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1. Um novo cartgrafo (Vigiar e Punir) Deleuze Foucault
(http://goo.gl/q5X3Fa) pg 2 2. O que um contradispositivo
(http://goo.gl/bU0fOp) Davis Moreira Alvim Cadernos de
Subjetividade N 14 (2012) pg 23 3. Diagrama de Subjetivao/Diagrama
de Foucault pg 28 4. Post-scriptum sobre as sociedades de controle
Deleuze Conversaes (http://goo.gl/SNokGp) pg 29
Vigiar e Punir - O nascimento das prises Michel Foucault
(http://goo.gl/kZjnVd) A microfsica do poder Michel Foucault
(http://goo.gl/hj98G9) Introduo vida no fascista Michel Foucault
(http://goo.gl/OxaOvg) O que um dispositivo Deleuze
(http://goo.gl/fSom6c) O que um dispositivo Giorgio Agamben
(http://goo.gl/aqnMnh)
Foucault por ele mesmo (62) http://goo.gl/XCK7Ru Entrevista com
Heliana Conde https://vimeo.com/15700255 e
https://vimeo.com/15810570 ou http://goo.gl/jl4uLC
-
O que um contradispositivo?
Davis Moreira Alvim
A lista de hiptese sobre a psmodernidade extensa. De forma
geral, aqueles que a pensam como um
momento histrico e no simplesmente como uma tendncia esttica
indicam ao menos dois traos
importantes: primeiro, a vitria do efmero e da banalidade sobre
a potncia crtica e contestatria existente
na modernidade e, segundo, uma nova modulao do capitalismo do
perodo psguerra. Outra direo
tomada pelo debate contemporneo caracteriza nossos tempos pela
emergncia de um novo poder
soberano, que faz do estado de exceo uma regra e do campo de
concentrao um paradigma de governo:
vivemos uma perigosa zona de indiferena entre absolutismo e
democracia, entre Auschwitz e Guantnamo1.
Em ambos os casos, as resistncias parecem estar submetidas ao
silncio, em ambos os casos os dispositivos
organizados pelos poderes contemporneos aparecem como vencedores
incondicionais.
No entanto, uma questo parece ter sido descuidada pelos tericos
da ps modernidade e pelo debate
sobre o estado de exceo, a saber: como resistir nos e aos
dispositivos? Para enfrentar a questo, propomos uma breve
genealogia do conceito de resistncia no pensamento de Michel
Foucault, investigando especialmente
a relao entre as noes de contraconduta e poder pastoral. O
objetivo encontrar as implicaes dessa anlise para o conceito mais
geral de dispositivo, na tentativa ltima de compreender as
resistncias por meio da
configurao do que chamamos de contradispositivo.
Em seu conhecido artigo O que um dispositivo?2, Giorgio Agamben
sugere que o termo to decisivo
para Foucault quanto a noo de Ideia na filosofia de Plato,
embora no encontremos, tanto em um caso
como no outro, uma definio acabada de tais terminologias3.
Agamben define o dispositivo por meio de
trs pontos. Segundo ele, tratase de um conjunto heterogneo,
lingustico e no lingustico, que
compreende discursos, instituies, edifcios, leis, medidas de
segurana, virtualmente qualquer coisa,
pois o dispositivo uma rede que conecta elementos; em segundo
lugar, o dispositivo desempenha uma
funo estratgica e se inscreve no campo das relaes de poder e,
por fim, encerra em si uma episteme, permitindo distinguir aquilo
que ou no aceito como enunciado vlido em uma formao histrica4. O
autor
adverte ainda que no se deve reduzir o dispositivo a uma
tecnologia especfica do poder (por exemplo, a
disciplina ou o biopoder), pois ele admite antes um novelo que
atravessa cada uma dessas tcnicas,
formando com elas uma rede de atrelamento.
Para Edgardo Castro5, o aparecimento desse conceito no
pensamento de Foucault est relacionado
mudana de perspectiva que desloca suas investigaes da
arqueologia do saber para a genealogia do poder.
O termo veio para responder aos problemas e ambiguidades gerados
pela noo mais antiga de episteme, uma vez que permite relacionar os
elementos discursivos aos nodiscursivos (como instituies,
acontecimentos
polticos e processos econmicos). A partir do aparecimento desse
conceito, as formas discursivas passam a
ser atreladas ao funcionamento das relaes de poder.
1 Cf. principalmente Harvey, D. Condio psmoderna: uma pesquisa
sobre as origens da mudana cultural. Traduo Adail U. Sobral e Maria
Stela Gonalves. So Paulo: Loyola, 1992, p. 119 e Jameson, F.
PsModernidade e Sociedade de Consumo. Novos Estudos CEBRAP, So
Paulo, n. 12, p. 1626, junho de 1985. Sobre o estado de exceo cf.
Agamben, G. Estado de Exceo. Traduo de Iraci de Poleti. So Paulo:
Boitempo Editorial, 2004. 2 Che cos un dispositivo? (Roma:
Nottetempo, 2006) foi publicado na coletnea em portugus O que o
contemporneo? e outros ensaios. Traduo Vincius N. Honesko. Chapec
SC: Argos, 2009 e antes disso em Outra Travessia, Revista de
PsGraduao em Literatura, Florianpolis, n. 5, 2005.
3 Agamben, G. O que um dispositivo? Outra Travessia, op. cit.,
p. 9. Disponvel em:
4 Ibidem, p. 916. 5 Castro, E. El vocabulario de Michel
Foucault: un recorrido alfabtico por sus temas, conceptos y
autores. Traduo Pedro Sssekind. Buenos Aires: Prometeo, 2004, p.
101102.
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J para Gilles Deleuze, os dispositivos comportam quatro
dimenses6. As duas primeiras so duas mquinas:
a primeira faz ver, a segunda, falar. Ou ainda, todo dispositivo
contm, por um lado, um regime de
visibilidades que permite distinguir entre zonas de luz e
escurido e, por outro, um regime de enunciados
que distingue palavras, frases e proposies: a priso como espao
que v e faz ver o crime, a delinquncia
como forma de dizlo discursividades e evidncias. Em seu livro
sobre Foucault, Deleuze explica que cada
estrato, cada formao histrica implica em uma repartio do visvel
e do enuncivel7. A mquina visual
no ilumina formas prexistentes, ao contrrio, cria objetos que,
sem sua luz, no existiriam. A mquina de
enunciao coloca o enunciado em relao com outros enunciados, mas
tambm com sujeitos, objetos e
conceitos. O saber formado justamente pela combinao entre o
visvel e o enuncivel. A terceira dimenso
do dispositivo, ainda segundo Deleuze, constituda por linhas de
fora. So elas que retificam, manejam e
operam o movimento entre o ver e o dizer. Elas esto presentes em
todo o dispositivo, o atravessam e
o preenchem. Esto to embaraadas s dimenses anteriores que difcil
mas no impossvel distingui
las. Ou seja, a terceira dimenso constituda pelo campo das
relaes de poder. Contudo, para alm da
linha de fora que envolve, existe tambm a ultrapassagem ou
transposio dessas mesmas linhas. Deleuze indica a subjetivao como
quarta dimenso do dispositivo. Enquanto o poder funciona por uma
espcie de
compromisso entre uma linha e outra, a subjetivao implica em uma
dobra, quando a linha voltase para
si mesmo e escapa das dimenses do poder e do saber.
As definies anteriores sugerem que a noo de dispositivo comporta
os diferentes temas atravessados
pelo pensamento de Foucault: o saber, o poder e, finalmente, a
subjetivao (esta apenas para Deleuze).
Diante disso, a pergunta que gostaramos de colocar a seguinte:
que lugar ocupa ou que relaes possvel estabelecer entre as
resistncias e o dispositivo? Dentro dos limites que seu trabalho
comporta, Castro no coloca a questo, uma vez que sua preocupao
demonstrar que o dispositivo fruto de um deslocamento em
relao noo de episteme. Agamben, por sua vez, no a ignora, mas
busca fora da noo de dispositivo mais precisamente na noo de
profanao as formas de resistncia ou, como ele mesmo chamou, o
corpoacorpo que deseja liberar o que foi capturado e separado
pelos dispositivos7. Deleuze enfrenta
a questo quando Fati Tricki8 o questiona sobre como ou onde
introduzir nos dispositivos a possibilidade de
destruio das tcnicas de servido. Em resposta, argumenta que
apenas a anlise de um dispositivo
particular pode dizer se as linhas de fratura encontramse no
nvel do poder, do saber ou da subjetivao9.
Contudo, no estamos plenamente satisfeitos com tais diagnsticos.
Sentimos que no avanaremos se no
retornamos ao pensamento de Foucault para explorar alguns
exemplos privilegiados de resistncia e
recolocar, diretamente, o problema da resistncia ao dispositivo.
No curso Segurana, territrio, populao, Foucault realiza uma
retomada histrica da noo de governo e encontra um ponto de apoio
fundamental de sua
investigao na organizao de uma modalidade mais antiga do poder
sobre a qual gostaramos de nos ater
brevemente: o poder pastoral10. o poder pastoral e no o poder
soberano que figura como verdadeiro antecessor da arte de governar
os homens12. Foucault dedica ao poder pastoral boa parte de seu
curso de
1978 e, mais importante, destina a aula de 1 de maro de 1978 s
chamadas revoltas de conduta,
retomando historicamente as resistncias contra o pastorado,
fornecendonos um material privilegiado
sobre o problema da resistncia.
Como funciona o poder pastoral? Uma de suas caractersticas mais
importantes que se trata de um poder
que no se exerce sobre um territrio, mas, nomeadamente, sobre um
rebanho, ou melhor, ele funciona sobre uma multiplicidade em
movimento. O Deus hebraico caminha, se desloca, um Deus errante.
Sua presena mais grave e intensa se d quando seu povo se desloca
pelo deserto e migra. Tratase de um Deus que indica o
6 Deleuze, G. What is a dispositif? In: Armstrong, T. J. (ed.).
Michel Foucault Philosopher. Traduo Timothy J. Armstrong. New York:
Routledge, 1992, p. 159168. 7 Ibidem, p. 58.
7 Agamben, G. O que um dispositivo?, op. cit., p. 14. 8 Fati
Tricki, juntamente com outros intelectuais, participou das
discusses realizadas com Deleuze aps a apresentao do texto Questce
quun disposif? no Rencontre internationale, realizado em Paris nos
dias 9, 10 e 11 janeiro de 1988. 9 Deleuze, G. What is a
dispositif?, op. cit., p. 167. 10 Cf. Foucault, M. Segurana,
territrio, populao: curso dado no Collge de France (19771978)
Traduo Eduardo Brando. So Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 155303.
12 Ibidem, p. 219.
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caminho e pastoreia. Ao contrrio da lgica soberana, com seus
vertiginosos espetculos de suplcio e morte,
o poder pastoral caracterizado pelo zelo, pela vigilncia atenta
a propsito de tudo que pode ser
considerado nefasto ao rebanho. Porm, enquanto tema hebraico, a
pastoral ainda bastante limitada, sua
fora maior encontrase em sua posterior transformao em pedra
angular da Igreja crist. A partir de sua
institucionalizao, Foucault indica quatro traos principais do
poder pastoral:
1) uma forma de poder cujo objetivo final assegurar a salvao
individual no outro mundo. 2) O poder pastoral no apenas um forma
de poder que comanda; deve tambm estar preparado para se sacrificar
pela vida e pela salvao do rebanho. Portanto, diferente do
poder real, que exige um sacrifcio de seus sditos para salvar o
trono.
3) uma forma de poder que no cuida apenas da comunidade como um
todo, mas de cada um em particular, durante toda a sua vida.
4) Finalmente, essa forma de poder no pode ser exercida sem o
conhecimento da mente das pessoas, sem explorar suas almas, sem
fazerlhes revelar seus segredos mais ntimos. Implica um saber da
conscincia e a capacidade de dirigila11.
Diante desse poder que zela pela preservao dos corpos e pela
direo da conscincia, Foucault sugere que
preciso pesquisar alguns pontos de resistncia, das formas de
ataque e contraataque que puderam se
produzir no prprio campo do pastorado12. Seu interesse est
justamente nas resistncias internas ao
pastorado, nas prticas que se dispem contra seu funcionamento. O
poder pastoral anseia por conduzir;
assim, correlativamente, as contracondutas ambicionam outra
forma de conduo, para outros objetivos, por meio de outros
procedimentos, ou procuram escapar da prpria conduta externa e
reivindicar o direito de
conduzir a si prprio.
Contra a economia da salvao e da obedincia promovida pela
pastoral, a contraconduta encontra mltiplas
formas de resistir. Uma delas o ascetismo. Foucault indica que
aquilo que precisava ser controlado e
limitado pelos arranjos institucionais da Igreja eram os
excessos cometidos pelas prticas ascticas, ao
menos conforme eram praticados pelas religiosidades antigas a
anacorese egpcia ou siraca, por exemplo13.
O ascetismo antigo funciona como um exerccio de si sobre si14,
como uma relao que o indivduo
estabelece consigo mesmo, por isso, tratase de algo
significativamente diferente da relao de obedincia
pura estabelecida pelo pastorado cristo:
(...) o ascetismo (...) uma espcie de elemento ttico, de pea de
reverso pelo qual certo
nmero de temas da teologia crist ou da experincia religiosa vai
ser utilizado contra essa
estrutura de poder [o pastorado]. O ascetismo uma espcie de
obedincia exasperada e
controvertida, que se tornou domnio de si egosta. Digamos que h
um excesso prprio do
ascetismo, um algo mais que assegura precisamente sua
inacessabilidade por um poder
superior15.
Se o ascetismo tornouse uma forma de sufocamento da obedincia
externa, outra maneira de resistncia
ao poder pastoral foi a formao de comunidades. Algumas
comunidades medievais se agrupavam
justamente para questionar ou recusar a autoridade do pastor,
por exemplo, partindo do princpio de que
Roma representante do anticristo ou que representa a nova
Babilnia. As comunidades de contraconduta
recusavam o dimorfismo entre padres e leigos, conforme se v na
organizao pastoral, substituindoo por
relaes mais provisrias, mediadas, por exemplo, por eleies, como
faziam os taboritas. Existem tambm
as inverses de hierarquia, quando em certas comunidades as
pessoas de pior reputao ou honra, os tidos
como mais depravados, so escolhidos para pastorear o rebanho. Na
Sociedade dos Pobres, Jeanne
Dalbenton foi escolhida como lder por, supostamente, ter a vida
mais desregrada de toda a comunidade.
11 Foucault, M. O sujeito e o poder. In: Dreyfus, H. L.;
Rabinow, P. Michel Foucault, uma trajetria filosfica: para alm do
estruturalismo e da hermenutica. Traduo Vera Porto Carrero. Rio de
Janeiro: Forense Universitria, 1995, p. 237. 12 Foucault, M.
Segurana, territrio, populao, op. cit., p. 256. 13 Ibidem, p. 270.
14 Ibidem, p. 271. 15 Ibidem
-
Nesse e em outros casos tratase da organizao de uma contra
sociedade, de uma inverso das
relaes e de hierarquia social16.
Comunidade e ascese so, entre outros, vetores fundamentais da
contraconduta medieval, elementos
fronteira do cristianismo e meios tticos da luta antipastoral.
Porm, apresentar as principais linhas de ao
do poder pastoral para, em seguida, considerar as resistncias,
pode dar a impresso de que as
contracondutas se organizaram secundariamente, como se fossem
contraataques ou reaes. Mas
Foucault levanta uma hiptese diferente: de forma paralela
expanso da Igreja crist, encontramos relaes de enfrentamento ou
hostilidade entre poder pastoral e contraconduta. Haveria uma
correlao imediata
e fundadora entre conduta e contraconduta17. Dessa forma, as
resistncias no so reaes, mas so, antes,
constitudas em seu contato incessante com o poder esto
encerradas em uma espcie de impossibilidade
de escapar por completo, enquanto, ao mesmo tempo, recusamse a
participar inteiramente do
funcionamento do dispositivo, por isso, muitas vezes, optam por
pervertlo, desqualificlo, deturplo ou
recuslo.
Os dispositivos so atravessados por linhas de resistncia. Tais
linhas so imanentes ao seu funcionamento,
agem como uma rplica poltica, sempre mltiplas, acentradas, o que
nos leva a pensar tambm que, sem
elas, os prprios dispositivos se tornariam estticos e, no
limite, vazios. Vimos que o dispositivo um vnculo
que compreende e atrela as relaes de poder; as resistncias, por
sua vez, podem funcionar como
contradispositivos na medida em que, por meio de um movimento
comum, no cessam de inverter, recusar, reorganizar e perverter o
seu funcionamento.
Se o saber definido como uma relao entre duas mquinas
irredutveis uma a outra (a fala cega, a viso muda), ser que o mesmo
no aconteceria com a dimenso das relaes de fora? Somos levados a
pensar que a linha de fora a que Deleuze se refere , na verdade,
dupla. Ou melhor, tratase de duas linhas
imanentes, dispersas e fluidas, que circulam em conjunto pelo
dispositivo e nele se embaraam: resistncias e poder. As resistncias
no so um complemento negativo do poder, ao contrrio, constituem um
vetor prprio do dispositivo, um trao do qual ele no consegue
livrarse, com o qual ele entra em combate; elas
so as linhas que ele persegue e espreita, mas que, por outro
lado, o ameaam, o enfrentam e o recusam.
Poder e resistncia no so linhas equivalentes, para distinguilas
precisaramos dizer, recorrendo
apressadamente a Nietzsche, que uma delas pende para a ao, a
outra para a reao18: afirmar resistir.
A linha difusa da resistncia nunca suprimida. Ela irrompe de
maneira cega ou muda por todo o dispositivo,
em geral guardando com o poder uma relao bastante prxima, embora
exterior e heterognea. Ameaa
formar um contradispositivo na medida em que transporta o
potencial de contaminar o dispositivo,
infectando fragmentos do visvel e do dizvel, recusando as relaes
de poder e intensificando novos
processos de subjetivao. A resistncia tornase contradispositivo
quando, menos do que atacar uma
manifestao precisa, ela afeta a prpria circulao de poder no
dispositivo, desestabilizando sua ao
administrativa. Ou seja, as resistncias circulam por todo o
dispositivo, e no h dispositivo que no as
comporte. J o contradispositivo se forma apenas quando as linhas
resistentes atingem uma velocidade tal
que ameaa desestabilizar o dispositivo, pois h um momento em que
elas escapam, a ponto de forar o movimento (reativo) da linha do
poder e impelilo a organizar uma nova configurao que, sem
dvida,
almeja capturar a linha fugidia. Tratase de um campo interior ao
dispositivo, mas que tambm capaz de
atravessar seus limites ou perfurar suas extremidades. Toda
linha de resistncia comporta essa ameaa virtual: inventar um
contradispositivo por contaminao, perfurao ou fuga.
O final das sociedades feudais s foi possvel porque um encontro
extraordinrio entre diferentes linhas
resistentes ao poder pastoral se operou. De fato, as
contracondutas atravessam o medievo, desviantes e
herticas, apenas para eclodir em um contexto em que os mais
diferentes escorrimentos resistentes se
16 Ibidem, p. 279. 17 Ibidem, p. 258. 18 Cf. Deleuze, G.
Nietzsche e a filosofia. Traduo Antnio M. Magalhes. Porto:
ResEditora, 2001.
-
cruzam e formam um fluxo comum: os trabalhadores se
desterritorializam e abandonam as obrigaes
feudais, as propriedades passam a ser vendidas, novos meios de
produo emergem e os
descontentamentos religiosos se aglutinam. O historiador Robert
Brenner19, por exemplo, recusa a primazia
de fatores demogrficos ou comerciais para explicar o fim do
feudalismo e defende que, em meados do
sculo XV, foi o campesinato quem rompeu definitivamente com os
controles feudais e, por meio da
migrao macia e do enfrentamento, construiu novos espaos de
liberdade em relao ao regime medieval.
Quando tudo est preparado, quando as linhas de resistncia entram
em fluxo comum, elas produzem uma
fora tamanha que possvel encontrar os vetores que apareciam de
maneira dispersa nas revoltas de
contraconduta em um nico corpo. Domenico Scandella, mais
conhecido como Menocchio, era um moleiro
que viveu durante o sculo XVI, na regio da Itlia, e foi
perseguido pela Inquisio. Carlo Ginzburg20
investigou os processos inquisitoriais contra Menocchio e
encontrou, em suas palavras, uma verdadeira
ebulio de crticas ao poder pastoral. De uma s vez, Menocchio
defendeu o contato, sem intermedirios,
de todos com o Esprito Santo, dizendo que a majestade de Deus
distribuiu o Esprito Santo para todos:
cristos, herticos, turcos, judeus, e tem a mesma considerao por
todos, e de algum modo todos se
salvaro; atacou os inquisidores e os membros da Igreja,
associandoos s foras do mal E vocs, padres
e frades, querem saber mais do que Deus; so como o demnio,
querem passar por deuses na terra, saber
tanto quanto Deus da mesma maneira que o demnio; e recusou o
batismo, j que, quando nascemos j
estamos batizados por Deus. Sobre a confisso disse ainda que Ir
se confessar com padres ou frades a
mesma coisa que falar com uma rvore; rejeitou por completo a
hierarquia da Igreja Acho que a lei e os
mandamentos da Igreja so s mercadorias e que se deve viver acima
disso. E, por fim, lanou a pergunta
espinosista: E o que esse tal Deus a no ser terra, gua e ar?23.
Menocchio vivia em meio formao de
um ou mais contradispositivos que ameaavam a circulao do poder
pastoral e logo se tornou uma de suas
manifestaes. Isso quer dizer que ele expressa um movimento
impessoal de comunho de fluxos
resistentes, que pode arrastar consigo Estados, formaes
econmicas, instituies religiosas e, tambm,
indivduos.
O mesmo movimento que vai das resistncias difusas configurao de
um contradispositivo pode ser
encontrado na abolio do sistema escravista brasileiro. Durante
toda a vigncia da escravido, os escravos
praticavam pequenos furtos, fingiam ignorncia diante das ordens,
promoviam sabotagens, incndios e
fugas. Essas recusas no se dirigiam necessariamente instituio da
escravido in totum; era mais comum que elas se voltassem contra
questes precisas, como um rompimento brusco das relaes afetivas
por
ocasio de uma venda ou contra castigos considerados excessivos.
Tais resistncias geravam um impacto
real sobre as foras sociais, modificando seu funcionamento e
provocando rearticulaes nas relaes de
poder. Porm, quando o trfico interno de escravos ou seja, o
transporte de escravos em viagens terrestres
que iam das regies ao norte para os cafezais no sudeste foi
interrompido em 1880, alguns historiadores
atriburam o fato necessidade de evitar o desequilibro na
quantidade de escravos entre as provncias do
norte e do sul ou mesmo ao esprito progressista dos novos
fazendeiros do oeste paulista, que estariam
decididos a acabar com o trabalho compulsrio. Tais explicaes,
contudo, no levam em conta as revoltas
dos prprios escravos. Quando Joaquim Nabuco prope a proibio do
comrcio de escravos entre as
provncias, alega que So Paulo arrisca seu desenvolvimento ao
receber escravos que eram elementos de
desordem e de perturbao. O peso dessas revoltas nas decises dos
polticos profissionais est tambm
expresso na imensa quantidade de comutaes de penas de escravos
condenados priso em todo o Brasil
cerca de metade dessas graas dirigiamse aos escravos revoltados
do sudeste. O vigor das resistncias
escravas era ainda potencializado pelo medo da
Inquisio. Traduo Maria Betnia Amoroso. Traduo dos poemas Jos
Paulo Paes. So Paulo: Companhia das Letras, 2006. 23 Ibidem, p.
5154.
19 Brenner, R. Agrarian class structure and economic development
in PreIndustrial Europe. In: Aston, T. H.; Philpin, C. H. E.
(org.). The Brenner debate. New York: Syndicate of Oxford
University, 1985, p. 1064 20 Cf. Ginzburg, C. O Queijo e os Vermes:
o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela
-
elite brasileira de que os escravos brasileiros repetissem a
frmula da Revoluo do Haiti (17911804).
Mesmo as mudanas que lentamente levam ao fim da escravido no
Brasil, como as leis do Ventre Livre
(1871), a n 3.310 (1886) a que probe a aplicao de castigos
corporais aos escravos foragidos e a dos
Sexagenrios (1887), o movimento abolicionista e a proibio do
trfico, s se tornaram eficazes porque
foram acompanhadas do avolumamento das fugas, ataques, revoltas
e da formao de quilombos que ameaam a circulao do poder por meio de
uma conexo entre as lutas.
Recapitulando, encontramos duas grandes linhas heterogneas
(poder e resistncias) que encerram toda
sorte de apoios, intercomunicaes e ondulaes, que se rebatem uma
na outra sem, contudo, tornlas
homogneas e tampouco determinantes. As contracondutas so,
precisamente, manifestaes histricas
especficas dessa realidade mais difusa que a resistncia ao
dispositivo. Elas esto para o poder pastoral como a desorganizao e
a destruio dos rituais de suplcio ou as revoltas camponesas contra
os impostos esto
para o poder soberano, ou ainda, como as lutas pelo pleno
direito vida, satisfao, sade e ao corpo
esto para a entrada da vida nos clculos do poder. As resistncias
podem, contudo, encontrar um devir
comum que envolve, em um s movimento, as maneiras de produzir,
os questionamentos religiosos, as
migraes, os saberes e as revoltas de trabalhadores o moleiro
Menocchio uma expresso microscpica
de um movimento comum das resistncias, tal como as fugas e os
crimes cometidos pelos escravos que
podem entrar em um devir resistente coletivo, sem a necessidade
de um rgo central de coordenao.
Tratase de minar um ponto de apoio das relaes de poder, mas
tambm subverter e reinventar a rede que
faz o poder circular. Quando levadas ao seu termo, as
resistncias contradispositivam, o que quer dizer que elas deixam o
poder em defasagem, nem que seja apenas por um momento.
*Davis M. Alvim doutor em Filosofia pela PUCSP, mestre em
Histria pela UFES, professor no Instituto Federal do Esprito
Santo
e membro do grupo de pesquisa Tecnologias e Processos de
Subjetivao (UNESP).
DIAGRAMA de FOUCAULT
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POST-SCRIPTUM SOBRE AS SOCIEDADES DE CONTROLE
GILLES DELEUZE
Conversaes: 1972-1990. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p.
219-226.
Traduo de Peter Pl Pelbart
I. HISTRICO
Foucault situou as sociedades disciplinares nos sculos VIII e
XIX; atingem seu apogeu no incio do sculo
XX. Elas procedem organizao dos grandes meios de confinamento. O
indivduo no cessa de passar de
um espao fechado a outro, cada um com suas leis: primeiro a
famlia, depois a escola ("voc no est mais
na sua famlia"), depois a caserna ("voc no est mais na escola"),
depois a fbrica, de vez em quando o
hospital, eventualmente a priso, que o meio de confinamento por
excelncia. a priso que serve de
modelo analgico: a herona de Europa 51 pode exclamar, ao ver
operrios, "pensei estar vendo
condenados...". Foucault analisou muito bem o projeto ideal dos
meios de confinamento, visvel
especialmente na fbrica: concentrar; distribuir no espao;
ordenar no tempo; compor no espao-tempo
uma fora produtiva cujo efeito deve ser superior soma das foras
elementares. Mas o que Foucault
tambm sabia era da brevidade deste modelo: ele sucedia s
sociedades de soberania cujo objetivo e
funes eram completamente diferentes (aambarcar, mais do que
organizar a produo, decidir sobre a
morte mais do que gerir a vida); a transio foi feita
progressivamente, e Napoleo parece ter operado a
grande converso de uma sociedade outra. Mas as disciplinas, por
sua vez, tambm conheceriam uma
crise, em favor de novas foras que se instalavam lentamente e
que se precipitariam depois da Segunda
Guerra mundial: sociedades disciplinares o que j no ramos mais,
o que deixvamos de ser.
Encontramo-nos numa crise generalizada de todos os meios de
confinamento, priso, hospital, fbrica,
escola, famlia. A famlia um "interior", em crise como qualquer
outro interior, escolar, profissional, etc. Os
ministros competentes no param de anunciar reformas supostamente
necessrias. Reformar a escola,
reformar a indstria, o hospital, o exrcito, a priso; mas todos
sabem que essas instituies esto
condenadas, num prazo mais ou menos longo. Trata-se apenas de
gerir sua agonia e ocupar as pessoas, at
a instalao das novas foras que se anunciam. So as sociedades de
controle que esto substituindo as
sociedades disciplinares. "Controle" o nome que Burroughs prope
para designar o novo monstro, e que
Foucault reconhece como nosso futuro prximo. Paul Virillo tambm
analisa sem parar as formas ultra
rpidas de controle ao ar livre, que substituem as antigas
disciplinas que operavam na durao de um sistema
fechado. No cabe invocar produes farmacuticas extraordinrias,
formaes nucleares, manipulaes
genticas, ainda que elas sejam destinadas a intervir no novo
processo. No se deve perguntar qual o
regime mais duro, ou o mais tolervel, pois em cada um deles que
se enfrentam as liberaes e as sujeies.
Por exemplo, na crise do hospital como meio de confinamento, a
setorizao, os hospitais-dia, o atendimento
a domiclio puderam marcar de incio novas liberdades, mas tambm
passaram a integrar mecanismos de
controle que rivalizam com os mais duros confinamentos. No cabe
temer ou esperar, mas buscar novas
armas.
II. LGICA
Os diferentes internatos ou meios de confinamento pelos quais
passa o indivduo so variveis
independentes: supe-se que a cada vez ele recomece do zero, e a
linguagem comum a todos esses meios
existe, mas analgica. Ao passo que os diferentes modos de
controle, os controlatos, so variaes
inseparveis, formando um sistema de geometria varivel cuja
linguagem numrica (o que no quer dizer
necessariamente binria). Os confinamentos so moldes, distintas
moldagens, mas os controles so uma
modulao, como uma moldagem auto-deformante que mudasse
continuamente, a cada instante, ou como
uma peneira cujas malhas mudassem de um ponto a outro. Isto se v
claramente na questo dos salrios: a
-
fbrica era um corpo que levava suas foras internas a um ponto de
equilbrio, o mais alto possvel para a
produo, o mais baixo possvel para os salrios; mas numa sociedade
de controle a empresa substituiu a
fbrica, e a empresa uma alma, um gs. Sem dvida a fbrica j
conhecia o sistema de prmios mas a
empresa se esfora mais profundamente em impor uma modulao para
cada salrio, num estado de
perptua metaestabilidade, que passa por desafios, concursos e
colquios extremamente cmicos. Se os
jogos de televiso mais idiotas tm tanto sucesso porque exprimem
adequadamente a situao de
empresa. A fbrica constitua os indivduos em um s corpo, para a
dupla vantagem do patronato que vigiava
cada elemento na massa, e dos sindicatos que mobilizavam uma
massa de resistncia; mas a empresa
introduz o tempo todo uma rivalidade inexpivel como s emulao,
excelente motivao que contrape os
indivduos entre si e atravessa cada um, dividindo-o em si mesmo.
O princpio modulador do "salrio por
mrito" tenta a prpria Educao nacional: com efeito, assim como a
empresa substitui a fbrica, a formao
permanente tende a substituir a escola, e o controle contnuo
substitui o exame. Este o meio mais garantido
de entregar a escola empresa.
Nas sociedades de disciplina no se parava de recomear (da escola
caserna, da caserna fbrica),
enquanto nas sociedades de controle nunca se termina nada, a
empresa, a formao, o servio sendo os
estados metaestveis e coexistentes de uma mesma modulao, como
que de um deformador universal.
Kafka, que j se instalava no cruzamento dos dois tipos de
sociedade, descreveu em O processo as formas
jurdicas mais temveis: a quitao aparente das sociedades
disciplinares (entre dois confinamentos), a
moratria ilimitada das sociedades de controle (em variao
contnua) so dois modos de vida jurdicos muito
diferentes, e se nosso direito, ele mesmo em crise, hesita entre
ambos, porque samos de um para entrar
no outro. As sociedades disciplinares tm dois plos: a assinatura
que indica o indivduo, e o nmero de
matrcula que indica sua posio numa massa. que as disciplinas
nunca viram incompatibilidade entre os
dois, e ao mesmo tempo que o poder massificante e individuante,
isto , constitui num corpo nico
aqueles sobre os quais se exerce, e molda a individualidade de
cada membro do corpo (Foucault via a origem
desse duplo cuidado no poder pastoral do sacerdote - o rebanho e
cada um dos animais - mas o poder civil,
por sua vez, iria converter-se em "pastor" laico por outros
meios). Nas sociedades de controle, ao contrrio,
o essencial no mais uma assinatura e nem um nmero, mas uma
cifra: a cifra uma senha, ao passo que
as sociedades disciplinares so reguladas por palavras de ordem
(tanto do ponto de vista da integrao
quanto da resistncia). A linguagem numrica do controle feita de
cifras, que marcam o acesso
informao, ou a rejeio. No se est mais diante do par
massa-indivduo. Os indivduos tornaram-se
"dividuais", divisveis, e as massas tornaram-se amostras, dados,
mercados ou "bancos". o dinheiro que
talvez melhor exprima a distino entre as duas sociedades, visto
que a disciplina sempre se referiu a moedas
cunhadas em ouro - que servia de medida padro -, ao passo que o
controle remete a trocas flutuantes,
modulaes que fazem intervir como cifra uma percentagem de
diferentes amostras de moeda. A velha
toupeira monetria o animal dos meios de confinamento, mas a
serpente o das sociedades de controle.
Passamos de um animal a outro, da toupeira serpente, no regime
em que vivemos, mas tambm na nossa
maneira de viver e nas nossas relaes com outrem. O homem da
disciplina era um produtor descontnuo de
energia, mas o homem do Controle antes ondulatrio, funcionando
em rbita, num feixe contnuo. Por
toda parte o surf j substituiu os antigos esportes.
fcil fazer corresponder a cada sociedade certos tipos de mquina,
no porque as mquinas sejam
determinantes, mas porque elas exprimem as formas sociais
capazes de lhes darem nascimento e utiliz-las.
As antigas sociedades de soberania manejavam mquinas simples,
alavancas, roldanas, relgios; mas as
sociedades disciplinares recentes tinham por equipamento mquinas
energticas, com o perigo passivo da
entropia e o perigo ativo da sabotagem; as sociedades de
controle operam por mquinas de uma terceira
espcie, mquinas de informtica e computadores, cujo perigo
passivo a interferncia, e o ativo a pirataria
e a introduo de vrus. No uma evoluo tecnolgica sem ser, mais
profundamente, uma mutao do
capitalismo. uma mutao j bem conhecida que pode ser resumida
assim: o capitalismo do sculo XIX
de concentrao, para a produo, e de propriedade. Por conseguinte,
erige a fbrica como meio de
-
confinamento, o capitalista sendo o proprietrio dos meios de
produo, mas tambm eventualmente
proprietrio de outros espaos concebidos por analogia (a casa
familiar do operrio, a escola). Quanto ao
mercado, conquistado ora por especializao, ora por colonizao,
ora por reduo dos custos de produo.
Mas atualmente o capitalismo no mais dirigido para a produo,
relegada com frequncia periferia do
Terceiro Mundo, mesmo sob as formas complexas do txtil, da
metalurgia ou do petrleo. um capitalismo
de sobre-produo. No compra mais matria-prima e j no vende
produtos acabados: compra produtos
acabados, ou monta peas destacadas. O que ele quer vender so
servios, e o que quer comprar so aes.
J no um capitalismo dirigido para a produo, mas para o produto,
isto , para a venda ou para o mercado.
Por isso ele essencialmente dispersivo, e a fbrica cedeu lugar
empresa. A famlia, a escola, o exrcito, a
fbrica no so mais espaos analgicos distintos que convergem para
um proprietrio, Estado ou potncia
privada, mas so agora figuras cifradas, deformveis e
transformveis, de uma mesma empresa que s tem
gerentes. At a arte abandonou os espaos fechados para entrar nos
circuitos abertos do banco. As
conquistas de mercado se fazem por tomada de controle e no mais
por formao de disciplina, por fixao
de cotaes mais do que por reduo de custos, por transformao do
produto mais do que por
especializao da produo. A corrupo ganha a uma nova potncia. O
servio de vendas tornou-se o centro
ou a "alma" da empresa. Informam-nos que as empresas tm uma
alma, o que efetivamente a notcia mais
terrificante do mundo. O marketing agora o instrumento de
controle social, e forma a raa impudente dos
nossos senhores. O controle de curto prazo e de rotao rpida, mas
tambm contnuo e ilimitado, ao passo
que a disciplina era de longa durao, infinita e descontnua. O
homem no mais o homem confinado, mas
o homem endividado. verdade que o capitalismo manteve como
constante a extrema misria de trs
quartos da humanidade, pobres demais para a dvida, numerosos
demais para o confinamento: o controle
no s ter que enfrentar a dissipao das fronteiras, mas tambm a
exploso dos guetos e favelas.
III. PROGRAMA
No h necessidade de fico cientfica para se conceber um mecanismo
de controle que d, a cada instante,
a posio de um elemento em espao aberto, animal numa reserva,
homem numa empresa (coleira
eletrnica). Flix Guattari imaginou uma cidade onde cada um
pudesse deixar seu apartamento, sua rua, seu
bairro, graas a um carto eletrnico (dividual) que abriria as
barreiras; mas o carto poderia tambm ser
recusado em tal dia, ou entre tal e tal hora; o que conta no a
barreira, mas o computador que detecta a
posio de cada um, lcita ou ilcita, e opera uma modulao
universal.
O estudo scio-tcnico dos mecanismos de controle, apreendidos em
sua aurora, deveria ser categorial e
descrever o que j est em vias de ser implantado no lugar dos
meios de confinamento disciplinares, cuja
crise todo mundo anuncia. Pode ser que meios antigos, tomados de
emprstimo s antigas sociedades de
soberania, retornem cena, mas devidamente adaptados. O que conta
que estamos no incio de alguma
coisa. No regime das prises: a busca de penas "substitutivas",
ao menos para a pequena delinqncia, e a
utilizao de coleiras eletrnicas que obrigam o condenado a ficar
em casa em certas horas. No regime das
escolas: as formas de controle contnuo, avaliao contnua, e a ao
da formao permanente sobre a
escola, o abandono correspondente de qualquer pesquisa na
Universidade, a introduo da "empresa" em
todos os nveis de escolaridade. No regime dos hospitais: a nova
medicina "sem mdico nem doente", que
resgata doentes potenciais e sujeitos a risco, o que de modo
algum demonstra um progresso em direo
individuao, como se diz, mas substitui o corpo individual ou
numrico pela cifra de uma matria "dividual"
a ser controlada. No regime da empresa: as novas maneiras de
tratar o dinheiro, os produtos e os homens,
que j no passam pela antiga forma-fbrica. So exemplos frgeis,
mas que permitiriam compreender
melhor o que se entende por crise das instituies, isto , a
implantao progressiva e dispersa de um novo
regime de dominao. Uma das questes mais importantes diria
respeito inaptido dos sindicatos: ligados,
por toda sua histria, luta contra disciplinas ou nos meios de
confinamento, conseguiro adaptar-se ou
cedero o lugar a novas formas de resistncia contra as sociedades
de controle? Ser que j se pode
apreender esboos dessas formas por vir, capazes de combater as
alegrias do marketing? Muitos jovens
-
pedem estranhamente para serem "motivados", e solicitam novos
estgios e formao permanente; cabe a
eles descobrir a que esto sendo levados a servir, assim como
seus antecessores descobriram, no sem dor,
a finalidade das disciplinas. Os anis de uma serpente so ainda
mais complicados que os buracos de uma
toupeira.