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George Orwell - A Revolução dos Bichos

Mar 09, 2016

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Marcos Toledo

 
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Copyright © 2007 | by espólio de Sonia Brownell OrwellCopyright do posfácio © 2006 | by Christopher HitchensCopyright da tradução © 2000 | by Heitor Aquino Ferreira / Editora GloboS/AGrafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de1990,que entrou em vigor no Brasil em 2009.Título original | Animal Farm: a Fairy StoryTradução dos posfácios | Sergio FlaksmanProjeto gráfico e capa | Kiko Farkas/Máquina Estúdio

Elisa Cardoso/Máquina EstúdioFoto da capa | Fred Marley/Getty ImagesPreparação | Denise PessoaRevisão | Carmen S. da Costa

Arlete SousaAtualização ortográfica | Página VivaISBN | 978-85-8086-192-1Todos os direitos desta edição reservados àEDITORA SCHWARCZ LTDA.Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 3204532-002 — São Paulo — SPTelefone (11) 3707-3500Fax (11) 3707-3501www.companhiadasletras.com.brwww.blogdacompanhia.com.br

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Sumário

A revolução dos bichosPosfácio: Repensando A revoluçãodos bichos | Christopher Hitchens (2006)ApêndicesI. A liberdade de imprensa (prefácio propostopelo autor à primeira edição inglesa, de1945)II. Prefácio do autor à edição ucraniana(1947)

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1.O sr. Jones, dono da Granja do Solar, fechou o

galinheiro para a noite, mas estava bêbado demaispara lembrar-se de fechar também as vigias. Como facho de luz da lanterna balançando de um ladopara o outro, atravessou cambaleante o pátio, tirouas botas na porta dos fundos, tomou um últimocopo de cerveja do barril da copa e foi para acama, onde sua mulher já ressonava.

Tão logo apagou-se a luz do quarto, houve umsilencioso movimento em todos os galpões dagranja. Correra, durante o dia, o boato de que ovelho Major, um porco que já fora premiado numaexposição, tivera um sonho muito estranho na noiteanterior e desejava contá-lo aos outros animais.Haviam combinado encontrar-se no celeiro, assimque Jones se deitasse. O velho Major (chamavam-

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no assim, muito embora ele houvesse concorridona exposição com o nome de “Belo deWillingdon”) gozava de tão alto conceito na granjaque todos estavam dispostos a perder uma hora desono só para ouvi-lo.

Ao fundo do grande celeiro, sobre uma espéciede estrado, estava o Major refestelado em suacama de palha, sob um lampião que pendia daviga. Com doze anos de idade, já bem corpulento,era ainda um porco de porte majestoso, com arsábio e benevolente, a despeito de suas presasjamais terem sido cortadas. Os outros animaischegavam e punham-se a cômodo, cada qual a seumodo. Os primeiros foram os três cachorros,Branca, Lulu e Cata-Vento, depois os porcos, quese sentaram sobre a palha, em frente ao estrado.As galinhas empoleiraram-se nas janelas, aspombas voaram para os caibros do telhado, asovelhas e as vacas deitaram-se atrás dos porcos eali ficaram a ruminar. Os dois cavalos de tração,Sansão e Quitéria, chegaram juntos, andandolentamente e pousando no chão os enormes cascospeludos, com grande cuidado para não machucar

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qualquer animalzinho porventura oculto na palha.Quitéria era uma égua volumosa, matronal, jáchegada à meia-idade, cuja silhueta não mais serecompusera após o nascimento do quartopotrinho. Sansão era um bicho enorme, de quaseum metro e noventa de altura, forte como doiscavalos. A mancha branca do focinho dava-lhecerto ar de estupidez, e realmente ele não tinha láuma inteligência de primeira ordem, embora fossegrandemente respeitado pela retidão de caráter epela tremenda capacidade de trabalho. Depois doscavalos chegaram Maricota, a cabra branca, eBenjamim, o burro. Benjamim era o animal maisidoso da fazenda, e o mais moderado. Raras vezesfalava, e em geral quando o fazia era para emitiruma observação cínica — para dizer, por exemplo,que Deus lhe dera uma cauda para espantar asmoscas, e no entanto seria mais do seu agrado nãoter nem a cauda nem as moscas. Era o único dosanimais que nunca ria. Quando lhe perguntavampor quê, respondia não ver motivo para riso. Nãoobstante, sem que admitisse abertamente, tinhacerta afeição por Sansão; com frequência

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passavam os domingos juntos no pequeno potreiroexistente atrás do pomar, pastando lado a lado emsilêncio.

Mal se haviam acomodado os dois cavalosquando uma ninhada de patinhos órfãos desfilouceleiro adentro, piando baixinho e procurando umlugar onde não fossem pisoteados. Quitériaprotegeu-os com a pata dianteira, e os patinhos alise aconchegaram, caindo no sono. No últimoinstante, Mimosa, a égua branca, vaidosa e fútil,que puxava a charrete do sr. Jones, entrou,requebrando-se graciosamente e mastigando umtorrão de açúcar. Tomou lugar bem à frente e ficoumeneando a crina branca, na esperança de chamaratenção para as fitas vermelhas que a adornavam.Por fim, chegou a gata, que buscou, como sempre,o lugar mais morno, enfiando-se entre Sansão eQuitéria; ronronou satisfeita durante toda a fala doMajor, sem ouvir uma só palavra.

Todos os animais estavam presentes, excetoMoisés, o corvo domesticado, que dormia fora,num poleiro junto à porta dos fundos. Quando oMajor os viu, bem acomodados e aguardando

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atentamente, limpou a garganta e começou:“Camaradas, já ouvistes, por certo, algo a

respeito do estranho sonho que tive a noitepassada. Mas falarei do sonho mais tarde. Antes,tenho outras coisas a dizer. Sei, camaradas, quenão estarei convosco por muito mais tempo, eantes de morrer considero uma obrigaçãotransmitir-vos o que aprendi sobre o mundo. Jávivi bastante, e muito tenho refletido na solidão daminha pocilga. Creio poder afirmar quecompreendo a natureza da vida sobre esta terra tãobem quanto qualquer outro animal vivente. É sobreo que desejo vos falar.

“Então, camaradas, qual é a natureza destanossa vida? Enfrentemos a realidade: nossa vida émiserável, trabalhosa e curta. Nascemos,recebemos o mínimo alimento necessário paracontinuar respirando, e os que podem trabalhar sãoexigidos até a última parcela de suas forças; noinstante em que nossa utilidade acaba, trucidam-nos com hedionda crueldade. Nenhum animal naInglaterra sabe o que é felicidade ou lazer apóscompletar um ano de vida. Nenhum animal na

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Inglaterra é livre. A vida do animal é feita demiséria e escravidão: essa é a verdade nua e crua.

“Será isso, apenas, a ordem natural das coisas?Será esta nossa terra tão pobre que não ofereçacondições de vida decente aos seus habitantes?Não, camaradas, mil vezes não! O solo daInglaterra é fértil, o clima é bom, ela pode daralimento em abundância a um número de animaismuitíssimo maior do que o existente. Só esta nossafazenda comportaria uma dúzia de cavalos, umasvinte vacas, centenas de ovelhas — vivendo todosnum conforto e com uma dignidade que agora estãoalém de nossa imaginação. Por que, então,permanecemos nesta miséria? Porque quase todo oproduto do nosso esforço nos é roubado pelosseres humanos. Eis aí, camaradas, a resposta atodos os nossos problemas. Resume-se em uma sópalavra — Homem. O Homem é o nossoverdadeiro e único inimigo. Retire-se da cena oHomem e a causa principal da fome e dasobrecarga de trabalho desaparecerá para sempre.

“O Homem é a única criatura que consome semproduzir. Não dá leite, não põe ovos, é fraco

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demais para puxar o arado, não corre o que dêpara pegar uma lebre. Mesmo assim, é o senhor detodos os animais. Põe-nos a mourejar, dá-nos devolta o mínimo para evitar a inanição e fica com orestante. Nosso trabalho amanha o solo, nossoestrume o fertiliza, e no entanto nenhum de nóspossui mais que a própria pele. As vacas, que aquivejo à minha frente, quantos litros de leite terãoproduzido neste ano? E que aconteceu a esse leite,que poderia estar alimentando robustosbezerrinhos? Desceu pela garganta dos nossosinimigos. E as galinhas, quantos ovos puseramneste ano, e quantos se transformaram empintinhos? Os restantes foram para o mercado,fazer dinheiro para Jones e seus homens. E você,Quitéria, diga-me onde estão os quatro potrinhosque deveriam ser o apoio e o prazer da suavelhice. Foram vendidos com a idade de um ano— nunca mais você os verá. Como paga por seusquatro partos e por todo o seu trabalho no campo,que recebeu você, além de ração e baia?

“Mesmo miserável como é, nossa vida nãochega nem ao fim de modo natural. Não me queixo

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por mim, que tive até muita sorte. Estou com dozeanos e sou pai de mais de quatrocentos porcos.Isto é a vida normal de um barrão. Mas no fimnenhum animal escapa ao cutelo. Vós, jovensleitões que estais sentados à minha frente, nãoescapareis de guinchar no cepo dentro de um ano.Todos chegaremos a esse horror, as vacas, osporcos, as galinhas, as ovelhas, todos. Nem mesmoos cavalos e os cachorros escapam a esse destino.Sansão, no dia em que seus músculos fortesperderem a rigidez, Jones o mandará para ocarniceiro, e você será degolado e fervido paraalimentar os cães de caça. Quanto aos cachorros,depois de velhos e desdentados, Jones amarra-lhesuma pedra ao pescoço e os atira na primeira lagoa.

“Não está, pois, claro como água, camaradas,que todos os males da nossa existência têm origemna tirania dos humanos? Basta que nos livremos doHomem para que o produto de nosso trabalho sejasó nosso. Praticamente, da noite para o dia,poderíamos nos tornar ricos e livres. Que fazer,então? Trabalhar dia e noite, de corpo e alma, paraa derrubada do gênero humano. Esta é a mensagem

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que eu vos trago, camaradas: rebelião! Não seidizer quando será esta revolução, pode ser daqui auma semana ou daqui a um século, mas uma coisaeu sei, tão certo quanto vejo esta palha sob meuspés: mais cedo ou mais tarde, justiça será feita.Fixai isso, camaradas, para o resto de vossascurtas vidas! E, sobretudo, transmiti esta minhamensagem aos que virão depois de vós, para queas futuras gerações continuem na luta até a vitória.

“E lembrai-vos, camaradas, jamais deixaifraquejar vossa decisão. Nenhum argumento vospoderá desviar. Fechai os ouvidos quando vosdisserem que o Homem e os animais têm interessescomuns, que a prosperidade de um é aprosperidade dos outros. É tudo mentira. OHomem não busca interesses que não os delepróprio. Que haja entre nós, animais, uma perfeitaunidade, uma perfeita camaradagem na luta. Todosos homens são inimigos, todos os animais sãocamaradas.”

Nesse momento houve uma tremenda confusão.Enquanto o Major falava, quatro ratos haviamrastejado para fora de seus buracos e estavam

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sentados nas patinhas de trás, a ouvi-lo. Derepente, os cachorros lhes deram pela presença, esomente pela rapidez com que sumiram nosburacos foi que os ratos conseguiram escapar comvida. O Major levantou a pata, pedindo silêncio.

“Camaradas”, disse ele, “eis aí um ponto queprecisa ser esclarecido. As criaturas rebeldes, taiscomo os ratos e os coelhos, serão nossos amigosou nossos inimigos? Coloquemos o assunto emvotação. Apresento à assembleia a seguintequestão: são os ratos camaradas?”

A votação foi realizada imediatamente, econcluiu-se, por esmagadora maioria, que os ratoseram camaradas. Houve apenas quatro votoscontra, dos três cachorros e da gata, que, depois sedescobriu, votara pelos dois lados. O Majorprosseguiu:

“Pouco mais tenho a dizer. Repito apenas:lembrai-vos sempre do vosso dever de inimizadepara com o Homem e todos os seus desígnios. Oque quer que ande sobre duas pernas é inimigo, oque quer que ande sobre quatro pernas, ou tenhaasas, é amigo. Lembrai-vos também de que na luta

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contra o Homem não devemos ser como ele.Mesmo quando o tenhais derrotado, evitai-lhe osvícios. Animal nenhum deve morar em casas, nemdormir em camas, nem usar roupas, nem beberálcool, nem fumar, nem tocar em dinheiro, nemcomerciar. Todos os hábitos do Homem são maus.E principalmente, jamais um animal deverátiranizar outros animais. Fortes ou fracos, espertosou simplórios, somos todos irmãos. Todos osanimais são iguais.

“E agora, camaradas, vou contar-vos o sonhoque tive na noite passada. Não sei o que significa.Foi um sonho sobre como será o mundo quando oHomem desaparecer. Mas lembrou-me algo quehavia muito eu esquecera. Há anos, quando euainda era um leitãozinho, minha mãe e as outrasporcas costumavam cantar uma antiga canção daqual só conheciam a melodia e as três primeiraspalavras. Na minha infância aprendi a melodia,depois a esqueci. Na noite passada, entretanto, elame voltou à memória. O mais interessante é queme lembrei também dos versos — os quais, tenhocerteza, foram cantados pelos animais de antanho,

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depois esquecidos por muitas gerações. Vou cantaressa canção, camaradas. Estou velho, e minha vozé rouca, mas quando vos houver ensinado amelodia, podereis cantá-la melhor que eu. Chama-se ‘Bichos da Inglaterra’.”

O velho Major limpou a garganta e começou acantar. De fato, a voz era roufenha, mas eleentoava bem, e a melodia era bastantemovimentada, algo entre “Clementine” e “Lacucaracha”. Os versos diziam:

Bichos da Inglaterra e da Irlanda,Daqui, dali, de acolá,Escutai a alvissareiraNovidade que virá.Mais hoje, mais amanhã,O Tirano vem ao chão,E os campos da InglaterraSó os bichos pisarão.Não mais argolas nas ventas,Dorsos livres dos arreios,Freio e espora enferrujandoE relho em cantos alheios.Riqueza incomensurável,

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Terra boa, muito grão,Trigo, cevada e aveia,Pastagem, feno e feijão.Lindos campos da Inglaterra,Ribeiros com águas puras,Brisas leves circulando,Liberdade nas alturas.Lutemos por esse diaMesmo que nos custe a vida.Gansos, vacas e cavalos,Todos unidos na lida.Bichos da Inglaterra e da Irlanda,Daqui, dali, de acolá,Levai esta minha mensagemE o futuro sorrirá.

O canto levou a bicharada à mais extremaexcitação. Mesmo antes de o Major chegar ao fim,já haviam começado a cantar por conta própria.Até os mais parvos pegaram a melodia e algumaspalavras; os mais vivos, tais como os porcos e oscachorros, decoraram a canção em minutos. Então,depois de algumas tentativas, a granja toda atacou“Bichos da Inglaterra” em potente uníssono. As

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vacas mugiam a canção, os cachorros latiam, asovelhas baliam, os cavalos relinchavam, os patosgrasnavam. Foi tal o enlevo que cantaram cincovezes corridas, de ponta a ponta, e teriam cantadoa noite toda se não fossem interrompidos.

Infelizmente, o alarido acordou Jones, que pulouda cama certo de que havia raposa no pátio.Deitou a mão na espingarda, sempre pronta numcanto do quarto, e disparou uma carga de chumbogrosso na escuridão. O chumbo foi encravar-se naparede do celeiro, e a reunião dispersou-se numabrir e fechar de olhos. Cada qual correu para seupouso. As aves saltaram para os poleiros, o gadodeitou-se na palha e, em poucos instantes, toda afazenda dormia.

*

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2.Daí a três noites, faleceu o velho Major,

tranquilamente, durante o sono. Seu corpo foienterrado no fundo do pomar.

Começava o mês de março. Nos três mesesseguintes houve uma intensa atividade secreta. Aspalavras do Major haviam dado uma perspectivade vida inteiramente nova aos animais de maiorinteligência da granja. Não sabiam quando terialugar a Rebelião predita pelo Major, nem tinhamrazões para acreditar que fosse durante aexistência deles próprios, mas percebiamclaramente o dever de aprestar-se para ela. Atarefa de instruir e organizar os outros recaiunaturalmente sobre os porcos, reconhecidos comoos mais inteligentes dos bichos. Salientavam-se,entre eles, dois jovens barrões, Bola-de-Neve e

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Napoleão, que o sr. Jones criava para vender.Napoleão era um cachaço berkshire, de aparênciaameaçadora, o único berkshire da fazenda, poucofalante, mas com a reputação de ter grande forçade vontade. Bola-de-Neve era mais ativo queNapoleão, de palavra mais fácil, mais imaginoso,porém não gozava da mesma reputação quanto àsolidez de caráter. Todos os demais porcos dafazenda eram castrados. Dentre estes, o maisconhecido era um porquinho gordo chamadoGarganta, de bochechas redondas, olhos semprepiscando, movimentos lépidos e voz aguda.Manejava a palavra com brilho, e quando discutiaalgum ponto mais difícil tinha o hábito de darpulinhos de um lado para o outro e abanar orabicho, uma coisa bastante persuasiva. Diziamque Garganta era capaz de convencer de que pretoera branco.

Esses três haviam organizado os ensinamentosdo Major num sistema de pensamento a que deramo nome de Animalismo. Várias noites por semana,depois que Jones dormia, faziam reuniões secretasno celeiro e expunham aos outros os princípios do

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Animalismo. De início, encontraram certa apatia emuita ignorância. Alguns animais mencionavam odever de lealdade para com Jones, a quem sereferiam como o “dono”, ou emitiam comentárioselementares do tipo: “O senhor Jones nos alimenta.Se ele fosse embora, nós morreríamos de fome”.Outros faziam perguntas como: “Que importa o queacontecerá depois da nossa morte?”, ou: “Se essaRebelião virá de qualquer maneira, que diferençafaz trabalharmos por ela ou não?”; e os porcostinham grande dificuldade em fazê-los ver que issoia contra o espírito do Animalismo. As perguntasmais estúpidas eram sempre as de Mimosa, a éguabranca. A primeira pergunta que ela fez a Bola-de-Neve foi:

“Ainda haverá açúcar depois da Rebelião?”“Não”, Bola-de-Neve respondeu firmemente.

“Não temos meio de obter açúcar nesta fazenda.Além do mais, você não precisa de açúcar. Masterá toda a aveia e o feno que quiser.”

“E ainda vou poder usar laço de fita na crina?”,perguntou Mimosa.

“Camarada”, explicou Bola-de-Neve, “essas

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fitas que você tanto estima são o distintivo daservidão. Não vê que a liberdade vale mais quelaços de fita?”

Mimosa sempre concordava, mas não dava aimpressão de estar lá muito convencida.

Muito mais ainda lutaram os porcos paraneutralizar as mentiras espalhadas por Moisés, ocorvo doméstico. Moisés, mascote do sr. Jones,era um espião linguarudo, mas também de boaconversa. Afirmava a existência de uma regiãomisteriosa, a Montanha de Açúcar-Cande, paraonde iam os animais após a morte. Essa montanhaficava em algum lugar no céu, pouco acima dasnuvens, segundo Moisés. Na Montanha de Açúcar-Cande, os sete dias da semana eram domingos, oano inteiro era época de trevo, e as sebes davamtorrões de açúcar e bolinhos de linhaça. Os bichosdetestavam Moisés, porque vivia de histórias enão trabalhava, porém alguns acreditavam naMontanha de Açúcar-Cande, e os porcos travaramgrandes discussões para convencê-los de que esselugar não existia.

Os discípulos mais fiéis eram os dois cavalos

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de tração, Sansão e Quitéria. Ambos tinhamenorme dificuldade em pensar qualquer coisa porsi próprios; todavia, aceitando os porcos comoinstrutores, absorviam tudo quanto lhes era dito epassavam adiante para os outros animais porsimples repetição. Jamais faltavam aos encontrossecretos no celeiro e davam o tom para o canto de“Bichos da Inglaterra”, que sempre encerrava asreuniões.

Afinal, a Rebelião ocorreu muito mais cedo ebem mais facilmente do que se esperava. Jonesfora, no passado, um patrão duro, mas competente.Agora estava em decadência. Desestimulado coma perda de dinheiro numa ação judicial, dera parabeber muito além do que devia. Às vezes passavadias inteiros recostado em sua cadeira de braços,na cozinha, lendo os jornais, bebendo e dando aMoisés cascas de pão molhadas na cerveja. Seuspeões eram vadios e desonestos, o campo estavacoberto de erva daninha, os galpões careciam detelhas novas, as cercas estavam caindo, e osanimais tinham fome.

Junho chegou, e o feno estava quase pronto para

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o corte. Na véspera do solstício de verão, umsábado, Jones foi a Willingdon e bebeu tanto noLeão Vermelho que só voltou ao meio-dia dedomingo. Os homens ordenharam as vacas demanhã cedo e saíram para caçar lebres, sem tratarda forragem dos animais. Ao voltar, Jones caiudormindo no sofá da sala com o News of the Worldsobre o rosto; portanto, ao cair da tarde, osanimais ainda não haviam comido. Aquilo já erademais. Uma das vacas rebentou a chifradas aporta do celeiro, e os bichos avançaram sobre astulhas. Nesse momento, Jones acordou. Num átimo,ele e seus quatro peões estavam no celeiro com oschicotes na mão, batendo a torto e a direito. Issoultrapassou tudo quanto os animais famintospodiam suportar. De comum acordo, muito emboranada fosse planejado, lançaram-se sobre seusverdugos. Jones e os homens viram-se de repentemarrados e escoiceados de todo lado. A situaçãofugira ao controle. Nunca tinham visto os animaisdaquele jeito, e a súbita revolta de criaturas queeles estavam acostumados a surrar e maltratar àvontade os encheu de pavor. Em poucos instantes

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largaram de defender-se e deram o fora. Umminuto depois, os cinco voavam pela trilha rumo àestrada, com os bichos no encalço, triunfantes.

A mulher de Jones olhou pela janela do quarto,viu o que ocorria, juntou às pressas alguns haveresnuma bolsa de pano e escapuliu da granja poroutro caminho. Moisés levantou voo do poleiro ebateu asas atrás dela, grasnando. A essa altura, osanimais haviam posto Jones e os peões para forada granja, fechando atrás deles a porteira dascinco barras. E assim, antes de se darem conta, aRebelião vencera. Jones fora expulso, e a Granjado Solar era deles.

Durante os primeiros minutos, os bichos malpuderam acreditar na sorte. Seu primeiro ato foigalopar pelos limites da granja, como a ver senenhum ser humano ficara escondido; depois,correram de volta às casas da granja, para varreros últimos vestígios do odiado império de Jones.O galpão dos arreios, no fundo dos estábulos, foiarrombado; freios, argolas de nariz, correntes decachorro, as cruéis facas com que Jones castravaos porcos e os cordeiros, foi tudo atirado no fundo

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do poço. As rédeas, os cabrestos, os antolhos e osdegradantes bornais foram jogados na fogueira queardia no pátio. O mesmo destino tiveram os relhos.Os bichos saltaram de alegria quando viram oschicotes em chamas. Bola-de-Neve jogou tambémao fogo as fitas que enfeitavam as crinas e caudasdos cavalos em dias de feira.

“Fitas”, disse ele, “devem ser consideradasroupas, que são a marca do ser humano. Todos osanimais têm de andar nus.”

Ao ouvir isso, Sansão foi buscar o chapeuzinhode palha que usava no verão para proteger suasorelhas das moscas, e o atirou também no fogo.

Em pouco tempo, os bichos destruíram tudo oque lhes recordava Jones. Napoleão conduziu-osde volta ao celeiro e serviu uma ração dupla demilho para todo mundo, dois biscoitos para cadacachorro. Cantaram, então, “Bichos da Inglaterra”do começo ao fim sete vezes, depois deitaram-se edormiram como nunca.

Porém, como sempre, acordaram de madrugada,e ao lembrar-se do glorioso evento da véspera,correram para a pastagem. A pequena distância,

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havia um morrete donde se via quase toda afazenda. Os animais subiram e olharam em volta, àluz clara da manhã. Sim, era deles — tudo o queenxergavam era deles! No êxtase dessa percepção,deram cambalhotas e saltos de contentamento.Rolaram no orvalho, comeram a deliciosa gramado verão, arrancaram torrões de terra e aspiraramaquele rico aroma. Depois fizeram um circuito deinspeção em toda a granja, vistoriando, com mudaadmiração, a lavoura, o campo de feno, o pomar, alagoa, o arvoredo. Era como se nunca tivessemvisto aquilo, e mal podiam acreditar: tudo eradeles.

Voltaram, então, para as casas da granja epararam silenciosos em frente à porta da casa-grande. Era deles também, mas ficaram com medode entrar. Após alguns instantes, porém, Bola-de-Neve e Napoleão forçaram a porta a trancos, e osanimais entraram em fila indiana, caminhando como maior cuidado para não desarrumar nada.Andaram na ponta dos pés, de um aposento para ooutro, falando baixinho e olhando com certareverência o luxo inacreditável, as camas, os

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colchões de penas, os espelhos, o sofá de crina, otapete de Bruxelas, a litografia da rainha Vitóriasobre a lareira da sala de estar. Quando desciamas escadas, deram pela falta de Mimosa. Voltando,descobriram-na no quarto principal. Haviaapanhado no toucador da sra. Jones um pedaço defita azul, e segurava-o contra a espádua,admirando-se no espelho com trejeitos ridículos.Repreenderam-na acerbamente, e saíram todos.Alguns presuntos, pendurados na cozinha, foramlevados para fora e enterrados; o barril de cervejada copa foi rebentado com um coice de Sansão;além disso, nada mais foi tocado na casa. Alimesmo aprovou-se, por unanimidade, a resoluçãode conservá-la como museu. Concordaram em quenenhum animal jamais deveria morar lá.

Os bichos tomaram o café da manhã e foramoutra vez convocados por Bola-de-Neve eNapoleão.

“Camaradas”, disse Bola-de-Neve, “são seis equinze, e temos um longo dia pela frente.Iniciaremos hoje a colheita do feno. Mas antes, háoutro assunto de que devemos tratar.”

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Os porcos revelaram que, nos últimos trêsmeses, haviam aprendido a ler e a escrever, numvelho livro de ortografia que pertencera aos filhosde Jones e fora jogado no lixo. Napoleão mandoubuscar latas de tinta preta e tinta branca e marchouà frente até a porteira das cinco barras, que davapara a estrada principal. Então, Bola-de-Neve(que escrevia melhor) pegou o pincel entre asjuntas da pata, cobriu de tinta o nome GRANJA DO

SOLAR do travessão superior e, em seu lugar,escreveu GRANJA DOS BICHOS. Seria esse o nome dagranja dali em diante. Depois disso, voltaram paraas casas da granja; Bola-de-Neve e Napoleãomandaram buscar uma escada e fizeram-naencostar à parede do fundo do celeiro grande.Explicaram que, segundo os estudos que haviamfeito nos últimos três meses, era possível resumiros princípios do Animalismo em SeteMandamentos. Esses Sete Mandamentos seriamagora escritos na parede, constituindo a leiinalterável pela qual a Granja dos Bichos deveriareger sua vida para sempre.

Com alguma dificuldade (pois não é fácil para

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um porco equilibrar-se numa escada de mão),Bola-de-Neve subiu e começou a trabalhar,enquanto Garganta, alguns degraus abaixo,segurava a lata de tinta. Os Mandamentos foramescritos na parede alcatroada em grandes letrasbrancas que podiam ser lidas a muitos metros dedistância.

Eram os seguintes:OS SETE MANDAMENTOS1. Qualquer coisa que ande sobre duaspernas é inimigo.2. O que andar sobre quatro pernas, ou tiverasas, é amigo.3. Nenhum animal usará roupa.4. Nenhum animal dormirá em cama.5. Nenhum animal beberá álcool.6. Nenhum animal matará outro animal.7. Todos os animais são iguais.

Foi tudo muito bem escrito, e com exceção dapalavra “álcool”, que saiu “álcol”, e de um dos S,desenhado ao contrário, a ortografia estavacorreta. Bola-de-Neve leu o que escrevera, em vozalta, para os demais. Todos os bichos balançaram

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a cabeça, de pleno acordo, e os mais atentoscomeçaram logo a decorar os Mandamentos.

“Agora, camaradas”, disse Bola-de-Neve,deixando cair o pincel, “ao campo de feno! Équestão de honra fazer a colheita em menos tempodo que Jones e sua gente.”

Nesse momento, porém, as vacas, que já vinhamdando sinais de inquietação, começaram a mugir.Há vinte e quatro horas não eram ordenhadas, etinham os úberes quase estourando. Depois dealguma reflexão, os porcos pediram baldes eordenharam as vacas razoavelmente bem, poisseus cascos adaptavam-se à tarefa. Tiraram cincobaldes de um leite espumante e cremoso, quemuitos dos animais olharam com considerávelinteresse.

“Que vamos fazer com esse leite?”, perguntoualguém.

“Jones, às vezes, misturava um pouco ao nossofarelo”, disse uma galinha.

“Não vos ocupeis do leite, camaradas!”,exclamou Napoleão, postando-se à frente dosbaldes. “Nós trataremos desse assunto. A colheita

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é mais importante. O camarada Bola-de-Neve vosconduzirá. Eu irei dentro de alguns minutos.Avante, camaradas! O feno espera.”

Os animais rumaram ao campo de feno para oinício da colheita, e quando voltaram, à noitinha,perceberam que o leite havia desaparecido.

*

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3.Como trabalharam para juntar aquele feno! Mas

valeu o esforço, pois a colheita deu resultado bemmelhor do que esperavam.

Por vezes, a tarefa foi dura; os implementosdestinavam-se ao uso de humanos, e foi de enormedesvantagem o fato de nenhum bicho poder utilizarferramentas que exigissem a posição em pé sobreas patas traseiras. Mas os porcos eram tãoimaginosos que conseguiam contornar todas asdificuldades. Os cavalos conheciam cada palmodo terreno, e na realidade sabiam ceifar e rasparmuito melhor do que Jones e os empregados. Osporcos não trabalhavam, propriamente, masdirigiam e supervisionavam o trabalho dos outros.Donos de um conhecimento maior, era natural queassumissem a liderança. Sansão e Quitéria

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atrelavam-se à ceifadeira ou à grade (é claro quenão havia mais necessidade de freios nem derédeas) e andavam pelo campo para lá e para cá,com um porco atrás gritando “Eia, camarada” ou“A volta, agora, camarada”, conforme o caso. Ecada animal, até o mais modesto, labutou paracolher e juntar o feno. Até os patos e as galinhasciscavam o dia inteiro sob o sol, carregando nobico pequeninos feixes de feno. Enfim, terminarama colheita dois dias antes do tempo que Jones e ospeões normalmente levavam. Mas, além disso, foia maior colheita que jamais se realizara ali. Nãohouve o mínimo desperdício; as galinhas e ospatos, com sua vista penetrante, juntaram até omenor talinho. E nenhum animal na granja furtousequer uma bocada.

Por todo aquele verão o trabalho da granjaandou como um relógio. Os bichos, felizes comonunca. Cada bocado de comida constituía umextremo prazer, agora que a comida era realmentedeles, produzida por eles e para eles, em vez deser distribuída em pequenas quantidades por umdono cheio de má vontade. Ausentes os inúteis

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parasitas humanos, mais sobrava para cada um.Houve também mais lazer, muito embora osanimais fossem inexperientes nisso. Encontrarammuitas dificuldades — por exemplo, no fim doano, quando colheram os cereais, foram obrigadosa pisá-los, à moda antiga, e a soprar as cascas,pois a granja não possuía uma debulhadeira —,mas os porcos, com a inteligência, e Sansão, comseus músculos fantásticos, sobrepujavam-nas.Sansão era a admiração de todos. Já eratrabalhador no tempo de Jones; agora, como quevalia por três. Dias houve em que todo o trabalhoda granja parecia cair em seu lombo. Da manhã ànoite, lá estava ele, puxando e empurrando, sempreno lugar onde o trabalho era mais pesado. Fizeraum trato com um dos galos para ser chamado todasas manhãs meia hora mais cedo que os demais, eaproveitava esse tempo em trabalho voluntário noque parecesse mais necessário. Sua solução paracada problema, para cada contratempo, era“Trabalharei mais ainda”, frase que adotara comoseu lema particular.

Cada qual trabalhava de acordo com sua

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capacidade. As galinhas e os patos, por exemplo,economizaram cinco baldes de trigo na colheita,catando grãos extraviados. Ninguém roubava,ninguém resmungava a respeito das rações. Adiscórdia, as mordidas, o ciúme, coisas normaisnos velhos tempos, tinham quase desaparecido.Ninguém se esquivava ao trabalho — ou quaseninguém. É bem verdade que Mimosa não gostavade levantar cedo e costumava abandonar otrabalho antes dos demais, alegando estar com umapedra encravada no casco. E o comportamento dagata era um tanto estranho. Em seguida notou-seque ela nunca podia ser encontrada quando haviatrabalho por fazer. Desaparecia por várias horasconsecutivas e voltava a aparecer na hora dasrefeições, ou à tardinha, após o fim da jornada,como se nada houvesse acontecido. Tinha, porém,desculpas tão convincentes e ronronava demaneira tão carinhosa que era impossível não crerem suas boas intenções. O velho Benjamim, oburro, nada mudara após a Revolução. Executavasua tarefa da mesma forma obstinadamente lentacomo o fazia nos tempos de Jones. Não se

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esquivava ao trabalho normal, mas nunca eravoluntário para extraordinários. Sobre a revoluçãoe seus resultados não emitia opinião. Quando lheperguntavam se não era mais feliz, agora que Jonesse havia ido, respondia apenas: “Os burros vivemmuito tempo. Nenhum de vocês jamais viu umburro morto”, e os outros tinham de contentar-secom essa obscura resposta.

Aos domingos, não se trabalhava. A refeição damanhã era uma hora mais tarde, e depois delahavia uma cerimônia que se realizava todas assemanas, indefectivelmente. Começava com ohasteamento da bandeira. Bola-de-Neve achara, nodepósito, uma velha toalha verde de mesa, epintara no centro, em branco, um chifre e umcasco. Essa era a bandeira que subia ao topo domastro no pátio da casa todos os domingos pelamanhã. O verde da bandeira, explicava Bola-de-Neve, representava os verdes campos daInglaterra, ao passo que o chifre e o cascosimbolizavam a futura República dos Bichos, cujoadvento teria lugar no dia em que o gênerohumano, enfim, desaparecesse. Após o

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hasteamento da bandeira, iam todos ao grandeceleiro, para assistir a uma assembleia-geralconhecida como a Reunião. Lá planejavam otrabalho da semana seguinte e debatiam asresoluções. Eram sempre os porcos quepropunham resoluções. Os outros bichosaprenderam a votar, mas nunca conseguiramimaginar uma resolução por conta própria. Bola-de-Neve e Napoleão eram os mais ativos nosdebates. Notou-se, porém, que os dois nuncaestavam de acordo: qualquer sugestão de um podiacontar, na certa, com a oposição do outro. Mesmoquando se resolveu — coisa que, em si, não podiasofrer a objeção de ninguém — que o potreirosituado além do pomar seria reservado para osanimais aposentados, houve uma agitada discussãoa respeito da idade de aposentadoria para cadaclasse de animal. A Reunião era encerrada semprecom o hino “Bichos da Inglaterra”, e a tardedestinava-se à recreação.

Os porcos reservaram o depósito de ferramentaspara sede da direção. Ali, à noite, estudavamforjaria, carpintaria e outras artes necessárias, em

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livros trazidos da casa-grande. Bola-de-Neveocupava-se também da organização dos outrosbichos através dos chamados Comitês de Animais.Formou o Comitê da Produção de Ovos para asgalinhas, a Liga das Caudas Limpas para as vacas,o Comitê de Reeducação dos Camaradas Arredios(cujo objetivo era domesticar ratos e coelhos), oMovimento Pró-Lã Mais Branca, que congregavaas ovelhas, e outros mais, além da criação decursos para ensinar a ler e escrever. De maneirageral, esses projetos foram um fracasso. Atentativa de domesticar os elementos silvestres,por exemplo, falhou em pouco tempo. Elescontinuaram a portar-se como dantes, esimplesmente tiravam vantagem do fato quandotratados com generosidade. A gata ingressou noComitê de Reeducação, e por algum tempo militoumuito ativa. Um dia foi vista, sentada num telhado,a doutrinar alguns pardais pousados pouco alémdo seu alcance. Dizia-lhes que todos os animaisagora eram camaradas, e qualquer pardal que odesejasse poderia vir pousar na sua mão; mas ospardais preferiram ficar de longe.

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As aulas de ler e escrever, pelo contrário,fizeram enorme sucesso. Pelo outono, quase todosos bichos estavam alfabetizados, uns mais, outrosmenos.

Os porcos já liam e escreviam muito bem. Oscães aprenderam a ler razoavelmente, mas não seinteressavam pela leitura de nada além dos SeteMandamentos. Maricota, a cabra, lia um poucomelhor que os cães e costumava ler para osdemais, à noite, os pedaços de jornal que achavano lixo. Benjamim sabia ler tão bem quanto osporcos, mas não exercia sua faculdade. Ao quesoubesse — costumava dizer — não havia o quevalesse a pena ler. Quitéria aprendeu todo oalfabeto, mas não conseguia juntar as letras.Sansão não foi capaz de ir além da letra D.Riscava na areia, com a pata, as letras A, B, C, De ficava olhando, com as orelhas murchas, àsvezes sacudindo o topete, tentando com todas assuas forças lembrar-se do que vinha depois,inutilmente. É verdade que em várias ocasiõesaprendeu E, F, G, H, mas ao consegui-lo descobriasempre que havia esquecido A, B, C, D. Afinal

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decidiu contentar-se com as quatro primeirasletras, e costumava escrevê-las um par de vezespor dia, a fim de refrescar a memória. Mimosarecusou-se a aprender mais do que as seis letrasque compunham seu nome. Formava-as, bemcertinhas, com pedaços de ramos, enfeitava oconjunto com uma ou duas flores e ficava andandoem volta, a admirá-las.

Nenhum dos outros animais da granja chegoualém da letra A. Notou-se também que os maisestúpidos, tais como as ovelhas, as galinhas e ospatos, eram incapazes de aprender de cor os SeteMandamentos. Depois de muito pensar, Bola-de-Neve declarou que, na verdade, os SeteMandamentos podiam ser condensados numa únicamáxima, que era: “Quatro pernas bom, duas pernasruim”. Aí se continha, segundo ele, o princípioessencial do Animalismo. Quem o adotasse comfirmeza estaria a salvo das influências humanas. Aprincípio, os pássaros fizeram objeções, pois lhesparecia que estavam na categoria das duas pernas,porém Bola-de-Neve provou não ser esse o caso:

“A asa de uma ave, camaradas, é órgão de

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propulsão, e não de manipulação. Deveria servista mais como uma perna. O que distingue oHomem é a mão, o instrumento com que eleperpetra toda a sua maldade.”

As aves não compreenderam as palavras deBola-de-Neve, mas aceitaram a explicação, e osbichos mais modestos dedicaram-se a aprender decor a nova máxima — QUATRO PERNAS BOM, DUAS

PERNAS RUIM —, que foi escrita na parede do fundodo celeiro, acima dos Sete Mandamentos, e emletras bem maiores. Depois que conseguiramdecorá-la, as ovelhas tomaram-se de uma enormepredileção por essa máxima, e frequentemente,deitadas no pasto, ficavam a balir “Quatro pernasbom, duas pernas ruim!” durante horas a fio.

Napoleão não mostrou interesse nenhum peloscomitês de Bola-de-Neve. Dizia que a educaçãodos jovens era mais importante que qualquer coisaem favor dos adultos. Aconteceu que Lulu eBranca deram cria logo após a colheita do feno,parindo nove robustos cachorrinhos. Tão logoforam desmamados, Napoleão tirou-os das mães,dizendo que ele próprio se responsabilizaria por

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sua educação. Levou-os para um sótão que sópodia ser alcançado pela escada do depósito, e osmanteve em tal reclusão que o resto da fazendalogo se esqueceu de sua existência.

O mistério do leite de pronto se esclareceu. Eramisturado à comida dos porcos. As maçãs estavamamadurecendo, e a grama do pomar cobria-se defrutas derrubadas pelo vento. Os bichos acharamque as frutas seriam distribuídas equitativamente;certo dia, porém, chegou ordem para que todas asfrutas caídas fossem recolhidas e levadas aodepósito das ferramentas para o consumo dosporcos. Alguns bichos murmuraram a respeito, masfoi inútil. Os porcos estavam todos de acordosobre esse ponto, até mesmo Bola-de-Neve eNapoleão. Garganta foi enviado aos outros, paradar explicações.

“Camaradas!”, conclamou. “Não imaginais,suponho, que nós, os porcos, fazemos isso porespírito de egoísmo e privilégio. Muitos de nós aténem gostamos de leite e de maçã. Eu, por exemplo,não gosto. Nosso único objetivo ao ingerir essascoisas é preservar a saúde. O leite e a maçã (está

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provado pela ciência, camaradas) contêmsubstâncias absolutamente necessárias à saúde dosporcos. Nós, porcos, somos trabalhadoresintelectuais. A organização e a direção destagranja dependem de nós. Dia e noite velamos pelovosso bem-estar. É por vossa causa que bebemosaquele leite e comemos aquelas maçãs. Sabeis oque sucederia se os porcos falhassem em suamissão? Jones voltaria! Sim, Jones voltaria! Comtoda a certeza, camaradas”, gritou Garganta, quasesuplicante, dando pulinhos de um lado para outro esacudindo o rabicho, “com toda a certeza, não hádentre vós quem queira Jones de volta.”

Ora, se havia algo sobre o que todos os animaisestavam de acordo era o fato de nenhum delesdesejar a volta de Jones. Quando o assunto foicolocado sob essa luz, não tiveram mais o quedizer. A importância de manter a boa saúde dosporcos ficou óbvia. Foi, portanto, resolvido semmais discussões que o leite e as maçãs caídas(bem como toda a colheita de maçãs, quandoamadurecessem) seriam reservados para osporcos.

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*

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4.Pelo fim do verão, a notícia do que sucedera na

Granja dos Bichos já se espalhara pelo condado.Todos os dias, Bola-de-Neve e Napoleãoenviavam formações de pombos com instrução demisturarem-se aos animais das granjas vizinhas,contar-lhes a história da Rebelião e ensinar-lhes amelodia de “Bichos da Inglaterra”.

Jones passava a maior parte desse tempo nataverna do Leão Vermelho, em Willingdon,queixando-se, a quem quisesse ouvir, damonstruosa injustiça que sofrera ao ser expulso desua granja por uma súcia de animais imprestáveis.Os outros granjeiros eram-lhe simpáticos, emprincípio, mas inicialmente não lhe deram muitaajuda. No fundo, cada um imaginava em segredoalguma forma de tirar vantagem do infortúnio de

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Jones. Era uma sorte que os proprietários das duasgranjas lindeiras com a dos bichos vivessem emmás relações. Uma delas, chamada Foxwood, erauma granja grande, abandonada e antiquada,coberta de mato, com as pastagens cansadas e assebes malcuidadas. O dono, o sr. Pilkington, eraum fazendeiro amador, bom sujeito, que passava amaior parte do tempo caçando ou pescando,conforme a estação. A outra granja, chamadaPinchfield, era menor e muito bem cuidada. Oproprietário era o sr. Frederick, homem rude esagaz, sempre envolvido em litígios e comreputação de sempre levar a melhor em paradasmuito difíceis. Os dois se hostilizavam tanto quelhes era sumamente difícil chegar a qualqueracordo, mesmo em defesa de seus própriosinteresses.

Só que ambos estavam muito assustados com arebelião na Granja dos Bichos e queriam evitarque seus próprios animais tomassem maiorconhecimento do assunto. De início, fingiram achargraça na ideia de bichos dirigirem uma granja. Ocaso todo estaria acabado em coisa de semanas,

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diziam. Espalharam que os animais da Granja doSolar (insistiam em chamá-la Granja do Solar, nãoadmitindo o nome Granja dos Bichos) estavamlutando entre si e não tardariam a definhar até amorte. Como o tempo passava e os animaisevidentemente não morriam, Frederick e Pilkingtonmudaram de tom e passaram a falar nas terríveisperversidades que estavam ocorrendo na Granjados Bichos. Foi dito que os animais lá praticavamo canibalismo, torturavam uns aos outros comferraduras ao rubro e tinham suas fêmeas emcomum. Isso era o que advinha do desrespeito àsleis da natureza, diziam Frederick e Pilkington.

Entretanto, nunca ninguém acreditou muitonessas histórias. Boatos de um sítio maravilhoso,onde acabaram os seres humanos e os bichostomavam conta dos próprios negócios,continuavam a circular, de forma vaga edistorcida, e durante todo aquele ano uma onda derevolta correu a região. Touros que sempre haviamsido mansos repentinamente enfureceram, asovelhas passavam as sebes e comiam o trevo, asvacas coiceavam os tarros, os cavalos da caça à

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raposa refugavam as cercas, jogando os cavaleirosdo outro lado. Mas sobretudo, a melodia e mesmoa letra de “Bichos da Inglaterra” eram sabidas emtoda parte. O hino espalhara-se com espantosarapidez. Os humanos não aguentavam de raiva aoouvirem a canção, embora a desdenhassem comosimplesmente ridícula. Não dava para entender,diziam, que mesmo animais chegassem ao ponto decantar aquela droga. O bicho flagrado a cantá-laera açoitado na hora. Ainda assim, a canção erairreprimível. Os melros a trinavam pousados nascercas, as pombas arrulhavam-na nos olmeiros, eela pervagava nas marteladas dos ferreiros e nobimbalhar dos sinos das igrejas. E os humanos, aoouvi-la, tremiam secretamente ante aquela profeciade sua desgraça.

No início de outubro, quando o trigo já foracolhido, amontoado e em parte até debulhado, umarevoada de pombos chegou num turbilhão e pousouno pátio da Granja dos Bichos, presa de grandepavor. Jones e todos os seus homens, com maismeia dúzia de Foxwood e Pinchfield, haviamentrado pela porteira das cinco barras e vinham

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subindo a trilha que conduzia à fazenda. Todosarmados de bastões, exceto Jones, que marchava àfrente com uma espingarda na mão. Eraevidentemente uma tentativa de recuperar a granja.

Há muito isso era esperado, e os preparativosvinham sendo feitos. Bola-de-Neve, que estudaraum velho livro sobre as campanhas de Júlio Césarachado na casa-grande, estava encarregado dasoperações defensivas. Ligeiro deu suas ordens, elogo cada animal estava em seu posto.

Quando os humanos chegaram perto das casas,Bola-de-Neve lançou o primeiro ataque. Ospombos, em número de trinta e cinco, voaram emsortidas sobre os homens e defecaram sobre eles;enquanto os homens debatiam-se com isso, osgansos, até então escondidos nas sebes, avançarambicando-lhes as pernas malevolamente. Mas eraapenas uma pequena manobra de escaramuça,destinada a criar confusão, e os humanos tiveramfacilidade em espantar os gansos com os bastões.Então, Bola-de-Neve lançou sua segunda vaga deataque. Maricota, Benjamim e as ovelhas, comBola-de-Neve à frente, arremeteram sobre os

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homens, marrando, mordendo e escoiceando-os detodo lado, Benjamim fustigando-os pelas costascom seus pequenos cascos. Novamente, porém, oshomens com os bastões e os coturnos rústicosforam mais fortes; e de repente, a um guincho deBola-de-Neve, que era o sinal para bater emretirada, todos os bichos deram meia-volta eatravessaram o portão em disparada para dentrodo pátio.

Os homens soltaram um brado de triunfo. Viram,tal como haviam imaginado, o inimigo em fuga, ese lançaram em seu encalço desordenadamente.Era justo o que Bola-de-Neve queria. Tão logoeles entraram no pátio, os três cavalos, as trêsvacas e o restante dos porcos, que estavamemboscados atrás do estábulo, surgiram-lhes deinopino à retaguarda, cortando a retirada. Bola-de-Neve deu o sinal de carga. Ele próprio correu nadireção de Jones. Vendo-o, Jones levantou a armae atirou. Os projéteis abriram riscos sangrentos nodorso de Bola-de-Neve, e uma ovelha caiu morta.Sem titubear um só instante, Bola-de-Neve lançouos seus cem quilos contra as pernas de Jones. O

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homem foi jogado sobre um monte de esterco, e aarma voou-lhe das mãos. Porém, o espetáculo maisaterrorizante em tudo aquilo era Sansão, erguendo-se nos posteriores e dando manotaços com seusenormes cascos ferrados, feito um garanhão. Logono primeiro golpe atingiu o crânio de umcavalariço de Foxwood, que caiu prostrado semvida na lama. Diante disso, vários homenslargaram os bastões e tentaram correr. O pânicotomou conta deles, e em poucos momentos osanimais os caçavam em volta do pátio. Eles foramchifrados, lanhados, mordidos e atropelados. Nãohouve bicho da granja que não tirasse desforra,cada um à sua moda. Até a gata, inesperadamente,saltou de um telhado sobre as costas de um peão,cravando-lhe as unhas no pescoço e fazendo ohomem dar um berro de dor. Em dado momento,desimpedida a saída, os homens conseguiram fugirdo pátio e saíram em desabalada carreira rumo àestrada principal. E assim, poucos minutos após ainvasão, batiam em retirada vergonhosa pelomesmo caminho da vinda, com uma multidão degansos no seu encalço, bicando-lhes as pernas sem

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piedade.Todos os homens haviam fugido, exceto um. No

pátio, Sansão empurrava, com a pata, o cavalariçoque jazia de bruços na lama, tentando virá-lo. Maso rapaz não se mexia.

“Está morto”, disse Sansão, penalizado. “Eu nãoqueria fazer isso. Esqueci que estava deferraduras. Quem acreditará que não fiz isso depropósito?”

“Nada de sentimentalismos, camarada!”, gritouBola-de-Neve, de cujos ferimentos o sanguecorria. “Guerra é guerra. Humano bom é humanomorto.”

“Eu não desejo tirar a vida de quem quer queseja, nem mesmo de um ser humano”, repetiuSansão, com os olhos cheios de lágrimas.

“Onde está Mimosa?”, perguntou alguém.Mimosa realmente havia desaparecido. Por

momentos, houve grande alarme. Temeu-se que oshomens a tivessem ferido ou mesmo levado comeles. Por fim, foi encontrada em sua própria baia,com a cabeça escondida no feno da manjedoura.Havia fugido no momento do tiro da espingarda. E

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quando voltaram, depois de encontrá-la, foi paradescobrir que o cavalariço, que na verdade haviaapenas desmaiado, voltara a si e desaparecera.

Os bichos, então, tornaram a reunir-se, presasde grande entusiasmo, cada qual narrando suasfaçanhas na batalha com a voz mais alta queconseguia. Uma celebração de improviso realizou-se imediatamente. A bandeira foi hasteada, ecantou-se “Bichos da Inglaterra” muitas vezes;depois a ovelha morta recebeu funerais solenes,sendo plantado em seu túmulo um ramo deespinheiro. Ao pé do túmulo, Bola-de-Neve fez umpequeno discurso, pondo em relevo a necessidadede todos os animais estarem prontos a morrer pelaGranja dos Bichos, se necessário.

Os animais decidiram, por unanimidade, criaruma condecoração militar, a Herói Animal,Primeira Classe, conferida ali mesmo a Bola-de-Neve e a Sansão. Consistia numa medalha debronze (era, na realidade, bronze dos arreiosachados no galpão de ferramentas) para ser usadanos domingos e feriados. Criaram também a HeróiAnimal, Segunda Classe, conferida postumamente

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à ovelha morta.Houve muita discussão quanto ao nome a ser

dado à batalha. Por fim, ela foi chamada Batalhado Estábulo, o lugar onde se armara a emboscada.A espingarda de Jones foi encontrada na lama.Havia uma boa quantidade de cartuchos na casa-grande, e ficou decidido que colocariam a arma aopé do mastro, como uma peça de artilharia, edariam uma salva duas vezes ao ano — uma no dia12 de outubro, aniversário da Batalha do Estábulo,e outra no dia 24 de junho, aniversário daRebelião.

*

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5.Com a chegada do inverno, Mimosa tornou-se

cada vez mais importuna. Todas as manhãsatrasava-se para o trabalho e dava a desculpa dedores misteriosas, embora gozasse de excelenteapetite. A qualquer pretexto largava o trabalho e iapara o açude, em cuja beira permanecia admirandoa própria imagem refletida na água. Corriamtambém boatos de maior seriedade. Um dia,quando Mimosa entrou no pátio, toda contente,sacudindo a cauda e mascando um talo de feno,Quitéria abordou-a.

“Mimosa”, disse ela, “tenho um assunto muitosério para tratar. Hoje de manhã vi você olhandopor cima da sebe que separa a nossa granja deFoxwood. Do outro lado estava um empregado dosenhor Pilkington. E ele — embora eu estivesse

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longe, tenho quase certeza de que vi isso — falavacom você e fazia festa em seu focinho. Que querdizer isso, Mimosa?”

“Ele não fez! Eu não estava! Não é verdade!”,gritou Mimosa, agitando-se e escarvando a terra.

“Mimosa! Olhe nos meus olhos. Você me dá suapalavra de honra de que o homem não a tocou nofocinho?”

“Não é verdade!”, repetiu Mimosa, sem olharQuitéria de frente, depois virou-se e galopou parao campo.

Quitéria teve uma ideia. Sem dizer nada aninguém, foi à baia de Mimosa e virou a palha como casco. Ali estavam, escondidos, um montinho detorrões de açúcar e vários novelos de fitas dediversas cores.

Três dias mais tarde, Mimosa desapareceu.Durante algumas semanas ninguém teve notícias deseu paradeiro, até que os pombos trouxeram oinforme de que a haviam visto na parte maisafastada de Willingdon, atrelada a uma bonitacharrete vermelha e preta, em frente a uma taverna.Um homem gordo, de rosto vermelho, calças

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xadrez e polainas, com todo o tipo deestalajadeiro, passava-lhe a mão no focinho edava-lhe torrões de açúcar. Estava de pelo bemtosado e usava uma fita escarlate no topete.Parecia muito satisfeita, disseram os pombos. Osbichos nunca mais falaram em Mimosa.

Em janeiro, o tempo piorou terrivelmente. Aterra, dura como ferro, não permitia o trabalho nocampo. Houve muitas reuniões no celeiro grande, eos porcos passaram ao planejamento dos trabalhosa realizar na estação seguinte. Ficara acertado queos porcos, sendo manifestamente mais inteligentesque os outros animais, decidiriam todas asquestões referentes à política agrícola da granja,embora suas decisões devessem ser ratificadaspelo voto da maioria. Essa combinação teriafuncionado muito bem, não fossem as disputasentre Bola-de-Neve e Napoleão. Esses doisdiscordavam em todos os pontos passíveis dediscordância. Se um propunha o aumento da áreade plantio de cevada, era certo que o outroproporia uma área maior para o cultivo de aveia, ese um dissesse que tais e tais lotes eram ótimos

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para plantar repolho, o outro diria que sóprestavam para nabos. Cada qual tinha seusseguidores, e havia debates violentos. Nasreuniões, Bola-de-Neve frequentemente obtinha amaioria, por seus discursos brilhantes, porémNapoleão era o melhor na cabala de apoio duranteos intervalos. Obtinha sucesso especial com asovelhas. Ultimamente elas haviam criado o hábitode balir “Quatro pernas bom, duas pernas ruim”em ocasiões próprias ou impróprias, e muitasvezes interrompiam a reunião dessa maneira.Notou-se que mostravam especial disposição deatacar o “Quatro pernas bom, duas pernas ruim”justo quando Bola-de-Neve chegava a ummomento crucial de seus discursos. Bola-de-Neveestudara atentamente alguns números atrasados darevista O Agricultor e o Criador de Gado,encontrados na casa-grande, e andava com acabeça cheia de projetos de invenções emelhoramentos. Falava com grande conhecimentode causa sobre drenagens, ensilagem, escóriasbásicas, e havia elaborado um complexo esquemasegundo o qual os bichos evacuariam diretamente

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no campo, em pontos diferentes cada dia, paraeconomizar o trabalho do transporte de esterco.Napoleão não fazia projetos próprios, apenas diziacom toda a calma que os de Bola-de-Neve nãodariam em nada e parecia aguardar sua vez. Detodas as divergências, porém, nenhuma foi tãoséria quanto a do moinho de vento.

Não muito longe das casas havia um outeiro queera o ponto mais alto da granja. Depois de realizaruma pesquisa no solo, Bola-de-Neve declarou sero local ideal para a construção de um moinho devento que poderia acionar um dínamo e suprir deenergia elétrica toda a granja. As baias teriam luze aquecimento no inverno, haveria força para umaserra circular, para moagem de cereais, para ocorte da beterraba de forragem e para um sistemade ordenha elétrica. Os animais nunca tinhamsequer ouvido falar nessas coisas (pois a granjaera antiquada, com aparelhagem das maisprimitivas) e escutaram boquiabertos Bola-de-Neve fazer desfilar como por encanto, ante suaimaginação, as figuras dos aparelhos maisespetaculares, máquinas que fariam todo o serviço

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em seu lugar, enquanto eles aproveitariam a folgapastando ou cultivando a mente através da leitura eda conversação.

Em poucas semanas, o projeto de Bola-de-Nevepara o moinho de vento ficou pronto. Os detalhesmecânicos foram retirados principalmente de trêslivros que haviam pertencido ao sr. Jones — Milcoisas úteis para sua casa, Seja o seu própriopedreiro e Eletricidade para principiantes. Bola-de-Neve utilizou como estúdio um galpão queantes abrigara incubadoras e cujo piso era demadeira lisa, própria para desenhar. Lápermanecia horas a fio, com os livros abertos sobo peso de uma pedra e uma barra de giz entre asduas pontas do casco. Andava lépido para lá epara cá, riscando linhas e mais linhas e soltandoguinchos de entusiasmo.

Aos poucos o projeto foi se transformando numacomplicada massa de manivelas e engrenagens quecobria quase metade do assoalho, e que os outrosanimais achavam completamente ininteligível —mas impressionante. Pelo menos uma vez por dia,cada um vinha olhar os desenhos de Bola-de-

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Neve. Até as galinhas e os patos apareciam,pisando com grande dificuldade para não estragaros riscos de giz. Apenas Napoleão permaneceudesinteressado. Havia se declarado contra omoinho de vento desde o início. Um dia,entretanto, chegou de surpresa para ver o projeto.Caminhou pesado em volta do galpão, olhoudetidamente cada detalhe do desenho, farejou-ouma ou duas vezes, depois deteve-se a contemplá-lo por alguns instantes pelo canto dos olhos; entãode repente levantou a pata, urinou sobre o projetoe saiu sem proferir palavra.

A granja estava profundamente dividida comrespeito ao moinho de vento. Bola-de-Neve nãonegava que sua construção era um empreendimentodifícil. Seria necessário carregar pedras etransformá-las em paredes, depois construir aspás, e por fim haveria necessidade de dínamos efios (onde seriam encontrados, Bola-de-Neve nãodizia). Mas afirmava que tudo poderia ser feito emum ano. Depois disso, dizia, tanto trabalho seriapoupado que bastariam apenas três dias detrabalho por semana. Napoleão, por seu lado,

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argumentava que a grande necessidade domomento era aumentar a produção de alimentos, eque eles morreriam de fome se perdessem tempocom o moinho de vento. Os animais dividiram-seem duas facções que se alinhavam sob os dísticos:“Vote em Bola-de-Neve e na semana de três dias”e “Vote em Napoleão e na manjedoura cheia”.Benjamim foi o único animal que não tomoupartido. Recusava-se a crer, tanto em que haveriafartura de alimento como em que o moinho devento economizaria trabalho. Moinho ou nãomoinho, dizia ele, a vida seguiria como sempre —ou seja, mal.

Além da disputa sobre o moinho de vento, haviao problema da defesa da granja. Eles bem sabiamque, embora os humanos tivessem sido derrotadosna Batalha do Estábulo, poderiam fazer outratentativa, mais em força, para retomar a granja erestaurar Jones. Tinham as melhores razões paratentar, pois a notícia da derrota se espalhara portodo o interior e tornara os animais das granjasvizinhas mais rebeldes do que nunca. Como dehábito, Bola-de-Neve e Napoleão não estavam de

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acordo. Segundo Napoleão, o que os animaisdeveriam fazer era conseguir armas de fogo einstruir-se em seu emprego. Bola-de-Neve achavaque deveriam enviar mais e mais pombos eprovocar a rebelião entre os bichos das outrasgranjas. O primeiro argumentava que, incapazes dedefender-se, estavam destinados à submissão; ooutro alegava que, fomentando revoluções em todaparte, não teriam necessidade de defender-se. Osanimais ouviam Napoleão, depois Bola-de-Neve,e não chegavam a conclusão nenhuma sobre quemtinha razão; na verdade, estavam sempre de acordocom quem falava no momento.

Por fim, chegou o dia em que o projeto de Bola-de-Neve ficou pronto. Na reunião do domingoseguinte deveria ser posta em votação a questão decomeçar ou não o trabalho no moinho de vento.Quando os animais se reuniram no grande celeiro,Bola-de-Neve levantou-se e, embora fosseinterrompido de vez em quando pelo balido dasovelhas, expôs suas razões em favor da construçãodo moinho de vento. Depois levantou-seNapoleão, para rebater. Disse calmamente que o

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moinho de vento era uma tolice e que nãoaconselhava ninguém a votar a favor daquilo.Sentou-se de novo; falara durante trinta segundos,se tanto, e parecia indiferente ao resultado. Anteisso, Bola-de-Neve pôs-se de pé outra vez, calou agritos as ovelhas, que começavam a balir de novo,e irrompeu num candente apelo em favor domoinho de vento. Até então, os bichos estavamquase igualmente divididos em sua simpatia, masnum instante a eloquência de Bola-de-Nevearrastou a todos. Com sentenças ardentes, pintouum quadro de como poderia ser a Granja dosBichos quando o trabalho sórdido fosse tirado dosombros de todos. Sua imaginação ia agora além damó de cereais e do corta-nabos. A eletricidade —disse ele — ia mover debulhadoras, arados,grades, rolos compressores, ceifeiras e atadeiras,além de prover a cada baia sua própria luz, águaquente e fria e um aquecedor elétrico. Quandoparou de falar, não havia mais dúvida quanto aoresultado da votação. Porém nesse exato instanteNapoleão levantou-se, e dando uma estranhaolhadela de viés para Bola-de-Neve, soltou um

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guincho estridente que ninguém nunca ouvira antes.Houve um terrível latido do lado de fora, e nove

cães enormes usando coleiras tachonadas debronze entraram aos saltos no celeiro. Jogaram-sesobre Bola-de-Neve, que saltou do lugar ondeestava mal a tempo de escapar àquelas presas.Num instante, zuniu porta afora com os cães emseu encalço. Espantados e aterrorizados demaispara falar, os bichos amontoaram-se na porta paraobservar a caçada. Bola-de-Neve corria pelocampo em direção à estrada, como só um porcosabe correr, mas os cachorros se aproximavam. Derepente ele caiu, e pareceu que o pegariam. Maslevantou-se outra vez e voou como umdesesperado. Já os cães o alcançavam de novo.Um deles quase fechou as mandíbulas no rabichode Bola-de-Neve, que o sacudiu bem na hora. Aífez um esforço extremo e, ganhando algumaspolegadas, se enfiou por um buraco da sebe esumiu.

Calados e aterrados, os animais voltaramfurtivamente para dentro do celeiro. Logochegaram os cachorros, latindo. A princípio,

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ninguém pôde imaginar de onde tinham vindoaquelas criaturas, mas o mistério logo se aclarou:eram os cachorrinhos que Napoleão havia tomadodas mães e criado em segredo. Embora ainda nãotivessem completado o crescimento, já eram cãesenormes, mal-encarados como lobos.Permaneceram junto a Napoleão, e notou-se quesacudiam a cauda para ele da mesma maneiracomo os outros cachorros outrora faziam paraJones.

Napoleão, com os cães a segui-lo, subiu para oestrado de onde o Major fizera seu discurso.Anunciou que daquele momento em dianteterminariam as reuniões aos domingos de manhã.Eram desnecessárias, disse ele, uma perda detempo. Para o futuro, todos os problemasrelacionados com o funcionamento da granjaseriam resolvidos por uma comissão de porcos,presidida por ele, que se reuniria em particular edepois comunicaria as decisões aos demais. Osanimais continuariam a reunir-se aos domingospara saudar a bandeira, cantar “Bichos daInglaterra” e receber as ordens da semana; não

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haveria debates.A despeito do estado de choque em que a

expulsão de Bola-de-Neve os deixara, os bichoscaíram das nuvens com aquela notícia. Váriosteriam protestado, se conseguissem achar osargumentos. Até Sansão ficou um tanto inquieto.Murchou as orelhas, sacudiu o topete várias vezese fez um esforço tremendo para pôr em ordem asideias; mas afinal não conseguiu pensar em nadapara dizer. Alguns porcos, porém, tinham maiorflexibilidade de raciocínio. Quatro jovens porcoscastrados, colocados na primeira fila, soltaramaltos guinchos de protesto e levantaram-se, falandoa um só tempo. Mas os cachorros, junto deNapoleão, deram um rosnado fundo e ameaçador, eos porcos calaram-se, sentando-se de novo. Aíestrondaram as ovelhas um formidável balido de“Quatro pernas bom, duas pernas ruim”, que duroucerca de um quarto de hora, acabando comqualquer hipótese de discussão.

Mais tarde, Garganta foi mandado percorrer agranja para explicar a nova situação aos demais.

“Camaradas”, ele disse, “tenho certeza de que

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cada animal compreende o sacrifício que oCamarada Napoleão faz ao tomar sobre seusombros mais esse trabalho. Não penseis,camaradas, que a liderança seja um prazer. Pelocontrário, é uma enorme e pesadaresponsabilidade. Ninguém mais que o CamaradaNapoleão crê firmemente que todos os bichos sãoiguais. Feliz seria ele se pudesse deixar-vos tomardecisões por vossa própria vontade; mas às vezespoderíeis tomar decisões erradas, camaradas; eentão, onde iríamos parar? Suponhamos quetivésseis decidido seguir Bola-de-Neve, com suasmiragens de moinho de vento — logo Bola-de-Neve, que, como hoje sabemos, não passava de umcriminoso?”

“Ele foi valente na Batalha do Estábulo”, dissealguém.

“Valentia não basta”, respondeu Garganta. “Alealdade e a obediência são mais importantes. Equanto à Batalha do Estábulo, acredito, tempo viráem que verificaremos que o papel de Bola-de-Neve foi muito exagerado. Disciplina, camaradas,disciplina férrea! Esse é o lema para os dias que

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correm. Um passo em falso, e o inimigo estarásobre nós. Por certo, camaradas, não quereis Jonesde volta, hein?”

Uma vez mais, esse argumento erairrespondível. Sem dúvida alguma, os bichos nãodesejavam Jones de volta; e se a realização dosdebates dominicais podia ter essa consequência,então que cessassem os debates. Sansão, que játivera tempo de pensar, expressou o sentimentogeral: “Se é o que diz o Camarada Napoleão, deveestar certo”. E daí por diante adotou a máxima“Napoleão tem sempre razão”, acrescentando-a aoseu lema particular “Trabalharei mais ainda”.

Já com o tempo melhor, iniciou-se a arada daprimavera. O galpão em que Bola-de-Nevedesenhara o projeto do moinho de vento foitrancado, e os desenhos, provavelmente apagados.Todos os domingos, às dez horas, os animaisreuniam-se no grande celeiro para receber asordens da semana. A caveira do velho Major, jásem carnes, fora desenterrada e colocada sobre umtoco ao pé do mastro, junto da espingarda. Após ohasteamento da bandeira, os animais deviam

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desfilar reverentemente perante a caveira, antes deentrar no celeiro. Já não sentavam todos juntos,como antes. Napoleão, com Garganta e outroporco chamado Mínimo, dono de notável talentopara compor canções e poemas, aboletavam-sesobre a parte fronteira da plataforma, os novecachorros em semicírculo ao redor deles, e osoutros porcos atrás. O restante dos animais ficavade frente para eles, no chão do celeiro. Napoleãolia as ordens da semana num áspero estilo militar,e após cantarem uma única vez “Bichos daInglaterra”, os animais se dispersavam.

No terceiro domingo após a expulsão de Bola-de-Neve, os bichos ficaram muito surpresos aoouvir Napoleão anunciar que o moinho de ventoseria finalmente construído. Napoleão não deunenhuma explicação sobre o motivo que o fizeramudar de ideia, apenas alertando os animais deque essa tarefa extraordinária significaria trabalhomais duro, podendo até ser necessário reduzirem-se as rações. O projeto, entretanto, estavaformulado até o último detalhe. Uma comissãoespecial de porcos trabalhara nele durante as três

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últimas semanas. A construção do moinho devento, com vários outros melhoramentos, deverialevar dois anos.

Naquela tarde, Garganta explicou aos outrosbichos, em particular, que Napoleão nunca foracontra a construção do moinho de vento. Pelocontrário, ele é que advogara a ideia desde oinício, e o projeto que Bola-de-Neve haviadesenhado no assoalho do galpão das incubadorasfora, na realidade, roubado de entre os papéis deNapoleão. O moinho de vento era, na verdade,criação do próprio Napoleão. Por que, então,perguntou alguém, ele falou tanto contra o moinho?Garganta olhou, manhoso. Aí é que estava aesperteza do Camarada Napoleão, disse. Elefingira ser contra o moinho de vento, apenas comomanobra para livrar-se de Bola-de-Neve, que eraum péssimo caráter e uma influência perniciosa.Agora que Bola-de-Neve saíra do caminho, oprojeto podia prosseguir sem a sua interferência.Isso, disse Garganta, era uma coisa chamadatática. Repetiu inúmeras vezes: “Tática,camaradas, tática!”, saltando à roda e sacudindo o

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rabicho, com um riso jovial. Os bichos nãoestavam muito certos do significado da palavra,mas Garganta falava de modo tão persuasivo, etrês cachorros — que por coincidência estavamcom ele — rosnavam tão ameaçadores que elesaceitaram a explicação sem mais perguntas.

*

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6.Todo aquele ano, os bichos trabalharam feito

escravos. Mas trabalhavam felizes; não mediamesforço ou sacrifício, cientes de que tudo quantofizessem reverteria em benefício deles próprios edos de sua espécie, que estavam por vir, e não emproveito de um bando de seres humanospreguiçosos e aproveitadores.

Na primavera e no verão, enfrentaram umasemana de sessenta horas de trabalho, e em agostoNapoleão fez saber que haveria trabalho tambémnos domingos à tarde. Esse trabalho eraestritamente voluntário, porém o bicho que nãoaceitasse teria sua ração diminuída pela metade.Mesmo assim, ficou alguma coisa por fazer. Acolheita foi pouco menor que a do ano anterior, eduas lavouras, que deveriam receber nabos no

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início do verão, não foram plantadas por não tersido possível ará-las a tempo. Era fácil prever queo inverno seria bastante duro.

A construção do moinho de vento apresentoudificuldades imprevistas. Havia na granja uma boapedreira, e grande quantidade de areia e cimentofora encontrada num depósito, portanto o materialpara a construção existia e estava à mão. Oproblema que os animais não conseguiramresolver, de início, foi o de quebrar as pedras notamanho desejado. Não parecia haver outramaneira senão com furadeiras e alavancas, coisasque nenhum animal podia usar, porque não lhes erapossível ficar sobre duas patas. Somente apóssemanas de trabalho em vão foi que ocorreu aalguém a ideia certa — aproveitar a força dagravidade. Pelo leito da pedreira jaziam pedrasenormes, demasiado grandes para ser usadas comoestavam. Os bichos amarravam cordas em tornodas pedras, e todos juntos, cavalos, vacas,ovelhas, todo animal que fosse capaz de segurar oscabos — em certos momentos críticos até osporcos entravam no grupo —, arrastavam-nas com

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desesperadora lentidão até o ponto mais elevadoda pedreira, de cuja borda eram derrubadas paradespedaçarem-se embaixo. O transporte daspedras, uma vez quebradas, era relativamentesimples. Os cavalos carregavam-nas em carroças,as ovelhas arrastavam blocos individuais, atémesmo Maricota e Benjamim atrelaram-se a umavelha charrete e fizeram sua parte. No fim doverão já haviam acumulado um bom estoque depedras, e então começou a construção, sob asuperintendência dos porcos.

Entretanto, o processo era demorado elaborioso. Muitas vezes, levavam um dia inteiropara arrastar uma pedra das maiores até o topo dapedreira, e era frequente que, atirada pela borda,ela não quebrasse. Nada se teria feito sem Sansão,cuja força parecia igual à de todos os outrosbichos juntos. Quando a pedra começava aescorregar e os animais gritavam de desespero aose ver arrastados ladeira abaixo, era sempreSansão que retesava os cabos e continha a pedra.Vê-lo na faina da subida, palmo a palmo, com arespiração acelerada, os costados molhados de

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suor e as pontas dos cascos cravadas no solo, eraalgo que enchia a todos de admiração. Quitériarecomendava-lhe que tivesse cuidado e não seesforçasse demais, mas Sansão não lhe davaouvidos. As duas máximas “Trabalharei maisainda” e “Napoleão tem sempre razão” pareciamresolver todos os seus problemas. Pediu a um dosgalos que o acordasse três quartos de hora maiscedo, pela manhã, em vez de meia hora. E nosmomentos de folga, coisa que nos últimos temposnão sucedia muito amiúde, ia sozinho à pedreira,juntava um monte de pedras quebradas e puxava-oaté o local do moinho de vento, sem ajuda deninguém.

Os bichos não passaram muito mal aqueleinverno, malgrado a dureza do trabalho. Se nãodispunham de mais alimentos do que no tempo deJones, também não tinham menos. A vantagem desó terem a si próprios para alimentar, sem os cincoesbanjadores seres humanos, era tão grande quecompensava bem algumas faltas. E em muitosaspectos seus métodos eram mais eficientes eeconômicos. Certas tarefas, como, por exemplo, a

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limpeza de ervas daninhas, podiam ser realizadascom uma perfeição impossível para os humanos. Ecomo nenhum animal roubava, não houvenecessidade de separar as pastagens das terrasaráveis, o que evitou o grande trabalho daconstrução de cercas e porteiras. Mesmo assim, àmedida que o verão passava, alguma escassezimprevista começou a se fazer sentir. Faltaramóleo de parafina, pregos, corda, biscoitos para oscachorros e ferraduras para os cavalos, coisas quenão podiam ser fabricadas na granja. Mais tarde,faltaram também sementes e adubo artificial, alémde vários tipos de ferramentas, e finalmente amaquinaria para o moinho de vento. Como obterisso tudo, ninguém conseguia imaginar.

Um domingo de manhã, quando os bichos sereuniram para receber as ordens, Napoleãoanunciou sua decisão de encetar uma nova política.A partir daquele dia, a Granja dos Bichos passariaa comerciar com as da vizinhança; naturalmente,sem nenhum objetivo de lucro, mas com o fitoúnico de obter algumas mercadorias urgentementenecessárias. As exigências do moinho de vento

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deviam sobrepujar tudo o mais, disse. Emconsequência, ele estava tratando da venda de umagrande meda de feno e de parte da safra de trigodaquele ano; mais tarde, caso fosse necessáriomais dinheiro, teria de ser obtido com a venda deovos, para os quais sempre havia mercado emWillingdon. As galinhas, disse Napoleão,deveriam agradecer a oportunidade de ofereceresse sacrifício, como contribuição especial emprol da construção do moinho de vento.

Os animais sentiram outra vez uma vagainquietude. Nunca ter contato com seres humanos,nunca comerciar, jamais usar dinheiro — pois nãoestavam tais coisas entre as primeiras moçõespassadas naquela formidável Reunião inicial, logoapós a expulsão de Jones? Todos se lembravam daaprovação dessas resoluções — ou pelo menosjulgavam lembrar-se. Os quatro jovens porcoscastrados que haviam protestado quando Napoleãoacabara com as reuniões levantaram timidamente avoz, mas foram logo silenciados pelo rosnarmedonho dos cachorros. Nesse instante, como dehábito, as ovelhas irromperam em “Quatro pernas

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bom, duas pernas ruim!”, e a momentâneaimpertinência foi abafada. Finalmente, Napoleãolevantou a pata ordenando silêncio e declarou quejá havia tomado todas as providências. Nãohaveria necessidade de nenhum animal entrar emcontato com seres humanos, coisa que seria damaior inconveniência. Ele pretendia tomar sobreseus ombros toda essa carga. Um certo sr.Whymper, que era advogado em Willingdon,concordara em atuar como intermediário entre aGranja dos Bichos e o mundo exterior, e viria àgranja todas as segundas-feiras pela manhã, a fimde receber instruções. Napoleão finalizou odiscurso com sua exclamação habitual de “Viva aGranja dos Bichos!”, e após cantarem “Bichos daInglaterra” os animais foram dispensados.

Depois, Garganta percorreu a granja paratranquilizá-los. Assegurou-lhes que tal resoluçãocontra o engajamento no comércio e o uso dedinheiro jamais fora aprovada, aliás nem sequerapresentada. Era pura imaginação, eprovavelmente tinha origem em mentirasinventadas por Bola-de-Neve. Alguns bichos ainda

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estavam em dúvida, porém Garganta, astuto,perguntou: “Vocês estão certos de que nãosonharam? Existe algum registro dessa resolução?Está escrita em algum lugar?”. E uma vez querealmente não existia nada assim escrito, osanimais se convenceram do engano.

Todas as segundas-feiras o sr. Whympervisitava a granja, conforme o combinado. Era umhomenzinho finório, de suíças crescidas,procurador de pouca clientela, porém vivo osuficiente para perceber, antes de qualquer outro,que a Granja dos Bichos precisaria de umrepresentante e que as comissões seriam polpudas.Os bichos olhavam suas idas e vindas com umcerto receio e evitavam-no tanto quanto possível.Apesar disso, ver Napoleão, de quatro, dandoordens a Whymper, que permanecia em pé sobreduas pernas, era uma coisa que lhes acariciava oorgulho e parcialmente os reconciliava com a novasituação. As relações com o gênero humanoandavam bem diferentes. Os humanos não odiavammenos a Granja dos Bichos, agora que elaprosperava; na verdade, odiavam-na mais que

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nunca. Todo ser humano tinha como certo que agranja iria à bancarrota mais cedo ou mais tarde e,sobretudo, que o moinho de vento seria umfracasso. Reuniam-se nas tavernas e provavam unsaos outros, por meio de gráficos e diagramas, queo moinho estava fadado a desabar e, caso semantivesse erguido, jamais funcionaria. Nãoobstante, mesmo contra a vontade, haviam criadocerto respeito pela eficiência com que os bichosconduziam seus assuntos. Sintoma disso foi o fatode começarem a chamar o sítio de Granja dosBichos, deixando de fingir que ela ainda sechamava Granja do Solar. Haviam tambémacabado com o cartaz de Jones, que perdera toda aesperança de reaver sua granja e fora viver noutrolugar. Até agora, exceto através de Whymper, nãohouvera contato entre a Granja dos Bichos e omundo exterior, mas já circulavam insistentesboatos de que Napoleão estava por chegar a umdecisivo acordo de negócios, ora com Pilkington,de Foxwood, ora com Frederick, de Pinchfield —mas nunca, interessante, com ambos ao mesmotempo.

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Foi mais ou menos por essa época que osporcos, de repente, se mudaram para a casa-grande, onde fixaram residência. Mais uma vez osbichos julgaram lembrar-se de que havia umaresolução contra isso, aprovada nos primeirosdias, e de novo Garganta conseguiu convencê-losdo contrário. Era absolutamente necessário, eledisse, que os porcos, sendo os cérebros da granja,tivessem um lugar calmo onde trabalhar. Alémdisso, viver numa casa era mais adequado àdignidade do Líder (nos últimos tempos dera parareferir-se a Napoleão pelo título de “Líder”) doque viver numa simples pocilga. Mesmo assim,alguns animais se aborreceram ao ouvir dizer queos porcos não só faziam as refeições na cozinha eutilizavam a sala como local de recreação, masainda dormiam nas camas. Sansão resolveu oassunto com seu “Napoleão tem sempre razão”;Quitéria, porém, que tinha a impressão de lembrar-se de uma lei específica contra camas, foi até ofundo do celeiro e tentou decifrar os SeteMandamentos que lá estavam escritos. Sentindo-seincapaz de ler mais do que algumas letras

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separadamente, foi chamar Maricota.“Maricota”, pediu, “leia para mim, por favor, o

Quarto Mandamento. Não diz qualquer coisa denunca dormir em camas?”

Com alguma dificuldade, Maricota soletrou omandamento:

“Diz que ‘Nenhum animal dormirá em cama comlençóis’.”

Curioso, Quitéria não se recordava dessamenção a lençóis no Quarto Mandamento. Mas seestava escrito na parede, devia haver. E Garganta,que por acaso passava nesse momento,acompanhado de dois cachorros, colocou todo oassunto na perspectiva adequada.

“Com que então vocês, camaradas, ouviramdizer que nós, os porcos, agora dormimos nascamas da casa? E por que não? Vocês nãosupunham, por certo, que houvesse uma lei contracamas, não é? A cama é meramente o lugar ondese dorme. Vendo bem, um monte de palha noestábulo é uma cama. A lei era contra os lençóis,que são uma invenção humana. Nós retiramos oslençóis das camas da casa e dormimos entre

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cobertores. Confortáveis, lá isso são! Porém nãomais do que necessitamos, posso afirmar,camaradas, com todo o trabalho intelectual queatualmente recai sobre nós. Vocês não seriamcapazes de negar-nos o repouso, camaradas,seriam? Não desejariam nos ver tão cansados quenão pudéssemos cumprir nossa missão, não éverdade? Será que alguém quer Jones de volta?”

Os animais tranquilizaram-no a esse respeito, enão se falou mais no fato de os porcos dormiremnas camas da casa. E quando se anunciou, algunsdias depois, que os porcos passariam a levantar-se, de manhã, uma hora mais tarde que os outrosbichos, ninguém se queixou disso também.

Ao chegar o outono, os animais estavamcansados mas felizes. Haviam tido um ano difícil,e após a venda de uma parte da safra de feno e detrigo, os estoques para o inverno não eram lá muitoabundantes, mas o moinho de vento compensavatudo. Já estava quase pela metade. Após a colheitahouve um período de tempo bom, e os bichostrabalharam mais do que nunca, satisfeitos com atarefa de andar para lá e para cá puxando blocos

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de pedras, desde que com isso conseguissem fazera parede subir mais alguns centímetros. Sansãochegava a trabalhar de noite, uma hora ou duas,por sua conta, à luz da lua. Nas horas de folga osanimais passeavam em volta do moinho inacabado,admirando a solidez e a verticalidade de suasparedes, maravilhados com o fato de terem sidocapazes de construir algo tão imponente. Somenteo velho Benjamim se recusava a entusiasmar-secom o moinho de vento, embora, como sempre,não pronunciasse nada além do enigmáticocomentário de que os burros vivem muito tempo.

Novembro chegou, com fortes ventos desudoeste. Foi preciso interromper a construção,pois o tempo estava úmido demais para a misturade cimento. Finalmente, houve uma noite em que atormenta foi tão forte que os galpões da granjatremeram na base e várias telhas do celeiro foramarrancadas. As galinhas acordaram cacarejandoaterrorizadas, pois haviam sonhado, todas aomesmo tempo, com o barulho de um tiro ao longe.Pela manhã, ao saírem os animais de suas baias,deram com o mastro caído no chão e viram o

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olmeiro do pomar desgalhado como um rabanete.Mal haviam notado isso, quando soltaram um gritolancinante de desespero. Visão terrível seapresentava aos seus olhos: o moinho de ventoestava em ruínas.

Correram todos para o local. Napoleão, queraras vezes abandonava seu passo normal à frentede todos, correu também. Sim, ali estava o moinho,o fruto de todas as suas lutas, caído ao nível dosalicerces; e as pedras, que de modo tão laboriosohaviam levantado, espalhadas pelas redondezas.Impossível falar, de início; ali ficaram, olhandocom tristeza a desordem das pedras no chão.Napoleão andava devagar de um lado para outro,em silêncio, de vez em quando farejando o chãoaqui e ali. Seu rabicho se esticava e se sacudiaenergicamente, para lá e para cá, num sinal defebril atividade mental. De repente estacou, comose tivesse chegado a uma conclusão.

“Camaradas”, disse com toda a calma, “sabemquem é o responsável por isto? Sabem quem foi oinimigo que, na calada da noite, destruiu nossomoinho de vento? BOLA-DE-NEVE!”, rugiu violento,

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com voz de trovão. “Bola-de-Neve foi o autordisto! Com rematada maldade, pensando emdestruir nossos planos e vingar-se de suaignominiosa expulsão, esse traidor insinuou-se atéaqui, sob o manto da escuridão, e destruiu nossolabor de quase um ano. Camaradas, neste local eneste momento, pronuncio a sentença de mortepara Bola-de-Neve. Uma Herói Animal, SegundaClasse e meio balde de maçãs ao animal que lhefizer justiça. Um balde inteiro a quem o capturarvivo!”

Os animais ficaram chocadíssimos ao saber queaté Bola-de-Neve fora capaz de uma coisadaquelas. Subiu ao céu um brado de indignação, ecada um pôs-se a pensar num modo de pegar Bola-de-Neve, se algum dia ele ousasse voltar. Quaseao mesmo tempo, descobriram-se as pegadas deum porco a pequena distância da colina. Emboramarcassem apenas alguns metros, pareciamdirigir-se a um buraco da sebe. Napoleão cheirou-as profundamente e declarou serem de Bola-de-Neve. Na sua opinião, ele provavelmente viera daGranja Foxwood.

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“Não percamos tempo, camaradas!”, bradouNapoleão, depois do exame das pegadas. “Temosmuito trabalho pela frente. Hoje mesmo, estamanhã, recomeçaremos a construção do moinho devento e trabalharemos por todo o inverno, com solou com chuva. Mostraremos a esse traidormiserável que ele não pode desfazer nossotrabalho assim tão fácil. Lembrem-se, camaradas,não deve haver mudança em nossos planos: serãocumpridos à risca. Para a frente, camaradas! Vivao moinho de vento! Viva a Granja dos Bichos!”

*

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7.Aquele inverno foi horrível. Às tempestades

seguiram-se o granizo e as nevadas, depois o gelo,que só derreteu em meados de fevereiro. Osbichos fizeram todo o possível na reconstrução domoinho de vento, conscientes de que o mundo tinhaos olhos sobre eles e de que os invejosos sereshumanos vibrariam de contentamento se o moinhonão fosse concluído a tempo.

Apesar de tudo, os humanos recusaram-se a crerque Bola-de-Neve tivesse destruído o moinho devento: afirmavam que as paredes ruíram porqueeram finas demais. Os animais sabiam não ser essaa causa. Mesmo assim, deliberaram dessa vezconstruir as paredes com noventa centímetros delargura, em vez de quarenta e cinco, comoinicialmente, o que exigia muito mais pedra.

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Durante longo tempo, a pedreira esteve coberta deneve e foi impossível fazer qualquer coisa. Algumprogresso se conseguiu depois, no tempo gelado eseco que se seguiu, mas foi um trabalho cruel, e osanimais já não o realizavam com a mesmaesperança de antes. Andavam sempre com frio, eem geral com fome. Só Sansão e Quitéria nuncadesanimavam. Garganta fazia excelentes discursossobre a alegria e a dignidade do trabalho, mas osanimais encontravam mais inspiração na força deSansão e no seu indefectível brado “Trabalhareimais ainda!”.

Em janeiro, a comida diminuiu. A ração demilho foi drasticamente reduzida, e anunciou-seque uma ração extra de batata seria entregue emseu lugar. Descobriu-se, então, que a maior parteda colheita de batatas estava congelada, nas pilhasdesprotegidas. Moles e descoradas, poucasestavam em condição de ser consumidas. Durantedias seguidos, os bichos não tiveram senão palha enabos para comer. O espectro da fome pareciasurgir à sua frente.

Era imprescindível ocultar esse fato ao resto do

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mundo. Encorajados pelo colapso do moinho devento, os humanos andavam renovando mentirassobre a Granja dos Bichos. Mais uma vez, dizia-seque os bichos morriam de fome e doença, quebrigavam continuamente entre si e que haviamdescambado para o canibalismo e o infanticídio.Napoleão bem sabia dos maus resultados quepoderiam advir caso a verdadeira situaçãoalimentar da granja fosse conhecida, e resolveuutilizar o sr. Whymper para divulgar umaimpressão contrária. Até então, os animais haviamtido muito pouco ou nenhum contato comWhymper, em suas visitas semanais: agora,entretanto, alguns bichos selecionados,principalmente ovelhas, foram instruídos paracomentar, casualmente, mas de forma bem audível,o fato de terem sido aumentadas as rações. Emcomplemento, Napoleão deu ordens para que astulhas do depósito, que estavam quase vazias,fossem recheadas de areia quase até a boca,depois completadas com cereais e farinha grossa.A um pretexto qualquer, Whymper foi conduzidoatravés do depósito e pôde dar uma olhada nas

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tulhas. Foi ludibriado e continuou a dizer lá foraque, absolutamente, não havia falta de alimento naGranja dos Bichos.

Ainda assim, no fim de janeiro, ficou premente anecessidade de conseguir mais cereais em algumlugar. Naqueles dias, Napoleão raramenteapareceu em público, passando o tempo todo nocasarão, guardado por um cão mal-encarado emcada porta. Quando surgiu outra vez, foi demaneira cerimoniosa, com uma escolta de seiscachorros que o cercavam de perto e rosnavam sealguém se achegasse demais. Muitas vezes nãoaparecia, nem sequer aos domingos de manhã,enviando suas ordens por intermédio de outroporco, de preferência Garganta.

Certa manhã de domingo, Garganta anunciou queas galinhas, que mal haviam começado a pôr,deveriam entregar-lhe os ovos, pois Napoleãoassinara, por intermédio de Whymper, um contratode fornecimento de quatrocentos ovos por semana.O rendimento pagaria, em cereais e farinha, obastante para manter a granja até que chegasse overão e as condições do tempo melhorassem.

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Ao ouvir isso, as galinhas responderam com umgrande cacarejo. Já haviam sido alertadas sobreessa possibilidade, mas não pensavam que viessea acontecer. Acabavam de preparar as ninhadas deovos para a chocagem da primavera e protestaramdizendo que tomar-lhes os ovos, agora, era umcrime. Pela primeira vez desde a expulsão deJones aconteceu algo parecido com uma rebelião.Lideradas por três jovens frangas minorcas, asgalinhas realizaram uma ação direta visando acontrariar os desejos de Napoleão. O métodousado foi voar para os caibros do telhado e dalipôr os ovos, que vinham despedaçar-se no chão.Napoleão agiu rápida e implacavelmente. Cortou aração das galinhas e decretou que o bicho quefosse apanhado dando a elas um grão sequer dealimento seria condenado à morte. Os cachorrosfiscalizavam a execução da ordem. As galinhasresistiram por cinco dias, depois capitularam evoltaram para os ninhos. Nove haviam morrido.Seus corpos foram enterrados no pomar, e segundose disse a causa da morte fora coccidiose.Whymper nada ouviu sobre esse caso, e os ovos

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foram entregues com pontualidade, vindo umcaminhão semanalmente buscá-los.

Entrementes, não se sabia mais de Bola-de-Neve. Havia rumores de que estaria homiziadonuma das granjas vizinhas, Foxwood ouPinchfield. Nessa época, Napoleão andava emtermos ligeiramente melhores com os outrosproprietários. É que havia no pátio várias pilhasde madeira, feitas dez anos antes, por ocasião daderrubada de um bosque de faias. Como a madeirajá estava bem seca, Whymper aconselharaNapoleão a vendê-la, e tanto Pilkington comoFrederick desejavam comprá-la. Napoleãohesitava entre os dois, sem se decidir. Notou-seque, toda vez que parecia ter chegado a um acordocom Frederick, surgia o boato de que Bola-de-Neve estava escondido em Foxwood, ao passoque, quando se inclinava para Pilkington, Bola-de-Neve deveria andar em Pinchfield.

Subitamente, no início da primavera, descobriu-se um fato alarmante. Bola-de-Neve estavafrequentando a granja à noite, em segredo! Osbichos ficaram tão preocupados que mal

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conseguiam dormir nos estábulos. Todas as noites,dizia-se, ele se esgueirava nas sombras eperpetrava um sem-número de maldades. Roubavamilho, entornava baldes de leite, quebrava ovos,esmagava os viveiros de sementes e roía o córtexdas árvores frutíferas. Sempre que algo erradoaparecia, o culpado era Bola-de-Neve. Uma janelaquebrada, um dreno entupido, e alguém comcerteza diria que Bola-de-Neve viera à noite efizera aquilo; quando se perdeu a chave dodepósito, toda a granja se convenceu de que Bola-de-Neve a jogara no fundo do poço. Interessantefoi continuarem a acreditar, mesmo depois que achave perdida foi encontrada sob um saco defarinha. As vacas declaravam unânimes que Bola-de-Neve entrara em suas baias e as haviaordenhado durante o sono. Os ratos, porincomodarem muito durante o inverno, foramtachados de aliados de Bola-de-Neve.

Napoleão decretou uma ampla investigaçãosobre as atividades de Bola-de-Neve. Com seuscachorros em atitude de alerta, saiu e fez umacuidadosa inspeção nos galpões da fazenda, com

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os outros animais a segui-lo a uma distânciarespeitosa. A pequenos intervalos, Napoleãoparava e farejava o chão em busca de Bola-de-Neve, cuja presença, segundo disse, podiaperceber pelo faro. Cheirou cada canto, no celeiro,no estábulo, nos galinheiros, na horta, encontrandovestígios de Bola-de-Neve em quase toda parte.Invariavelmente encostava o focinho no chão,puxava algumas cheiradas profundas e exclamavanuma voz terrível: “Bola-de-Neve! Andou poraqui! Sinto perfeitamente o cheiro!”. E, à palavra“Bola-de-Neve”, a cachorrada soltava rosnadossanguinários, pondo os dentes à mostra.

Os animais andavam aterrorizados. Parecia-lhesque Bola-de-Neve era uma espécie de entidadeinvisível, impregnando o ar à sua volta eameaçando-os com toda espécie de perigos. Certatarde, Garganta os reuniu e, com expressãoalarmada, disse ter várias notícias para dar.

“Camaradas”, gritou, cheio de tiques nervosos,“descobrimos uma coisa pavorosa. Bola-de-Nevevendeu-se a Frederick, da Granja Pinchfield, queneste mesmo instante está planejando atacar-nos e

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tomar nossa granja! Bola-de-Neve será o guia,quando o ataque começar. Mas ainda há coisa pior.Pensávamos que a rebelião de Bola-de-Neve fossecausada por sua vaidade e ambição. Poisestávamos enganados, camaradas. Sabeis qual foia verdadeira razão? Bola-de-Neve era aliado deJones desde o início! Foi, o tempo todo, agente deJones. Tudo isso está comprovado em documentosque deixou e só agora descobrimos. Para mim issoexplica muita coisa, camaradas. Pois não vimos,com nossos próprios olhos, a maneira como eletentou — felizmente sem conseguir — fazer quefôssemos derrotados e destruídos na Batalha doEstábulo?”

Os bichos ouviam, estupefatos. Isto era umcrime muitíssimo maior do que ter destruído omoinho de vento. Mas alguns minutos se passaramaté eles compreenderem a completa significaçãode tudo aquilo. Todos se lembravam, ou julgavamlembrar-se, de ter visto Bola-de-Neve liderando oataque na Batalha do Estábulo, de como ele osencorajava e incitava a cada instante, nãotitubeando um só segundo quando as balas de

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Jones rasgaram-lhe o dorso. De início foi umpouco difícil entender como isso se encaixava emsua aliança com Jones. Até Sansão, que rarasvezes fazia perguntas, ficou confuso. Deitou-se,enfiou as patas dianteiras debaixo do corpanzil,fechou os olhos e, com grande esforço, tentoureunir os pensamentos.

“Não acredito”, disse. “Bola-de-Neve lutoubravamente na Batalha do Estábulo. Isso eu vi commeus próprios olhos. Pois até não lhe demos umaHerói Animal, Primeira Classe logo depois?”

“Esse foi o nosso erro, camarada, já que agorasabemos — está tudo lá, nos papéis queencontramos — que, na realidade, ele tentava nosconduzir à derrota.”

“Mas ele foi ferido”, insistiu Sansão. “Todosnós o vimos ensanguentado.”

“Era parte do trato”, gritou Garganta. “O tiro deJones pegou apenas de raspão. Eu poderia lhesmostrar isso, escrito com a própria letra dele, sevocês soubessem ler. A combinação era Bola-de-Neve dar o sinal de retirada no momento crítico eabandonar o terreno ao inimigo. E ele quase

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conseguiu isso — posso dizer até que teriaconseguido, não fosse o nosso heroico Líder, oCamarada Napoleão. Vocês se lembram de que,bem no momento em que Jones e seus homensatingiram o pátio, Bola-de-Neve, de repente,virou-se e fugiu, seguido de muitos animais? E nãofoi nesse exato momento, quando já nos dominavao pânico e tudo parecia perdido, que o CamaradaNapoleão surgiu bradando ‘Morte à Humanidade!’e cravou os dentes na perna de Jones? Por certovocês se lembram disso, pois não, camaradas?”,exclamou Garganta, dando pulinhos de um ladopara outro.

Bem, agora que Garganta descrevera a cena demaneira tão vívida, parecia aos animais que defato se lembravam. Pelo menos lembravam que, nomomento crítico da batalha, Bola-de-Neve derameia-volta para fugir. Sansão, porém, aindapermanecia contrafeito.

“Não acredito que Bola-de-Neve fosse traidordesde o começo”, disse por fim. “O que fez depoisé outra coisa. Eu ainda acho que na Batalha doEstábulo ele foi um bom camarada.”

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“Nosso Líder, o Camarada Napoleão”, disseGarganta, falando devagar e com firmeza,“declarou categoricamente (categoricamente,camaradas!) que Bola-de-Neve era agente deJones desde o início… sim, desde o instantemesmo em que imaginamos a Rebelião.”

“Ah, aí é diferente!”, respondeu Sansão. “Se oCamarada Napoleão diz, deve ter razão.”

“Esse é o verdadeiro espírito, camarada!”,exclamou Garganta. Porém, todos notaram aolhadela feia que deu para Sansão, com seus olhosmatreiros.

Depois virou-se para ir embora, mas se deteve eacrescentou de maneira contundente:

“Alerto a todos os animais desta fazenda paraque mantenham os olhos bem abertos. Temosmotivos para pensar que alguns agentes secretosde Bola-de-Neve estão ocultos entre nós nestemomento!”

Quatro dias depois, à tardinha, Napoleãomandou que os bichos se reunissem no pátio.Quando todos haviam comparecido, Napoleãoemergiu do casarão, ostentando ambas as suas

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medalhas (pois recentemente conferira a si próprioa Herói Animal, Primeira Classe e a HeróiAnimal, Segunda Classe), com os nove cachorrosfazendo demonstrações à sua volta e soltandorosnados que davam calafrios na espinha dosanimais. Estes se encolheram silenciosos em seuslugares, parecendo pressentir que algo horrívelestava para acontecer.

Napoleão postou-se e dirigiu um olhar severo àassistência; depois deu um guincho estridente.Imediatamente os cachorros avançaram, pegandoquatro porcos pelas orelhas e arrastando-os, aguinchar de dor e terror, até os pés de Napoleão.As orelhas dos porcos sangraram, e o gosto dosangue parecia enlouquecer os cachorros. Parasurpresa de todos, três deles lançaram-se sobreSansão. Ele reagiu com um pataço, que pegou umdos cachorros ainda no ar, e apertou-o no chão. Ocachorro ganiu pedindo piedade, e os outros doisfugiram com o rabo entre as pernas. Sansão olhoupara Napoleão para saber se devia liquidar ocachorro ou deixá-lo ir. Napoleão pareceu mudarde expressão e, ríspido, ordenou a Sansão que o

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soltasse, e este ergueu a pata, deixando ir ocachorro ferido, a uivar.

O tumulto agora havia amainado. Os quatroporcos esperavam trêmulos, com a culpadesenhada em cada linha do semblante. EntãoNapoleão induziu-os a confessar seus crimes.Eram os mesmos que haviam protestado quandoNapoleão abolira as reuniões dominicais. Semmais demora, confessaram ter realizado contatossecretos com Bola-de-Neve desde o dia de suaexpulsão e colaborado com ele na destruição domoinho de vento; confessaram ainda que tambémhaviam se comprometido a entregar a Granja dosBichos a Frederick. Acrescentaram que Bola-de-Neve admitira, na presença deles, ter sido, durantemuitos anos, agente secreto de Jones. Ao fim daconfissão, os cachorros estraçalharam a gargantados quatro, e Napoleão, com uma voz ameaçadora,perguntou se algum outro animal tinha qualquercoisa a confessar.

As três galinhas que haviam liderado a tentativade reação sobre os ovos aproximaram-se edeclararam que Bola-de-Neve lhes aparecera em

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sonho, instigando-as a desobedecer às ordens deNapoleão. Também foram degoladas. Aí veio umganso e confessou ter escondido seis espigas demilho durante a colheita do ano anterior, comendo-as depois, à noite. Uma ovelha confessou terurinado no açude — por insistência, disse, deBola-de-Neve —, e duas outras confessaram terassassinado um velho bode, seguidorespecialmente devotado de Napoleão,perseguindo-o em volta de uma fogueira quandoele, coitado, estava com um ataque de asma.Foram mortas ali mesmo. E assim prosseguiu asessão de confissões e execuções, até haver ummontão de cadáveres aos pés de Napoleão e umpesado cheiro de sangue no ar, coisa que nãosucedia desde a expulsão de Jones.

Quando tudo acabou, os bichos sobreviventes,com exceção dos porcos e dos cachorros,retiraram-se furtivos, trêmulos, angustiados. Nãosabiam o que era mais chocante, se a traição dosanimais que se haviam acumpliciado com Bola-de-Neve ou a cruel repressão ali presenciada. Nosvelhos tempos, eram frequentes as cenas de

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sangue, igualmente horripilantes, entretanto agoralhes pareciam ainda piores, uma vez que ocorriamentre eles mesmos. Desde que Jones deixara afazenda até aquele dia, nenhum animal mataraoutro animal. Nem sequer um rato fora morto.Haviam percorrido o caminho até a colina domoinho inacabado e de comum acordo deitaram-se, procurando aquecer uns aos outros — Quitéria,Maricota, Benjamim, as vacas, as ovelhas e todo obando de gansos e galinhas —, todos eles, no fim,exceto a gata, que desaparecera de repente aochegar a ordem de Napoleão para a reunião.Durante algum tempo ninguém falou. Só Sansãopermanecia de pé. Andava, impaciente, de um ladopara o outro, batendo com a longa cauda negra nosflancos e proferindo, de vez em quando, umgemido de estupefação. Finalmente disse:

“Não entendo. Nunca pensei que coisas assimpudessem acontecer em nossa granja. Deve ser oresultado de alguma falha nossa. A solução quevejo é trabalhar mais ainda. Daqui por diante, voulevantar uma hora mais cedo.”

E saiu no seu trote pesadão, rumo à pedreira. Lá

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chegando, juntou dois grandes montes de pedra earrastou-os até o moinho de vento, antes derecolher-se para dormir.

Os bichos se amontoaram em volta de Quitéria,em silêncio. O outeiro onde estavam dava-lhesuma ampla vista da região. A maior parte daGranja dos Bichos abria-se diante deles — agrande pastagem que se estendia até a estrada, ocampo de feno, o bosque, o açude, os camposarados onde estava o trigo novo, ainda fino everde, e os telhados vermelhos do casario dagranja, de onde saía fumaça pelas chaminés. Erauma tarde clara de primavera. A grama e a sebeem brotação douravam-se aos raios horizontais dosol. Jamais a granja lhes parecera — e com umaespécie de surpresa lembraram que tudo era deles,cada centímetro era de sua propriedade — umlugar tão agradável. Olhando pela encosta dacolina, Quitéria ficou com os olhos cheios d’água.Se pudesse exprimir seus pensamentos, diria queaquilo não era bem o que pretendiam ao selançarem, anos atrás, ao trabalho de depor ogênero humano. Aquelas cenas de terror e sangue

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não eram as que previra naquela noite em que ovelho Major, pela primeira vez, os incitara àrebelião. Se ela própria pudesse imaginar o futuro,veria uma sociedade de animais livres da fome edo chicote, todos iguais, cada qual trabalhando deacordo com sua capacidade, os mais fortesprotegendo os mais fracos, como ela protegeraaquela ninhada de patinhos na noite do discurso doMajor. Em vez disso — não podia compreenderpor quê — havia chegado uma época em queninguém ousava dizer o que pensava, em quecachorros rosnadores e malignos perambulavampor toda parte e todos eram obrigados a vercamaradas feitos em pedaços após confessar oscrimes mais chocantes. Não tinha em mente ideiasde rebelião ou desobediência. Sabia que, porpiores que fossem, as coisas estavam muitomelhores do que nos tempos de Jones e que antesde mais nada era preciso evitar o retorno doshumanos. O que quer que acontecesse, elapermaneceria fiel, trabalharia bastante, cumpririaas ordens recebidas e aceitaria a liderança deNapoleão. Mesmo assim, não fora por aquilo que

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ela e todos os animais haviam esperado etrabalhado. Não fora para aquilo que haviamconstruído o moinho de vento e enfrentado as balasda espingarda de Jones. Tais eram seuspensamentos, embora ela não tivesse palavras paraexpressá-los.

Por fim, sentindo que assim expressaria aspalavras que não conseguia encontrar, começou acantar “Bichos da Inglaterra”. Os outros animais,sentados à sua volta, foram aderindo e cantaram ohino três vezes — bem na melodia, mas lenta etristemente, como nunca haviam cantado antes.

Mal haviam terminado de cantar a terceira vez,apareceu Garganta, seguido de dois cachorros,com ar de quem tem coisa muito importante adizer. Anunciou que, por decreto especial doCamarada Napoleão, a canção “Bichos daInglaterra” fora abolida. Daquele momento emdiante era proibido cantá-la.

Os animais foram colhidos de surpresa.“Por quê?”, perguntou Maricota.“Não há necessidade, camaradas”, respondeu

Garganta, inflexível. “‘Bichos da Inglaterra’ era a

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canção da Rebelião. Mas agora completou-se aRevolução. A execução dos traidores, nesta tarde,foi o ato final. Em ‘Bichos da Inglaterra’expressávamos nosso anseio por uma sociedademelhor, no porvir. Ora, essa sociedade já estácriada. Evidentemente o hino não tem mais valornenhum.”

Mesmo amedrontados como estavam, algunsanimais poderiam ter protestado, se nessemomento as ovelhas não enveredassem pelo“Quatro pernas bom, duas pernas ruim”, que durouvários minutos, pondo fim à discussão.

E assim, não mais se ouviu “Bichos daInglaterra”. Em seu lugar, Mínimo, o poeta,compusera outra canção que começava dizendo:

Granja dos Bichos, Revolução dos Bichos,Nenhum de nós jamais te fará mal!

E isso passou a ser cantado todos os domingosapós o hasteamento da bandeira. Mas, de certaforma, nem a letra nem a música jamaispareceram, para os animais, igualar-se às de“Bichos da Inglaterra”.

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*

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8.Poucos dias mais tarde, quando já amainara o

terror causado pelas execuções, alguns animaislembraram — ou julgaram lembrar — que o SextoMandamento rezava: “Nenhum animal matará outroanimal”. Embora ninguém o mencionasse aoalcance dos ouvidos dos porcos ou dos cachorros,parecia-lhes que a matança ocorrida não seencaixava muito bem nisso. Quitéria pediu aBenjamim que lesse o Sexto Mandamento, equando Benjamim, como sempre, respondeu que serecusava a tomar parte em tais assuntos, elaprocurou Maricota, que leu para ela o SextoMandamento. Dizia: “Nenhum animal matará outroanimal, sem motivo”. Sabe-se lá por quê, as duasúltimas palavras haviam escapado à memória dosbichos. Mas eles viam agora que o Sexto

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Mandamento não fora violado; sim, poisevidentemente havia boas razões para matar ostraidores que haviam se aliado a Bola-de-Neve.

Durante aquele ano, os bichos trabalharam aindamais que no ano anterior. A reconstrução domoinho de vento, as paredes com o dobro daespessura, a conclusão no prazo marcado,juntamente com o trabalho normal da granja, eratudo tremendamente desgastante. Houve momentosem que lhes pareceu que trabalhavam mais do queno tempo de Jones, sem se alimentar melhor. Nosdomingos de manhã, Garganta, segurando umacomprida folha de papel, lia para eles relações deestatísticas comprobatórias de que a produção detodas as classes de gêneros alimentícios aumentaraduzentos, trezentos ou quinhentos por cento,conforme o caso. Os bichos não viam razão paradescrer, especialmente porque já não conseguiamlembrar-se com clareza das exatas condições deantes da Rebelião. Mesmo assim, dias havia emque preferiam ter menos estatísticas e maiscomida.

Todas as ordens, agora, eram transmitidas

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através de Garganta ou de outro porco. Napoleãonão era visto em público mais do que uma vez acada quinze dias. E quando aparecia, eraacompanhado não só pela sua comitiva de cães,mas também por um garnisé preto que marchava àsua frente, atuando como arauto, soltando umcocoricó antes de cada fala de Napoleão. Mesmona casa-grande, diziam, Napoleão habitava umapartamento separado dos demais. Fazia asrefeições sozinho, com dois cachorros para servi-lo, e comia no serviço de jantar de porcelana dacristaleira da sala. Anunciou-se também que aespingarda seria disparada, anualmente, na data doaniversário de Napoleão, assim como nos outrosdois aniversários.

Agora já não mencionavam o líder como“Napoleão” simplesmente. Referiam-se a ele demaneira formal, como “nosso Líder, o CamaradaNapoleão”, e os porcos gostavam de inventar paraele títulos tais como “Pai de Todos os Bichos”,“Terror da Humanidade”, “Protetor dos Apriscos”,“Amigo dos Pintainhos” e assim por diante.Garganta, em seus discursos, com lágrimas

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rolando pelo focinho, falava da sabedoria deNapoleão, da bondade de seu coração, doprofundo amor que devotava aos animais de todaparte, mesmo — e especialmente — aos infelizesanimais que ainda viviam na ignorância e naescravidão em outras granjas. Tornara-se comumdar a Napoleão crédito por todos os êxitos e todosos golpes de sorte. Ouvia-se frequentemente umagalinha comentar com outra: “Sob a orientação donosso Líder, o Camarada Napoleão, botei cincoovos em seis dias”; ou duas vacas, bebendo juntasno açude, exclamarem: “Graças à liderança doCamarada Napoleão, que gosto bom tem estaágua!”. O sentimento geral da granja era bemexpresso num poema intitulado “O CamaradaNapoleão”, composto por Mínimo, que diziaassim:

Amigo dos orfãozinhos!Fonte da felicidade!Senhor do balde de lavagem! Oh, minh’almaardeEm fogo quando te vejoAssim, calmo e soberano,

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Como o sol na imensidão,Camarada Napoleão!Tu és aquele que tudo dá, tudoQuanto as pobres criaturas amam.Duas barrigas cheias por dia, palha limpaonde rolar;Os bichos todos, grandes, pequenos,Dormem tranquilos, enquantoZelas tu por nós na solidão,Camarada Napoleão!Tivesse eu um leitão e,Antes mesmo que atingisseO tamanho de um barril ou garrafão,Já teria aprendido a ser eternamenteTeu fiel e leal seguidor. E o primeiroGuincho que daria meu leitão seria“Camarada Napoleão!”.

Napoleão aprovou esse poema e mandouescrevê-lo no grande celeiro, na parede opostaàquela onde estavam os Sete Mandamentos. Sobreele foi colocado um retrato de Napoleão de perfil,executado por Garganta.

Enquanto isso, por intermédio de Whymper,

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Napoleão entrara em negociaçõescomplicadíssimas com Frederick e Pilkington. Aspilhas de madeira ainda não estavam vendidas.Dentre os dois, Frederick era o mais ansioso porcolocar-lhes a mão, mas não oferecia um bompreço. Ao mesmo tempo, circulavam novos boatosde que Frederick e seus homens estavamplanejando atacar a Granja dos Bichos e destruir omoinho de vento, cuja construção lhe causaraindizível ciúme. Sabia-se que Bola-de-Neve aindaestava oculto na Granja Pinchfield. Em meio aoverão, correu entre os animais a notícia alarmantede que três galinhas se haviam apresentadoconfessando que, instigadas por Bola-de-Neve,haviam conspirado para assassinar Napoleão.Foram executadas imediatamente, e novas medidasse tomaram para a segurança do líder. Quatrocachorros passaram a montar guarda junto a suacama, durante a noite, um em cada canto, e umjovem porco de nome Rosito recebeu a missão deprovar a comida, para evitar que ele fosseenvenenado.

Mais ou menos por essa época, foi anunciado

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que Napoleão acertara vender as pilhas demadeira ao sr. Pilkington; ia assinar também umacordo para a troca regular de certos produtosentre a Granja dos Bichos e a Granja Foxwood. Asrelações entre Napoleão e Pilkington, emboramantidas apenas por intermédio de Whymper, eramagora quase amistosas. Os bichos não confiavamem Pilkington, ser humano que era, mas preferiam-no a Frederick, a quem temiam e odiavam. Com opassar do verão e estando o moinho de vento pertode ser concluído, os boatos de um iminente etraiçoeiro ataque tornavam-se cada vez maisfortes. Frederick, dizia-se, tencionava trazer contraeles vinte homens armados de espingardas e jásubornara os magistrados e a polícia, de modo quenão surgisse nenhum problema caso conseguissemcolocar as mãos na escritura de propriedade daGranja dos Bichos. Além disso, filtravam-se dePinchfield terríveis histórias a respeito dasbarbaridades a que Frederick submetia seusanimais. Havia chicoteado um cavalo velho atéliquidá-lo, matava as vacas de fome, assassinaraum cachorro jogando-o na fornalha, divertia-se de

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noite assistindo a rinhas de galos em cujas esporascolocava estiletes de lâminas de barbear. O sanguedos animais fervia de ódio quando ouviam contaro que se fazia contra seus camaradas e, às vezes,alguns pediam que lhes fosse permitido sair paraatacar Pinchfield, expulsar os humanos e libertaros bichos. Porém Garganta aconselhava-os a evitaressas atitudes violentas e confiar na estratégia doCamarada Napoleão.

Apesar de tudo, crescia o ódio a Frederick.Certo domingo de manhã, Napoleão apareceu noceleiro e declarou que jamais, em tempo algum,admitiria vender as pilhas de madeira a Frederick;considerava abaixo de sua dignidade, disse, fazernegócios com patifes dessa laia. Os pombos, quecontinuavam a espalhar a mensagem da Rebelião,foram proibidos de pôr os pés em qualquer pontoda Granja Foxwood e receberam ordem demodificar seu slogan de “Morte à Humanidade”para “Morte a Frederick”. Entrementes, no fim doverão, revelou-se outra das maquinações de Bola-de-Neve. A lavoura de trigo estava cheia de joio, edescobriu-se que ele havia misturado sementes de

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joio às de trigo. Um ganso que tomara parte nofeito confessou sua culpa a Garganta e suicidou-secomendo frutinhas de erva-moura. Os animaisficaram sabendo também que Bola-de-Neve jamaishavia recebido — como pensavam muitos atéentão — a comenda Herói Animal, PrimeiraClasse. Era apenas uma lenda, criada algum tempodepois da Batalha do Estábulo por ele próprio.Muito ao contrário, em vez de condecorado, elefora repreendido por demonstrar covardia durantea batalha. Novamente, alguns bichos ouviram issocom perplexidade, mas Garganta conseguiuconvencê-los de que havia um lapso em suasmemórias.

No outono, após um tremendo e exaustivoesforço — pois a colheita se fizera ao mesmotempo —, o moinho de vento estava pronto.Restava ainda instalar a maquinaria, e Whymperandava tratando das compras, mas a estrutura jáestava pronta. Contra todas as dificuldades, adespeito da inexperiência, dos implementosprimitivos, da falta de sorte e da perfídia de Bola-de-Neve, a obra estava concluída no exato dia

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marcado! Cansados mas orgulhosos, os bichosderam voltas e mais voltas em torno de sua obra-prima, que lhes parecia ainda mais linda que daprimeira vez. Além disso, as paredes tinham agorao dobro da espessura. Exceto explosivos, nadapoderia colocá-las abaixo. E ao pensarem emcomo haviam trabalhado, em quanto abatimentotinham superado, e na enorme diferença que suasvidas sofreriam quando as pás estivessem girandoe os dínamos funcionando — ao pensarem em tudoisso, o cansaço os abandonava e eles saltavam aoredor do moinho de vento, dando gritos de alegria.Napoleão em pessoa, acompanhado dos seuscachorros e do seu garnisé, veio inspecionar otrabalho concluído; congratulou-se com os animaispelo feito e anunciou que o moinho se chamariaMoinho Napoleão.

Dois dias mais tarde, os animais foramconvidados para uma reunião especial no celeiro.E ficaram abobados de surpresa, quando Napoleãocomunicou ter vendido a madeira a Frederick. Nodia seguinte, os caminhões de Frederick chegariampara o carregamento. Durante todo o período de

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aparente amizade com Pilkington, Napoleão narealidade negociara um acordo secreto comFrederick.

Todas as relações com Foxwood foramcortadas, e Pilkington recebeu mensagensinsultuosas. Os pombos tiveram ordens de nãopousar mais na Granja Pinchfield e de mudar oslogan de “Morte a Frederick” para “Morte aPilkington”. Ao mesmo tempo, Napoleãoassegurou a todos que as histórias sobre o iminenteataque à Granja dos Bichos eram inteiramentefalsas e que os boatos a respeito da crueldade deFrederick para com os animais eram muitoexagerados. Todos esses boatos eram,provavelmente, coisa de Bola-de-Neve e seusagentes. Parecia, agora, que Bola-de-Neve naverdade não estava escondido na GranjaPinchfield; aliás, nunca estivera lá em toda a suavida. Vivia — e cercado de muito luxo, sabiamagora — na Granja Foxwood, e era, além do mais,sustentado por Pilkington há muitos anos.

Os porcos estavam em êxtase com a sagacidadede Napoleão. Fingindo ser amigo de Pilkington,

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obrigara Frederick a aumentar a oferta em dozelibras. Porém, a qualidade superior da mente deNapoleão, dizia Garganta, estava no fato de nãoconfiar em ninguém, nem mesmo em Frederick.Este quisera pagar a madeira com uma coisachamada cheque, que era, ao que diziam, umpedaço de papel com uma promessa de pagamentoescrita. Mas Napoleão era vivo demais para cairnessa. Exigiu o pagamento em notas autênticas decinco libras, que deveriam ser entregues antes daretirada da madeira. Frederick já pagara; e a somaera suficiente para comprar a maquinaria domoinho de vento.

A madeira já fora retirada com grande rapidez.Quando todo o carregamento estava bem longe,houve outra reunião especial no celeiro, para osbichos examinarem as notas de Frederick.Sorrindo com ar beatífico e usando suascondecorações, Napoleão recostara-se numa camade palha, com o dinheiro a seu lado,cuidadosamente empilhado numa travessa dacozinha da casa-grande. Os animais passavamdevagar, em fila, e cada um olhava pelo tempo que

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quisesse. Sansão espichou o focinho para cheiraras notas, e as delicadas coisinhas mexeram-se efarfalharam com sua respiração.

Três dias mais tarde, houve um deus-nos-acuda.Whymper, branco como cera, chegou afobado emsua bicicleta, deixou-a caída no pátio e correupara dentro da casa. Daí a momentos ouviu-se umpavoroso rugido de raiva vindo do apartamento deNapoleão. A notícia do que sucedera espalhou-sepela granja com a rapidez de um raio. As notaseram falsas! Frederick levara a madeira de graça!

Napoleão imediatamente chamou os animais ecom um vozeirão de arrepiar proclamou a sentençade morte contra Frederick. Ao ser capturado,disse, Frederick seria fervido vivo. Ao mesmotempo avisou que, depois daquela insídia,deveriam esperar pelo pior. Frederick e seushomens poderiam desencadear a qualquermomento o tão falado ataque. Colocaram-sesentinelas em todos os caminhos que levavam àgranja. Além disso, quatro pombos foram aFoxwood com um recado conciliador que levava aesperança de restabelecimento de boas relações

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com Pilkington.Logo na manhã seguinte, sobreveio o ataque. Os

animais estavam fazendo a refeição matinalquando os sentinelas chegaram correndo com anotícia de que Frederick e seus seguidores jáhaviam atravessado a porteira das cinco barras.Corajosos, os bichos saíram ao seu encontro, masdessa vez não obteriam uma vitória fácil como ada Batalha do Estábulo. Eram quinze homens, commeia dúzia de espingardas, que abriram fogo tãologo chegaram a cinquenta metros de distância. Osanimais não puderam fazer frente à saraivada debalas, e, a despeito dos esforços de Napoleão eSansão para fazê-los voltar à luta, retrocederam.Muitos já estavam feridos. Refugiaram-se nocasario da granja e ficaram olhando prudentementepelos buracos. Toda a pastagem, inclusive omoinho de vento, caíra nas mãos do inimigo. AtéNapoleão estava perplexo. Caminhava de um ladopara outro, sem proferir palavra, com o raborígido e contraído. Olhares ansiosos eramlançados na direção da Granja Foxwood. SePilkington e seus homens os ajudassem, ainda

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poderiam ganhar a parada. Porém, nesse momento,voltaram os quatro pombos enviados no diaanterior, um deles trazendo um pedaço de papel daparte de Pilkington, com a mensagem “Benfeito”escrita a lápis.

Enquanto isso, Frederick e seus homens haviamse detido junto ao moinho de vento. Os animaiscontinuavam observando e viram surgir um pé decabra e um malho. Correu um murmúrio de aflição.Iam botar abaixo o moinho de vento.

“Impossível”, exclamou Napoleão. “As paredessão grossas demais para isso. Nem em uma semanaconseguirão. Coragem, camaradas!”

Benjamim, porém, observava atento a atividadedos homens. Bem devagar, com ar quase de quemse diverte, meneou o focinho.

“Era o que eu achava”, disse. “Vocês não veemo que eles estão fazendo? Logo vão colocarexplosivos naquele buraco.”

Aterrorizados, os bichos esperavam. Eraimpossível abandonar a proteção das casas. Daí apouco os homens saíram correndo em todas asdireções. Ouviu-se, logo após, um estrondo

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ensurdecedor. Os pombos revolutearam no ar, e osanimais todos, exceto Napoleão, jogaram-se nochão. Quando se levantaram outra vez, havia umagigantesca nuvem preta no lugar do moinho. Aospoucos, a brisa a dissolveu. O moinho de ventohavia desaparecido!

Aquilo devolveu a coragem aos animais. Omedo e o desânimo que sentiam foram engolfadospelo tremendo ódio que os dominou ante aquelavilania inominável. Um brado de vingança subiuaos ares; sem esperar ordens, reuniram-se e, comoum só corpo, lançaram-se contra o inimigo. Destavez não fugiram às balas cruéis que caíam sobreeles em saraivadas. Foi uma batalha horrível,selvagem. Os homens atiraram várias vezes, equando os animais os alcançaram foi aquelapancadaria em todas as direções, com porretes etacões de bota. Morreram uma vaca, três ovelhas edois gansos, e quase todo mundo ficou ferido. AtéNapoleão, que dirigia as operações da retaguarda,teve a ponta do rabicho arranhada por um balim.Mas aos humanos não tocou melhor sorte. Trêstiveram a cabeça quebrada pelos golpes de

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Sansão; outro, a barriga furada pelo chifre de umavaca; outro viu suas calças quase arrancadas porLulu e Branca. E quando os nove cachorros daguarda pessoal de Napoleão, que ele mandarafazer um desvio por trás da sebe, apareceram derepente no flanco dos humanos, latindo furiosos, opânico os dominou. Perceberam o perigo de seremcercados. Frederick gritou a seus homens que seretirassem enquanto havia passagem, e logo oinimigo fugia acovardado para salvar a vida. Osanimais perseguiram-nos até o fundo do campo,desferindo ainda uns últimos golpes aoatravessarem a sebe de pilriteiro.

Tinham vencido, mas estavam feridos esangravam. Aos poucos, começaram a voltar paraa granja. A visão dos camaradas mortos, estiradossobre a relva, comoveu alguns até as lágrimas. Epor instantes detiveram-se num triste silêncio nolocal onde existira o moinho. Sim, ele sumira;fora-se quase todo o seu trabalho. Até os alicercesestavam parcialmente destruídos. E desta vez, parareconstruí-lo, não bastaria erguer de novo pedrascaídas ali mesmo: estas também haviam

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desaparecido. A força da explosão as arremessaraa centenas de metros. Era como se o moinho nuncativesse existido.

Ao se aproximarem do sítio, Garganta, queestivera inexplicavelmente ausente da luta, veio aoencontro deles, sacudindo o rabicho e guinchandode satisfação. E os animais ouviram, vindo dadireção da granja, o troar solene da espingarda.

“A troco de que está atirando aquela arma?”,perguntou Sansão.

“Celebrando a nossa vitória!”, exclamouGarganta.

“Vitória? Que vitória?”, gritou Sansão. Tinha osjoelhos sangrando, perdera uma ferradura, racharao casco, e uma dúzia de chumbinhos havia sealojado em sua pata traseira.

“Você pergunta que vitória, camarada? Masentão não expulsamos o inimigo do nosso solo —do solo sagrado da Granja dos Bichos?”

“Mas eles destruíram o moinho de vento. Nossotrabalho de dois anos!”

“Que importa? Construiremos outro.Construiremos meia dúzia de moinhos de vento, se

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quisermos. Vocês não perceberam, camaradas, quecoisa formidável realizamos? O inimigo ocupavaeste mesmo chão em que pisamos. E agora —graças à liderança do Camarada Napoleão — nóso ganhamos centímetro por centímetro!”

“Quer dizer, ganhamos o que já era nosso”,retrucou Sansão.

“Essa foi a nossa vitória”, insistiu Garganta.Coxearam até o pátio. As balas sob o couro de

Sansão aferroavam dolorosamente. Ele enxergavaà sua frente a pesada tarefa de reconstruir omoinho de vento, e mesmo em imaginação já seatirava ao trabalho. Pela primeira vez, entretanto,ocorreu-lhe a lembrança de que tinha onze anos deidade e que talvez seus músculos não tivessem amesma força de antes.

Porém, quando os bichos viram tremular abandeira verde e ouviram a arma atirar novamente— sete tiros ao todo — e o discurso que Napoleãofez congratulando-se com a atuação deles,pareceu-lhes que, afinal de contas, haviam obtidouma grande vitória. Os animais caídos na batalhativeram funerais solenes. Sansão e Quitéria

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puxaram o carroção que serviu de carro fúnebre, eNapoleão abriu em pessoa o cortejo. Dedicaram-se dois dias inteiros às celebrações. Houvecanções, discursos, novos disparos de espingardae o prêmio especial de uma maçã para cadaanimal, cinquenta gramas de milho para cada ave etrês biscoitos para cada cachorro. Proclamou-seque a batalha se chamaria Batalha do Moinho deVento, e que Napoleão havia criado novacomenda, a Ordem da Bandeira Verde, queconferira a si próprio. Em meio ao regozijo geral,o assunto das notas de dinheiro morreu.

Foi alguns dias depois disso que os porcosencontraram, na adega da casa-grande, uma caixade uísque. Passara despercebida na época daocupação. Naquela noite, chegou da casa o som deuma cantoria em que, para surpresa de todos, seouviram trechos de “Bichos da Inglaterra”. Maisou menos às nove e meia da noite, Napoleão,usando um velho chapéu-coco de Jones, foi vistoclaramente emergir da porta de trás, dar um rápidogalope em volta do pátio e sumir pela porta outravez. Na manhã seguinte, um silêncio profundo

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tomara conta da casa. Ao que parecia, nenhumporco estava de pé. Eram quase nove horas quandoapareceu Garganta, vacilante e deprimido, com osolhos embaçados, o rabicho mole, com um aspectogravemente doentio. Chamou todo mundo e disseque tinha péssima notícia para dar. O CamaradaNapoleão estava à morte!

Ouviu-se um grito de lamento. Colocaram palhado lado de fora da casa, e os animais andaram péante pé. Com lágrimas nos olhos, perguntavam-seque seria deles se o Líder faltasse. Correu o boatode que Bola-de-Neve afinal conseguira envenenara comida de Napoleão. Às onze, Garganta saiu denovo para fazer outra proclamação. Como últimoato sobre a terra, o Camarada Napoleão expedirao seguinte decreto: a ingestão de álcool seriapunida com a morte.

Já à noite, Napoleão parecia um pouco melhor,e na manhã seguinte Garganta pôde anunciar suafranca recuperação. Na tarde desse dia, Napoleãovoltou à atividade, e no dia seguinte soube-se quedera instruções a Whymper para comprar, emWillingdon, alguns folhetos sobre fermentação e

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destilação. Uma semana depois, Napoleão ordenouque fosse arado o pequeno potreiro atrás dopomar, anteriormente destinado ao repouso dosanimais aposentados. Espalhou-se que a gramaestava cansada e necessitava de uma novasemeadura, porém logo se soube que Napoleãopretendia semeá-la com cevada.

Mais ou menos nessa época, aconteceu umincidente que nenhum dos bichos pôdecompreender. Certa noite, por volta de meia-noite,ouviu-se um ruído de queda no pátio, e os animaiscorreram de suas baias para ver o que sucedera.Era noite de lua. Ao pé da parede do fundo doceleiro, na qual estavam escritos os SeteMandamentos, encontraram uma escada quebradaem dois pedaços. Garganta, momentaneamenteaturdido, jazia estatelado junto a ela, tendo ao ladouma lanterna, uma broxa e uma lata de tinta brancaentornada. Os cachorros logo fizeram um círculoem torno de Garganta e escoltaram-no de volta àcasa-grande, assim que ele conseguiu caminhar. Osbichos não faziam ideia do que significava aquilo,exceto Benjamim, que torceu o focinho com um ar

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de compreensão e pareceu entender o que sepassara, mas nada disse.

Alguns dias mais tarde, no entanto, Maricota,lendo os Sete Mandamentos, notou que havia outromandamento mal lembrado pelos animais. Todospensavam que o Quinto Mandamento era “Nenhumanimal beberá álcool”, mas haviam esquecidoduas palavras. Na realidade, o mandamento dizia:“Nenhum animal beberá álcool em excesso”.

*

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9.A rachadura do casco de Sansão levou tempo

para cicatrizar. Haviam iniciado a reconstrução domoinho de vento no dia seguinte, ao final dascelebrações. Sansão recusou-se a aceitar um sódia de dispensa, e fez questão de não dar mostrasda dor que sofria. À noite, admitia em particularpara Quitéria que o casco realmente o incomodavamuito. Quitéria tratava-o com infusões de ervas,que preparava mastigando, e tanto ela comoBenjamim diziam a Sansão que não trabalhassetanto.

“Pulmão de cavalo não é de ferro”, alertava ela.Sansão, porém, não atendia. Explicava que sótinha uma ambição: ver o moinho de ventoconcluído antes de aposentar-se.

De início, quando as leis da Granja dos Bichos

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foram elaboradas, fixara-se a idade deaposentadoria em doze anos para os cavalos e osporcos, catorze para as vacas, nove para oscachorros, sete para as ovelhas e cinco para asgalinhas e os gansos. Para os animais idosos,fixaram-se pensões generosas. Até então, nenhumbicho se aposentara, mas ultimamente o assuntovinha sendo objeto de frequentes conversas. Comoo potreiro atrás do pomar fora semeado comcevada, dizia-se agora que um canto da pastagemgrande seria cercado e reservado para os velhos.Para os cavalos, ao que se falava, a pensão seriade dois quilos e meio de milho por dia, e noinverno oito quilos de feno, mais uma cenoura outalvez uma maçã nos feriados. O décimo segundoaniversário de Sansão seria no fim do verão doano seguinte.

A vida ia dura. O inverno foi tão frio quanto oanterior, e a quantidade de alimento, ainda menor.Novamente reduziram-se todas as rações, excetoas dos porcos e dos cachorros. Uma igualdade pordemais rígida em matéria de rações, explicouGarganta, seria contrária ao espírito do

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Animalismo. De qualquer maneira, não tevedificuldade de provar aos outros bichos que narealidade eles não sentiam falta de comida, adespeito das aparências. Naquele momento, defato, fora necessário realizar um reajuste dasrações (Garganta sempre se referia a “reajustes”,nunca a “reduções”), mas em comparação com otempo de Jones, a diferença para melhor eraenorme. Lendo os dados estatísticos em voz agudae rápida, provou-lhes, com riqueza de detalhes,que eles recebiam mais aveia, mais feno e maisnabos que na época de Jones; que trabalhavammuito menos; que a água potável era de melhorqualidade; que viviam mais tempo; que havia maispalha nas baias; e que as pulgas já nãoincomodavam tanto. Os animais acreditavam emcada palavra. Para falar a verdade, tanto Jonescomo tudo quanto ele representava já estavamquase apagados de sua memória. Sabiam que avida estava difícil e cheia de privações, queandavam constantemente com frio e com fome etrabalhando sempre que não estavam dormindo.Mas, sem dúvida, antigamente era muito pior.

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Gostavam de achar isso. Além do mais, naquelesdias eram escravos, ao passo que agora eramlivres; e tudo isso, afinal, fazia diferença, comoGarganta sempre dizia.

Havia agora muito mais bocas a alimentar. Nooutono, as quatro porcas haviam dado cria quasesimultaneamente — trinta e um leitõezinhos aotodo. Os leitões eram malhados, e, sendoNapoleão o único cachaço da fazenda, era fáciladivinhar sua linhagem. Foi proclamado que, maistarde, quando comprassem tábuas e tijolos,construiriam uma escola no jardim da casa. Porenquanto, os leitões seriam instruídos pelo próprioNapoleão, na cozinha. Faziam exercícios nojardim e eram aconselhados a não brincar com osfilhotes dos outros animais. Mais ou menos poressa época, estabeleceu-se que, quando um porcoe outro animal se encontrassem numa trilha, ooutro animal cederia a passagem; e também que osporcos, qualquer que fosse seu grau hierárquico,teriam o direito de usar fitas vermelhas no rabicho,aos domingos.

A granja tivera um ano bem-sucedido, mas ainda

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faltava dinheiro. Era necessário comprar tijolos,areia e cal para a escola e economizar outra vezpara a maquinaria do moinho de vento. Alémdisso, havia necessidade de querosene para oslampiões e velas para a casa, açúcar para a mesade Napoleão (ele o proibira para os outros porcos,dizendo que engordava), todo o suprimento normalde ferramentas, pregos, carvão, arame, ferro-velho, e biscoitos para cachorros. Venderam umameda de feno e parte da colheita de batatas, e ocontrato de fornecimento de ovos foi aumentadopara seiscentos por semana, de forma que asgalinhas naquele ano mal puderam chocar umnúmero de ovos que as mantivesse no mesmonível. As rações, já reduzidas em dezembro,sofreram nova redução em fevereiro, e foramproibidos os lampiões nos estábulos, a fim deeconomizar querosene. Os porcos, entretanto,pareciam bastante bem, pelo menos ganhavamsempre alguns quilinhos.

Uma tarde, em fins de fevereiro, correu pelopátio, proveniente da cozinha, um cheiro gostoso,suculento, quentinho, como nunca os animais

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haviam sentido antes. Alguém disse que era cheirode cevada cozida. Os bichos farejaram avidamenteo ar e ficaram a pensar se não seria algum fervidopara o jantar. Mas não apareceu fervido nenhum nojantar, e no domingo seguinte comunicou-se quetoda a cevada passaria a ser reservada para osporcos. O campinho junto ao pomar já forasemeado com cevada, e logo transpirou a notíciade que cada porco estava recebendo, diariamente,a ração de meia garrafa de cerveja, sendo queNapoleão recebia meio galão e era servido naterrina da baixela de porcelana.

Mas se existiam grandes agruras a arrostar,estas eram compensadas pelo fato de a vida teragora muito mais dignidade. Havia mais canções,mais discursos, mais desfiles. Napoleãodeterminara que uma vez por semana houvesseuma coisa chamada Manifestação Espontânea, cujafinalidade era comemorar as lutas e triunfos daGranja dos Bichos. À hora marcada, os animaisdeviam abandonar o trabalho e desfilar peloterreno da granja, em formação militar, os porcos àfrente, depois os cavalos, depois as vacas, depois

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as ovelhas e, por último, as aves. Os cachorrosenquadravam a formatura, e à testa marchava ogarnisé preto de Napoleão. Sansão e Quitériaconduziam sempre a bandeira verde com odesenho do chifre e do casco e o dístico VIVA O

CAMARADA NAPOLEÃO! Em seguida, havia recitação depoemas compostos em honra de Napoleão, umdiscurso de Garganta dando detalhes dos últimosaumentos na produção de gêneros, e no momentoexato a espingarda dava um tiro. Quem maisgostava das Manifestações Espontâneas eram asovelhas, e se alguém se queixava (havia quem ofizesse, quando os porcos ou os cachorros nãoandavam por perto) de que aquele negócio era umaperda de tempo, além de ser obrigado a ficar umbom pedaço no frio, o insatisfeito erainvariavelmente calado pelas ovelhas com umensurdecedor balido de “Quatro pernas bom, duaspernas ruim!”. De modo geral, porém, os bichosgostavam daquelas celebrações. Achavamconfortador ser relembrados de que, afinal, nãotinham patrões e todo o trabalho que enfrentavamera em seu próprio benefício. E assim, à custa das

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cantorias, dos desfiles, das estatísticas deGarganta, do estrondo da espingarda, do cocoricódo garnisé e do drapejar da bandeira, conseguiamesquecer que estavam de barriga vazia, pelomenos a maior parte do tempo.

Em abril, a Granja dos Bichos foi proclamadaRepública e houve necessidade de eleger umpresidente. Apareceu um só candidato, Napoleão,que foi eleito por unanimidade. No mesmo dianotificou-se a descoberta de novos documentos,que revelaram mais detalhes sobre a cumplicidadede Bola-de-Neve e Jones. Soube-se que Bola-de-Neve não apenas tentara perder a Batalha doEstábulo, por meio de um estratagema, conformeos animais já tinham tomado conhecimento, maslutara abertamente ao lado de Jones. Na realidade,fora ele o verdadeiro comandante das forçashumanas, e jogara-se à batalha com as palavras“Viva a Humanidade!” nos lábios. Os ferimentosem suas costas, que alguns poucos bichoslembravam-se de ter visto, haviam sido causadospelos dentes de Napoleão.

Em meio ao verão, Moisés, o corvo, reapareceu

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inesperadamente na granja, após uma ausência devários anos. Continuava o mesmo, não trabalhavae contava as histórias de sempre a respeito daMontanha de Açúcar-Cande. Encarapitava-se numtoco de árvore e arengava durante horas para quemquisesse ouvir:

“Lá em cima, camaradas”, dizia solenemente,apontando o céu com a bicanca, “lá em cima,pouco além daquela nuvem preta, ali está ela, aMontanha de Açúcar-Cande, o lugar feliz ondenós, pobres animais, descansaremos para sempredesta nossa vida de trabalho.”

Chegava a afirmar ter estado lá, num dos seusvoos mais altos, e ter visto os infindos campos detrevo, os bolos de linhaça e o açúcar crescendonas sebes. Muitos bichos acreditavam. A vidaatualmente era só fome e trabalho, raciocinavam;não seria justo que lhes estivesse reservado ummundo melhor, mais além? Coisa difícil dedeterminar era a atitude dos porcos com relação aMoisés. Eles afirmavam peremptoriamente que ashistórias sobre a Montanha de Açúcar-Cande nãopassavam de pura mentira; no entanto, deixavam-

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no permanecer na granja, sem trabalhar, e aindapor cima com direito a um copo de cerveja pordia.

Depois que o casco ficou bom, Sansão trabalhoumais violentamente do que nunca. Aliás, naqueleano, todos os bichos trabalharam feito escravos.Além da faina normal na fazenda e da reconstruçãodo moinho de vento, ainda houve a escola dosporquinhos, iniciada em março. Às vezes ficavadifícil aguentar as longas horas sem comer, masSansão nunca fraquejou. Em nada do que dizia oufazia era possível perceber nenhum sinal de quesua energia já não era a mesma de antigamente.Apenas sua aparência estava um poucomodificada; o pelo já não era tão brilhante, e asancas pareciam haver murchado. “Sansão vai serecuperar quando crescer o capim da primavera”,diziam os outros, mas a primavera chegou, eSansão não mudou de aspecto. Por vezes, na rampada pedreira, quando enrijecia a musculatura contrao peso de um enorme pedregulho, tinha-se aimpressão de que apenas a vontade o mantinha depé. Nesses momentos seus lábios formavam

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claramente as palavras “Trabalharei mais ainda”,mas não emitiam nenhum som. Novamente,Quitéria e Benjamim o aconselharam, porém elenão deu atenção. Seu décimo segundo aniversáriose aproximava.

Não se importava com o que sucedesse, desdeque pudesse amontoar uma boa quantidade depedras antes de aposentar-se.

Certa noite, no verão, correu a súbita notícia deque algo acontecera a Sansão, que havia saídosozinho para puxar uns montes de pedra até omoinho. E era verdade. Poucos minutos depoischegaram dois pombos afobados:

“Sansão está caído! Não consegue levantar-se!”Metade dos animais da granja correu para a

colina do moinho de vento. Lá estava Sansão,deitado entre os paus da carroça, com o pescoçoesticado e sem poder sequer levantar a cabeça.Corria-lhe da boca um filete de sangue. Quitériaabaixou-se a seu lado.

“Sansão”, chamou, “você está bem?”“É o meu pulmão”, ele disse quase sem voz.

“Não tem importância. Vocês terminarão o moinho

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sem mim. Já deixei bastante pedra aí. De qualquermaneira, só me restava um mês de atividade. Parafalar a verdade, tenho estado à espera desta hora.E, como Benjamim também está ficando velho,talvez o deixem aposentar-se para me fazercompanhia.”

“Precisamos de socorro imediatamente”, gritouQuitéria. “Alguém vá correndo contar a Garganta oque aconteceu.”

Os animais todos correram à casa-grande paradar a notícia a Garganta. Só ficaram Quitéria eBenjamim, que se deitou ao lado de Sansão e, semdizer palavra, ficou a espantar-lhe as moscas como rabo comprido. Mais ou menos um quarto dehora depois, Garganta apareceu, cheio de simpatiae preocupação. Disse que o Camarada Napoleãotomara conhecimento, abaladíssimo, do mal quesucedera a um dos trabalhadores mais leais dagranja, e já estava cuidando de enviar Sansão paratratar-se no hospital em Willingdon. Os animaissentiram certa inquietação (com exceção deMimosa e Bola-de-Neve, nenhum deles jamaissaíra da granja) e não gostaram da ideia de seu

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camarada ir parar nas mãos dos humanos.Entretanto, Garganta facilmente os convenceu deque o cirurgião veterinário de Willingdon poderiatratar do caso de Sansão muito melhor do que eles,na granja. Cerca de meia hora mais tarde, quandoSansão já se recuperara um pouco, conseguirampô-lo de pé, e ele cambaleou de volta até sua baia,onde Quitéria e Benjamim lhe haviam preparadouma boa cama de palha.

Durante os dois dias seguintes Sansãopermaneceu na baia. Os porcos enviaram umagarrafa contendo um remédio cor-de-rosa,encontrado no armarinho do banheiro, e Quitériaservia-o a Sansão duas vezes ao dia, após asrefeições. À noite, Quitéria ficava a seu lado,conversando com ele, enquanto Benjamim afastavaas moscas. Sansão afirmava não estar triste com oacontecido. Caso se recuperasse bem, poderiaviver mais três anos, e já imaginava os diastranquilos que passaria no rincão da pastagem.Seria a primeira vez que lhe sobraria tempo defolga para estudar e melhorar seus conhecimentos.Pretendia dedicar o resto de sua existência ao

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aprendizado das vinte e duas letras restantes doalfabeto.

Contudo, Benjamim e Quitéria só podiam estar aseu lado após as horas de trabalho, e foi durante odia que o carroção veio buscá-lo. Os animaisestavam na lavoura semeando nabos, sob asupervisão de um porco, e ficaram admirados aover Benjamim a galope, vindo da direção dascasas da granja ao encontro deles, zurrando feitolouco. Era a primeira vez na vida que viamBenjamim nervoso — para falar a verdade, era aprimeira vez que alguém o via galopar.

“Depressa, corram!”, gritou. “Venham logo!Estão levando Sansão!”

Sem esperar ordens do porco, largaram otrabalho e correram de volta para as casas.Realmente, lá estava um carroção fechado, puxadopor dois cavalos, com um letreiro no lado e umhomem de chapéu-coco sentado na boleia. A baiade Sansão estava vazia.

Os bichos se apinharam ao redor do carroção.“Até breve, Sansão!”, gritaram. “Até já!”“Idiotas! Idiotas!”, exclamou Benjamim,

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corcoveando em volta deles e ferindo o chão comos cascos pequeninos. “Imbecis! Não veem o queestá escrito ali ao lado?”

Isso fez calar os animais e ouviu-se um pssss.Maricota começou a soletrar as palavras, masBenjamim empurrou-a para um lado e leu, em meioa grande silêncio:

“ALFRED SIMMONDS, MATADOURO DE CAVALOS, FABRICANTEDE COLA, WILLINGDON. PELES E FARINHA DE OSSOS. FORNECEPARA CANIS. Será que vocês não percebem? Vãolevar Sansão para o carniceiro!”

Houve um grito de horror dos bichos. Nessemomento, o homem da boleia estalou o chicote, eos cavalos saíram a trote vivo, abandonando opátio. Os bichos correram atrás, gritando com todaa força. Quitéria abriu caminho até a frente. Ocarroção tomou velocidade. Quitéria tentou fazerque suas pernas grossas galopassem e conseguiuum trotezinho.

“Sansão!”, ela gritou. “Sansão! Sansão!Sansão!” Nesse exato momento, como se tivesseouvido a barulheira de fora, apareceu na janelinhade trás da carroça a cara de Sansão, com sua

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mancha branca no focinho. “Sansão!”, berrouQuitéria, desesperada. “Sansão! Saia depressa!Estão te levando pro matadouro!”

Os bichos gritavam a um tempo:“Saia daí, Sansão, saia daí!”Mas o carroção acelerou e começou a

distanciar-se. Não podiam saber se Sansão haviaentendido Quitéria. Logo depois, entretanto, suacara desapareceu da janela, e ouviu-se o barulhoda tremenda pancadaria de seus cascos no interiordo carroção. Ele tentava livrar-se de qualquermaneira. Tempo houvera em que com alguns coicesSansão transformaria aquela carroça num monte delenha. Mas ai! — sua força o abandonara; empoucos instantes, o som das batidas diminuiu emorreu. Desesperados, os animais suplicaram aosdois cavalos que puxavam o carroção que sedetivessem.

“Camaradas! Camaradas!”, gritavam. “Nãolevem um irmão para essa morte!” Porém osbrutos, estúpidos, ignorantes demais para entendero que acontecia, limitaram-se a murchar as orelhase apertar o passo. A cara de Sansão não

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reapareceu mais na janela. Alguém pensou emcorrer à frente e fechar a porteira das cinco barras,mas era tarde demais, pois logo o carroçãoatravessava a porteira e desaparecia rapidamentena estrada. Sansão nunca mais foi visto.

Três dias depois, chegou a notícia de que haviafalecido no hospital veterinário de Willingdon, adespeito de ter recebido todos os cuidados que umcavalo merece. Garganta veio dar a notícia.Presenciara, disse, os últimos momentos deSansão.

“Foi a cena mais comovente de minha vida!”,relatou Garganta, erguendo a pata e deixando rolaruma lágrima. “Eu estava à sua cabeceira noinstante final. Quase sem poder falar, ele sussurrouao meu ouvido que seu único pesar era morrerantes de ter terminado o moinho de vento. ‘Avante,camaradas! Viva a Granja dos Bichos! Viva oCamarada Napoleão! Avante, em nome daRevolução! Napoleão tem sempre razão.’ Estasforam suas últimas palavras, camaradas.”

Em seguida, os modos de Garganta setransformaram. Caiu em silêncio por um momento,

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e seus olhinhos deram miradas suspeitosas para oslados antes de prosseguir.

Chegara a seu conhecimento, disse ele, que umboato idiota e perverso circulara por ocasião dointernamento de Sansão. Alguns animais tinhamvisto que na carroça que transportou Sansão estavaescrito MATADOURO DE CAVALOS, chegando à conclusãode que Sansão estava sendo mandado para ocarniceiro. Era quase inacreditável que um bichopudesse ser tão estúpido. Com certeza, gritouindignado, sacudindo o rabicho e dando pulinhos,com certeza todos conheciam seu amado Líder, oCamarada Napoleão, não? A explicação era muitosimples. A carroça pertencera, antes, aocarniceiro, depois fora comprada pelo cirurgiãoveterinário, que ainda não apagara o letreiro. Eiscomo se dera o engano.

Os bichos ficaram imensamente aliviados comisso. E quando Garganta continuou dando detalhessobre a câmara mortuária de Sansão, oextraordinário cuidado que recebeu e oscaríssimos remédios que Napoleão mandaracomprar sem olhar o preço, desapareceram suas

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últimas dúvidas, e a tristeza pelo camarada mortofoi mitigada pela certeza de que pelo menosmorrera feliz.

O próprio Napoleão apareceu no encontro dodomingo seguinte e pronunciou uma singela oraçãoem memória de Sansão. Não fora possível,explicou, trazer de volta os despojos do lamentadocamarada para o enterro, porém dera ordem paraque se confeccionasse uma grande coroa comlouros do jardim e a enviara para ser colocada notúmulo de Sansão. E anunciou-se, alguns diasdepois, que os porcos pretendiam realizar umbanquete em memória de Sansão. Napoleãofinalizou seu discurso relembrando as duasmáximas prediletas de Sansão: “Trabalharei maisainda” e “O Camarada Napoleão tem semprerazão”, máximas, disse, que cada animal deveriaadotar.

No dia marcado para o banquete, chegou deWillingdon a carroça de um armazém edesembarcou na casa-grande um engradado demadeira. Naquela noite ouviu-se uma alta cantoriaseguida de algo que parecia uma discussão

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violenta e que terminou cerca das onze horas comuma tremenda barulheira de vidros quebrados. Nodia seguinte, ninguém se levantou na casa-grandeaté o meio-dia, e correu uma conversa de que osporcos haviam conseguido, não se sabia de quemaneira, dinheiro para adquirir outra caixa deuísque.

*

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10.Passaram-se anos. As estações se alternavam, e

a curta vida dos bichos se consumia. Tempochegou em que ninguém mais se lembrava de antesda Rebelião, exceto Quitéria, Benjamim, o corvoMoisés e alguns porcos.

Maricota morreu; Branca, Lulu e Cata-Ventomorreram. Jones também morreu num asilo dealcoólatras, noutra cidade. Bola-de-Neve foraesquecido. Sansão também, exceto pelos poucosque o haviam conhecido. Quitéria era agora umaégua velha, corpulenta, com os olhos atacados pelacatarata. Já passara dois anos da idade de seaposentar. Aquela história de reservar um pedaçode campo para os animais idosos não era mais nemmencionada. Napoleão tornara-se um cachaçomadurão de uns cento e cinquenta quilos. Garganta

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estava tão gordo que mal conseguia abrir os olhos.Somente o velho Benjamim continuava o mesmo,apenas o focinho um pouco mais grisalho, e desdea morte de Sansão, mais rabugento e taciturno quenunca.

Agora existiam muito mais criaturas na granja,embora o índice de crescimento não fosse aqueleque esperavam nos primeiros anos. Haviamnascido muitos animais; para alguns a Rebeliãonão passava de uma obscura tradição transmitidaoralmente, e outros nem sequer tinham ouvido falara respeito. A granja contava agora com trêscavalos além de Quitéria. Eram bichosmaravilhosos, trabalhadores incansáveis, bonscamaradas, mas muito estúpidos. Nenhum mostrou-se capaz de aprender o alfabeto além da letra B.Aceitavam tudo quanto lhes era dito sobre aRevolução e os princípios do Animalismo,especialmente por Quitéria, a quem dedicavam umrespeito filial, mas era duvidoso que entendessemlá grande coisa.

A granja prosperava e estava mais bemorganizada; fora até aumentada pela compra de

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dois tratos de terra do sr. Pilkington. O moinho devento, afinal, fora concluído com êxito, a granjapossuía uma debulhadeira e um elevador de fenopróprio, e várias construções novas haviam seerguido. Whymper comprara uma charrete. Omoinho de vento, entretanto, não era usado paragerar energia elétrica. Usavam-no para moercereais, coisa que dava bom dinheiro. Os animaisestavam a braços com a construção de outromoinho de vento; quando este estivesse concluído,dizia-se, seriam instalados os dínamos. Masnaquele luxo de que Bola-de-Neve lhes falaracerta vez — baias com luz elétrica e água quente efria — e na semana de três dias não se falavamais. Napoleão denunciara tais ideias comocontrárias aos princípios do Animalismo. Averdadeira felicidade, dizia, estava em trabalharbastante e viver frugalmente.

De certa maneira, era como se a granja tivesseficado rica sem que nenhum animal houvesseenriquecido — exceto, é claro, os porcos e oscachorros. Talvez isso acontecesse por existiremali tantos porcos e tantos cachorros. Não que esses

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animais não trabalhassem, à sua moda. Gargantanunca se cansava de explicar que havia umtrabalho insano na ação de supervisionar eorganizar a granja. Grande parte desse trabalho erade natureza tal que estava além da ignorância dosbichos. Tentando explicar, Garganta dizia que osporcos despendiam diariamente enormes esforçoscom coisas misteriosas chamadas “arquivos”,“relatórios”, “minutas” e “memos”. Grandes folhasde papel que precisavam ser miudamente cobertascom escritos e logo depois queimadas no forno.Era tudo da mais alta importância para o bem-estarda granja, dizia. A verdade é que nem os porcosnem os cachorros produziam um só grama dealimento com seu trabalho; e havia um bocadodeles, com o apetite sempre em forma.

Quanto aos outros, sua vida, ao que sabiam,continuava a mesma. Geralmente andavam comfome, dormiam em camas de palha, bebiam águano açude e trabalhavam no campo; no inverno,sofriam com o frio; no verão, com as moscas. Devez em quando, os mais idosos rebuscavam aapagada memória e tentavam determinar se nos

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primeiros dias da Rebelião, logo após a expulsãode Jones, as coisas tinham sido melhores ou pioresque agora. Não conseguiam lembrar. Nada haviacom que comparar: não tinham em que basear-se,exceto as estatísticas de Garganta, queinvariavelmente provavam estar tudo cada vezmelhor. Os bichos consideravam o problemainsolúvel; de qualquer maneira, dispunham demuito pouco tempo para essas especulações.Apenas o velho Benjamim afirmava lembrar-se decada detalhe de sua longa vida e saber que ascoisas nunca haviam estado e nunca haveriam deficar nem muito melhor nem muito pior, sendo afome, o cansaço e a decepção, assim ele dizia, alei imutável da vida.

Apesar disso, os bichos nunca perdiam aesperança. Mais ainda, jamais lhes faltava, nempor instantes, o sentimento de honra peloprivilégio de serem membros da Granja dosBichos, que continuava a ser a única em todo ocondado — em toda a Inglaterra! — depropriedade dos animais e por eles administrada.Nenhum deles, nem mesmo os mais moços, nem

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mesmo os provenientes de outras granjas, situadasalgumas a dez ou vinte quilômetros de distância,nunca deixou de maravilhar-se com isso. E quandoouviam o tiro da espingarda e viam a bandeiratremulando no topo do mastro, seu coraçãoinchava de orgulho, e a conversa passava a girarem torno dos históricos dias de antanho, daexpulsão de Jones, da inscrição dos SeteMandamentos, das grandes batalhas em que osinvasores humanos haviam sido derrotados.Nenhum dos antigos sonhos fora abandonado. ARepública dos Bichos, que o velho Major haviaprevisto, quando os verdes campos da Inglaterranão mais seriam pisados por pés humanos, eracoisa em que ainda acreditavam. O dia havia dechegar. Podia ser mais cedo ou mais tarde, talveznão acontecesse durante a vida de nenhum dosanimais de então, mas havia de chegar. Até amelodia de “Bichos da Inglaterra” talvez fossecantarolada em segredo aqui e ali; de qualquermaneira, a verdade é que cada bicho da granja aconhecia, embora nenhum tivesse coragem decantá-la em voz alta. Talvez fosse verdade que a

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vida era difícil e que nem todas as suas esperançashaviam se concretizado; mas tinham consciênciade não ser iguais aos outros animais. Se sentiamfome, não era por alimentarem alguns tirânicosseres humanos; se trabalhavam arduamente, pelomenos trabalhavam em benefício próprio.Nenhuma criatura dentre eles andava sobre duaspernas. Nenhuma criatura era “dona” de outra.Todos os animais eram iguais.

Certo dia, no início do verão, Garganta mandouque as ovelhas o seguissem e levou-as para umcampo situado nos confins da granja, que foratomado de brotação de vidoeiro. As ovelhaspassaram o dia inteiro roendo as brotações, sob asupervisão de Garganta. À noite, ele regressou àgranja, mas, como o tempo estava quente, disse àsovelhas que permanecessem lá. Terminaramficando a semana toda, durante a qual os outrosbichos nem as viram. Garganta passava com elas amaior parte do dia. Ensinava-lhes, segundoexplicou, uma nova canção para a qual precisavade certo sigilo.

Foi logo após o retorno das ovelhas, numa noite

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agradável, quando os bichos haviam terminado otrabalho e regressavam à granja, que se ouviu,vindo do pátio, um relinchar horripilante.Arrepiados, os animais estacaram. Era a voz deQuitéria. Ela relinchou outra vez, e os bichosdispararam a galope para o pátio. Viram, então, oque ela vira.

Um porco caminhava sobre as duas patastraseiras.

Sim, era Garganta. Um tanto desajeitado, devidoà falta de prática em manter seu apreciável volumenaquela posição, mas em perfeito equilíbrio,passeava pelo pátio. Momentos depois saiu pelaporta da casa uma comprida coluna de porcos,todos caminhando sobre as patas de trás. Unsmelhor que outros, um ou dois até meiodesequilibrados e dando a impressão de queapreciariam o apoio de uma bengala, mas todosderam a volta no pátio muito bem. Finalmentehouve um alarido dos cachorros, ouviu-se ococoricó esganiçado do garnisé, e surgiuNapoleão, majestoso, desempenado, lançandoolhares arrogantes para os lados, com os

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cachorros brincando em volta.Empunhava um chicote nas patas dianteiras.Houve um silêncio mortal. Surpresos,

aterrorizados, uns junto dos outros, os bichosolhavam a fila de porcos marchar lentamente aoredor do pátio. Pareceu-lhes enxergar o mundo decabeça para baixo. Então veio um momento emque, passado o primeiro choque e a despeito detudo — a despeito do terror dos cachorros e dohábito, arraigado após tantos anos, de nunca sequeixarem, nunca criticarem, pouco importa o quesucedesse —, poderiam lançar uma palavra deprotesto. Mas exatamente nesse instante, como seobedecessem a um sinal combinado, as ovelhas,em uníssono, irromperam num balido espetacular:

“Quatro pernas bom, duas pernas melhor!Quatro pernas bom, duas pernas melhor! Quatropernas bom, duas pernas melhor!”

Baliram durante cinco minutos sem cessar. Equando se calaram, fora-se a oportunidade dapalavra de protesto, pois os porcos já haviamvoltado para dentro da casa.

Benjamim sentiu um focinho esfregar-lhe o

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lombo. Era Quitéria. Seus olhos pareciam maisencobertos que nunca. Sem dizer palavra, ela opuxou delicadamente pela crina, levando-o até ofundo do grande celeiro, onde estavam escritos osSete Mandamentos. Durante um ou dois minutosficaram olhando a parede alcatroada com o grandeletreiro branco.

“Minha vista está falhando”, ela disse afinal.“Mesmo quando eu era moça, não conseguia ler oque estava escrito aí. Mas me parece agora que aparede está meio diferente. Os Sete Mandamentossão os mesmos de sempre, Benjamim?”

Pela primeira vez Benjamim consentiu emquebrar sua norma, e leu para ela o que estavaescrito na parede. Nada havia, agora, senão umúnico Mandamento que dizia:

TODOS OS BICHOS SÃO IGUAIS, MASALGUNS BICHOS SÃO MAIS IGUAIS QUE OUTROS

Depois disso, não foi de estranhar que, no diaseguinte, os porcos que supervisionavam otrabalho da granja andassem com chicotes naspatas. Ninguém estranhou saber que os porcoshaviam comprado um aparelho de rádio, que

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estavam tratando da instalação de um telefone e daassinatura de jornais e revistas. Não estranharamquando Napoleão foi visto passeando nos jardinsda casa com um cachimbo na boca — não, nemquando os porcos se apoderaram das roupas do sr.Jones e passaram a usá-las, Napoleãoapresentando-se com um casaco negro, calções decaça e perneiras de couro, enquanto sua porcafavorita surgia com o vestido de seda chamalotadoque a sra. Jones usava aos domingos.

Uma semana mais tarde, após o meio-dia,apareceram numerosas charretes subindo rumo àgranja. Uma representação de granjeiros vizinhosfora convidada a realizar uma visita de inspeção.Toda a granja lhes foi mostrada, e elesexpressaram grande admiração por tudo quantoviram, em especial pelo moinho de vento. Osbichos estavam limpando a lavoura de nabos.Trabalhavam diligentemente, mal levantando oolhar do chão e sem saber a quem temer mais, seaos porcos, se aos visitantes humanos.

Naquela noite, altas risadas e cantoriaschegaram da casa. Lá pelas tantas, ante o som das

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vozes misturadas, os bichos encheram-se decuriosidade. Que estaria acontecendo lá dentro,agora que, pela primeira vez, encontravam-se emtermos de igualdade os animais e os humanos?Pensando todos a mesma coisa, dirigiram-sefurtivamente para o jardim da casa.

No porão titubearam, um tanto temerosos, masQuitéria deu o exemplo e entrou. Andaram pé antepé, até a casa, e os mais altos espiaram através dajanela da sala de jantar. Lá dentro, em volta deuma mesa grande, estavam sentados meia dúzia degranjeiros e meia dúzia de porcos dentre os maiseminentes, Napoleão no lugar de honra, àcabeceira. Os porcos pareciam perfeitamente àvontade em suas cadeiras. O grupo estiverajogando cartas, mas havia interrompido o jogo porinstantes, evidentemente para os brindes. Umgrande jarro circulava, e os copos se enchiam decerveja. Ninguém notou as caras admiradas dosbichos, que espiavam pela janela.

O sr. Pilkington, da Granja Foxwood, levantara-se com o copo na mão. Disse que ia convidar ospresentes para um brinde. Mas antes desejava

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dizer algumas palavras, que julgava ser seu deverpronunciar.

Era motivo de grande satisfação para ele — etinha certeza de que falava por todos os demais —sentir que o longo período de desconfianças edesentendimentos chegara ao fim. Tempo houvera— não que ele ou qualquer um dos presentestivesse pensado dessa maneira —, mas tempohouvera em que os respeitáveis proprietários daGranja dos Bichos eram olhados não diria comhostilidade, mas com certa apreensão, por seusvizinhos humanos. Ocorreram incidentesdesagradáveis, e ideias errôneas circularam.Parecera a muitos que a existência de uma granjapertencente a animais e por eles administrada eracoisa um tanto fora do comum e poderia vir acausar transtornos à vizinhança. Muitos granjeirossupuseram, sem as verificações devidas, que emtal granja prevalecia um espírito de licenciosidadee indisciplina. Tinham se preocupado com o efeitode tudo isso sobre seus próprios animais, e atémesmo sobre seus empregados humanos. Mastodas essas dúvidas estavam agora dissipadas.

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Hoje, ele e seus companheiros tinham visitado aGranja dos Bichos, inspecionando cada metroquadrado com seus próprios olhos, e o que haviamencontrado? Não apenas métodos dos maismodernos, mas uma ordem e uma disciplina quepodiam servir de exemplo. Julgava poder afirmarque os animais inferiores da Granja dos Bichostrabalhavam mais e recebiam menos comida doque quaisquer outros animais do condado. Parafalar a verdade, ele e seus companheiros de visitahaviam visto, naquele dia, muita coisa quepretendiam introduzir imediatamente em suaspróprias granjas.

Finalizaria suas palavras, continuou,assinalando mais uma vez os sentimentos deamizade que prevaleciam e deviam prevalecerentre a Granja dos Bichos e seus vizinhos. Entre osporcos e os seres humanos não havia, e eraminteiramente inadmissíveis, quaisquer conflitos deinteresses. Suas lutas e dificuldades eram uma só.Pois o trabalho não constituía o mesmo problemaem toda parte? A essa altura, evidenciou-se que osr. Pilkington pretendia brindar a plateia com um

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dito espirituoso, mas por alguns momentos pareceuque gozava demais da própria piada, para poderdizê-la. Depois de muita sufocação, que deixouvermelhos seus vários queixos, ele conseguiu dizê-la: “Se Vossas Senhorias têm problemas comvossos animais inferiores, nós os temos lá comnossas classes inferiores”. Este bon mot causousensação na mesa, e o sr. Pilkington novamentefelicitou os porcos pelas muitas horas de trabalho,pela ausência de mimos e pelas baixas rações queobservara na Granja dos Bichos.

E agora, disse finalmente, convidava o grupo alevantar-se e verificar se os copos estavam cheios.

“Cavalheiros”, concluiu o sr. Pilkington,“proponho um brinde: à prosperidade da Granjados Bichos!”

Houve uma entusiástica ovação e uma salva depalmas. Napoleão ficou tão emocionado quedeixou seu lugar e deu a volta na mesa para tocarcom seu copo o do sr. Pilkington, antes de esvaziá-lo. Quando as felicitações acabaram, Napoleão,que permanecera de pé, disse que iria tambémproferir algumas palavras.

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Como todos os discursos de Napoleão, aquelefoi curto e direto ao assunto. Também ele, disse,alegrava-se de que o período de desentendimentostivesse chegado ao fim. Por longo tempo houverarumores — inventados, acreditava, e tinha razõespara isso, por algum inimigo mal-intencionado —de que havia algo de subversivo e mesmo derevolucionário nos pontos de vista seus e de seuscompanheiros. Tinham passado por desejosos defomentar a rebelião entre os animais das granjasvizinhas. Nada podia estar mais longe da verdade!Seu único desejo, agora como no passado, eraviver em paz e gozando de relações normais comseus vizinhos. Aquela granja que ele tinha a honrade governar, acrescentou, era um empreendimentocooperativo. As escrituras que estavam em seupoder conferiam a posse a todos os porcos.

Não acreditava que ainda restassem quaisquerdas velhas suspeitas, mas certas modificações narotina da granja haviam sido introduzidas com ofito de promover uma confiança ainda maior. Atéaquele momento os bichos haviam conservado ohábito imbecil de se dirigir uns aos outros pelo

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vocativo de “camarada”. Isso ia acabar. Existiratambém o costume insólito, cuja origem eradesconhecida, de marchar aos domingos,desfilando diante de uma caveira de porco pregadanum poste. Isso também ia acabar, e a caveira jáfora enterrada. Os visitantes, com certeza, teriamobservado também a bandeira verde que tremulavano poste. Nesse caso, haveriam de ter notado queas antigas figuras do chifre e do casco, em branco,tinham sido suprimidas. Daí por diante seria umabandeira puramente verde.

Gostaria de fazer apenas um reparo, disse, aoexcelente discurso, bem próprio de um bomvizinho, do sr. Pilkington. Este referira-se o tempotodo à Granja dos Bichos. Naturalmente ele nãopodia saber — mesmo porque Napoleão o estavaproclamando naquele instante pela primeira vez —que a denominação “Granja dos Bichos” foraabolida. A partir daquele momento sua granjadeveria ser chamada Granja do Solar — que,aliás, era seu nome correto e original.

“Cavalheiros”, concluiu Napoleão, “levantareio mesmo brinde, mas de forma diferente. Enchei

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até a borda vossos copos. Cavalheiros, este é omeu brinde: à prosperidade da Granja do Solar!”

Houve as mesmas calorosas felicitações deantes, e os copos foram esvaziados. Mas aos olhosdos bichos, que lá de fora espiavam, pareceu quealgo estranho estava acontecendo. Que diabo teriaalterado a cara dos porcos? Os olhos embaçadosde Quitéria iam de uma cara para outra. Algumastinham cinco queixos, outras quatro, outras três.Mas algo parecia misturá-las e modificá-las.Então, findos os aplausos, o grupo pegounovamente nas cartas, reencetando o jogointerrompido, e os animais afastaram-se emsilêncio.

Não haviam, porém, chegado sequer a vintemetros quando se detiveram ante o vozerio altoque vinha lá de dentro. Voltaram correndo etornaram a espiar pela janela. De fato, era umadiscussão violenta. Gritos, socos na mesa, olharesirados, furiosas negativas. A origem da briga,aparentemente, fora o fato de Napoleão e o sr.Pilkington terem, ao mesmo tempo, apresentado umás de espadas.

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Doze vozes gritavam, cheias de ódio, e eramtodas iguais. Não havia dúvida, agora, quanto aoque sucedera à fisionomia dos porcos. As criaturasde fora olhavam de um porco para um homem, deum homem para um porco e de um porco para umhomem outra vez; mas já era impossível distinguirquem era homem, quem era porco.

*

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Posfácio Repensando A revolução dosbichos| Christopher Hitchens (2006)

Certo dia no final da década de 1930, poucodepois de regressar da Guerra Civil Espanhola,George Orwell estava fazendo uma de suas longascaminhadas solitárias pelo interior da Inglaterra.Como haveria de recordar mais tarde:

Pensei em denunciar o mito soviético numa história que fossefácil de compreender por qualquer pessoa e fácil de traduzirpara outras línguas. No entanto, os detalhes concretos dahistória só me ocorreriam depois, na época em que moravanuma cidadezinha, no dia em que vi um menino de uns dezanos guiando por um caminho estreito um imenso cavalo detiro que cobria de chicotadas cada vez que o animal tentavase desviar. Percebi então que, se aqueles animais adquirissemconsciência de sua força, não teríamos o menor poder sobreeles, e que os animais são explorados pelos homens de modomuito semelhante à maneira como o proletariado é explorado

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pelos ricos.O conceito de “direitos dos animais” ainda não

existia na época, de maneira que Orwell decidiufazer um uso antropomórfico de sua percepção.Dessa vez os animais iriam adquirir fala,inteligência e a coragem de derrubar seusexploradores humanos. Mas sua tragédia seria umaescravidão nova e mais impiedosa nas mãos deseus semelhantes. Todos os animais seriamproclamados iguais, só que — de acordo com umaexpressão que desde então entrou para ovocabulário do nosso tempo — “alguns são maisiguais que outros”.

Orwell só terminaria o livro seis anos depois,preocupado que estava com o início da SegundaGuerra Mundial, com seus problemas de saúde ecom a necessidade de ganhar a vida comojornalista free-lancer e locutor de rádio. Omanuscrito original quase se perdeu quando seuapartamento em Londres foi atingido por um dosprimeiros mísseis conhecidos como “bombasvoadoras”, disparado do outro lado do canal pelosnazistas. E como veremos, por muito pouco não

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deixou de ser publicado. Mas vale a penaassinalar o momento germinal da história: aambição declarada de Orwell era “analisar ateoria de Marx do ponto de vista dos animais”. Eleservira na Espanha com as milícias do POUM, umpartido quase trotskista que sofrera uma repressãoterrível nas mãos do aparato policial dominadopelos soviéticos, e Orwell e sua mulher, Eileen,tiveram, como ele dizia, “muita sorte de sair daEspanha com vida”. Não menos importante, emBarcelona tinham visto

gente inocente ser atirada na prisão só por suspeita de desvioda ortodoxia. No entanto, quando voltamos à Inglaterra,encontramos muitos observadores sensatos e bem informadosque acreditavam nos relatos mais fantasiosos — envolvendoconspirações, traição e sabotagem — que a imprensa faziados processos de Moscou.

Na mesma medida em que os acontecimentos daEspanha assim se transformaram, em seu espírito,numa alegoria dos fatos mais amplos queaconteciam na Rússia, A revolução dos bichos setransformou numa sátira sobre a experiênciasoviética como um todo. “Ao longo dos últimosdez anos”, escreveu ele em 1947, “convenci-me de

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que a destruição do mito soviético era essencialpara conseguirmos reviver o movimentosocialista.”

Todos os trechos que cito aqui foram tirados deum prefácio que Orwell escreveu para uma ediçãode A revolução dos bichos publicada inicialmenteem ucraniano e distribuída nos campos derefugiados que se espalhavam pela Europa desde1945.* Para os refugiados ucranianos, que não sótinham sobrevivido à guerra como tambémassistido à stalinização de seu país, àcoletivização e à fome que a acompanhava, ahistória precisava de muito pouco em matéria decontexto ou explicação. No entanto, mais de meioséculo se passou desde aquele momento, e algunsde seus contornos merecem reforço, além de umcerto reexame.

No momento em que a ação do livro começa,todos os bichos da opressiva fazenda do sr. Jonessão convocados para ouvir a última mensagem dovelho porco moribundo que era o animal maisrespeitado de toda a propriedade. O velho Majoranalisa a vida de provação e sacrifício dos

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animais, conclama todos a derrubar seusopressores e pinta um quadro de um futuro radiosobaseado no princípio da ajuda mútua e daprosperidade. Propõe um hino, “Bichos daInglaterra”, para servir como sua versão da“Internacional Socialista”. Em seguida morre, masa mensagem arrebatadora dessa figura inspiradaem Marx logo é adotada pelos porcos mais cultos,a intelligentsia do mundo animal. Conseguemforjar uma aliança entre os fortes cavalos Sansão eQuitéria, que representam o proletariado, e oselementos disparatados do campo e da classemédia representados pelas ovelhas, pelas vacas,pelas galinhas e outras forças dos pastos e doquintal. Só a égua branca Mimosa — um tipopequeno-burguês que tinha sido alvo dos mimos dosr. Jones — e Moisés, o corvo — ave de umaeloquência crocitante e vocação de pregador quefala de um mundo além do céu —, permanecemindiferentes. Numa série de batalhas, não sóexpulsam o sr. Jones como ainda derrotam suastentativas de restaurar-se no poder com a ajuda defazendeiros vizinhos. Começa então um período de

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intensa construção, acompanhada de isolamento eperigo e, cada vez mais, da sensação de que osporcos se tinham apoderado de uma fatiaexcessiva de poder e privilégios.

Qualquer um que conheça um pouco a históriada Revolução Russa já terá percebido assemelhanças. E Orwell ainda fez o possível parasublinhar e enfatizar alguns paralelos. Aexcomunhão dos dissidentes, a reescritura dahistória, os julgamentos espetaculares e asexecuções em massa são representados comgrande nitidez. O fim do nobre cavalo Sansão, quetrabalha até morrer e no final é despachado damaneira mais cínica, é uma cena de emoçãointensa e terrível, e sabe-se que tende a comovermesmo os leitores mais jovens, que só têm umanoção muito vaga da analogia histórica. (Váriosdos contemporâneos de Orwell lhe escreveramcontando que seus filhos tinham gostado muito dolivro só pela sua história.) Mas é o cuidado comos detalhes que impressiona: Moisés, o corvo,acaba obtendo permissão de voltar à fazenda,assim como Stálin permitiu a reentrada em

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atividade da Igreja ortodoxa russa durante aSegunda Guerra Mundial, e a “InternacionalSocialista” foi substituída por versos e palavrasde ordem mais simples.

Por isso, é mais estranho ainda que, emdeterminado aspecto, a analogia seja extremamenteenganosa e incompleta. É muito óbvio, e não sódevido ao nome, que Napoleão deve representarStálin. E é igualmente óbvio, inclusive no que dizrespeito a seu exílio e sua queda em desgraça, queo outro líder dos porcos, Bola-de-Neve, pretenderepresentar Trotski. Mas onde fica Lênin nissotudo?

Tenho minha própria especulação acerca domotivo de Orwell ter composto seu “conto defadas” rural (como ele próprio chamava seu livro)como um Hamlet sem o príncipe. Naquela época, aesquerda em geral ainda não se decidira quanto aLênin. Os trotskistas denunciavam Stálin como o“coveiro” do leninismo; os stalinistasreivindicavam o manto de Lênin. Só as forçasconservadoras diziam que o leninismo e ostalinismo não passavam de dois nomes para a

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mesma coisa. E toda a “moral” da história seperde se a ideia da revolução dos bichos forperversa ou irracional desde o início. Assim,conscientemente ou não, Orwell apaga a figura queteria deixado sua história um pouco complicadademais. (Estranhamente, ou talvez por motivossemelhantes, também existe um Stálin, na forma doGrande Irmão, e um Trotski, na forma deEmmanuel Goldstein, em 1984. Mas Lênin estáausente.)

O leitor pode ter reparado que Orwell, acima,afirma que sua finalidade é “reviver o movimentosocialista”. Era uma aspiração compartilhadapelos refugiados ucranianos e poloneses que lheescreveram logo depois da Segunda GuerraMundial, perguntando se poderiam traduzir o livropara sua língua. O primeiro deles foi IhorSevcenko, que escreveu para Orwell em abril de1946:

A parte dos nossos emigrantes que foi parar no exílio não sódevido a convicções nacionalistas, mas pelo que sentiamvagamente tratar-se de uma procura da “dignidade humana”e da “liberdade”, não se sente nem um pouco reconfortadaquando algum intelectual de direita lhe faz uma advertência

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eloquente. Estava especialmente ansiosa para ouvir algumacoisa desse tipo, mas produzida no campo socialista, do qualse sentia intelectualmente mais próxima […] Em váriasocasiões traduzi diferentes trechos de A revolução dosbichos. Meus ouvintes eram refugiados soviéticos. O efeitosempre foi impressionante. Concordavam com quase todas assuas interpretações. Sentiam-se profundamente afetados porcenas como as dos animais cantando “Bichos da Inglaterra”no alto da encosta.

Foi em resposta a esse pedido que Orwellescreveu seu primeiro e único posfácio a estelivro, do qual retirei as citações acima. A ediçãoresultante, traduzida e barata, foi recolhida equeimada pelas autoridades de ocupaçãoamericanas na Alemanha, temerosas de que suadistribuição pudesse ofender as contrapartidas doExército Vermelho na outra “zona”. E nem foi esseo único destino irônico que as primeiras ediçõesdo livro acabaram tendo. Os comunistas e seussimpatizantes no Ministério da Informaçãobritânico do tempo da guerra (um dos quais seriamais tarde denunciado como agente da KGB)fizeram naturalmente o possível para inibir apublicação da obra, que poderia causar embaraçosa Stálin, então aliado de guerra. Mas até T. S.

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Eliot, o doyen do mundo editorial conservador,rejeitou A revolução dos bichos quando o livro lhefoi submetido, e achava que o romance erainoportuno — para não falar do quanto erainadequado apresentar os comunistas comoporcos. Nos Estados Unidos, o livro foi rejeitadoduas vezes. A primeira recusa, que pode ter sidosimples idiotice, veio da Dial Press, que escreveupara Orwell dizendo-lhe que não havia mercadopara histórias com animais na América (numacultura dominada por Walt Disney!). A segundarejeição foi claramente ideológica. ArthurSchlesinger Jr. enviou um exemplar do livro para aRandom House, onde foi rejeitado por umimportante companheiro de viagem comunistachamado Angus Cameron. Embora A revoluçãodos bichos tenha acabado encontrando pequenoseditores em tiragens limitadas, tanto em Londresquanto em Nova York, quase foi condenado aodestino de Lutando na Espanha, o livropraticamente ignorado que Orwell escrevera sobresuas experiências com o stalinismo na GuerraCivil Espanhola. Talvez seja justo que este livro

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tenha sido um caso prematuro de samizdat.**

Numa medida impressionante e surpreendente,continua a existir nessa forma. Tendo setransformado num clássico da Guerra Fria (a CIA

mais tarde compensaria de sobra a destruição dolivro pelo exército americano, ajudando apatrocinar sua ampla distribuição em inúmerospaíses do mundo, junto com uma versão depropaganda em desenho animado), hoje éconsagrado na Europa Oriental como uma dasprimeiras afirmações originais doantitotalitarismo. Mas na China continua proibido,muito embora uma versão musical já tenha sidoencenada por ousados vanguardistas, e na Coreiado Norte, claro, nem sequer é conhecido. Umamigo comunista me telefonou da China algunsanos atrás para dizer que achava que eu podia terrazão sobre Orwell, no fim das contas. Acabara deler um discurso de um dos líderes do partido,dizendo que os camponeses precisavamenriquecer, e que “alguns deles iriam ficar maisricos que os outros”. Foi a primeira vez que ouvifalar em Deng Xiaoping.

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No Zimbábue, em resposta à repressãogeneralizada promovida pelo partido governantede Robert Mugabe, bem como ao uso de alimentoscomo arma para premiar ou punir os eleitores, ojornal da oposição simplesmente mandoureimprimir o texto de A revolução dos bichos naforma de um folhetim diário ilustrado. Semqualquer comentário adicional: a única pista era opar de óculos parecidos com os de Mugabe usadopela figura de Napoleão. Em pouco tempo, a sededo jornal sofreu um atentado a bomba, comexplosivos de alta potência disponíveis apenaspara o exército do país. Do mundo islâmico, olivro continua banido, o que é justificado, alega-se, pelo fato de retratar porcos. Pouco importa queos porcos sejam apresentados como o opressor: oliteralismo corânico permanece absoluto. E podehaver outros motivos para a proibição: poucotempo atrás, fui abordado por dissidentesiranianos que pretendiam produzir uma ediçãopirata que, esperam, possa denunciar a corrupçãoe a ganância dos supostos puritanos que governama República Islâmica.

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O livro é famoso por terminar com os animaisreunidos do lado de fora, no frio, observando orapprochement entre porcos e seres humanos eincapazes de distinguir quem era o quê. Isso já foientendido, erradamente, como a afirmação daequivalência moral entre capitalismo ecomunismo, e por essa razão o trecho foi cortadodo desenho produzido pela CIA. Na verdade, comosabemos pelo próprio Orwell, o final era umareferência sarcástica ao então famoso encontro deTeerã reunindo Churchill, Roosevelt e Stálin.Saudado num primeiro momento como umapromessa de cooperação no pós-guerra entre osdiversos blocos, o encontro lhe pareceu umareunião cínica destinada à partilha do butim, cujosefeitos dificilmente haveriam de durar muito. (Oacordo subsequente firmado em Yalta,consolidando a divisão da Europa e do resto domundo, inaugurou o estado de permanente “GuerraFria” — expressão cunhada por Orwell — quecaracterizaria 1984.) O que o romance na verdadenos diz, com seus amenos empréstimos de Swift eVoltaire, é que aqueles que renunciam à liberdade

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em troca de promessas de segurança acabarão semuma nem outra. Essa é uma lição que transcende omomento em que foi escrita.

*

* O prefácio de Orwell está reproduzido nesta edição, como apêndice. (N.E.)** Publicações que circulavam clandestinamente nos países do blocosoviético. (N. E.)

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Apêndices

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IA liberdade de imprensaprefácio proposto pelo autor à primeira ediçãoinglesa, de 1945*

Este livro começou a ser concebido, ou pelomenos sua ideia central, em 1937, mas só comeceia escrevê-lo no final de 1943. Quando finalmenteterminei, ficou óbvio que seria muito difícilpublicá-lo (apesar da escassez corrente de livros,graças à qual qualquer coisa que se possadescrever como um livro acaba “vendendo”), e defato ele acabou sendo recusado por quatroeditores. Só um deles tinha alguma motivaçãoideológica. Dois outros vinham publicando livrosantirrussos havia muitos anos, e o outro não tinhanenhuma coloração política perceptível. Na

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verdade um dos editores primeiro aceitou o livro,mas depois dos acertos preliminares decidiuconsultar o Ministério da Informação, que pareceter se manifestado contrário à publicação, ou pelomenos energicamente alarmado com ela. Eis umtrecho de sua carta:

Mencionei a reação que colhi junto a um importantefuncionário do Ministério da Informação quanto a Arevolução dos bichos, e devo confessar que a opinião queele manifestou me fez pensar muito seriamente […] Agoravejo o quanto a publicação do livro no momento atual pode serconsiderada de extrema inconveniência. Se a fábula tratassede ditadores e ditaduras em geral, não haveria problema empublicá-la, mas ela, como agora entendi, corresponde tãocompletamente aos fatos ocorridos na Rússia soviética e aseus dois ditadores que só pode se aplicar à Rússia, excluindoas demais ditaduras. Outra coisa: seria menos ofensivo se acasta predominante na fábula não fosse a dos porcos.** Creioque a escolha dos porcos para a casta governante irácertamente ofender muita gente, especialmente as pessoasmais suscetíveis, como sem dúvida é o caso dos russos.

Esse tipo de coisa não é um bom sintoma.Obviamente, não desejamos que nenhumdepartamento do governo tenha poder de censura(exceto a censura de segurança nacional, a queninguém se opõe em tempo de guerra) sobre livros

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que nem contam com patrocínio oficial. Mas aquio principal atentado contra a liberdade depensamento e de expressão não é a interferênciadireta do ministério ou de qualquer outroorganismo oficial. Se os donos e diretores daseditoras se empenham em manter certos tópicoslonge da página impressa, não é porque tenhammedo de processos judiciais, mas porque temem aopinião pública. Neste país, a covardia intelectualé o pior inimigo que um escritor ou jornalistaprecisa enfrentar, e esse fato não me parece estarsendo tão discutido quanto mereceria.

Qualquer pessoa equilibrada com experiênciajornalística admitirá que, durante esta guerra, acensura oficial não tem sido especialmenteincômoda na Inglaterra. Não fomos submetidos aotipo de “coordenação” totalitária que seria atérazoável esperar. A imprensa tem algumas queixasjustificáveis, mas no geral o governo vem secomportando bem, demonstrando umasurpreendente tolerância em relação às opiniõesminoritárias. O pior da censura literária naInglaterra é que em grande parte ela é voluntária.

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Ideias impopulares podem ser silenciadas, e fatosinconvenientes podem ser mantidos à sombra, sema necessidade de nenhuma proibição oficial.Qualquer pessoa que tenha passado algum temponum país estrangeiro conhecerá muitos casos emque notícias sensacionalistas — notícias que, porseus próprios méritos, fariam manchete — sãomantidas fora da imprensa britânica não por causade alguma intervenção do governo, mas devido aum acordo tácito generalizado segundo o qual “nãoconvinha” mencionar aquele fato em particular. Noque se refere aos jornais diários, isso é fácil deentender. A imprensa britânica é altamentecentralizada, e quase toda controlada por homensricos que têm todos os motivos para se mostrardesonestos em relação a certas questõesfundamentais. Mas o mesmo tipo de censuravelada também afeta livros e periódicos, além depeças teatrais, filmes e a programação do rádio.Em qualquer momento dado, existe uma ortodoxia,um corpo de ideias que, supostamente, todas aspessoas bem-pensantes aceitarão sem questionar.Não é exatamente proibido dizer isso ou aquilo,

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mas dizê-lo é uma coisa que “não se faz”, assimcomo na era vitoriana falar de roupas de baixo napresença de uma senhora era coisa que “não sefazia”. Qualquer um que desafie a ortodoxiapredominante se vê silenciado com uma eficáciasurpreendente. Uma opinião genuinamentedestoante quase nunca recebe a atenção devida,nem na imprensa popular nem nos periódicos maisintelectualizados.

No momento atual, o que a ortodoxiapredominante exige é uma admiração acrítica daRússia soviética. Todo mundo sabe disso, e quasetodo mundo age de acordo. Qualquer crítica sériaao regime dos sovietes, qualquer revelação defatos que o governo soviético prefira manterocultos são coisas praticamente impublicáveis. Eessa conspiração de alcance nacional destinada aagradar nossa aliada ocorre, o que é muitocurioso, contra um fundo de autêntica tolerânciaintelectual. Porque, embora não lhe seja permitidocriticar o governo soviético, pelo menos temosuma razoável liberdade para criticar o nosso.Quase ninguém publicaria um ataque a Stálin, mas

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não há o menor problema em atacar Churchill,pelo menos por escrito, em livros ou revistas. E aolongo de cinco anos de guerra, durante dois ou trêsdos quais lutamos pela sobrevivência nacional,inúmeros livros, panfletos e artigos defendendouma paz negociada com o inimigo forampublicados sem nenhuma interferência. E mais,foram publicados sem despertar muita reprovação.Contanto que o prestígio da União das RepúblicasSocialistas Soviéticas não esteja envolvido, oprincípio da liberdade de expressão tem sidorazoavelmente respeitado. Existem assuntosproibidos, e falarei em seguida de alguns, mas aatitude dominante em relação à URSS é de longe omais sério dos sintomas. É por assim dizerespontânea, e não se deve à atividade de nenhumgrupo de pressão.

O servilismo com que a maior parte daintelligentsia britânica engole e repete apropaganda russa desde 1941 seria espantoso seos intelectuais britânicos não tivessem exibido umcomportamento similar em várias ocasiõesanteriores. Em todas as questões controversas, o

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ponto de vista russo é aceito sem discussão e emseguida divulgado sem o menor respeito pelaverdade histórica ou a decência intelectual. Paramencionar um bom exemplo, recentemente a BBC

comemorou o 25o aniversário do ExércitoVermelho sem tocar no nome de Trotski. O que eramais ou menos tão correto quanto celebrar aBatalha de Trafálgar sem mencionar o almiranteNelson, mas não provocou qualquer protesto daintelligentsia britânica. Nas disputas internas dosvários países ocupados, a imprensa britânica emquase todos os casos tomou o partido da facçãofavorecida pelos russos e difamou a facção oposta,chegando às vezes a suprimir provas materiais emseu esforço. Um caso especialmente flagrante foi odo coronel Mikhailovich, o líder guerrilheiroiugoslavo. Os russos, que tinham seu protegidoiugoslavo no marechal Tito, acusaramMikhailovich de colaborar com os alemães,acusação prontamente encampada pela imprensabritânica. Os partidários de Mikhailovich nãotiveram nenhuma oportunidade de rebatê-la, e fatosque contradiziam a colaboração foram

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simplesmente mantidos fora das páginas. Em julhode 1943, os alemães ofereceram uma recompensade 100 mil coroas de ouro pela captura de Tito, erecompensa igual pela captura de Mikhailovich. Aimprensa britânica deu ampla divulgação àrecompensa por Tito, mas só um jornal mencionou(em letras miúdas) a recompensa porMikhailovich, enquanto continuavam as acusaçõesde colaboração com os alemães. Coisas muitosemelhantes aconteceram durante a Guerra CivilEspanhola. Também naquela época, as facções dolado republicano que os russos estavamdeterminados a esmagar eram impiedosamentedifamadas na imprensa inglesa de esquerda [sic], equalquer declaração em sua defesa, mesmo emforma de carta, tinha a publicação recusada. Hoje,além de se considerar repreensível qualquercrítica séria à URSS, a própria existência dessascríticas tende a ser mantida em segredo. Porexemplo, pouco antes de sua morte, Trotskiescreveu uma biografia de Stálin. Pode-se suporque não fosse um livro exatamente imparcial, masevidentemente muito vendável. Uma editora

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americana combinou que iria publicá-lo, e o livrojá estava no prelo — acredito que os exemplaresdestinados à imprensa já tinham sido distribuídos— quando a URSS entrou na guerra. O livro foiimediatamente recolhido. Nenhuma palavra arespeito jamais foi lida na imprensa britânica,embora tanto a existência de tal livro quanto a suasupressão fossem uma notícia claramentemerecedora de alguns parágrafos.

É importante distinguir entre o tipo de censuraque a intelligentsia literária britânica aceitaimpor-se por vontade própria e a censura que àsvezes pode ser exercida por grupos de pressão.Existem alguns assuntos que, notoriamente, nãopodem ser discutidos por causa dos “interessesbem estabelecidos”. O caso que se conhece melhoré o da quadrilha da indústria farmacêutica. Outro éo da Igreja católica, que exerce uma influênciaconsiderável sobre a imprensa e conseguesilenciar até certo ponto as críticas que lhe sãofeitas. Um escândalo com um padre católico quasenunca é divulgado, enquanto qualquer sacerdoteanglicano que se envolva em problemas (por

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exemplo, o reitor de Stiffkey***) logo se transformaem manchete. É muito raro qualquer coisa detendência anticatólica aparecer no palco ou nastelas. Qualquer ator pode confirmar que uma peçaou filme que ataque a Igreja católica corre o riscode ser boicotado pela imprensa, e estaráprovavelmente fadado ao fracasso. Mas esse tipode coisa é inofensivo, ou no mínimocompreensível. Qualquer organização importantesempre cuida dos seus interesses da melhormaneira, e não se pode objetar à propagandadeclarada. É tão provável o Daily Worker divulgarfatos desfavoráveis à URSS quanto o CatholicHerald publicar denúncias contra o papa. Mastambém, qualquer pessoa pensante sabe o que sãoo Daily Worker e o Catholic Herald. O que éinquietante é que, sempre que a URSS e sua políticaestão em jogo, não se pode esperar críticasinteligentes nem, em muitos casos, pura e simpleshonestidade dos escritores e jornalistas liberais,que não sofrem pressões diretas para falsificarsuas opiniões. Stálin é sacrossanto, e certosaspectos de suas diretrizes não podem ser

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seriamente discutidos. Esta regra vem sendo quaseuniversalmente observada desde 1941, mas jáoperava, em medida bem mais ampla do que àsvezes se percebe, dez anos antes. Já naquelaépoca, a crítica do regime soviético a partir daesquerda só conseguia se fazer ouvir com muitadificuldade. Havia uma vasta produção deliteratura antirrussa, mas quase toda vinha dosrincões conservadores e era flagrantementedesonesta, desatualizada e movida por motivossórdidos. Do outro lado havia uma enchenteigualmente imensa e quase igualmente desonestade propaganda pró-russa, o que resultava noboicote de qualquer pessoa que tentasse discutirquestões fundamentais de forma adulta. Erapossível, de fato, publicar livros antirrussos, masfazê-lo era a garantia de ser ignorado ou ter suaspalavras distorcidas por quase toda a imprensaintelectualizada. Tanto em público quanto emparticular, era-se avisado de que isso “não se faz”.O que se tinha a dizer podia até ser verdade, masera “inoportuno” e “fazia o jogo” deste ou daqueleinteresse da reação. Essa atitude era geralmente

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defendida porque a situação internacional e anecessidade urgente de uma aliança anglo-russaassim o exigiam; mas era claro que se tratava deuma racionalização. A intelligentsia britânica, ougrande parte dela, desenvolveu uma lealdade àURSS de fundo nacionalista e, na verdade, estavaconvencida de que pôr em dúvida a sabedoria deStálin era uma espécie de blasfêmia. O que ocorriana Rússia devia ser julgado por padrões diferentesdos empregados para avaliar o que ocorria noresto do mundo. As infindáveis execuções dosexpurgos de 1936-8 foram aplaudidas por antigosopositores da pena capital, e da mesma formaconsiderava-se adequado noticiar a fome quandoacontecia na Índia, mas escondê-la quandoassolava a Ucrânia. E se esse já era o panoramaantes da guerra, a atmosfera intelectual certamentenão melhorou nos últimos tempos.

Mas voltando a este livro. A reação a ele porparte da maioria dos intelectuais ingleses serámuito simples: “Não devia ter sido publicado”.Naturalmente, os autores de resenhas que entendemda arte de denegrir não irão atacá-lo com base na

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política, mas usarão argumentos literários. Dirãoque é um livro tedioso e bobo, um escandalosodesperdício de papel. O que pode até ser verdade,mas obviamente não é a história toda. Não se podedizer que um livro “não devia ter sido publicado”só porque é ruim. Afinal, vastas quantidades delixo são impressas a cada dia, e ninguém seincomoda com isso. A intelligentsia britânica, emsua maioria, irá reclamar deste livro porquecalunia seu Líder e (na opinião deles) prejudica acausa do progresso. Se fosse o contrário, nadateriam a dizer contra a obra, mesmo que seusdefeitos literários fossem dez vezes maisflagrantes do que são. O sucesso, por exemplo, doClube do Livro de Esquerda nos últimos quatro acinco anos mostra o quanto esses leitores estãodispostos a tolerar uma escrita tanto ridículaquanto descuidada, contanto que lhes diga o quedesejam ouvir.

A questão em jogo aqui é muito simples: seráque qualquer opinião, por mais impopular — pormais estúpida, até — que seja, tem o direito de serdifundida? Formule-se a questão dessa maneira, e

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qualquer intelectual inglês se sentirá obrigado aresponder que sim. Mas quando ela se reveste deuma forma concreta, e alguém pergunta: “E que tal,por exemplo, um ataque a Stálin? Tem direito deser difundido?”, a resposta quase sempre será não.Neste caso, o que ocorre é um desafio à ortodoxiacorrente, de maneira que o princípio da liberdadede expressão deixa de funcionar. Quando alguémdefende a liberdade de expressão e de imprensa,não está reivindicando uma liberdade absoluta.Enquanto existirem sociedades organizadas,sempre deve existir, ou pelo menos sempre haveráde existir, algum grau de censura. Mas a liberdade,como disse Rosa Luxemburgo, é a “liberdade parao outro”. O mesmo princípio contido nas famosaspalavras de Voltaire: “Detesto cada palavra que osenhor diz, mas defenderei até a morte seu direitode dizê-las”. Se existe algum significado naliberdade do intelecto, que, sem dúvida, tem sidouma das marcas da civilização ocidental, é quecada um tem o direito de dizer e escrever o quejulga ser verdade, contanto que aquilo que diz ouescreve não seja inequivocamente nocivo para o

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restante da comunidade. Até há pouco, tanto ademocracia capitalista quanto as versõesocidentais do socialismo respeitavam tacitamenteesse princípio. Nosso governo, como já afirmei,ainda age como se o respeitasse. As pessoascomuns — em parte talvez por não se interessarempelas ideias a ponto de se mostrarem intolerantesquanto a elas — ainda defendem vagamente que“todo mundo deve ter direito a sua opinião”. Quemcomeça a desprezar a liberdade, tanto na teoriaquanto na prática, é só, ou principalmente, aintelligentsia literária e científica, exatamenteaqueles que deveriam ser seus maiores guardiães.

Um dos fenômenos característicos do nossotempo é o liberal renegado. Além da conhecidanoção marxista segundo a qual a “liberdadeburguesa” é uma ilusão, existe hoje uma difundidatendência a argumentar que a democracia só podeser defendida por métodos totalitários. Se a pessoatem apego pela democracia, diz o argumento,precisa esmagar seus inimigos lançando mão dequalquer meio. E quem são seus inimigos? Semprese diz que não são só os que a atacam aberta e

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conscientemente, mas os que “objetivamente” apõem em risco através da difusão de doutrinasequivocadas. Noutras palavras, a defesa dademocracia envolve a destruição de qualquerindependência de pensamento. Foi este oargumento usado, por exemplo, para justificar osexpurgos na Rússia. Mesmo o mais ardoroso dosrussófilos acredita que nem todas as vítimas eramde fato culpadas do que as acusavam, mas sim docultivo de opiniões heréticas que prejudicavam“objetivamente” o regime; portanto, era justo nãosó massacrá-las mas também desacreditá-laslançando-lhes falsas acusações. O mesmoargumento foi usado para justificar a mentirabastante consciente que correu pela imprensa deesquerda acerca dos trotskistas e outras minoriasrepublicanas durante a Guerra Civil Espanhola. Eque voltou a ser usada como motivo de tantoalarido contrário ao habeas corpus quando Mosleyfoi solto em 1943.*

Essas pessoas não veem que, quando seendossam métodos totalitários, pode chegar ummomento em que deixarão de ser usados a favor

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para se voltarem contra o indivíduo. Caso setransforme num hábito jogar fascistas na prisãosem julgamento, o processo talvez não se limiteaos fascistas. Pouco depois do Daily Worker, quefora proibido, ter sido reaberto, fui chamado paradar uma conferência num estabelecimento deensino para trabalhadores, no sul de Londres. Aplateia era composta de intelectuais da classetrabalhadora e de classe média baixa — o mesmotipo de público que costumava reunir-se nosencontros do Clube do Livro de Esquerda. Aconferência tocara na questão da liberdade deimprensa, e no final, para meu espanto, váriaspessoas se levantaram e me questionaram: eu nãoachava que a retirada da proibição ao DailyWorker tinha sido um grande erro? Quandoperguntei por quê, responderam-me que era umjornal de lealdade duvidosa, que não devia sertolerado em tempos de guerra. Logo me videfendendo o Daily Worker, que mais de uma vezfizera o possível para me difamar. Mas ondeaquelas pessoas teriam adquirido essa visãoessencialmente totalitária? Era muito provável que

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a tivessem aprendido com os próprios comunistas!A tolerância e a decência têm raízes profundas naInglaterra, mas não são indestrutíveis, e precisammanter-se vivas graças em parte a um esforçodeliberado. O resultado da pregação de doutrinastotalitaristas é o enfraquecimento do instintograças ao qual as pessoas sabem o que representaou não um perigo. O que é bem ilustrado pelo casode Mosley. Em 1940, era perfeitamente corretoprender Mosley, tivesse ele cometido ou não umcrime no sentido técnico. Estávamos lutando pelasnossas vidas, e não podíamos permitir que umpossível colaboracionista continuasse emliberdade. Mas mantê-lo preso em 1943, semjulgamento, era inaceitável. O fato de ninguém vera diferença era um mau sintoma, embora sejaverdade que toda a agitação contra a libertação deMosley foi em parte fabricada, uma racionalizaçãode outras insatisfações. Mas que parcela da derivaatual na direção de formas de pensamento fascistaspode ser atribuída ao “antifascismo” dos últimosdez anos, e à falta de escrúpulo que ele vempregando?

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É importante perceber que a russomania atual éapenas mais um sintoma do enfraquecimentogeneralizado da tradição liberal do Ocidente. Se oMinistério da Informação tivesse cometido oexagero de vetar em definitivo a publicação destelivro, o grosso da intelligentsia britânica não teriavisto nada de inquietante na medida. A lealdadeacrítica à URSS transformou-se na ortodoxia domomento, e sempre que os supostos interesses daURSS estão envolvidos, nossos intelectuais sedispõem a tolerar não só a censura como afalsificação deliberada da história. Para dar umexemplo, quando morreu John Reed, autor de Dezdias que abalaram o mundo — um relato emprimeira mão dos primeiros dias da RevoluçãoRussa —, os direitos autorais do livro passarampara as mãos do Partido Comunista Britânico, aquem Reed, segundo creio, tinha legado sua obra.Alguns anos mais tarde, os comunistas britânicos,depois de destruir o mais completamente quepuderam a edição original do livro, publicaramuma versão truncada na qual eliminaram todas asmenções a Trotski e também a apresentação escrita

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por Lênin. Se uma intelligentsia radical aindaexistisse na Grã-Bretanha, esse ato de contrafaçãoteria sido apontado e denunciado em todas asrevistas literárias do país. Na realidade, porém,quase não houve protesto. Para muitos intelectuaisingleses, aquilo pareceu uma coisa bem natural. Eessa tolerância ou flagrante desonestidade nãoocorre apenas porque a admiração pela Rússiaesteja em voga. É até provável que a moda nãodure muito. Inclusive pode ser que, no momentoem que este livro finalmente chegar ao público,minha visão do regime soviético tenha segeneralizado. Mas de que isso, por si só, vaiadiantar? A troca de uma ortodoxia por outra nãorepresenta necessariamente um avanço. O inimigoé a mentalidade de gramofone, concordemos ounão com o disco que está tocando agora.

Conheço bem todos os argumentos contrários àliberdade de pensamento e de expressão — osargumentos segundo os quais ela não pode existir,e os argumentos segundo os quais não deve.Respondo simplesmente que eles não meconvencem, e que a nossa civilização dos últimos

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quatrocentos anos apoia-se justo na noção oposta.Já faz praticamente uma década que acredito que oregime russo é basicamente maligno, e reivindicoo direito de dizê-lo, apesar da nossa aliança com aURSS numa guerra que desejo que vençamos. Se euprecisasse escolher um texto para justificar-me,escolheria um verso de Milton: “Pelas regrasconhecidas da antiga liberdade”.**

A palavra “antiga” enfatiza o quanto a liberdadeintelectual é uma tradição que tem raízes profundase sem a qual duvido que nossa típica culturaocidental pudesse existir. Mas é dessa tradiçãoque muitos de nossos intelectuais vêm sedesviando de maneira perceptível. Aceitaram oprincípio de que um livro deva ser publicado ousuprimido, louvado ou condenado, não com baseem seus méritos, mas de acordo com a suaconveniência política. E outros que na verdade nãotêm a mesma opinião acabam concordando comela por pura covardia. Um bom exemplo dissopode ser visto quando os inúmeros e loquazespacifistas ingleses deixam de erguer a voz contra oculto reinante ao militarismo russo. De acordo

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com esses pacifistas, toda violência é funesta, eem todos os momentos da guerra eles nosconclamaram a desistir do combate, ou pelo menosalmejar a uma paz negociada. Mas quantos delesjamais sugeriram que a guerra também é nefastaquando travada pelo Exército Vermelho? Os russosparecem ter o direito à autodefesa; para nós, eleconsiste num pecado mortal. Só existe um modo deexplicar essa contradição: a saber, um desejocovarde de não se perder do grosso daintelligentsia, cujo patriotismo tem como objeto aURSS, não a Grã-Bretanha. Sei que a intelligentsiabritânica tem muitos motivos para sua timidez edesonestidade, e na verdade já conheço de cor osargumentos que usa para se justificar. Mas pelomenos devíamos parar de aceitar absurdos emnome da defesa das liberdades contra o fascismo.A liberdade, se é que significa alguma coisa,significa o nosso direito de dizer às pessoas o quenão querem ouvir. As pessoas comuns aindaacreditam vagamente nessa doutrina, e agem deacordo com ela. Neste nosso país — ela não é amesma em todos os países; não era igual na França

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republicana, e não é a mesma nos Estados Unidosde hoje —, são os liberais que temem a liberdadee os intelectuais que querem jogar lama nointelecto: foi para chamar atenção para esse fatoque escrevi este prefácio.

*

* Na primeira edição de A revolução dos bichos, havia um espaço para umprefácio do próprio Orwell, como indica a paginação das provas do autor. Oprefácio acabou não sendo publicado, e o original datilografado só seriaencontrado anos mais tarde por Ian Angus e publicado com umaapresentação do professor Bernard Crick, intitulada “Como o ensaio acabousendo escrito”, no The Times Literary Supplement de 15 de setembro de1972. (N.E.)** Não ficou muito claro se esta modificação foi sugerida por ideia dopróprio sr. … ou se veio do Ministério da Informação, mas pelo tom eu diriaque tem origem oficial. [Nota de Orwell]*** Harold Davidson, sacerdote anglicano de Stiffkey, em Norfolk, tambémconhecido como “The ‘Prostitutes’ Padre”. Envolvido com prostitutas evagabundos londrinos, foi expulso da Igreja anglicana na década de 30 porcomportamento imoral. Hoje sua condenação está sendo revista. (N. T.)* Refere-se a Sir Oswald Mosley, que fundou o Partido Fascista Inglês em1937, manifestava apoio ativo a Hitler e Mussolini, e em maio de 1940, semprocesso, foi preso juntamente com a mulher, até ser libertado por umhabeas corpus em 1943. (N. T.)** Cita o segundo verso do soneto XII de John Milton (1608-74), quecomeça, no original: “I did but prompt the age to quit their clogs/ By the

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known rules of ancient liberty” (“Só preguei que nosso tempo abandonasseseus jugos/ Pelas regras conhecidas da antiga liberdade”). (N. T.)

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IIPrefácio do autor à edição ucraniana (1947)*

Pediram-me para escrever um prefácio àtradução ucraniana de A revolução dos bichos. Seique estou escrevendo para leitores sobre os quaisnão sei nada, mas também que eles nunca tiveram amenor oportunidade de saber nada a meu respeito.

Neste prefácio, o mais provável é que esperemque eu conte alguma coisa sobre a origem de Arevolução dos bichos, mas primeiro queria falarum pouco sobre mim e sobre as experiênciasatravés das quais cheguei à minha posiçãopolítica.

Nasci na Índia em 1903. Meu pai trabalhava naadministração colonial inglesa, e minha família erauma dessas famílias comuns de classe média de

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soldados, religiosos, funcionários públicos,professores, advogados, médicos etc. Estudei emEton, a mais cara e esnobe das Public Schools daInglaterra.** Mas só fui aceito lá graças a umabolsa de estudos; de outro modo, meu pai não teriameios de me mandar para uma escola desse tipo.

Pouco depois de me formar (ainda nãocompletara vinte anos) fui para a Birmânia e mealistei na Polícia Imperial da Índia. Era uma forçapolicial armada, uma espécie de gendarmeriemuito semelhante à Guardia Civil da Espanha ou àGarde Mobile francesa. Lá servi cinco anos. Nãogostei daquilo, que me fez detestar o imperialismo,embora naquela época não houvesse sentimentosnacionalistas muito pronunciados na Birmânia, eas relações entre britânicos e birmaneses nãofossem especialmente inamistosas. De folga naInglaterra, em 1927, deixei o serviço e resolvi metornar escritor: num primeiro momento sem muitosucesso. Entre 1928 e 1929, vivi em Paris,escrevendo contos e romances que ninguémpublicaria (destruí todos de lá para cá). Nos anosseguintes, vivi praticamente da mão para a boca, e

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passei fome em várias ocasiões. Foi só a partir de1934 que consegui começar a viver do que ganhocom meus escritos. Entrementes, cheguei a passarmeses a fio em meio aos elementos pobres esemicriminosos que vivem nas piores partes dosbairros mais pobres, ou moram nas ruas,mendigando e roubando. Naquela época meassociei a eles devido à falta de dinheiro; maistarde, porém, seu modo de vida me interessoumuito pelo que representava. Passei muitos meses(mais sistematicamente, dessa vez) estudando ascondições de vida dos mineiros do norte daInglaterra. Até 1930 eu não me consideravatotalmente socialista. Na verdade, nunca tiveopiniões políticas claramente definidas. Tornei-mepró-socialista mais por desgosto com a maneiracomo os setores mais pobres dos trabalhadoresindustriais eram oprimidos e negligenciados doque devido a qualquer admiração teórica por umasociedade planificada.

Casei-me em 1936. Praticamente na mesmasemana irrompeu a Guerra Civil Espanhola. Tantominha mulher como eu quisemos ir para a Espanha

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e lutar pelo governo espanhol. E ficamos prontosem seis meses, o tempo que levei para acabar olivro que estava escrevendo. Na Espanha, passeiquase seis meses na frente de Aragão até que, emHuesca, o disparo de um francoatirador fascistaatravessou minha garganta.

Nos primeiros estágios da guerra, osestrangeiros viviam praticamente desinformadosdas lutas internas entre os vários partidos políticosque apoiavam o governo. Devido a uma série deacidentes, entrei não para as BrigadasInternacionais, como a maioria dos estrangeiros,mas para a milícia do POUM — os trotskistasespanhóis.

Assim, em meados de 1937, quando oscomunistas obtiveram o controle (ou o controleparcial) do governo espanhol e começaram aperseguir os trotskistas, eu e minha mulher nosvimos em meio às vítimas. Tivemos muita sorte deconseguir deixar a Espanha com vida, e de nãotermos sido presos uma vez sequer. Muitos dosnossos amigos foram fuzilados, outros passaramlongo tempo na cadeia ou simplesmente

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desapareceram.Essas caçadas humanas ocorriam na Espanha ao

mesmo tempo que os grandes expurgos na URSS, eeram uma espécie de complemento a eles. Tanto naEspanha como na Rússia, a natureza das acusações(a saber, conspiração com os fascistas) era amesma, e no que diz respeito à Espanha, tenhotodos os motivos para julgar que fossem falsas.Vivenciar tudo isso foi uma lição valiosa: ensinou-me como é fácil para a propaganda totalitáriacontrolar a opinião de pessoas educadas em paísesdemocráticos.

Tanto minha mulher como eu vimos genteinocente ser atirada na prisão só por suspeita dedesvio da ortodoxia. No entanto, quando voltamosà Inglaterra, encontramos muitos observadoressensatos e bem informados que acreditavam nosrelatos mais fantasiosos — envolvendoconspirações, traição e sabotagem — que aimprensa fazia dos processos de Moscou.

E assim compreendi, mais claramente quenunca, a influência negativa do mito soviéticosobre o movimento socialista ocidental.

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Aqui preciso parar para descrever minha atitudeperante o regime soviético.

Nunca estive na Rússia, e meu conhecimento arespeito dela consiste apenas do que pode seraprendido pela leitura de livros e jornais. Mesmoque tivesse o poder para tanto, nunca desejariainterferir nos negócios internos soviéticos: jamaiscondenaria Stálin e seus associados só por seusmétodos bárbaros e antidemocráticos. E é possívelque, mesmo com a melhor das intenções, elesrealmente não pudessem agir de outra maneira nascondições lá reinantes.

Por outro lado, porém, era da maior importânciapara mim que as pessoas na Europa Ocidentalpudessem ver o regime soviético como de fato era.Desde 1930, eu vira poucos indícios de que a URSS

estivesse avançando na direção de algo que sepudesse chamar de socialismo. Pelo contrário,ficava chocado diante dos sinais claros de suatransformação numa sociedade hierarquizada, emque os governantes não têm mais razão de desistirdo poder que qualquer outra classe dominante.Além disso, os trabalhadores e os intelectuais de

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um país como a Inglaterra não compreendem que aURSS de hoje é totalmente diferente do que foi em1917. Em parte porque não querem compreender(ou seja, porque querem acreditar que, em algumlugar, existe de fato um país realmente socialista),e em parte porque, acostumados a relativasliberdade e moderação na vida pública, ototalitarismo lhes é completamenteincompreensível.

No entanto, devemos lembrar que a Inglaterranão é completamente democrática. Também é umpaís capitalista onde existem grandes privilégiosde classe e (ainda hoje, mesmo depois que aguerra nos fez tender à igualdade) acentuadasdiferenças econômicas. Mesmo assim, é um paísno qual as pessoas vivem juntas há centenas deanos sem grandes conflitos, em que as leis sãorelativamente justas, as informações e estatísticasoficiais são quase invariavelmente críveis, e, paraterminar, onde o fato de cultivar e defenderopiniões minoritárias não acarreta nenhum risco devida. Numa atmosfera como essa, o cidadãocomum não tem uma compreensão concreta do que

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sejam campos de concentração, deportações emmassa, prisões sem julgamento, censura daimprensa etc. Tudo o que lê sobre um país como aURSS é automaticamente traduzido em termosingleses, e o ingênuo cidadão acaba aceitando asmentiras da propaganda totalitária. Até 1939, emesmo depois, a maioria do povo inglês eraincapaz de aquilatar a verdadeira natureza doregime nazista da Alemanha, e hoje, com o regimesoviético, ainda vivem em grande medidasubmetidos ao mesmo tipo de ilusão.

Isso causou grande prejuízo ao movimentosocialista da Inglaterra, e teve sériasconsequências sobre a política externa britânica.De fato, a meu ver, nada contribuiu tanto para acorrupção da ideia original de socialismo quanto acrença de que a Rússia é um país socialista e cadagesto de seus governantes deve ser desculpado,quando não imitado.

Ao voltar da Espanha, pensei em denunciar omito soviético numa história que fosse fácil decompreender por qualquer pessoa e fácil detraduzir para outras línguas. No entanto, os

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detalhes concretos da história só me ocorreriamdepois, na época em que morava numacidadezinha, no dia em que vi um menino de unsdez anos guiando por um caminho estreito umimenso cavalo de tiro que cobria de chicotadascada vez que o animal tentava se desviar. Percebientão que, se aqueles animais adquirissemconsciência de sua força, não teríamos o menorpoder sobre eles, e que os animais são exploradospelos homens de modo muito semelhante à maneiracomo o proletariado é explorado pelos ricos.

A partir daí, decidi analisar a teoria de Marx doponto de vista dos animais. Para eles, claro, oconceito de luta de classes entre os seres humanosera pura ilusão, pois sempre que fosse necessárioexplorar os animais os seres humanos se uniamcontra eles: a verdadeira luta se dava entre osbichos e as pessoas. A partir desse ponto, não foidifícil elaborar o enredo. Só escrevi o livro em1943, pois estava sempre envolvido com algumoutro trabalho que não me deixava tempo; e nofinal acrescentei alguns acontecimentos, como aConferência de Teerã, que ocorriam no momento

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em que eu escrevia. Assim, os principaiscontornos da história permaneceram em meuespírito por seis anos antes que eu a escrevesse.

Não quero comentar a obra; se ela não falar porsi mesma, é porque fracassou. Mas gostaria desublinhar dois pontos: primeiro, que embora seusvários episódios tenham sido tirados da históriareal da Revolução Russa, foram tratados demaneira esquemática, e sua ordem cronológica foialterada; isso foi necessário para dar simetria ànarrativa. O segundo ponto passou despercebidopela maioria dos críticos, possivelmente por nãoter sido devidamente enfatizado por mim. Muitosleitores podem acabar de ler o livro com aimpressão de que ele termina com umareconciliação total entre os porcos e os sereshumanos. Minha intenção não foi essa; aocontrário, eu desejava que o livro terminasse comuma nota enfática de discórdia, pois escrevi o fimimediatamente depois da Conferência de Teerã,que todos julgaram ter estabelecido as melhoresrelações possíveis entre a URSS e o Ocidente.Pessoalmente, jamais acreditei que essas relações

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pudessem durar; e, como os fatos demonstraram,não estava muito enganado.

Não sei o que mais preciso acrescentar. Sealguém se interessa por detalhes de ordem pessoal,posso acrescentar que sou viúvo, tenho um filho dequase três anos de idade, que minha profissão é ade escritor e que desde o início da guerra tenhotrabalhado especialmente como jornalista.

O periódico para o qual escrevo com maiorregularidade é o Tribune, um semanáriosociopolítico que representa, em termos gerais, aala esquerda do Partido Trabalhista. Os seguinteslivros que escrevi podem ter algum interesse parao leitor comum (caso o leitor desta traduçãoencontre algum exemplar deles): Dias naBirmânia (uma história birmanesa), Lutando naEspanha (com base em minhas experiências naGuerra Civil Espanhola) e Ensaios críticos(ensaios que tratam especialmente da literaturapopular inglesa de nossos dias, e mais instrutivosdo ponto de vista sociológico do que propriamenteliterário).

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* A tradução ucraniana de A revolução dos bichos foi feita para osucranianos alojados nos campos de refugiados da Alemanha sob aadministração britânica e americana depois da Segunda Guerra Mundial.Eram pessoas, como indica uma carta escrita pelo organizador da tradução eda distribuição, Ihor Sevcenko, partidárias da Revolução de Outubro edeterminadas a defender o que fora conquistado, mas que se tinhamvoltado contra “o bonapartismo contrarrevolucionário de Stálin” e a“exploração russa, nacionalista, do povo ucraniano”. Eram pessoas simples,camponeses e trabalhadores, muitos com pouca instrução, mas todosleitores vorazes. Para essas pessoas, ele pediu a Orwell que escrevesse umaintrodução. O original em inglês se perdeu, e a versão aqui publicada resultade uma retradução do texto ucraniano. Orwell fez questão de não receberdireitos autorais por essa edição, nem por outras traduções voltadas parapessoas pobres demais para comprar o livro (por exemplo, as edições empersa ou em telugu). O próprio Orwell arcou com os custos de produção deuma edição em russo impressa em papel fino, dirigida a soldados e outrosleitores atrás da Cortina de Ferro. (N.E.)** Que não são “escolas públicas do governo”, mas de certo modoexatamente o contrário: internatos de ensino secundário muito seletivos ecaros, e muito afastados uns dos outros. Até pouco tempo atrás,praticamente só admitiam os filhos das famílias ricas da aristocracia. Era osonho de banqueiros nouveaux riches do século XIX conseguir matricularseus filhos em alguma das Public Schools inglesas. Nessas escolas, a maiorênfase é dada aos esportes, que formam, por assim dizer, uma visão da vidasenhorial, rude e cavalheiresca. Entre essas escolas, Eton é especialmentefamosa. Segundo contam, Wellington teria dito que a vitória de Waterloo foidecidida nos campos esportivos de Eton. Não faz muito tempo, aesmagadora maioria das pessoas que de um modo ou de outro controlam a

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Inglaterra vinha das Public Schools. [Nota de Orwell]

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Table of ContentsCapaRostoSumário1.2.3.4.5.6.7.8.9.10.PosfácioApêndices

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