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FACULDADE DE DIREITO DE CAMPOS PROGRAMA DE MESTRADO EM DIREITO ADEMIR JOÃO COSTALONGA JÚNIOR FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE: LIBERALISMO, TEORIA COMUNITARISTA E A CONSTITUIÇÃO DE 1988 Campos dos Goytacazes - RJ
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Jan 23, 2019

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FACULDADE DE DIREITO DE CAMPOS PROGRAMA DE MESTRADO EM DIREITO

ADEMIR JOÃO COSTALONGA JÚNIOR

FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE: LIBERALISMO, TEORIA COMUNITARISTA

E A CONSTITUIÇÃO DE 1988

Campos dos Goytacazes - RJ

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2006 ADEMIR JOÃO COSTALONGA JÚNIOR

FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE: LIBERALISMO, TEORIA COMUNITARISTA

E A CONSTITUIÇÃO DE 1988

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Senso em Direito da Faculda-de de Direito de Campos, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre em Direito na área de Concentração Relações Privadas e Cons-tituição, orientada pela Profª. Drª. Bethânia Assy.

Campos dos Goytacazes - RJ 2006

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ADEMIR JOÃO COSTALONGA JÚNIOR

FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE: LIBERALISMO, TEORIA COMUNITARISTA

E A CONSTITUIÇÃO DE 1988

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Senso em Direito da Faculda-de de Direito de Campos, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre em Direito na área de Concentração Relações Privadas e Constituição.

Aprovada em, de de 2006. COMISSÃO EXAMINADORA

_________________________________

Prof. Profª. Drª. Bethânia Assy Faculdade de Direito de Campos

_____________________________________ Prof.

_____________________________________ Prof.

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Dedico este trabalho à minha esposa Sabrina, à minha filha Maria Antônia (que nasceu junto) e aos meus pais, cujo apoio foi de fundamental im-portância.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço especialmente a Deus por iluminar meus caminhos durante minha jornada

de aprendizado;

Agradeço duplamente à minha esposa Sabrina, a qual, além da alegria em apoiar mi-

nha caminhada rumo ao conhecimento, trazia consigo nossa amada Maria Antônia;

Agradeço aos meus pais Ademir e Ivanda pelo apoio em todos os momentos;

Agradeço à minha Orientadora, Professora Doutora Bethânia Assy;

Agradeço a todos os colegas, com os quais o convívio também é mais um aprendizado.

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A paz é o fim que o direito tem em vista, a luta é o meio de que se serve para o conseguir.

Rudolf Von Jhering

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RESUMO

A função social da propriedade na ótica do liberalismo e da teoria comunitarista na Constitui-

ção de 1988 é analisada comparativamente. De um lado John Raws, um dos mais conhecidos

e celebrados filósofos políticos norte-americano, tido como o principal teórico da democracia

liberal da atualidade com o seu grande tratado jurídico-político intitulado Uma Teoria da Jus-

tiça (baseada na teoria tradicional do Contrato Social), que o alinhou entre os grandes pensa-

dores sociais do século 20; do outro, Michael Walzer, teorista político e filósofo de sociedade,

política e éticas, identificado como um dos principais proponentes do comunitarismo, cuja

filosofia política se fundamenta nas tradições e culturas de sociedades particulares. As doutri-

nas do pensamento liberal e do comunitarismo são discutidas em relação à propriedade, con-

siderando suas origens históricas, bem como sua influência, interpretações e limitações ao

direito de propriedade no Brasil e inclusos na Constituição Federal de 1988 e no Código Civil

Brasileiro de 2002.

Palavras-chave: Teoria Comunitária. Teoria da Justiça.. Liberalismo. Comunitarismo. Função

Social da Propriedade.

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ABSTRACT

The social function of the property in the optics of the liberalism and of the communitarist

theory in the Constitution of 1988 is analyzed comparatively. On a side John Raws, one of the

more acquaintances and celebrated North American political philosophers, had as the main

theoretical of the liberal democracy of the present time with his great entitled juridical-

political treaty A Theory of the Justice (based on the traditional theory of the Social Contract),

that it aligned him among the great social thinkers of the century 20; of the other, Michael

Walzer, political theorist and society philosopher, politics and ethics, identified as one of the

main proposers of the comunitarism, whose political philosophy is based in the traditions and

cultures of private societies. The doctrines of the liberal thought and of the comunitarism they

are discussed in relation to the property, considering their historical origins, as well as his/her

influence, interpretations and limitations to the property right in Brazil and included in the

Federal Constitution of 1988 and in the Brazilian Civil Code of 2002.

Keywords: Communitarist theory. Theory of the Justice. Liberalism. Comunitarism. Social

function of the Proprerty.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 9

1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE .............. 12

1.1 CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS .............................................................................. 21

1.2 A PROPRIEDADE E OS PRINCÍPIOS LIBERAIS ..................................................... 25

1.2.1 Uma Teoria da Justiça de Rawls .............................................................................. 25

1.2.2 O pensamento liberal de Rawls `............................................................................... 27

1.3 O PRINCÍPIO DA UNIVERSALIDADE ...................................................................... 34

1.4 A INFLUÊNCIA DOS PRINCÍPIOS LIBERAIS ......................................................... 37

2 O COMUNITARISMO ................................................................................................... 43

2.1 WALZER E AS ESFERAS DA JUSTIÇA: UMA DEFESA DO PLURALISMO

E DA IGUALDADE ..................................................................................................... 43

2.2 DIREITO COMUNITÁRIO ........................................................................................... 50

2.2.1 Aspectos históricos ..................................................................................................... 50

2.2.2 O surgimento do direito comunitário ...................................................................... 57

2.3 O PRINCÍPIO DA IGUALDADE ................................................................................. 62

2.4 A SOBERANIA POPULAR .......................................................................................... 67

2.5 DUALIDADE ENTRE IGUALDADE E LIBERDADE ............................................... 73

2.6 FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE A PARTIR DE WALZER .......................... 79

2.7 INFLUÊNCIAS DOS PRINCÍPIOS COMUNITARISTAS .......................................... 86

2.8 A RELAÇÃO LIBERALISMO/COMUNITARISMO .................................................. 87

3 FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE NA CONSTITUIÇÃO E NO

CÓDIGO CIVIL BRASILEIROS .................................................................................. 92

3.1 O PODER CONSTITUINTE E A CONSTITUIÇÃO ................................................... 92

3.2 A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE ................................................................. 98

4 CONCLUSÃO ..................................................................................................................113

5 REFERÊNCIAS ..............................................................................................................117

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INTRODUÇÃO

A exclusividade do indivíduo está restrita à sua essência, sua alma e tudo o mais a que

ele se agrega pode ou não lhe ser pertinente, conforme o ideal político que conforma o sistema

jurídico. As duas grandes manifestações existentes e percebidas como determinantes da con-

dução da sociedade são os poderes político e econômico. As grandes mudanças de regime

político foram determinadas por razões econômicas, cujas bases políticas de sustentação eram

lançadas por ideólogos, de forma a legitimar o sistema. É o Poder Político a serviço do Poder

Econômico.

Toda essa implicação surge quando o homem passa a possuir algo mais que suas pró-

prias vestes, precisando, pois1, criar vínculos jurídicos com outros objetos materiais, o que

significa estabelecer regras de pertinência e exclusão em relação ao objeto jurídico cogitado.

Assim sendo, um objeto deve pertencer a um indivíduo com a exclusão de todos os outros.

Esta é a base de entendimento para a propriedade individual, a qual deve ter alguma utilidade

para o seu titular, para uso direto ou como fator de troca em relação a outros bens.

A propriedade afigura-se como o direito em torno do qual gravita toda a regu-

lação jurídica do Direito das Coisas, constituindo ainda um dos sustentáculos (ao lado das

instituições da Família e do Contrato) do sistema liberal-burguês refletido no revogado Códi-

go Civil brasileiro, no tripé tradicional do Direito Privado. Com a vinda da Constituição Fede-

ral de 1988, o instrumento normativo de 1916 acabou superado, uma vez que aquela apresenta

em seu bojo o instituto da Função Social da Propriedade definida como a preocupação de as-

segurar o uso da coisa em consonância com os ditames clamados pelo bem comum, afastan-

do-se da plena in re potestas e adquirindo cada vez mais um caráter publicista2.

1SANDEL, Michael J. The Constitution of the procedural republic liberal rights and civic virtues. HeinOnline. 66 Fordham L. Ver. 1, 1997-1998. 2 BARRETO, Lucas Hayne Dantas. Função social da propriedade: análise histórica. Jus Navigandi, Teresina, a. 9, n. 778, 20 ago. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7164>. Acesso em: 26 abr. 2006.

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Tal novidade acabou por refletir-se na elaboração do novo Código Civilatual, o que

se mostra coerente com a inscrição de novos princípios norteadores, especialmente o da So-

cialidade, que vem tentar a superação do caráter manifestamente individualista do Diploma

revogado. Sendo assim, é possível notar que tal instituto tem variado no fluir temporal. Ainda

hodiernamente, há dissensões doutrinárias no tocante ao conceito da propriedade e sua função

social.

Decorrentes da própria vida dos homens, que são desiguais em quase tudo, (aptidões,

virtudes e defeitos), alguns ganham poder sobre os outros ou imiscuem-se nas liberdades dos

outros, e é a propriedade a instituição jurídica que vai refletir as diferenças humanas. Por tudo

isso, o instituto da propriedade, assim como o da posse atualmente está se desarraigando dos

princípios individualistas de outrora e concebendo, no seu âmago, a dignidade da pessoa hu-

mana como estrela guia por onde deve, obrigatoriamente, gravitar, para a busca de uma socie-

dade justa.

Na elaboração do presente estudo, não é pretensão desnaturar o caráter privatista da

propriedade (cerne dos direitos reais). Sem qualquer viés ideológico e destemperado, preten-

de-se trabalhar a função social da propriedade e da posse, segundo o projeto solidarista que

inspirou o Novel Diploma de Direito Privado Brasileiro. O que se pretende é averiguar o equi-

líbrio entre o ter e a funcionalização do ter, concebida no início do século passado, sob os

incipientes clamores revolucionários da Constituição de Weimar, equilíbrio este que deverá

permear todo o Direito, que não mais admite a estreita dicotomia entre o Público e o Privado.

Ressalte-se, desde já, que não se quer esgotar a matéria, nem mesmo desconsiderar opiniões

adversas, mormente pela propulsão de trabalhos acerca do tema. Apenas se quer lançar mais

uma reflexão sobre a função social da propriedade e da posse.

Diante disso, o objetivo do presente trabalho é direcionado à análise de aspectos da

Teoria Comunitária na função social da propriedade, em relação à Teoria do Liberalismo,

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defendidas modernamente pelos filósofos do direito John Rawls e Michael Walzer, buscando

identificar as influências de cada uma das teorias na Constituição Federal de 1988 e no atual

Código Civil Brasileiro.

Em um primeiro momento a abordagem é direcionada aos princípios liberais e aos di-

reitos e garantias individuais defendidos por John Rawls e que no presente estudo são vincu-

lados à propriedade, considerando a visão liberal majoritária dos princípios contidos na Cons-

tituição de 1988; num segundo momento procurou-se situar a Teoria Comunitarista no cenário

atual, através dos seus princípios e aspectos, tendo como base Michael Walzer, um dos seus

teóricos, não deixando de abordar a propriedade e sua função social como maior ponto de

identificação com a referida teoria.

Acredita-se que a discussão mais aprofundada das duas teorias (liberalismo e comuni-

tarismo) em um só estudo possa ser contributiva para uma visão mais abrangente das reais

influências das mesmas na legislação brasileira.

Para tanto, a presente Dissertação é apresentada em cinco capítulos distintos. O Capí-

tulo 1 trata da evolução histórica da função social da propriedade, onde é estudado a noção de

justiça para a função social e a propriedade e os princípios liberais e da universalidade; O Ca-

pítulo 2 aborda o comunitarismo, a visão de Walzer nas chamadas esferas da justiça, o Direito

Comunitário e seus aspectos históricos e surgimento, o Princípio da Igualdade, a Soberania

Popular, a Dualidade entre igualdade e liberdade, as influências dos princípios comunitaristas

e a relação entre liberalismo e comunitarismo; o Capítulo 3 é discutido a função social da pro-

priedade na Constituição Federal e no Código Civil Brasileiro, bem como o Poder Constituin-

te e a Constituição; no Capítulo 4 encontram-se as conclusões finais a que se chegou no estu-

do e finalmente, no Capítulo 5, são referenciados os autores consultados, bem como demais

documentos e leis necessários à realização do estudo pretendido.

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1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

John Raws, Ronald Dworkin e Charles Larmore, entre outros estão entre os represen-

tantes do pensamento liberal no âmbito da filosofia política contemporânea. Adotam o plura-

lismo e descrevem as democracias modernas como sociedades onde coexistem distintas con-

cepções individuais acerca do bem3.

O presente capítulo é dedicado à discussão do pensamento liberal relativo à proprieda-

de e alguns marcos teóricos, bem como a influência desses princípios na Constituição Federal

de 1988 e as interpretações e limitações impostas ao direito de propriedade no Brasil.

O homem sempre lutou pelos seus direitos e, apesar das evoluções históricas registra-

das, ainda na atualidade o processo de conquista da propriedade vem passando por dolorosos

processos de lutas e convulsões na busca incessante pela posse. Com o advento da Constitui-

ção de 1988 e principalmente do Código Civil Brasileiro em janeiro de 2002 é que efetiva-

mente se acentuou a interpretação liberal da Função Social da Propriedade.

A propriedade, representada pela titularidade sobre bens corpóreos e incorpóreos,

sempre esteve vinculada à idéia de poder, ao qual cada Estado, fundamentado em inúmeras

razões, sejam estas de ordem política, social, cultural, filosófica, religiosa, econômica ou de

outra natureza, interveio na propriedade como forma de afirmação do seu poder4.

As influências do direito civil de outros países no direito civil brasileiro, especialmen-

te os sistemas francês e germânico, as atualizações jurídicas e o aperfeiçoamento técnico con-

seguiram sobressair-se em relação à contribuição civil lusitana, já que o direito reinol, no cur-

so da história, foi o arcabouço da estruturação jurídica pátria.

3 CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva. 3. ed. Rio : Lumen Júris, 2004. p. 1. 4 COSTA, Cássia Celima Paulo Moreira. A Constitucionalização do Direito de Propriedade Privada. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2003. p. 95.

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A tendência mundial está afeta às transformações. Nada permanece por muito tempo

do mesmo modo. Surgem teorias, desaparecem outras. No campo do direito acontece o mes-

mo. E estas transformações ocorreram tanto no campo do Direito Privado como no campo do

Direito Público.

É difícil definir claramente onde se encontram os fundamentos basilares da função so-

cial da propriedade. De certa forma o seu conceito e história confunde-se com os conceitos

historicamente adotados pela propriedade.

Segundo afirmam os historiadores, o direito de propriedade tem raiz nos primeiros es-

tágios da cultura humana. Nas sociedades primitivas, ninguém era dono da terra e ninguém

obtinha renda de sua utilização, uma vez que o direito de propriedade referia-se apenas a obje-

tos como armas, roupas e ornamentos 5.

Nos primeiros séculos de Roma, a propriedade privada restringia-se tão-somente à ca-

sa, ao campo que a circundava e à sepultura familiar. O pater família, o único detentor de di-

reitos do grupo familiar, tinha a titularidade (dominium) sobre parte limitada da terra. Salien-

te-se, ainda, o caráter religioso do homem romano, devoto, conforme herança grega, a uma

infinidade de deuses, justificando, assim, a propriedade privada como uma graça religiosa, em

virtude dos cultos prestados aos deuses lares. Durante o período republicano de Roma, tam-

bém a funcionalização do direito de propriedade já era percebida. Nesta época, tendo em vista

o período bélico vivido na formação das cidades, havia, em Roma, muita extensão de terra. Os

terrenos próprios para lavouras, que não eram vendidos, eram distribuídos entre os cidadãos

romanos por um cânone em pagamento da posse. Os pastos e bosques eram de uso comum,

cabendo, a quem desejasse usa-lo, pagar uma quota proporcional ao uso. Já, quanto aos terre-

nos vagos e sem utilização, o Poder Público concedia a posse da terra aos cidadãos, mediante

5 FAZANO, Haroldo G. Vieira. Da Propriedade: Horizontal e Vertical. Campinas: CS Edições, 2003. p. 9.

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um percentual (dízimo) dos frutos e da colheita. Este quadro demonstra que a propriedade,

nos remotos tempos da república romana era totalmente funcionalizada6.

As coisas grandes, como o solo, o gado e a caça, pertenciam à comunidade, para bene-

fício geral de todos. Esse tipo de uso da terra persistiu até a idade moderna, especialmente em

alguns países europeus, nos quais o sistema comunal de campo aberto foi usado para garantir

o acesso livre a um pedaço de terra para qualquer um que a desejasse cultivar7.

A Lei das XII Tábuas de Cícero continha textos sobre o direito de propriedade, consi-

derando como bem imóvel o solo com tudo o que está a ele aderente. Não tratavam dos bens

móveis e imóveis de maneira diferenciada, a não ser relativamente ao tempo demandado para

o usucapião (posse por dois anos para bens móveis e por um ano para os móveis). Também

reconheciam o direito de sucessão da propriedade, tanto por ato entre vivos como por herança

com a morte do proprietário8.

Os filósofos gregos já afirmavam que os bens possuem uma procedência social, ou se-

ja, embora apropriados pessoalmente, fazem parte de um processo interativo, que mais tarde

Max Weber veio a chamar de ação social – ou seja, a produção de fenômenos sociais que têm

a sua significação baseada na existência do outro (termo que encontra amparo também na

psicanálise)9 .

Para o filósofo grego Aristóteles, a justiça era a lei e se ela está sendo seguida, se esta-

rá praticando a justiça, ou seja, o homem sem a lei seria injusto. Para o filósofo, a lei deveria

ser aplicada a todos os homens, independentemente da sua virtude ou maldade. Atos indevi-

dos deveriam ser condenados e atos dignos prescritos e, para isso, as leis deveriam ser bem

estudadas. Nesse sentido, afirma:

6 MORAES FILHO. Odilon Carpes. A Função Social da Posse da Propriedade nos Direitos Reais. Disponível em: <http://www.amprgsnet.org.br/imagesodilonm2.pdf>. Acesso em 21 abr. 2006. 7 Idem 8 SANTOS, J.M. de Carvalho et all. Repertório enciclopédico do direito brasileiro. v. 42, Borsoi, 1976, p.114. 9 COLARES, Marcos. Breves notas sobre a função social da propriedade. Jus Navigandi, Teresina, a. 5, n. 51, out. 2001. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2254>. Acesso em: 16 mar. 2006.

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[...] vimos que o homem sem lei é injusto e o respeitador da lei é justo; evidente-mente todos os atos legítimos são, em certo sentido, atos justos, porque os atos pres-critos pela arte do legislador são legítimos, e cada um deles dizemos nós, é justo. Ora nas disposições que tomam sobre todos os assuntos, as leis têm em mira a van-tagem comum, quer de todos, quer dos melhores ou daqueles que detém o poder ou algo desse gênero; de modo que, em certo sentido, chamamos justos aqueles atos que tendem a produzir e a preservar, para a sociedade política, a felicidade e os ele-mentos que a compõem. E a lei nos ordena praticar tanto os atos de um homem cora-joso [...] quanto a de um homem morigerado [...] e os de um homem calmo [...]; e do mesmo modo com respeito às outras virtudes e formas de maldade, prescrevendo certos atos e condenado outros; e a lei bem elaborada faz essas coisas retamente , enquanto as leis concebidas às pressas fazem menos bem.10

Outra grande influência na construção dos regramentos jurídicos advém do pensa-

mento de Santo Tomás de Aquino, dentro do que se batizou de jus naturalismo – onde a defe-

sa da posse dos bens materiais está colada ao exercício da garantia da mantença, sem, contudo

desprezar o aspecto social que esteja contido nos bens oriundos da ação da natureza.

Santo Tomás, com efeito, subordina a sua teoria de justiça ao conceito objetivo de lei,

ou, mais precisamente, de lex aeterna, a qual ordena o cosmos de conformidade com a razão

do Legislador supremo, assim como, numa comunidade, a lex humana representa a ordem

dada por quem racionalmente a dirige de conformidade com o bem comum11. De certa forma

advém do tomismo12 a idéia de bem comum, mais tarde revigorada pelas teorias do Estado

moderno.

Muitos são os pensadores que se dedicam, sob as mais diversas concepções ideológi-

cas, a analisar o fenômeno da apropriação da terra pelo homem, quer sob o formato de mera

posse, quer sob a feição de propriedade. A propriedade privada da terra teria surgido somente

após o desenvolvimento da troca de mercadorias em proporções consideráveis. Eaton esclare-

ce que: “na sociedade feudal, os direitos dos senhores feudais eram apenas uma extensão dos

direitos do chefe tribal. A ocupação da terra no período feudal é radicalmente diversa das

10 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Trad: Luís Carlos Borges. 2.ed. São Paulo : Martins Fontes, 1992. 433p. 11 REALE, Miguel. Nova Fase do Direito Moderno. 2. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 11-12 12 Doutrina escolástica de S. Tomaz de Aquino (1225-1274), teólogo italiano, adotada oficialmente pela Igreja Católica, e que se caracteriza sobretudo pela tentativa de conciliar o aristotelismo com o cristianismo.

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primitivas condições capitalistas ainda não surgidas”.13 Por outro lado, as leis gregas e roma-

nas, que refletiam a transformação para uma cultura urbana, atribuíram direitos exclusivos aos

proprietários. Desde a Grécia Antiga já se discutia a problemática das terras, bem como já se

processavam movimentos agrários (luta da plebe contra os patrícios e a nobreza). Há de se

dizer também de Atenas e Esparta, que disputavam a liderança política e econômica do mun-

do antigo. A princípio, tanto os conquistadores dóricos da Lacônia (espartanos), quanto os

jônicos da Ática (atenienses), tinham por base uma organização comunitária, mas com o de-

senvolvimento da agricultura e da pecuária, com a expansão da propriedade privada e das

cidades, tal organização se modificou, dando ensejo ao desenvolvimento do comércio e da

navegação e, conseqüentemente, ao surgimento das guerras, trazendo novas riquezas e novos

hábitos. Surge em Esparta a figura legendária de Licurgo. Até então ali reinava grande desi-

gualdade social e a maioria esmagadora de cidadãos padecia na miséria, enquanto uma ínfima

minoria desfrutava da riqueza. Com a finalidade de suprimir todos os males decorrentes dessa

desigualdade, Licurgo persuadiu os proprietários de terras a entregarem seus bens à coletivi-

dade, para que todos pudessem viver em pé de igualdade. A região da Lacônia teria sido divi-

dida em 30 mil partes, sendo posteriormente distribuídas entre seus habitantes. As terras que

circundavam Esparta teriam sido divididas em 9 mil partes.14

Em Atenas reinava a nobreza e, no ano de 621 a.C., Drácon codificou as leis escritas15.

Penas severas eram aplicadas, especialmente no que tocava o direito de propriedade. Como

conseqüência de tamanha severidade, as Leis de Drácon tornaram-se sinônimo de grande bru-

talidade. Essas leis foram substituídas pela legislação de Sólon, considerada mais humana,

13 FAZANO, Haroldo Guilherme Vieira. op. cit. p. 10. 14 FERREIRA, Pinto. Curso de direito agrário. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 38-44.

15 As leis draconianas têm um importante papel na história do Direito, por serem o primeiro código de leis, delineado em Atenas em 621 a.C. por Drácon. Seus datalhes perderam-se no tempo, mas aparentemente estas leis eram sempre favoráveis aos eupátridas e estabeleciam penas extremamente severas aos infratores. Tanto o furto como o assassinato recebiam a mesma punição: a morte. Por este motivo, atualmente o adjetivo draconiano se refere a alguém excessivamente severo e rígido. Um político de 4 a.C. gracejou que Drácon não escreveu suas leis com tinta, mas com sangue (ENCICLOPÉDIA Livre Wikipédia, 2006).

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com o escopo de evitar uma revolução da plebe. Entretanto, tais leis não agradaram nem à

plebe e nem à nobreza16.

Em 509 a. C., Clístenes estabeleceu a democracia na Grécia. Atenas tornou-se a maior

cidade do mundo, com cerca de 300 mil habitantes, tornando-se pólo de arte, filosofia, ciên-

cia, literatura, indústria, navegação e comércio. Atenas deixou de ser um Estado agrícola para

se tornar uma potência marítima. Tal desenvolvimento trouxe grande preocupação aos traba-

lhadores livres (proprietários de imóveis rurais com extensão de 6 a 50 hectares), pois tiveram

que lutar contra o capitalismo e contra a concorrência do trabalho escravo, situação que de-

nunciava a falta da verdadeira democracia, pois o que imperava na Grécia Antiga era uma

democracia escravista.

Platão (429-347 a.C.), em sua obra A República, deu um passo importante na definição

de propriedade. Ele descreveu o Estado ideal, segundo suas próprias concepções, concluindo

que a melhor forma para se alcançar a Justiça é a construção de um Estado (polis). Segundo a

concepção da época, a cidade é o homem escrito em letras grandes e a cidade ideal dessa for-

ma, corresponde ao homem ideal. A construção da cidade platônica corresponde a uma rela-

ção entre as quatro virtudes da alma (Sabedoria, Temperança, Coragem e Justiça) e as três da

alma (o apetite, a impetuosidade e a racionalidade). Assim, a cidade ideal também deveria ter

três classes: os artesãos, que correspondem ao apetite, os guerreiros, correspondentes à impe-

tuosidade e os guardiões à racionalidade17. Já no caso de Roma, esta se formou pela população

nativa, denominada patrícios18. A princípio, toda terra era pertencente à comunidade, tendo a

família de patrícios um pequeno lote. Aqueles moradores que não se incluíam entre os patrí-

cios eram conhecidos como plebeus. Eram livres, mas não detinham o direito de cidadãos

16 OLIVEIRA, Gustavo Paschoal Teixeira de Castro; THEODORO, Silvia Kellen da Silva. A Evolução da Fun-ção Social da Propriedade. Revista Jurídica Eletrônica UNICOC, n. 1, 2004, p. 12 Disponível em: <http://www.revistajuridicaunicoc.com.br>. Acesso em: 16 mar. 2006. 17 SILVA, Rafael Egídio Leal. Função social da propriedade rural: aspectos constitucionais e sociológicos. Re-vista de Direito Constitucional e Internacional. São Paulo, v. 37, a. 9, out.-dez. 2001. p. 257. 18 do latim: pater, o chefe da família, que detinha enormes poderes, tendo inclusive o poder de escravizar ou de manter os membros de sua família.

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(patrícios), muito menos o direito de cultivar a terra da comunidade. Fazem parte da história

de Roma lutas dos plebeus pela posse da terra 19.

Ferreira20 comenta que, “com o desenvolvimento do Império Romano, a então pequena

cidade de Roma e o seu Estado agrícola se transformaram numa potência mundial”. Posteri-

ormente, a riqueza começou a se concentrar nas mãos de poucos. Entretanto, em 134 a.C., os

irmãos Tibério e Caio Graco procuraram fortalecer a plebe romana. Tibério propôs a restrição

de quantidade de terras públicas que cada cidadão poderia ocupar. Todavia, tal projeto de lei

foi vetado e Tibério Graco sofreu graves acusações, até mesmo de aspirar à coroa real, aca-

bando por ser assassinado21.

A noção de propriedade na Roma antiga estava vinculada fortemente aos direitos per-

sonalíssimos, e qualquer tentativa de reforma agrária era considerada como algo impensável.

Pode-se dizer que a Idade Média foi um período marcado por conflitos que envolve-

ram a nobreza e os campesinos, sendo estes severamente reprimidos. Era o momento em que

as manufaturas se desenvolviam e os campos eram convertidos em pastagens para ovelhas,

criando-se, assim, uma massa de excluídos sem chances de progresso, cabendo-lhes apenas a

mendicância ou a ladroagem.

Nessa época começaram a surgir algumas obras com a intenção de tratar de problemas

sociais, incluindo a questão da propriedade. Dentre elas encontra-se a obra Utopia (1516)22, de

Thomas More, onde o autor discorre sobre um novo sistema de justiça, em que o que realmen-

te importa é o valor moral de cada indivíduo, e não as posses acumuladas. Qualquer noção de

propriedade deveria ser destruída para a garantia da justiça e da paz social. Já para John Loc-

ke, o Estado é fundado através do Contrato Social e considera que o fim maior e principal

para a união dos homens em sociedades políticas e se submeterem a um governo é a conser-

19 OLIVEIRA, Gustavo Paschoal Teixeira de Castro; THEODORO, Silvia Kellen da Silva. op. cit. 20 FERREIRA, Pinto. op. cit. p. 44. 21 OLIVEIRA, Gustavo Paschoal Teixeira de Castro; THEODORO, Silvia Kellen da Silva. op. cit.. p. 4. 22 O livro Utopia representa a primeira crítica fundamentada do regime burguês e encerra uma análise profunda das particularidades inerentes ao feudalismo em decadência.

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vação de sua propriedade. Locke defende a idéia de que a propriedade privada decorre dire-

tamente da liberdade e da racionalidade do indivíduo23.

A Revolução Francesa fortaleceu a tese de que a propriedade privada da terra não pode

assumir uma feição absoluta, posto que a ação do homem sobre ela importava inclusive aos

que não a possuíam. A partir da Declaração Francesa dos Direitos do Homem, de 26 de agos-

to de 1789, seguida do Código de Napoleão (1804)24, começou a se vislumbrar um mecanismo

de desapropriação que, por um lado protege a propriedade privada, mas por outro submete a

mesma ao interesse público, marcando assim o término de uma evolução jurídica.

A propósito da Declaração Francesa dos Direitos do Homem, esta pode ser considera-

da uma espécie de certidão de nascimento da modernidade. O valor histórico da Revolução

Francesa (bem como o simbólico da Declaração dos Direitos do Homem) serviu como refe-

rência para toda a humanidade, sobretudo no ocidente, durante três séculos. Seus valores eram

os do Iluminismo, constituindo um paradigma racional, secular, democrático e universalista.

A respeito do Homem iluminista, Ribas25 escreveu:

O sujeito do Iluminismo estava baseado numa concepção da pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo centro consistia num núcleo interior, que emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que permane-cendo essencialmente o mesmo – contínuo ou 'idêntico' a ele - ao longo da existên-cia do indivíduo.

Ao longo do século XIX, o liberalismo irá se confrontar com a tradição socialista e

com a generalização de expectativas por igualdade social desencadeada por um novo processo

de repercussões histórico-universais: a entrada na cena política da classe operária e de legiões

de deserdados surgidos na esteira do desenvolvimento econômico capitalista.

23 OLIVEIRA, Gustavo Paschoal Teixeira de Castro; THEODORO, Silvia Kellen da Silva. op. cit. 24 Dita o Código Napoleônico que propriedade é o direito de gozar e de dispor das coisas de maneira absoluta, desde que seu uso não viole leis ou regulamentos. 25 RIBAS, Luciano do Monte. 2005. Direitos da Humanidade. Disponível em: <http://www.angelfire.com/>. Acesso em: 17 mar. 2006.

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O século XX foi um período produtivo em todas as atividades humanas, um movi-

mento considerável se realizou no domínio social e este, no entanto, foi uma reação formidá-

vel contra todos os Princípios de 178926. Aparecem com inteira luminosidade os elementos da

construção jurídica nova, que como as outras não será definitiva. As transformações são ge-

rais, acontecem em todos os povos chegados ao mesmo grau de cultura se manifestando em

um ponto ou em outro, mas em geral os caracteres em todas as sociedades são iguais.

Essas transformações todas que aconteceram esse período são profundas e podem se

resumir nas preposições que se seguem: Primeiro a Declaração dos Direitos do Homem, o

Código de Napoleão e todos os códigos modernos que procedem mais ou menos desse ato são

concepções inteiramente individualistas de direito. Na era atual são elaboradas concepções

voltadas com maior intensidade ao socialismo; Segundo, o sistema jurídico da Declaração dos

Direitos do Homem e do Código de Napoleão para a concepção metafísica do Direito Subjeti-

vo. O sistema jurídico no mundo atual tende a se sobrepor, ou melhor, impor ao indivíduo e

aos seus grupos. Antes o sistema jurídico era de ordem metafísica agora passando a ser de

ordem realista27.

O Direito Subjetivo será, antes de mais nada, a noção fundamental que servirá de base

no sistema de 1789 e de 1801 e de todas as legislações positivas que se inspiram neste. Em

uma noção meramente metafísica o direito subjetivo do Estado personifica a coletividade, o

direito subjetivo do indivíduo. Essa noção é contraditória com o realismo das sociedades mo-

dernas. Na concepção de Marques 28:

[...] o grande impulso à doutrina da função social da propriedade se deve a Duguit (Professor de Direito Constitucional na Faculdade de Direito de Bordéus, na França) que, ao proferir uma palestra, em 1911, na Faculdade de Direito de Buenos Aires, na Argentina, afirmou que a propriedade não era um direito subjetivo, mas a subordina-ção da utilidade de um bem a um determinado fim, conforme o direito objetivo.

26 VIANA, Marco Aurélio S. Curso de Direito Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. 27 FIÚZA, César. Direito Civil: Curso completo. 3. ed., ver. atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2000. 28 MARQUES, Benedito Ferreira. Direito agrário brasileiro. 2. ed. Goiânia: AB, 1998, p 50.

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Em 1848, Marx e Engels começaram a questionar o caráter absoluto da terra, defen-

dendo a idéia de nocividade se ela não for utilizada de modo produtivo. O Código Civil ale-

mão já não trata mais a propriedade como modo absoluto.

Importante deixar registrado o papel da Igreja, cuja discussão sobre o uso da terra não

parou com Tomás de Aquino (que vê na propriedade um direito natural que deve ser exercido

com vistas ao bem comum). Prosseguiu com as Encíclicas Rerum Novarum (Leão XIII –

1891), Quadragésimo Anno (Pio XII – 1931) e Mater et Magistra (João XXIII – 1962), todas

asseverando, em algum momento, acerca da importância da inclusão social via trabalho e dis-

tribuição das riquezas. Sem dúvida que o Concílio Vaticano II e mais tarde a Teologia da Li-

bertação deram forte impulso à discussão acerca do uso da terra e do tributo social que repou-

sa sobre ela29.

Segundo Araújo30, “para a Igreja, a propriedade não é uma função social a serviço do

Estado, pois assenta sobre um direito pessoal que o próprio Estado deve respeitar e proteger.

Mas tem uma função social subordinada ao bem comum. É um direito que comporta obriga-

ções sociais”.

1.1 CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS

Na concepção de Sócrates a justiça era aquela simetria entre o justo agir e o reto pen-

sar. Já para a maioria dos autores da época a justiça se fazia dos mais fortes em cima dos mais

frágeis. Platão sustentava que o justo, outra coisa não é, senão o interesse do mais31. Essa a-

bordagem da sociedade justa é abandonada em Aristóteles por uma discussão da justiça como

29 COLARES, Marcos. Breves notas sobre a função social da propriedade. Jus Navigandi, Teresina, a. 5, n. 51, out. 2001. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2254>. Acesso em: 16 mar. 2006. 30 ARAÚJO, Telga de. A propriedade e sua função social. In: Direito agrário brasileiro. São Paulo: LTr, 1999. p. 59. 31 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Trad: Luís Carlos Borges. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992. 433 p.

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aparece no uso lingüístico. Nesse caso, encontra-se numa visão subjetiva, como atributo do

indivíduo, uma virtude adquirida que permite uma ação equilibrada entre dois extremos vicio-

sos. Trata-se mais de uma noção psicológica, um hábito, do que uma noção moral. Canto-

Sperber (apud TÔRRES), referindo-se à noção de moral, observa que:

Não á nenhuma palavra no pensamento grego com a qual possamos dar uma tradu-ção satisfatória para o termo contemporâneo “moral”. As noções morais gregas são, em sua maioria, desprovidas de fundamento em relação aos nossos conceitos morais. A título de exemplo: a justiça é definida como uma virtude do caráter, exprimindo a ordem da alma, mas que não tem de início, ligação com os direitos dos outros – en-quanto que é aí que reside o coração da noção moderna de justiça; a moral é fre-quentemente identificada como a prudência – ao passo que a justiça dela se distin-gue radicalmente nas filosofias modernas de inspiração kantiana; a possibilidade de razões morais que se impõem ao sujeito, independentemente de todos os seus outros desejos ou aspirações não é realmente considerado - enquanto que estas razões pro-priamente morais são vistas hoje como a contribuição específica da moralidade; en-fim, a consideração do bem do agente é o dado primeiro da moralidade, um lugar secundário é relegado ao cuidado do bem do outro – o avesso do que nós conside-ramos como sendo o cuidado o mais propriamente moral32.

A noção de justiça que leva o indivíduo à procura do igual e do justo nas relações hu-

manas é transmitida aos juristas romanos que a sediam mais na vontade do que no intelecto,

como algo que se destina à produção de efeitos. Essa noção pode ser percebida na própria

funcionalização do direito de propriedade, que naquela época já era percebida, seja pelo seu

caráter público nas extensas áreas de terras conquistadas, seja pelo caráter privado e absoluto

verificado na casa do pai de família. O homem utilizava a terra pública para seu sustento, sem,

no entanto, estar provido de qualquer título jurídico. Entretanto, a posse da propriedade era

reconhecida como um instituto estritamente fático.

A combinação do estoicismo e do cristianismo se estende e abrange a justiça da polis

para toda a humanidade e, para todos os tempos e lugares, consideram-na obrigatória e abso-

luta, um ideal pelo qual viver e morrer, concepção dominante encontrada até os dias atuais

nos textos da moral cristã. Além disso, serve para orientar a criação do Direito e de seu ideal,

bem como do critério interpretativo de suas regras, as quais são obedecidas e possíveis, por-

32 TÔRRES, Heleno Taveira et al. Direito e Poder: Nas instituições e nos valores do público e do privado con-temporâneos. Barueri: Manole, 2005. p. 183.

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que a justiça subsiste no indivíduo como atitude subjetiva. Sua fundamentação baseia-se, ago-

ra, numa lei ou numa ordem encontrada no cosmos, entre os gregos; em Deus, quer como sua

razão, quer como sua vontade, entre os cristãos; e, na modernidade, na natureza do homem

após o eclipse de Deus no pensamento moderno.

No final do século XIX os distúrbios sociais ganharam notoriedade e a exploração do

homem pelo homem e as questões do direito de propriedade foram alvo de questionamentos.

O absolutismo quase que monárquico a respeito da concepção individualista da propriedade

teve que ser revisto e nesse contexto surge a idéia de condicionar o direito à propriedade à sua

utilidade para o bem comum. Imputar uma função social à propriedade não significa estabele-

cer um direito ou um dever ao bem33.

"O capital não é sujeito de direitos e deveres, que apenas mediatamente lhes podem ser

impostos como funções ao cumprir, através do reconhecimento e da imposição de direitos e

deveres ao seu titular” 34. Os positivistas, os historicistas e os pensadores criticam de modo

intenso a validade dessa concepção, devido ao seu relativismo. Entretanto, não abandonam

seu conceito. Em sua maioria, passam a aceitar limitações ao direito de propriedade35.

Na sua obra intitulada Que é Direito? Kelsen36 afirma que “têm sido vãos os esforços

para encontrar, por meios racionais, uma norma absolutamente válida de comportamento jus-

to. [...] Justiça absoluta é um ideal irracional”. O autor não renuncia à justiça, mas a sua é re-

lativa às suas convicções.

A doutrina de que a propriedade deve atender uma função social cria corpo e se espa-

lha pelas constituições nascentes no início do século XX. Foi o caso da Constituição do Méxi-

co, de 1917 e da Constituição de Weimar (Alemanha), de 1919. Entretanto, a partir de 1971,

33 BARROSO FILHO, José. 2001. Propriedade: A quem serves? Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina>. Acesso em: 21 abr. 2006. 34 VAZ, Isabel. Direito Econômico das Propriedade. 2. ed. Rio de Janeiro : Forense, 1993. 35 MACEDO, Ubiratan Borges et al. Mudança de Paradigma na Teoria da Justiça. Barueri: Editora Manole, 2005. p.184. 36 KELSEN, Hans. O que é Justiça?. São Paulo: Martins Fontes, 1957. p. 23.

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consideráveis mudanças se deram no conceito de propriedade, quando surgia a obra de John

Rawls, Teoria da Justiça, inaugurando, destarte, um novo paradigma. Em sua obra intitulada

Lectures on the history of moral philosophy37 , que recolhe suas notas de um curso introdutó-

rio à Teoria da Justiça, em que faz uma longa introdução destacando as diferenças entre a filo-

sofia moral clássica e a moderna, apontando uma série de razões ligadas à estrutura da religi-

ão cívica greco-romana, diversa do cristianismo e da presença da ciência e do estado moder-

no. Nessa obra, Rawls mostra ter consciência da diferença entre o lócus em que se move a sua

teoria da justiça e as anteriores. A obra inicia-se com David Hume (que afirmava que a justiça

deve todo o seu mérito à utilidade pública) e continua com Kant38, ficando clara sua filiação a

esses autores, até pelo modo como são apresentados39.

Nessa obra, Rawls40 recupera o contratualismo, mas aponta bastante claramente o es-

copo da teoria: os princípios de justiça aplicam-se apenas à Estrutura Básica da Sociedade,

que regula a distribuição de Bens Primários.

37 Conferências na história da ética. 38 Immanuel Kant (1724-1804) foi um filósofo prussiano, considerado como o último grande filósofo dos princí-pios da era moderna, um representante do iluminismo, indiscutivelmente um dos seus pensadores mais influen-tes. Kant teve um grande impacto no romantismo alemão e nas filosofias idealistas do século IX, tendo esta sua faceta idealista sido um ponto de partida para Hegel. 39 MACEDO, Ubiratan Borges et al. Mudança de Paradigma na Teoria da Justiça. Barueri: Editora Manole, 2005. p.186. 40 RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Tradução: Almiro Pisetta e Lenita Maria Rímole Esteves. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 6-7.

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1.2 A PROPRIEDADE E OS PRINCÍPIOS LIBERAIS

1.2.1 Uma Teoria da Justiça de Rawls

John Rawls41, o mais conhecido e celebrado filósofo político norte-americano, é tido

como o principal teórico da democracia liberal da atualidade. O seu grande tratado jurídico-

político, A Theory of Justice (Uma Teoria da Justiça, 1971) o alinhou entre os grandes pensa-

dores sociais do século 20. Quando a obra A Theory of Justice surgiu em Harvard, havia um

tácito consenso entre os pensadores da filosofia política de que nenhuma obra monumental

nesta área havia sido publicada desde o início da chamada Guerra Fria. Além das importantes

contribuições de neomarxistas como Gramsci, Lukács e dos expoentes da primeira geração da

Escola de Frankfurt, na primeira metade do século passado, não fora tampouco registrado

nenhum marco teórico decisivo antes da publicação da obra prima de Rawls, até então um

ilustre desconhecido42.

A Teoria da Justiça surgiu após o sucesso da campanha pelos Direitos Civis Norte

Americanos. Herdeiro da melhor tradição liberal, que principia com Locke, passando por

Rousseau, Kant e Mills, Rawls debruçou-se sobre um dos mais espinhosos dilemas da socie-

dade democrática: como conciliar direitos iguais numa sociedade desigual, como harmonizar

as ambições materiais dos mais talentosos e destros com os anseios dos menos favorecidos em

41 Nascido em 21 de fevereiro de 1921 em Baltimore, Estado americano de Maryland, filho de um advogado especialista em direito constitucional e de uma feminista de origem alemã, John Bordley Rawls freqüentou a escola pública e um tradicional colégio episcopal em Connecticut, tendo, aos dezoito anos, ingressado na presti-giosa Universidade de Princeton, onde seus estudos foram direcionados, por Norman Malcom, um amigo íntimo e seguidor de Wittgenstein41, para a filosofia. Em 1943 serviu no exército, tendo testemunhado pessoalmente os horrores da guerra, onde perdeu vários amigos, além de acompanhar os bombardeios americanos de Hiroshima e Nagasaki, os quais classificou como tremendos erros, levando-o a escrever sobre o assunto para um jornal políti-co e a participar de uma conferência sobre o direito dos povos, a qual foi transformada posteriormente em livro. Após a guerra, Jack (como Rawls era conhecido pelos amigos) retornou para Princeton em 1946, onde trabalhou questões filosóficas para sua tese de doutorado. Em 1950, seu último ano acadêmico, Rawls iniciou seus estudos de aprofundamento em teoria política, que culminaram com a publicação do famoso tratado sobre a justiça, obra que foi traduzida para o alemão em 1975 e para o francês em 1987, alcançando reconhecimento internacional, tornando-se o maior best-seller filosófico das últimas décadas, vindo a ser publicado em mais de 25 países. 42 OLIVEIRA, Nythamar. Rawls. Rio de Janeiro Jorge : Zahar Editora, 2003. p. 7.

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melhorar sua vida e sua posição na sociedade? Tratou-se de um alentado esforço intelectual

para conciliar a Meritocracia com a idéia da Igualdade43.

A Teoria da Justiça de John Rawls tem o mérito de ser a primeira grande teoria geral

sobre a justiça, tendo provocado uma reorientação no pensamento filosófico americano, até

então interessado em questões epistemológicas e lingüísticas para os problemas ético-sociais,

além de ter propiciado um novo tipo de igualitarismo teórico, não mais de oportunidades, mas

de resultados 44.

Rawls justifica a sua teoria da justiça a partir de dois enfoques complementares: por

um lado, um esquema procedimental evocado pela posição original e pelo véu da ignorância

e, por outro lado, um confronto com as intuições morais. Essa dualidade se ajusta até se des-

crever uma justiça substancial que ofereça os princípios mais razoáveis e uma estrutura social

básica estável. A dupla metodologia é apenas aparente, pois o construtivismo kantiano de

Rawls está também ancorado historicamente, embora atribuindo um caráter geral ao ponto

principal de sua teoria, de modo que as intuições morais detêm primazia (o construtivismo

não perde por isso em importância) e a formulação rawlsiana traduz os princípios de justiça

mais razoáveis, dada a concepção do homem numa cultura democrática45.

De uma maneira geral, pode-se dizer que toda a obra de Rawls, em particular a sua tri-

logia (Uma teoria de justiça, O liberalismo político e O direito dos povos) defende sua con-

cepção procedimental de liberalismo, apropriadamente denominada de Justiça como eqüidade.

Assim, o instituto inicial de generalizar e elevar a um nível mais alto de abstração teórica a

concepção de justiça inerente ao contratualismo de Locke, Rousseau e Kant é corroborado

através de suas revisões e reformulações de modelo procedimental de liberalismo, capaz de

43 SCHILING, Voltaire. 2003. A Teoria da Justiça de John Rawls. Disponível em: <http://educaterra.terra.com.br/voltaire/>. Acesso em: 17 mar. 2006. 44 SILVA. Ricardo Pelingeiro Mendes. Teoria da Justiça de John Rawls. 1977. Disponível em: <http://www.cjf.gov.br/revista/numero6/artigo13.htm>. Acesso em 20 mar. 2006. 45 RENTERIA, Pablo. O Real Libertarianismo de Rawls. Disponível em: <http://www.puc- rio/direito/>. A-cesso em: 20 mar. 2006.

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conjugar o igualitarismo (igualdade de bem-estar) e o individualismo (liberdades individu-

ais).46

Rawls propõe que os princípios de justiça de sua teoria apliquem-se apenas à Estrutura

Básica da sociedade. Essa restrição de escopo da justiça permite que várias concepções de

Bem sejam acomodadas no nível individual. Além disso, a possibilidade de geração de prin-

cípios que se refiram às instituições garante às mesmas a legitimidade de circunscrever a plu-

ralidade de objetivos individuais, muitas vezes conflituosos, em um marco comum de justiça.

1.2.2 O pensamento liberal de Rawls

Rawls inicia seu ensaio do que é denominado a principal idéia da sua Teoria da Justiça

com base na teoria tradicional do Contrato Social representada por Locke, Rousseau e Kant,

afirmando esperar que “a teoria possa ser desenvolvida de forma a não mais ficar aberta às

mais óbvias objeções que se lhe apresentam, muitas vezes consideradas fatais”47. Nas exposi-

ções iniciais da sua teoria ele não indica quais são esses princípios, limitando-se apenas a ex-

pressar que seriam aqueles que as pessoas livres e racionais promoveriam em uma posição

inicial de igualdade. Essa igualdade de origem entre os homens corresponde à teoria tradicio-

nal do Contrato Social, uma alternativa para essas doutrinas que há muito tempo dominam a

tradição filosófica (a utilitária e a intuicionista).

Permite-se, portanto, ao autor em falar de justiça como imparcialidade, o que constitui

basicamente sua tese. Rawls, pelo que se refere ao Contrato Social e ao antecedente do estado

de natureza, ou o que denomina de posição originária, não os considera como algo historica-

mente real, senão como uma hipótese que conduz a uma concepção de justiça. Poder-se-ia

dizer que a posição original é o status quo antes apropriado e que, em conseqüência, os acor-

dos fundamentais logrados nele são justos. Isso explica a aproximação da palavra justiça co-

46OLIVEIRA, Nythamar. Rawls. Jorge Zahar Editora: Rio de Janeiro, 2003. p. 10. 47 RAWLS, John. op. cit. p. XXII.

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mo imparcialidade, pois transmite a idéia de que os princípios de justiça se coadunam em uma

situação inicial que é justa.

A sociedade é vista por Rawls como uma associação mais ou menos auto-suficiente de

pessoas que, em suas relações, reconhecem a existência de regras de condutas como obrigató-

rias, as quais, na maioria das vezes, são cumpridas e obedecidas, especificando um sistema de

cooperação social para realizar o bem comum.

Nesse contexto, surgem tanto identidade de interesses como conflito de interesses en-

tre as pessoas, pois estas podem acordar ou discordar pelos mais variados motivos quanto às

formas de repartição dos benefícios e dos ônus gerados no convívio social.

É precisamente aí que os princípios da justiça social desempenham seu papel. Nas pa-

lavras de Rawls, exige-se um conjunto de princípios para escolher entre várias formas de or-

denação social que determinam essa divisão de vantagens e para selar um acordo sobre as

partes distributivas adequadas. Esses princípios são chamados por ele como os princípios da

justiça social. Eles fornecem um modo de atribuir direitos e deveres nas instituições básicas

da sociedade e definem a distribuição apropriada dos benefícios e encargos da cooperação

social.

No pensamento de Rawls, são dois os princípios da justiça social: o primeiro é que ca-

da pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais

que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para as outras; o segundo é que

as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo

tempo consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável e vinculadas a

posições e cargos acessíveis a todos. Tais princípios, segundo Rawls, aplicam-se à estrutura

básica da sociedade, presidem a atribuição de direitos e deveres e regem as vantagens sociais

e econômicas advindas da cooperação social.

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Rawls observa ainda que os dois princípios são um caso especial de uma concepção

mais geral da justiça expressa de maneira que todos os valores sociais (liberdade e oportuni-

dade, renda e riqueza e as bases sociais da auto-estima) devem ser distribuídos igualitariamen-

te, a não ser que uma distribuição desigual de um ou de todos esses valores traga vantagens

para todos.

O que pode ser visto na teoria de Rawls é que os princípios de justiça social têm um

nítido caráter substancial, ao invés de meramente formal. Logo no início de sua obra, ele é

bem claro quando sustenta que o que o preocupa é a justiça verificada na atribuição de direi-

tos e liberdades fundamentais às pessoas, assim como a existência real da igualdade de opor-

tunidades econômicas e de condições sociais nos diversos segmentos da sociedade.

Para Rawls, o objeto primário da justiça é a estrutura básica da sociedade, ou mais e-

xatamente, a maneira pela qual as instituições sociais mais importantes distribuem direitos e

deveres fundamentais e determinam a divisão de vantagens provenientes da cooperação soci-

al48. Os princípios de justiça social, que regulam a escolha de uma constituição política, de-

vem ser aplicados primeiramente às profundas e difusas desigualdades sociais, supostamente

inevitáveis na estrutura básica de qualquer sociedade. Em suma, a concepção de justiça apre-

sentada na obra de Rawls consiste na justiça como eqüidade, significando que é uma justiça

estabelecida numa posição inicial de perfeita eqüidade entre as pessoas, e cujas idéias e obje-

tivos centrais constituem uma concepção para uma democracia constitucional.

O pensamento de Rawls reside no fato de que a justiça como eqüidade pareça razoável

e útil, mesmo que não seja totalmente convincente para uma grande gama de orientações polí-

ticas ponderadas e expresse uma parte essencial do núcleo comum da tradição democrática.

Seu ponto de partida é uma situação hipotética que em algum momento os homens, como

seres racionais, concordaram em se associar para a realização diversos fins, satisfazer múlti-

48 RAWLS, John. op. cit. p. 3.

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plas necessidades e alcançar a justiça. Tal situação, que Rawls denomina de posição original,

caracteriza-se por uma maior igualdade. Existiriam dois princípios nessa situação: o primeiro

deles exige igualdade na repartição dos direitos e deveres básicos; o segundo propõe que as

desigualdades sociais e econômicas (as desigualdades de riqueza e autoridade) somente são

justas a partir do momento em que produzem benefícios compensadores para todos e, em par-

ticular, aos membros menos favorecidos da sociedade, o que deixa claro sua percepção de

que, mesmo na posição original de máxima igualdade, ainda assim as desigualdades sociais e

econômicas são inevitáveis. Estima que o bem-estar da maioria depende de um esquema coo-

perativo envolvendo todos, tanto dos mais dotados quanto dos menos dotados. Ambos os

princípios operam sob condições de razoabilidade. Os dois princípios mencionados parecem

ser uma base eqüitativa sobre a qual os mais bem dotados ou mais afortunados em sua posição

social, sem que se possa dizer de ninguém que o merecia, podem esperar cooperação voluntá-

ria dos outros, no caso de algum esquema praticável ser condição necessária para o bem-estar

de todos49.

Rawls percebe que uma concepção de justiça não pode anular nem os dons naturais,

nem as contingências ou desigualdades sociais que vão incidir nas estruturas política, econô-

mica e, em geral, em todas as dimensões da vida. Para ele a justiça, como imparcialidade,

apóia-se na teoria contratualista e na teoria da eleição racional. Essa posição original, que o

autor não trata de provar, é o meio para elaborar uma teoria ideal de Justiça, que ele denomina

de Justiça como Imparcialidade, a qual, para ser entendida, necessita referir-se aos seus con-

teúdos éticos.

Rawls analisa os pressupostos morais que subjazem na teoria sobra a Justiça, em espe-

cial as doutrinas do utilitarismo clássico e do intuicionismo. No caso do utilitarismo, seus

antecedentes encontram-se na ilustração inglesa e em no que se chama moral naturalista, cujo

49 FERNANDEZ, Atahualpa. Direito e evoluçao: a natureza humana e a função adaptativa do comportamento normativo. In: Âmbito Jurídico. Rio Grande, n. 22, ago 2005. <Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=467>. Acesso em 27 mar 2006.

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princípio é a máxima felicidade para o maior número de homens. O utilitarismo como corren-

te filosófica, apesar das críticas e repulsas que provoca, tem sido muito influente nos países de

língua inglesa, em especial na Inglaterra e nos Estados Unidos da América.

A respeito do intuicionismo é conveniente recordar que se refere a atitudes filosóficas

ou científicas que apelam à intuição, a uma evidência para a inteligência ou os sentidos, a um

princípio que não se demonstra, que permite compreender rapidamente um conjunto de fenô-

menos. A intuição não requer um lauto discurso racional para entender algo. Os temas de ética

e axiologia se vinculam estreitamente à noção de Justiça e por isso Rawls, de acordo com sua

tradição filosófica, considera necessário referir-se ao significado do utilitarismo e ao intuicio-

nismo em sua reflexão. Com respeito ao utilitarismo, Rawls pensava que a idéia principal é

que, quando as instituições mais importantes da sociedade estão dispostas de tal modo que

obtêm o maior equilíbrio e satisfação, distribuídos entre todos os indivíduos pertencentes a

ela, então a sociedade está corretamente ordenada, e, portanto, justa50.

O maior equilíbrio entre as instituições da sociedade garante a ordem e a justiça graças

ao princípio da utilidade, entendido como o máximo de felicidade para o maior número de

pessoas. É indubitável que o bom e o justo se vinculam. Os dois conceitos principais da ética

são o do bom e do justo. Rawls acreditava que o conceito de uma pessoa moralmente digna se

deriva deles. Ele refuta as teorias teológicas com respeito ao bem posto, exaltado em detri-

mento do justo. O justo quedaria subordinado ao maior êxito dos bens entendidos como per-

feições. As noções de natureza e perfeição, ao autor, parecem insuficientes para explicar a

justiça. Não obstante, o utilitarismo, como subprincípio de eleição racional, facilita ao indiví-

duo alcançar seus desejos, permitindo a outros obterem os seus. Para o autor, essa concepção

utilitarista desconhece as desigualdades entre as pessoas, e pretende alcançar o equilíbrio, a

cooperação e a justiça entre os indivíduos. Esse conceito de cooperação social é conseqüência

50 Id.

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de estender, à sociedade, o princípio de eleição por um indivíduo e, então, fazer funcionar

essa extensão, fundindo todas as pessoas em uma, por meio de abstrações de expectadores

imparciais. O utilitarismo não considera seriamente a distinção entre as pessoas.

Em relação à outra grande teoria moral, chamada por Rawls de intuicionismo, seu en-

tendimento é de um modo mais geral que o habitual, como a doutrina que sustenta que existe

um conjunto irredutível de primeiros princípios que devem ser sopesados uns com outros,

indagando que equilíbrio é o mais justo segundo nosso juízo. O bom moral e o justo jurídico

são resultados de uma evidência intelectual ou emotiva, sem que se possa demonstrar esses

princípios satisfatoriamente. No ramo da moral e também em relação à justiça, as teorias in-

tuicionistas levam consigo pluralidade de princípios que podem estar em conflito e propor

soluções contraditórias em casos particulares. Não outorgam regras de prioridade para aplicar

seus princípios, se valoram ou apreciam intuitivamente, pelo grau de vivência de sua verdade,

para que haja formulação de um juízo mais correto. Por isso tudo, dever-se-á tomar em conta

a estrutura básica, que nada mais é do que a Constituição e os sistemas econômico e social

para que esse equilíbrio seja obtido, algo de extrema dificuldade para um intuicionista.

No período das décadas de 70 e 80 Rawls se detém quase exclusivamente a continuar

desenvolvendo a concepção de justiça para as sociedades fechadas e a responder críticas refe-

rentes à sua Teoria da Justiça. Em 1993, como resultado de seus novos estudos é publicada a

obra O Liberalismo Político, onde Rawls tece considerações mais abrangentes sobre a con-

cepção de pessoa e sobre o exercício do pluralismo razoável. Nesse cenário de escolha dos

princípios de justiça é importante preservar as concepções de bem que as pessoas defendem

livremente para si e que estão relacionadas de modo particular com as suas visões de mundo

como premissa própria liberal. É de acordo com um sistema de liberdades e pelo princípio da

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diferença garantidos pelos princípios de justiça que as pessoas podem buscar realizar os seus

objetivos de vida dentro dos limites da dignidade e do auto-respeito51.

O pensamento de Rawls não deixa, de forma alguma, de ser um marco na recuperação

contemporânea do pensamento liberal e que vai dar origem a outras vertentes de um libera-

lismo renovado, algumas mesmo fortemente adversárias de seu próprio pensamento.

Assim, a escolha dos princípios de justiça é feita de modo que as pessoas não são ca-

pazes de propor supostos princípios de justiça que favoreçam mais a umas que a outras. Se-

gundo Rawls, seriam então escolhidos dois princípios de justiça. O primeiro, o princípio da

igualdade garante um igual sistema de liberdades e direitos o mais amplo possível para as

pessoas ligado a cargos e posições sociais. O segundo, o princípio da diferença assegura que

as eventuais desigualdades econômicas na distribuição de renda e riqueza somente são aceitas

caso beneficiem especialmente os menos favorecidos.

É importante tratar aqui também da definição de bens sociais primários, porque é precisamen-

te em relação a eles que serão aplicados os princípios de justiça. Rawls define esses bens, de

uma maneira mais ampla, como “coisas que se supõe que um homem racional deseja, não

importa mais o que ele deseje”52.

Rawls considera que as pessoas desejam ter uma quantidade maior à uma menor des-

ses bens, independentemente dos seus planos de vida. Por isso mesmo são chamados bens

sociais primários. Segundo Rawls, é a partir da posse desses bens que as pessoas acreditam

poder alcançar seus planos de vida com maior sucesso. Ele caracteriza esses bens amplamente

como “direitos, liberdades e oportunidades, assim como renda e riqueza”53. Além disso, Rawls

procura defini-los mais especificamente nos grupos de: a) direitos e liberdades básicos, que

são, igualmente, dados por uma lista; b) liberdade de circulação e livre escolha da ocupação

face a um quadro de oportunidades plurais; c) poderes e prerrogativas de cargos e posições de

51 Ibid. 52 RAWLS, John. Op. cit., p. 97. 53 Id., p. 98

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responsabilidade nas instituições políticas e econômicas da estrutura básica; d) rendimento e

riqueza; e) as bases sociais do respeito próprio ou auto-respeito.

No tocante às liberdades básicas iguais, as mais importantes, segundo Rawls são: a li-

berdade política (direito de votar e ocupar um cargo público) e a liberdade de expressão e

reunião; a liberdade de consciência e de pensamento; as liberdades da pessoa, que incluem a

proteção contra a opressão psicológica e a agressão física (integridade da pessoa; o direito à

propriedade privada e a proteção contra a prisão e a detenção arbitrárias, de acordo com o

conceito de estado de direito).54

1.3 O PRINCÍPIO DA UNIVERSALIDADE

Os tempos atuais caracterizam-se por uma construção paradoxal que envolve, de um

lado, um programa universalista inaugurado pela modernidade globalizante e, de outro, um

conjunto de práticas e discursos que efetivam o abandono do humano e legitimam esse esque-

cimento. A própria idéia de Direitos Humanos pressupõe a recepção do conceito de humani-

dade, o que só pode ser feito se mantida operante a identidade vinculadora a todos os de-

mais55.

Segundo Arnaud56, “a idéia do universalismo é fruto do pensamento filosófico ociden-

tal caracterizado pela visão etnocentrista de que os valores válidos para o ocidente o são urbi

et orbi”. A idéia está pautada fundamentalmente no sujetivismo, do qual surgiram as Declara-

ções dos Direitos do Homem e do Cidadão. É a partir do conceito de subjetivismo que se ex-

trai o caráter humanístico das regras mais essenciais que ordenam as relações jurídicas, norte-

adas pelo princípio da valoração da vida em sociedade.

54 Ibid., p. 65. 55 PINTO, Renato S. Gomes. 2000. Globalização dos Direitos Humanos? Disponível em: <http:/www.eupg.br/rj/a1vat12.htm>. Acesso em 25 mar. 2006. 56 ARNAUD, André-Jean. O Direito entre Modernidade e Globalização: Lições de Filosofia do Direito e do Estado. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.

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Sempre que se exclui alguém da idéia definida de direito, está decretada a ruína do

princípio da universalidade e ocorre, conseqüentemente, a regressão para aquém da própria

noção de direito.

[...] a junção entre abstração, axiomatização e subjetivismo, que permitiu aos autores da época moderna – notadamente os da corrente jusnaturalista racionalista – constru-ir axiomaticamente uma ciência de direito fundada na primazia do sujeito. Subtende-se que este último é sujeito de direitos; isto é, titular de direito subjetivos.A idéia de que os valores estabelecidos na base dos fundamentos de nossos direitos, pelos filó-sofos europeus da época moderna, seriam universais, penetrou tão profundamente nas mentalidades que a encontramos nos mínimos recantos da cultura ocidental [...]57.

Não por acaso, todas as versões do anti-humanismo, à direita ou à esquerda consagram

a intolerância como estilo, a violência como método e a irracionalidade como conteúdo. Por

esta via, que se renova contemporaneamente no abandono e descaso aos Direitos Humanos, o

que se perde de vista, sempre, são os indivíduos concretos. Afinal, os particularismos não

podem conceber as pessoas como intransponíveis. As plataformas extremas apenas o eviden-

ciam pelo que possuem de incontrastável. Assim, como o exemplifica Rolim, Hitler podia

falar: "[..] do nada do ser humano individual e da sua existência prolongada na imortalidade

visível da nação58." No entanto, a realidade histórica objetiva demonstrou que o ser humano e

o desenvolvimento pleno de suas potencialidades é o que importa verdadeiramente, indepen-

dente dos marcos configurados das fronteiras, sejam elas de caráter geográfico, cultural ou

social, de maneira incondicionada, visto que elas extrapolam em muito suas circunstâncias. O

autor preconiza que os conceitos de raça e classe social emergiram na experiência totalitária

como particularismos absolutos, porque estavam, de uma forma ou outra, no centro de ideolo-

gias cuja pretensão foi a de revelar o absoluto, quer fosse como natureza ou sentido da histó-

ria. Essas experiência demonstraram à humanidade o que há de temível na pseudo idéia de

verdade e sua virulência frente ao ideal democrático. Não obstante, demonstram mais pelo

57 Idem. 58 ROLIM, Marcos. A universalidade como princípio. Disponível em: <http://www.rolim.com.br/cronic/html>. Acesso em 27 mar. 2006.

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totalitarismo, mesmo porque é de conhecimento que a figura do mal radical neste século só

pode ser vitoriosa se conseguir destruir o princípio da universalidade, o mesmo princípio que

sustenta a luta pelos Direitos Humanos59.

Os ataques contrários à nova universalidade dos direitos fundamentais são verdadeiros

disparates. A nova universalidade dos direitos fundamentais os coloca assim, desde o princí-

pio, num grau mais alto de juridicidade, concretismo, positividade e eficácia. É universalidade

que não exclui os direitos da liberdade, mas primeiro os fortalece com as expectativas e os

pressupostos de melhor concretizá-los mediante a efetiva adoção dos direitos da igualdade e

da fraternidade. A nova universalidade procura subjetivar, de forma concreta e positiva, os

direitos da tríplice geração na titularidade de um indivíduo que antes de ser o homem deste ou

daquele País, de uma sociedade desenvolvida ou subdesenvolvida, é, pela sua condição de

pessoa, um ente qualificado por sua pertinência ao gênero humano, objeto daquela universali-

dade60.

O processo de fundamentalização, constitucionalização e positivação dos direitos fun-

damentais colocou o ser humano (o indivíduo, a pessoa, o homem) como centro da titularida-

de de direitos. A delimitação dessa titularidade gera alguns problemas, ou seja, todos os indi-

víduos terão direitos reconhecidos pelas normas dos direitos fundamentais, ou serão apenas os

cidadãos do país regido pela legislação os únicos dotados de subjetividade jurídica para que

lhes seja atribuída a titularidade de direitos fundamentais. Outro problema está relacionado ao

fato de que somente as pessoas naturais têm direitos ou a titularidade de direitos estende-se

também a substratos sociais. Um terceiro problema relacionado pelo autor é quando começa e

acaba a titularidade de direitos fundamentais61.

59 ARNAUD, André-Jean. op. cit. 60 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 13. ed. São Paulo : Malheiros, 2003. 61 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6. ed. Lisboa : Grá-fica de Coimbra, 1998.

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O princípio fundamental da moral é a universalidade. As normas morais devem poder

ser aceitas por todos os indivíduos envolvidos na situação em que serão aplicadas. O princípio

da universalidade exige que as normas decorrentes da aplicação desse princípio sejam aceitas

sem coação por todos os concernidos. Defendendo este princípio, o autor contesta o relativis-

mo ético. De acordo com a tradição Kantiana, o autor alemão opta por uma moral cognitivis-

ta, significando que é através da razão que se atinge o ponto de vista moral. Não há outra fa-

culdade humana capaz de definir a lei moral a não ser a razão. Não é o coração ou qualquer

tipo de instinto ou intuição. A moral está ligada à razão e ao conhecimento62. “Os juízos mo-

rais têm um conteúdo cognitivo; eles não se limitam a dar expressão às atitudes afetivas, pre-

ferenciais ou decisões contigentes de cada falante ou ator. A ética do Discurso refuta o ceti-

cismo ético, explicando como os juízos morais podem ser fundamentados”63.

1.4 A INFLUÊNCIA DOS PRINCÍPIOS LIBERAIS

Objetivando melhor entendimento e interconexão com os elementos constitucionais, é

importante a exposição dos dois princípios da justiça descritos por Rawls:

Primeiro: Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de li-berdades básicas iguais, desde que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para as outras; Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vanta-josas para todos dentro dos limites do razoável, e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos64.

O primeiro princípio tem prioridade lexical sobre o segundo, em que o princípio da i-

gualdade eqüitativa de oportunidades deve ser considerado antes do princípio da diferença. A

bipartição dos princípios da justiça de Rawls está na distinção entre liberdades e direitos bási-

cos e benefícios econômicos e sociais. O primeiro princípio teria a função primordial de proi-

62 HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. 63 Id., p. 47 64 RAWLS, John. Op. cit. p. 64.

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bir desigualdades econômicas e sociais radicais, presumindo que as provisões sócio-

econômicas são partes integrantes do primeiro princípio, constituindo-se em requerimento

essencial para que os valores eqüitativos das liberdades políticas sejam protegidos65.

Na interpretação de Vita, “a prioridade lexical do primeiro princípio sobre os outros

dois, como propõe Rawls, somente pode ter lugar uma vez que as necessidades básicas dos

indivíduos tenham sido satisfeitas, entendendo-se por necessidades básicas aqueles interesses

vitais relacionados, por exemplo, ao saneamento básico e ao atendimento médico.66

Nagel caracteriza os dois princípios da justiça de Rawls com o seguinte comentário:

Notemos que o primeiro princípio é um princípio de igualdade estrita, e o segundo é um princípio de desigualdade permissível. O primeiro princípio se aplica mormente às estruturas constitucionais e às garantias dos sistemas político e legal, e o segundo à operação dos sistemas social e econômico, particularmente com relação à maneira que elas podem ser afetadas por políticas tributárias e várias interferências relacio-nadas à previdência social, ao emprego, à compensação de desabilidades funcionais, aos cuidados com as crianças, à educação, à assistência médica, entre outros67.

Por conter elementos constitucionais e as garantias dos sistemas político e legal68, o

primeiro princípio deve ter prioridade sobre o segundo, que diz respeito às operações dos sis-

temas sociais e econômicos, tal como estas podem ser afetadas pelas políticas tributárias e

outros assuntos, como a seguridade social, o emprego, o atendimento aos portadores de neces-

sidades especiais, auxílio maternidade, educação e saúde. Com relação à prioridade lexical do

primeiro princípio da justiça sobre o segundo e a prioridade do princípio da igualdade eqüita-

tiva de oportunidades sobre o princípio da diferença, Vita afirma que essa disposição pode ser

interpretada da seguinte forma:

Ao comparar diferentes arranjos institucionais da ótica da justiça, devemos primeiro selecionar aqueles em que as liberdades civis e políticas encontram-se adequada-mente protegidas (prioridade do primeiro princípio) e em que as instituições e políti-cas de promoção da igualdade socioeconômica não exigem, por exemplo, a conscrição ao trabalho (prioridade da primeira parte do segundo princípio); em seguida, seleciona-

65 POGGE, Thomas W. Realizing Rawls [Percebendo Rawls]. Ithaca: Cornell, 1989. p. 138. 66 VITA, Álvaro de. Op. cit. p. 212. 67 NAGEL, Thomaz. A Última palavra. Trad. de: Desidério Murcho. São Paulo : Gradiva, 1999. p. 66. 68 SUNSTEIN, Cass R. Beyond the Republicam Revival. HeinOnline, 97 Yale L. J. 1539 (1987-1988).

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mos aquele arranjo institucional no qual a distribuição de bens primários é igualitária (ou mais igualitária) de acordo com o critério estabelecido pelo princípio da diferença69.

Na posição original os princípios da justiça são escolhidos numa lista oferecida às par-

tes. “Inicio fazendo um esboço da natureza da demonstração das concepções da justiça, e ex-

plicando como as alternativas se apresentam de modo que as partes devam escolher a partir de

uma lista definida de concepções tradicionais”70.

Uma lista de liberdades básicas iguais, abrangidas pelo primeiro princípio da justiça

deve conter liberdade de pensamento e de consciência, liberdades políticas (o direito de votar

e participar da política, por exemplo) e liberdade de associação, como os direitos e liberdades

especificados pela liberdade e integridade (física e psicológica) das pessoas; e finalmente, os

direitos e liberdades cobertos pelo Estado de Direito71.

Na ótica de Rawls a liberdade é o valor proeminente e, talvez, o principal, senão o

maior fim da política e da justiça social.

Na visão de Rawls a liberdade é o valor proeminente e provavelmente o maior fim da

política e da justiça social. Na história do pensamente democrático sempre foi enfatizado a

conquista de certas e específicas liberdades e direitos consolidados e assegurados constitucio-

nalmente (uma carta de direitos ou a Declaração dos Direitos do Homem, por exemplo).

Ralws afirma que a justiça como eqüidade segue esta visão. Essa lista pode ser esboçada de

forma histórica (onde os regimes democráticos, com uma lista de direitos e liberdades básicas

parecem ser mais estáveis e seguros, sendo historicamente os melhores sucedidos) e analítica

(em que são consideradas as liberdades que providenciam as condições políticas e sociais es-

69 VITA, Álvaro de. A Justiça igualitária e seus críticos. São Paulo : Edunesp, 2000. 70 RAWLS, John. Op. Cit. p. 127. 71 YABIKU, Roger Moko. Os princípios do direito público e o Estado: a dialética dos interesses públicos e dos interesses privados na teoria da justiça de John Rawls e na teoria da ação comunicativa de Jürgen Habermas. Jus Navigandi, Teresina, a. 9, n. 742, 16 jul. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7010>. Acesso em: 20 abr. 2006.

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senciais para o adequado desenvolvimento e total exercício dos dois poderes morais de pesso-

as livres e iguais.72

John Rawls considera que o mínimo social para prover as necessidades básicas de to-

dos os cidadãos é um elemento constitucional. Ambos os princípios da justiça se aplicam à

estrutura básica da sociedade. Porém, o primeiro princípio da justiça também se aplica inte-

gralmente à Constituição, a norma magna de uma ordem jurídica. Constituição pressupõe a

idéia de sujeição e limitação a seus termos, inclusive da mais graduada autoridade política de

um país, segundo a forma e a força da Lei. É ainda a Lei fundamental de uma nação, contra a

qual não podem subsistir outros atos, opiniões ou decisões73.

Bonavides afirma que “a perspectiva liberal assinala o indivíduo como valor primário

e referencial da sociedade humana”74. Esta prioridade é decorrente da noção individualista da

liberdade, segundo a qual todo indivíduo é capaz de possuir uma concepção válida sobre a

vida digna e legitimado a procurar efetuá-la, independente de obstáculo alheio. Ao conceber o

pluralismo, a partir desta ótica, o pensamento liberal encara como prioridade a liberdade pri-

vada e a escolha do plano racional de vida, supondo os indivíduos livres como agentes no

processo de possibilidades da vida social. A noção de sujeito emerge na síntese de que, em

rigor, todas as expectativas são legítimas ante a capacidade de autodeterminação moral dos

indivíduos. Deste modo, há afirmação de metodologia que implica um ponto de vista moral

mínimo, desautorizando relativismo quanto à associação política. A suposição central é de

que, diante do pluralismo dos projetos pessoais de vida, sujeitos racionais livres e iguais rela-

cionam-se em concordância a princípios passíveis de aceitação geral, sendo-lhes possível o

estabelecimento de ajustes normativos válidos75.

72 Id. 73 Ibid. 74 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. 75 BAVARESCO, Agemir; et. al. Metamorfoses do Estado Constitucional e a Teoria Hegeliana da Constituição. Revista Eletrônica Estudos Hegelianos, Pelotas, n. 1, dez. 2004. Disponível em: <http://www.hegelbrasil.org/rev01a.htm#_ftnref1>. Acesso em 21 abr. 2006.

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Rawls escreve que “certas liberdades – as políticas e de pensamento e associação –

devem ser garantidas por uma Constituição”76. Por sua vez, a Constituição deriva de um poder

constituinte, que é institucionalizado na forma de um regime, sendo um poder superior, distin-

to do poder ordinário, que confere, entre outros, o direito de votar e concorrer a um cargo ele-

tivo, a garantia a uma carta de direitos básicos e procedimentos para emendar a própria Cons-

tituição.

O modelo da Constituição-Garantia é configurado pelo pensamento liberal, referente à

compreensão da ordem jurídica fundada na legitimação constitucional como atividade de pre-

servação da autonomia privada frente à deliberação pública em um sistema em que é possível

saber-se qual indivíduo possui qual direito em situações particulares. A constituição se rela-

ciona com a democracia, ao limitar o processo público de deliberação às definições que todos

poderiam subscrever, já que nenhuma concepção individual sobre o bem e a vida digna pode

ser sobreposta às demais e para que todos possam buscar suas realizações pessoais. Pensar,

assim, a Constituição supõe compromisso com a elevação dos direitos fundamentais, acima de

todas as concepções de bem e tratá-la como superposição de normas e princípios dotados de

uma qualidade deontológica77.

Os princípios da justiça são adotados numa seqüência de quatro estágios: no primeiro

(posição original) as partes escolhem os princípios da justiça com o conhecimento limitado

pelo véu da ignorância, que, nas etapas seguintes, é progressivamente dissipado; no segundo

(o da assembléia constituinte), é aplicado o primeiro princípio, pois é aqui que os elementos

constitucionais são assegurados e já se tem uma certa noção, em face da Constituição, de co-

mo os arranjos políticos podem ser realizados na prática; o terceiro (o legislativo) é aquele em

que se elaboram as Leis, segundo o que a Constituição permite. É neste estágio que se aplica o

segundo princípio, que igualmente resvalará em toda a legislação social e econômica e em

76 RAWLS, John. Op. cit. p. 212. 77 CITTADINO, Gisele. Op. cit. p. 147.

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vários assuntos neste sentido; o quarto é aquele em que as regras são aplicadas pelos legisla-

dores e interpretadas pelo Poder Judiciário78.

A dificuldade contramajoritária operada pelas implicações do modelo liberal está as-

sentada no problema relativo à legitimidade de juizes em invalidar regras construídas pelo

legislador em uma democracia. A questão central refere-se a que juizes não são eleitos. São

duas as propostas liberais para solução dessa dificuldade: a primeira subordina o controle de

constitucionalidade ao espírito e valores diluídos na população (monismo constitucional).

Trata-se da compreensão de que governo eleito livremente é governo ilimitado pela democra-

cia. Não há maior autoridade que a da maioria parlamentar e o Poder Judiciário só intervém

onde houver falha no procedimento que a apura. A segunda posição sustenta a subordinação

da democracia aos direitos fundamentais. Trata-se do fundacionismo de direitos, que afirma

os direitos como antecedentes às decisões do corpo político e o efetivo reconhecimento destes

direitos no discurso de aplicação configura a correta interpretação da constituição em um Es-

tado de Direito. Esta perspectiva não nega a dificuldade contramajoritária, mas a resolve me-

diante a noção de que a democracia não é um valor supremo, sendo subordinada aos direitos

fundamentais. Nesta senda, a falta de representatividade dos juizes é compensada por sua fun-

ção mediadora entre democracia e direitos. Sob este modelo, o povo, diretamente ou represen-

tado, não tem autoridade para suplantar direitos fundamentais. Há compromisso com a demo-

cracia, mas primordialmente com os direitos fundamentais, pois o povo não é uma entidade

constante79.

78 RAWLS, John. Op. cit. p. 211. 79 YABIKU, Roger Moko. Op. cit.

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2 O COMUNITARISMO

2.1 WALZER E AS ESFERAS DA JUSTIÇA: UMA DEFESA DO PLURALISMO E DA IGUALDADE.

Walzer80 é identificado como um dos principais proponentes do Comunitarismo, jun-

tamente com Alisdair MacIntyre e Michael Sandel. Há muito tempo que sua filosofia política

se fundamenta nas tradições e culturas de sociedades particulares. A visão comunitarista enfa-

tiza a cultura e o grupo social que conferem identidade aos indivíduos reduzidos pelas tendên-

cias desenraizadoras da sociedade liberal. O indivíduo não é anterior à sociedade, é construído

por fins que não escolhe, mas que descobre em função de sua vida em contextos culturais

compartilhados na sociedade. Aqui é que se destacam os aspectos culturais e políticos da co-

munidade como elementos centrais na organização do ego individual.

A idéia de justiça distributiva é, para Walzer, tão abrangente, que traz todo o mundo

dos bens a uma reflexão filosófica81. A sociedade humana se reúne para dividir, compartilhar

e trocar. O lugar do indivíduo na economia, sua situação na ordem política, a reputação entre

os pares e as posses materiais são oriundas de outros seres humanos. Defende que não se deve

limitar a defesa da igualdade a uma esfera (econômica, por exemplo), mas que esta deve bus-

car-se em várias esferas, como da amizade, dos negócios, do amor, lazer, educação, entre ou-

tras. A isso ele chama de igualdade complexa, visa precisamente tornar a igualdade compatí-

80 Michael Walzer é nascido no dia 3 de março de 1935. É teorista político e filósofo de sociedade, política e éticas. Atualmente atua como um professor no Instituto para Estudos Avançados em Princeton, Nova Jersey, Estados Unidos da América. Já escreveu uma gama de artigos sobre o que considera guerras injustas, naciona-lismo, etnicidade, justiça econômica, crítica, radicalismo, tolerância, e obrigação política. Além do trabalho acadêmico ele é editor-chefe da Revista Dissensão, um periódico de esquerda americana, além de contribuir também como editor contribuinte na revista A República Nova. Walzer atua também como articulista do diário acadêmico Philosophy & Public Affairs. Já escreveu vinte e sete livros e publicou mais de trezentos artigos, composições e revisões. É também associado a várias organizações filosóficas, inclusive a Sociedade Filosófica americana. Dentre suas várias obras literárias, o presente estudo destaca Esferas da Justiça, onde aborda com profundidade o pluralismo e a igualdade, esteios do comunitarismo. 81 ARMSTRONG, Chris. Philosophical Interpretation in the Work of Michael Walzer. 2000. Politcs, n. 20 (2), p. 87-92.

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vel com essa diferença de conhecimento especializado a respeito dos recursos, a qual define:

"Em termos formais, igualdade complexa significa que a posição de nenhum cidadão em uma

esfera ou em relação a um bem social pode ser minada por sua posição em alguma outra esfe-

ra, em relação a algum outro bem 82". Em outras palavras, a suposta superioridade de um ci-

dadão em uma determinada esfera não lhe garante superioridade em uma esfera distinta da-

quela. O crucial é que nenhum bem, ou posição, seja dominante, isto é, seja mais importante,

em sentido absoluto, do que outro bem ou posição. Portanto, em uma sociedade justa, um de-

terminado bem, como o dinheiro, por exemplo, não deve prevalecer sobre outros bens, como

educação, saúde, alimentação, trabalho digno, lazer, entre outros.

Quando se refere ao regime que chama de igualdade simples, Walzer cita como exem-

plo o fato de, em uma sociedade, tudo estar à venda e todo cidadão ter tanto dinheiro quanto

qualquer outro. A igualdade é multiplicada por meio do processo de conversão, até estender-

se a todos os bens sociais. Para o autor “o regime de igualdade simples não dura muito, pois o

progresso posterior da conversão, o livre intercâmbio no mercado, com certeza trará desigual-

dades a reboque83”. Sustentar a igualdade simples no decorrer do tempo demandaria o que

Walzer chama de lei monetária (como as leis agrárias da antiguidade ou a licença sabática

hebraica, que proporcionasse um retorno periódico à condição original).

Walzer prega que a eliminação do monopólio do dinheiro neutraliza seu predomínio,

ou seja, entram em jogo outros bens, vindo a desigualdade a assumir novos rumos. Ele cita

um exemplo: se tudo está à venda e todos possuem dinheiro, todos têm, por exemplo, capaci-

dade de pagar pela educação dos filhos.

Entretanto, outros bens sociais são oferecidos somente para aqueles que possuem di-

plomas. Logo, a escola estará em meio a um sistema competitivo, em que o dinheiro não é

mais predominante, sendo substituído pelo talento natural e pela educação recebida de berço,

82 id., p. 18. 83 Ibid., p. 16.

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que por sua vez vai gerar melhores cargos, mais títulos e riqueza. “É isso que a justiça requer;

o talento será revelado; e, em todo caso, as pessoas talentosas ampliarão os recursos disponí-

veis para todas as outras. Assim, nasce a meritocracia84 de Michael Young, com todas as desi-

gualdades que a acompanham85”. Nesse sentido, Walzer acredita ser essa a finalidade do prin-

cípio da diferença de John Rawls, segundo o qual as desigualdades se justificam somente se

forem criadas para trazer, e realmente trouxerem o maior benefício possível para a classe so-

cial menos privilegiada, ou seja, o princípio da diferença é a restrição imposta aos talentosos,

depois de desfeito o monopólio da riqueza.

A igualdade simples exigiria intervenção contínua do Estado, mesmo porque regula-

mentações são, necessariamente, dever do Estado, que estaria buscando eliminar ou restringir

monopólios incipientes e reprimir novas formas de predomínio. Outro aspecto a ser conside-

rado é que sempre haverá grupos procurando monopolizar e usar o Estado com o propósito de

consolidar seu controle dos outros bens sociais, ou então o Estado será monopolizado pelos

seus próprios agentes (segundo a Lei de Ferro da oligarquia)86. Sendo a política o caminho

mais curto para o domínio e talvez o bem mais importante (e certamente mais perigoso), seria

necessário o estabelecimento de poderes e contra poderes (limitação) constitucionais distribu-

ídos de forma abrangente.

O maior risco do governo democrático reside no fato de o mesmo vir a ser fraco para o

enfrentamento do ressurgimento dos monopólios da sociedade em geral, a força social dos

plutocratas, burocratas, tecnocratas, meritocratas, entre outros. Teoricamente, o poder político

84 A palavra meritocracia provavelmente apareceu pela primeira vez no livro Rise of the Meritocracy, de Michael Young (1958). No livro carregava ela um conteúdo negativo, pois a história tratava de uma sociedade futura na qual a posição social de uma pessoa era determinada pelo QI e esforço. Young utilizou a palavra mérito num sentido pejorativo, diferente do comum ou daquele usado pelos defensores da meritocracia. Para estes, mérito significa aproximadamente habilidade, inteligência e esforço. (Uma crítica comumente feita à meritocracia é a ausência de uma medida específica desses valores, e a arbitrariedade de sua escolha). 85 Ibid., p. 17. 86 Expressão usada em 1911 pelo sociólogo Robert Michels para caracterizar o risco inerente a qualquer partido político de que os eleitos tomem o lugar dos eleitores e a estrutura administrativa da organização deixe de ser um meio para se tornar um fim autônomo: Em seu célebre estudo ele afirma que aquele que diz organização, diz oligarquia (ABRAMOVAY, 2006).

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é o bem predominante na democracia, sendo conversível da maneira que os cidadãos escolhe-

rem. Já na prática, romper o monopólio do poder neutraliza seu predomínio. O poder político

não pode ser amplamente compartilhado, sendo submetido à força de todos os outros bens que

os cidadãos já possuem ou pretendem possuir. Se quiser alcançar os objetivos a ele atribuídos

pelo princípio da diferença ou qualquer lei igualmente intervencionista, o Estado precisa ser

muito poderoso. Walzer completa, afirmando que:

Apesar de tudo, o regime de igualdade simples poderia dar certo. Pode-se imaginar uma tensão mais ou menos estável entre os monopólios emergentes e as restrições políticas, entre a reivindicação do privilégio feita pelos talentosos, digamos, e a im-posição do princípio da diferença, e, então, entre os agentes da imposição e a consti-tuição democrática. Mas desconfio que as dificuldades se repetirão, e que em muitas ocasiões o único remédio para o privilégio privado será o estatismo, e a única fuga do estatismo será o privilégio privado87.

Esses problemas são advindos do tratamento do monopólio, e não do predomínio, co-

mo questão central da justiça distributiva. As lutas distributivas da era moderna começam

com uma guerra contra o predomínio único da aristocracia na posse da terra, dos cargos e das

honras, o que parece um monopólio pernicioso, em virtude da sua fundamentação em berço e

linhagem, que nada têm a ver com os indivíduos, excetuando-se a riqueza, o poder ou a edu-

cação, os quais podem ser conquistados.

Walzer refere-se à redução de predomínio e não à quebra do monopólio como forma

de reformular e viver com a verdadeira complexidade das distribuições. “Imaginemos agora

uma sociedade na qual os diversos bens sociais sejam monopolizados –como são, de fato, e

sempre serão, a não ser que haja intervenção contínua do Estado –mas na qual nenhum bem

em especial seja geralmente conversível”88. Para o autor, essa é uma sociedade igualitária

complexa e, embora hajam muitas desigualdades pequenas, estas não serão multiplicadas pelo

processo de conversão e nem serão a soma de diversos bens, uma vez que a autonomia das

distribuições será tendente à produção de uma diversidade de monopólios locais, pertencentes

87 Ibid., p. 19 88 Ibid., p. 21

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a grupos diversos. Ele afirma não ser sua pretensão comprovar que a igualdade complexa se-

ria mais estável que a igualdade simples. Entretanto, sua inclinação reside no sentido de achar

que abriria o caminho para formas mais difusas e particularizadas de conflitos sociais. Ocorre-

ria que a resistência à conversibilidade seria mantida em grande escala por pessoas comuns

dentro de suas esferas de competência e controle, sem, contudo, necessitar da ação do Estado

em grande escala.

Walzer se apega à defesa da igualdade complexa expressas por Pascal em Pensamen-

tos e Marx em seus primeiros manuscritos. A partir das afirmações de Pascal e Marx, Walzer

refere-se às qualidades e os bens sociais, os quais têm suas próprias esferas de atuação, onde

exercem suas influências livres, espontâneas e legítimas. Existem conversões prontas ou natu-

rais que provêm do sentido social de determinados bens, e devido a ele são intuitivamente

plausíveis. Apela-se para a interpretação comum e, ao mesmo tempo, contra a aquiescência

comum nos padrões legítimos de conversão. Ou é um apelo da aquiescência ao ressentimento.

Pascal afirma haver algo errado na conversão da força em fé. Em termo políticos, ele quer

dizer que nenhum governante tem o direito de comandar opiniões meramente devido ao poder

que detém. Mas acrescenta também que não tem o direito de reivindicar influência sobre os

atos individuais e complementa afirmando que, se o governante quiser fazê-lo, precisa, antes

de mais nada, ser persuasivo, prestativo e entusiástico. A força dessas argumentações é de-

pendente de interpretação compartilhada do saber, da influência e do poder. A segunda afir-

mação de Pascal e Marx é que, não levar em conta esses princípios, é tirania. É tirânico o uso

do poder político para ter acesso a outros bens. Os dois invocam os autores medievais para

definir tirania: os príncipes se tornavam tiranos, quando se apoderavam das propriedades ou

dominavam a família dos súditos. Na vida política (de maneira mais ampla) o predomínio de

bens resulta no poder sobre o povo89.

MICHELMAN, Frank I. The constitution, social rights, and liberal political justification. I. Con, vol. 1, n. 1, 2003. p. 13-34.

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O regime de igualdade complexa é o contrário da tirania, porque define um conjunto

de relações de modo que torne o predomínio impossível. Formalmente, a igualdade complexa

significa que a situação de nenhum cidadão em uma esfera ou com relação a um bem social

pode definir sua situação em qualquer outra esfera, com relação a qualquer outro bem.

Walzer indaga: “[...] e se o predomínio fosse eliminado, estabelecida a autonomia das

esferas e as mesmas pessoas tivessem êxito em uma esfera após outra, triunfantes em todos os

grupos, acumulando bens sem a necessidade de conversões legítimas? 90”. Para ele isso cer-

tamente resultaria em uma sociedade desigual, muito embora viesse a indicar mais enfatica-

mente que a sociedade de iguais não é uma possibilidade estimulante.

Walzer cita três analogias possíveis para a comunidade política: os países podem ser

pensados como bairros, clubes ou famílias. As escolas, as burocracias e as empresas também

distribuem status econômico e social em forma de afiliação. Para ele, muitas associações do-

mésticas são parasitárias de seus membros, confiando nos procedimentos de outras associa-

ções; os sindicatos dependem das normas de admissão das empresas; as associações de pais e

mestres dependem do grau de abertura das vizinhanças ou da seletividade das escolas particu-

lares. Partidos políticos costumam ser parecidos com clubes e congregações religiosas se pa-

recem com famílias. Os países poderiam ser entendidos como clubes nacionais ou famílias.

Indivíduos ou famílias se mudam para determinado bairro por motivos próprios; esco-

lhem, mas não são escolhidos e não é somente essa escolha que decide a mudança, mas tam-

bém a capacidade de encontrar emprego e local para morar, quando o ideal seria que o merca-

do funcionasse independentemente da composição do bairro. Entretanto, o Estado ratifica essa

independência, recusando-se a impor pactos restritivos e tomando providências que evitem ou

amenizem a discriminação do trabalho.

90 Ibid., p. 24-25.

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Muito embora a não existência de acordos institucionais capazes de manter a pureza

étnica, as leis de zoneamento às vezes mantêm a segregação de classes. Relativamente a

quaisquer critérios formais o bairro é uma associação aleatória, “não é uma seleção, mas, pelo

contrário, um espécime inteiro de vida, graças à própria indiferença de espaço91”. Na econo-

mia política clássica era argumentação comum que o território nacional deveria ser tão indife-

rente quanto o espaço local, tanto que os defensores do livre-comércio no século XIX também

defendiam a imigração irrestrita e a perfeita liberdade contratual, sem restrições políticas.

Autores como Henry Sidgwick era de opinião de que a sociedade internacional devia formar-

se como um mundo de bairros, com indivíduos se movimentando livremente, procurando seu

progresso particular, sendo a única função do Estado manter a ordem de determinado territó-

rio., sem, contudo, decidir quem vai habitá-lo ou mesmo restringir o gozo de suas vantagens

naturais a qualquer grupo de indivíduos. E, a partir do momento em que a superpopulação

gerar exaustão ou desvalorização, é presumível que as pessoas se mudarão para a jurisdição

de novos grupos de autoridades.

Walzer92 comenta que Sidgwick achava que isso talvez fosse o ideal do futuro, mas o-

ferecia três argumentos contra um mundo de bairros no presente. Primeiramente, tal mundo

não permitiria o patriotismo, gerando falta de coesão interna aos agregados informais que

provavelmente seriam resultantes da movimentação livre de indivíduos (os vizinhos seriam

estranhos entre si); em segundo lugar, esse livre trânsito poderia interferir de alguma maneira

no empenho de elevar o padrão de vida das classes menos favorecidas (pobres) de determina-

do país, já que não seriam tomadas as mesmas providências e com a mesma energia e o mes-

mo êxito em todas as localidades do mundo; em terceiro lugar, a promoção da cultura moral e

intelectual e o trabalho eficiente nas instituições políticas poderiam ser derrotados pela cria-

ção constante de populações heterogêneas.

91 Ibid., p. 47. 92 WALZER, Michael. op. cit.

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Sidgwick apresentou seus três argumentos na forma de uma série de ponderações utili-

taristas que pesam contra as vantagens da mobilidade da mão-de-obra e da liberdade contratu-

al, o que, para ele parecem ter caráter bem diferente, uma vez que os dois últimos argumentos

retiram sua força do primeiro, mas somente se o primeiro for concebido em termos não-

utilitaristas. Em sua opinião os seres humanos mudam-se muito, não porque gostem de se

mudar. Em sua maioria têm inclinação para ficar onde estão, a não ser que a vida se torne

difícil ali. Enquanto alguns deixam suas casas para se tornarem estrangeiros em novas terras,

outros permanecem onde estão e se indignam com os estrangeiros presentes em sua terra. Por

conseqüência, se os Estados um dia se tornarem bairros, provavelmente os bairros se tornem

pequenos Estados, com seus membros se organizando para a defesa da política e cultura lo-

cais, contra os estrangeiros.

2.2 DIREITO COMUNITÁRIO

2.2.1 Aspectos históricos

Comunitarismo é um conceito teorizado por Charles Taylor, Michael Walzer, Alasdair

McIntyre, que valoriza a comunidade como um bem em si, assim como a igualdade e a liber-

dade, sendo o espaço no qual os indivíduos possam se exprimir e partilhar valores. Seus críti-

cos vêem nesse conceito a teorização dos guetos.

Os Estados Unidos são apontados como o berço do comunitarismo nos anos 70, como

uma reação ao projeto de renovação de liberalismo de Rawls93. A teoria política anglo-

americana foi dominada pelo aparecimento do comunitarismo que, tendo se desenvolvido em

aberta polêmica com o liberalismo em geral e o liberalismo rawlsiano em particular, pode ser

entendido como uma corrente de pensamento que essencialmente contesta a insuficiência da

teoria e prática liberal. Esta contestação e as respostas a que deu lugar animaram o debate 93 CALHOUN, Graig. Nationalism, Political Community and the Representation ou, Why Feeling at Home is not a Substitute for Republic Space. European Journal of Social Theory, 2(2): 217-231

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ético-político, sobretudo do continente americano onde, até então, num quadro geral de crise

do socialismo, se antevia uma incontestada hegemonia do liberalismo, na teoria e prática, tan-

to econômica como política. O desafio comunitarista a alguns dos axiomas liberais daria, as-

sim, uma nova vida ao debate dentro do liberalismo.

Ao contrário do que a designação comunitarismo possa indicar, não é tanto a questão

da comunidade que está em causa no centro da controvérsia, mas a forma de entendimento do

sujeito liberal e da justiça ligada à distribuição de recursos sociais. Embora seja clara a impor-

tância da comunidade como depositária de valores coletivos que conduzem a vida humana,

como dizem Cohen e Arato (1992), o que mobiliza o debate é então, por um lado, uma ques-

tão epistemológica – a questão de saber se é possível defender uma concepção universalista

(deontológica) de justiça sem pressupor um conceito substantivo (histórica e culturalmente

situado) de bem – e, por outro, uma questão política, que é a de saber se o ponto de partida

para a liberdade devem ser os direitos individuais ou as normas partilhadas da comunidade.

Esta disputa entre comunitários e liberais pode ser vista como um novo capítulo de um con-

fronto filosófico de longa data, dado que a discussão pertence, naturalmente, à grande tradição

filosófica da oposição entre universalismo e contextualismo, à oposição entre comunidade e

sociedade, ou ao problema dos termos da autonomia moral.

No Brasil, entre os anos de 1960 a 1963 registra-se grande ênfase na educação popu-

lar, o que resultou na gestação de uma consciência de caráter nacional–popular e no engaja-

mento de amplas camadas sociais na luta pelas reformas de estrutura. Após 1964, a integra-

ção, através da ação comunitária passa a ser postulada como fundamental para a harmonia do

sistema, devendo ser estimulada a participação comunitária para preservar a harmonia, a con-

tinuidade e estabilização do sistema. A abordagem de comunidade é vista como um todo regi-

do pelo consenso, com base na identificação de problemas e interesses comuns. Comunidade

como unidade consensual leva a um tipo de intervenção onde os problemas são tratados, não

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por interesse de classes, mas por grupos sociais definidos por faixa etária, sexo, entre outros94.

Nas práticas estatais no campo das políticas sociais, destaca-se a implantação de Centros So-

ciais Urbanos como principal estratégia de intervenção voltada para a ação comunitária.

Nos período compreendido entre os anos de 1970 e 1980, já num cenário de declínio

do regime militar, o destaque em termos do entendimento de comunidade é dado pelo movi-

mento das chamadas Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica. É quando a noção de

comunidade ganha importância como dimensão legitimadora das iniciativas religiosas ou go-

vernamentais no plano local. Segundo Sader:

[...] foi a matriz discursiva das pastorais da igreja, inspirada em Medellín, que pre-conizava a premência da ação, que mobilizou as Comunidades Eclesiásticas de Base em todo o país e estas se multiplicaram rapidamente, alcançando, em 1981, o total 80 mil comunidades de base. [...] os escritos sobre Comunidades Eclesiásticas de Base eram imbuídos de valores comunitários que tendiam a confundir o que “deve ser” com “o que é”. Em conseqüência, essa abordagem tende a não reconhecer dife-renças e níveis de participação distintos no seu interior, visto que, trata-se de “co-munidade de iguais”95.

O debate dos temas na dinâmica das Comunidades Eclesiásticas de Base seguia o mé-

todo de ver, julgar e agir das pastorais da Igreja Católica. Nessas práticas, os discursos que se

sobressaiam tinham como temas o povo, a igreja e as autoridades. O povo das comunidades

aparece como expressão dos sujeitos autônomos que compreendem a caminhada da liberta-

ção. São apontadas muitas ambigüidades nesse discurso.

Nas palavras de Semeraro: “a ‘onda’ comunitarista se apresenta como uma crítica ao

individualismo, à dissolução dos vínculos familiares, comunitários e nacionais, bem com a

toda visão contratualista e mercantilista introduzida na sociedade atual pelo projeto da moder-

nidade” 96. Para os comunitaristas, o eu sem vínculo dos liberais é, antes de tudo, um indivíduo

destituído de dimensão moral e comunitária e não um sujeito livre e autônomo como defen-

94 AMMANN, S. B. Ideologia do Desenvolvimento de Comunidade no Brasil. São Paulo: Cortez Editora, 1980. p. 85. 95 SADER, E. Quando Novos Personagens entraram em cena. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 156. 96 SEMERARO, G. Gramsci e a Sociedade Civil. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2001. p. 259

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dem estes. Cabe ressaltar que os comunitaristas insistem no bem comum, nos deveres e na

solidariedade para com a sociedade à qual pertencem. Ao contestarem as fragilidades de con-

cepções fragmentárias e formalistas os comunitaristas tendem a enfatizar visões organicistas e

holísticas de realidade. Com muita propriedade, Semeraro não considera as propostas comuni-

tárias apenas como uma reação ao liberalismo, mas atribui a sua maior força à real necessida-

de de solidariedade e de valorização das pessoas para anular os impulsos ao anonimato e ao

desinteresse predominantes no mundo de hoje e que levam à desintegração crescente da soci-

edade atual.

Para os comunitaristas, os valores da solidariedade, da reciprocidade e os laços comu-

nitários irão prevalecer, naturalmente, sobre as leis do mercado e a lógica da política. Nesse

sentido, acrescentam que as virtudes da responsabilidade da colaboração e do altruísmo pode-

rão constituir uma comunidade cívica nos termos de Putnam. Em termos práticos, uma comu-

nidade cívica se caracteriza, primeiramente, pela participação dos cidadãos nos negócios pú-

blicos: na comunidade cívica os cidadãos buscam o que Tocqueville chamava de interesse

próprio corretamente entendido, isto é, o interesse próprio definido no contexto das necessi-

dades públicas gerais, o interesse próprio que é sensível aos interesses dos outros97.

A comunidade cívica tem como eixo central a questão da cidadania, assim entendida

enquanto direitos e deveres iguais para todos. A coesão no âmbito da comunidade pressupõe

relações horizontais de reciprocidade e cooperação, ao contrário de relações verticais de auto-

ridade e dependência. Neste sentido, os líderes devem ser responsáveis por seus concidadãos.

Putnamafirma que: “Tal comunidade será tanto mais cívica quanto mais a política se aproxi-

mar do ideal de igualdade política entre cidadãos que seguem as regras de reciprocidade e

participam do governo”98. Mesmo admitindo a virtuosidade dos cidadãos numa comunidade

97 PUTNAM, R. D. Comunidade e Democracia: a experiência da Itália moderna. 3. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2002. p. 102. 98 Ibid., p. 102.

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cívica, esta não está livre de conflitos, visto que seus cidadãos têm opiniões firmes sobre as

questões públicas, mas, em níveis toleráveis por parte de seus oponentes.

No tocante às concepções e significados da noção de comunidade no contexto brasilei-

ro, estas se vinculam às resignificações do conceito de sociedade civil ao longo das lutas soci-

ais e políticas no país. Neste sentido, destaca-se a análise de Gohn99, que define a sociedade

civil no Brasil como “uma idéia força na construção de alternativas democráticas durante o

regime militar e que depois se transforma no espaço privilegiado de ações políticas mobiliza-

tórias, voltadas para atuar em parceria com diferentes atores sóciopolíticos, em políticas soci-

ais oficiais na esfera pública”. Esta análise que toma como base a conjuntura histórica ressalta

as ambigüidades das políticas sociais a partir da disseminação de estratégias de parcerias com

a comunidade organizada e a noção de capital social difundidas nos anos 90. Esta visão privi-

legia as iniciativas inovadoras expressas nas mais diversas formas de cooperativas e ações

solidárias e ainda as várias possibilidades de participação institucionalizada de cidadãos em

fóruns e conselhos gestores de políticas públicas. Assim, no contexto da reforma do Estado a

sociedade civil é articulada em torno de organizações filantrópicas e comunitárias100. Uma

retrospectiva das ações estatais e práticas mobilizatórias, ao longo das intervenções práticas,

revela os diversos usos e sentidos atribuídos à noção de comunidade no Brasil. Na fase desen-

volvimentista, os conceitos de comunidade e de desenvolvimento de comunidade marcaram

sua história no que se relaciona à atuação dos profissionais de Serviço Social no sentido da

mobilização e organização dos setores populares101. Com redemocratização do país no final

dos anos de 1980, ocorre também o declínio das Comunidades Eclesiásticas de Base, o qual

99 GOHN, M. G. Políticas Públicas e Sociedade Civil no Brasil nas últimas décadas. In: CARVALHO, D. B. B. et al. Novos Paradigmas da Política Social. Brasília: UNB. Departamento de Serviço Social, 2002. 100 MACEDO, Myrtes de Aguiar. O Comunitarismo na nova configuração das políticas socais no Brasil. Disponível em: <http://www.maxwell.lambda.ele.puc-rio.br/>. Acesso em: 24 mar. 2006. 101 Dentre os estudos realizados sobre este momento histórico, destacam-se: o de Safira Bezerra Ammann intitu-lado Ideologia do Desenvolvimento de Comunidade no Brasil (1980) e o de Mariângela Belfiore Wanderley denominado Metamorfoses do Desenvolvimento de Comunidade (1993). Esses trabalhos levantam questões importantes sobre as práticas do desenvolvimento de comunidade na década de 1960 e início dos anos de 1970.

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se acentua no ano de 1990, quando seus militantes passam a integrar os quadros partidários ou

instituições estatais responsáveis pela formulação e execução das políticas sociais públicas.

Compreender o processo de reordenamento das políticas sociais brasileiras, a partir da

década de 90 requer uma incursão nos processos que determinaram a reforma do Estado de

corte neoliberal, particularmente no tocante às mudanças na sua relação com a sociedade. Es-

sas mudanças se manifestam especialmente na conformação de novas formas de gestão social

que envolvem a presença de novos atores sociais, como parceiros do Estado, na provisão e

gestão de bens e serviços sociais públicos. A literatura específica tem identificado esse pro-

cesso pelo seu caráter regressivo, caracterizado no sentido de uma refilantropização no trato

da questão social. Essa interpretação ressalta, como tendência geral, a retomada de formas de

intervenção social fora do registro dos direitos de cidadania o que significa um distanciamento

do modelo de Seguridade Social Pública desenhado na Constituição Federal de 1988. Acres-

centa-se ainda nesse quadro, como dado da realidade, que o agravamento da pobreza em de-

corrência das transformações no mundo do trabalho vem tornando a relação entre Estado e

sociedade mais complexa e contraditória. Essa constatação leva à consideração de que, com

muita pertinência, que o Brasil encontra-se diante de uma atualização do fenômeno da pobre-

za pela presença dos novos excluídos originários da reestruturação produtiva102.

Nesse contexto de acentuada desigualdade social, emergem estratégias distintas no en-

frentamento da questão social, representando projetos societários diferentes na estruturação e

implementação das políticas sociais públicas. Em conseqüência das ações diversificadas pro-

tagonizadas por atores sociais distintos, esse processo é tencionado pela disputa entre a defesa

da universalização dos direitos sociais e a sua negação mediante a afirmação dos princípios de

seletividade e focalização no atendimento às necessidades sociais. A construção do projeto de

proteção social de caráter universalista vem sendo negada pela redefinição do papel do Estado

102 Ibid.

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sob o marco neoliberal que norteia a reforma do Estado brasileiro em curso. Trata-se de um

movimento regressivo em referência à construção do sistema de seguridade social público. É

com a entrada em cena de novos atores na prestação de serviços sociais como representantes

da sociedade que surge, nesta década, a questão da resignificação da categoria comunidade.

No contexto de redefinição das políticas sociais reconfiguradas, este conceito assume, através

das parcerias, um sentido ampliado (seja a família, sejam as organizações não governamen-

tais, sejam as organizações filantrópicas tradicionais e suas formas modernas, aí incluindo a

chamada filantropia empresarial). A intervenção social protagonizada por esses atores não

pode ser identificada com as velhas e tradicionais práticas de gestão filantrópica da pobreza

porque traz inovações na forma de gestão das populações pobres, forjadas em um encapsula-

mento comunitário que, ao negar os princípios universalistas de igualdade e de justiça social,

apaga as noções de direito e de cidadania. A contextualização dessa problemática remete a

uma discussão que tem como eixo central o que vem sendo denominado, na literatura especí-

fica, de erosão da esfera pública103.

Esse marco comunitarista projeta novas formas de intervenção que forjam um univer-

so heterogêneo pelo qual transitam diferentes atores motivados, em sua grande maioria, por

interesses particularistas. Em decorrência, a sociedade, que é redesenhada a partir desse mar-

co, tende a ficar confinada nas particularidades que compõem esse cenário constituído pelos

diferentes grupos sociais existentes o que acarreta perdas das referências totalizadoras e de-

mocráticas. Focalizando, de um modo especial, o campo das políticas sociais, é possível per-

ceber diante das tendências em curso no contexto das mudanças na relação entre Estado e

sociedade nos anos 90, um tipo de reordenamento comunitário dos programas sociais subsidi-

ados pelos fundos públicos e mediados pelos critérios de eficiência e competição do mercado.

A marca dessa nova configuração das políticas sociais foi dada pelo Programa Comunidade

103 Ibid.

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Solidária criado pelo governo federal em 1995. Desta forma, o Programa Comunidade Solidá-

ria, embalado pelo crescimento do Terceiro Setor, teve como sustentação um viés comunita-

rista. Neste sentido, define sua linha de intervenção social articulada à noção de espaço públi-

co não-estatal que tem como fundamento a concepção de solidariedade no contexto da bene-

merência104.

2.2.2 O surgimento do direito comunitário.

O Direito Comunitário Europeu é um memorável exemplo de construção jurídica do

final de milênio, o qual tem, pelo viés jurisprudencial, apresentado suas mais surpreendentes

manifestações. Em verdade, assente não só em tratados e normativas comunitárias suprana-

cionais, o moderno Direito das Comunidades Européias tem se dinamizado na efetividade e

realismo das decisões da Corte do Luxemburgo, o emblemático tribunal criado pelo Tratado

de Roma, que, com seu imenso poder de interpretação pré-judicial, uniformiza, conduz e con-

forma a Europa de instituições comuns.

Não há como se negar a substancial natureza pretoriana da dinâmica comunitária, cu-

jos princípios basilares vêm sendo deduzidos a partir da jurisprudência luxemburguesa, profe-

rida por quinze juízes que, formal e materialmente, não representam seus Estados, senão o

compromisso apátrida da consolidação e do aprofundamento comunitários. Os quinze juízes e

os nove advogados gerais que compõem a corte são nomeados de comum acordo pelos gover-

nos, por seis anos e renováveis por mais seis. De fato, cada um dos Estados-membros designa

um juiz e os cinco maiores países (Alemanha, França, Itália, Reino Unido e Espanha), dis-

põem cada um de um advogado geral permanente, estabelecendo-se um sistema de rodízio

para os quatro demais postos. Contando o francês como idioma de trabalho, com a cultura

104 TELLES, V. A Nova Questão Social Brasileira. In: Praga: estudos marxistas 6. São Paulo: Editora Hucitec, 1998. p. 107.

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jurídico-comunitária impondo-se de forma a não identificá-los como representantes ou pre-

postos nacionais.

A maciça adesão ao processo de integração européia que se têm verificado e o seu i-

nexorável sucesso político, recomendam, no entanto, dentro de uma concepção da Ciência do

Direito como dúctil causa dos influxos sociais, antes que inflexível e dogmática condutora de

sociedades, que à Europe des juges se contraponha à correlata idéia, porém distinta em essên-

cia, de Europe du Droit Communutaire.105

A nocividade e atipicidade da integração de estados soberanos para construir blocos

econômicos geram, de fato, grandes perplexidades, com a subversão de convicções jurídicas

seculares. Cumpre assinalar que, nesse sentido, um dos fatores complicadores para o entendi-

mento jurídico da integração reside, em nosso país, no pouco estudo dedicado ao Direito In-

ternacional Público, básico para o entendimento de toda a temática da integração, considerado

por significativa parte da comunidade acadêmica como disciplina jurídica menor ou sem im-

portância.

A jurisprudência, como metamorfose substantiva do corpus jurídico-comunitário vem

se construindo em julgamentos dos quais defluem princípios considerados essenciais, como o

efeito direto, a primazia (primeira geração) e a responsabilidade do Estado de indenizar por

violação do Direito Comunitário (segunda geração). Tais princípios, já pacificamente incorpo-

rados à cultura jurídica comunitária, não foram legislados na forma do tratado, ou seja, não

derivam da negociação dos operadores políticos da integração, decorrendo diretamente da

construção jurisprudencial, facultada pelo artigo 177 do Tratado de Roma106.

Não resta dúvida que a sutileza engendrada pelo processo não é fruto do mero acaso;

isto sim, é prova da notável prudência política de que eram portadores os eurocratas de pri-

meira hora, autores dos documentos fundacionais da União Européia. Em nenhuma hipótese

105 FONTOURA, Jorge. A Jurisprudência Comunitária Européia. Disponível em: <http://www.neofito.com.br/ artigos>. Acesso em 24 mar. 2006. 106 Id.

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buscou-se impor a supremacia do Direito Comunitário sobre os direitos domésticos, com dis-

posições expressas do tipo alemão Bundesrecht britchts Landesrecht107, deixando que à tessi-

tura dos fatos acorresse a prudência das decisões judiciais mais qualificadas.

Em 1963, o Tribunal de Luxemburgo prolata acórdão no sentido de que normas comu-

nitárias dispensam incorporação pelos parlamentos nacionais, não se prestando à ratificação,

sendo, desde sempre, exigíveis. Tratou-se do rumoroso Caso Van Gend en Loos, acórdão pro-

veniente da Holanda e conformador do princípio do efeito direto. No ano seguinte, voltava-se

a decidir historicamente no Caso Costa/Enel, originário da Itália, que estipulou a primazia da

norma comunitária sobre os ordenamentos jurídicos internos, definindo a rumorosa questão da

hierarquia das normas em conflito. Em 1967, o Caso Simenthal, também da Itália, dava con-

tornos mais bem acabados à primazia e ao efeito direto, este corolário daquele, mas anterior-

mente decidido por curioso capricho cronológico. Em 1991 o Tribunal de Justiça europeu

decide que incumbe aos Estados comunitários indenizar por violação do direito comunitário,

ainda que por inação de não tê-lo implementado internamente. Tratou-se do Caso Francovich,

originário do Tribunal de Vicenza, Itália, e que vem se projetando como o mais importante

aperfeiçoamento instrumental do Direito Comunitário de segunda geração, conforme alguns

estudiosos108 .

O Direito Comunitário não é constituído originariamente por um sistema de normas

jurídico-positivas oriundas de uma única fonte de produção normativa, como se elas decorres-

sem exclusivamente dos órgãos da própria comunidade. Na sua origem e formação ele é o

ponto de intercessão entre normas de direito nacional, normas fundadas no direito internacio-

nal (como a União Européia e o Mercosul) e normas de direito internacional privado comum

convencional. Nas palavras de Casella109:

107 Direito federal quebra o direito local. 108 FONTOURA, Jorge. Op. cit. 109 CASELLA, Paulo Borba. Comunidade Européia e seu ordenamento jurídico. São Paulo : LTR, 1994, p. 247.

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O Direito Comunitário constitui hoje um gênero novo, uma vez que, face à sua espe-cificidade, não podemos enquadrá-lo no ramo do Direito Internacional clássico ou das Organizações Internacionais. Na verdade, esse novo ramo do direito pode ser apontado como um exemplo concreto do Direito da Integração Econômica, cuja fun-ção seria a de atuar como regulador das ações de integração entre diversos Estados. Por um lado, a regulação da integração implica uma intervenção do Estado na vida social que obedece a imperativos técnico-econômicos, transformados em razão de Estado. Por outro lado, não obstante, uma das vias mais relevantes e férteis de inter-venção do cidadão no processo de integração foi através da sua legitimação para agir no processo jurisdicional junto ao Tribunal das Comunidades Européias.

Sem o concurso de normas de direito constitucional, de direito internacional público

geral (pacta sunt servanda) e de direito internacional privado comum (normas convencionais

sobre conflitos ou concorrência de leis no espaço), o Direito Comunitário não se revelará ao

intérprete como um ordenamento jurídico comum. Na sua origem romana, a jurisprdência era

considerada um conhecimento das coisas divinas e humanas (rerum divinarum atque huma-

narum noticia). O fato de ser o direito da comunidade um direito comum, não prescinde então

que seja o fenômeno comunitário caracterizável como uma comunhão de objetivos institucio-

nais perseguidos em bloco pelos Estados-membros da comunidade110.

A Comunidade Européia revolucionou o conceito de soberania, caracterizado pela u-

nidade, indivisibilidade e inalienabilidade, superprotegido sob a égide da segurança nacional,

instituindo o direito comunitário. Na União Européia todas as constituições permitem a dele-

gação do exercício de competências para um poder supranacional, permissão mister para a

primazia do direito comunitário sobre o nacional111.

Com relação ao Mercosul, as constituições paraguaia e argentina admitem a ordem ju-

rídica supranacional, ao contrário do Brasil e Uruguai. Com referência ao Brasil, o maior en-

trave é o artigo 4º da Constituição Federal de 1988. Em 1994 o então Deputado Nelson Jobim

propôs uma emenda constitucional que viabilizava a vigência imediata de diretivas e decisões

tomadas por organismos internacionais, desde que nos tratados que o Brasil tivesse firmado, e

conseqüentemente fossem ratificados pelo Congresso Nacional, fossem previstas a hipótese

110 BORGES, José Souto Maior. Curso de Direito Comunitário: Instituições de Direito Comunitário Compara-do. São Paulo: Saraiva, 2005. 111 LOBO, Maria Teresa Cárcomo. Ordenamento Jurídico Comunitário. Belo Horizonte : Del Rey, 1997.

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de essas decisões serem tomadas por órgãos supranacionais. Destarte, a vigência seria imedia-

ta como um direito supranacional, independentemente do mecanismo tradicional de recepção,

como ocorre atualmente. Essa proposta de emenda foi derrotada pelo Congresso na concepção

do isolamento econômico brasileiro e no conceito ultrapassado de soberania112.

O ordenamento jurídico comunitário vigente na União Européia é composto pelo direi-

to originário (fontes primárias) e pelo direito derivado (fontes secundárias), pela jurisprudên-

cia e pelos princípios gerais de direito.

As fontes primárias são retratadas por atos jurídicos que contém dispositivos totalmen-

te inovadores, desvinculados de qualquer fundamento existente anteriormente. Tal direito é

denominado de direito comunitário originário, em virtude de sobrevir diretamente dos acordos

celebrados entre os Estados-partes, constituindo o fundamento dos atos jurídicos anteriores

advindos pelos órgãos da Comunidade. O direito originário, basicamente se expressa nos Tra-

tados europeus (que originam o fundamento constitutivo da ordem jurídica comunitária) com

seus respectivos anexos e protocolos. O direito comunitário derivado consiste no conjunto de

atos jurídicos adotados pelos órgãos da Comunidade que complementam e determinam os

Tratados. Tais atos provêm dos órgãos deliberativos e executivos (Conselho e Comissão) e da

Corte de Justiça, podendo assumir a forma de atos administrativos ou jurisdicionais 113.

112 MARTINS, Eliane Maria Octaviano. Direito Comunitário: União Européia e Mercosul. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista>. Acesso em: 24 mar. 2006. 113 FORTE, Umberto.União Européia: Comunidade Econômica Européia. São Paulo : Malheiros, 1994, p. 31.

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2.3 O PRINCÍPIO DA IGUALDADE114

O artigo 1º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (Déclaration des

droits de l’Homme et du citoyen), de outubro de 1789 cunhou em seu primeiro artigo o prin-

cípio de que os homens nascem e permanecem iguais em direito (Article premier: Les hom-

mes naissent etdemeurent libres et égaux en droits). A Igualdade (égalité) foi um dos lemas

da Revolução Francesa de 1789, considerada a mais importante realização da história con-

temporânea. Com base nos ideais iluministas, igualdade foi uma palavra que ecoou em todo o

mundo, derrubando os regimes absolutistas. Desde a Revolução Francesa que as declarações

de direitos são um dos traços do Constitucionalismo, como observa Ferreira Filho: “A opres-

são absolutista foi a causa próxima do surgimento das Declarações. Destas, a primeira foi a do

Estado da Virgínia, votada em junho de 1786, que serviu de modelo para as demais na Améri-

ca do Norte, muito embora a mais conhecida e influente seja ainda a dos Direitos do Homem

e do Cidadão”115.

Na concepção de Bobbio "a Declaração Universal representa a consciência histórica

que a humanidade tem dos próprios valores fundamentais na segunda metade do século XX. É

uma síntese do passado e uma inspiração para o futuro, mas suas tábuas não foram gravadas

de uma vez para sempre”116. O autor entende que “sem os direitos do homem reconhecidos e

protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para a

114 Uma grande contribuição à igualdade é tributada ao Cristianismo, com a idéia de que cada pessoa é criada à imagem e semelhança de Deus; portanto, a igualdade fundamental natural entre todos os homens. Como se vê, decorre de ordem religiosa, dos dogmas cristãos, sendo essa inspiração religiosa influenciada pela lição de Sto. Tomás de Aquino acerca do Direito Natural. Ainda na antiguidade os gregos possuíam dois conceitos para a igualdade, um o de isonomia perante a lei e o de einomia a respeito da lei. Entretanto, o sentido de igualdade para esse povo não era unânime e só se revelava para determinados círculos sociais, sendo excluídos as mulheres e os estrangeiros, que não eram beneficiados pela norma. A exemplo dos gregos, várias constituições do século passado apenas garantem a igualdade para os cidadãos. Como referência pode ser citado o Estatuto Fundamental do Reino da Itália de 1848 que, em seu artigo 24 apenas resguardava a igualdade, excluindo os estrangeiros resi-dentes às normas protecionistas vigentes naquela época. Em 1215, com armas na mão, os barões feudais exigi-ram o registro e a garantia de seus direitos no texto da Magna Carta (denominada em Latim Magna Carta Liber-tatum) a ser redigida pelo Rei João-Sem-Terra, quando este se apresentava enfraquecido pelas derrotas militares que sofrera. 115 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O poder constituinte. 3. ed. São Paulo : Saraiva, 1999.

116 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Trad. de: Carlos Nelson Coutinho. Nova ed. Rio de Janeiro: Elsevi-er, 2004. p. 85.

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solução pacífica dos conflitos. Basta examinar os escritos dos primeiros jusnaturalistas para

ver quanto se ampliou a lista dos direitos117”. Por sua vez Hobbes conhecia apenas o direito à

vida e complementa, afirmando que:

O desenvolvimento dos direitos do homem passou por três fases: num primeiro mo-mento, afirmaram-se os direitos de liberdade, isto é, todos aqueles direitos que ten-dem a limitar o poder do Estado e a reservar para o indivíduo, ou para os grupos par-ticulares, uma esfera de liberdade em relação ao Estado; num segundo momento, fo-ram propugnados os direitos políticos, os quais – concebendo a liberdade não apenas negativamente, como não-impedimento, mas positivamente, como autonomia – tive-ram como conseqüência a participação cada vez mais ampla, generalizada e freqüen-te dos membros de uma comunidade no poder político (ou liberdade no Estado); fi-nalmente, foram proclamados os direitos sociais, que expressam o amadurecimento de novas exigências – podemos mesmo dizer, de novos valores –, como os de bem-estar e da liberdade através ou por meio do Estado118.

Necessário também se faz lembrar que os direitos fundamentais cumprem o que Cano-

tilho chama de as funções dos direitos fundamentais, quais sejam: função de defesa ou de li-

berdade, função de prestação social, função de proteção perante terceiros e função de não dis-

criminação.

A respeito da igualdade, ensina Canotilho que:

As concepções cristãs medievais, especialmente o direito natural tomista, ao distin-guir entre lex divina, lex natura e lex positiva, abriram o caminho para a necessidade de submeter o direito positivo às normas jurídicas naturais, fundadas na própria na-tureza dos homens. Mas como era a consciência humana que possibilitava ao ho-mem aquilatar da congruência do direito positivo com o direito divino, colocava-se sempre o problema do conhecimento das leis justas e das entidades que, para além da consciência individual, sujeita a erros, captavam a conformidade da lex positiva com a lex divina119.

Para Ferreira “o princípio da Igualdade se baseia no cotidiano das pessoas (democra-

cia-tópico posterior) ocorrendo o mesmo no processo civil, ou seja, as pessoas também possu-

em o direito e devem ser tratadas de forma igual perante a lei. É daí que surge a idéia de Prin-

cípio da Igualdade120”. É um dos princípios estruturais do regime geral dos direitos fundamen-

117 Ibid. p. 86 118 GSCHWENDTNER, Loacir. Direitos Fundamentais . Jus Navigandi, Teresina, a. 5, n. 51, out. 2001. Dispo-nível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2075>. Acesso em: 29 mar. 2006. 119 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. Cit. p. 94. 120 FERREIRA, Pinto. Curso de Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo : Saraiva, 1918.

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tais. Trata-se da igualdade formal, igualdade jurídica ou mesmo igualdade liberal, postulada

estritamente pelo constitucionalismo liberal, em que os homens nascem e permanecem livres

e iguais em direitos. Essa igualdade é considerada um pressuposto para a uniformização do

regime das liberdades individuais a favor de todos os sujeitos de um ordenamento jurídico. A

igualdade jurídica surge indissociável da própria liberdade individual. Para Canotilho “a i-

gualdade condensa em seu conteúdo os traços da igualdade na aplicação e igualdade quanto à

criação do direito”121.

A afirmação constitucional de que todos são iguais perante a lei significa a exigência

de igualdade na aplicação do direito, que continua a ser uma das dimensões básicas do princí-

pio da igualdade constitucionalmente garantido, assumindo particular relevância no âmbito da

aplicação igual do direito a todos. Ser igual perante a lei não significa apenas a aplicação igual

da lei. A própria lei deve tratar todos por igual. O princípio da igualdade é voltado ao legisla-

dor, vinculando-o à criação de um direito igual para todos os cidadãos. As Constituições de

praticamente todos os países civilizados consagram o direito à igualdade dentre os direitos

fundamentais dos cidadãos, repudiando a discriminação e os privilégios122.

121 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. Cit. p. 426. 122 A Constituição Chilena de 1981, logo em seu artigo 1º preceitua que os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos e consagra, entre os direitos fundamentais, a igualdade perante a lei, ressaltando, ainda, que no Chile não existem pessoas nem grupos privilegiados, e que nem a lei, ou qualquer autoridade, poderão estabe-lecer diferenças arbitrárias (artigo 19). Em relação à liberdade de trabalho e sua proteção, a Constituição Chilena proíbe qualquer discriminação que não se baseie na capacidade ou idoneidade pessoal, podendo a lei exigir a nacionalidade chilena ou limites de idade para determinados casos (artigo 16). A Constituição Uruguaia, de 1966 consagra a igualdade de todos perante a lei, não reconhecendo qualquer espécie de diferenciação entre os indiví-duos, que não derive dos talentos ou virtudes de cada um (artigo 8º). A Constituição Argentina não admite prer-rogativas de sangue ou de nascimento. Todos são iguais perante a lei, não sendo admitidas para fins de ingresso no emprego outra condição que não a idoneidade (artigo 16), sendo garantida igual remuneração para igual tra-balho (artigo 14). A Constituição Espanhola dispõe que os espanhóis são iguais perante a lei e proíbe a discrimi-nação por motivo de nascimento, raça, sexo, religião, opinião ou qualquer outra condição ou circunstância pes-soal ou social (artigo 14). A Constituição Francesa, logo no seu artigo 1º, estabelece que todos os cidadãos são iguais perante a lei, sem distinção por razão de origem, raça ou religião. A Constituição Italiana dispõe que todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei, sem distinção de sexo, raça, idioma, religi-ão, opinião política ou de condições pessoais e sociais, cabendo ao Estado remover os obstáculos de ordem eco-nômica e social que limitem de fato a liberdade e a igualdade dos cidadãos e impeçam o pleno desenvolvimento da personalidade humana e a participação de todos os trabalhadores na organização política, econômica e social do país (artigo 3). A Carta Italiana consagra, ainda, a igualdade de direitos, de trabalho e de retribuição para a mulher trabalhadora (artigo 37). O artigo 13 da Constituição Lusitana consagra o princípio da igualdade nos seguintes termos: "todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei. Ninguém pode ser, privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão da as-

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Face à concepção acerca dos princípios da igualdade e dos direitos fundamentais de

grande maioria dos países, estes foram também incorporados às Constituições Brasileiras, de

modo que dentro do Direito Constitucional Positivo a Constituição elenca os princípios fun-

damentais da República Federativa do Brasil. Ferreira Filho afirma que: “a primeira Consti

tuição a adotar em seu texto essa inspiração foi da de 1934, no que foi seguida pelas posterio-

res. As anteriores – 1824 e 1891 – como era de se esperar, manifestavam em seu texto o ape-

go à concepção individualista dos direitos fundamentais”123.

A Constituição Federal de 1988 alberga vários valores fundamentais, dentre os quais

se encontra o Princípio da Igualdade. No preâmbulo da mesma, já é possível encontrar desta-

que ao referido princípio:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constitu-inte para instituir um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos di-reitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimen-to, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, plura-lista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem in-terna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil124.

Para Cittadino125 a Constituição Federal de 1988 converteu todos os direitos da Decla-

ração da Organização das Nações Unidas – ONU em direitos legais no Brasil, instituindo uma

série de mecanismos processuais que buscam dar a eles eficácia. Ao definir os fundamentos

do Estado Brasileiro, caracterizando-o como Estado Democrático de Direito, a Constituição

destaca a cidadania, a dignidade da pessoa humana e o pluralismo político, como também

fixa, em seu artigo 3º, os objetivos fundamentais do Estado Brasileiro, ou seja, construir uma

sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a

cendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situa-ção econômica ou condição social". A Constituição Alemã estabelece, em seu artigo 3 que todos os homens são iguais perante a lei, que homens e mulheres gozam dos mesmos direitos e que ninguém poderá ser prejudicado ou favorecido por motivo de sexo, nascimento, raça, idioma, nacionalidade e origem social e crença religiosa ou política. 123 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. op. cit. 124 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília : Senado Federal, 1988. 125 CITTADINO, Gisele. op. cit. p. 12.

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marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e promover o bem de todos,

sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discrimina-

ção.

Já em seu artigo 5º, a Constituição Federal de 1988 estatui que: “Todos são iguais pe-

rante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e estrangeiros

residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à

propriedade”126. O que se percebe é a preocupação basilar legislativa constituinte, em dirimir

as espécies de discriminação de qualquer natureza.

Muito embora a interpretação literal da norma de que todos devem ser tratados igual-

mente, Aristóteles já afirmava que: “Se as pessoas não são iguais, não receberão coisas iguais;

mas isso é origem de disputas de queixas (como quando iguais têm recebem partes desiguais,

ou quando desiguais recebem partes iguais)”127. Com essa afirmativa, ele quer dizer que os

desiguais devem ser tratados de forma diferenciada para que seja possível alcançar a almejada

isonomia. A corroboração da afirmativa de Aristóteles veio através de Rui Barbosa em seu

discurso como Paraninfo dos formandos da Faculdade de Direito de São Paulo em 1920:

A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desi-gualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. O mais são desvarios da inveja, do orgulho, ou da loucura. Tratar com desigualdade a iguais, ou a desi-guais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real128.

Mello provavelmente apresente a melhor definição para o Princípio de Igualdade,

quando escreve: “[...] a lei não pode conceder tratamento específico, vantajoso ou desvantajo-

so, em atenção a traços e circunstâncias peculiarizadoras de uma categoria de indivíduos se

126 Ibid. 127 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. por: Pietro Nasseti. São Paulo : Martin Claret, 2001. p. 139. 128 BARBOSA, Rui. Oração aos Moços. São Paulo : Martin Claret, 2003. p. 19.

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não houver adequação racional entre o elemento diferencial e o regime dispensado aos que se

inserem na categoria diferenciada”129.

Assim, entende-se que o Princípio de Igualdade, mais que uma expressão do Direito, é

uma maneira digna de se viver em sociedade, onde visa num primeiro momento propiciar

garantia individual e num segundo tolher favoritismos130.

Ensina Canotilho que: “A fórmula da igualdade material (tratar igualmente os iguais e

desigualmente os desiguais) conduz para uma idéia de igualdade relacional que pressupõe

sempre uma relação tripolar, em que um indivíduo é igual a outro, tendo em vista certas ca-

racterísticas”.131 O autor exemplifica esta igualdade relacional com o seguinte exemplo, ex-

traído da jurisprudência portuguesa: "o indivíduo a (casado) é igual ao indivíduo b (solteiro)

quanto ao acesso ao serviço militar na Marinha, desde que reúna as condições de admissão

legal e regularmente exigidas”132.

A aferição da igualdade ou de quem são os iguais e quem são os desiguais não pode

prescindir de uma visão axiológica. Um critério válido para a valoração da relação de igual-

dade reside na regra da proibição geral do arbítrio, ou em outras palavras, a desigualdade de

tratamento contida na lei não pode ser arbitrária e assim existirá uma violação arbitrária da

igualdade jurídica quando a disciplina jurídica não se basear em um fundamento sério, não

tiver um sentido legítimo e estabelecer diferenciação jurídica sem um fundamento razoável.

2.4 A SOBERANIA POPULAR

Os fundamentos da democracia ou mesmo os seus dois grandes pilares são o regime da

soberania popular ativa e o respeito integral aos direitos humanos, entendidos não só como

129 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O conteúdo jurídico do princípio de igualdade. 2. ed. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1984. p. 39 130 Ibid., p. 23. 131 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. op. cit., p. 396-410. 132 Ibid.

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aqueles de origem liberal, como os direitos individuais e as liberdades individuais, mas tam-

bém, e essencialmente, como direitos econômicos e direitos sociais133.

O termo soberania tem sua origem ainda hoje discutida entre autores. Para autores co-

mo Kranenburg provém do latim medieval superanus e superanitas, siginificando a autorida-

de mais alta em um campo particular. Para outros, como Paupério, parece provir remotamente

do latim medieval superanus e proximamente do francês souveraineté. Do latim super omnia,

supremitas, a Soberania se trata de um dos elementos formais do Estado, ao lado da Ordem

Jurídica, e pode ser definida como a qualidade do poder do Estado que o situa acima de qual-

quer outro no âmbito interno, e que o coloca no mesmo plano do poder de outros Estados. O

poder do Estado é, necessariamente, supremo, soberano. Se o governo é uma das causas for-

mais do Estado, a soberania é a diferença específica do governo, é seu traço identificador134.

Na Antigüidade já se intuía a diferença entre as leis que estruturavam a organização

política e as que eram criadas por órgãos do governo. Já havia uma distinção fugaz entre leis

constitucionais e ordinárias. No direito público da antiga Atenas já havia a noção de que cer-

tas leis pertinentes à própria estrutura política da polis, como as que estabeleciam a cidadania,

eram hierarquicamente superiores às outras. Um procedimento específico, ancestral da ação

direta de inconstitucionalidade permitia impugnar a formação de leis contrárias às normas

fundamentais do Estado ateniense. Com a invasão do Império Romano pelos bárbaros, fenô-

meno que marca o início da Idade Média surge o feudalismo, sistema político e socioeconô-

mico fundado na economia agrária, no qual cada senhor feudal buscava, no âmbito de seu

território, manter sua autonomia, submetendo ao seu poder os servos da gleba. Assim, o poder

político não se conservou centralizado como no Império Romano, mas fragmentou-se em mi-

ríades de senhorios feudais, que, nos seus limites territoriais e por direito próprio, impunham

seus costumes e suas leis. Entretanto, a partir do século XI surge a tendência de uma disputa

133 BENEVIDES, Maria Vitória. 2002. Fundamentos da democracia e de um novo poder. Disponível em: <www.dji.com.br/constitucional/soberania.htm>. Acesso em: 28 mar. 2006. 134 MENEZES, Aderson. Teoria Geral do Estado. 4. ed. Rio Janeiro: Editora Forense, 1984.

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entre os vários grupos sociais, do predomínio de um sobre os demais. Na França, supremus ou

sovrain seria o grupo social que passasse a exercer um poder maior sobre os demais. Mais

tarde, as lutas religiosas causadas pela Reforma ameaçaram destruir a própria sociedade civil.

Ainda na França tal perigo foi enfrentado por uma confraria denominada Os Políticos, a qual

pregava a necessidade da instauração de um poder supremo e absoluto que reinasse sobre toda

a nação. Já no século XIII, com a ascensão da monarquia, ela passa ainda que de forma inde-

finida a estar mais presente, pois era comum a afirmação da soberania do monarca. A noção

de soberania é eminentemente histórica, no sentido de que sua interpretação tem variado no

tempo e no espaço. A primeira obra teórica a desenvolver o conceito de soberania foi publica-

da na França em 1576 por Jean Bodin135 com o título original Les Six Livres de la Republique

(Os seis Livros da República), onde o autor afirmava ser necessário formular a definição de

soberania, porque não havia qualquer jurisconsulto, nem filósofo político que a tivesse defini-

do. No entanto, seria o ponto principal e o mais necessário de ser entendido no trabalho da

República. Esclarece então que a soberania é o poder absoluto e perpétuo de uma República,

palavra que se usa tanto aos particulares quanto em relação aos que manipulam todos os ne-

gócios de estado de uma República136.

Da premissa fornecida por Bodin, os teóricos passaram a se preocupar muito mais com

as características necessárias ao exercício da soberania do que propriamente com seu concei-

to, assentando-se que a soberania deveria ser essencial, inalienável e indivisível. Essencial no

sentido de outorgar poder de unificação do povo de um estado, inalienável por ser o exercício

de vontade geral e indivisível, porque a vontade só é geral se houver a participação do todo137.

135 Jurista francês (1530-1596) foi membro do Parlamento de Paris e professor de Direito em Toulouse. É considerado por muitos o pai da Ciência Política devido á sua teoria sobre soberania.. 136 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo : Saraiva, 2002. p. 77. 137 GABRIEL. Sérgio. Soberania e a Globalização: premissas para a discussão de uma ordem jurídica interna-cional. Disponível em: <http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=563>. Acesso em: 27 mar. 2006.

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Na Inglaterra, o matemático, teórico político e filósofo Thomas Hobbes (1588-1679),

ligado à monarquia, foi o grande teórico da soberania na sua forma mais absoluta, contraindo,

com isto, a hostilidade do parlamento. Ele aceitava a concepção contratualista da sociedade.

Esta concepção seria o fruto de um pacto entre os homens, fundado no temor, pois em seu

estado de natureza os homens seriam egoístas e agressivos e com essa natureza tenderiam a

guerrear entre si, todos contra todos (bellum omnium contra omnes). Assim, para não se

exterminarem uns aos outros seria necessário um contrato social que estabelecesse a paz, a

qual levaria os homens a abdicarem da guerra contra outros homens. Mas, egoístas que são,

necessitam de um soberano (Leviatã) que puna aqueles que não obedecem ao contrato

social138.

Entretanto, sob luzes mais vigorosas, começam a aparecer duas soberanias distintas: A

do Estado a do seu órgão supremo, que nada mais é do que uma pessoa. Então, não se mistu-

ram o poder supremo no Estado e o poder supremo do Estado, pois, embora o elemento hu-

mano possa despojar-se de sua soberania, esta é, em substância, inalienável. Quer dizer que há

uma soberania in abstracto e uma soberania in concreto. Por outro lado, cai-se numa falha de

suma importância, visto como se identifica poder do Estado com soberania139.

Quase dois séculos depois, em 1762, Rosseau publicaria O Contrato Social, dando

grande ênfase ao conceito de soberania e já transferindo sua titularidade da pessoa do gover-

nante para o povo (soberania nacional). Na sua obra, Rousseau expõe a sua noção de Contrato

Social, que difere muito das de Hobbes. Para ele o homem é naturalmente bom, sendo a

sociabilização a culpada pela degeneração do mesmo. O Contrato Social para Rousseau é um

acordo entre indivíduos para se criar uma Sociedade, e só então um Estado, isto é, o Contrato

é um Pacto de associação, não de submissão.

138 HOBBES, Thomas. Leviatã. Lisboa : Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1995. 139 BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 10. ed. São Paulo: Editora Malheiros. 1967.

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No primeiro livro da obra, Rousseau passa em exame as principais questões da vida

política. Sua principal preocupação já se expõe na primeira frase do primeiro capítulo deste

livro, quando escreve: “O homem nasceu livre, e não obstante, está acorrentado em toda a

parte140”. Nesse sentido, Rousseau começa sua obra questionando o motivo de os homens

viverem sob os grilhões da vida em sociedade, do porquê de os homens abandonarem o estado

de natureza, uma vez que todos nascem homens e livres.

Para Rousseau a ordem social seria um direito sagrado fundado em convenções,

portanto, não-natural. A primeira forma de sociedade que mais se aproxima de uma sociedade

natural seria a família. Por ser o que mais se aproxima de uma forma natural de sociedade, a

família serve como primeiro modelo de sociedade política: o pai representado pelo chefe e os

filhos pelo povo. Mas o direito do pai sobre o filho cessa assim que este atinge a idade da

razão e torna-se senhor de si. A distinção entre sociedade familiar e sociedade política se dá,

principalmente, no fato de o pai se ligar ao filho por amor, e o chefe por prazer em mandar141.

À questão do direito do mais forte, Rousseau responde que ceder à força constitui ato

de necessidade, não de vontade; quando muito, ato de prudência. Em que sentido poderá

representar um dever? A força difere do direito porque pode se impôr, mas não obrigar.

Assim, para Rousseau, Força é diferente de Direito, pois o último é um conceito moral,

fundado na razão, enquanto que a força é um fato. Por iss o não há direito (nem Contrato) na

sumissão de um homem pela força. Nenhum homem aliena sua liberdade gratuitamente a um

outro e tampouco um povo a um indivíduo. A Escravidão não tem sentido para Rousseau,

porque para ele o homem depende da liberdade, condição necessária da condição humana. Por

isso, ele afirma que renunciar à liberdade é renunciar à qualidade de homem, aos direitos da

humanidade e até aos próprios deveres. Não há recompensa possível para quem a tudo

renuncia. Ao falar de como é sempre preciso remontar a uma convenção anterior, Rousseau

140 ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social. Trad. de: Antônio P. Machado. 19. ed. Rio de Janeiro : Edi-ouro, 1999. p. 25. 141 ACQUAVIVA, Marcus Cláudio. Instituições Políticas. São Paulo : Atlas, 1982. p. 18.

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conclui que a submissão de um povo a um rei só pode vir depois da constituição do próprio

povo, ou seja, antes de um contrato de submissão, é necessário um contrato de associação,

visto que, em estado de natureza, os homens não estão associados. A constituição do Povo, ou

a associação das vontades individuais depende do Pacto Social142.

A doutrina da soberania popular143, a primeira e inconfundivelmente a mais democráti-

ca das doutrinas em exame não postula necessariamente uma forma republicana de governo,

tanto que Hobbes a desenvolveu para derivar da vontade popular na sua teoria do contrato

social a justificação do poder monárquico e Rousseau, com maior desabuso e não menos ri-

gor, a fez compatível com todas as formas de governo, como se precatadamente quisesse cor-

rigir já o erro dos que no século passado e ainda atualmente fizeram a democracia inseparável

do liberalismo, quando este significa apenas uma de suas variantes e incontrastavelmente a-

quela que com menos fidelidade reproduz a imagem e expressão da vontade popular e, portan-

to, a plenitude do princípio democrático.

Segundo o autor do Contrato Social e seus discípulos, a soberania popular é tão so-

mente a soma das distintas frações de soberania, que pertencem como atributo a cada indiví-

duo, o qual, membro da sociedade estatal e detentor dessa parcela do poder soberano frag-

mentado, participa ativamente na escolha dos governantes. Essa doutrina funda o processo

democrático sobre a igualdade política dos cidadãos e o sufrágio universal, conseqüência ne-

cessária a que chega Rousseau, quando afirma que: “se o Estado for composto de dez mil ci-

dadãos, cada um deles terá a milésima parte da autoridade soberana144”.

A concepção da soberania popular, posto que se apóie em reflexões contraditórias e

insustentáveis de Rousseau, teve a máxima influência no desdobramento ulterior das idéias

democráticas, nomeadamente no que diz respeito à progressiva universalização do sufrágio,

tomando este nas lutas constitucionais do século XIX, XX e desse século, por parte dos re-

142 Ibid., p. 46. 143 ACKERMAN, Bruce. The Rise of World Constitucionalism. HeinOnline. 83 Va, L. Ver. 771, 1997. 144 Ibid., p. 114.

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formadores mais radicais e progressistas, como a verdadeira espinha dorsal do sistema demo-

crático145.

A Constituição Brasileira de 1988 adota alguns institutos da democracia semidireta e,

com isto, da soberania popular. A iniciativa popular se manifesta no artigos 1º, I, parágrafo

único, 14, III e 61, parágrafo 2º). Conforme ensina Canotilho, “a soberania traduz-se num

poder supremo no plano interno e num poder independente no plano internacional”.146

A Soberania é também mencionada no capítulo IV da Constituição Federal, que trata

dos direitos políticos, quando menciona em seu artigo 1º que: “A soberania popular será exer-

cida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos

termos da lei, mediante: I- plebiscito; II- referendo; III- iniciativa popular"147. A soberania do

povo, em nome do qual todo o poder é exercido, tem, no direito ao voto universal e secreto, o

meio de expressão da soberania popular. Tal direito carece de amplo exercício de fiscalização

para sua completa efetivação, a qual deve ser exercida e compreendida, motu próprio, pelo

eleitor comum, mediano e titular primeiro desta soberania. O soberano que não é instrumenta-

do a fiscalizar o exercício de sua soberania não é soberano. De nada vale um poder, uma prer-

rogativa, se desprovidos dos meios necessários à sua verificação pelo seu titular.

2.5 DUALIDADE ENTRE IGUALDADE E LIBERDADE

A igualdade constitui um ideal da organização social, pela qual lutou a humanidade, à

medida que ia evoluindo. Essa luta dura até hoje, porque a divisão das nações, em sistemas

políticos, das comunidades em classes sociais, e dos indivíduos em posições econômicas, mo-

rais e intelectuais, prejudicam os esforços em benefício da igualdade irrestrita. Já a liberdade

nasce com o indivíduo, atinge o consciente coletivo dos povos e produz fatos extraordinários.

145 ACQUAVIVA, Marcus Cláudio. op. cit., p. 153-154. 146 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. op. cit. p. 494. 147 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília : Senado Federal, 1988.

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O sentimento de liberdade é o bem mais caro ao coração de um homem; e não há nada que o

deprima tanto quanto a opressão da escravidão, o encarceramento da consciência e a privação

da liberdade.

Os conceitos de liberdade e igualdade formam os slogans centrais do Iluminismo.

Desses ideais, todavia, o liberalismo não foi o único a se apropriar. Paradoxalmente, eles de-

sempenham no marxismo e no anarquismo um papel tanto quanto relevante. Também para os

movimentos sociais contemporâneos eles possuem um alto valor ideológico. Marx desvendou

os fundamentos sociais há mais de cem anos.148

Os direitos humanos internacionais e os Direitos Econômicos Sociais e Culturais inse-

ridos na Constituição Brasileira de 1988 servem de referência para questionar os limites das

políticas públicas e o quadro de desigualdades estruturais que marca a sociedade brasileira149.

Como já referenciado no presente estudo, o século XX indicou a continuidade da pro-

blemática dos direitos nas lutas contra as ditaduras, contras os imperialismos e contra as for-

mas ditas totalitárias. As revoluções liberais democráticas, os movimentos e revoluções socia-

listas, os processos de reforma civil e política e as lutas pela descolonização apresentaram

plataformas mobilizadoras de direitos, como fundamento para novos pactos políticos e para a

realização de mudanças nas estruturas materiais e no Estado. Essa ótica ampla dos direitos,

como correlativos ao poder instituinte e constituinte dos povos, se relaciona com o debate

sobre a fonte da qual se origina o poder ético-normativo que garante o pacto democrático.

Os contratualistas e o iluminismo partem de uma visão mais delegativa e representati-

va como fundamento da teoria da soberania, do Estado, do governo ou do Príncipe. Como

afirma Negri150, “é o poder imanente dos sujeitos, da multidão, da união do povo que aparece

148 KURTZ, Robert. Um sonho de liberdade. Disponível em: <http://obeco.planetaclix.pt/rkurz187.htm>. Aces-so em: 28 mar. 2006. 149 ALVES, Geraldo Magela. Constituição da República Federativa do Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro : Forense, 2000. 150 NEGRI, Antonio. Le pouvoir constituant. Essai sur les alternatives de la modernité. Paris : Presses Uiversi-taires de France, 1997.

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como potência de construção social e política ativa”. De forma distinta da concepção de

Rousseau, que coloca a vontade geral e o poder constituído como a fonte do poder soberano

do povo, materializado no contrato social que define um terreno abstrato genérico para a pro-

dução da igualdade, o Tratado Político de Spinoza aponta para o poder constituinte como base

para a democracia, quando afirma que: “se dois indivíduos se unem e associam suas forças,

aumentam, assim, o seu poder, e, por conseguinte, o seu direito”. “E mais indivíduos formem

a aliança, mais, todos, em conjunto, terão direitos151”. O direito de constrangimento que parte

da base do direito comum apresenta um traço coletivo ativo e não alienado na função do sobe-

rano, de certa forma antecipando a concepção da moderna democracia de massas: “esse direi-

to, que é definido pelo poder da multidão, costuma-se chamar Estado, e está em plena posse

desse direito, quem por consentimento comum, zela pelas coisas públicas, isto é, estabelece

leis interpreta-as, abole-as, fortifica as cidades, decide da guerra e da paz, etc. Se tudo isso se

faz por uma assembléia saída da massa do povo, o Estado chama-se Democracia. Se de alguns

homens privilegiados, Aristocracia. E, se, enfim, de um só, Monarquia“152.

A dimensão internacional do processo nas descontinuidades e rupturas históricas apro-

xima o debate do direito, enquanto relacionado ao poder soberano dos Estados, com a dimen-

são de liberdade e igualdade que impulsiona os conflitos sociais que atualizam a concepção

dos atores coletivos, numa dialética que transborda os marcos dos conflitos nas esferas nacio-

nais. O marco histórico materializado na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948

expressa a tensão histórica das vitórias dos cidadãos sobre o poder, na sua relação com os

problemas das relações desiguais entre os Estados nos diferentes sistemas políticos e diante

do caráter mundializado do capitalismo. A Declaração se distingue pela unificação das dife-

rentes gerações históricas de direitos, unificando o sentido indivisível dos direitos ao colocar

os direitos econômicos, sociais e culturais, como do trabalho, da educação, da moradia, entre

151 SPINOZA, Benedictus de. Tratado Político. Edições de Ouro, Rio de Janeiro, 2004. 152 Ibid.

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outros, ao lado dos direitos civis e políticos. Para Piovesan, “ao conjugar o valor da liberdade

com o valor da igualdade, a Declaração demarca a concepção contemporânea de direitos hu-

manos, pela qual os direitos humanos passam a ser concebidos como uma unidade interde-

pendente, inter-relacionada e indivisível” 153.

Rousseau é um dos principais pensadores da concepção jusnaturalista ou contratualis-

ta. Entretanto, o grande diferencial de sua teoria, se comparada a outros contratualistas, é a

exigência da participação direta do povo no ato legislativo. A forte crítica ao Estado represen-

tativo permite uma interpretação de Rousseau como um crítico do liberalismo. Sua concepção

da política estabelece uma trajetória de evolução da organização social que difere de outros

pensadores. Assim como Hobbes e Locke, Rousseau constrói uma hipótese de estado de natu-

reza e estado civil, mas considera o estado de guerra hobbesiano presente na sociedade civil.

O estado de natureza é apresentado como um momento de ampla felicidade humana, onde os

seres humanos não tinham a necessidade de se relacionarem e não havia desigualdade. Este

modo de vida, hipoteticamente construído para justificar sua proposta de República, teria sido

destruído com a instituição da propriedade privada e das leis. É na sociedade das instituições

civis que reside sua crítica e o fundamento de sua teoria política. Entretanto, se com a razão o

ser humano construiu uma civilização corrompida, é com a capacidade racional que a huma-

nidade deverá encontrar suas soluções.

A constatação de que o verdadeiro fundador da sociedade foi o primeiro que, tendo

cercado um terreno, lembrou-se de dizer: “isto é meu e encontrou pessoas suficientemente

simples para acreditá-lo”, Rousseau encontra na desigualdade humana o principal problema

da organização política154.

Diante do problema da desigualdade humana, a proposta política de Rousseau afirma

como valores fundamentais a igualdade e a liberdade e, como para ele não existe liberdade

153 PIOVESAN, Flavia. Temas de Direitos Humanos. São Paulo : Editora Max Limonad, 1998. 154 ANDRIOLI, Antônio Inácio. A Democracia direta em Rousseau. Revista Espaço Acadêmico. n. 22, mar. 2003.

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sem igualdade, as leis que se fundam num contexto de desigualdade só servem para a

manutenção da injustiça: “Sob os maus governos a igualdade é ilusória e aparente, e não serve

senão para manter o pobre na miséria e o rico na usurpação”155.

A liberdade não existe sem igualdade porque o ser humano que estiver numa condição

superior ao outro terá mais poder e o que estará em situação inferior ficará limitado a este. A

superioridade só funciona enquanto relação de força e não constitui direito. O direito só existe

a partir de convenções, que são próprias de um corpo político, como resultado de um processo

de discussão. Neste aspecto, Rousseau critica o Estado liberal, como uma instituição que sur-

giu para converter em direito o que os burgueses já possuíam enquanto força, através da insti-

tuição da propriedade privada. Com o objetivo de construir um Estado que se oponha à

sociedade civil corrompida na desigualdade, a defesa da liberdade e da igualdade é o fim de

todo o sistema legislativo em Rousseau: “A liberdade porque toda a dependência particular é

outro tanto de força tirada ao corpo do Estado; a igualdade, porque a liberdade não pode

existir sem ela”156.

Locke157, assim como Rousseau, procura resolver as questões dos direitos naturais do

homem na perspectiva do jusnaturalismo. O ponto de partida desse modelo é a afirmação da

existência de um estado de natureza constituído por indivíduos que se encontram nele de for-

ma não associada e independente de suas vontades. O Estado civil é uma criação artificial. A

passagem do estado de natureza ao civil não sobrevém por uma evolução natural (como em

Aristóteles), mas por uma ação voluntária manifestada num contrato. Por isso, se diz que o

jusnaturalismo moderno é contratualista.

Assim, segundo a doutrina do direito natural, antes da existência do indivíduo no Es-

tado tal como hoje é conhecido com suas leis e obrigações, os homens viviam de forma pací-

155 ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social. Trad. de: Antônio P. Machado. 19. ed. Rio de Janeiro : Edi-ouro, 1999. 156 Id. 157 LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo, cap. II, par. 6. São Paulo : Abril Cultural, 1983.

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fica e ordeira num estado natural. Neste estado prevalecem a liberdade e a igualdade de todos.

Para Locke, a liberdade é o direito dos homens para conduzir-se e dispor de seus bens como

lhes convenha, respeitando os limites estabelecidos pela lei natural, sem depender da vontade

de outra pessoa. A igualdade é a condição na qual o poder e a jurisdição são recíprocos e onde

existe um equilíbrio entre as possessões. No estado de natureza não há subordinação nem

submissão entre os homens158.

O fato de a condição natural ser de liberdade não significa que cada um possa fazer o que bem quiser, pois o homem tem uma lei natural que o governa e que obriga a todos. Essa lei natural ensina que ninguém deve prejudicar o outro em sua vida, saú-de, liberdade e bens. Para que a lei natural possa ter vigência, alguém deve executá-la. Como todos são iguais no estado de natureza, ninguém tem o poder de impor-se sobre os demais. Resta, pois, que qualquer homem tem o direito de castigar o culpa-do e de ser o executor da lei natural159.

O inconveniente do estado de natureza está precisamente em que todos podem castigar

igualmente a violação da lei natural. Isto é, todos podem ser juizes em sua própria causa

quando algum indivíduo abusar de sua liberdade. Quem é juiz em sua própria causa está ex-

posto a que o amor próprio o leve a julgar com parcialidade, excedendo-se no castigo. Desta

maneira, o castigo pode converter-se em vingança. Estes excessos desencadeiam inevitavel-

mente o conflito. Assim, o estado de guerra, uma vez começado, será contínuo. O problema

do estado de natureza está justamente na falta de um juiz imparcial que dirima as controvér-

sias entre os indivíduos. A inexistência desse juiz provoca a queda no estado de guerra. Den-

tro do estado de natureza é difícil reconduzir a situação de guerra à condição de paz. A única

possibilidade para garantir uma paz permanente é a instituição da sociedade civil.160

158 AMES, José Luiz. Locke, os direitos naturais do homem. Disponível em: <http://users.hotlink.com.br/fico/ 2005_11_01_archive.html>. Acesso em: 26 mar. 2006. 159 LOCKE, John. op. cit. 160 AMES, José Luiz. Op. cit.

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2.6 FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE A PARTIR DE WALZER

Walzer empreende uma crítica ao liberalismo, sobretudo porque este não considera a

importância do contexto histórico em que está inserido o indivíduo, o que o leva a buscar so-

luções universais, descartando as particularidades de cada sociedade. Para ele o problema

reside nas particularidades da história, da cultura e da propriedade para um grupo. Até mesmo

se eles favorecessem a imparcialidade, será que estariam compartilhando a mesma cultura e

decididos a segui-la? Como comunitarista contemporâneo, Walzer não se omite diante da

complexidade social que teve início com a modernidade e apresenta um conceito de igualdade

que considera a pluralidade social, contrariamente ao conceito formal de igualdade pressupos-

to pelo liberalismo. É justamente por entender a sociedade contemporânea como uma socie-

dade plural que Walzer afirma existir não somente uma, mas várias esferas de justiça que

concebem, de forma diferente, o que seja o bem e, mais precisamente, a própria justiça161.

Para Walzer “a justiça é uma construção humana, e é duvidoso que possa ser levada a

cabo de um único modo”162. Aqueles bens sociais diferentes deveriam ser distribuídos através

de razões diferentes, em arranjo para procedimentos diferentes e para agentes diferentes e que

todas estas diferenças derivam ser oriundas da compreensão dos mesmos bens sociais que são

produtos inevitáveis do particularismo histórico e cultural.

Cittadino163 afirma que Walzer utiliza o termo pluralismo não só para se referir à di-

versidade de bens sociais, de esferas de justiça, de procedimentos e de princípios distributi-

vos, mas também para relatar a diversidade de identidades sociais e de culturas étnicas e reli-

giosas que estão presentes nas sociedades contemporâneas. A vinculação feita por Walzer do

pluralismo com as identidades sociais, diferentemente dos liberais que vinculam a idéia de

pluralismo às concepções individuais de bem, deixa claro o seu comprometimento com o par-

161 GALUPPO, Marcelo Campos. Comunitarismo e Liberalismo na fundamentação do Estado Democrático de Direito e o problema da tolerância. Belo Horizonte: Del Rey, 2000. 162 WALZER, Michael. op. cit. p. 19. 163 CITTADINO, Gisele. op. cit

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ticularismo histórico e social, tão afeto ao ideal comunitário. Em Walzer, assim como em A-

ristóteles, o indivíduo deve ser entendido sob a perspectiva da comunidade histórica a que está

vinculado, o que demonstra uma preocupação com as tradições e os valores informadores de

uma determinada sociedade, preocupação esta já presente no pensamento de Aristóteles na

Antigüidade. As comunidades históricas específicas, e não os indivíduos, é que são, para os

comunitários, os sujeitos primários dos valores, e, assim como na Grécia antiga, a correção ou

não desses valores está sujeita à sua efetiva aceitação.

Walzer vê a sociedade como um conjunto de várias tribos e, portanto, o direito deve se

apropriar dos valores de cada tribo, rejeitando, destarte, a crença liberal de que existam valo-

res universalmente reconhecidos. O reconhecimento da pluralidade significa reconhecer a

diferença. Daí, portanto, segundo Walzer, não restar outra alternativa senão abdicar das res-

postas únicas, verdadeiras e definitivas para o problema da associação política e admitir o

caráter parcial, incompleto e conflitivo do consenso entre indivíduos164.

Walzer afirma que a propriedade é corretamente entendida como certo tipo de poder

sobre as coisas. Assim como o poder político, consiste na capacidade de definir destinos e

riscos, ou seja, distribuir coisas ou trocá-las, conservá-las ou mesmo usar e abusar delas, deci-

dindo com liberdade sobre os custos do desgaste. A propriedade também se aproxima muito

da sujeição. As pessoas se comprometem umas com as outras e com as instituições, em todos

os modos que expressem a desigualdade momentânea de sua situação econômica. O autor

afirma não ser fácil ser justo quando o livre uso da propriedade se converte em exercício do

poder. Há questões difíceis e muitas controvérsias políticas e acadêmicas nesse assunto165.

Através da análise de Walzer, é possível apreender outros aspectos importantes desses

contrastes das leituras liberais e comunitárias acerca da cidadania. Nesse raciocínio Walzer

indica os legados greco-romanos para uma concepção de dever cívico para a cidadania. Em

164 Id.. 165 Ibid.

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contrapartida, vê a compreensão liberal na fonte situada na Roma ulterior ao tempo do Impé-

rio e nas reflexões modernos de Direito Romano. Ele delineia como a visão rousseauniana e o

período jacobino da Revolução Francesa consolidaram para os teóricos comunitários (os re-

publicanos cívicos) a idéia da maior felicidade na proporção do envolvimento na atividade

pública. Em síntese, Walzer enfatiza a cultura e o grupo social que conferem identidade aos

indivíduos atomizados pelas tendências desenraizadoras da sociedade liberal. O indivíduo não

é anterior à sociedade, é construído por fins que não escolhe, mas que descobre em função de

sua vida em contextos culturais compartilhados na sociedade. Aqui se destacam os aspectos

culturais e políticos da comunidade como elementos centrais na organização individual. Para

ele a cidadania comunitária é uma responsabilidade e, por conseqüência, um encargo orgulho-

samente assumido166. Pressupõem-se, assim, duas distinções: uma da homogeneidade social e

outra simbolizada por um processo mais difuso. Apesar dessas diferenciações, Walzer opta

por uma postura socialista em detrimento desse conflito entre liberais e comunitários167.

Na outra ponta do conjunto democrático a respeito da cidadania está a contribuição

habermasiana. O objetivo de Habermas é viabilizar, também, essa concepção de democracia

radical através de uma noção bem definida de espaço público como mecanismo procedimental

para a construção dessa forma política. Habermas é, nesse nível, um crítico pertinaz da colo-

nização do mundo da vida pelas políticas administrativo-sociais de Estado de Bem-Estar So-

cial. No seu importante artigo Soberania Popular como procedimento168, ao questionar o esva-

ziamento do processo democrático-representativo, defende a materialização de uma nova di-

nâmica através de um discurso comunicativo. Com esse objetivo, Habermas rediscute os le-

gados do liberalismo e do socialismo. Quanto ao liberalismo, acentua a possibilidade de ga-

166 VIEIRA, Liszt. Cidadania Global e Estado Nacional. SeiELOBrazil. v. 42, n. 3, jan. 1999. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-52581999000300001&lng=en&nrm=iso&tl-ng=pt>. Acesso em 12 jun. 2006. 167 VIEIRA, José Ribas. A Cidadania: Sua complexidade teórica e o direito. 1997. Disponível em: <http://www. puc-rio.br/direito/revista/online/rev11_ribas.html#_ftn1>. Acesso em 22 abr. 2006. 168 HABERMAS, Jürgen , Soberania Popular como procedimento. In: Novos Estudos – Cebrap. n. 6, mar 1990.

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rantir as diferenças por meio de um contexto discursivo. Em relação ao socialismo, visualizar

a riqueza do anarquismo ao defender a relevância para o processo político das associações.

Habermas também rejeita que o procedimento democrático permita a existência de um saber

intelectual condutor.

É nesse sentido que Walzer defende que:

As críticas comunitárias ao liberalismo não são novas e que os argumentos esgrimi-dos são, na realidade, argumentos de moda periodicamente recorrentes. Sob diversas denominações, procura expressar-se o descontentamento na social democracia pro-veniente de certo grau de desenraizamento das formas sociais que o crescimento e-conômico gera. Nesse sentido, o comunitarismo não seria mais que um traço inter-mitente do próprio liberalismo169.

A definição do comunitarismo fora dos termos do debate com o liberalismo individua-

lista não é simples, não só porque é nele que o comunitarismo se articula, mas porque não é

uma escola filosófica em sentido estrito, cujos autores partilhem, de uma forma clara e unifi-

cada, uma mesma tradição conceitual ou sequer uma concepção teórica homogênea, unifica-

da. O termo parece servir mais para reunir uma diversidade de estudos que se vinculam por

uma linha apesar de tudo comum de críticas ao liberalismo170.

A defesa do pluralismo e da igualdade apregoada por Walzer é tida com uma das obras

fundamentais contrária à Teoria da Justiça de Rawls em relação à proposta de justiça distribu-

tiva. Esta obra se constitui em uma crítica centrada em aspectos muito particulares do libera-

lismo, nomeadamente pela crítica do sujeito desvinculado e à prioridade do justo sobre o bem,

delineando, assim, um núcleo comunitário com vertentes metodológicas e normativas. Meto-

dologicamente, os comunitaristas defendem que as premissas do individualismo, como a do

indivíduo racional capaz de escolher livremente o seu destino, estão erradas, e que a única

maneira de entender a conduta humana é através de uma referência aos indivíduos nos seus

contextos sociais, culturais e históricos. Normativamente, os comunitários afirmam que as

169 WALZER, Michael. Op. cit. p.6. 170 SILVERIRINHA, Maria João. Comunitarismo. Disponível em: <http://www.ifl.pt/dfmp_files/comuni-tarismo.pdf>. Acesso em: 22 abr. 2006.

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premissas individualistas do liberalismo têm conseqüências morais pouco satisfatórias, redun-

dando, por exemplo, na impossibilidade de uma verdadeira comunidade, ou no abandono de

algumas idéias da vida boa defendidas pela comunidade. Em última análise, e como alternati-

va ao individualismo, que considera como valor central a liberdade individual do ser humano,

o comunitarismo de Walzer propõe um centramento na solidariedade, considerando como

valor central os múltiplos vínculos comunitários171.

Na concepção de Walzer, inexiste comunidade política que não atenda, tente ou até

mesmo declare atender as necessidades dos seus membros, conforme seu entendimento. Por

outro lado, afirma jamais ter existido comunidade política que não empenhasse sua força cole-

tiva, sua capacidade de dirigir, regulamentar e coagir, complementando que:

[...] as modalidades de organização, os níveis de tributação, a época e o alcance do recrutamento militar: tudo isso sempre foi alvo de controvérsias políticas. Mas o uso do poder político, até bem recentemente não era controverso. A construção de fortes, represas e obras de irrigação; a mobilização de exércitos; o abastecimento de ali-mentos e do comércio em geral – tudo isso requer coação. O Estado é uma ferramen-ta que não se pode fabricar sem ferro. E a coação, por sua vez, requer os agentes de coação. A provisão comunitária é sempre mediada por um conjunto de autoridades (padres, soldados e burocratas) que inserem distorções características no processo, drenagem de dinheiro e mão-de-obra para fins próprios, ou uso da provisão como forma de controle.172

Sendo toda a comunidade política um Estado de bem-estar social, esta deverá estar

empenhada em suportar os compromissos advindos dos deveres do cargo e da afiliação e, sem

que haja um certo senso compartilhado de obrigações, essa comunidade política não existiria

e, por sua vez não existiria também a segurança e nem o bem-estar social “e a vida da huma-

nidade seria solitária, pobre, sórdida, bruta e curta”173.

Buscando respostas para as medidas desejáveis de segurança e bem-estar social (tipos,

forma de distribuição e de pagamento), Walzer os intitula de problemas sérios, que podem ser

resolvidos apropriadamente ou não, dependendo da comunidade. Objetivando reforças e es-

171 Id. 172 WALZER, Michael. Op. cit. p.90. 173 Id., p. 91

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clarecer seu pensamento, recorre aos exemplos de Atenas nos séculos IV e V174 e a uma co-

munidade medieval judaica175, as quais, muito embora os períodos históricos distintos, pauta-

vam pelos compromissos relativos à distribuição geral e particular, ou seja, as duas comuni-

dades eram, ao seu ver, relativamente democráticas, assim como a nossa e, em geral, respeita-

vam a propriedade privada, completando que “nenhuma das duas (comunidades atenienses e

judaicas), pelo que sei, jamais figurou de maneira significativa nas histórias do Estado e do

bem-estar social; não obstante, os cidadãos de ambas entendiam o significado de provisão

comunitária”176.

Quando aborda a provisão comunitária, Walzer refere-se às parcelas justas, cujos prin-

cípios extraiu dos exemplos grego e judaico. Para ele, “uma dessas parcelas tem relação com a

escala dos bens a repartir, os limites da esfera da segurança e do bem-estar social e a outra

relaciona-se com os princípios de distribuição apropriados dentro da esfera”177. A máxima

talmúdica178 era no sentido de que se deveria ajudar os pobres, proporcionalmente às suas ne-

174 As cidades-Estado gregas demonstravam grande sensibilidade no que se refere ao bem-estar social geral. Estavam dispostas a tomar providências voltadas para o benefício de todos os cidadãos; com relação ao bem-estar social...em especial dos pobres, era, pelo contrário, bem indiferentes (COHN-HAFT, apud WALZER, 2003, p. 91). Em Atenas e posteriormente em muitas cidades gregas um pequeno grupo de édicos era eleito para ocupar cargos públicos. Apesar da remuneração concernente ao cargo, cobravam pelos serviços profissionais, sendo que recebiam pressões da comunidade para não recusar a prestação de atendimento a doentes que não pudessem pagar pelos seus serviços. Walzer refere-se a esse período como fragmentário, mas para ele parece que as eleições de médicos para os cargos públicos tinham o propósito real de tê-los à disposição em épocas de peste. Destarte, a provisão era geral, e não particular, mesmo porque era o costume em Atenas. A provisão era abran-gente: começava na defesa (a esquadra, o exército, as muralhas), sob o comando de Magistrados e generais e tudo com ajuda dos próprios cidadãos. O mesmo ocorria em relação à agricultura, onde um grupo de autoridades determinava a política de negócios, envolvendo inclusive os sacerdotes, os quais também eram funcionários públicos. Praticamente tudo era subsidiado, ora pelo Estado, ora por cidadãos abastados, exceção para investi-mentos públicos em escolas e professores. As distribuições particulares autorizadas pela Assembléia ateniense eram pouquíssimas. Quando necessário, havia redistribuição de renda, na busca pelo equilíbrio das desigualda-des sociais, muito embora os atenienses não tivessem percepção direta da pobreza propriamente dita. 175 Ao contrário de Atenas, as comunidades judaicas eram autônomas, porém não soberanas, uma vez que tinham plenos poderes de tributação, apesar de terem que repassar grande parte do dinheiro arrecadado ao reis, prínci-pes ou senhores seculares (cristãos) a título de impostos ou suborno, como se fosse o preço da proteção. As prin-cipais formas de provisão geral (sem contar o dinheiro pago pela proteção) eram de caráter religioso. As autori-dades das sinagogas e dos tribunais (que administravam a lei talmúdica) eram pagos com verbas públicas e con-trolavam os assuntos econômicos rigidamente e as distribuições particulares assumiam a forma de donativos. 176 Ibid., p. 91. 177 Ibid., p. 99. 178 O Talmud é uma compilação de leis e tradições judaicas (datada de 499 d.C), consistindo-se em 63 tratados de assuntos legais, éticos e históricos. O Judaísmo ortodoxo e o conservador baseiam suas leis geralmente nas decisões encontradas no Talmud. O Talmud é um detalhamento e comentário das tradições judaicas, a partir das leis compiladas por Moisés na Torá (Leis) em geral e na Mishná (principal texto do judaísmo) no detalhe. O

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cessidades, mais como forma de acabar com a mendicância. A lógica social e moral da provi-

são está atrelada ao entendimento do distribuir e do trocar. Distribuir alimentos ao faminto, é

aliviar sua fome; fazer com que o pobre compense a ajuda com suas habilidades, é trocar. O

poder do Estado está relacionado a essa capacidade de distribuir e compensar.

A propriedade também é entendida por Walzer como certo tipo de poder sobre coisas,

assim como o poder político, que também consiste na capacidade de discernir entre distribui-

ção e troca, e também conservá-la, mesmo usando e abusando e decidindo com liberdade so-

bre os custos do desgaste, trazendo consigo diversos tipos de poder sobre pessoas. Walzer cita

a escravidão como caso extremo de excesso das formas usuais de administração política e

conclui seu pensamento afirmando que a soberania acarreta e a propriedade às vezes alcança

(fora de sua esfera) a manutenção do controle sobre os destinos e os riscos de outras pessoas.

Não é fácil ser justo quando o livre uso da propriedade se converte em exercício do poder.

2.7 INFLUÊNCIAS DOS PRINCÍPIOS COMUNITARISTAS

No âmbito político-filosófico, a discussão entre liberalismo e comunitarismo apresenta

algumas dificuldades na sua dissecação. Embora a maior parte da literatura sobre este debate

se tenha produzido nos anos 80, a discussão está já muito enraizada no tempo. Enquanto os

liberais se sentem herdeiros de Locke, Hobbes, Stuart Mill, Kant, os comunitaristas têm as

suas raízes no aristotelismo, em Hegel e na tradição republicana da Renascença (como por

exemplo, Maquievel e O Príncipe, que nada mais é do que um tratado político, onde se afirma

que o governante deve subordinar a sua conduta ao êxito político). Os primeiros partilham a

idéia de liberdade de consciência, respeito pelos direitos do indivíduo e desconfiança frente à

Mishná foi redigido pelos mestres chamados Tannaím ou Tanaítas (termo que deriva da palavra hebraica que significa ensinar ou transmitir uma tradição). Os Tanaítas viveram entre o século I e III d. C. A primeira codificação é atribuída a Rabi-Akivá (50–130), e uma segunda, a Rabi-Meír (entre 130 e 160 dC).

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ameaça de um Estado paternalista; os comunitaristas comungam da desconfiança pela moral

abstrata, têm simpatia pela ética das virtudes e uma concepção política com muito espaço para

a história das tradições179.

O projeto comunitarista se constrói em contraposição às teses do liberalismo, muito

embora seja necessário ressaltar que nem todas as críticas comunitaristas são dirigidas direta-

mente ao liberalismo político de Rawls, já que Walzer, Taylor e MacIntyre desenvolvem ar-

gumentos sem qualquer análise específica sobre a teoria de Rawls. Sandel é o único que esta-

belece uma polêmica direta com Rawls e, apesar de fazer uma interpretação questionável da

sua teoria, não se pode ignorar a força da crítica do comunitarismo180.

Enquanto o modelo liberal supõe uma natureza obrigatória nos direitos fundamentais e

propõe a Constituição como garantia de sujeitos individuais frente às possibilidades da delibe-

ração pública, o pensamento comunitário insiste na matriz social da própria liberdade indivi-

dual, enfatizando a comunidade histórica que a valoriza e sustenta a ponto de elevar os direi-

tos que lhe são inerentes à qualidade da lei maior. Na perspectiva comunitária, o modelo cons-

titucional é possível pela autodeterminação política em torno de ideais. A realização da demo-

cracia constitucional é real, enquanto atitude de subjetividades participativas, capazes de fazer

do processo democrático uma forma peculiar de propiciar entendimentos éticos que sintetizem

na Constituição um projeto de destino compartilhado. Importa, neste sentido, verificar duas

formulações comunitárias que contraditam a concepção individualista do sujeito e a concep-

ção centralista da constituição181.

Os comunitaristas consideram equivocadas as concepções teóricas que procuram prin-

cípios universais para a natureza da melhor forma de associação política. Os princípios uni-

179 GONÇALVES, Gisela. 1998. Comunitarismo ou Liberalismo? Disponível em: <http://www.bocc.ubi.pt/pag/goncalves-gisela-COMUNITARISMO-LIBERALISMO.pdf >. Acesso em: 20 abr. 2006. 180 FARIAS, José Fernando de Castro. Espaço Público e Reconstrução da Solidariedade. Disponível em: <http://www.puc-rio.br/direito/revista/online/rev11_josefer.html#_ftnref16>. Acesso em 21 abr. 2006. 181 BAVARESCO, Agemir; et. al. Op. cit.

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versais não têm uma base real, eles só existem na cabeça de alguns filósofos. Os problemas

importantes surgem no interior de associações políticas, e suas soluções só podem ser encon-

tradas no seio das práticas e das tradições da própria comunidade182.

Segundo os comunitaristas, os liberais, obcecados pelos direitos individuais e por con-

ceberem o homem atomisticamente, no fundo limitam as capacidades individuais e estabele-

cem uma visão equivocada da sociabilidade humana. É preciso construir instituições que ga-

rantam um contexto social capaz de possibilitar o desenvolvimento das capacidades indivi-

duais183.

2.8 A RELAÇÃO LIBERALISMO/COMUNITARISMO

O debate entre os representantes do neo-liberalismo e do comunitarismo girava em

torno do problema se e em que medida a questão sobre o politicamente justo pode ser separa-

da da questão sobre o moralmente bom. Enquanto os liberalistas querem salvar a validade

universal dos princípios jurídico-políticos por eles reclamados, desvinculando-os da resposta

à questão sobre o bem, os comunitaristas, contrariamente, vinculam as questões sobre a justi-

ça política à questão sobre a boa vida e recusam as abstrações sobre as quais pretensamente

fundam-se as suposições dos liberais. Ambos os partidos baseiam-se nas mesmas suposições

centrais, levando-se em conta a concepção de que a questão da eticidade, devido ao pluralis-

mo fático das sociedades modernas e à multiplicidade das formas de vida, escapa fundamen-

talmente a uma resposta universal pela filosofia. Enquanto o liberalismo político pleiteia uma

estrita separação entre as questões do justo e do bem, os comunitaristas concluem pela impos-

182 KUKATHAS, Chandran; PETIT, Philip. Rawls: Uma Teoria da Justiça e os seus Críticos. Lisboa : Gradiva. 1995. p. 112. 183 FARIAS, José Fernando de Castro. Op. cit.

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sibilidade dessa separação, por entenderem que também a questão da justiça política deva ser

submetida a uma leitura pluralista, ou ao menos culturalista184.

A proposta do comunitarismo de um modelo de organização da sociedade apoiada em

laços sentimentais e em uma tradição comum não foi exatamente uma criação original de au-

tores contemporâneos. Historicamente, tal noção remonta ao livro Gemeinschaft und Gesells-

chaft (Comunidade e Sociedade), de 1887, de autoria do sociólogo alemão Ferdinand Tönnies

(1855-1936), mas também pode ser encontrada no conceito de república concebido por Han-

nah Arendt em sua vasta obra política. De um modo geral, o comunitarismo se opõe à fragili-

dade das relações sociais baseadas no contrato e exigências de reciprocidade que visem aten-

der os interesses egoístas dos indivíduos, que acabariam transformado o convívio social em

simples trocas de favores entre sujeitos isolados uns dos outros. As versões de comunidades185

contemporâneas procuraram resgatar o ideal de sociedade humana aristotélica ou tomista co-

mo em McIntyre, ao mesmo tempo em que denunciavam o fracasso do projeto moderno de

convívio adotado pelos liberais186.

A forma liberal de conceber a política estava centrada na noção de justiça, equidade e

direitos individuais fundados em princípios que priorizam o dever em relação aos bens busca-

dos por cada um. Esse tipo de fundamentação comportava um erro conceitual. O liberalismo

político falhava, justamente por prometer princípios neutros impossíveis de ser atingidos. Isto

porque, a defesa liberal de um sujeito que se sente obrigado a cumprir seus deveres, antes de

qualquer coisa, não é condizente com a concepção que as pessoas têm delas mesmas. A justi-

184 LUTZ-BACHMANN, Matthias. Ética e Ação Política. Disponível em: <http://www.sescsp. org.br/sesc/ images/upload/conferencias/101.rtf>. Acesso em 20 abr. 2006. BELL, Daniel. Communitarianism. Stanford Encyclopedia of Philosophy. Disponível em: <http://plato. stanford.edu/entries/communitarianism/>. Acesso em 22 jun. 2006. COHEN, Andrew Jason. Communitarianism, Social Constitution ond Autonomy. Pacific Philosophical Quarterly 80 (1999) 121-135. 186 SILVA, Antônio Rogério da. História da Filosofia Moderna: Multiculturalismo. Disponível em: <http://geocities.yahoo.com.br/discursus/moderna/multucil.html>. Acesso em 23 mar. 2006.

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ça não poderia ser um conceito desenraizado da sociedade no qual o sujeito sentisse algum

dever moral por cumprir187.

Reale escreve:

Embora John Rawls afirme que a sua teoria da justiça como equidade (justice as fa-irness) é uma teoria política e não metafísica, devido à idéia de que, “em uma demo-cracia constitucional, a concepção pública da justiça deveria ser, quanto possível, independente de doutrinas religiosas e filosóficas sujeitas a controvérsia”, na reali-dade toda a sua doutrina repousa sobre pressupostos filosóficos e conjeturas metafí-sicas. Não é a primeira vez que um autor faz um diagnóstico errôneo a respeito de seu próprio pensamento, mas, no caso de Rawls, esse equívoco entra pelos olhos, tantas são as vezes em que ele, em última análise, não faz senão submeter a novo en-foque empírico-pragmático elementos hauridos na doutrina de Kant e na dos utilita-ristas [...]188.

Walzer atacou também o aspecto exclusivista de uma única concepção de justiça, que

por ser uma construção humana, poderia ser realizada de várias maneiras distintas. As ques-

tões que são postas pelos problemas de justiça distributiva podem ser respondidas de várias

maneiras diferentes (por mérito, necessidade ou predestinação). Em sua obra Esferas da Justi-

ça o autor defendeu que os princípios de justiça podem ser plurais e ter várias formas. Além

disso, os bens sociais diversos189deveriam ser distribuídos entre as pessoas de maneiras dife-

rentes, segundo a sua pertinência. As diferentes concepções de bens resultam sempre das con-

dições históricas e culturais de cada sociedade190.

Referindo-se ao conceito de igualdade complexa, Walzer defendeu a idéia de harmo-

nia das esferas diferentes das sociedades:

A igualdade complexa talvez parecesse mais segura se pudéssemos descrevê-la mais como a harmonia que como a autonomia das esferas. Mas as distribuições e os signi-ficados sociais são harmônicos só neste sentido: quando entendemos porque um bem tem certa forma e é distribuído de certa maneira, também entendemos porque outro bem tem de ser diferente. Precisamente devido a estas diferenças, o conflito entre demarcações é um conflito endêmico. Os princípios adequados às distintas esferas não harmonizam uns com os outros, e tampouco os esquemas de conduta e de sen-timento que geram. Os sistemas de benefícios e os mercados, os cargos e as famílias, as escolas e os Estados são operados em arranjo com distintos princípios, e assim

187 SILVA, Antônio Rogério da. Op. cit. 188 REALE, Miguel. op. cit. p. 31. PETRONI, Ângelo Maria. 1999. Comunitarismo e Liberalismo. Ética. Disponível em: <http://www. farmindustria.it/keiron/num006/etica2.pdf>. Acesso em: 21 jun. 2006. 190 WALZER, Michael. op. cit.

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deveriam sê-lo. Os princípios têm que ser abrangentes ao largo das diversas compa-nhias de homens e mulheres. [...] A cultura de uma comunidade é a história que seus membros nos narram de modo que todas as distintas partes de sua vida social te-nham sentido. A justiça é a doutrina que distingue tais partes. Em toda sociedade di-ferenciada, a justiça conduzirá a harmonia só se conduzir à separação. Boas redes fazem sociedades justas191.

A trama social se mantém unida pela acomodação de seus domínios sem que uma se

sobreponha à outra e com a composição harmônica de seus princípios que evitam o confronto

direto. A hegenomia de uma esfera sobre a outra acaba provocando os conflitos que costu-

mam ocorrer nas sociedades mal formadas. Assim, ao contrário do que Rawls havia proposto,

não seria possível que uma doutrina política fosse capaz de reger por si só toda uma socieda-

de, sem a colaboração de outras instâncias sociais. Os princípios de uma teoria da justiça co-

mo eqüidade dependeriam dessa malha consistente e resistente aos desequilíbrios de uma es-

fera sobre a outra192. Outro autor que se dedicou a mostrar que o liberalismo não tinha como

sustentar sua pretensão de neutralidade frente às outras culturas foi McIntyre, ao afirmar que:

O liberalismo, portanto, fornece uma concepção específica da ordem justa, que é in-timamente integrada à concepção do raciocínio prático exigida pelas transações pú-blicas conduzidas nos termos estabelecidos por uma comunidade política liberal. Os princípios que informam tal raciocínio prático, a teoria e a prática da justiça nesta comunidade não são neutros com relação a teorias rivais e conflitantes do bem hu-mano. Onde são vigentes, elas impõem uma concepção particular da vida boa, do ra-ciocínio prático e da justiça sobre os que voluntária ou involuntariamente aceitam os procedimentos liberais e os termos liberais de debate. O supremo bem do liberalis-mo é a manutenção continuada da ordem social e política liberal, nada mais, nada193.

Taylor resgata a tese de Herder, afirmando que cada um tem uma maneira própria de

ser humano e cada um há de viver sua própria vida conforme pautas que só podem ser referi-

das sobre si. A tese se aplica também aos povos, que teriam também uma identidade original e

191 Id. p. 437. 192 GREBLO, Edoardo. Comunitá senza comunitarismo. Considerazioni a margine di L’ereditá romântica di Charles Larmore. Liceo Scientifico “G. Galilei”. 193 MACINTYRE, A. Justiça de Quem? Qual Racionalidade? Trad. de: Marcelo P. Marques. São Paulo: Lo-yola, 1991. p. 370.

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específica, sendo que a identidade individual (de cada um) não pode moldar-se, senão no con-

texto de uma comunidade de língua, tradição e cultura próprias em que está inserida194.

Certo é que os comunitaristas tocam em um ponto nevrálgico do liberalismo: o Estado

tem a responsabilidade de promover instituições e atividades que possam tornar possível uma

vida boa ou deverá manter-se estritamente nos conflitos de direitos? Contudo, cabe advertir

que os liberais não defendem a não intervenção em todos os âmbitos - o limite da intervenção

está na justiça. Mas aqui a tese liberal quase alcança a tese comunitária, ou seja, não é possí-

vel uma separação exata, pura, entre critérios de justiça e concepções do bem, porque a con-

cepção do justo está guiada por um reconhecimento prévio195.

194 TAVARES, Quintino L. C. Comunitarismo vs. universalismo: Uma exposição introdutória. Disponível em: <http://geocities.yahoo.com.br/jusfilosofia/comunitXuniversal.html>. Acesso em: 24 abr. 2006. 195 Id.

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3 FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE NA CONSTITUIÇÃO E NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIROS.

3.1 O PODER CONSTITUINTE E A CONSTITUIÇÃO

A doutrina do Poder Constituinte teria sido concebida pelo abade Emmanuel Joseph

Sieyès 196, em sua famosa obra O que é o terceiro Estado? No seu entendimento, todo Estado

tem uma Constituição. Entretanto essa Constituição (e aqui entra o pacto) é obra de um Poder

Constituinte que a antecede. O Poder Constituinte, portanto, gera os Poderes do Estado, os

poderes constituídos, e é superior a estes 197.

O abade Sieyès distingue o Poder Constituinte do poder constituído, afirmando que o

Poder Constituinte estabelece a Constituição e, ao estabelecê-la, cria poderes destinados a

reger os interesses de uma comunidade. Esses poderes são, pois, constituídos por um Poder

Constituinte, que é distinto daqueles, anterior a eles e fonte da autoridade deles198. Para

Sieyès, o titular do Poder Constituinte é a Nação, que é diferente de povo (o conjunto de indi-

víduos reunidos e sujeitos a um poder, algo equivalente ao que hoje é conhecido como mas-

sa). Por outro lado, Nação seria a encarnação de uma comunidade em sua permanência, nos

seus interesses constantes, interesses que eventualmente não se confundem nem se reduzem

aos interesses dos indivíduos que a compõem em determinado instante199. Já em Sieyès é pos-

196 Emmanuel Joseph Sieyès (1748-1836), político, escritor e eclesiástico francês. Teve um papel de extrema importância nos Estados Gerais, onde foi o representante da Igreja e da aristocracia. Foi um dos participantes mais ativos na criação da Assembléia Nacional, mas as suas idéias contitucionalistas não eram escutadas pelos demais parlamentares. Quando a Convenção se reuniu em 1792 para julgar o Rei Luís XVI, tomou parte em todas as seções e votou a favor da morte do soberano. A partir da execução do Rei, tomou rumo ignorado desa-parecendo dos meios políticos, até reaparecer no dia 9 de Termidor. Nesse período foi eleito, sem saber, membro da Comissão de Salvação Pública, mas seguiu sem obter êxito nas suas reivindicações em defesa da Constituição vigente. Contrariado com os fatos, recusou os demais cargos públicos que lhe eram oferecidos. Junto com Napo-leão Bonaparte, teve participação decisiva no Golpe 18 de Brumário. Foi Cônsul e membro do triunvirato for-mado por ele mesmo, Napoleão Bonaparte e Roger Ducos. Conflitado com o regime, por questões políticas este-ve exilado entre os anos de 1816 e 1830 (ADÃO, 1999). 197 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O poder constituinte. 3. ed. São Paulo : Saraiva, 1999. p. 11-12. 198 id., p. 12 199 Ibid., p. 23.

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sível verificar uma noção de interesses públicos dispostos na coletividade, que teriam o esco-

po de Nação, a qual representaria os interesses contínuos, enquanto que o povo representaria

os interesses dos indivíduos num dado momento. “Sieyès não usa o conceito Nação no senti-

do sociológico, mas como equivalente ao Terceiro Estado, ou seja, como um conjunto dos

indivíduos que pertence à ordem comum. Nação é um corpo de associados vivendo sob uma

lei comum e o Terceiro abrange, pois, todos que pertencem à Nação, e quem não é Terceiro

não pode ter-se como sendo da Nação”.200

Na concepção de Sieyès o povo não teria consciência crítica. Ou seja, seria capaz de

pôr em risco a própria existência da comunidade, em prol de interesses isolados e peremptó-

rios, sem maiores compromissos senão com o prazer imediato. O instrumento mais adequado

para compreender os interesses públicos e permanentes da Nação seria a Lei, emanada do

Poder Legislativo, constituído por representantes da mesma.

O povo, por exemplo, para gozar de um maior bem-estar, pode sacrificar os interes-ses de gerações futuras, pode sacrificar os interesses permanentes da comunidade. Um exemplo mais concreto que poderia ser dado seria o de um povo que não enfren-tasse uma agressão estrangeira, para não correr todos os riscos e óbices que isso sus-cita, para não sofrer as conseqüências de uma guerra. Mas, fazendo isso, esse povo está, ao mesmo tempo, sacrificando a sobrevivência da comunidade, está aceitando o desaparecimento dela. Assim, para atender aos seus interesses, esse povo está sacri-ficando os interesses da comunidade como algo permanente. Essa idéia de Seiyès, de que no Estado o supremo poder pertence à comunidade encarada na sua permanên-cia, e não encarada nas suas unidades componentes num determinado momento, se liga de perto com outra idéia – a de representação – que está exatamente na raiz de todo o desenvolvimento em torno do Poder Legislativo201.

Teóricos do Direito constitucional são quase unânimes em afirmar que o constitucio-

nalismo moderno começa a ser formado no processo que se inicia com a Magna Carta na In-

glaterra em 1215. Entretanto ali não está presente a idéia de uma Assembléia Nacional Consti-

tuinte que, elaborando uma Constituição, dará início a uma nova realidade constitucional,

200 SILVA, José Afonso da. Poder constituinte e poder popular: Estudos sobre a Constituição. São Paulo : Malheiros Editores, 1999. p. 83-84. 201 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Op. cit. p. 23-24.

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fruto da vontade de um poder soberano e devendo se basear na vontade popular202. Seriam

duas realidades constitucionais que hoje parecem se fundirem, mas que ainda são muito dis-

tintas.

No final do século XX e início do século XXI a titularidade do Poder Constituinte re-

pousa majoritariamente nos Estados e no povo. Nas chamadas democracias ocidentais, os

cidadãos são o povo e a estes a Constituição confere direitos políticos, se considerada uma

caracterização jurídica. Mesmo assim são encontradas dificuldades em abranger todas as pes-

soas dentro de um território sob o manto soberano, quando a questão envolve direitos de um

Estado. A titularidade dos interesses públicos acaba não sendo tão pública assim. Entretanto,

essa afirmação tem que ser associada à idéia de que a participação política não é atribuída a

todos nesses Estados.

Para Schmitt:

O poder constituinte é a vontade política cuja força ou autoridade é capaz de adotar a concreta decisão de conjunto sobre o modo e a forma da própria existência política, determinando, assim, a existência da unidade política como um todo. Uma Consti-tuição não se apóia numa norma cuja justiça seja fundamento de sua validade. Acha-se apoiada, isto sim, numa decisão política surgida de um ser político, acerca do modo e da forma do próprio ser. A expressão vontade revela – em contraste com qualquer dependência referente a uma justiça normativa ou abstrata – o essencial-mente existencial deste fundamento de validade203.

O conceito de poder constituinte não se vincula a tendências ideológicas ou a princí-

pios norteadores deste ou daquele regime político. Desde que o povo seja capaz de organizar

o Estado e exercer o governo de forma soberana, é ele o titular do poder constituinte. Não se

trata do melhor regime. Alude-se ao que é e não ao que deve ser. A própria soberania reside

no querer irrecusável do poder constituinte, sendo este a causa eficiente e a Constituição a

causa instrumental da ação desse poder204.

202 MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. A Teoria do Poder Constituinte. Opinião Jurídica. n. 74, mai. 2004. Disponível em: <http://www.datavenia.net/opiniao.htm>. Acesso em 10 abr. 2006. 203 SCHMITT, Carl. Legalidade e Legitimidade. Trad. de: José Diaz Garcia. Madri : Aguilar, 1971. 204 SALVETTI NETO, Pedro. Op. cit.

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A conclusão da escola clássica francesa colocando a Constituição como um certificado

da vontade política do povo nacional sendo que para que isto ocorra deve ser produto de uma

Assembléia Constituinte representativa da vontade deste povo, se opõe a Kelsen, que afirma

que a Constituição provém de uma norma fundamental. Importante ressaltar neste ponto que

os conceitos dos diversos autores serão influenciados pela compreensão da natureza do Poder

Constituinte: seja um poder de fato ou um poder de Direito205.

Outro aspecto que deve ser considerado sobre o Poder Constituinte refere-se à sua am-

plitude. Alguns autores entendem que o poder constituinte se limita à criação originária do

Direito, enquanto outros compreendem que este poder constituinte é bem mais amplo, inclu-

indo uma criação derivada do Direito através da reforma do texto constitucional, adaptando-o

aos processos de mudança sociocultural.206

O reconhecimento de um poder capaz de estabelecer as regras constitucionais, diverso

daquele de estabelecer regras segundo a Constituição é uma exigência lógica. A superioridade

dessas regras que se impõem aos próprios órgãos do Estado deriva de terem uma origem dis-

tinta, proveniente de um poder que é fonte de todos os demais, pois é o que constitui o Estado,

estabelecendo seus poderes, atribuindo-lhes e limitando-lhes a competência.

A existência de um poder constituinte do Estado e dos poderes constituídos devem ser

reconhecidos, mesmo porque é esse poder constituinte que estabelece a organização jurídica

fundamental e o conjunto de regras jurídicas concernentes à forma do Estado, do governo, ao

modo de aquisição e exercício do governo, ao estabelecimento de seus órgãos e aos limites de

sua ação, bem como as referentes às bases do ordenamento econômico e social207.

É importante observar que, embora se possa falar de poder constituinte relativamen-te a uma Constituição não-escrita, propriamente a distinção entre poder constituinte e poderes constituídos só tem interesse relativamente à Constituição rígida. De fato, naquela é o mesmo poder que gera as regras ordinárias e as regras constitucionais,

205 MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Op. cit. 206 DANTAS, Ivo. Poder Constituinte e Revolução. Rio de Janeiro : Rio Sociedade Cultural Ltda., 1978. p.33. 207 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 19.

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assim, poder legislativo e poder constituinte se confundem – donde a flexibilidade da Constituição. Em relação à Constituição rígida é que se pode mostrar distinta-mente a existência de um poder anterior e inicial208.

Como Sieyès teorizou, o poder é inicial, autônomo e onipotente. É inicial porque não

existe qualquer outro poder antes dele, nem de fato nem de direito. É nele que se situa por

excelência, a vontade do soberano. É um poder autônomo porque somente a ele compete de-

cidir se, como e quando, deve ser dada uma Constituição à Nação. “É um poder onipotente,

incondicionado, porque o poder constituinte não está subordinado a qualquer regra de forma

ou de fundo”.209

O Poder constituinte é dividido da seguinte maneira:210

a) poder originário ou próprio ou pré-jurídico ou de 1º grau, que dá origem, promove

a criação de uma nova Constituição. Uma nova ordem jurídica surge, rompendo

com a anterior, dando início a um novo Estado de Direito. É dotado de autoridade

política máxima. É incondicionado e ilimitado, porque não se acha submetido a

nenhum princípio que não seja o daqueles que o encarnam. Não se encontra vincu-

lado a nenhuma condição;

b) poder derivado ou impróprio ou jurídico ou de 2º grau ou instituído, que está inse-

rido na própria Constituição, fundado e previsto no poder constituinte originário. É

decorrente de uma regra jurídica de autenticidade constitucional, conhece limita-

ções expressas e implícitas e é passível de controle de constitucionalidade, apenas

podendo modificar parcialmente ou completar a Constituição, mediante emendas

(artigos 59, I211 e 60212 da Constituição Federal de 1988);

208 Id. 209 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. cit. p. 94. 210 FRANCO, Wanildo José Nobre. Do poder constituinte, Constituição e constitucionalismo, Normas constitu-cionais e Controle de constitucionalidade. Boletim Jurídico, Uberaba, a. 3, n. 158. Disponível em:<http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=990> Acesso em: 12 abr. 2006. 211 Art. 59. O processo legislativo compreende a elaboração de: I - emendas à Constituição [...].

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c) poder decorrente ou exclusivo dos estados-membros em criar as suas próprias

constituições, desde que respeitados os limites estabelecidos no caput do artigo 25

e § 1º213 da Constituição Federal, com autonomia político-administrativa a nível es-

tadual;

d) poder revisor, previsto no artigo 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transi-

tórias, teve uma atuação cinco anos após a promulgação da Constituição Federal

(1993), em sessão unicameral (Câmara e Senado Federais) com maioria absoluta

dos votos, sendo que sua finalidade foi rever, corrigir e adequar aspectos da Cons-

tituição que se mostraram ineficazes. Após essa ocorrência, reformas na Constitui-

ção brasileira somente serão possíveis através de emendas constitucionais.

A titularidade do Poder Constituinte pertence ao povo. As assembléias constituintes

não titularizam o poder constituinte, sendo apenas órgãos aos quais se atribui, por delegação

popular, o exercício desta prerrogativa. Da mesma forma, o congresso nacional não é o titular

do poder de revisão constitucional, mas tão-somente o instrumento de que se vale o povo para

tal fim214.

[...] a questão da titularidade do poder constituinte se liga intimamente com o pro-blema da soberania do Estado, com o problema de quem é o detentor do mais alto poder do Estado. [...] povo pode ser reconhecido como o titular do poder constituinte mas não é jamais quem o exerce. Ele é um titular passivo, ao qual se imputa uma vontade constituinte sempre manifestada por uma elite215.

212 Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: I - de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal; II - do Presidente da República; III - de mais da metade das Assembléias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros. § 1º A Constituição não poderá ser emendada na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio. § 2º A proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros. § 3º A emenda à Constituição será promulgada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com o respectivo número de ordem. § 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os direitos e garantias individuais. § 5º A matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por pre-judicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa. 213 Art. 25. Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princí-pios desta Constituição. § 1º São reservadas aos Estados as competências que não lhes sejam vedadas por esta Constituição [...]. 214 CAPEZ, Fernando. Direito Constitucional. 12. ed. São Paulo: Paloma, 2003. p. 53. 215 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Op. cit. p. 20.

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“Assim, distinguem-se a titularidade (o povo) e o exercício do poder constituinte (o

exercente), aquele que, em nome do povo, cria o Estado, editando a nova Constituição”216.

3.2 A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

A partir dos importantes acontecimentos do século XVIII (Revolução Francesa, Decla-

ração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789, entre outros), ainda no calor

do individualismo e do exacerbado sentimento de liberdade que brotaram os anseios de limitar

o poder político do governante, submetendo-o também à legalidade e assegurar autonomia aos

indivíduos, principalmente na órbita econômico-patrimonial. Era o rompimento com os postu-

lados vigentes desde o final da Idade Média e a abertura da Era Moderna, sob os plenos influ-

xos do Estado liberal.217

Esse rompimento com os postulados e a abertura da Nova Era foi o que incrementou o

constitucionalismo, fenômeno entendido como a predominância de uma Constituição ordina-

riamente escrita, na qual estivessem consagrados tanto os direitos fundamentais do cidadão

quanto as vedações ao Estado218. Entretanto as Constituições que se seguiram praticamente

não editaram normas que se referissem às relações entre particulares. Apenas se limitavam a

frisar o sentido do Estado mínimo, deixando para os Códigos (compromissados com o subje-

tivismo) a regulação dessas matérias, consoante os nortes do iluminismo. Porém a avidez pela

apropriação, pela propriedade e a dominação regeram as legislações infraconstitucionais, em

exata simetria com aqueles ideais219.

Os códigos civis tiveram como paradigma o cidadão dotado de patrimônio, vale di-zer, o burguês livre do controle ou impedimento públicos [....]. Para os iluministas, a

216 Id. p. 29. 217 SANTOS, José Camacho. O novo Código Civil brasileiro em suas coordenadas axiológicas: do liberalismo à socialidade. Jus Navigandi, Teresina, a. 6, n. 59, out. 2002. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3344>. Acesso em: 25 abr. 2006. 218 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op.Cit. p. 64. 219 SANTOS, José Camacho. Op. cit.

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plenitude da pessoa dava-se com o domínio sobre as coisas, com o ser proprietário. A liberdade dos modernos, ao contrário dos antigos (2), é concebida como não im-pedimento. Livre é quem pode deter, gozar e dispor de sua propriedade, sem impe-dimentos, salvo os ditados pela ordem pública e os bons costumes, sem interferência do Estado220.

Com essa omissão, a ordem constitucional possibilitou aos Códigos Civis que hauris-

sem status de Constituição do Direito Privado ou mesmo Constituição do homem comum e

liberal. Essa hegemonia por vezes permitiu ilações de que a Constituição deveria ser interpre-

tada segundo o Código Civil e não o contrário. Logicamente, o tempo se encarregou de mos-

trar o erro dessa perspectiva221.

Bastos (que é corroborado por Rawls) conceitua a função social da propriedade como

sendo:

O conjunto de normas da Constituição que visa, por vezes até com medidas de gran-de gravidade jurídica, a recolocar a propriedade na sua trilha normal. Há o predomí-nio do critério econômico no conteúdo da função social da propriedade, abrangendo a mesma as sanções determinadas e aceitas na Constituição ao uso deturpado e de-generado, no que vai de encontro à Ordem Jurídica. Tais sanções referem-se às de-correntes do atentado das normas do poder de polícia, ou então à perda da proprie-dade na forma da Constituição Federal. A função social da propriedade careceria de um regime único haja vista a diversidade de domínios nos quais se manifesta a pro-priedade, dependendo sua eficácia de uma rígida e expressa regulamentação consti-tucional e infraconstitucional222.

Nessa ótica, a função social da propriedade seria um mero elemento acessório, ex-

presso e corretor, uma retificação dos desvios tomados por sua utilização excessivamente in-

dividualista e não conciliada com o interesse social, um fator que determina claramente o que

se considerará danoso à coletividade no exercício do feixe de poderes decorrentes do direito

de propriedade. Enfim, mais um instrumento de harmonização da propriedade privada, como

direito fundamental, com a sua destinação social, não servindo, na sua ausência, como uma

justificativa que lhe retire sua legitimidade. Nesse sentido, somente o direito agrário teria con-

220 LÔBO NETTO, Paulo Luiz. Constitucionalização do Direito Civil. Jus Navigandi. Disponível em: <http://www.jusnavegandi.com.br/doutrina/constidc.html> Acesso em: 24 abr. 2006. 221 SANTOS, José Camacho. Op. cit. 222 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 1989. p. 194.

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seguido regulamentar a função social da propriedade no direito positivo223. O princípio da

função social da propriedade é introduzido No Brasil a partir da Emenda Constitucional nº.

10, de novembro de 1964 à Constituição de 1946224.

Foi o Estatuto da Terra225 que primeiro trouxe o conceito de função social da proprie-

dade no direito brasileiro, a teor do § 1º, do artigo 2º, reproduzido pela Constituição de 1988,

apenas alterando a ordem, mas, com a exigência de ser simultânea. O caput do artigo 2º traz

um direito sob condições ao dispor que “é assegurada a todos a oportunidade de acesso à pro-

priedade da terra, condicionada pela sua função social”. O Estatuto da Terra, no seu artigo 12,

impõe que “à propriedade privada da terra cabe intrinsecamente uma função social e seu uso é

condicionado ao bem-estar coletivo”.

Foram significativas as mudanças ocorridas no campo do direito privado com relação

ao Direito Subjetivo da Propriedade. Os indivíduos passam a não possuírem mais direitos e

sim funções, deixando de ser fim para serem os meios, transformando a sociedade em função

social do possuidor de riqueza. O sistema civilista da propriedade mostra-se aqui injusto, ten-

dendo a proteger unicamente os fins individuais em detrimento dos interesses coletivos.

A Constituição Federal de 1988, também conhecida como Constituição Cidadã, tem

por escopo a prevalência do interesse social. Tal fato é muito bem evidenciado no Título II

(Dos Direitos e Garantias Fundamentais), onde se percebe que o legislador procurou ressaltar

como finalidade o bem da coletividade. É importante discorrer sobre o artigo 3º da Constitui-

ção Federal:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento na-cional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades soci-ais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação;

223 FRANÇA, Vladimir da Rocha. Discricionariedade e Estado Intervencionista: Aspectos Constitucionais e Administrativos. Natal : Mimeo, 1997. p. 11 224 FALCÃO, Ismael Marinho. Direito agrário brasileiro. São Paulo : EDIPRO, 1995, p 208. 225 BRASIL. Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964. Dispõe sobre o Estatuto da Terra e dá outras providên-cias. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Brasília, 30 nov. 1964.

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Segundo Silva, “a ordem social que a Lei Maior instituiu tem por base a construção

desses objetos e o intérprete da lei deve pautar-se por eles”226. Os Direitos e Garantias Funda-

mentais (dando-se ênfase ao rol do artigo 5º, assegurado pelo artigo 3º da Constituição Fede-

ral de 1988) são considerados como a coluna vertebral de todo o ordenamento jurídico, pois é

através de seu cumprimento que se dará ensejo para o desenvolvimento social, político e jurí-

dico do país. O sistema dos direitos fundamentais constitucionalmente consagrado é concebi-

do como um complexo normativo hierárquico no conjunto do sistema jurídico em geral, dele

derivando conseqüências jurídicas, pois se encontra posicionado no mais alto degrau das fon-

tes dos direitos: as normas constitucionais.

Os direitos fundamentais estão inseridos nos princípios constitucionais fundamentais.

Sem eles, a Constituição não seria mais que uma reunião de normas que somente teria em

comum o fato de estarem incluídas num mesmo texto legal. Importante salientar que os direi-

tos e garantias fundamentais não são frutos da elaboração de uma Constituição, mas elemen-

tos que servem de sustentação e edificação da mesma.

Ensina Serrano que “a garantia institucional da propriedade pode ensejar a criação de

direitos e deveres para o indivíduo e para a sociedade”227. Inexistem propriamente comparti-

mentos estanques e incomunicáveis entre os direitos e garantias fundamentais. O direito é

dinâmico e não se prende apenas ao que foi expressamente exposto no Texto Constitucional,

como ele mesmo reconhece no artigo 5º, § 2º, quando determina que os direitos e garantias ali

expressos não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios adotados por ela, ou dos

tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

Bobbio afirma que: “Os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são di-

reitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa

de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma

226 SILVA, Rafael Egídio Leal. Op. cit. p. 254. 227 SERRANO, Nicolás Pérez. Tratado de Direito Político. 2. ed. Madrid: Civitas, 1984. p. 675.

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vez”228. As Constituições apenas os certificam, declaram e garantem. E acrescenta: “O reco-

nhecimento e a proteção dos direitos do homem estão na base das Constituições democráticas

modernas”229.

Sobre o tema, Moraes enfatiza:

O estabelecimento de constituições escritas está diretamente ligado à edição de de-clarações de direitos do homem. Com a finalidade de estabelecimento de limites ao poder político, ocorrendo a incorporação de direitos subjetivos do homem em nor-mas formalmente básicas, subtraindo-se seu reconhecimento e garantia à disponibi-lidade do legislador ordinário230.

Assim considerados e sob a luz do entendimento da cooperação e da solidariedade en-

tre os homens, os direitos fundamentais designam direitos que se erguem constantemente di-

ante do poder estatal, limitando a ação do Estado. No que tange ao direito pátrio, a Constitui-

ção Federal de 1988, em seu Título II (Direitos e Garantias Fundamentais), garante ao povo

brasileiro prerrogativas em face ao Estado. Em regra, as normas que consubstanciam os direi-

tos fundamentais democráticos e individuais são de eficácia e aplicabilidade imediata. A pró-

pria Constituição Federal, em uma norma-síntese determina tal fato dizendo que as normas

definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata (parágrafo primeiro

do artigo 5º da CF/88).

Uma análise consubstancial sobre a propriedade privada é possível a partir da citação

do caput do artigo 5º, XXII e XXIII da Constituição Federal de 1988, juntamente com o dis-

posto no seu § 1º:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantin-do-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XXII – é garantido o direito de propriedade; XXIII – a propriedade atenderá sua função social. § 1º. As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

228 BOBBIO, Norberto. Op. Cit. p. 5. 229 Id. 230 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2000. p. 57.

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Nota-se, pois, ser esta uma norma parcialmente em branco, impossível de aplicação

sem a edição de outra norma legal. A todos é assegurado o direito de propriedade (direito in-

dividual). Todavia tal direito é acompanhado da cláusula imperativa que a propriedade aten-

derá sua função social. Portanto, a função social possui caráter de dever coletivo, estando o

direito à propriedade garantido se sua função social for cumprida.

Segundo Abinagem “a propriedade agrária caracteriza-se pelo fato de constituir bens

que não se destinam ao consumo, mas aptos a produzir bens para o consumo”231.

O papel da função social da propriedade privada é fazer submeter o interesse individu-

al ao interesse coletivo (bem-estar geral). O verdadeiro significado da função social da propri-

edade não é de diminuição do direito de propriedade, mas de poder-dever do proprietário,

devendo este dar à propriedade destino determinado. Completando esse pensamento, Araújoa-

firma que:

A propriedade deve cumprir a sua função social para que, explorada eficientemente, possa contribuir para o bem-estar não apenas de seu titular, mas, por meio de níveis satisfatórios de produtividade e, sobretudo justas relações de trabalho, assegurar a justiça social a toda a comunidade rural232.

Complementando esse pensamento Rocha discorre que “a propriedade não pode aten-

der somente ao interesse do indivíduo, egoisticamente considerado, mas também ao interesse

comum da coletividade da qual o titular do domínio faz parte integrante”233. Varella ensina que

“como conseqüência da evolução social, pode-se observar o crescimento das ideologias soci-

al-democratas que têm como característica comum a limitação do direito de propriedade, vin-

culando-a ao cumprimento de sua função social”234. Outro fator que merece ser mencionado

em relação à função social da propriedade é que esta se encontra inserida no rol das chamadas

231 ABINAGEM, Alfredo. A família no direito agrário. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. p. 161. 232 ARAÚJO, Telga de. A propriedade e sua função social.. In: Direito agrário brasileiro. São Paulo: LTr, 1999. p.161. 233 ROCHA, Olavo Acyr de Lima. Op. Cit. p. 71. 234 VARELLA, Marcelo Dias. Introdução ao direito à reforma agrária: o direito face aos novos conflitos sociais. Leme: Editora de Direito, 1997. p. 216.

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cláusulas pétreas: “Art. 60 [...] § 4º. Não será objeto de deliberação a proposta de emenda

tendente a abolir: [...] IV – os direitos e garantias individuais235. Tal norma confere estabilida-

de à função social da propriedade, ou seja, enquanto vigorar a Constituição Federal de 1988, a

função social da propriedade não poderá ser alterada.

É importante destacar também a importância da propriedade privada e de sua função

social no âmbito da esfera econômica, conforme constante no artigo 170, Capítulo I (Dos

Princípios Gerais da Atividade Econômica) do Título VII (Da Ordem Econômica e Financei-

ra) da Constituição Federal de 1988:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] II – propriedade privada; III – função social da propriedade.

Inicialmente o direito de propriedade foi concebido como direito absoluto, natural e

imprescritível, quer seja como uma relação entre uma pessoa e uma coisa ou entre um indiví-

duo e um sujeito passivo universal dentro da visão civilista. Predomina atualmente o entendi-

mento de que a propriedade compreende um complexo de normas jurídicas de direito privado

e de direito público, cujo conteúdo é determinado pelo direito positivo236. Nota-se, pois, ser

esta uma norma parcialmente em branco, não sendo possível aplicá-la sem a edição de outra

norma legal. Logo, tanto a propriedade privada quanto sua função social são consideradas

como princípios gerais, constituindo uma base para o sistema. A função social funciona como

um limite à liberdade de iniciativa.

Enquanto a propriedade é encarada como instrumento, como uma garantia da subsis-

tência individual e familiar, tem uma função individual, isenta da função social, limitada tão

somente pelo poder de polícia estatal, que estaria relacionada com o artigo 5º, inciso XXII, da

Constituição brasileira. Estando a propriedade relacionada com os bens de produção, o que se

235 BRASIL. Op. cit. 236 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 7. ed. rev. amp. São Paulo: RT, 1991. p. 240.

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teria não é um direito de propriedade, mas uma propriedade-função, perdendo sua condição de

direito e passando a de dever, estando assentada no texto constitucional no artigo 170, inciso

III, da Constituição:

[..] quanto à inclusão do princípio da garantia da propriedade privada dos bens de produção entre os princípios da ordem econômica, tem o condão de não apenas afe-tá-los pela função social - conúbio entre os incisos II e III do art. 170 - mas, além disso, de subordinar o exercício dessa propriedade aos ditames da justiça social e de transformar esse mesmo exercício em instrumento para a realização do fim de asse-gurar a todos existência digna. Não há possibilidade em se considerar o princípio da função social da propriedade como elemento isolado da propriedade privada, pois a-final, a alusão à função social da propriedade estatal qualitativamente nada inova, visto ser ela dinamizada no exercício de uma função pública237.

A Lei de Reforma Agrária238, que regulamenta e disciplina disposições relativas à re-

forma agrária, prevista no capítulo III, do título VII, da Constituição Federal, por óbvio, no

artigo 9º, trata da matéria, reproduzindo, na sua inteireza, a redação do artigo 186, da Consti-

tuição Federal. É oportuno destacar, conforme dispõe a alínea b, do § 2º, do artigo 2º, do Esta-

tuto da Terra, que “é dever do Poder Público zelar para que a propriedade da terra desempe-

nhe sua função social, estimulando planos para a sua racional utilização, promovendo a justa

remuneração e o acesso do trabalhador aos benefícios do aumento da produtividade e ao bem-

estar coletivo”.

A propriedade consiste no anteparo constitucional entre o domínio privado e o públi-

co, havendo a sua tutela constitucional em razão da limitação imposta ao Estado no campo

econômico, pois a apropriação particular dos bens econômicos não pode ser sacrificada, tanto

que a mutação subjetiva que a desloque do particular para o Estado somente pode ocorrer me-

diante desapropriação nos termos da lei, conforme a necessidade de utilidade pública ou inte-

resse social, após prévia indenização239.

237 GRAU, Eros Roberto. Ordem Econômica na Constituição de 1988: Interpretação e Crítica. São Paulo: RT, 1990. p. 247. 238 BRASIL. Lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993. Dispõe sobre a regulamentação dos dispositivos constitu-cionais relativos à reforma agrária, previstos no Capítulo III, Título VII, da Constituição Federal. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Brasília, 25 fev. 1993. 239 Cf. artigo 5º, XXIV, Constituição Federal de 1988.

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O Texto Constitucional, ao dar independência à proteção da propriedade, tornando-a objeto de um inciso próprio e exclusivo, deixa claro que a propriedade é assegurada por si mesma, erigindo-se em uma das opções fundamentais do Texto Constitucio-nal, que assim repele modalidades outras de resolução da questão dominial como, por exemplo, a coletivização estatal240.

A função social é intrínseca à propriedade privada. As concepções individualistas su-

cumbiram diante da força das pressões sociais em prol de sua democratização. Pode-se dizer

que não basta apenas o título aquisitivo para conferir-lhe legitimidade. É preciso que o seu

titular, ao utilizar o feixe dos poderes absolutos, amplos ou restringidos, integrantes do direito

de propriedade, esteja sensibilizado com o dever social imposto pela Constituição Federal241.

Nesta questão pode-se afirmar que Walzer contribui mais que Ralws.

A objetividade da Constituição de 1988 está no fato de garantir o direito de pro-

priedade, na forma do inciso XXII do artigo 5º, para que se evite, sob o pretexto da socializa-

ção, a extinção da propriedade privada, garantindo, inclusive, o direito à indenização no caso

de desapropriação242.

A propriedade perde sua legitimidade jurídica sem o atendimento da função social que

lhe foi imposta pela Constituição e o seu titular não pode mais argüir em seu favor o direito

individual de propriedade, devendo se submeter às sanções do ordenamento jurídico para res-

socializar a mesma. Beznos, ao apreciar o tema Desapropriação, escreve:

De fato, Leon Duguit, em 1911, por ocasião de uma série de conferências produzi-das de agosto a setembro desse ano, na Faculdade de Direito de Buenos Aires, poste-riormente editadas em livro, oferecia uma outra perspectiva do Direito, negando titu-larizar ao homem quaisquer direitos subjetivos. Antes, asseverava esse grande mes-tre, que todo homem tem uma função social, tendo o dever de desempenhá-la, com-preendendo à mesma o dever de desenvolver-se em sua plenitude, sendo todas as su-as atividades, no desempenho dessa função, socialmente protegidas. Igualmente, em relação à propriedade, negava Duguit o seu caráter de direito subjetivo, qualifican-do-a também como função-social243.

240 BASTOS, Celso Ribeiro. Op. Cit. p. 193. 241 FRANÇA, Vladimir da Rocha. Op. Cit. p. 10. 242 Cf. artigo 5º, XXIV, Constituição Federal de 1988. 243 BEZNOS, Clóvis. Direito Administrativo na Constituição de 1988. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1991.

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À luz do direito brasileiro não há incompatibilidade entre o direito de propriedade e a

função social da propriedade, desde que compreendido o direito subjetivo. Em um momento

estático, que legitima o proprietário a manter o que lhe pertence imune a pretensões alheias, e

a função, em um momento dinâmico, que impõe ao proprietário o dever de destinar o objeto

de seu direito aos fins sociais, determinados pelo Ordenamento jurídico244.

Na identificação jurídica da incidência do princípio da função social da propriedade,

Vaz manifesta-se da seguinte maneira:

O direito subjetivo do proprietário dos bens de produção, da propriedade dinâmica não pode ser considerado abolido simplesmente porque a empresa privada tem uma função social a cumprir. Esta função impõe compromissos e deveres ao acionista controlador, conforme o artigo 170, caput, e inciso III da Carta vigente e ainda nos termos do parágrafo único do artigo 116 da Lei 6.404/76, mas não lhe retira a quali-dade de titular de direitos subjetivos sobre os lucros ou os dividendos resultantes da atividade empresarial. Caso contrário, não se justificaria a inserção da livre iniciativa no caput do artigo 170nem do princípio da propriedade privada no inciso II do mesmo dispositivo245.

A propriedade não é uma função social, mas sim exerce uma função social. Segundo

Bastos “a função social da propriedade nada mais é do que o conjunto de normas da Constitu-

ição que visa, por vezes até com medidas de grande gravidade jurídica, recolocar a proprieda-

de na sua trilha normal"246.

O princípio da função social tem como objetivo conceder legitimidade jurídica à

propriedade privada, tornando-a associativa e construtiva e, por conseguinte, resguardar os

fundamentos e diretrizes fundamentais expostas nos artigos 1º e 3º da Constituição Federal,

bem como os demais fundamentos e diretrizes constitucionais relacionadas com a matéria247.

Clóvis Beviláqua, autor do projeto do Código Civil Brasileiro, reconheceu impróprio

atribuir ao domínio ou direito de propriedade os caracteres de absoluto e ilimitado, embora

seja a reunião mais completa de poderes de uma pessoa sobre uma coisa, mas sempre segundo

244 BARROZO FILHO, José. Op. cit. 245 VAZ, Isabel. Op. cit. 246 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo : Saraiva, 1989. p. 194 247 FRANÇA, Vladimir da Rocha. Instituição da Propriedade e sua Função Social. In: Revista da Escola Superior de Magistratura do Estado de Pernambuco. Recife, v. 2. n. 6. out. – dez. 1997. p. 457 – 488.

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os preceitos regulamentares da lei. Nesse sentido é que se deve entender atualmente a propo-

sição romana plena in re potestas. O iminente jurista invoca os dispositivos das Constituições

de 1934 e 1937 para corroborar a afirmação de ser a propriedade direito absoluto e ilimitado.

É exclusiva, porque afasta do bem, que lhe é objeto, a ação de qualquer outra pessoa, salvo disposição de lei ou contrato. O caráter de perpetuidade deve ser interpretado, segundo o citado autor, no sentido de que a propriedade subsiste, independentemen-te de exercício, enquanto não sobrevém uma causa legal extinta248.

O caráter absoluto da propriedade não mais pode ser considerado frente às novas con-

cepções do direito civil, pois cada vez mais a sociedade como um todo impõe uma série de

limitações ao seu exercício. Usar, gozar e dispor não são direitos autônomos, mas faculdades

inseridas na situação jurídica subjetiva complexa chamada de propriedade. Porém, por envol-

ver coisa que economicamente tem valor de moeda (a terra), havia uma grande dificuldade em

entender que o direito de propriedade é apenas a possibilidade de um exercício de poder sobre

uma coisa, com base na vontade do proprietário, respeitando as leis e os direitos de terceiros,

bem como seu fim econômico e social (como a função ambiental).

Em relação especificamente à função social/ambiental da propriedade como requisito

para garantia do direito de propriedade e como função atribuída ao Estado e ao particular, o

que se alegava para justificar a não aplicação da norma constitucional era que não existia re-

gulamentação que desse o conceito de função ambiental da propriedade, mesmo frente ao

artigo 186 da Constituição Federal. Ora, este artigo é claro quanto aos requisitos a serem a-

tendidos pela propriedade rural e a legislação ambiental é especifica quanto às obrigações do

proprietário em relação aos elementos naturais e à forma como devem ser protegidos.

A chegada do novo Código Civil249 é a solução inovadora para a questão da função so-

cial da propriedade, em especial o previsto no artigo 1228 e seu parágrafo1º:

248 MORAM, Maria Regina Pagetti. Função social e legitimidade à atribuição do direito de propriedade. Revista de Estudos Jurídicos UNESP. Franca, 1988. p. 71. 249 BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Brasília, 11 jan 2002.

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Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direi-to de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha. § 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o es-tabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.

O direito de propriedade se torna mais social. O novo código incorpora todos os avan-

ços surgidos nos últimos anos, visando a uma maior socialização do direito de propriedade.

Além de diminuir os prazos de usucapião, amplia o instituto, estabelecendo uma modalidade

de usucapião social, quando um grupo grande de pessoas usa por mais de cinco anos um imó-

vel, dando-lhe destinação de interesse social.

Percebe-se então que o novo código atualizou-se e menciona questões não abordadas

no Código de 1916. Ao exigir a consonância entre a propriedade e a sua finalidade econômica

e social, o legislador dá respaldo aos executores do direito de reconhecerem ou não o direito

de propriedade de alguém.

Por força dos princípios constitucionais (artigo 5º, inciso XXIII; artigo 170, inciso III;

artigo 186, inciso II e artigo 225, caput da Constituição Federal de 1988) ficou a cargo do

proprietário o cumprimento da função social de sua propriedade.

Art. 1228. [...] § 2o São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer co-modidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem. [...] § 4o O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado con-sistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econô-mico relevante. [...] § 5o No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa in-denização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores250.

As disposições constantes nos parágrafos 2º, 3º e 4º do artigo 1.228 do Código Civil

vão de encontro aos princípios fundamentais da nova Lei Civil, em especial o Princípio da

Socialidade, que tem como pressuposto a eliminação do individualismo, substituindo-o por

250 Cf. Código Civil Brasileiro, artigo 1228, §§ 2º, 4º e 5º.

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uma atuação solidária onde o interesse coletivo, expresso este na função social do contrato,

sirva como parâmetro de limitação dos direitos individuais.

Tendo a Constituição incorporado em sua essência valores sociais próprios do Estado

social, obviamente impôs obediência de todos aos ditames da solidariedade, a fim de que re-

almente se possa edificar uma sociedade justa (art. 3o, inciso I). Anunciou que os indivíduos

hão de procurar a satisfação de seus interesses particulares com liberdade, mas de modo que

os harmonizem com o sentimento que a comunidade tem acerca de bem comum. Mais que

isso, todos têm de buscar, como num somatório de forças, sem boicotes e subterfúgios, o a-

tendimento dos motes éticos e funcionais do Direito, como preconiza a Constituição Federal,

porquanto destinados à realização dos objetivos e fundamentos da pátria251.

Reale, referindo-se ao objetivo do Código Civil escreve que:

[...] é constante o objetivo do novo Código, no sentido de superar o manifesto cará-ter individualista da Lei vigente, feita para um país ainda eminentemente agrícola, com cerca de 80% da população no campo. Hoje em dia, vive o povo brasileiro nas cidades, na mesma proporção de 80%, o que representa uma alteração de 180 graus na mentalidade reinante, inclusive em razão dos meios de comunicação, como o rá-dio e a televisão. Daí, o predomínio do social sobre o individual252.

O feixe normativo que habita o topo da pirâmide hierárquico-jurídica condiciona as

pessoas, bens, categorias e institutos ao cumprimento de suas funções ou finalidades que o

justificam. A socialização, ou seja, a priorização dos valores socioéticos se traduz em man-

damento ou direção a ser seguida, consoante as regras mais básicas ou simples de solidarieda-

de (cooperação, convergência, autodeterminação moral e submissão aos interesses legítimos

da sociedade). Ademais, essa socialização se confunde com a inafastabilidade do Estado (so-

cial, participativo, distributivo) no policiamento diuturno dos atos ou fatos jurídico-sociais, de

modo preventivo ou promocional, repressivo ou punitivo. Nessa esteira, o Direito Privado

251 SANTOS, José Camacho. Op. cit. 252 REALE, Miguel. Visão geral do novo Código Civil. Jus Navigandi, Teresina, a. 6, n. 54, fev. 2002. Disponí-vel em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina>. Acesso em: 21 abr. 2006.

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perderia seu caráter de tutelar o indivíduo com exclusividade para socializar-se e essa sociali-

zação há de permear todos os institutos do Direito Privado253.

A aquisição do domínio e posse do imóvel rural, quando já não havia parte da cobertu-

ra vegetal na propriedade, não afasta a responsabilidade do adquirente254. Trata-se de uma

responsabilidade objetiva e solidária consubstanciada na obrigação real, obrigação essa que se

prende ao titular do direito real.

Constitucionalmente, a propriedade é garantida como direito fundamental do indiví-

duo, uma vez que o caput do artigo 5º da Constituição Federal garante o direito à propriedade

como algo inviolável. Para tanto, a propriedade deve cumprir sua função social.

Para que a propriedade seja de direito fundamental deve cumprir sua função social (a-

proveitamento racional da propriedade, utilização adequada dos recursos naturais disponíveis,

preservação do meio ambiente, relações de trabalho e exploração que favoreça o bem-estar

dos proprietários e trabalhadores).

Muito já se afirmou que à época do Código Civil do Estado liberal, o individualismo e

o liberalismo grassavam, razão pelas quais os valores da pessoa individual eram superestima-

dos, em detrimento dos interesses coletivos. Isso se explicava pelo fato de que o homem pré-

Revolução Francesa, oprimido pelo soberano eclesiástico ou monárquico, ao se sentir alforri-

ado, tomado só pelos ares da igualdade e da liberdade (não pelo compromisso com a fraterni-

dade, que também é pauta desse movimento transformista), reputava que a propriedade seria

fundamental à realização humana, daí recrudescendo os sentimentos egoísticos255.

Não demorou muito para se chegar à conclusão de que o esquema individualista tinha

de ser revisto, mesmo porque o ser humano, a despeito de ser tido como o centro dos interes-

ses, não pode ser individualista, guiado apenas pelos sentimentos egoísticos. Deve, antes de

253 GIORGIANNI, Michele. O Direito privado e as suas atuais fronteiras. Revista dos Tribunais. São Paulo, n. 747. jan. 1998. p. 35 – 55. 254 PACCAGNELLA, Luiz Henrique. Função sócio-ambiental da propriedade rural e áreas de preservação per-manentes e reserva florestal legal. RT Direito Ambiental, São Paulo, v.8. 1997. p.11-12. 255 SANTOS, José Camacho. Op. cit.

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mais nada, assumir a condição de membro da comunidade, compromissado com a prioritária

proteção dos valores da coletividade, com o que também os individuais legítimos. O bem-

estar individual deve se harmonizar ou se condicionar ao bem-estar geral, tal como preconiza

a Constituição Federal de 1988256.

A concepção de coletividade impulsionou o Projeto do Código Civil, que, in-

crementado pela Constituição de 1988 e pela instituição do Estado social, priorizou o sentido

social, abandonando o liberalismo de outrora. A esse propósito realça Reale que "se não hou-

ve a vitória do socialismo, houve o triunfo da socialidade, fazendo prevalecer os valores cole-

tivos sobre os individuais, sem perda, porém, do valor fundante da pessoa humana”257.

256 Id. 257 REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3. ed. São Paulo: R. dos Tribunais, 1998. p. 7-8.

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4 CONCLUSÃO

Desde os primórdios da civilização que a propriedade constitui um foco constante de

tensões sociais e econômicas, desestabilizando relações jurídicas e causando acirrados confli-

tos entre as pessoas e o Estado, gerando fortes repercussões em todas as esferas sociais.

O Direito, por sua vez, sempre procurou criar instrumentos e meios que pudes-

sem defender e pacificar a propriedade, objetivando superar as controvérsias ao seu redor.

Atualmente é possível a identificação de um objetivo que as pressões sócio-econômicas pro-

duziram para o jurista, referente à efetivação e concretização da função social da propriedade.

Não foi pretensão, no presente trabalho, a apresentação de um conceito acabado e claro do

que seja a função social da propriedade. O que se procurou foi a possibilidade de se oferecer

um ponto de partida do qual pode ser edificada uma nova concepção dogmática para o direito

de propriedade e de sua função social sob o prisma do liberalismo e do comunitarismo, a par-

tir de John Rawls e Michael Walzer, aliados aos pensamentos de vários outros autores, na

maioria inspiradores das teorias abordadas com maior evidência no presente estudo.

Uma Teoria da Justiça de John Rawls tem o mérito de ser a primeira grande teoria ge-

ral sobre a justiça, que contribuiu de maneira significativa para uma reorientação no pensa-

mento filosófico, até então interessado em questões epistemológicas e lingüísticas para os

problemas ético-sociais. Tem também propiciado um novo tipo de igualitarismo teórico, não

mais de oportunidades, mas de resultados.

Como ficou demonstrado no presente estudo, toda discussão entre o comunitarismo e

o liberalismo se faz à sombra da Teoria da Justiça de John Rawls. Na realidade, as críticas a

Rawls são críticas do comunitarismo – muito bem defendido modernamente por Michael

Walzer – ao liberalismo.

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A principal resistência a Rawls é quanto à impossibilidade de ser estabelecido um cri-

tério único de justiça para regular diversas classes da sociedade. Em defesa, Rawls alega que

jamais pretendeu um conceito metafísico da justiça, mas político, derivado de um consenso

político resultante de pluralidade de concepções de justiça. É inconcebível a existência de

uma unidade a respeito de justiça. Ao contrário do que se imagina, Rawls reconhece tal im-

possibilidade, quando sustenta a necessidade de um consenso sobre justiça, que terá sempre

um conceito relativo, devendo prevalecer o entendimento da maioria daqueles que com ela

convivem.

O Direito tem de servir à promoção de uma sociedade mais digna e justa, à valorização

da ética258, à prevalência da solidariedade social sobre o individualismo, segundo os segmen-

tos concernentes que norteiam todo o sistema jurídico. Nos dias que correm, ao lado dos inte-

resses públicos e privados está um terceiro gênero, o dos direitos sociais.

A ordem jurídica pode ser perfeita como sistema, porém, não pode ignorar a realidade,

nem ser utilizada como pretexto para a manipulação das pessoas (maioria ou minoria, com-

forme o contexto), somente para satisfazer aqueles que conseguiram chegar ao domínio do

Estado. Há de se ter maior proteção, não somente contra as arbitrariedades, mas também com-

tra o próprio sistema. Igualmente, a ordem jurídica não pode ser assim tão fechada a ponto de

ignorar os anseios populares, sendo conduzida tão-somente como uma técnica de controle

social, como preceituava a rigidez jurídica do positivismo de Hans Kelsen.

Como verificado, o Poder Constituinte Originário inova a ordem jurídica. Os princí-

pios liberais da justiça de Rawls, combinados com o comunitarismo de Walzer podem ser o

início interessante para a construção de uma sociedade realmente justa, em termos formais e

materiais, aliando justiça social e efetiva participação democrática. A partir destes pilares é

que se torna possível erigir uma Constituição de fato justa e de Direito.

258 MACEDO, Ubiratan B. de. Liberalismo Versus Comunitarismo Em La Cuestión De La Universalidad Éti-ca. Disponível em: <www.bu.edu/wcp/section/TheoEthi.html>. Acesso em 21 jun. 2006.

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Se por um lado o modelo liberal supõe uma natureza obrigatória nos direitos funda-

mentais e propõe a Constituição como garantia de sujeitos individuais frente às possibilidades

da deliberação pública, de outro o pensamento comunitário insiste na matriz social da própria

liberdade individual, enfatizando a comunidade histórica que a valoriza e sustenta a ponto de

elevar os direitos que lhe são inerentes à qualidade da lei maior. Na perspectiva comunitária, o

modelo constitucional é possível pela autodeterminação política em torno de ideais. A realiza-

ção da democracia constitucional é real, enquanto atitude de subjetividades participativas,

capazes de fazer do processo democrático uma forma peculiar de propiciar entendimentos

éticos que sintetizem na Constituição um projeto de destino compartilhado. Importa, neste

sentido, verificar duas formulações comunitárias que contraditam a concepção individualista

do sujeito e a concepção centralista da Constituição.

A função social da propriedade é fruto da necessidade de superação dos problemas ge-

rados pelo liberalismo econômico, caracterizado por um intenso individualismo. Não há in-

compatibilidade lógica entre os conceitos de direito subjetivo e função. Ela está diretamente

ligada aos ditames da justiça social, nos termos preconizados pioneiramente pelo pensamento

social cristão.

A conceituação do direito de propriedade evoluiu através dos tempos, deixando

de ser condicionado apenas à individualidade do proprietário. Esse direito não pode e não

deve ser exercido de maneira absoluta e egoística. Seu exercício deve ter como objetivo aten-

der não apenas aos interesses do proprietário, como também de toda a coletividade. Por essa

razão, é sustentada a existência de interesses não-proprietários, que devem ser considerados e

respeitados. Esse princípio impõe ao proprietário não apenas a obrigação de se abster, de não

violar uma regra, mas também de fazer, ou seja, utilizar a propriedade em conformidade com

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os anseios coletivos. A função social, muito embora ambicionada por toda a coletividade,

deve ser efetivada de forma imperativa apenas pelo Estado.

Aspecto que jamais pode ou deve ser esquecido pela coletividade é que a propriedade

é e deverá continuar sempre sendo privada e, portanto, ser respeitada. A propriedade (muito

embora alguns fatos isolados) vem cumprindo sua função social no Brasil e a prova disso é

constante no presente estudo, onde os aspectos filosóficos e legais foram amplamente discuti-

dos, comprovando essa confirmação. Exemplo melhor da função social da propriedade não há

do que aquele em que o proprietário, mesmo tendo seu bem desapropriado pelo Estado, em

decorrência da inobservância da finalidade social preceituada, tem direito ao recebimento de

uma indenização justa e prévia, segundo o próprio texto constitucional, pela perda da proprie-

dade e, havendo arbitrariedade estatal, existem as medidas judiciais cabíveis para a defesa do

direito de propriedade.

Essa foi a grande contribuição do comunitarismo na função social da propriedade.

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