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DOI: 10.5212/TerraPlural.v.8i1.0006
Geografizando o mundo dos sentidos dos jovens da Igreja
Assembleia de Deus
Geografizando el mundo de los sentidos de los Jvenes de la
Iglesia Asamblea de Dis
Geographying the world of the senses of youth in the Assembly of
God Church
Dalvani Fernandes
[email protected] Federal do Paran
Resumo: A Geografia, engajada no campo das Cincias Humanas, h
longos anos vem construindo um arcabouo terico que nos auxilia a
refletir sobre a complexidade do espao social. No entanto, o
pensamento geogrfico ainda pouco explorado na compreenso de
fenmenos como a religio e a juventude. a respeito dessa articulao
terica que o presente trabalho procura contribuir, na inteno de
apresentar uma geografizao do mundo dos sentidos. Para esse desafio
utilizamos a filosofia das Formas Simblicas de Cassirer,
procurando, a partir dela, entender a religio enquanto formadora de
sentido para a realidade da juventude evanglica. Utilizamos a
metodologia de observao participante, envolvendo-nos no mundo
lingustico construdo pelo discurso da Igreja Evanglica Pentecostal
Assembleia de Deus, na cidade de Guarapuava, PR. Partindo do
material emprico, obtido nas observaes, procuramos identificar
quais espacialidades so produzidas, a partir do discurso religioso,
nas vidas desses jovens.
Palavras-Chave: Epistemologia. Religio. Juventude. Formas
Simblicas. Espacialidades.
Resumen: La Geografa se configura como disciplina del rea de las
Ciencias Humanas y en el largo de los aos viene construyendo una
estructura terica que nos ayuda a reflexionar sobre la complejidad
del espacio social. Todava, el pensamiento geogrfico ha poco
explotado la comprensin del fenmeno religin y juventud. Intentando
contribuir para la comprensin de la articulacin las referidas
dimensiones, este trabajo busca teorizar sobre la geografizacin del
mundo de los sentidos. Para ese desafo utilizamos la filosofa de
las Formas Simblicas de Cassirer. Buscando a partir de ello,
comprender la religin en la formacin de un sentido para la realidad
de la juventud evanglica. Utilizamos el mtodo de observacin
participante envolvindonos en el mundo lingstico construido por el
discurso de la Iglesia Evanglica Pentecostal Asemblea de Dios, en
la ciudad de Guarapuava, PR. Partiendo del lo emprico, obtenido,
buscamos la identificacin de las espacialidades que estn siendo
producidas desde el discurso religioso, en la vida de esos
jvenes.
Palabras-clave: Epistemologa. Religion. Juventud. Formas
Simblicas. Espacialidades.
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Dalvani FernanDes
Abstract: Over many years the area of geography that is engaged
with human sciences has been building a theoretical framework that
helps to reflect on the complexity of social space. However,
geographical thought is still under- explored to interpret
phenomena such as religion and youth. This paper seeks to
contribute to this discussion by presenting a geographying of the
world of the senses. For this challenge we use Cassirers philosophy
of symbolic forms to understand religion as forming sense for the
reality of evangelical youth. We use the methodology of participant
observation and we engage in the linguistic world constructed by
the discourse of the Assembly of God, Evangelical Pentecostal
Church, in Guarapuava,PR. Based on empirical data obtained in the
observations, we seek to identify which spatialities are produced
from the religious discourse in the lives of these young
people.
Keywords: Epistemology. Religion. Youth. Symbolic form.
Spatialities.
INTRODUO
O presente trabalho trata da relao entre Geografia, juventude e
religio. Dentre as muitas possibilidades de interpretar o fenmeno
religioso, escolhemos a perspectiva da religio enquanto fornecedora
de sentido para a vida, um meio de organizar o mundo plasmando a
realidade de significado. Parte-se do suposto que, desde que nos
conhece-mos e nos encontramos no mundo, passamos a desenvolver os
atos de conhecer e de dar sentido realidade. (BERGER; LUCKMANN,
1997).
Para Cassirer (2001), toda cultura linguagem, por essa razo:
Religio, Mito, Arte e Cincia so consideradas Formas Simblicas, que
no seu sentido cultural se equivalem, pois cada uma possui sua
maneira especfica de objetivar o mundo. Eis o caminho terico que
trilhamos para a compreenso do fenmeno religioso.
O ato de dar sentido ao mundo explicado poeticamente por Rubem
Alves. Da mesma forma que os animais lanam para o mundo a ordem
interiorizada em seus or-ganismos (a aranha, a teia; a abelha, a
colmeia), o ser humano exterioriza suas redes simblico-religiosas
em forma de melodias que se expandem sobre o universo inteiro.
Assim, vo aos confins do tempo e aos confins do espao, na esperana
de que cus e ter-ra sejam portadores de seus valores. O que est em
jogo a ordem. (ALVES, 1981, p. 26). O ser humano tem necessidade de
viver em um mundo que faa sentido, o seu mundo. Sendo assim, o homo
religiosus procura dar sentido realidade atravs de representaes e
smbolos religiosos que ordenem o caos em que vive.
Concordando com a tese de que aqueles que habitam um mundo
ordenado e carre-gado de sentido gozam de um senso de ordem interna
integrao, unidade, direo e sentem-se efetivamente mais fortes para
viver, teremos ento diante de ns a efetividade e o poder dos
smbolos (SILVA; GIL FILHO, 2009). Nesse vis, a obra de Cassirer
oferece algumas contribuies para a Geografia da Religio,
possibilitando a articulao de con-ceitos, como: Formas Simblicas,
espacializao e espacialidades. Entendemos por es-pacialidade uma
dimenso no fenmeno que se espacializa, no sendo necessariamente uma
manifestao material; est ligada a uma viso de mundo constituda a
partir de um
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assembleia de deus
discurso. As espacialidades so constitudas a partir dos sentidos
com que o sujeito plas-ma sua realidade, geografizar esse mundo dos
sentidos mergulhar em um universo fenomenolgico buscando a
compreenso da lgica da organizao do real lgica essa que se d atravs
das Formas Simblicas.
O fenmeno religioso ultrapassa o espao material, constituindo
outros espaos religiosos (espacialidades), por meio da
sociabilidade juvenil. Nesse sentido, nossa pro-posta explorar dois
importantes elementos que necessitam de aprofundamento no cam-po da
Geografia: a religio e as juventudes. A relao entre religio, espao
e juventudes abre um campo de abordagem amplo e diversificado.
Acreditamos que uma das con-tribuies desse trabalho esteja na
considerao da sociabilidade envolvida na vivncia da f no cotidiano
dos jovens, possibilitando, assim, a compreenso do espao de forma
dinmica e para alm da materialidade simples e evidente.
Entendemos que nesse ponto que podemos contribuir com uma
discusso episte-molgica, pois estamos diante de uma Geografia que
se prope a olhar para os sujeitos e compreender seus mundos
simblicos, o que tentaremos discutir aqui, ainda que de manei-ra
incipiente, propondo uma geografizao dos sentidos a partir da
filosofia cassireriana.
Para tanto, colaremos em tela os resultados de nossa pesquisa de
mestrado, defen-dida em fevereiro de 2012, na qual nos propusemos a
compreender os sentidos gerados pelo mundo simblico (Forma Simblica
Religio) na vida de jovens que frequentam/frequentaram a Igreja
Evanglica Pentecostal Assembleia de Deus, em Guarapuava, PR
(FERNANDES, 2012).
RELIGIO UMA FORMA SIMBLICA
O estudo das Formas Simblicas em Cassirer vem sendo apropriado
pela Geogra-fia da Religio (GIL FILHO, 2007; 2008; 2009; 2010;
2011), na busca de uma construo da teoria do Homem frente ao
fenmeno religioso; considerando-se que, para Cassirer (2005), o ser
humano interpretado como um ser symbolicum, que no vive somente no
mundo dos fatos, mas, antes, em um mundo simblico.
Sendo assim, pensamos o espao atravs da atuao das Formas
Simblicas, con-ceito que pode ser entendido como: energia do
esprito, em que um contedo espiritu-al do significado est vinculado
a um signo sensvel concreto, atribudo interiormente (CASSIRER,
2001). Em outras palavras, so os aparatos artificiais da nossa
conscincia (esprito lingustico) que projetam o conhecimento sobre o
mundo, conformando (dando sentido a) a realidade.
O conceito de Forma Simblica pode ser utilizado na tarefa de
espacializao da religio. Para Cassirer, somos homens simblicos em
nossa forma de pensar, atravs da linguagem construmos um mundo de
smbolos um mundo cultural nesse mundo artificial no qual o Homem
vive. Existem vrios mundos que so conformados a partir de
diferentes perspectivas, assim temos as Formas Simblicas: Mito,
Arte, Religio, Cincia, entre outros (CASSIRER, 2005). A Geografia,
partindo do espao da cultura,
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analisa os espaos de ao formados por essas Formas Simblicas; da
surge a possibilidade de anlise do espao de ao do mundo jovem,
formado a partir da Forma Simblica Religio. (FERNANDES, 2011).
Para Cassirer, o ser humano, vivendo em um sistema simblico, no
vive apenas em uma realidade mais ampla; vive, pode-se dizer, em
uma nova dimenso da realidade (2005, p. 48). No se encontra mais em
um universo fsico, agora vive em um universo simblico, num mundo
cultural construdo pela Linguagem, Mito, Arte, Cincia e
Religio.
APRESENTANDO A PESQUISA
De janeiro a abril de 2011, participamos dos cultos na
Assembleia de Deus (ADD), no seu templo sede, localizado no centro
da cidade de Guarapuava, estado do Paran. No podemos afirmar que
essa realidade seja a mesma em outros contextos, o que
apre-sentamos diz respeito a esse espao-tempo.
Os objetivos da pesquisa foram: 1) compreender os sentidos que
so gerados na construo da realidade da juventude evanglica atravs
do discurso da Igreja Evang-lica Assembleia de Deus; 2) identificar
as formas de ser jovem na Igreja em foco; 3) ob-servar quais
espacialidades so construdas a partir da sociabilidade de uma
juventude evanglica.
Nossas observaes, matizadas pelo prisma do conceito de habitus
(BOURDIEU, 1998), nos levaram a um resultado que elucida diferentes
categorias da juventude evanglica.
a) Jovem veterano: aquele que evanglico de bero, ou ento se
converteu quando ainda era criana. A partir da experincia desse
jovem construmos a ideia de espacia-lidade resignada, formada por
uma entrega ao universo religioso, uma submisso sem
questionamentos, que refora o discurso religioso para alm da
espacialidade con-creta do templo. Uma espacialidade assim pensada
pode ser expressa na busca desse jovem pelo sentimento de paz em
sua vida, o que exige dele a manuteno constante de um religare que
impe a submisso a Deus e s autoridades religiosas.
b) Jovem desviado: jovem que foi batizado na Igreja e hoje est
desviado (afastado) da comunidade religiosa, mas esporadicamente
aparece nos cultos. Notamos que os conflitos existenciais vividos
pelo jovem desviado podem ser expressos na ideia de espacialidade
hbrida. O termo hbrido remete a uma mistura malevel, uma fuso
en-tre dois elementos diferentes, neste caso o discurso religioso e
a cultura juvenil re-presentada pela ideia de mundo1. Conforma,
assim, uma relao social e espacial onde elementos mundanos e
religiosos se encontram, e sua importncia tem pesos diferentes
dependendo da situao em que o sujeito se encontra. uma
espacialidade permevel, mais aberta a novas experincias. Ser um
desviado da Igreja declarar independncia.
1 Salientamos que a ideia de mundo, quando contraposta a
Igreja/Religio, procura expressar tudo aquilo que a no--religio, o
no-sagrado.
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assembleia de deus
c) Jovem novo-convertido: aquele que se batizou h pouco tempo. O
novo- convertido ainda no comunga da linguagem religiosa da sua
nova comunidade, ele no enun-cia pensamentos. Ele canta sentimentos
(ALVES, 2005, p. 85). Sua forma de ser nos leva a refletir sobre
uma possvel espacialidade intermediria. Isto porque ela expressa
uma passagem do aspecto mstico (carter mais expressivo, ligado s
emoes) para o racional (carter mais representativo, ligado a uma
determinada ordem lgica) da religio. Esse trajeto no linear, no
entanto; para o jovem que est iniciando sua ca-minhada na Igreja,
parece-nos que esse percurso bem demarcado entre a fronteira do
sentir e do pensar.
Partindo desses sujeitos realizamos nossa fenomenologia
cassireriana, buscando uma hermenutica que revelasse os sentidos
fornecidos pela religio para cada catego-ria da juventude
evanglica, bem como identificar as espacialidades que se conformam
a partir da apropriao do discurso religioso nesses trs diferentes
modos de se viver a religio.
Nesse contexto, entendemos que a abordagem etnogrfica, partindo
das ideias de habitus religioso, representaes e Formas Simblicas,
nos ajudaram a entender como a juventude evanglica se relaciona com
o carter sagrado da religio. Em sntese, a pesqui-sa procurou
compreender, a partir do discurso da Igreja, alguns dos mltiplos
sentidos que permeiam a realidade da juventude evanglica
pentecostal.
METODOLOGIA
Interagimos com a mocidade evanglica que l se congrega,
participamos de seus cultos, reunies e encontros. Visitamos alguns
jovens em suas casas, samos para lan-chonetes e, algumas vezes,
ficamos durante as madrugadas conversando todos esses episdios
facilitaram a relao entre pesquisador e pesquisado , e assim
tivemos acesso a muitas histrias de vida e depoimentos que foram
registrados em nossa pesquisa. Par-tindo da metodologia de observao
participante, registramos em nosso dirio de campo quarenta
encontros. Os encontros aconteciam na formalidade do culto da
Igreja, a partir de l marcvamos de nos encontrar em outros lugares
como praa, ruas e mesmo na casa dos jovens assembleianos. Dessas
experincias extramos algumas anotaes para melhor ilustrar o
pensamento assembleiano.
Nossa pesquisa de campo se apoiou nos pressupostos qualitativos
da observao participante. Conforme aponta Turra Neto (2004a), na
Geografia essa metodologia pode ser uma ferramenta preciosa quando
se tem no centro da anlise fenmenos culturais en-gendrados pelo ser
humano. Participar do universo simblico de um determinado grupo
permite que vejamos o sentido dos significados a partir da
perspectiva dos que vivem e comungam daqueles smbolos. uma viso de
dentro para fora da comunidade.
Ldke e Andr (1986, p. 26), discutindo o uso da observao
participante, afirmam que ela um mtodo que permite que o observador
chegue mais perto da perspectiva dos sujeitos, um importante alvo
nas abordagens qualitativas. O observador como
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participante, segundo as autoras, deve, desde o incio, revelar
ao grupo pesquisado a sua identidade de pesquisador e os objetivos
do seu estudo. Nessa posio, o pesquisador pode ter acesso a uma
gama variada de informaes, at mesmo confidenciais, pedindo cooperao
ao grupo. A pesquisa, nesse sentido, tecida a quatro mos, tanto
pelo pesquisador como pelo seu sujeito-objeto. O pesquisador
influencia o universo que observa, h uma troca de experincia gerada
pelo convvio, por isso ele tambm influenciado.
Fica ento uma questo no ar: os dados do trabalho de campo
merecem confiabilidade? Baseado em Becker (1999), Turra Neto
(2004b, p. 92) defende que a resposta sim por conta de dois
fatores:
1) as pessoas so obrigadas a agir tal como se o pesquisador no
estivesse ali, pois esto submetidas s restries sociais. Assim, as
pessoas tm papis no grupo a cum-prir e a obrigao com o grupo mais
forte que a inibio na presena do observador;
2) o(a) pesquisador(a) coleta muitos dados e passa longo tempo
no campo, o suficien-te para testar vrias vezes suas concluses.
Neste sentido, h mltiplas evidncias de que as concluses no esto
baseadas em fatos efmeros.
Adotamos ainda como metodologia auxiliar a entrevista
semi-estruturada, para a qual seis jovens (cinco homens e uma
mulher) foram convidados a falar sua histria de vida e o
envolvimento com a religio e a Igreja; desses dilogos trs foram
escolhidos e trabalha-dos mais detalhadamente, cada um
representando categorias diferentes dentro da Igreja. As
entrevistas foram gravadas, sendo que cada jovem assinou um termo
de consentimento. Alm dessas entrevistas, ouvimos trs adultos,
representados pela figura do pastor presi-dente e pastor
vice-presidente da Igreja e um membro que congrega nessa instituio
h mais de vinte anos. A leitura de obras2 publicadas pela prpria
Assembleia de Deus tam-bm fez parte de nossa metodologia e nos
ajudou a compreender o discurso da Igreja.
preciso dizer ainda que ouve outro desafio, aquele que surge no
ps-campo. Como transpor a dimenso dialgica da pesquisa de campo
para o texto? possvel conhecer a verdade dos fatos, ou simplesmente
fazemos interpretaes sobre eles? Sendo interpreta-es, poderamos
dizer que so limitadas e parciais e, por esse motivo,
contestveis?
Em busca de respostas, Turra Neto (2008, p. 373) argumenta que a
existncia de um objeto no pode ser separada da trama lingustica que
o descreve, em suas palavras: [...] aquilo que o discurso cientfico
diz sobre determinado aspecto da realidade est envolvi-do no
processo de produo desta prpria realidade, no s enquanto tal, mas
tambm como objeto cientfico.
O mesmo sentido assume o pensar de Cassirer (2006), segundo o
qual passa des-percebido por todos ns o fato de que todo conhecer
terico parte de um mundo j la-pidado pela linguagem, desta forma
todo aquele que se dedica ao pensar convive com objetos
exclusivamente ao modo como a linguagem lhos apresenta. Visto por
esse vis,
2 Focamos o material didtico da escola dominical: as revistas
Lies Bblicas (2011a; 2011b); e em livros publicados pela prpria
instituio atravs da CPAD Casa Publicadora da Assembleia de
Deus.
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toda a teoria lgica, que cria um conceito a partir de uma
abstrao generalizadora, per-de sua serventia. Tal abstrao consiste
na escolha de determinadas caractersticas, que j so de antemo dadas
pela linguagem. Em outras palavras, seguindo esse raciocnio, um
equvoco achar que teorias cientficas ou conceitos derivados
descobrem a realidade. Erro tambm pensar que o real assim descrito
uma entidade separada do sujeito que o escreveu.
Entendendo dessa forma, que nossa proposta no explicar a
realidade, colocamo-nos de uma maneira mais humilde perante a
complexidade observada. Nossa inteno compreender, no sentido
fenomenolgico3, como a realidade evanglica funciona, levando em
considerao que a Forma Simblica Religio se encontra no mesmo nvel
que a Cincia quando a questo dar sentido ao mundo.
A Igreja ADD nos revela um universo construdo para ser
partilhado. A religio socializa, e como toda base de socializao,
ela oferece uma verdade. Socializar na reli-gio aprender e dividir
a verdade que ela oferece (ALVES, [1979] 2005).
Cassirer (2006) j nos lembra que antes de qualquer trabalho
intelectual de conce-ber e compreender fenmenos necessrio
transformar o mundo das impresses sens-veis em um mundo espiritual,
um mundo de representaes e significaes. Nesse sen-tido que vemos
nosso trabalho de campo como um esforo em compreender de que
maneira o crente transforma o mundo das impresses em um mundo de
representaes e significaes crists, atravs da doutrina pentecostal
da Igreja em foco.
RESULTADOS E DISCUSSO: APRESENTANDO A IGREJA ASSEMBLEIA DE DEUS
E SUA JUVENTUDE
Depois disso, acontecer que derramarei o meu Esprito
sobre todo ser vivo: vossos filhos e vossas filhas
profetizaro;
vossos ancies tero sonhos,
e vossos jovens tero vises
(Joel, 3. 1)
A epgrafe acima representa bem o limiar do mundo pentecostal
assembleiano. Um mundo onde se vive uma relao com o sobrenatural,
onde h milagres, dons e pro-fecias. Um mundo tecido por uma teia
simblica cuja matria-prima provm do Livro Sagrado onde se encontram
as palavras de Deus.
A ADD est presente em toda a cidade de Guarapuava. O templo
sede, foco de nossas observaes, localizado no centro, em frente ao
26 G.A.C. (Exrcito), tambm recebe jovens que moram em bairros
prximos, como Santa Cruz, Batel e Bairro dos Es-tados, propiciando
uma grande diversidade cultural juvenil.
3 De acordo com Japiass e Marcondes (1996, p. 47), compreenso
passa a ser definida com a fenomenologia como um mun-do de
conhecimento predominantemente interpretativo, por oposio ao modo
propriamente cientfico, que o da explica-o. Para os autores
explicar remete a um modo de conhecimento analtico e discursivo
procedendo por decomposi-es e reconstruo de conceitos. Compreender,
por sua vez, um modo de conhecimento de ordem intuitiva e
sinttica.
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Convivi com essa juventude, ou para usar o vocabulrio
assembleiano, com essa mo-cidade, de janeiro a abril de 2011, de
maneira intensa, e nos outros meses do ano com visitas espordicas.
A mocidade evanglica plural, constituda de homens e mulheres na
faixa4 dos 14 aos 39 anos5, todos moram em Guarapuava, sendo que
68% em bairros prximos ao centro e 32% em residncias no centro; e
32% so jovens que tocam algum tipo de instru-mento musical. A
maioria trabalha e/ou estuda (76%); dentre os que estudam, 40%
cursa ou j cursou o ensino superior. Alguns so casados (32%), e a
mdia de um filho por casal. Interessante observar que 40% dos
jovens dizem ser evanglicos da Assembleia desde que nasceram; 40%
afirmam que esto na Igreja h mais de trs anos; e 20% h menos de trs
anos. D para notar que a Igreja trabalha pela manuteno de sua
juventude.
H vrios grupos dentro do conjunto de jovens que frequentam a
Igreja. Existem aqueles que esto ligados msica (na maioria, homens)
e aqueles ligados dana (na maioria, mulheres). Tambm h o grupo de
lderes dos jovens, formado por jovens mais velhos. Alm da clara
diviso entre os sexos, homens de um lado e mulheres de outro. Fora
isso, possvel encontrar pequenos grupos de interesse como amizade,
paqueras, estudo, trabalho, etc. Uma grande galera de amigos,
conhecidos, e gente nova que vai se agregando aos poucos, dando os
contornos de uma espacialidade social que se vive entre os muros da
Igreja.
As redes sociais aparecem ligadas a essa espacialidade, que est
diretamente vin-culada sociabilidade juvenil religiosa. A partir
dos amigos, novas conexes so poss-veis, e novos convites para
conhecerem outras Igrejas ou viverem experincias fora delas so
feitos. Apesar de o discurso religioso defender uma vivncia de
comunidade entre iguais, a escolha das redes de sociabilidade
individual e subjetiva. Carrano (2002) nos lembra que podemos
encontrar redes mltiplas quando o sujeito estabelece vrios vnculos
(caso do jovem desviado); e redes simples, aquelas que se
caracterizam por um nico vn-culo dominante (caso do jovem
veterano).
Para os jovens que esto, como eles mesmos dizem, firmes na f
participantes de uma rede simples existem ocupaes autoimpostas em
seu tempo livre para que efe-tuem uma sociabilidade dentro da
Igreja. Estas ocupaes no so, necessariamente, re-lativas ao lazer.
Ocupam boa parte do tempo livre com atividades como: msica e dana
(ensaios para o grupo de louvor), teatro, estudos bblicos, viglias,
entre outras. Tais ati-vidades, conforme observou Carrano (2002,
p.79), no so destitudas de ludicidade, pois a perspectiva da
diverso est presente na prpria forma de proposio das
atividades.
A msica, a dana, os cultos temticos (culto anos 60, por exemplo)
atuam como elementos importantes no processo de coeso e motivao do
grupo de jovens da Igreja. Esses espaos tambm cumprem com o papel
de propiciar ambientes de diverso dentro da Igreja, pois assim h
menos chances de os jovens procurarem espaos mundanos
4 Essas informaes foram coletadas com aplicao de 25 questionrios
no qual foram levantadas questes para saber idade, ocupao, estado
civil, escolaridade, endereo e trabalho.
5 As idades mais avanadas, 32 para mulher e 39 para homem, dizem
respeito aos casais da Igreja responsveis pela liderana dos jovens.
Entendemos que como eles esto sempre presentes do grupo, tambm
fazem parte da mocidade evanglica. Optamos por no delimitar a
juventude pela idade, pois entendemos que a condio juvenil vivida
no seio da Igreja no delimitada pela faixa etria.
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assembleia de deus
para esse tipo de satisfao. Dessa forma, observamos um paradoxo,
pois nota-se que h uma abertura de espao dentro da Igreja para o
jovem, abertura essa que se torna neces-sria justamente para o
jovem no fugir.
A GEOGRAFIZAO DOS SENTIDOS DA JUVENTUDE EVANGLICA
Aps a imerso cultural no universo da Igreja, procuramos ento
organizar nossas reflexes, buscando possveis interpretaes para o
universo juvenil evanglico. Da sur-giu a necessidade de uma
geografizao dos sentidos dessa juventude, isto , a busca por uma
compreenso de cunho espacial para a ao da Forma Simblica Religio.
Aceitando o desafio, encontramos um terreno estvel no conceito de
habitus6 para construirmos nos-sa interpretao da juventude
assembleiana.
Para isso elaboramos trs categorias ideais, focadas na
experincia pessoal dos jo-vens com o sagrado.
Diante desse quadro procuramos entrevistar jovens que
representassem cada uma das categorias. A entrevista na verdade foi
uma conversa gravada, durante a qual os jo-vens contaram suas
histrias de vida, suas dificuldades, sonhos e desejos.
O VETERANO
Categoria criada observando-se a interao dos jovens dentro da
comunidade religiosa. A espacialidade expressa pelo veterano, como
aprofundaremos mais tarde, revela uma identidade assembleiana
interiorizada, partindo de uma relao emocional profunda com o
sagrado, construda ao longo de um processo scio-histrico. Tive a
impresso que alguns jovens dizem viver em plena harmonia com o
discurso expresso pela ADD, de tal modo que o discurso marca seus
corpos, molda seu estilo de vestir e recheia seu vocabulrio com
palavras utilizadas em cultos. At mesmo sonhos e projetos de vida
se espacializam na vida desses jovens partindo das referncias
propostas pela
6 O conceito de habitus (BOURDIEU, 1998) nos ajudou em campo a
observar as diferenas que os jovens apresentam dentro da comunidade
religiosa. Apesar de haver um habitus religioso comum a todos os
crentes (orao, estudo da Bblia, participa-o nos cultos, uso de
roupas discretas), h variaes que se apresentam de maneiras
diversas. Dessas variantes recortamos trs grupos que mais nos
chamaram ateno, os quais so analisados no trabalho.
Juventude Evanglica da Assembleia de DeusVeteranos
Novos-convertidos Desviados
Esse grupo formado por jovens que nasceram em bero evanglico, ou
ento, so membros h mais de 10
anos. J incorporaram o discurso e a identidade evanglica.
Grupo formado pelos jovens que h menos de 1 ano participam da
comunidade evanglica. Em geral eram catlicas e se converteram
ao
protestantismo pentecostal.
Seriam os jovens que j estiveram ligados a comunidade evanglica,
e por algum motivo hoje esto no mundo, podendo voltar a qualquer
momento
para Igreja.
Quadro 01 Categorias Ideais Da Juventude Evanglica
Org: FERNANDES, D. 2011.
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Figura 01 Jovem veterano
Org: FERNANDES, D. 2011
Igreja. O estilo de vida do jovem veterano convida-nos ideia de
uma espacialidade do ethos, ou seja, a maneira como o espao
conformado pela vivncia desse jovem permeada por uma cultura, um
habitus e uma tica pentecostal que d sentido ao seu mundo.
Os tipos ideais que foram apresentados revelam uma vivncia
ligada diretamente ideologia pentecostal, ao aspecto mstico e
sagrado dessa forma de vivncia da religio crist. No que concerne
mstica, observamos, no caso do jovem veterano, uma relao em que se
acredita que os dons do Esprito Santo so manifestados; nesse
impulso h uma busca em desenvolv-los de modo a aplic-los em seu
ministrio e se aprofundar em sua f. Criamos a figura abaixo com
base no depoimento do jovem veterano.
possvel perceber que a vida do jovem muda radicalmente, e que a
famlia, prin-cipalmente seu pai, tem grande importncia nessa
transio. A figura da seta acima linear, pois a inteno trazer a
ideia da passagem do tempo, que dividido pelas idades do jovem.
Tambm remete a um caminho reto, tendo em vista que o jovem, ao ter
cons-cincia de sua religiosidade, optou por viv-la em uma igreja
evanglica, mantendo-se nesse caminho at ento, sem desvios.
O DESVIADO
O sentido de desviado pode ser entendido pela Igreja de modo
pejorativo, como sinnimo de apostasia. De acordo com Renovato
(2007, p.16), uma das maneiras de se
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GeoGrafizando o mundo dos sentidos dos jovens da iGreja
assembleia de deus
Figura 02 Jovem Desviado
Org: FERNANDES, D. 2011.
observar a apostasia atravs dos manifestos comportamentos
contrrios santidade requerida por Deus em sua palavra. O jovem
desviado, pelo que foi observado, justa-mente esse que deixa de
percorrer os caminhos doutrinrios e passa a adotar compor-tamentos
contrrios santidade, conforme a doutrina que a Igreja ensina. Esse
sujeito vive um desencontro/desencanto com o sagrado
institucionalizado e, sendo ele at ento um membro da Igreja, essa
ruptura ganha uma dimenso geogrfica em sua vida, novas
espacialidades so conformadas de forma que sua religiosidade possa
ser vivida, mesmo que desligada da instituio religiosa.
O mapa mental que montamos (figura 02) para melhor compreender a
trajetria de vida do jovem desviado um dos mais interessantes, pois
podemos visualizar que o desvio do jovem um movimento cclico,
ligado diretamente a seus anseios existenciais, e que se reflete
diretamente no espao atravs de suas aes e opes pessoais. O cami-nho
reto, da Igreja, se diferencia dos mltiplos caminhos do mundo,
explicamos: o primeiro se refere a um conjunto de aes baseados em
um ethos religioso fundamentado na interpretao oficial da Igreja
sobre a Bblia; o segundo, as outras possibilidades que se abrem ao
jovem estando fora da Igreja. Diferente da figura criada para o
veterano, essa se pauta mais no espao do que no tempo. Esse jovem,
apesar de escolher amigos, aes, espaos diferentes dos oferecidos
pela religio, carrega em si o discurso da Igreja, fazen-do com que
sua trajetria seja representada por idas e vindas da Igreja para o
mundo e vice-versa.
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Dalvani FernanDes
Figura 03 Jovem Novo-Convertido
Org: FERNANDES, D. 2011.
O NOVO-CONVERTIDO
Existe um trnsito religioso onde se observa um fluxo de jovens
que visitam a con-gregao sede da Assembleia. Alguns visitantes so
de outras congregaes da prpria ADD, de outras denominaes crists ou
ento jovens que ainda no optaram por uma religio. Geralmente so
convidados pelos jovens que ali j congregam. Fruto dessas vi-sitas
ocorre de alguns/algumas jovens optarem por uma
converso/re-converso. Nesse cenrio, a participao dos colegas conta
muito, pois os convites para conhecer uma nova Igreja partem dos
grupos de amigos, em geral da escola ou do trabalho. A
espacialidade social, marcada pelas redes de sociabilidade dos/as
jovens, surge como um mecanismo de evangelismo essencial para a
renovao da membresia juvenil da Igreja.
Para os jovens que buscam uma experincia espiritual, o culto
pentecostal muito atraente. Um universo falado, cantado, lido,
chorado, profetizado pelos assembleia-nos. Essa postura mstica,
apresentada pelos relatos de milagres, valorizada ainda mais
durante as oraes que trazem fala em lnguas estranhas, curas,
exorcismos e louvores embebidos de alto teor emocional.
Observamos que diante desse fascnio, o/a jovem que at ento no
conhece o mundo pentecostal, coloca-se diante dessa realidade de
duas formas: a) sente medo e evita o desconhecido; b) busca sentir
essa experincia, podendo depois viver a doutrina pentecostal. Em
nosso trabalho buscamos conhecer e aprofundar os sentidos dados
realidade a partir do jovem que opta por mergulhar no invisvel,
tornando-se assim um novo-convertido da Igreja Assembleia de Deus.
A figura abaixo ilustra um breve trecho da trajetria desse jovem,
at se encontrar com a ADD.
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GeoGrafizando o mundo dos sentidos dos jovens da iGreja
assembleia de deus
Utilizamos a cor verde porque entendemos que no houve no
depoimento do jo-vem uma tenso Religio x mundo. O que aconteceu foi
uma troca de posicionamento cristo. O novo convertido, que era
disputado por outras profisses de f crists (Igreja Catlica, Igreja
Adventista do Stimo Dia, Igreja Quadrangular), acabou optando por
fi-car na ADD, por vrios motivos, entre eles os amigos e a
possibilidade de receber os dons7 do Esprito Santo. A f do jovem
novo-convertido parece ter aumentado quando ele foi surpreendido
por uma profecia que afirmava que um dia ele estaria dividindo o
plpito com o pastor.
MOCIDADE EVANGLICA ASSEMBLEIANA: SUAS ESPACIALIDADES E SEUS
MLTIPLOS SENTIDOS
o pensamento simblico que supera a inrcia natural do Homem e lhe
confere uma nova capacidade, a capacidade de reformular
constantemente o seu universo
humano.
(CASSIRER, 2005, p.104)
A capacidade de reformular o prprio universo humano est ligada
nossa ca-pacidade de dar novos sentidos mesma realidade material
atravs da ao simblica. Para Cassirer a realidade fsica parece
recuar em proporo ao avano da atividade simblica do Homem (2005, p.
48). Mltiplos sentidos existem por trs de cada relato, de cada
depoi-mento, de cada palavra. O que temos ao nosso alcance,
partindo de um arcabouo terico balizado pela filosofia das Formas
Simblicas, so interpretaes que valorizam a conforma-o do mundo a
partir da ao da Forma Simblica Religio.
No mundo do jovem veterano, o sentido da religio nos parece
pairar sobre a ques-to da paz. Religio aparece em sua vida no
sentido de religare, isto , religar o Homem a Deus. Nesse lao de
unio ntima com o Deus nico, cabe ao ser humano servir e obede-cer
vontade divina. Cria-se uma relao de dependncia com a figura do
criador. Nessa posio, a ordem posta a paz mantida sob a condio de
se aceitarem as regras, leis e mandamentos. Nessa perspectiva, para
o jovem veterano, as leis no possuem um carter repressor, mas antes
libertador, pois uma medida preventiva para que no haja
possi-bilidade do mal/satans (drogas, brigas, violncia) voltar a
fazer parte de sua vida, na qual agora impera o bem/Jesus (paz,
amizades, msica). Essa constatao nos induz a pensarmos em uma
espacialidade do pensamento religioso extremamente adaptado
ideologia defendida pela Igreja.
O novo-convertido, por sua vez, se mostra um jovem em transio,
buscando entender em que mundo est pisando. Compreende as
potencialidades da religio e afirma querer desenvolv-las a servio
de Deus. um jovem marcado pela busca do
7 Essa uma das principais caractersticas da Igreja Pentecostal,
a crena nos dons do Esprito Santo. Os pentecostais defen-dem que os
dons vo desde falar em lnguas estranhas (glossolalia), falar em
lnguas que no conhecem (xenolalia), profeti-zar, interpretar
sonhos, e at mesmo dom de cura para enfermidades que afligem o
corpo.
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Dalvani FernanDes
invisvel, ele quer sentir e experienciar o transcendente, quer
se entregar. Para esse jovem, em vez de religare, entendemos que o
sentido de relegere (recolher-se, fazer uma nova escolha) bem
aplicado para a compreenso de sua jornada pelo sagrado. No
depoimento do jovem, observamos diferentes Igrejas Crists
disputando a sua ateno. Ele experimentou algumas delas, at chegar
na ADD e fazer sua opo pelo religare.
Sua forma de ser nos leva a pensar em uma espacialidade
intermediria, pois ela expressa uma passagem do aspecto mstico
(carter mais expressivo, ligado as emoes) para o racional (carter
mais representativo, ligado a uma determinada ordem lgica) da
religio. Sendo assim, nos parece que essa espacialidade se
configura a partir da conver-so do sujeito, permeada pela
configurao de um novo habitus de carter religioso, a transformao no
apenas temporal, ela ocorre gradativamente nas espacialidades do
sujeito. O novo-convertido passa a ter diante de si o desafio de
reconstruir sua realidade edificando-a sobre um slido campo
simblico onde a religio se enraza. A solidez da ponte entre razo e
emoo poder indicar a direo que o levar a um desvio ou
apro-fundamento nesse mysterium fascinosum.
O espao habitado pelo jovem veterano plasmado de sentido pela
Forma Simb-lica Religio e manifesta uma realidade onde o importante
viver em paz, com a famlia e consigo mesmo, ainda que para isso
tenha que manter distncia do mundo considerado impuro e profano. um
espao mentalmente delimitado (pela conscincia do jovem sob ao da
Forma Simblica Religio), onde possvel estar livre, ou preso por
vontade prpria. Podemos pensar, a partir da, que esse jovem vive
uma espcie de espacialida-de resignada, formada por uma entrega ao
universo religioso, uma submisso sem ques-tionamentos, que refora o
discurso religioso para alm da espacialidade concreta do templo.
Uma espacialidade assim pensada pode ser expressa na busca desse
jovem pelo sentimento de paz em sua vida, que exige dele uma
manuteno constante de um religare que impe a submisso a Deus e s
autoridades religiosas. O mundo assim construdo no significa
infelicidade, na sensao de paz e segurana oferecida pela religio
que o jovem veterano se sente bem, conforme apontam suas palavras,
estando com Deus voc tem aquela alegria, parece que no te falta
nada. Deus como sendo o centro das coisas, voc tendo ele no teu
corao, o resto por si s j se completa.8
E o jovem desviado? O jovem desviado a expresso da rebeldia
juvenil, do impul-so dos hormnios que inundam a juventude e tomam a
frente das faculdades cognitivas do ser. Ser um desviado da Igreja
declarar independncia. E, por isso mesmo, arcar com suas aes e
consequncias. Em determinados momentos de sua vida, os ensinamentos
aprendidos na Escola Dominical ficam em segundo plano. Os novos
amigos e os novos espaos de sociabilidade vo abrindo caminho para o
mundo e seus prazeres. Nesse instante onde a curiosidade fala mais
alto que o raciocnio religioso, a Igreja perde o con-trole sobre o
corpo9 dos moos e moas. Leis, tradies, mandamentos, tudo fica em
um
8 Trecho da entrevista cedida pelo jovem veterano no dia
28/04/2011.
9 Uma escala em nvel do corpo nos permite pensarmos o controle
do corpo atravs do discurso religioso relacionando ques-tes como
aparncia, comportamento e adorao. 1) Nas roupas, ornamentaes e
outros aspectos da aparncia como um meio para o religioso expressar
a si mesmo e sua f. Funciona como fronteira que marca a alteridade
em relao a outros
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GeoGrafizando o mundo dos sentidos dos jovens da iGreja
assembleia de deus
plano obscuro e esquecido, pelo menos at o momento da excitao
passar, e o desviado perceber que o seu caminho talvez no seja
aquele. E entender que a hora de pedir per-do e, mais uma vez,
mergulhar na religio.
A espacialidade criada pela participao na esfera das coisas
mundanas se entre-laa com a espacialidade criada pela religio.
Mesmo fazendo as coisas erradas e no merecendo, eu vou orar a Deus
me arranje um trabalho e tal pra mim que eu estou precisando10, diz
o jovem. Um duplo sentido parece imperar. Ao mesmo tempo em que h
uma necessidade de estar apegado a Deus, exercendo sua
religiosidade, existe certo prazer em manter-se no mundo, mesmo
fazendo as coisas que so consideradas erradas pela tica evanglica.
A distino entre certo e errado est ainda vinculada espacialida-de
do ethos religioso.
O desviado tambm a expresso de uma nova forma de viver a
religiosidade. Sua realidade parece estar plasmada de um duplo
sentido, onde a ideia de mundo, como foi pintada pela Igreja,
convive com a religio e seu discurso. Dessa relao surgem con-flitos
e so gerenciados pelo sujeito que passa a vivenciar os dois
universos simblicos: a religio e o mundo laico. Talvez ele esteja
na transio entre um religioso e algum que acredita em Deus, mas no
tem religio.
Notamos que os conflitos existenciais vividos pelo jovem
desviado podem ser ex-pressos na ideia de espacialidade hbrida. O
termo hbrido remete a uma mistura ma-level, uma fuso entre dois
elementos diferentes, neste caso o discurso religioso e a cultura
juvenil representada pela ideia de mundo. Conforma, assim, uma
relao social e espacial onde elementos mundanos e religiosos se
encontram e sua importncia tem pesos diferentes dependendo da
situao em que o sujeito se encontra. uma espaciali-dade permevel,
mais aberta a novas experincias. A Forma Simblica Religio tem forte
influncia na tica do sujeito e tambm se apresenta com seus
imperativos mticos. Essa relao de manter-se em uma linha fronteiria
entre universos simblicos distintos confi-guram um peso de mea
culpa (acionado pela Forma Simblica Religio) que o sujeito aca-ba
tendo que carregar, sendo esse o resultado de seus conflitos
interiores. A espacialidade hbrida no algo desejado pela Igreja
para os seus jovens, no entanto, esse ponto parece ser um problema
que pesa mais para a religio, pois para o jovem desviado essa uma
questo que ele busca negociar diretamente com Deus, ele
independente para escolher seus prprios caminhos, assim indicam
suas palavras: Deus est em primeiro plano na minha vida, uma hora
ou outra eu volto, mas pelo menos agora eu vou curtir um pouco.
grupos. 2) Tambm pode revelar uma busca pela pureza pessoal. Alm
disso, 3) o corpo representa a mais imediata pre-ocupao com as
observncias relacionadas a ortodoxia e ortopraxia (correes das
deformidades do corpo [isso visvel pela busca da cura do corpo nos
cultos pentecostais]). O controle do espao do corpo, fornece meios
fundamentais de promover acordos com expectativas do grupo relativo
a aderncia a leis religiosas ou o ethos de uma religio. Aspectos
concernentes a adorao e expresso de f individual tambm convergem
para escala do corpo uma vez que oraes, batis-mos, festas, para
citar alguns exemplos, so manifestaes explicitas de interseces
entre espao do corpo e crena. No podemos deixar de notar o uso de
diferentes vestimentas relacionadas posio no culto, pois o uso
especial de indumen-trias est ligado ao papel do corpo em rituais
particulares. (STUMP, 2008, p. 240).
10 Trecho da entrevista cedida pelo jovem desviado no dia
30/04/2011.
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Dalvani FernanDes
CONSIDERAES FINAIS
Acreditamos que na procura dos sentidos da juventude encontramos
mltiplas juventudes buscando um sentido para vida. O espao sagrado
da Igreja Assembleia de Deus de Guarapuava (sede) se mostrou
atraente para um pblico diverso, possivelmente pela sua localizao
central e sua postura mais liberal em relao aos templos da
periferia da cidade. O discurso assembleiano de carter pentecostal,
por essa razo encontramos nos cultos um espao carregado de mstica e
fervor emocional, ainda que nem sempre com uma base intelectual
mais consolidada. Suas Escolas Bblicas e cursos teolgicos vi-sam
preparar sua comunidade para estarem em unidade simblica, alm de
forne-cerem o suporte racional para os fiis sustentarem sua f. Essa
caracterstica da Igreja importante para entendermos os sentidos que
so gerados pelo seu discurso, pois so nesses espaos de estudo onde
o mundo assembleiano feito de palavras apresentado enquanto um
discurso estruturado e estruturante.
A religiosidade no trabalhada da mesma forma por todos os
membros da mo-cidade, existem aqueles que privilegiam a
espacialidade social (lazer, diverso), outros a espacialidade do
ethos (segurana, proteo). Conhecemos jovens com histrias
surpre-endentes, que atravs do sofrimento tornaram-se mais
espiritualizados e com uma reli-giosidade mais desenvolvida. O
convvio em grupo propicia que os/as diferentes jovens entrem em
contato, se conheam e aprendam um com o outro os mistrios da
religio. A convivncia uma estrada de mo dupla, da mesma forma que
possibilita a manuteno da f, pode tambm levar aos desvios tanto por
convites quanto por intrigas no grupo, algo comum quando se vive em
sociedade.
Temos ainda as espacialidades que foram pensadas a partir da
vivncia de cada sujeito observado. Chegamos espacialidade resignada
(veterano), intermediria (novo-convertido) e hbrida (desviado).
Essas espacialidades dizem respeito ao mundo simblico que o sujeito
habita, dependendo da posio dele dentro do universo religioso, uma
dessas espacialidades acionada. O que mantm tudo conectado a
partilha da linguagem expressa por uma viso de mundo conformada
pela ao da Forma Simblica Religio.
O que sugerimos, com a filosofia de Cassirer, que as Formas
Simblicas atribuem novos sentidos para o mundo, dando a impresso
para o sujeito que os vive que um novo espao foi construdo. Assim,
a aplicao das verdades religiosas para a compreenso do mundo cria
novos espaos e espacialidades, dando ao pesquisador a possibilidade
de geografizar o mundo dos sentidos. Essa Geografia s possvel se
levarmos em consi-derao que a articulao entre discurso religioso
(universo simblico) e mundo emprico (universo dos fatos) feita
atravs da ao das Formas Simblicas.
Geografizar o mundo dos sentidos buscar uma Geografia que parte
de dentro para fora do sujeito, pois o ser humano aqui entendido
como um ser simblico. Isso, pois entendemos que a fenomenologia de
Cassirer sua maior contribuio epistemolgica para a cincia
geogrfica, uma leitura a partir dela sugere fazermos uma revoluo
copernicana (KANT, 1994) na Geografia, isto , trocarmos do centro
das anlises o
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2014.
GeoGrafizando o mundo dos sentidos dos jovens da iGreja
assembleia de deus
universo dos fatos pelo universo simblico do sujeito-objeto.
Defendemos essa tese visto que entendemos que uma opo como essa
cara e valiosa para aqueles que se propem a trabalhar com Geografia
da Religio.
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Recebido em 26-06-2014 Aceito para publicao em 31-07-2014
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