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Garantias flutuantes: inserção no ordenamento jurídico
português
dR.ª MaRisa vaz
sumário: I. Introdução. II. Garantias flutuantes no mundo: 1.
Floating Charge – Inglaterra e manifestações na América e na Ásia:
1.1. Inglaterra; 1.2. Macau; 1.3. Brasil; 2. Floating Lien –
Article 9 Uniform Commercial Code (UCC) – EUA; 3. Soluções de
ordenamentos jurídicos próximos ao português; 3.1. Gage sans
Dépossession e Nantissement des Fonds de Commerce – França; 3.2.
Prenda sin Desplazamiento – Espanha; 3.3. Privilegio Conven-zionale
e Penhor Rotativo – Itália. III. Garantias flutuantes em Portugal:
1. Universo de bens como objecto da garantia: 1.1. Princípio da
especialidade; 1.2. Universalidades, coisas compostas, coisas
complexas: 1.2.1. Penhor de estabelecimento comercial; 1.3. Objecto
fungível, futuro e consumível: 1.3.1. Penhor de valores
mobiliários; 1.4. Apreciação crítica; 2. Manuten-ção da posse no
exercício da actividade do devedor: 2.1. Penhor civil; 2.2. Penhor
mercantil; 2.3. Penhor bancário; 2.4. Apreciação crítica; 3.
Garantia flutuante e dinâmica da constituição do direito real de
garantia: 3.1. Direito real de garantia: 3.1.1. Em geral – os
direitos reais; 3.1.2. Em particular – os direitos reais de
garantia; 3.2. Garantia flutuante; 3.3. Apreciação crítica. IV.
Conclusão.
i. Introdução
“What would happen if all security rights were suddenly
abolished?1” equacionar a hipótese do desaparecimento do sistema de
garantias poderá suscitar no espírito do jurista e do leitor um sem
número de perplexidades, de infindável resolução. no entanto,
tomámos a liberdade de iniciar o tema que nos propomos analisar com
a questão supra identificada, não para lhe dar resposta directa,
mas para reflectir sobre a relevância das garantias no direito e na
comunidade de relações jurídicas, sociais e económicas, e sobre a
necessidade de adaptação do sistema de garantias à constante
evolução do referido mundo de relações.
1 Questão formulada por R. M. Goode no âmbito de uma conferência
a advogados e bancários a que faz referência no seu artigo “The
Changing Nature of Security Rights”, in Emerging Financial Markets
and Secured Transactions, 1998, 1.
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Marisa Vaz
o tema das Garantias Flutuantes apresenta escasso
desenvolvimento no direito Português, ao contrário do que acontece
noutros ordenamentos jurídi‑cos estrangeiros que têm apresentado
diferentes soluções para a problemática da conciliação do sistema
de garantias mobiliárias com a evolução do mercado e das relações
jurídicas subjacentes.
em termos muito gerais, o problema a que se tentará dar uma
resposta satis‑fatória prende‑se com a possibilidade de
constituição de uma garantia sobre bens móveis de natureza
circulante, como é o caso de matérias‑primas, produtos inter‑médios
na cadeia produtiva, produtos finais, os denominados stocks e
produtos de inventário, que constituem a fonte de geração de
riqueza dos devedores e, como tal, instrumento essencial para o
desenvolvimento da actividade do devedor.
atendendo a que o penhor constitui a garantia que mais se adequa
à figura em estudo tendo em consideração o seu objecto,
identificam‑se, à partida, um con‑junto de problemas relacionados
com as características da garantia real prevista nos artigos 666.º
e seguintes do código civil (cc), nomeadamente a possibilidade de
constituição de penhor sobre um conjunto de bens em constante
alteração, os obs‑táculos criados pela necessidade de
desapossamento dos bens garantidos, a própria dinâmica da
constituição do direito real, que é estranha à dilação existente
entre a constituição da garantia e a determinação dos bens que
responderão pela dívida.
com o presente trabalho, pretendemos, num primeiro momento,
olhar para os sistemas jurídicos estrangeiros, identificando as
respostas apresentadas para os problemas levantados e, num segundo
momento, equacionar a validade de uma garantia flutuante no sistema
jurídico português, tomando como ponto de referência o regime do
penhor e as suas diferentes modalidades e abordando a disciplina
dos direitos reais de garantia, em confronto com as soluções
apresentadas nos ordenamentos jurídicos mais próximos.
ii. Garantias flutuantes no mundo
1. Floating Charge – Inglaterra e manifestações na América e na
Ásia
1.1. Inglaterra
originária da segunda metade do século XiX, a floating charge
constituiu uma resposta da equity inglesa ao problema da rigidez no
seio do sistema jurídico das garantias e aos constantes
desenvolvimentos do tráfego comercial2.
2 cf. R. M. Goode, “The English Floating Charge”, in Lectures on
the Common Law, vol. 2, Klumer Law and taxation Publishers, 1989,
54‑55; enrico Gabrielle e G. andrea danese, “Le Garanzie
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português
Face às características dos três tipos de garantias reais
consensuais existentes no ordenamento jurídico inglês – pledge,
mortgage e charge3 –, facilmente se chegou à conclusão da
inadequação do regime das referidas garantias para casos em que,
pela natureza das coisas, os bens susceptíveis de constituir
objecto de garantia não pudessem deixar de estar na posse do
devedor para garantir a continuação da sua actividade (e, portanto,
a continuação da geração de riqueza e dos recursos necessários para
prover ao cumprimento das suas obrigações), e apresentassem uma
natureza circulante e não estática que implicasse uma constante
alteração do património dado em garantia4.
a floating charge surgiu, então, em resultado do esforço da
praxis comercial e da jurisprudência dos tribunais ingleses.
destaque‑se, a este respeito, o caso Re Panama, New Zealand and
Australian Royal Mail Co. (1870), em que se reconheceu ao devedor a
liberdade de dispor do complexo de bens garantidos até ao momento
da consolidação da garantia sobre todos os bens da empresa, e o
caso Re Yorkshire
sui Beni dell’Impresa: Profili della Floating Charge nel Diritto
Inglese”, in Banca Borsa e Titoli de Credito, Rivista di Dottrina e
Guirisprudenza, anno Lviii, fasc. v, Parte Prima, set.‑out., 1995,
632‑639.3 até então, o sistema de garantias inglês era
caracterizado por quatro tipos de garantias convencionais:
contractual lien, pledge, mortgage e charge. no entanto, apenas as
três últimas constituíam um direito real sobre os bens dados em
garantia, razão pela qual nos deteremos na análise das referidas
garantias. o pledge era uma garantia possessória (uma vez que
implicava a traditio dos bens dados em garantia do devedor para o
credor) que atribuía ao credor o dever de conservar os bens até ao
cumprimento da obrigação e, em caso de incumprimento, o direito de
alienar os bens garantidos para satisfazer o seu crédito. Por seu
turno, a mortgage implicava a transmissão da propriedade do bem
garantido para o credor, com o acordo, expresso ou tácito, de se
proceder à retransmissão da propriedade para o devedor em caso de
cumprimento da obrigação. Por fim, diferentemente das duas
garantias referidas, a charge, prescindindo da traditio ou da
transmissão da propriedade, constituía um acordo entre o devedor e
o credor pelo qual o segundo adquiria uma preferência na satisfação
do crédito em caso de incumprimento do devedor, em relação aos
restantes credores quirografários. esta garantia apenas poderia ser
constituída (attached) sobre bens determinados ou determináveis,
existentes no património do devedor, e impunha, sobre o devedor, o
dever de não dispor dos bens nem de os onerar, sem o prévio
consentimento do credor. cf. R. M. Goode, “The English Floating
Charge”, op. cit., 52‑54; Gian Bruno Bruni, “La Garanzia
‘Fluttuante’ nell’Esperienza Guiridica Inglese e Italiana”, in
Banca Borsa e Titoli de Credito, Rivista di Dottrina e
Guirisprudenza, anno XLiX, fasc. v, Parte Prima, novembre‑dicembre,
1986, 692‑693; Michael G. Bridge, “The English Law of Real
Security”, in European Review of Private Law, vol. 10, n.º 4,
2002, 486‑487; Joana Forte Pereira dias, “Mecanismos Convencionais
da Garantia do Crédito: Contributo para o Estudo da Garantia
‘Rotativa’ mobiliária no Ordenamento Jurídico Português”,
dissertação de Mestrado em ciências Jurídicas sob a orientação do
senhor Professor doutor antónio Menezes cordeiro, Faculdade de
direito de Lisboa, 2005, 64.4 Bens como matérias‑primas,
maquinaria, outros bens de produção, bens de inventário, e outros
bens circulantes, bem como todo o património do devedor, não
poderiam ser dados em garantia sem implicar a paralisação da
actividade do devedor e, consequente e inevitavelmente, a sua
insolvência.
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Woolcombers Association (1903), no qual se reconheceu
definitivamente a figura, definindo‑se as suas características
essenciais e típicas: (i) trata‑se de uma garan‑tia sobre um
conjunto ou sobre todos os bens da empresa presentes e futuros;
(ii) conjunto ou totalidade que, “in the ordinary course of
business of the company”, se encontram em constante alteração;
(iii) e, até a um certo momento determinado pelas partes, a
empresa pode continuar a desenvolver a sua actividade nos termos
normais, tanto quanto ao conjunto de bens diz respeito5,
característica esta que, em Jurisprudência posterior6, se
considerou como “the hall mark of a floating charge and serves to
distinguish it from a fixed charge”7.
Passando para a dinâmica da garantia, saliente‑se que o fenómeno
da flutuação do direito real8 sobre os bens garantidos é
caracterizado por dois momentos distintos: o primeiro, em que os
bens são livremente dispostos pelo devedor, sem quaisquer ónus, e
em que os bens adquiridos passam a estar sob uma “auréola de
realidade” que paira sobre os bens identificados no contrato de
constituição de garantia e que caibam no âmbito da actividade do
devedor; o segundo, a crystallisation dos bens exis‑tentes no
património do devedor, que corresponde ao momento da consolidação
da garantia (ao attachment, à constituição efectiva do direito real
sobre os bens) e que está dependente da verificação de determinado
evento, como o incumprimento, a cessação da actividade do devedor,
a nomeação de um administrative receiver9 ou
5 Re Yorkshire Woolcombers Association (1903) 2 CH. 284,at 295,
apud stephen atherton e Rizwaan Jameel Mokal, “Charges over
Chattels – Issues in the Fixed/Floating Jurisprudence”, disponível
em www.ssrn.com, 1.6 caso Agnew v Commissioners of Inland Revenue
[2001] 2 AC 710 (“Brumark”), caso Re Cosslett (Contractors) Limited
[1998] Ch 495, 510C-D, caso Brumark [2001] 2 AC 710, 721H-722A,
[19], caso Smith administrator of Cosslett (Contractors) v Bridgend
County Borough Council [2002] 1 AC 336, 353, [41], apud stephen
atherton e Rizwaan Jameel Mokal, op. cit., 2.7 e. P. ellinger, e.
Lomnicka e R. J. a. Hooley, “Ellinger’s Modern Banking Law”, Fourth
edition, 2006, 783: “Thus it is degree of control which the charge
obtains over the revolving property, or its corollary, the freedom
the chargor retains to deal with the property and remove it from
the charge, that is the main determinant whether the charge is
fixed or floating”. sobre a dificuldade de distinção das duas
figuras, cf. Rizwaan Jameel Mokal, “The Floating Charge – an
Elegy”, in Commercial Law and Commercial Practice, 2003, disponível
em www.ssrn.com, 12‑14.8 ilustrado por R. M. Goode com recurso à
seguinte imagem: “(…) During this period the charge hovers like a
cloud over all the assets for the time being owned by the company
which are within the description in the charge. If the chill winds
of insolvency blow, and the company’s management powers are
withdrawn, the could crystallizes into rain and ice which descend
upon and freeze the collection of assets then held or later
acquired by the debtor company (…)”, R. M. Goode, “The English
Floating Charge”, op. cit., 55.9 Pessoa nomeada pelo credor para
administrar a empresa devedora até ao pagamento final da dívida.
cf. enrico Gabrielle e G. andrea danese, op. cit., 652.
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qualquer outro evento determinado pelas partes10. no momento da
consolidação, a floating charge transforma‑se em fixed charge,
concorrendo para a satisfação do crédito com preferência sobre os
credores comuns.
trata‑se de um sistema sem paralelo no ordenamento jurídico
português, conforme teremos oportunidade de verificar.
no que à preferência diz respeito, verifica‑se que uma das
limitações da con‑sagração desta garantia está relacionada com o
seu grau de satisfação no confronto com outros credores
garantidos11. atendendo a que, num primeiro momento, os bens dados
em garantia não se encontram onerados, podendo ser transmitidos no
curso normal do comércio, a constituição de uma fixed charge
durante esse período e sobre esses bens prevalecerá sobre a
floating charge, independentemente da data da sua constituição.
Prevalecerão, igualmente, os créditos detidos por credores
privilegiados, independentemente também da data de constituição da
garantia e da cristalização da floating charge12. verificando‑se um
conflito entre duas garantias flutuantes, prevalecerá aquela cujo
registo de constituição tenha data anterior.
atendendo à fragilidade da preferência desta garantia, é comum a
inclusão de cláusulas negative pledges nos contratos de garantia,
constituindo‑se o devedor na obrigação de não dar em garantia
outros direitos reais de que seja titular, a partir da celebração
do contrato13.
Por fim, importa fazer uma breve referência à forma e ao
registo. a floating charge é uma garantia não formal sujeita a
registo, o que bem se compreende pelo facto de não implicar um
desapossamento ou um controlo efectivo por parte do credor sobre os
bens dados em garantia. não se trata de um registo constitutivo mas
de uma mera condição de oponibilidade a terceiros14. o registo é
feito no Company Registry, mediante acto escrito do qual resulte a
vontade de constituição de uma floating charge e com a descrição
dos bens compreendidos na classe dos bens garan‑tidos. no caso dos
bens que se encontrem sujeitos a outras obrigações registais,
10 a cristalização poderá ocorrer de forma automática ou
semi‑automática. no primeiro caso, a cristalização ocorre assim que
se verificar um dos eventos determinados pelas partes no contrato
de garantia, sem necessidade da prática de qualquer acto por parte
do credor. no segundo caso, é necessária a notificação do devedor
com indicação de que a garantia se cristalizou nos bens existentes
no seu património. cf. Michael G. Bridge, op. cit., 492.11 Havendo
quem defenda a fragilidade desta garantia e a sua eventual exclusão
no cômputo das garantias, Rizwaan Jameel Mokal, “The Floating
Charge – an Elegy”, op. cit., 1 ss.12 artigo 176za do insolvency
act 1986; enrico Gabrielli e G. andrea danese, op. cit., 658;
Michael G. Bridge, op. cit., 494 e 495.13 cf. Michael G. Bridge,
op. cit., 492‑493; e. P. ellinger, e. Lomnicka e R. J. a. Hooley,
op. cit., pp.783‑784. Para um estudo compararístico sobre as
cláusulas negative pledges, antónio Menezes cordeiro, “Negative
Pledge: um estudo comparatístico”, in O Direito, ano 142.º (2010),
iii, 497‑538.14 sealey, “Company Law and commercial reality”,
London, 31 ss, apud Gian Bruno Bruni, op. cit., 699, nota
44.
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deverão as partes igualmente proceder ao registo nos respectivos
Registos Públicos (é o caso dos aviões, barcos, direitos de
propriedade intelectual e bens imóveis)15.
ainda que inúmeros países dos vários continentes tenham adoptado
a figura em análise ou garantias com características muito
semelhantes16, destacaremos dois ordenamentos jurídicos que nos são
próximos, histórica e afectivamente: Macau e Brasil.
1.2. Macau
o código comercial de Macau (ccM)17 adoptou a figura da garantia
flu‑tuante e regulou‑a nos seus artigos 928.º a 941.º, em termos
muito semelhantes à floating charge.
nos termos do n.º 1 do artigo 928.º do ccM, “garantia flutuante
é aquela que versa sobre todos ou parte dos bens, exceptuados os
imóveis, que estejam ou venham a estar afectados ao exercício de
uma empresa, e cujos efeitos ficam suspensos até ao momento em que,
verificado o fundamento previsto na lei ou no contrato, o credor
provoque a consolidação da garantia”, sendo permitido ao devedor
que disponha e onere os bens que cabem no âmbito do exercício da
sua actividade, podendo as partes estabelecer restrições aos
referidos poderes (artigo 933.º do ccM).
Prevê‑se a constituição de uma garantia mobiliária apenas para
garantir obri‑gações contraídas no exercício do comércio (artigo
929.º do ccM), exigindo‑se a forma escrita para a sua constituição
(artigo 928.º, n.º 2 e artigo 930.º, n.º 1, ambos do ccM)18, com as
menções obrigatórias previstas no artigo 932.º 19 do ccM e a
inscrição no registo comercial ou no registo competente (de
acordo
15 Michael G. Bridge, op. cit., 499.16 de que são exemplo
escócia, República checa, Rússia, Japão, sri Lanka, Índia, Malásia,
cf. George L. Fretton, “Mixed Sistems: Scotland”, in Emerging
Financial Market Transactions, 1998, 286‑289; Barbara adamkova,
“Protection of Creditors by the English Fixed and Floating Charge
as Compared to the Czech Encumbering Charge over Business”, ceU e
td collection, 2010; alexei zevrev, “Securities Issues under
Russian Law”, in Emerging Financial Market Transactions, 1998,
298‑299; Masao Yanaga, “The Japanese Approach”, in Emerging
Financial Market Transactions, 1998, 334‑337; sonali abeyratne,
”Enforcing Security in India, Sri Lankan and Malaysia”, in Emerging
Financial Market Transactions, 1998, 346‑347, 349, 358.17 aprovado
pelo decreto‑Lei n.º 48/99/M, de 3 de agosto de 1999, com as
alterações introduzidas pela Lei n.º 6/2000, de 27 de abril de
2000, e pela Lei n.º 16/2009, de 10 de agosto de 2009. 18 com
reconhecimento presencial de assinaturas, salvo se outra forma for
exigida de acordo com a natureza dos bens.19 o referido preceito
prevê a necessidade de inclusão dos seguintes elementos no acto
escrito, sob pena de nulidade: identificação do empresário e do
credor; identificação da empresa ou da parte da empresa sobre a
qual incide; montante da dívida ou elementos que permitam a sua
determinação; lugar e data de pagamento.
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com o tipo de bem), para que se produzam os seus efeitos (artigo
930.º, n.º 2, do ccM). a oponi bilidade a terceiros está
dependente do registo da notificação da consolidação prevista no
artigo 934.º do ccM (equivalente à crystallisation da floa-ting
charge e um dos aspectos particulares do regime) no mesmo registo
comercial (artigo 930.º, n.º 3, do ccM).
a consolidação concretiza‑se no momento em que a garantia deixa
de recair sobre parte ou o conjunto dos bens do património do
devedor, assumindo a fun‑ção de penhor ou de hipoteca relativamente
a cada bem que, naquele momento, esteja compreendido no acervo de
bens do devedor (artigo 936.º do ccM), e pode ter subjacentes os
seguintes fundamentos: pagamento não pontual das pres‑tações
[artigo 923.º, n.º 1, al. c), do ccM]; dissolução ou
liquidação do empresário comercial ou pessoa colectiva; verificação
de qualquer dos motivos de declaração de insolvência do empresário;
cessação do exercício da empresa por parte do garante, salvo nos
casos de transmissão da empresa. verificada a consolidação de uma
garantia flutuante, os restantes credores podem proceder à
consolidação das suas garantias, nos termos do artigo 939.º do
ccM.
no que à preferência diz respeito, refira‑se que a concorrência
entre garantias flutuantes se resolve pela prioridade da respectiva
inscrição no registo comercial, e não pela prioridade da respectiva
consolidação (artigo 940.º do ccM).
1.3. Brasil
o direito Brasileiro prevê, igualmente, uma forma de garantia
flutuante na Lei das sociedades anônimas, aprovada pela Lei n.º
6.404, de 15 de dezembro de 1976.
as debêntures são valores mobiliários representativos de uma
fracção de um empréstimo, nos termos do n.º 1 do artigo 2.º da Lei
n.º 6385, de 7 de dezembro de 197620, emitidos por sociedades
anónimas, que têm a sua origem na celebração de um contrato de
mútuo entre a entidade emissora e os debenturistas e que confere a
estes últimos um direito de crédito sobre a primeira nos termos e
condições definidas na escritura de emissão21.
nos termos do artigo 58.º da Lei das sociedades anônimas, podem
identifi‑car‑se quatro espécies de debêntures: as debêntures com
garantia real, com garantia flutuante, sem preferência ou
subordinadas.
nos termos do § 1.º do mencionado preceito, as debêntures
flutuantes asseguram a constituição de um privilégio geral sobre o
activo da sociedade emissora, não impedindo a negociação dos bens
que compõem o referido activo. está prevista
20 Regula o Mercado de valores Mobiliários e criou a comissão de
valores Mobiliários.21 associação nacional das instituições de
Mercado Financeiro, “Debêntures”, estudos especiais, Produtos de
captação, 2008.
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a possibilidade de criação de cláusulas de inalienabilidade no §
5.º: “a obrigação de não alienar ou onerar bem imóvel ou outro bem
sujeito a registro de propriedade, assumida pela companhia na
escritura de emissão, é oponível a terceiros, desde que averbada no
com-petente registro”22.
nos termos do § 3.º, “as debêntures com garantia flutuante de
nova emissão são preferidas pelas de emissão ou emissões
anteriores, e a prioridade se estabelece pela data da inscrição da
escritura de emissão; mas dentro da mesma emissão, as séries
concorrem em igualdade”, ocupando o quinto lugar na lista de
credores com preferência (artigo 83.º, v da Lei n.º
11.101/200523).
2. Floating Lien – Article 9 Uniform Commercial Code (UCC) –
EUA
o article 9.º do UCC24 consagrou um regime das garantias
mobiliárias em termos globais, cabendo na sua regulamentação todos
os contratos em que se determine uma função de garantia adstrita a
certos bens móveis, havendo quem o considere como a lei geral das
garantias mobiliárias25.
ao contrário da solução identificada pelo ordenamento jurídico
inglês, o legislador norte‑americano considerou a compatibilidade
entre a constituição de uma garantia sobre bens determinados ou
determináveis, equivalente à fixed charge inglesa, protegendo os
interesses dos credores, e a permissão concedida ao devedor para
dispor dos bens no decurso da sua actividade sem interferência do
credor26, evitando dessa forma as desvantagens da consagração de
uma garantia com as características da floating charge, que “ fails
to give the chargee adequate control over assets covered by the
charge”27.
22 colocando a questão sobre a extensão da cláusula a todo o
património, implicando uma exclusão da liberdade de disposição dos
activos e respondendo afirmativamente, décio alexandre várzea
correia, “O floating charge no contexto da harmonização do
direito”, in Estudos sobre Incumprimento do Contrato, coordenação
de Maria olinda Garcia, 2011, 232.23 Regula a Lei de Falências e de
Recuperação de empresas Brasileira.24 “(…) Modelo mais inovador no
Direito Comparado relativamente às garantias das obrigações”, Luís
Manuel teles de Menezes Leitão, “O Artigo 9 do Uniform Commercial
Code e a sua Aptidão como Modelo de Uniformização do Sistema de
Garantias”, in Boletim da Faculdade de direito de coimbra, n.º 85,
2009, 679.25 Luís Rojo ajuria, “Las garantias mobiliárias
(Fundamentos del Derecho de Garantías Mobiliarias a la luz de la
experiencia de los Estados Unidos de América), in Anuario de
Derecho Civil, t.42, n.º 3 ( Julio‑septiembre 1989), 1989, 727
ss.26 R.M. Goode, “The English Floating Charge”, op. cit., 59 e
60.27 G. Gilmore, “Security Interests in Personal Property” (Boston
and toronto, 1965), para. 11.7, apud e. P. ellinger, e. Lomnicka e
R. J. a. Hooley, op. cit., 783.
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a referida compatibilidade vem vertida nas secções 20428 e 20529
do article 9.º do Ucc, as quais prevêem, respectivamente, a
possibilidade de constituição de uma garantia sobre bens ou
direitos futuros e a permissão concedida ao devedor de usar e
dispor dos bens dados em garantia.
desta forma, o ordenamento jurídico norte‑americano prevê a
possibilidade de o objecto original da garantia (bens certos e
determinados) ser alterado com o decurso do tempo e de acordo com
as necessidades da actividade desenvolvida pelo devedor, sem
necessidade de celebração de novas garantias ou de alteração dos
security agreements. a garantia consolidar‑se‑á sobre os bens ou
direitos que forem sendo adquiridos pelo devedor30, desde que
respeitados os requisitos previstos na secção 20331. a garantia
considerar‑se‑á, também, e automaticamente, perfeita quando for
feito o registo do financing statement, com a indicação da
descrição dos bens ou direitos que se devem enquadrar na classe
objecto da actividade do devedor e com a indicação das
partes32.
3. Soluções de ordenamentos jurídicos próximos ao português
3.1. Gage sans Dépossession e Nantissement des Fonds de Commerce
– França
em 2006, o legislador francês, confrontado com o problema da
rigidez do sistema de garantias mobiliárias face à realidade
económica, introduziu uma reforma significativa no âmbito do
direito das Garantias, optando por generalizar o penhor sem
desapossamento.33
28 cf. Ucc § 9‑204 (1): “Except as otherwise provided in
subsection (2), a security agreement may create or provide for a
security interest in after-acquired collateral”.29 cf. Ucc § 9‑205
(1): “A security interest is not invalid or fraudulent against
creditors solely because of either of the following: (a) The debtor
has the right or ability to do one or more of the following: (i)
Use, commingle, or dispose of all or part of the collateral,
including returned or repossessed goods; (ii) Collect, compromise,
enforce, or otherwise deal with collateral; (iii) Accept the return
of collateral or make repossessions; (iv) Use, commingle, or
dispose of the proceeds; (b) The secured party fails to require the
debtor to account for proceeds or replace collateral.30 Peter
Winship, “Selected Security Interest in the United States”, in
Emerging Financial Markets and a Secured Transactions, 1998, 271.31
Ucc 203 (1): “A security interest attaches to collateral when it
becomes enforceable against the debtor with respect to the
collateral, unless an agreement expressly postpones the time of
attachment.”32 Peter Winship, ibidem.33 em 2006, com a entrada em
vigor da Ordonnance n.º 2006-346 du 23 mars 2006, o Code Civil
sofreu alterações significativas ao nível das garantias
mobiliárias, eliminando a tensão existente entre um código civil
que se mantinha fiel à tradição romanística do penhor com
desapossamento e as sucessivas criações de garantias mobiliárias
especiais não possessórias que, pela grande aplicabilidade prática,
contribuíam para um constante desvanecimento da regra geral. o Code
Civil operou uma
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Pese embora não afaste o “gage avec dépossesion”, o qual
continua a caber no âmbito dos seus artigos 2333.º e 2337.º34, o
Code Civil consagra, nos seus arti‑gos 2336.º a 2338.º, duas normas
essenciais para a compreensão das alterações introduzidas em 2006:
a primeira traduz‑se na exigência única e simples de um documento
que contenha a indicação da data da constituição da garantia, a
quan‑tidade de bens garantidos, bem como a sua espécie e a sua
natureza, para que a garantia se considere perfeita, eliminando,
dessa forma, a traditio como elemento constitutivo do “gage”; a
segunda, constante nos dois artigos seguintes, consagra a
possibilidade de proceder ao registo do “gage” como forma de
oponibilidade dos efeitos da garantia a terceiros.
desta forma, o legislador francês determinou que a traditio já
não constitui uma condição de validade do gage, mas sim, meramente,
da sua oponibilidade a tercei‑ros, e que essa mesma oponibilidade é
assegurada quer pelo desapossamento, quer pela publicidade registal
agora permitida35. no que diz respeito à sua constituição, o
contrato de gage deixou de ser um contrato real para passar a ser
consensual36.
Permite‑se, igualmente, o gage de bens futuros (artigo 2333.º do
Code Civil), bem como a possibilidade de alienação de bens
fungíveis, com a condição de os subs‑tituir pela mesma quantidade
de coisas equivalentes (artigo 2342.º do Code Civil)37.
no que diz respeito ao gage commercial, ao qual se aplica o
regime geral do gage commun, saliente‑se a criação de uma nova
garantia, denominada gage de stocks38, prevista no artigo L. 527 do
Code de Commerce. Permite‑se a constituição de uma garantia sobre
“les stocks de matières premières et approvisionnements, les
produits
generalização do gage sans dépossession, alterando todo o regime
comum do gage consagrado nos artigos 2333.º a 2350.º do Code, e
clarificou a terminologia no âmbito das garantias pignoratícias,
atribuindo a qualificação de gage às garantias constituídas sobre
bens móveis corpóreos e de nantissement às garantias sobre bens
móveis incorpóreos. cf. christian Gavalda e Jean stoufflet, “Droit
Bancaire – Institution – Comptes – Opérations – Services”, 8ème
édition, 2010, 593; Francesca Fiorentini, “La Riforma Francese
delle Garanzie nella Prospettiva Comparatistica”, in Europa e
diritto privato, Rivista trimestral, n.º 3, 2006, 1171‑1173.34
artigo 2333.º do Code Civil: “Le gage est une convention par
laquelle le constituant accorde à un créancier le droit de se faire
payer par préférence à ses autres créanciers sur un bien mobilier
ou unensemble de biens mobiliers corporels, présents ou futurs”
(…); artigo 2337.º do Code Civil: “Le gage est opposable aux tiers
par la publicité qui en est faite. Il l’est également par la
dépossession entre les mains du créancier ou d’un tiers convenu du
bien qui en fait l’object. (…)”.35 christian Gavalda e Jean
stoufflet, op. cit., 593‑594 e 595.36 christian Gavalda e Jean
stoufflet, op. cit., 596; Francesca Fiorentini, op. cit., 1174.37
admitindo a substituição dos bens sem a constituição de uma nova
garantia, christian Gavalda e Jean stoufflet, op. cit., 594; v.
stéphane torck, “Les garanties réelles mobilières après
l’Ordonnance du 23 mars 2006 relative aux sûretés”, in Revue de
Droit Bancaire et Financier, Juill.‑août 2006, 39. admitindo um
género de penhor rotativo, Francesca Fiorentini, op. cit., 1176.38
sobre o gage des stocks, Francesca Fiorentini, op. cit., 1177‑1178;
christian Gavalda e Jean stoufflet, op. cit., 596.
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português
intermédiaires, résiduels et finis ainsi que les marchandises
appartenant au débiteur et estimés en nature et en valeur à la date
du dernier inventaire” (à excepção dos bens sujeitos a reserva de
propriedade) pertencentes a uma pessoa colectiva de direito privado
ou a uma pessoa singular no desenvolvimento da sua actividade
profissional (L. 527‑1 e 3 do Code de Commerce).
a sua validade está dependente do respeito pelos requisitos
formais previstos no artigo L. 527‑1 do Code de Commerce, devendo o
acto constitutivo do gage ser formulado por escrito com as
seguintes menções: denominação de “acte de gage dês stocks”;
designação das partes; menção da submissão dos actos aos artigos
L. 527‑1 a 11 do Code de Commerce; nome da seguradora que
assume o risco em caso de incêndio ou de destruição; designação do
crédito garantido; descrição que permita identificar os bens
presentes e futuros dados em garantia, a sua natureza, qualidade,
quantidade e valor, bem como a indicação do lugar de conservação; e
a duração do penhor. encontra‑se, igualmente, dependente da
inscrição do gage num registo público (L. 527‑4 do Code de
Commerce).
salientem‑se dois aspectos relevantes do regime: (i) sub‑rogação
real do objecto da garantia, prevista no artigo L. 527‑5 do Code de
Commerce, ao longo da vigência do gage, podendo o credor fiscalizar
o estado dos bens dados em garantia a qualquer momento; (ii)
obrigação que recai sobre o devedor de manter um conjunto de bens à
disposição do credor e de não contribuir para a diminuição do seu
valor (em caso de diminuição da garantia em 20% do seu valor, o
credor pode exigir que o devedor restabeleça o valor total da
garantia ou que o indem‑nize pela perda, ou, em caso de
incumprimento, a restituição total da garantia e o recurso à via
judicial, nos termos gerais – L. 527‑7 e 10 do Code de
Commerce).
Por fim, resta fazer uma breve referência aos nantissements, que
podem ser definidos como o vínculo de garantia sobre um bem móvel
incorpóreo, ou um conjunto de bens móveis incorpóreos, presentes ou
futuros39, como é o caso dos nantissements de créance,
nantissements de compte, nantissements d’espèces, nantissements de
valeurs mobilières et d’instruments financiers e nantissements de
fonds de commerce40.
39 Francesca Fiorentini, op. cit., 1178.40 no caso do
nantissement de fonds de commerce, e atendendo à comum comparação
com a floating charge, refira‑se, apenas, que se trata de uma
garantia formal e sujeita a registo, constituída sobre “l’enseigne
et le nom commercial, le droit au bail, la clientèle et
l’achalandage, le mobilier commercial, le matériel ou l’outillage
servant à l’exploitation du fonds, les brevets d’invention, les
licences, les marques, les dessins et modèles industriels, et
généralement les droits de propriété intellectuelle qui y sont
attachés” (L. 142‑2 do Code de Commerce), excluindo‑se as
mercadorias, atendendo à susceptibilidade de criação de conflitos
entre o credor garantido e terceiros adquirentes. esta exclusão bem
se compreende atendendo à consagração da modalidade de gage de
stocks. também neste caso, a lei não exige o desapossamento para a
validade e eficácia da garantia, podendo o devedor desenvolver a
sua actividade comercial. o registo é feito na secretaria do
tribunal de comércio do lugar onde o estabelecimento é
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3.2. Prenda sin Desplazamiento – Espanha
o legislador espanhol, por sua vez, face à rigidez do regime da
prenda previsto nos artigos 1863.º e seguintes do cc espanhol,
optou pela criação de um diploma especial que colmatasse as lacunas
reveladas pelo regime comum da hipoteca e do penhor no confronto
com a realidade económica: a Ley de 16 de diciembre de 1954 de
la Hipoteca Mobiliária y de la Prenda sin Desplazamiento de
Posesión41 (Ley).
a hipoteca mobiliária e a prenda sin desplazamiento são duas
garantias reais sobre bens móveis susceptíveis de alienação (art.
1.º da Ley) que diferem quanto à natu‑reza e qualidade do seu
objecto42. ambas se constituem por escritura pública43 e exigem o
registo público44. em qualquer um dos casos, o devedor poderá
alienar os bens garantidos, desde que, para tanto, tenha o
consentimento do credor, nos termos do artigo 4.º da Ley. no que
diz respeito à preferência, regem para ambas as normas dos artigos
1922.º, n.º 245, e 1926.º, n.º 146 do cc espanhol (artigo 10.º
da Ley).
explorado pelo devedor. ao credor, é atribuída protecção em caso
de alienação da totalidade do fonds de commerce, nos termos dos
artigos L.143‑1 ss. do Code de Commerce, consubstanciando um
verdadeiro droit de suite. a figura acabada de explanar apresenta
contornos semelhantes ao nosso penhor de estabelecimento comercial,
a que faremos referência.41 com as alterações introduzidas pela Ley
n.º 1/2000, de 7 de enero, Ley n.º 22/2003, de 9 de julio, Ley n.º
41/2007, de 7 de diciembre, e Ley n.º 13/2009, de 3 de noviembre.42
nos termos do artigo 12.º da Ley, apenas podem ser sujeitos a
hipoteca mobiliária o estabelecimento comercial; automóveis ou
outros veículos a motor, bem como veículos eléctricos ou vagões de
comboio de propriedade particular; aeronaves; maquinaria
industrial; a propriedade intelectual e industrial. Por seu turno,
a prenda sem desapossamento pode ser constituída sobre outros bens
móveis identificados nos artigos 52 a 54 da Ley, com exclusão dos
bens sujeitos a hipoteca imobiliária, como sejam produtos e
produções agrícolas; animais, suas crias e produtos; máquinas e
utensílios utilizados nas produções; outras máquinas e bens móveis
identificáveis; matérias‑primas e mercadorias armazenadas;
colecções de objectos de valor artístico e histórico, como quadros,
esculturas, porcelanas ou livros; créditos ou outros direitos que
correspondam a titulares de contratos, licenças, concessões ou
subvenções administrativas sempre que a lei ou título constitutivo
autorizem a sua alienação a terceiros. no entanto, poderão ser
objecto quer de hipoteca mobiliária quer de prenda sin
desplazamiento contas correntes e letras de câmbio, nos termos do
artigo 7.º da Ley.43 artigo 3.º da Ley. Refira‑se que a prenda sin
desplazamiento também pode ser constituída por ”póliza intervenida
por Agente de Cambio y Bolsa o Corredor de Comercio colegiado”,
quando se trate de operações bancárias ou qualquer um dos
pressupostos do artigo 93.º do Código de Comercio (referente aos
Agentes Mediadores del Comercio).44 artigos 67.º ss. da Ley: a
publicidade é feita mediante inscrição no Diario de Hipoteca y de
Prenda sin desplazamiento de posesión e nas Inscripciones de
Hipoteca Mobiliaria e Inscripciones de Prenda sin desplazamiento de
posesión, bem como em registos especiais, atendendo à natureza dos
bens.45 trata‑se da equiparação à prenda civil, para efeitos de
preferência.46 estabelece como limite o valor dos bens necessário à
satisfação do crédito.
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Garantias flutuantes: inserção no ordenamento jurídico
português
no que à prenda sin deplazamiento em particular diz respeito,
esta pode ser definida como “una garantia que recae sobre cosas
muebles no susceptibles de hipoteca mobiliária, ‘por su imperfecta
identificación registral’, que han de permanecer situadas en un
lugar determinado, en poder de su dueño y en concepto de depósito,
de tal modo que, incumplida la obligación asegurada, el Acreedor
puede proceder a su venta y cobrarse com su precio”47.
a sua validade está dependente da inserção no contrato de
garantia dos seguintes elementos, de acordo com o disposto no
artigo 57.º da Ley: (i) des‑crição dos bens objecto da garantia na
escritura ou na póliza, no que toca à sua natureza, quantidade,
qualidade, estado e demais circunstâncias que permitam
individualizá‑los ou identificá‑los; (ii) determinação do status
loci, i.e., do local onde permanecerão os bens; (iii) obrigação do
devedor de conservar os bens e de os manter disponíveis para que o
credor possa exercer o seu direito de fisca‑lização (previsto
igualmente no artigo 63.º da Ley); (iv) referência aos seguros
necessários.
nos termos do artigo 59.º da Ley, o devedor é considerado
depositário dos bens para todos os efeitos legais, não obstante a
possibilidade de dispor dos mes‑mos com o consentimento do credor,
sem prejuízo do seu valor. sobre ele recai, igualmente, o dever de
não alterar o status loci dos bens garantidos (artigo 60.º). a
violação dos deveres impostos ao devedor implicará para o credor o
direito de exigir a devolução da quantidade adequada ou da venda
imediata dos bens, sem prejuízo das responsabilidades civil e
criminal que recairão sobre o devedor (artigo 59.º e 62.º da
Ley).
em resumo, a solução encontrada pelo legislador espanhol foi a
de per‑mitir o penhor de complexos de bens, desde que devidamente
identificados e mantidos num local determinado previamente pelas
partes, os quais poderão ser alienados pelo devedor mediante
consentimento do credor e no âmbito dos deveres de custódia e
conservação inerentes à posição de depositário do devedor,
encontrando‑se a garantia sujeita a forma pública e a registo. são
todas estas características que permitem a qualificação da prenda
sin desplazamiento como direito real de garantia48.
47 c. López Beltrán de Heredia, “La Hipoteca mobiliária y la
Prenda sin desplazamiento de la posesión, in vv.aa., “Derechos
reales y Derecho immobiliario registral”, coord. por a. M. López y
Lópes y v. L. Montés Penadés, 1994, 758, apud José Luís Garcia‑Pita
y Lastres, “La Hipoteca mobiliária y la Prenda sin desplazamiento,
en el Derecho mercantil”, in Tratado de Garantías en la
Contratación Mercantil, Tomo II – GarantíasReales, vol. i –
Garantías Mobiliarias”, 1996, 309.48 Para uma análise individual de
cada uma das características enunciadas e percepção das
divergências doutrinárias, vide José Luís Garcia‑Pita y Lastres,
op. cit., 308‑331.
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3.3. Privilegio Convenzionale e Penhor Rotativo – Itália
no que diz respeito às garantias mobiliárias e, em particular,
às garantias sobre bens da empresa, o sistema jurídico italiano,
tal como é típico dos ordenamentos jurídicos continentais,
apresenta‑se como fragmentário e sectorial e caracteriza‑se por uma
“irrazionale proliferatione dei privilegi”, não tendo almejado uma
reorgani‑zação global da disciplina das garantias
mobiliárias49.
saliente‑se, a título de exemplo, a criação de um privilégio
convencional pelo artigo 46.º do Testo Único Bancario50, que
apresentou uma mudança de perspectiva no que diz respeito às
características essenciais do pegno, introduzindo um modelo geral
de garantia mobiliária sem desapossamento51, com pressupostos muito
específicos e um campo de aplicação restrito, o que não permite a
sua extensão a outros casos semelhantes nem a consideração genérica
da existência de uma disciplina de garantias mobiliárias própria do
direito italiano.
a atribuição do referido privilégio está sujeita a condições
particulares, no que toca ao objecto, aos sujeitos e às
formalidades. Foi criado com o objectivo de atribuir um incentivo à
concessão de crédito a médio‑longo prazo por parte de entidades
bancárias a empresas, tomando as primeiras como garantia bens
resultantes da actividade produtiva da empresa, tais como
matérias‑primas, pro‑dutos intermédios, stock, produtos finais,
bens adquiridos com o financiamento, e créditos, também futuros,
derivados da venda dos bens anteriormente identi‑ficados52. sob
pena de nulidade, o privilégio deve resultar de acto escrito, onde
sejam exactamente descritos os bens objecto de garantia, os
sujeitos e as condições gerais do financiamento, e encontra‑se
sujeito a registo por transcrição, para ser oponível a terceiros
(n.os 2 e 3).
49 a técnica utilizada pelo legislador de criar modelos legais
episódicos de garantias sobre bens da empresa revelou‑se
ineficiente para estimular a concessão de crédito às empresas e
levou a uma “irrazionale proliferatione dei privilegi (…) virtù dei
quali, spesso senza apprezzabili ragioni, a taluni creditori
risulta attribuita una posizione poziore dando luodo ad
ingiustificare disparità di trattamento tra i diversi settori
produttii”, Paolo Piscitello, “Constituzione in Pegno di Beni
dell’Impresa e Spossessamento”, in Banca BorsaTitoli di
Credito, Rivista Bimestrale di Dottrina e Giurisprudenza, vol. Liv,
nuova serie, Marzo‑aprile 2001, (2), 160; Francesco Giorgianni e
carlo‑Maria tardivo, “Manuale di Diritto Bancario”, 2.ª ed., 2009,
625.50 aprovado pelo Decreto Legislativo 1.º settembre 1993, n.º
385, com a última redacção introduzida pela Legge 18 maggio 2012,
n.º 62.51 “Si tratta, in sostanza, di una garanzia convenzionale
non possessoria di valenza generale per i finanziamenti a médio ed
a lungo termine che há perduto ogni carattere di eccezionalità e
contempera la tutela del finanziatore com l’esigenza di utilizzare
i beni vincolati per la continuazione del ciclo produtivo”, Paolo
Piscitello, op. cit., 162.52 artigo 46.º.
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Garantias flutuantes: inserção no ordenamento jurídico
português
Por outro lado, a doutrina e jurisprudência italianas
equacionaram um modelo de garantia mobiliária que desse resposta às
exigências do mercado53, atenuando o desapossamento e estabelecendo
a possibilidade de transferência do direito real sobre determinados
bens, valores ou direitos para outros bens, valores ou direitos,
sem dar lugar a um efeito novatório do contrato de garantia54.
no que ao desapossamento diz respeito, foram encontradas
alternativas através da elaboração doutrinária tendentes a tornar
mais flexível a exigência do referido pressuposto, prevista no
artigo 2786.º do Codice Civile55, nomeadamente técnicas de
desapossamento atenuado, como a admissibilidade de situações de
composse que exigem uma intervenção conjunta do devedor e do credor
ou outras formas que restrinjam o poder do devedor de dispor
autonomamente dos bens.56
Relativamente à necessária substituição dos bens em resultado da
natureza e da dinâmica do mercado, encontrou a doutrina a solução
(admitida posteriormente pela jurisprudência) na denominada
garantia flutuante ou rotativa, i.e., “ forma di garanzia reale che
consente la substituibilità e mutabilità nel tempo del suo oggetto
senza comportare, ad ogni mutamento, la rinnovazione del compimento
dele modalità richieste per la constituzione del vincolo o per il
sorgere del diritto di prelazione, ovvero senza che tale mutamento
dia luodo alle condizioni di revocabilità dell’operazione económica
in tal modo posta in essere”57.
através do mecanismo da sub‑rogação real, os bens dados em
garantia são substituídos por outros, assumindo estes a posição
inicial dos primeiros, no que ao vínculo real diz respeito. esta
possibilidade encontra sustentação no facto de o interesse
protegido pela garantia não estar directamente relacionado com a
res mas com a sua utilidade real, que consiste no valor económico
representado pela coisa58.
53 Laura Prosperetti, “Eccesso e riduzione di garanzia nel pegno
rotativo d’instumenti finanziari”, in Diritto della Banca e
del Mercato Finanziario, Milano, a. 20, n. 3 (Luglio‑settembre
2005), Parte Prima, 359.54 enrico Gabrielli, “Il Pegno “Anomalo”,
1990, 181.55 Art. 2786 ConstituzioneIl pegno si constituisce com la
consegna al creditor de la cosa o del documento che conferisce
l’exclusiva disponibilità della cosa. La cosa o il documento
possono essere anche consegnati a un terzo designato dalle parti e
possono essere poste in custodia di entrambe, in modo che il
constituente sia nell’impossibilità di disporne senza la
cooperation del creditore.56 Paolo Piscitello, op. cit., 170; Laura
Prosperetti, op. cit., 362.57 Laura Prosperetti, op. cit., 363.
sobre o penhor rotativo, ver também enrico Gabrielli, op. cit., 181
ss.58 enrico Gabrielli, op. cit., 189.
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trata‑se, portanto, de uma garantia convencional, que resulta da
autonomia das partes59, e que se traduz na celebração de pactos de
rotatividade, mediante acto escrito, onde se especifique com
clareza o momento da constituição do direito real60 e onde se
determinem limites objectivos à substituição dos bens (valor limite
ou pré‑determinado)61.
com esta pequena análise, pudemos identificar algumas das
diversas filosofias dos sistemas de garantias mobiliárias, o que
nos permitirá ter uma visão global da problemática enunciada e uma
melhor compreensão das soluções identificadas no nosso ordenamento
jurídico.
iii. Garantias flutuantes em Portugal
dos vários sistemas analisados, podemos retirar um conjunto de
características típicas das garantias flutuantes, mais ou menos
variáveis de acordo com o regime de garantias de cada país, e que
servirão de ponto de partida para o estudo da figura à luz do
direito Português. são elas: (i) constituição de uma garantia sobre
a totalidade ou parte do complexo de bens móveis de natureza
circulante que constituem o objecto da actividade produtiva do
devedor, presentes ou futuros; (ii) a manutenção da posse dos bens
no devedor para o desenvolvimento normal da sua actividade; (iii)
dilação temporal entre a constituição do direito de garan‑tia e a
sua consolidação no bem ou sub‑rogação dos novos bens adquiridos
pelo devedor no direito real dos bens primitivos.
atendendo ao objecto da garantia (bens móveis), o penhor de
coisas apre‑senta‑se como a garantia real prevista na lei que
melhor se adequa à figura agora em estudo, razão pela qual
analisaremos o seu regime e equacionaremos a admis‑sibilidade de
uma garantia com as características da garantia flutuante no nosso
ordenamento jurídico.
1. Universo de bens como objecto da garantia
o objecto das garantias flutuantes é constituído, em regra, pela
totalidade ou por complexos de bens, circulantes por natureza e,
portanto, fungíveis, cujo valor
59 “Aquilo que é reconhecido à autonomia privada é, de facto, a
possibilidade de fixar um objecto da garantia, em que as partes não
se limitem a individualizar de modo específico e exclusivo uma
coisa móvel, mas de contemplar a possibilidade da sua alteração sem
prejuízo da continuidade da garantia”, Joana Fortes Pereira dias,
op. cit., 95.60 Laura Prosperetti, op. cit., 364.61 Joana Fortes
Pereira dias, op. cit., 96.
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Garantias flutuantes: inserção no ordenamento jurídico
português
individual se perde no seu conjunto62, que apresentam as
seguintes características: (i) são produzidos e vendidos em grandes
quantidades para outros revendedores ou consumidores finais; (ii)
apresentam um diminuto valor quando considerados na sua
individualidade; (iii) não apresentam características
individualizadoras, podendo ser trocados por bens do mesmo género,
sem qualquer afectação do con‑junto63; (iv) correspondem ao produto
da actividade de empresas que se dedicam em especial à produção,
compra e venda de materiais para revenda; (v) constituem a fonte de
rendimento directo das empresas e traduzem a sua capacidade
produtiva.
Face a estas características, facilmente nos deparemos com
alguns problemas no que toca ao quid garantístico.
em primeiro lugar, admitir uma garantia como a floating charge,
em que se torna possível onerar todo o património do devedor,
significa permitir que um único credor faça da garantia geral do
património, prevista nos artigos 601.º e 602.º do cc, uma garantia
especial das obrigações, tornando‑se monopolista dos bens do
devedor. tal possibilidade, para além de contrariar em absoluto o
nosso sistema de garantias, conduziria a uma situação de
incapacidade do devedor de celebrar negócios jurídicos com outros
credores que, conhecedores da oneração de todo o património,
excluiriam à partida o devedor pela certeza manifesta de
insatisfação do crédito em caso de incumprimento; ou, caso
contrário, a uma violação flagrante do princípio da igualdade dos
credores, colocando os credores quirografários numa posição
desvantajosa à partida, por, em rigor, desaparecer a garantia geral
do cumprimento.
em segundo lugar, na hipótese possível em que sejam dados em
garantia complexos de bens móveis, confrontamo‑nos à partida com o
suposto obstáculo constituído pelo princípio da especialidade,
atendendo ao facto de o objecto da garantia poder consistir numa
pluralidade de bens, presentes ou futuros e de natureza
fungível.
abordaremos de seguida esta problemática.
1.1. Princípio da especialidade
determina o n.º 1 do artigo 666.º do cc que “o penhor confere ao
credor o direito à satisfação do seu crédito, bem como dos juros,
se os houver, com preferência sobre os demais credores, pelo valor
de certa coisa móvel, ou pelo valor de créditos ou outros direitos
não susceptíveis de hipoteca, pertencentes ao devedor ou a
terceiro”.
62 nomeadamente bens compreendidos, no giro comercial, no stock
das empresas, como matérias‑primas, bens de inventário intermédios
ou finais, mercadorias e outros bens com as mesmas características
e que, por norma, circulam no mercado.63 Hugo Ramos alves, “Do
Penhor”, 2010, 185‑186.
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o princípio da especialidade decorre da norma atrás enunciada e
é identifi‑cado por parte da doutrina64 como princípio geral de
direitos reais. traduz‑se na exigência de que o direito real incida
sobre coisa certa, determinada e actual e sobre coisa única e
individualizada. apenas poderão constituir objecto de penhor as
coisas corpóreas que cumpram os requisitos enunciados,
excluindo‑se, à partida, coisas genéricas, futuras ou integradas em
coisas simples.
a expressão que tem suscitado dúvidas e controvérsias na
doutrina relativa‑mente ao objecto do penhor é a seguinte: “certa
coisa móvel”. o vocábulo “certa” é entendido por alguns autores
como sendo manifestação da necessidade de determinação do objecto
do penhor, impossibilitando, portanto, a constituição dessa
garantia sobre complexos de bens ou de direitos65, ao passo que
outros entendem que o termo foi utilizado pelo legislador como
determinante e não adjectivo, tendo, portanto, o sentido de
“identificável” ao invés de determinado na sua quantidade e
qualidade66.
ainda que não se considere um argumento decisivo nesta matéria,
de facto a letra da lei não parece indicar no sentido da exigência
da determinação do objecto do penhor no momento da sua
constituição. “Certa coisa móvel” parece indicar no sentido da
necessidade de o bem objecto de penhor não ser “abstracto”, mas
concreto, não no sentido de determinado mas no sentido de
apreensível, identi‑ficável ou susceptível de determinação (artigo
280.º do cc).
Por esta razão, questiona‑se a possibilidade de universalidades
de facto e de direito ou complexos de coisas, presentes ou futuras
e fungíveis constituírem objecto de penhor67.
analisemos, então, o conteúdo do princípio da especialidade,
através da aná‑lise dos diferentes tipos de objecto e de casos de
penhor já admitidos entre nós.
1.2. Universalidades, coisas compostas, coisas complexas
determina o artigo 206.º do cc, nos seus n.os 1 e 2 que “é
havida como coisa composta, ou universalidade de facto, a
pluralidade de coisas móveis que, pertencendo à mesma
64 Manuel Henrique Mesquita, “Direitos Reais”, sumários das
Lições ao curso de 1966‑1967, 1967, 12‑13 (nota 1); c. a. da Mota
Pinto, “Direitos Reais”, prelacções ao 4.º ano Jurídico de 1970‑71,
recolhidas por Álvaro Moreira carlos Fraga, 2010, 98‑103; a. santos
Justo, “Direitos Reais”, 3.ª ed., 2011, 28‑29; José alberto c.
vieira, “Direitos Reais”, 2008, 214‑225; Luís Manuel teles de
Menezes Leitão, “Direitos Reais”, 2009, 25‑27. 65 ver antunes
varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. ii, Reimpressão da 7.ª ed.,
2003, 528; almeida costa, “Direito das Obrigações”, 12.ª ed., 2009,
923.66 Hugo Ramos alves, op. cit., 10867 veja‑se, a este propósito,
José alberto c. vieira, op. cit., 217‑225.
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Garantias flutuantes: inserção no ordenamento jurídico
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pessoa, têm um destino unitário” e que “as coisas singulares que
constituem a universalidade podem ser objecto de relações jurídicas
próprias”.
não são unânimes na doutrina a denominação e o entendimento
conferidos a realidades de coisas que formam um conjunto unitário,
passíveis de objecto de relações jurídicas68: entre (i)
universalidade, entendida como “complexo de coisas jurí-dicas,
pertencentes ao mesmo sujeito e tendentes ao mesmo fim, que a ordem
jurídica reconhece e trata como formando uma coisa só”69, (ii)
coisa complexa, resultante da combinação de várias coisas, passível
de distinção entre coisa composta (correspondente às coisas ex
cohaerentibus do direito Romano, portanto coisas que perdem
autonomia no conjunto formado) e colectiva (identificada com as
coisas ex distantibus, em que cada elemento mantém a sua função
própria no conjunto)70, e (iii) coisa composta, “que engloba várias
coisas simples, pertencentes à mesma pessoa e com um destino
unitário”, absorvendo as coisas ex distantibus e as universalidades
de facto71.
independentemente da terminologia adoptada, a questão que no
âmbito do presente trabalho se coloca é a de saber se as
denominadas coisas complexas podem ser objecto de penhor,
consideradas na sua unidade, ou se, pelo contrário, deverão ser
consideradas como objecto da garantia todas as coisas simples
compreendidas na coisa complexa.
contrapõem‑se duas teorias a respeito da questão: a teoria
unitária, cujos defensores consideram que as coisas complexas
poderiam ser objecto de relações jurídicas próprias, distintas das
relações que incidiriam sobre cada uma das coisas simples
compreendidas no conjunto, uma vez que o direito entenderia o
complexo de bens como uma unidade jurídica72; e a teoria atomista,
em que se defende que, para o direito, apenas cada elemento
unitariamente considerado tem relevância jurídica e não o seu
conjunto73.
a favor da primeira tese, os seus defensores destacam o teor
literal do artigo 206.º do cc, que “declarando que é havida
‘como coisa composta’ a pluralidade
68 a este propósito, ver antónio Menezes cordeiro, “Tratado de
Direito Civil, I Parte Geral”, tomo ii, coisas, Reimpressão da 2.ª
ed. de 2002, 2009, 162‑166. apresentando uma crítica à redacção do
artigo 206.º do cc, José alberto c. vieira, op. cit., 217‑225.69
inocêncio Galvão telles, “Da Universalidades”, estudo de direito
Privado, dissertação de doutoramento em direito (ciências
Histórico‑Jurídicas) na Universidade de Lisboa, 1940, 173.70 José
de oliveira ascensão, “Direito Civil – Teoria Geral”, vol. i, 1997,
340‑347.71 antónio Menezes cordeiro, “Tratado de Direito Civil…”,
op. cit., 166. 72 neste sentido, Pires de Lima e antunes varela,
“Código Civil Anotado”, vol. i, 1982, 200; c.a. Mota Pinto, op.
cit., 99; José de oliveira ascensão, “Direito Civil – Teoria
Geral”, op. cit., 346; Manuel Henrique Mesquita, op. cit.,
37‑38. Parece seguir o mesmo entendimento, antónio Menezes
cordeiro, “Tratado de Direito Civil…”, op. cit., 166, para quem “as
coisas compostas podem ser objecto de actos jurídicos unitários,
para comodidade do titular e da comunidade; todavia, implicam
direitos autónomos sobre as coisas componentes, podendo haver
especialidades”.73 José alberto c. vieira, op. cit., 223.
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de coisas móveis com um destino unitário, não pode ter outro
significado senão o de permitir que os conjuntos de bens nestas
condições figurem como objecto único de relações jurídicas (cfr. a
noção de coisa formulada no n.º 1 do art. 202.º)”74, bem como o
interesse, para certos efeitos, no tratamento de pluralidades de
coisas simples como uma coisa única, e a compatibilidade com o
princípio da especialidade75.
em sentido contrário, argumenta‑se a insusceptibilidade de dupla
atribuição jurídica sobre uma pluralidade de coisas e cada bem
considerado76, no sentido de que “este conjunto não se sobrepõe ou
acresce às coisas que o integram, nem constitui objecto de um
direito unitário, vindo apenas a ser considerado para efeitos
práticos que se ligam à possibilidade de dispor, através de uma
única declaração negocial, de todos os direitos reais (de
propriedade, nomeadamente) relativos às coisas simples que o
compõem”77.
Quanto a nós, parece‑nos que a teoria unitária é aquela que mais
se adequa à intenção do legislador e à dinâmica das relações
jurídicas. Para lá da consideração da coisa composta ou da
universalidade como coisa, nos termos e para os efeitos do n.º 1 do
artigo 202.º do cc, e portanto, objecto de relações jurídicas, não
nos parece que a redacção do n.º 2 do artigo 206.º do cc vise
excluir a possibilidade de constituição de relações jurídicas sobre
coisas compostas, determinando que apenas as coisas simples que a
compõem podem ser objecto de relações jurídicas e que a utilização
da unidade tem apenas o fito de facilitar a indicação de uma
pluralidade de coisas simples nas relações jurídicas. Pelo
contrário, da conjugação dos n.os 1 e 2 do referido preceito
resulta que, ao permitir que coisas complexas pudessem constituir
objecto de relações jurídicas, o legislador pretendeu escla‑recer
que a individualidade da coisa singular pertencente ao complexo não
se perde no conjunto, podendo, em determinadas circunstâncias ser
ela própria e isoladamente objecto de outras relações. não se
identificam, portanto, quaisquer óbices à susceptibilidade de uma
coisa ser objecto de relações jurídicas distintas,
74 Pires de Lima e antunes varela, op. cit., 200.75 c.a. Mota
Pinto, op. cit., 99.76 chamando a atenção para a evolução do
conceito de “coisa composta”, que indica entendimento contrário à
tese unitária, e criticando a coisificação da universalidade de
facto, José alberto c. vieira, op. cit., 218‑221.77 o mesmo autor
contrapõe a necessidade evidenciada por c.a. Mota Pinto, op. cit.,
99, no que diz respeito à acção de reivindicação, dizendo que, pese
embora a alínea a) do n.º 1 do artigo 471.º do código de
Processo civil (correspondente à alínea a) do n.º 1 do artigo 556.º
do novo cPc, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho) admita
a formulação de um pedido genérico relativamente a uma
universalidade de facto, se trata apenas de uma “projecção
meramente linguística”, encontrando‑se o reivindicante ou o
possuidor esbulhado sujeitos ao ónus de determinar cada uma das
coisas que se incluem na universalidade, o que “elucida bem a
inexistência de uma direito unitário sobre o conjunto”, op. cit.,
224.
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Garantias flutuantes: inserção no ordenamento jurídico
português
ora na sua singularidade, ora no complexo que integra, desde que
não se gerem situações de incompatibilidade.
Poderemos, então, concluir que o direito identifica a
universalidade como um ser, um quid jurídico, com as suas
especificidades, e não meramente uma ideia, atribuindo‑lhe, por
isso, susceptibilidade de constituir objecto de relações
jurídicas.
vejamos um exemplo de penhor admissível no nosso ordenamento, em
que se constitui, como objecto de garantia, um complexo de bens e
direitos, ainda que a doutrina divirja quanto à sua qualificação
jurídica.
1.2.1. Penhor de estabelecimento comercial
o estabelecimento comercial é uma realidade cuja noção e
natureza jurídicas têm vindo a ser objecto da mais diversificada
doutrina78. no entanto, interes‑sar‑nos‑á, apenas, atender ao
estabelecimento comercial como o “conjunto de coisas corpóreas e
incorpóreas devidamente organizado para a prática do comércio”79 ou
“conjunto de elementos reunido e organizado pelo empresário para
através dele exercer a sua actividade comercial, de produção ou
circulação de bens ou prestação de serviços”80.
independentemente da assunção desta realidade como património
autónomo, universalidade, coisa imaterial, unidade jurídica ou
esfera jurídica de imputação81, o que é facto é que dela
conseguimos retirar o seguinte: trata‑se de uma coisa complexa,
constituída por bens de diferente natureza (corpórea e incorpórea)
e por direitos, funcionalmente organizada e orientada para a
actividade comercial, destacando‑se a constante mutação dos
elementos compreendidos no estabeleci‑mento comercial (nomeadamente
mercadorias e matérias‑primas), i.e., conceito de coisa
composta.
78 orlando de carvalho, “Critério e Estrutura do Estabelecimento
Comercial – I – O Problema da Empresa como Objecto de Negócios”,
dissertação de doutoramento em ciências Jurídicas pela Facul‑dade
de direito da Universidade de coimbra, 1967; Barbosa de Magalhães,
“Do Estabelecimento Comercial – Estudo de Direito Privado”,
2.ª ed., 1964; Menezes cordeiro, “Manual de Direito Comer-cial”,
2.ª ed., 2007, 286‑312; Miguel J. a. Pupo correia, “Direito
Comercial, Direito da Empresa”, 10.ª ed., revista e actualizada,
2007, 50‑74; a. Ferrer correia, “Lições de Direito Comercial”,
1973, 117‑145; Filipe cassiano dos santos, “Direito Comercial
Português”, vol. i, 2007, 283‑300; José de oliveira ascensão,
“Direito Comercial”, Parte Geral, vol. i, 1988, 491‑507; Pedro Pais
de vascon‑celos, “Direito Comercial”, vol. i, Parte Geral,
Contratos Mercantis, Títulos de Crédito, 2011, 100‑106. 79 Barbosa
de Magalhães, op. cit., 13. 80 Miguel J. a. Pupo correia, op. cit.,
50.81 a. Ferrer correia, op. cit., 122‑132; Miguel J. a. Pupo
correia, op. cit., 56‑60; Rui Lopes dos santos, “Penhor de
Estabelecimento Comercial – à luz do Direito Português”, Relatório
elaborado para o seminário de Mestrado de direito civil ii, com o
tema “Garantias das obrigações”, orientado pelos Professores
doutores Menezes Leitão e Januário Gomes, Faculdade de direito de
Lisboa, 2002, 5.
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Marisa Vaz
Questiona‑se, na doutrina, a par da noção e da natureza desta
realidade, a possibilidade de o estabelecimento constituir objecto
de penhor, enquanto garantia real. actualmente, é maioritariamente
aceite pela doutrina a possibili‑dade de constituição de penhor
sobre o estabelecimento comercial82. Funda‑se, essencialmente, nos
seguintes argumentos: (i) qualificação do estabelecimento comercial
como coisa em sentido amplo, abrangendo coisas corpóreas e
incorpó‑reas; (ii) inadmissibilidade de uma interpretação
restritiva do n.º 1 do artigo 666.º do cc, admitindo‑se o
penhor sobre universalidades; (iii) inadequação do regime rígido do
penhor à dinâmica e à função sócio‑económica do estabeleci‑mento
comercial; (iv) admissibilidade da penhora de estabelecimento
comercial (artigo 862‑a do código de Processo civil8384); (v) a
admissibilidade do penhor do estabelecimento individual de
responsabilidade limitada (n.º 1 do artigo 21.º do decreto‑Lei n.º
248/86, de 25 de agosto); (vi) possibilidade de transmissão do
estabelecimento comercial (argumento maiori ad minus); (vii)
admissibilidade da figura em ordenamentos jurídicos próximos
do português, como é o caso do francês e do espanhol.
destaque‑se o entendimento de Menezes cordeiro, seguido também
por Rui Lopes dos santos, segundo o qual o penhor de
estabelecimento comercial confi‑gura um penhor global sobre o
conjunto de bens e de direitos compreendidos no estabelecimento
comercial, podendo este “continuar a funcionar normalmente, numa
situação fundamental para o bom decurso da operação”85.
82 antónio Menezes cordeiro, “Manual de Direito Comercial”, op.
cit.,p. 305‑306; Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte,
“Garantias de Cumprimento”, 5.ª ed., 2006, 171‑172; Rui Pinto
duarte, “Curso de Direitos Reais”, 2002, 220‑222, e “O Penhor de
Estabelecimento Comercial”, in Comemorações dos 35 anos do Código
Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, vol. iii, direito das
obrigações, 2007, 63‑77; Luís Manuel teles de Menezes Leitão,
“Garantias das Obrigações”, 2.ª ed., 2008, 305‑306; L. Miguel
Pestana de vasconcelos, “Direito das Garantias”, 2010, 260‑263; Rui
Lopes dos santos, op. cit., 42‑56. em sentido contrário, antunes
varela e almeida costa defendem a insusceptibilidade da
constituição de penhor sobre universalidades, com fundamento na
exigência de que o objecto do penhor seja uma coisa certa, cf.
antunes varela, op. cit., 528; almeida costa, “Direito das
Obrigações”, op. cit., 923. esta tese foi igualmente seguida em
dois pareceres do conselho consultivo da Procuradoria‑Geral da
República, o primeiro datado de 28 de Fevereiro de 1985, publicado
no d.R., ii série, de 10 de Maio de 1985, e o segundo de 4 de Junho
de 1987 (Parecer n.º 1/86, publicado no BMJ n.º 374, Março‑1988,
35‑42), este último pronunciando‑se sobre a inadmissibilidade de
penhora de bens futuros.83 aprovado pelo decreto‑Lei n.º
44 129, de 28 de dezembro de 1961, com a última alteração
introduzida pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto (cPc).84
corresponde ao artigo 782.º do novo cPc.85 no que ao regime
aplicável diz respeito, segundo o autor, bem como a maioria da
doutrina e a jurisprudência, a possibilidade de não desapossamento
efectivo funda‑se na qualificação do penhor de estabelecimento em
regra como penhor mercantil, o qual exige apenas uma entrega
simbólica, nos termos do artigo 398.º, § único, do ccom, ou na
circunstância de ser constituído no âmbito das
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Garantias flutuantes: inserção no ordenamento jurídico
português
tal como reconhecido noutros ordenamentos jurídicos,
nomeadamente no francês com a admissão do gage de nantissements de
fonds de commerce, poder‑se‑á, igualmente, reconhecer no nosso
ordenamento jurídico a admissibilidade da constituição de penhor
sobre uma realidade jurídica e complexa como é o esta‑belecimento
comercial86.
em rigor, a individualização a que se refere o princípio da
especialidade apenas tem efectiva concretização no momento da
penhora87 e posteriormente na venda, em que são identificados os
específicos bens que responderão pelo não cumprimento do devedor. a
constituição do direito real opera sobre a realidade complexa,
reconhecida juridicamente, mantendo‑se a actividade do devedor e a
circulação dos bens enquanto não for efectivada a penhora. esta
dinâmica assemelha‑se à das garantias flutuantes.
admitimos que se possa considerar que a possibilidade de
constituição de penhor sobre o estabelecimento comercial se
apresente, face ao direito e aos sujeitos das relações jurídicas,
como uma garantia mais segura nas relações jurídicas, atendendo à
sua eventual consideração como unidade jurídica ou, simplesmente, à
natureza dos bens e direitos que compreende. no entanto, essa
realidade não deixa de consubstanciar uma universalidade ou um
complexo de bens e direitos, tal como é o caso dos bens corpóreos
de natureza circulante que já identificámos. Para todos os efeitos,
a equiparação é permitida nos termos do n.º 1 do artigo 206.º
do cc e as razões determinantes para a admissibilidade num e noutro
caso são idênticas. não identificamos, portanto, motivo para uma
disparidade de entendimentos.
relações bancárias, sendo, então, aplicável o disposto no
decreto‑Lei n.º 29 833, de 17 de agosto, conforme teremos
oportunidade de verificar. é, igualmente, configurada a aplicação
analógica do regime previsto no decreto‑Lei n.º 248/86, de 25 de
agosto, que criou o estabelecimento individual de Responsabilidade
Limitada, uma vez que nele se prevê expressamente a possibilidade
de constituição de penhor sem desapossamento. cf. antónio Menezes
cordeiro, ibidem; Rui Lopes dos santos, op. cit., 48; Filipe
cassiano dos santos, op. cit., 295‑297. Rui Lopes dos santos, op.
cit., 14‑16, coloca algumas reservas quanto à aplicação do regime
dos eiRL. cf. acórdão do tRe, de 18 de Junho de 1991, in cJ
16, 3, 1991, 308‑311; acórdão do stJ de 6 de Maio de 1993, processo
n.º 043114, disponível em www.dgsi.pt; acórdão do stJ de 29 de
dezembro de 2001, in cJ‑stJ, 9, 3, 2001, 125‑128.86
saliente‑se o entendimento de inocêncio Galvão telles, op. cit.,
202‑207, para quem, no âmbito do código civil anterior, o obstáculo
existente à admissibilidade da constituição de penhor sobre o
estabelecimento comercial se circunscrevia à necessidade de entrega
ou tradição real de uma universalidade. sustenta, no entanto, a
admissibilidade da figura de iure condendo. 87 nos termos do n.º 1
do artigo 682.º‑a do cPc (n.º 1 do artigo 782.º do novo cPc), “a
penhora do estabelecimento comercial faz-se por auto, no qual se
relacionam os bens que essencialmente o integram, aplicando-se
ainda o disposto para a penhora de créditos, se do estabelecimento
fizerem parte bens dessa natureza, incluindo o direito ao
arrendamento”.
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1.3. Objecto fungível, futuro e consumível
conforme já referido supra, o conjunto de bens compreendidos
numa garantia flutuante apresenta uma fraca individualização
própria, atendendo ao seu carác‑ter fungível88. Para além disso, a
constituição de uma garantia flutuante implica admitir, como
objecto de penhor, os bens circulantes que venham a fazer parte do
património do devedor (bens futuros89). Poderão, igualmente,
incluir‑se bens consumíveis90 ou deterioráveis91. o disposto no n.º
1 do artigo 666.º do cc pode‑ria constituir um obstáculo, atendendo
à suposta necessidade de determinação dos bens, o que implica que
se possa distinguir o referido bem do conjunto de outros bens e
torná‑lo o quid individualizado da garantia.
Quanto à susceptibilidade dos referidos tipos de coisa serem
objecto de penhor, Pestana de vasconcelos pronuncia‑se quanto à
impossibilidade de “ser objecto de penhor, coisas fungíveis, como o
dinheiro, a não ser que por via convencional se estabeleça a
individualização (notas de banco numeradas e/ou inseridas num
envelope fechado entregue ao credor)”92. o autor aborda a questão
no âmbito do penhor irregular93. no entanto, nada refere a
propósito da questão por nós analisada.
88 no caso dos bens fungíveis, como constituem, por norma, os
bens objecto de uma garantia flutuante, a determinação ocorre pelo
seu género, qualidade e quantidade, quando constituam objecto de
relações jurídicas, nos termos do artigo 207.º do cc. sobre o
conceito, vide antónio Menezes cordeiro, “Tratado de Direito Civil
Português”, op. cit., 151‑155. o autor alerta para o facto de, com
a referência a “quando constituam objecto de relações jurídicas,
(…) apenas in concreto (…) se poderá afirmar se há ou não
fungibilidade”, cf. op. cit., 153. ver também Miguel Galvão teles,
“ Fungibilidade de Valores Mobiliários e Situações Jurídicas
Meramente Categoriais”, in Direito dos Valores Mobiliários, vol.
iv, 2003, 175.89 no que diz respeito a coisas futuras, nos termos
definidos no artigo 211.º do cc, verificamos que, no caso em
análise, o que se trata realmente é de permitir a substituição dos
bens originais por novos bens, não tanto a de admitir a
constituição de penhor sobre bens futuros, a priori.
no entanto, a questão assume relevância pelo facto de serem
bens diferentes, ainda que do mesmo género ou qualidade, os que
poderão responder pela dívida. sobre o conceito de coisas futuras,
antónio Menezes cordeiro, “Tratado de Direito civil”, op. cit.,
pp.159‑160.90 artigo 208.º do cc. sobre o conceito, antónio Menezes
cordeiro, “Tratado de Direito civil”, op. cit., pp.155‑156.91
sobre o conceito, antónio Menezes cordeiro, “Tratado de Direito
civil”, op. cit., 156.92 L. Miguel Pestana de vasconcelos, op.
cit., 235.93 Figura caracterizada como “contrato de garantia,
qualificado pelas partes como penhor, que tem por objecto bens
fungíveis cuja titularidade passa para o credor, obrigando-se este
a retransmitir o objecto da garantia, logo que a obrigação for
cumprida, ou então, executando-o (…) na eventualidade de
incumprimento”, cf. L. Miguel Pestana de vasconcelos, op.
cit., 301. sobre a figura, ver também Hugo Ramos alves,
op. cit., 185‑239.
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Garantias flutuantes: inserção no ordenamento jurídico
português
Já vaz serra admitia que “tanto as coisas consumíveis e
fungíveis como as não con-sumíveis podem ser objecto de
penhor”94.
vejamos, brevemente e a título de exemplo, um caso de penhor
sobre bens de natureza fungível no nosso ordenamento jurídico.
1.3.1. Penhor de valores mobiliários
nos termos do n.º 1 do artigo 204.º do código dos valores
Mobiliários (cvM)95, podem ser objecto de negociação organizada
“valores mobiliários fungíveis, livremente transmissíveis,
integralmente liberados e que não estejam sujeitos a penhor ou a
qualquer outra situação jurídica que os onere, salvo se respeitados
os requisitos previstos nos artigos 35.º e 36.º do Regulamento (CE)
n.º 1287/2006, da Comissão, de 10 de Agosto”.
o número seguinte do mesmo preceito define o conceito de
fungibilidade, para efeitos do n.º 1, determinando que “são
fungíveis, para efeitos de negociação organizada, os valores
mobiliários que pertençam à mesma categoria, obedeçam à mesma forma
de representação, estejam objectivamente sujeitos ao mesmo regime
fiscal e dos quais não tenham sido destacados direitos
diferenciados”. Miguel Galvão teles defende que o termo
fungibilidade deve ser interpretado “como acepção de mera
categorialidade de valores mobiliários”, atendendo a que “toda a
tradição é no sentido de associar a fungibilidade à irrelevância ou
à ausência de número de ordem”, correspondendo a tal irrelevância a
mera categorialidade, i.e., a falta de individualidade96.
considera, igualmente, que a fungibilidade se refere aos títulos,
como coisas corpóreas97.
verificamos, assim, que os valores mobiliários não se destacam
na sua singu‑laridade, podendo variar dentro da mesma categoria,
dentro da mesma forma de representação e desde que sujeitos ao
mesmo regime fiscal.
estes bens constituem objecto de penhor, alterando a sua forma
de constituição de acordo com o tipo de valor mobiliário. no caso
dos valores titulados, o penhor constitui‑se mediante entrega do
respectivo título ao credor ou a depositário por si indicado (n.º 1
do artigo 101.º, ex ui artigo 103.º, ambos do cvM). tratando‑se de
valores mobiliários nominativos, a constituição do penhor
efectiva‑se com a declaração de transmissão, escrita no título, a
favor do transmissário, seguida de registo junto do emitente ou
junto de intermediário financeiro que o represente (n.º 1 do artigo
102.º, ex ui artigo 103.º, ambos do cvM). no entanto, no que
94 vaz serra, “Penhor. Penhor de Coisas – Penhor de Direitos”,
in separata do Boletim do Ministério da Justiça, n.os 58 e 59,
1956, p. 64.95 aprovado pelo decreto‑Lei n.º 486/99, de 13 de
novembro, com a última alteração introduzida pelo decreto‑Lei n.º
85/2011, de 29 de Junho.96 Miguel Galvão teles, op. cit., 206.97
Miguel Galvão teles, op. cit., 176.
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Marisa Vaz
diz respeito aos valores escriturais, transmitidos pelo registo
na conta do cliente (artigo 80.º, n.º 1, do cvM), o penhor é
constituído, nos termos do n.º 1 do artigo 81.º do cvM, “pelo
registo na conta do titular dos valores mobiliários, com indi-cação
da quantidade de valores mobiliários dados em penhor, da obrigação
garantida e da identificação do beneficiário”, podendo sê‑lo na
conta do credor quando este tenha direito de voto (n.º 2). neste
último caso, temos um claro exemplo no ordena‑mento português de
uma típica garantia flutuante, com recurso ao registo para efeitos
de publicidade da oneração98.
1.4. Apreciação crítica
Face aos entendimentos expostos e à natureza dos bens objecto da
garantia que nos propusemos estudar, propendemos para a
admissibilidade da constitui‑ção de penhor sobre bens circulantes
do devedor, adquiridos no exercício da sua actividade, com as
características atrás assinaladas.
imperativo será verificar qual o papel da res na constituição do
penhor, sobretudo no que diz respeito ao credor, i.e., se relevará
o bem garantido na sua essencialidade absoluta ou a sua utilidade
económica, enquanto valor que traduz para o credor.
em termos fácticos, quando analisamos conjuntos de bens como
matérias‑pri‑mas, stocks, produtos intermédios ou finais,
verificamos que os referidos conjuntos são compostos por unidades
singulares, susceptíveis de individualização e de venda em
separado. agora, no que diz respeito às relações
jurídico‑comerciais estabe‑lecidas e às operações económicas que
estão inerentes à prestação de garantias, nomeadamente a concessão
de crédito, os complexos de bens serão entendidos, não como um
conjunto de x unidades de y e x+100 unidades de z, mas como um
complexo de bens ao qual é atribuído um valor económico global.
Para efectivação da garantia, importará apenas o resultado
económico que o conjunto
98 ainda que a qualificação do penhor de valores mobiliários
seja objecto de divergência doutrinária, havendo quem defenda que
se trata de um penhor de coisas e outros que se trata de penhor de
direitos. defendendo a aplicação do penhor de coisas quer ao penhor
de acções tituladas e quer ao penhor de acções escriturais,
atendendo à noção de coisa prevista no artigo 202.º do cc, ao
princípio da igualdade que vigora entre as acções independentemente
da sua forma de representação, e ao facto de o penhor de valores
mobiliários carecer de forma de representação, sendo a traditio
substituída pelo registo no caso do penhor de acções escriturais,
tiago soares da Fonseca, “O Penhor de Acções”, 2005, 41‑42. no
sentido contrário, Luís Manuel teles de Menezes Leitão insere o
penhor de valores mobiliários no capítulo das garantias especiais
sobre créditos, cf. “Garantias das Obrigações”, op. cit., 290.
sobre o penhor de valores mobiliários, ver também L. Miguel Pestana
de vasconcelos, op. cit., 282‑284.
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Garantias flutuantes: inserção no ordenamento jurídico
português
de bens trará para o credor em caso de incumprimento, e não cada
bem em si individualmente considerado99.
Para o efeito específico que consiste na garantia da satisfação
do crédito do credor pignoratício, parece haver interesse no
tratamento, pelo direito, dos refe‑ridos bens como uma coisa
única100, uma vez que é na unidade que se revela o valor que
constitui o benefício da garantia do credor.
entendemos, igualmente, que o princípio da especialidade não
colidirá com o entendimento explanado, desde que se identifique de
forma suficiente, no acto de constituição da garantia, o complexo e
o género de bens compreendidos, o local onde se encontrarão e o
valor garantido, estabelecendo‑se os critérios para determinar a
qualidade ou a quantidade do objecto101. Repare‑se que foi esta a
solução encontrada nos ordenamentos jurídicos estrangeiros que
adoptaram a figura da floating charge (veja‑se o exemplo do artigo
932.º do código comercial de Macau), bem como nos eUa (secção 9‑110
do article 9 do Ucc), em França (artigo L. 527‑1 do Code de
Commerce) e em espanha (artigo 57.º da Ley de 16 de diciembre de
1954 de la Hipoteca Mobiliária y de la Prenda sin Desplazamiento de
Posesión). dessa forma, garante‑se a determinação dos bens dados em
garantia, que consistem em unidades complexas, identificáveis pelas
características dos elementos que as compõem, bem como a
concretização do princípio da especialidade.
saliente‑se a solução apresentada pelo ordenamento jurídico
francês, em que se determinou a exigência de o devedor manter uma
percentagem obrigatória de bens na sua posse, de forma a evitar o
risco do esvaziamento da garantia do credor, no caso de o devedor
dispor de todos os bens, sem garantir uma reserva mínima.
atendendo à natureza circulante dos bens, entendemos que o
princípio da especialidade exige ao devedor que mantenha na sua
posse um conjunto de bens que garanta o crédito, cujo limite mínimo
poderá ser convencionado com o credor. caso contrário, permanece a
obrigação de preservar o conjunto corres‑pondente ao montante do
crédito, no local dado em conhecimento ao credor.
no que diz respeito ao estabelecimento comercial, e ainda que se
possam colocar obstáculos à sua comparação com mercadorias,
matérias‑primas e outros produtos que resultem do desenvolvimento
da actividade do devedor, atendendo à sua eventual qualificação
como universalidade de direito e ao facto de o primeiro
99 “La natura di reserva ad rem del vincolo pignoratizio, in
quanto diretta a precostituire un’utilità reale, guarda all’oggetto
del pegno non nelle sua individualità (…), ma considerandolo nella
sua capacita di tradursi in un’utilità: in un valore economicamente
quantificabile”, enrico Gabrielli, op. cit., 189. no mesmo sentido,
Hugo Ramos alves, op. cit., 116. 100 no seguimento do entendimento
de a. c. Mota Pinto, op. cit., 99. 101 neste sentido, Joana Fortes
Pereira dias, op. cit., 189 ss., admitindo a indicação suficiente
do objecto garantido como forma de determinação em sentido
lato.
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RDS V (2013), 4, 891-938
Marisa Vaz
incluir direitos e outros bens para lá de mercadorias,
parece‑nos que não se deverá olhar para as duas realidades de
coisas de maneiras distintas, admitindo o penhor de estabelecimento
comercial e colocando obstáculos a um penhor sobre mercadorias,
matérias‑primas ou produtos finais. trata‑se de complexos de bens
(e também de direitos no caso do estabelecimento comercial) que
formam um núcleo unitário e autónomo102.
Já inocêncio Galvão teles manifestava as virtualidades de um
penhor sobre universalidades, nomeadamente mercadorias e
estabelecimento comercial, que constituem, para os comerciantes,
“valor importantíssimo do seu activo comercial”, com vantagens para
o credor, referindo que “tôdas as mercadorias que o comerciante,
proprietário da universalidade, fôr adquirindo e afectando ao
exercício do comércio respectivo durante a subsistência do penhor,
a este ficarão automàticamente vinculadas”103.
verificados os diferentes regimes assinalados e as posições
doutrinárias assumi‑das, concluímos que, também neste ponto, não
identificamos óbice à constituição de uma garantia sobre bens de
natureza flutuante.
2. Manutenção da posse no exercício da actividade do devedor
outra das características que mais se evidencia na análise das
diferentes mani‑festações de flutuação nos sistemas de garantias
estrangeiros é a da manutenção da posse dos bens garantidos no
devedor para o desenvolvimento da sua actividade profissional. esta
permissão de não desapossamento vem acompanhada de uma autorização
concedida ao devedor para livremente dispor dos bens objecto da
garantia, tendencialmente sem a intervenção do credor (sobretudo
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