante um acto processual em que não tem lugar a discussão e decisão
da matéria de facto, razão pela qual não têm que intervir nele os juízes eleitos.
Consequentemente conclui-se que não se aplique à audiência preparatória as regras contidas nos artigos 10,n.º1; 49, n.º 1 al. b) e 50, n.º1 da Lei 10/92 de 06 de Maio e, portanto, que neste caso não se coloque o
problema de falta de constituição d
O Tribunal Colectivo (…).
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Assim, consoante a matéria a impugnar por via do recurso seja de facto ou de Direito,
teremos diferentes graus.
Em se tratando de decisão sobre matéria de facto, a não ser que a Lei disponha de modo
diverso, há apenas um grau de recurso. O que significa dizer que um caso decidido pelo Tribunal Judicial de Distrito (quer seja de primeira ou segunda classe), em princípio, não
pode na sua decisão de facto ser reapreciado pelo Tribunal Supremo, portanto, mesmo na
melhor das hipóteses, terminará no Tribunal Judicial de Província.
Entende-se então que é às instâncias inferiores que se deve conferir o poder de apreciar e
decidir sobre os factos que interessam à decisão global da causa. É nessas instâncias que
melhor se apreciará e decidirá sobre a prova dado o facto de ser também aí onde se
verificará em pleno os importantes princípios de imediação e da oralidade que caracterizam
o nosso Direito Probatório.
Às instâncias superiores, nomeadamente ao Tribunal Supremo, caberá assim papel de outra
índole, a aplicação da lei aos factos, o que implica a interpretação do Direito e a fixação da
jurisprudência. É neste sentido esclarecedor o artigo 41 da Lei da Organização Judiciária,
nos termos do qual “sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes, o Tribunal Supremo apenas conhece
de matéria de Direito”.
Em conformidade, quanto à matéria de Direito, diz o preceito legal, há dois graus de
recurso.
Ao atingir o campo sensível da admissão do recurso, a distinção entre o que num processo
judicial representa questão-de-facto daquilo que no mesmo processo constituiria questão-
de-Direito ganha assim importância capital porquanto toca até o princípio constitucional de
acesso de todos os cidadãos à justiça.
Com efeito, o pleno acesso dos cidadãos implica a garantia de que todos acedam aos
tribunais, tenham direito de defesa, de assistência jurídica e patrocínio judiciário. Mas
também implica a possibilidade de os cidadãos vencidos em certos processos judiciais
terem o direito de ver a sua causa reapreciada imparcialmente por um órgão diferente do
que inicialmente decidiu.
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Já os Tribunais Superiores de Recurso – que são essencialmente tribunais de recurso –
conhecem de matéria de facto e de Direito quando julguem em primeira instância ou
quando, funcionando como tribunal de recurso, julgam, em segunda instância, os recursos
das decisões dos tribunais judiciais de província.
Já não podem, porém, conhecer de matéria de facto naquelas situações em que o caso,
interposto no tribunal judicial de distrito, tenha sido reapreciado de facto e de Direito pelo
tribunal de província.
Portanto, conforme já anotado, sobre matéria de facto há apenas um grau de recurso
(artigo 19, n.º1 da Lei da Organização Judiciária).
Quanto aos Tribunais Judiciais de Província ressalta que os mesmos podem, em princípio,tanto funcionando em primeira como em segunda instância, conhecer de matéria de facto e
de matéria de Direito pelas razões já expostas no parágrafo anterior. Não podem, porém,
estes tribunais, em sede de recurso, conhecer de matéria de facto em casos interpostos no
Tribunal Judicial de Distrito de 2.ª classe que tenham conhecido recurso no Tribunal
Judicial de Distrito de 1.ª classe.
Os Tribunais Judiciais de Distrito, tanto de primeira como de segunda classe, é seguro
afirmar-se que os mesmo têm poderes de cognição plenos no sentido de que podemconhecer de matéria de facto e de matéria de facto sem qualquer restrição.
4. Modificabilidade da decisão de facto
A determinação de matéria de facto e de matéria de Direito tem, também, importantes
consequências em sede de recurso, mais concretamente no que respeita à modificabilidade
das decisões de facto.
Refira-se que à luz do Direito Processual vigente em Moçambique, estão previstos como
recursos ordinários a apelação, a revista, o agravo e o recurso para o Plenário do Tribunal
Supremo, prevendo-se como extraordinários a revisão, a oposição de terceiro e a suspensão
de execução e anulação de sentenças manifestamente injustas e ilegais.
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c) se o recorrente apresentar documento novo, superveniente e que, por si só, seja
suficiente para destruir a prova em que a decisão se assentou. Aqui estamos diante
da situação em que um documento que podia influir na decisão da matéria de facto,
por ser superveniente, nem sequer foi apreciado pelo tribunal recorrido. É de toda
a lógica que introduzido o documento supervenientemente na lide, o mesmo terá
de ser apreciado pelo tribunal de recurso, sendo que se for susceptível de influir na
decisão de facto, deverá poder modificar-se esta com fundamento no aludido
documento;
d) ainda em sede de recurso de apelação é permitido ao tribunal superior (em 2.ª
instância) anular a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto,mesmo oficiosamente, quando repute deficientes, obscuras ou contraditórias as
decisões sobre determinados pontos da matéria de facto ou quando considere
dispensável a ampliação desta, nos termos da alínea f) do art. 650.º do CPC.
Quanto ao recurso de revista, a lei dispõe que a decisão proferida pelo tribunal recorrido
quanto à matéria de facto não pode ser alterada salvo caso excepcional de anulação de
sentença com fundamento na sua nulidade (disposições conjugadas dos artigos 729.º e
722.º, n.º2 do CPC).
O recurso de agravo, regulado nos artigos 733.º e seguintes do CPC, incide essencialmente
sobre questões de Direito, não se apresentando aí, com a necessária relevância a questão da
modificabilidade da matéria de facto.
No caso do recurso de revisão regulado nos artigos 771.º e seguintes do CPC resulta claro
que a matéria de facto pode ser modificada pela 2ª instância.
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1. As ideias que a seguir apresentamos, menos do que verdadeiras conclusões, melhor
se deveriam chamar «tópicos finais » assumindo-se as mesmas apenas como notas finais
da nossa reflexão. Tal é a sinuosidade do nosso tema e o facto de o mesmo não ter
ainda sido devidamente abordado no nosso meio jurídico que nos levam, menos do
que a tentar uma abordagem conclusiva sobre o mesmo, buscar apenas a sua devida
colocação, ou, como diria Castanheira Neves, buscar a sua reposição.
2. A ideia da distinção entre facto e Direito, enfeudada na crença da sua irredutibilidade
por o primeiro pertencer ao mundo do ser (da realidade dada, neutra e concreta) e osegundo pertencer ao mundo do dever-ser (da norma, entidade abstracta, geral e
hipotética) encontra-se na base da reflexão jurídica e, sobretudo, no fundamento da
função jurisdicional.
3. No modelo lógico-subsuntivo, no modelo da função jurisdicional caracterizada pelo
silogismo judicial, a distinção entre questão facto e Direito dá conteúdo à distinção
entre a questão-de-facto e questão-de-Direito, no entendimento de que a função
jurisdicional comportaria essencialmente três momentos – característicos dosilogismo – designadamente o momento da norma (premissa maior), geral, abstracta,
hipotética que se aplicaria aos factos – segundo momento – (premissa menor)
levando a uma decisão (conclusão – terceiro momento). No âmbito desse modelo,
fácil seria distinguir a questão de facto – por a mesma se referir ao apuramento e
delimitação dos factos, carecendo de prova – da questão de Direito – a qual se
referiria à qualificação jurídica dos factos; já não matéria de prova e sim, função de
conferir sentido e consequências jurídicos aos factos.
4. No modelo lógico-subsuntivo, na verdade, a distinção entre questão de facto e
questão de Direito nem sequer se coloca como um problema ou, como diz
Castanheira Neves, a sua colocação é de um certo modo que o torna sem sentido,
posto que se entende o facto como inelutavelmente separado (do) e totalmente
irredutível ao Direito. Distintas desse modo, as duas unidades carecem de uma
«razão de diferença» que justifique a sua distinção como um problema, assim como
carecem de uma «razão de coerência», a unidade que daria sentido a qualquertentativa de distinção.
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5. Sucede, entretanto que o «facto» e o «Direito» com que trabalham os juristas não se
apresentam como grandezas totalmente separadas, irredutíveis, antes se
conexionando por razões que levam a que o entendimento de um apenas seja
possível implicando o outro: o facto do jurista é o «facto jurídico» e a norma é
sempre uma norma para regular factos; estas realidades não se compreendem fora
desta unidade. Difícil ou quase impossível é pensar um facto totalmente despido de
qualquer significação normativa, assim como impossível será imaginar uma norma
completamente abstracta, hipotética, sem qualquer referência à realidade factual. O
facto, na sua concretude, só pode ser entendido na fenomenológica generalidade
enquanto, por sua vez a norma, não pode ser compreendida fora da sua latente
concretude, por a mesma sempre se referir ao facto e nela buscar a sua aplicação.
6. É aqui que separar se torna uma acção problemática; que questionar apenas «a nível
dos factos» e, posteriormente, «questionar a nível do Direito» torna-se um problema.
Problema que, aceitamos dizer com Castanheira Neves, é um problema
metodológico da juridicidade.
7. À volta desta distinção, o nosso Direito impõe-se limites a si mesmo no seu próprio
«dizer-se» - na actividade jurisdicional. Os limites dos poderes cognitivos dos nossos
tribunais, nomeadamente das instâncias superiores, são delimitados por aquilo a queaí se entende ser matéria de facto e o que entende posto como matéria de Direito.
Também à volta desta distinção, o nosso Direito impõe limites de acesso à justiça
para os cidadãos: o reexame das causas (a sua possibilidade ou impossibilidade)
encontra-se delimitado por essa distinção.
8. Distinção imanente à nossa juris-dição, distinção aceite, pacífica, recorrente nos
nossos tribunais, uma distinção «silogísticamemente» aplaudida, «subsuntivamente»
assumida. No nosso Direito, nos nossos tribunais ela não é problema: é umpostulado. Por isso, afirmam tranquilamente os nossos processualistas, «não há
critérios seguros para distinção de matéria de facto e matéria de Direito» e ficam-se por aí.
9. A distinção tem, entretanto, consequências muito sérias no nosso Direito, conforme
vimos no ponto 7 supra , sendo, por outro lado, que a mesma coloca o nosso juiz no
reprovável papel de mero aplicador cego de normas processuais sem alma; um juiz
que, fiel ao principio iluminista e politico-ideológico da separação dos poderes, é
avesso a uma interpretação criadora do Direito. É o juiz que em nome da legalidade,
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em nome da sacrossanta separação de poderes, sacrifica impiedosamente a justiça
material do caso concreto. É o juiz da Lei!
10. Neste estado de coisas, em Moçambique, o problema da distinção entre questão de
facto e questão de Direito precisa, assim, de ser … reposto ou, mais correctamente, posto.
Bibliografia
A) Doutrina
1. CASTANHEIRA NEVES, António, Questão-de-facto e Questão-de-direito ou O Problema metodológico da juridicidade (Ensaio de uma reposição crítica) I A crise , Livraria Almedina, Coimbra,1967;
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3. CHIOVENDA, Giuseppe , As Instituições do Direito Processual Civil , Bookseller, Brasil, 1998;
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5. PATRÍCIO, Rui Filipe Serra Serrão, O dolo enquanto elemento do tipo penal (no Direito Português actual) questão-de-facto ou questão-de-Direito? , Relatório apresentado no Seminário de DireitoPenal no âmbito do Curso de mestrado em Ciências Jurídico-Criminais da Faculdade deDireito da Universidade Clássica de Lisboa, ano de 1997;
6. PERELMAN, Chaim, Ética e Direito, Editora Martins, São Paulo, 1996;
8. SANTOS, Karinne Emanoela Goettems dos, A Questão de Facto e Questão de Direito sob uma perspectiva hermenêutica , Dissertação de Mestrado em Ciências Jurídicas, Universidade do RioSinos, 2006;
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10. TIMBANE, Tomás, Lições de Processo Civil I , Escolar Editora, Maputo, 2010;
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- Código de Processo Civil – Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 44 129, de 28 de Dezembrode 1961, tornado extensivo ao (então) Ultramar pela Portaria n.º 19 305, de 30 de Julho de1962 e alterado pelo Decreto-Lei n.º 47 690 de 11 de Maio de 1967, Decreto-Lei n.º323/70 de 11 de Julho, Decreto-Lei n.º 1/2005 de 27 de Dezembro e Decreto-Lei n.º1/2009 de 24 de Abril;
- Lei da Organização Judiciária – Lei n.º 24/2007 de 20 de Agosto;
C) Jurisprudência
- Ac. do Tribunal Supremo de 27 de Junho de 1998, Relator: Cons. Luís Filipe Sacramento;
- Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 09 de Agosto de 2004, na Apelação 293/04, Relator:
Cons. Távora Victor;
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