1 Universidade Católica de Goiás Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia FÓRUM INTERDISCIPLINAR PARA O AVANÇO DA ARQUEOLOGIA ATAS DO SIMPÓSIO SOBRE POLÍTICA NACIONAL DO MEIO AMBIENTE E PATRIMÔNIO CULTURAL Repercussões dos Dez Anos da Resolução CONAMA nº 001/86 sobre a Pesquisa e a Gestão dos Recursos Culturais no Brasil Goiânia, 9 a 12 de dezembro de 1996 Solange Bezerra Caldarelli (Organizadora) 1997 APOIO: PRONAC/MinC - Lei Nacional de Incentivo à Cultura IPHAN-Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional UNESCO-Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura PATROCÍNIO: FURNAS Centrais Elétricas S/A PETROBRÁS-Petróleo Brasileiro S/A CNPq-Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico Nacional
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Universidade Católica de Goiás
Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia
FÓRUM INTERDISCIPLINAR PARA O AVANÇO DA ARQUEOLOGIA
ATAS DO SIMPÓSIO SOBRE
POLÍTICA NACIONAL DO MEIO AMBIENTE E PATRIMÔNIO CULTURAL
Repercussões dos Dez Anos da Resolução CONAMA nº 001/86 sobre a Pesquisa e
a Gestão dos Recursos Culturais no Brasil
Goiânia, 9 a 12 de dezembro de 1996
Solange Bezerra Caldarelli
(Organizadora)
1997
APOIO:
PRONAC/MinC - Lei Nacional de Incentivo à Cultura
IPHAN-Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
UNESCO-Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura
PATROCÍNIO: FURNAS Centrais Elétricas S/A
PETROBRÁS-Petróleo Brasileiro S/A
CNPq-Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico Nacional
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ÍNDICE
Pág. Apresentação - Jézus Marco de Ataídes ..........................................................
Levantamento arqueológico, para fins de diagnóstico de bens pré-históricos, em
áreas de implantação de empreendimentos hidrelétricos - Paulo J. de C. Mello
......
Levantamento arqueológico, para fins de diagnóstico de bens históricos, em áreas
de implantação de empreendimentos hidrelétricos - Marcos André Torres de Souza
Levantamento arqueológico, para fins de diagnóstico de bens pré-históricos, em áreas de implantação de dutovias - Jorge Eremites de Oliveira .............................
2ª Mesa-Redonda: AVALIAÇÃO DE IMPACTOS CULTURAIS EM ESTUDOS AMBIENTAIS
O uso de variáveis ambientais na detecção e resgate de bens pré-históricos em
áreas arqueologicamente pouco conhecidas - Emília Mariko Kashimoto ................
O resgate de bens arqueológicos pré-históricos em áreas de implantação de
empreendimentos hidrelétricos: o caso da UHE Serra da Mesa, GO - Dilamar Cândida. Martins .................................................................................................
O resgate de bens arqueológicos históricos em áreas de implantação de
empreendimentos hidrelétricos: o caso da UHE Serra da Mesa, GO - Carlos
Magno Guimarães ...............................................................................................
Detecção e resgate de bens arqueológicos em áreas de implantação de projetos
rodoviários - Maria do Carmo Mattos Monteiro dos Santos .................................
4ª Mesa-Redonda: RECURSOS CULTURAIS INTANGÍVEIS: MEIOS DE DIAGNOSTICÁ-
LOS E DE AVALIAR, MITIGAR E MONITORAR SEUS IMPACTOS
1. Parecer acerca da avaliação do impacto da Hidrovia Paraguai-Paraná sobre o
patrimônio arqueológico de Mato Grosso do Sul - Jorge Eremites de Oliveira ...... 2. Coletânea da legislação de proteção ao patrimônio cultural ...................................
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APRESENTAÇÃO
É com grande satisfação que a Universidade Católica de Goiás, aqui
representada pelo Instituto Goiano de Pré História e Antropologia, na
comemoração de seus 25 anos, apresenta, de forma inédita, as mais recentes
discussões acadêmicas e políticas que envolvem a preservação cultural no
Brasil, incluindo bens históricos e pré-históricos. Este documento foi
produzido durante o simpósio “Política Nacional do Meio Ambiente e
Patrimônio Histórico Cultural”, um evento do Fórum Interdisciplinar Para
o Avanço da Arqueologia e realizado, em Goiânia, pelo IGPA/UCG durante o
período de 09 a 12 de dezembro de 1996.
Tendo como objetivo central investigar as repercussões dos dez anos
da Resolução CONAMA nº 001/86 que instituiu a Avaliação de Impactos
Ambientais, o importante encontro reuniu profissionais experientes que
trabalharam nos maiores e mais significativos estudos e levantamentos de
Impactos Culturais e Arqueológicos em todo o país.
Com o apoio do IPHAN - Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, da UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação
Ciência e Cultura e do CNPq - Conselho Nacional de Pesquisa, além de Órgãos
Estaduais e de Empreendedores, o Simpósio, estruturado em forma de mesas
redondas, apresentou e discutiu problemáticas práticas, teóricas e
metodológicas, além de temáticas jurídico-legais referentes à preservação dos
bens culturais no Brasil. Neste processo, estiveram em pauta questões sobre
diagnósticos, avaliação de impactos, programas de resgate , além de meios de
monitorar e mitigar os impactos sobre bens pré-históricos e históricos.
Das principais discussões apresentadas pelas mesas debatedoras e pelo
plenário, foram selecionados os problemas e propostas mais relevantes para
integrar um documento - síntese, encaminhado ao Ministério Público e aos
órgãos ambientais decisórios da União e Unidades Federativas.
Ao apresentar estas reflexões, o IGPA cumpre um dever histórico.
Como uma Instituição que, em seus 25 anos, procura meios de atuar sobre o
ambiente e a cultura através de Programas e Projetos Regionais, alimenta a
expectativa de poder contribuir com o processo de valorização da pesquisa
ambiental no Brasil, promovendo eventos dessa natureza e interferindo,
ativamente, através da experiência adquirida por meio de seus Projetos
Arqueológicos institucionais e de contrato, além das iniciativas pioneiras na
área de Patrimônio Histórico Cultural desenvolvidas recentemente.
Jézus Marco de Ataídes
Diretor do IGPA/UCG
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INTRODUÇÃO
A Resolução CONAMA nº 001/86 instituiu efetivamente a AIA-Avaliação
de Impactos Ambientais como um dos principais instrumentos da Política Nacional do
Meio Ambiente, com profundas repercussões sobre a pesquisa e a gestão dos recursos
culturais no Brasil.
Decorridos dez anos de aplicação do instrumento, considerou-se oportuna, a
exemplo do que ocorreu em outros países, uma reflexão crítica sobre o modo como a
questão cultural vem sendo tratada, os problemas enfrentados pelos profissionais
chamados a atuar em Estudos de Impacto Ambiental, as deficiências detectadas, as
dificuldades enfrentadas, os sucessos alcançados e os problemas jurídico-legais
decorrentes de uma legislação elaborada décadas antes de a questão ambiental ser
colocada institucionalmente.
O instrumento considerado mais oportuno para esta reflexão foi um
simpósio, que congregasse profissionais (acadêmicos ou não) que têm sido chamados
a atuar no planejamento ambiental, na área do patrimônio cultural (arqueólogos,
antropólogos, historiadores e arquitetos); profissionais que atuam junto aos órgãos
ambientais e aos órgãos de proteção ao patrimônio cultural e advogados e membros
do Ministério Público que atuam nas áreas ambiental e cultural.
O termo “Patrimônio Cultural” foi entendido, neste evento, da forma como
foi definido em recente “update” do Banco Mundial: “as manifestações presentes do
passado humano”, sejam estas materiais (pré-históricas e históricas) ou imateriais
(modos tradicionais de vida e de expressão).
O simpósio estruturou-se sob a forma de mesas-redondas, com expositores
convidados a apresentar e discutir a problemática de cada mesa, a partir de suas
experiências profissionais. A visão dos expositores foi sempre considerada uma visão
pessoal, que podia ou não ser compartilhada pelos demais participantes do evento. A
fim de relativizar essas posições e deixar claras outras opiniões, expressas no decorrer
do simpósio, os debates que se seguiram ao final das exposições de cada mesa-
redonda foram gravados, transcritos e publicados nas presentes Atas.
Para facilitar a reflexão sobre a problemática dos recursos culturais no
processo de elaboração de EIAs/RIMAs, as mesas redondas foram estruturadas na
mesma ordem de apresentação dos EIAs: estudos de diagnóstico, avaliação de
impactos e medidas mitigadoras. No entanto, outras questões foram também
aventadas, relativas à continuidade dos estudos nas demais etapas do processo de
licenciamento, ou seja, nos estudos para obtenção de LI (Licença de Implantação) e de
LO (Licença de Operação).
Afinal, é preciso reconhecer que a Resolução CONAMA 001/86, instituindo
a Avaliação de Impactos como instrumento da Política Nacional do Meio Ambiente, e
incluindo os estudos sobre os bens culturais nacionais nesta avaliação, mudou o mapa
da pesquisa no país. Enquanto a pesquisa básica continua avançando em progressão
aritmética, como sempre ocorreu, a pesquisa aplicada a questões de planejamento
ambiental cresce em progressão geométrica e ocupa espaços geográficos ainda não
atingidos pela pesquisa básica.
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É importante, portanto, que se busque o ordenamento concomitante desses
estudos e que se defina critérios mínimos para sua elaboração, de modo a que o
instrumento realmente permita a tomada de decisões acertadas sobre o destino a ser
dado aos recursos culturais identificados no decorrer dessas pesquisas. Esse foi um
dos objetivos primordiais do simpósio.
Após encerrarem-se as sessões, os coordenadores das mesas-redondas e os
respectivos relatores reuniram-se e redigiram um documento-síntese, com as posições
consensuais tiradas dos debates ocorridos durante o encontro, do qual constam as
recomendações de ordem geral, relativas ao patrimônio arqueológico, que se
considerou importantes serem observadas por todas as entidades envolvidas no
processo de licenciamento ambiental: IPHAN, empreendedores, órgãos ambientais
estaduais e federais, empresas de consultoria e arqueólogos contratados.
Exatamente por ter sido redigido e aprovado pelo plenário após amplas
discussões, em que todos tiveram a oportunidade de expressar-se, considerou-se que o
documento, publicado nestas Atas, representava o consenso dos diversos profissionais
presentes ao encontro. Por isso, decidiu-se por sua divulgação ampla, inicialmente
pela Internet, e, agora, pela sua distribuição aos órgãos decisórios sobre as questões
ambientais e culturais do país, ao Ministério Público e a instituições e empresas que
desenvolvem atividades arqueológicas.
As ATAS DO SIMPÓSIO SOBRE POLÍTICA NACIONAL DO MEIO AMBIENTE E
PATRIMÔNIO CULTURAL: REPERCUSSÕES DOS DEZ ANOS DA RESOLUÇÃO CONAMA
Nº 001/86 SOBRE A PESQUISA E A GESTÃO DOS RECURSOS CULTURAIS NO BRASIL vêm
a público, agora, como o primeiro produto brasileiro de reflexão compartilhada sobre
o trato adequado a ser dado aos recursos culturais nacionais nos estudos de impacto
ambiental em elaboração no país.
Solange Bezerra Caldarelli
Organizadora
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1ª MESA-REDONDA:
DIAGNÓSTICOS CULTURAIS EM ESTUDOS DE IMPACTO
AMBIENTAL
COORDENAÇÃO:
Dra. Irmhild Wüst
Museu Antropológico/UFGO
Vice-coordenadora do Fórum Interdisciplinar para o Avanço da Arqueologia
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EXPOSITORES
PAULO JOBIM DE CAMPOS MELLO Mestre em História pela Universidade Federal de Pernambuco
Participação em projetos de levantamento e resgate do patrimônio arqueológico, nos
estados de Pará, São Paulo, Goiás, Minas Gerais, Amazonas e Distrito Federal, desde 1985
Coordenação de projetos de levantamento e resgate arqueológicos nos estados de Mato
Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás e Tocantins, desde 1994
Professor Adjunto I, do Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia da Universidade
Católica de Goiás
MARCOS ANDRÉ TORRES DE SOUZA Graduado em arqueologia pela Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro
Professor/pesquisador do Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia da Universidade
Católica de Goiás
Desenvolveu pesquisas de contrato em arqueologia histórica nos estados de Santa Catarina
e Goiás.
Membro da SAB-Sociedade de Arqueologia Brasileira e do Fórum Interdisciplinar para o
Avanço da Arqueologia
JORGE EREMITES DE OLIVEIRA Mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Área de
Concentração: Arqueologia)
Doutorando em História na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Área
de Concentração: Arqueologia)
Professor Assistente do Departamento de Ciências Humanas da Fundação Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul - Centro Universitário de Dourados
Tem desenvolvido pesquisas arqueológicas e etno-históricas no Pantanal Matogrossense
desde 1992
RENATO KIPNIS
Mestre em Antropologia pela University of Michigan
Doutorando em Antropologia pela University of Michigan
Tem realizado trabalhos de levantamento arqueológico nos estados de São Paulo, Pará e Minas Gerais desde 1985
Membro da SAA-Society for American Archaeology e do Fórum Interdisciplinar para o Avanço da Arqueologia
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LEVANTAMENTO ARQUEOLÓGICO, PARA FINS DE DIAGNÓSTICO DE BENS
PRÉ-HISTÓRICOS, EM ÁREAS DE IMPLANTAÇÃO DE EEMPREENDIMENTOS
HIDRELÉTRICOS
Paulo Jobim de Campos Mello
A resolução CONAMA 001/86 prevê uma série de atividades a serem
cumpridas para a elaboração do Estudo de Impacto Ambiental (EIA). Dentre estas
atividades temos:
* diagnóstico da área;
* análise dos impactos positivos e negativos;
* definição de medidas mitigadoras dos impactos negativos;
* por fim, elaboração de um programa de acompanhamento e monitoramento
desses impactos
Após a aprovação desse estudo, o empreendedor consegue a Licença Prévia
(LI); e tem que dar continuidade a esses estudos para a obtenção das Licenças de
Implantação (LI) e Operação (LO) do empreendimento.
Assim, podemos perceber que o diagnóstico é o primeiro passo de todo esse
processo, e tem que ser feito de uma maneira tal que dê subsídios para a realização
das demais etapas.
A Resolução CONAMA define o diagnóstico como sendo a caracterização da
área; é preciso saber, portanto, como a área se encontra antes da implantação do
empreendimento.
Em áreas bem conhecidas, que já foram detalhadamente trabalhadas, o
diagnóstico pode ser feito a partir de fontes secundárias, ou seja, com um
levantamento bibliográfico é possível caracterizar a área.
No entanto, a realidade que encontramos é quase sempre a inversa, com os
empreendimentos sendo localizados em áreas pouco conhecidas ou completamente
desconhecidas; havendo, assim, a necessidade de se fazer um levantamento de campo
Aqui no Brasil, os levantamentos arqueológicos geralmente ainda são
realizados de uma maneira assistemática, seguindo as orientações de Evans e Meggers
(1965), mentores do PRONAPA (Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas),
que propunham o percorrimento da área tendo os cursos d‟água como base, além do
atendimento das informações prestadas pelos moradores.
Uma série de críticas podem ser feitas a esse tipo de trabalho, sendo a principal
o fato de não fornecer uma amostra confiável. Por não ser probabilista, e produzir
desvios, não produz estimativas válidas dos riscos de erro, tornando-se praticamente
impossível replicar ou avaliar, qualitativa ou quantitativamente, esses trabalhos.
A localização dos sítios, nesses levantamentos assistemáticos, depende
basicamente de três fatores (Alexander, 1983:177 ss.).
O 1o é a natureza da prospecção, a tradicional depende pesadamente da
exposição do solo para a localização da cultura material; o vestígio arqueológico tem
que estar aflorando para ser encontrado pelo arqueólogo, e isso só acontece em
terrenos que apresentam-se erodidos, ou em áreas que acabaram de ser aradas..
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O 2o fator é o “conhecimento comum”, assimilado pelos pesquisadores e
usados como bases para a localização do sítio. Confiando na experiência pessoal e
intuição, muitos arqueólogos têm desenvolvido, talvez inconscientemente, uma lista
de critérios para a localização de sítios (proximidade da água, certos ecótonos,
principais confluências de rios, etc).
Infelizmente, esse “conhecimento comum” é geralmente usado como base para
determinar a estratégia da prospecção, isto é, o arqueólogo concentra seus esforços
naquelas porções de área onde espera encontrar sítios. Descobertas de sítios nesses
locais previsíveis, de alta densidade, pode refletir tratamento diferencial dessas áreas,
em vez de padrões de assentamento pré-históricos.
Finalmente, o 3o fator é que resultados sem desvios não podem ser alcançados
quando mudanças temporais são ignoradas. Usando dados etnográficos e
documentação histórica é geralmente possível reconstruir o padrão de assentamento
indígena do período proto-histórico. Esse conhecimento pode influenciar o
pesquisador a prospectar mais intensamente áreas ocupadas durante esse período.
Com o tempo, no entanto, os padrões de assentamento podem não apenas mudar
dentro do mesmo ambiente, mas o próprio ambiente, refletido na topografia e
vegetação, pode ser vastamente alterado. O efeito dessas mudanças na localização dos
sítios deve ser cuidadosamente considerado quando for feita qualquer prospecção.
São justamente esses fatores que causam o desvio na amostra.
Assim, ao se pretender obter um quadro acurado dos padrões de assentamento
dos grupos humanos que viveram no passado, há a necessidade de se conseguir
informações de uma maneira uniforme, cobrindo igualmente os diversos estratos
paisagísticos. Portanto, prospecções intensivas, a pé, geralmente são necessárias para
a localização de sítios pequenos e que estejam relacionados à atividades limitadas,
sendo que todas as partes da região, mesmo aquelas assumidamente estéreis, devem
ser investigadas (Redman, 1974).
O que se pretende, portanto, com esse levantamento sistemático, é que não se
produza desvios amostrais e que se consiga, como dito acima, apreender o padrão de
assentamento dos grupos pré-históricos que ali viveram.
A técnica mais utilizada para esse tipo de levantamento é o chamado
„transect‟, que é uma linha de caminhamento orientada. O pesquisador vai caminhar
por linhas previamente traçadas por ele, de modo a cobrir as diferentes paisagens
existentes, podendo proporcionar, assim, a localização de diferentes tipos de sítios,
ligados a exploração diferencial dessa paisagem,
Além disso, vai permitir, também, o cálculo da área prospectada - vai se saber
qual a porcentagem da área foi levantada.
Como para o cálculo de uma área são preciso duas medidas - comprimento e
largura -, e o transect, como já dissemos, é uma linha, será preciso utilizarmos um
artifício, chamado efeito margem, que está diretamente ligado ao tamanho do sítio que
se quer localizar (Plog et. al., 1978).
O comprimento é dado pelo próprio comprimento do transect, ou seja, a
distância percorrida; já a largura não vai ser dada pelo alcance da visão (dez metros
para cada lado, por exemplo), isso porque muitas vezes a visibilidade é nula,
principalmente devido à vegetação que cobre os vestígios arqueológicos, impedindo a
sua localização.
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Para localizar um sítio arqueológico, o transect não precisa passar exatamente
pelo seu centro, basta passar por qualquer ponto dele. Assim, todas áreas prospectadas
sistematicamente vão sempre ter uma margem que é hipoteticamente prospectada,
cujo tamanho é igual ao raio do menor sítio que se pretende achar, pois basta que o
centro do sítio esteja dentro dessa margem que ele será cortado pelo transect e, assim,
localizado.
Portanto, apesar do transect ser uma linha, o sítio não é um ponto, e a largura
da área prospectada vai ser dada pelo seu raio.
Os trabalhos de prospecção sofrem a influência de dois outros fatores:
intensidade e sensibilidade.
A intensidade é o grau de detalhe com o qual a superfície de uma determinada
área é prospectada (Plog et al., 1978), que pode ser medido pelo espaçamento que é
mantido pelos indivíduos durante a prospecção, ou seja, no caso é dada pelo
espaçamento dos transects - quanto menor o espaçamento, maior a possibilidade de
encontrar sítios, principalmente sítios pequenos. O grau de intensidade irá variar de
acordo com os objetivos do trabalho.
A sensibilidade, que é a probabilidade de evidenciar um sítio arqueológico, é
um outro fator, estreitamente ligado à intensidade.
Para Cowgill (1990), a sensibilidade é afetada por cinco (5) fatores: 1) a
natureza da ocorrência arqueológica; 2) a natureza do terreno (vegetação fechada,
topografia íngreme, erosão, etc); 3) a proximidade do prospectador com a ocorrência
(passar por cima ou somente próximo a ela); 4) a extensão com que o observador é
sensibilizado (no sentido psicológico) com um certo tipo de ocorrência; 5) a extensão
com que técnicas especiais são usadas para detectar ocorrências subsuperficiais.
A relação é bem clara: quanto maior a intensidade, maior a sensibilidade.
Mostraremos três exemplos da utilização desse tipo de levantamento
sistemático em áreas afetadas por empreendimentos hidrelétricos. Em todos esses
trabalhos foram utilizados, também, o levantamento assistemático que, apesar de não
fornecer uma amostra confiável das ocorrências arqueológicas, conforme exposto
acima, pode ser utilizado para um „reconhecimento informal‟ da área em estudo.
Em geral, os transects foram percorridos por uma equipe de quatro pessoas,
sendo dois pesquisadores e dois trabalhadores braçais, divididos em duas duplas: um
pesquisador, com a ajuda de uma bússola, indicando o caminho a ser seguido,
enquanto um trabalhador braçal abria a picada; outro pesquisador indicando o local
onde haveria intervenção no solo1, com o segundo braçal realizando essa tarefa (ver
fotos 1 - 4).
- Projeto de Salvamento Arqueológico das UHEs Babaquara e Kararao
(PA)
1 As intervenções no solo, feitas a distâncias regulares, eram de dois tipos: limpeza e tradagem. A limpeza consistia na retirada, com uma enxada, da cobertura vegetal de uma área de aproximadamente 1 metro de diâmetro, e na escavação dessa área até alcançar 20 centímetros de profundidade. Já nas tradagens, cujo o objetivo era encontrar vestígios que estivessem enterrados a uma profundidade maior, eram feitos, com uma cavadeira (boca de lobo), buracos de 30 cm de diâmetro que chegavam a 1 metro de profundidade.
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Projeto desenvolvido pela Eletronorte, em convênio com o Museu Paraense
Emílio Goeldi. Iniciado em julho de 1986, durou até julho de 1988, quando ocorreu a
paralisação da obra. Sua barragem formaria um enorme lago (área de
aproximadamente 7.500 Km2) no médio rio Xingu.
Foi o primeiro trabalho no país, em áreas afetadas por empreendimentos
hidrelétricos, onde se realizou levantamento sistemático. A proposta era espalhar
unidades amostrais (círculos com raio de 5 Km) que abrangessem as diferentes
paisagens existentes, além de permitir a prospecções em áreas distantes dos rios.
Enquanto que nas margens do rio principal era realizado um levantamento
assistemático, o sistemático era feito através de dois transects de 5 Km de
comprimento, perpendiculares ao rio. Apesar de a intensidade de prospecção ser
muito baixa, esse levantamento sistemático foi eficiente, pois permitiu a localização
de sítios distantes das margens do rio (ver fig. 1).
- Levantamento do Patrimônio Arqueológico da UHE Costa Rica (MS)
Projeto desenvolvido pela Enersul, em convênio com a Universidade Católica
de Goiás. A região a ser afetada pela Usina Hidrelétrica de Costa Rica consiste em
uma área que não atinge 0,5 Km2 (aí incluído a área a ser utilizada para a construção
do acampamento e escritório), no rio Sucuriú, município de Costa Rica, noroeste do
Estado do Mato Grosso do Sul.
O levantamento assistemático foi realizada tanto através da observação de
terrenos limpos (roças, barrancos de rios, etc), como de entrevista dos moradores
locais em busca de possíveis informações sobre vestígios arqueológicos (a
bibliografia não indicava nenhum trabalho realizado nas imediações).
Foram entrevistados cinco moradores que, apesar de viverem há bastante
tempo na região, residem há pouco no local. Nenhum deles forneceu informação
sobre sítio arqueológico. A observação dos terrenos limpos também se mostrou
infrutífera.
O levantamento sistemático baseou-se no caminhamento de „transects‟
traçados de uma maneira onde procurou-se não deixar uma distância superior a 50
metros entre um e outro, sendo que a cada 25 metros, aproximadamente, era feita uma
intervenção no terreno.
Assim, por esse método sistemático, foram percorridos 8100 metros (3900 na
margem esquerda, 4200 na direita), sendo realizadas 336 limpezas (136 na esquerda e
200 na direita) e 35 tradagens (13 na esquerda e 22 na direita).
Desses, apenas um local (na margem direita, onde será implantado o
acampamento) apresentou material arqueológico (4 fragmentos cerâmicos, filiados a
Tradição Una).
Podemos perceber que toda a área foi coberta (ver fig. 2), porém isso não
implica em que todos os sítios arqueológicos foram encontrados, pois, de acordo com
Kowalewski & Fish (1990), é impossível, em arqueologia, cobrir 100% de uma área,
descobrir todos os sítios lá existentes, e verificar essa afirmação. Kintigh (1990)
também concorda com isso ao afirmar que todos os arqueólogos estão cientes de que,
13
ao prospectarem, perdem alguns locais que mostram evidências do comportamento
humano a algum nível de detalhe.
Isso se deve ao grau de intensidade e aos problemas de sensibilidade,
conforme discutidos mais acima.
- Levantamento do Patrimônio Arqueológico da UHE Corumbá (GO)
Projeto desenvolvido por FURNAS Centrais Elétricas, em convênio com a
Universidade Católica de Goiás. A barragem formará um lago com 65 Km2 de área,
abrangendo parte dos municípios de Caldas Novas, Pires do Rio, Corumbaíba e
Ipameri, todos no Estado de Goiás.
O levantamento assistemático foi feito através da entrevista de mais de 90
moradores da região (a maior parte feita pelos integrantes da equipe responsável pelo
Patrimônio Histórico), além do levantamento bibliográfico (inclusive o RIMA), que
resultaram na localização de apenas quatro sítios na área diretamente afetada.
Quanto ao sistemático, em um total de 70 dias de campo, foram percorridos
cerca de 225.840 m, sendo realizas intervenções no solo a cada 30 metros, em um
total de 7526, sendo 6505 limpezas e 1021 tradagens (a maioria dessas tradagens não
alcançou 1 m de profundidade, em conseqüência do solo apresentar muito cascalho)
(ver fig. 3). Como resultado, foram encontrados sete sítios arqueológicos.
Quanto aos estratos paisagísticos, podemos ver que todos foram amostrados,
conforme os gráficos abaixo .
Quanto à declividade do terreno, temos:
% das categorias de declividade percorridas
sistematicamente
categoria 1 -
34,83%
categoria2 -
29,05%
categoria 3 - 11%
categoria 4 -
13,53%
fora da ADA -
11,59%
Gráfico 1
14
categoria 1categoria 2categoria 3categoria 4 fora da
ADA
0
10
20
30
40
50
60
categoria 1categoria 2categoria 3categoria 4 fora da
ADA
declividade
% da área X % percorrida
% da ADA
% percorrida em relação à
ADA
% percorrida em relação à
categoria de declividade
Gráfico 2
Distribuição, em percentual, dos sítios localizados dentro da ADA, nas quatro
categorias de declividade.
categoria 1 - 67%
categoria 2 - 22%
categoria 3 - 11%
categoria 4 - 0%
Gráfico 3
Quanto às classes de solos, temos:
15
% de classes de solos percorridas
sistematicamente
14,96
7,44
6,75
17,56
10,23
31,13
6,515,4
CE1
CE2
CV1
CV2
CV3
RL1
RL2
AL
Gráfico 4
CE1 CE2 CV1 CV2 CV3 RL1 RL2 AL0
20
40
60
80
100
CE1 CE2 CV1 CV2 CV3 RL1 RL2 AL
solos
% da área X % percorrida
% da ADA
% percorrida em relação à
ADA
% percorrida em relação à
unidade de solo
Gráfico 5
Distribuição, em percentual, dos sítios localizados dentro da ADA, quanto às
unidades de solo:
16
CE2
11%
CV2
67%
CV3
22%
CE2
CV2
CV3
Gráfico 6
Podemos perceber que só através de um levantamento sistemático e intensivo
é possível encontrar os diversos tipos de sítios existentes em uma região. Além disso,
esse tipo de levantamento permite um controle não só da porcentagem da área, mas
também dos compartimentos paisagísticos, que foram amostrados.
Para finalizar, gostaríamos de lembrar que o diagnóstico não termina com a
localização dos sítios. Como dissemos no início, é preciso que ele forneça subsídios
para a elaboração de um programa de acompanhamento e monitoramento dos
impactos a serem causados pelo empreendimento. Assim, algumas informações sobre
o sítio - como estado de conservação, espessura e profundidade do depósito e tamanho
do sítio - são fundamentais, e necessárias de se conhecer ainda nesta fase do trabalho.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALEXANDER, D. (1983) “The limitation of traditional surveiyng techiniques in a
forests environment”. Boston. Journal Field Archaeology, 10, pp.177-186.
CONSELHO NACIONAL DO MEIO AMBIENTE (1988) Resoluções do
LEVANTAMENTO ARQUEOLÓGICO PARA FINS DE DIAGNÓSTICO DE
BENS HISTÓRICOS, EM ÁREAS DE IMPLANTAÇÃO DE
EMPREENDIMENTOS HIDRELÉTRICOS
Marcos André Torres de Souza
INTRODUÇÃO
O presente texto pretende encaminhar algumas questões de interesse e que se
incluem no tema proposto. Encontra-se dividido em duas partes: inicialmente, são
examinadas algumas premissas fundamentais ao bom encaminhamento dos trabalhos
de levantamento arqueológico histórico em contexto de hidrelétricas e, em seguida,
são expostas algumas considerações metodológicas acerca dos tipos de levantamento
que podem ser realizados.
Durante a discussão, serão apresentados exemplos baseados em observações
feitas no decorrer do Projeto de Levantamento e Resgate do Patrimônio Histórico-
Cultural da Área Diretamente Afetada pela UHE-Corumbá, desenvolvido pelo
Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia da Universidade Católica de Goiás,
coordenado pelo prof. Jézus Marco de Ataídes e financiado por FURNAS - Centrais
Elétricas S.A.. Este projeto foi desenvolvido entre março de 1994 e março de 1996 em
quatro municípios do estado de Goiás: Caldas Novas, Ipameri, Pires do Rio e
Corumbaíba (Marco de Ataídes, 1996).
REGIÃO E SÍTIO
Em primeiro lugar, o que distingue uma pesquisa de resgate em hidrelétrica
das demais é que, neste caso, há uma grande extensão de superfície a ser pesquisada,
ao contrário dos projetos ditos lineares. Aqui, situa-se um primeiro aspecto crítico dos
projetos de resgate em contexto de hidrelétricas: a noção de região.
Do ponto de vista do empreendimento, a região terá sempre características
bem específicas: as áreas ribeirinhas e baixas de uma dada bacia hidrográfica,
condições incompatíveis com uma concepção satisfatória de região. Quando falamos
de uma região do ponto de vista do empreendimento, estamos falando de uma área
direta ou indiretamente afetada e que dificilmente corresponderia à noção de região
para uma pesquisa, sobretudo se o caso em apreço é o de uma área de interesse
arqueológico, seja ele histórico ou pré-histórico.
Ocorre, contudo, que isto não passa de um falso conflito, ou ao menos é isto
o que foi experienciado no Projeto UHE-Corumbá / Patrimônio Histórico. Os
empreendedores pareceram compreender satisfatoriamente que não há meios de se
realizar levantamentos e análises sobre o patrimônio histórico que se restrinjam aos
limites estritos do empreendimento. Tem se mostrado essencial que nós,
pesquisadores, possamos trabalhar dentro de outra concepção de região, o que
esperamos, possa vir a ocorrer generalizadamente.
O ponto crítico, portanto, não está entre o pesquisador e o empreendedor,
mas no âmbito de cada projeto. Para fins de levantamento, devemos considerar que
cada sítio arqueológico histórico possui na maior parte das vezes uma relação racional
19
e contextual com os demais e que, em casos de hidrelétricas, também devem ser
considerados conjuntamente. Sob esta perspectiva, a região é uma unidade analítica
extremamente apropriada e sobre a qual seria útil que nos debruçássemos.
Um segundo aspecto crítico para a realização de levantamentos em
hidrelétricas, diz respeito à noção de sítio arqueológico histórico.
Há algumas décadas, um sítio arqueológico histórico se associava quase
sempre à idéia de monumento ou antiguidade. Estes sítios necessitavam de alguma
notabilidade, mas felizmente isto está acabando.
Uma vez que, ao realizarmos levantamentos no contexto de uma hidrelétrica,
procuramos interpretar o passado histórico de uma região ameaçada, importa
explicarmos como ocupações de diferentes naturezas - algumas menos notáveis do
que outras - se processaram naquele espaço físico que estamos estudando, ainda que
cada projeto escolha uma ou outra avenida de análise.
Outro ponto é que, quando falamos de sítios arqueológicos históricos,
obviamente não podemos atribuir importância histórica a cada vestígio de ocupação
humana. Descartada a noção de monumento como critério exclusivo, passamos à
noção de significância, um termo oriundo dos Estados Unidos e que permite sofisticar
tremendamente a questão da eleição de sítios arqueológicos históricos.
Dentro desta noção, entre os diferentes critérios que podem ser usados, há o
denominado potencial de informação (ver U.S. Department of the Interior, 1990,
1991a, 1991b), que se mostra bastante adequado ao empreendimento em hidrelétricas.
Através dele, podemos transformar vestígios materiais em conhecimento científico.
Utilizar este critério significa:
Contribuir para a compreensão da história de uma região através de
procedimentos explicitamente formalizados, e;
Eleger os sítios arqueológicos históricos através de uma avaliação cuidadosa
e com critérios bem definidos.
Para complementar o que foi até aqui exposto, passamos a um exemplo do
Projeto UHE-Corumbá / Patrimônio Histórico, cujos dados já foram apresentados em
outro artigo, quando foram examinados sob um ponto de vista distinto (Torres de
Souza, no prelo).
Na primeira fase deste projeto, foi realizado o levantamento dos testemunhos
de ocupação humana histórica na área de estudo, tendo-se identificado, entre outras
categorias, o que foi denominado de estruturas de fazenda, compreendendo três tipos
de evidências associadas: sedes de fazenda, casas de agregado e ranchos.
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Figura 1- Sede da Fazenda Santo Antônio das lajes de
Argeniro Ferreira; Município de Ipameri, Goiás.
No primeiro grupo - as sedes de fazenda (Figura 1), foram identificadas
enquanto construções de caráter duradouro, utilizando como material construtivo
preferencialmente o tijolo comum, o adobe e cobertura de telhas; para este caso,
empregavam-se técnicas construtivas mais sofisticadas. Sua implantação é bastante
característica, situando-se preferencialmente em áreas elevadas na propriedade, entre
dois cursos d‟água e em solos cascalhosos e inférteis.
Figura 2- Casa de Agregado na Fazenda Santo Antônio
das Lajes de Aziria Menezes; Município de Caldas
Novas, Goiás.
Nas casas de agregado (Figura 2), observou-se um tipo de construção de
caráter menos duradouro, com o tijolo comum apenas eventualmente utilizado,
predominando o adobe, muitas vezes com adição da madeira ou palha. Ainda que a
telha fosse também a cobertura preferencialmente usada, as soluções arquitetônicas
eram bem mais simplificadas que nas sedes de fazenda. A implantação deste grupo
21
era totalmente distinta das sedes de fazenda, situando-se predominantemente em áreas
baixas, à distância média de 100 m dos pequenos córregos, sendo que na metade dos
casos, situavam-se no entroncamento de dois cursos d‟água, alocando-se em solos
argilosos e férteis.
Figura 3- Rancho na Fazenda Santo Antônio das Lajes
de Aziria Menezes; Município de Caldas Novas, Goiás.
O último grupo, os ranchos (Figura 3), eram abrigos transitórios, construídos
por paus fincados ou esteios sem vedação e com cobertura de palha, com técnicas
construtivas extremamente simples. Situavam-se predominantemente em locais de
difícil acesso em uma propriedade, como as cabeceiras dos córregos ou às margens
dos rios de maior porte.
No exemplo acima, observam-se alguns aspectos que são essenciais dentro
do que foi até aqui exposto.
Em primeiro lugar, o que se percebe nesta classificação de evidências é um
arranjo espacial óbvio, baseado em uma lógica explícita.
Em uma monografia sobre as construções rurais do fim do séc. XIX,
Gonçalves assinala o seguinte sobre as sedes de fazenda (1886:48):
“A habitação do administrador ou do proprietário deve ser
collocada de tal modo que um ou outro possa d’ahi fiscalisar tudo o que
se passar no recinto do pateo e, quando possível, em todos os edifícios da
exploração”
Sobre as casas dos trabalhadores, assinala (1886:49):
“ Os operarios ou trabalhadores ruraes são ordinariamente
alojados em edifícios terreos ou em parte daquelles em que têm de ser
executados os trabalhos que lhe são confiados”
Do mesmo modo como cita o autor, observamos que na área estudada, as
sedes de fazenda se associavam claramente ao domínio e controle da propriedade,
dados respectivamente pela sua implantação em áreas elevadas e fiscalização pelo
campo visual, ao mesmo tempo em que segmentava dois tipos de atividade: a
22
pecuária, uma vez que o gado era recolhido aos currais, localizados junto à fachada
(Figura 1) e considerados a verdadeira riqueza do fazendeiro; e a roça, destinada
meramente à subsistência e que foi apartada deste espaço pelo tipo impróprio de solo.
As casas de agregado, por sua vez, situavam-se em posição subalterna,
colocadas nas partes inferiores do terreno e em solos férteis, ligando o trabalhador
agregado à roça, que era depreciada quando comparada à criação de gado, embora se
mostrasse essencial ao abastecimento da propriedade.
Os ranchos, finalmente, associavam-se na maior parte das vezes às
invernadas, situando-se em posições úteis ao trabalhador rural na otimização do
espaço, permitindo sua exploração onde não havia lugar para estabelecerem-se
moradas e possibilitando com isso a caça, pesca e cultivo em locais diversificados.
As técnicas e materiais construtivos, vistos através de oposições como:
simples x complexo, impermanente x permanente, de modo similar à lógica de arranjo
e organização do espaço, revelam estratégias de negociação social. Nestas
propriedades, o espaço foi sempre negociado, estando aí em ação: poder, status e
papéis sociais.
Esta ordem começou a vigorar na região na virada do séc XIX para o séc.
XX identificada com o ideário coronelista, marcante em Goiás na primeira metade do
séc. XX. A partir da segunda metade desse século, esta ordem entrou em colapso,
devido às leis de uso da terra e ao êxodo rural. Atualmente, a região apresenta outra
feição, não se encontrando mais em toda a área estudada a figura do agregado,
estando todas as suas edificações abandonadas; as sedes de fazenda foram também
abandonadas pelo grande proprietário, sendo ocupada por um encarregado ou peão.
Apesar de nos defrontarmos com uma faixa cronológica estreita - pouco mais de cem
anos - lidamos com uma manifestação cultural extinta que, como tal, exige do
pesquisador estratégias eficazes para sua recuperação.
Neste exemplo, fica claro que não estamos só diante de evidências de que o
espaço estava sendo ocupado racionalmente, mas que também estamos operando com
dados que usamos durante todo o tempo para explicar complexas relações sociais,
finalidade última de nossas pesquisas. A metodologia seria tendenciosa se uma ou
outra localidade deixasse de ser levantada, o que viria mascarar a presença de
substantivas categorias de evidências que, na maior parte das vezes, apresentam uma
relação contextual e indissociável.
Se refletirmos ainda sobre estes sítios em termos de potencial de informação,
jamais seremos excludentes em relação às evidências mais discretas ou aparentemente
desprezíveis, caso das habitações de agregado e ranchos, uma vez que do ponto de
vista interpretativo qualquer análise ficaria comprometida.
OPORTUNÍSTICO X SISTEMÁTICO
Considerando o que foi até aqui exposto, passamos a algumas considerações
metodológicas, cujo ponto central está na melhor maneira de realizarmos
levantamentos com fins de diagnóstico envolvendo o patrimônio histórico em áreas de
hidrelétricas.
Defende-se aqui a idéia de que a melhor estratégia que pode ser empregada é
a combinação entre os métodos oportunístico e sistemático.
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Não cabe no momento aprofundarmos a discussão sobre as alternativas
analíticas possíveis para o segundo método, mesmo porque isto foi apresentado em
um artigo já citado (Torres de Souza, no prelo), quando foram avaliadas sob a
perspectiva do Projeto UHE-Corumbá / Patrimônio Histórico, além de uma ampla
revisão bibliográfica sobre a questão dos levantamentos arqueológicos, com foco na
arqueologia histórica. Cumpre apenas ressaltar que, embora no Brasil estas
alternativas ainda estejam sendo acanhadamente exploradas, é de extrema utilidade
que elas sejam conhecidas e utilizadas.
Nós nos restringimos, portanto, a apresentar algumas das vantagens que
acreditamos existir na combinação dos levantamentos oportunístico e sistemático, a
saber:
Por esta combinação, podemos ter uma visão regional pelo método
oportunístico, uma vez que ele apresenta custo menor e nos permite sair da área de
influência direta do empreendimento, possibilitando a investigação de localidades
com características distintas de relevo e geografia e áreas de influência cultural,
como os centros urbanos;
Ao mesmo tempo em que o contexto regional pode ser acessado pelo método
oportunístico, o método sistemático permite produzir melhores mensurações e
estimativas das evidências, uma função essencial aos projetos que envolvem
levantamentos arqueológicos, uma vez que sítios de diferentes tipos, dimensões e
visibilidade podem ser acessados;
A relação custo x benefício pode ser maximizada pela combinação do
método oportunístico a esquemas de amostragem do sistemático, produzindo
resultados mais confiáveis, por custos menores.
Esta combinação nos permite a aplicação do critério potencial de informação,
oferecendo aos pesquisadores um eficiente instrumental para avaliação de
impactos;
Na tentativa de reforçar a importância da modalidade de levantamento
sistemático em projetos que envolvem o patrimônio histórico, passamos a mais alguns
exemplos do Projeto UHE-Corumbá / Patrimônio Histórico que dizem respeito à
questão dos processos de formação de sítios.
24
Figura 4- Local de antigo assentamento; município de
Ipameri, Goiás.
Uma primeira e poderosa argumentação a seu favor, se associa à questão da
visibilidade das evidências. A Figura 4 apresenta um assentamento abandonado há
cerca de trinta anos que, como tantos outros identificados neste projeto, tem como
evidência de superfície apenas uma mangueira, sempre presente nos quintais das
habitações rurais da região. A rápida degradação de materiais construtivos
impermanentes, aliada à prática de “arrancar” uma casa - usando uma denominação
local, dá a essas evidências uma baixíssima visibilidade. Tais assentamentos também
acabam muitas vezes sendo esquecidos pelos moradores locais, que tendem a
considerar como representativo apenas as edificações de caráter permanente.
Figura 5- Fazenda Buriti de Sebastião Vieira, agosto de
1994; município de Caldas Novas, Goiás.
A título de complementação, a Figura 5 apresenta uma sede de fazenda
abandonada há cerca de vinte anos que, dada sua maior perenidade, conservava ainda
muito da sua feição original; observa-se em primeiro plano seu cercamento com o
ponto de acesso ao edifício ainda visível. Se esta edificação, contudo, foi “arrancada”
(Figura 6), permanecerão apenas algumas telhas postas de lado, que logo serão
removidas (à esquerda na foto); a cerca ainda visível com sua abertura e os esteios da
edificação (ao fundo); tanto a cerca quanto os esteios, em breve serão queimados por
incêndios, extremamente comuns no ambiente de cerrado. Num curto intervalo de
tempo poucas estruturas de superfície ficarão como remanescentes, tais como fogões
ou baldrames de pedras, que quase sempre acabam encobertos pela vegetação.
25
Figura 6- Fazenda Buriti de Sebastião Vieira, setembro de
1996; município de Caldas Novas, Goiás.
No que se refere aos depósitos arqueológicos subsuperficiais, muitas vezes
estes são extremamente reduzidos, ficando, à exemplo dos edifícios, quase
imperceptíveis ao pesquisador que realiza o levantamento de campo, caso de um dos
sítios escavados no Projeto UHE-Corumbá / Patrimônio Histórico, que apresentou
material apenas em um estreito lençol de 140 m², para a média de 7 fragmentos por m²
(Torres de Souza, 1996).
Através destes exemplos, fica bastante claro que a tarefa de levantar sítios
arqueológicos históricos não é simples. No Projeto UHE-Corumbá, nos deparamos
com uma ocupação de pouco mais de cem anos e pudemos contar amplamente com os
dados do levantamento oportunístico. Em outros projetos onde a ocupação histórica é
bem mais remota, podemos contar apenas com nossas habilidades e, neste contexto,
acreditamos que a realização de levantamentos sistemáticos é imprescindível,
sobretudo se a história ocupacional com a qual nos defrontamos é desconhecida.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para finalizar, apresentamos duas reivindicações. A primeira delas, e que
parece ser um apelo geral dos pesquisadores, é que os levantamentos sejam
realizados, em cada empreendimento, o mais cedo possível. Isto significa melhor
planejamento e resultados, tanto para o empreendedor como para o pesquisador. Tais
levantamentos precisam ser realizados muito antes da execução dos programas, o que
oferece melhores condições para a avaliação de impactos.
A segunda reivindicação, dirigimos aos colegas arqueólogos, no sentido de
sempre que possível, possamos refletir sobre a qualidade do que temos produzido,
ainda que isto muitas vezes envolva insucessos. A arqueologia de resgate ou de
salvamento tem sido um excelente meio de ingresso ao mercado para os mais jovens
e, simultaneamente, alvo das mais arrebatadas críticas (ver Bezerra de Menezes 1988,
1996). Para que a reflexão não se ausente da esfera de cada projeto, será útil que no
seu âmbito, a questão da formação de pesquisadores e produção científica sejam
cuidadosamente pensadas.
26
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BEZERRA DE MENEZES, ULPIANO TOLEDO
1988 Arqueologia de Salvamento no Brasil: Uma Avaliação Crítica. Texto
Apresentado no Simpósio S.O.S. Preservação, Pontifícia Universidade
Católica, Rio de Janeiro.
1996 A Pesquisa Fora da Universidade: Patrimônio Cultural, Arqueologia e Museus.
In Humanidades, Pesquisa, Universidade, István Jancsó (org.). Seminários de
Pesquisa: 91-103. Comissão de Pesquisa FFLCH/USP, São Paulo.
GONÇALVES, JOAQUIM FRANCISCO
1886 These Apresentada á Imperial Escola Agrícola da Bahia. Typografia dos Dois
Mundos, Bahia.
MARCO DE ATAÍDES, JÉZUS (coord.)
1996 Patrimônio Histórico-Cultural. UHE-Corumbá-GO. Relatório Final preparado
pelo Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia, Vice-Reitoria de Pós-
Graduação e Pesquisa, Universidade Católica de Goiás. Submetido a
FURNAS - Centrais Elétricas S.A., Goiânia.
TORRES DE SOUZA, MARCOS ANDRÉ
1996 O Sítio do Quincão. Exemplo de Um Estudo Interdisciplinar no Projeto de
Levantamento e Resgate do Patrimônio Histórico-Cultural da ADA pela UHE-
Corumbá, Goiás. Coleção Arqueologia 1(2): 573-580. Arno Alvarez Kern,
organizador. EDIPUCRS, Porto Alegre.
No prelo Levantamento Arqueológico em Projetos de Larga Escala. A
Experiência do Projeto UHE-Corumbá / Patrimônio Histórico. Revista de
Divulgação Científica 2. IGPA-UCG, Goiânia.
U.S. DEPARTMENT OF THE INTERIOR
1990 How to Apply the National Register Criteria for Evaluation. National Register
Bulletin 15.
1991a How to Complete the National Register Registration Form. National Register
Bulletin 16A.
1991b Researching a Historic Property. National Register Bulletin 39.
27
LEVANTAMENTO ARQUEOLÓGICO, PARA FINS DE DIAGNÓSTICO DE
BENS PRÉ-HISTÓRICOS, EM ÁREAS DE IMPLANTAÇÃO DE DUTOVIAS2
Jorge Eremites de Oliveira
INTRODUÇÃO
Ao promover o simpósio Política Nacional do Meio Ambiente e Patrimônio
Cultural: repercussões dos dez anos da Resolução CONAMA Nº 001/86 sobre a
pesquisa e a gestão dos recursos culturais do Brasil, o Fórum Interdisciplinar para o
Avanço da Arqueologia também viabilizou o debate teórico-metodológico sobre as
experiências no campo da consultoria técnica em arqueologia para fins de
implementação de Estudos de Impacto Ambiental, salvamento e gestão de bens
culturais, assim como a discussão acerca da legislação brasileira de proteção ao
patrimônio cultural da nação. Sem dúvida alguma, trata-se de um evento de suma
importância no atual contexto da arqueologia brasileira, pois a chamada arqueologia
de contrato é uma das áreas de atuação profissional que mais crescem para
arqueólogos do país.
Nesta perspectiva, o presente trabalho tem por objetivo maior expor as
experiências e apresentar os resultados das pesquisas concluídas durante o período de
outubro a dezembro de 1993, em parceria com o arqueólogo José Luis dos Santos
Peixoto (ver Oliveira & Peixoto, 1993). Destinou-se a implementar os Estudos de
Impacto Ambiental sobre o traçado do Gasoduto Bolívia-Brasil no Estado de Mato
Grosso do Sul, conforme as exigências da legislação brasileira de proteção ao
patrimônio cultural, através da atuação decisiva do Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (IPHAN), 14ª Coordenação Regional e 11ª Sub-Regional II. É
necessário explicar que o Gasoduto Bolívia-Brasil, empreendimento ainda não
concluído, destina-se ao transporte de gás natural proveniente da Bolívia até os
Estados de Mato Grosso do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Paraná,
Santa Catarina e Rio Grande do Sul, totalizando cerca de 3.000 km de extensão. No
Mato Grosso do Sul sua extensão será de 702 km, em sua maior parte próxima à linha
da rodovia BR 262, que liga o município de Corumbá ao de Três Lagoas. Será
construído com dutos de aço carbono de 28” de diâmetro que serão enterrados numa
vala de, no mínimo, 1 x 1,5 m. Terá uma faixa de 20 m de largura onde serão
desenvolvidos os serviços necessários à sua construção e, posteriormente, à sua
manutenção. Seu monitoramento será feito 24 horas por dia através de satélite
(Informativo do Gasoduto Bolívia-Brasil, 1993).
O trabalho foi financiado pela empresa Petróleo Brasileiro S. A. (Petrobrás).
Anteriormente a ele, havia sido elaborado, por outro profissional, um diagnóstico
arqueológico para o Estado, embora sua avaliação não condissesse com a realidade
regional, uma vez que trabalhos de campo não foram realizados. Por este motivo, a
realização do trabalho ora apresentado justificou-se, dentre outras razões, pela
constatação de que na época muito pouco se conhecia sobre a arqueologia sul-
matogrossense se bem que, os poucos trabalhos existentes, particularmente para a
região do Pantanal, acrescidos da bibliografia histórica e etnológica regionais,
indicassem uma grande potencialidade de Mato Grosso do Sul quanto à ocorrência de
2 Este artigo apresenta várias modificações em relação ao texto publicado por Oliveira & Peixoto (1996), muitas das quais em função das discussões que ocorreram durante o Simpósio.
28
sítios arqueológicos, destacadamente de culturas indígenas pretéritas, por toda a
extensão da dutovia. Em função dessa realidade, eram maiores os riscos de destruição
do patrimônio arqueológico do Estado durante a execução do empreendimento, uma
vez que esse patrimônio era, em grande parte, desconhecido e não poderia ser acusado
previamente sem o necessário levantamento realizado através de trabalhos de campo.
Nesta perspectiva, foi elaborado um projeto de pesquisa com os seguintes
objetivos: 1º) localizar, identificar e registrar os sítios arqueológicos constatados in
loco ao longo do traçado do gasoduto ou em áreas próximas a ele; 2º) avaliar o estado
de conservação dos sítios; 3º) determinar as áreas que demandam maior ou menor
atenção devido ao impacto da dutovia nas mesmas; e 4º) estabelecer prioridades e
estratégias, propor medidas mitigadoras e/ou compensatórias, para que sejam tomadas
as providências necessárias para a preservação e/ou salvamento do patrimônio
arqueológico.
A área de estudo compreende o trecho do traçado desde o km Zero do
gasoduto, no município de Corumbá, fronteira do Brasil com a Bolívia, até o km 350,
no município de Terenos, abrangendo grosso modo dois ambientes distintos: o
Pantanal (km Zero-260) e o Planalto da Borda Ocidental da Bacia do Paraná (km
260-350). Segundo o Gasoduto Bolívia-Brasil: Estudos de Impacto Ambiental EIA
(1993), a área do Pantanal abrange três macro-unidades ambientais: “Pantanal” (km
Zero-210), “Morraria de Urucum” (km 10-50) e “Depressão do Alto Paraguai” (km
130-180 e km 210-260). A área do Planalto da Borda Ocidental da Bacia do Paraná
(km 260-350), por sua vez, corresponde a ¾ da macro-unidade ambiental homônima
(km 260-380)3. O trecho que compreende desde o km 301 ao km 702 foi estudado
pelo arqueólogo Gilson Rodolfo Martins e sua equipe.
De momento, espera-se que as experiências e os resultados aqui
apresentados, somados a outros trabalhos publicados nestas Atas do Simpósio,
também possam contribuir para a realização de futuros trabalhos de consultoria em
Arqueologia, sobremaneira nos casos em que os empreendimentos sejam semelhantes
ao do Gasoduto Bolívia-Brasil.
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Nos casos em que trabalhos como este são realizados, as estratégias de
levantamento arqueológico devem ser compatíveis, pertinentes e adequadas aos
objetivos propostos, bem como ao tempo disponível para a execução dos trabalhos.
Isso porque muitas vezes profissionais (e empreendedores) são chamados um pouco
tarde para aplicar metodologias mais refinadas, o que evidentemente não serve de
justificativa para trabalhos de baixa qualidade.
Neste caso particular, para a definição das estratégias de levantamento
arqueológico foram aproveitadas basicamente as experiências adquiridas pelo
Programa Arqueológico do MS - Projeto Corumbá4, que propiciaram um
3 Essa subdivisão foi feita “com base em dados observados em imagens de satélite e em informações
bibliográficas referentes à geologia, à geomorfologia, aos solos e à vegetação” (Gasoduto Bolívia-
Brasil: Estudos de Impacto Ambiental EIA, 1993, v. 2/4, p. 5-1). Nota-se que algumas macro-unidades ambientais estão contidas, total ou parcialmente, em outras maiores.
4 Projeto de pesquisa desenvolvido nos municípios sul-matogrossenses de Corumbá e Ladário, desde
1989, através de um convênio de mútua cooperação entre a Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, representada pelo Centro Universitário de Corumbá, e a Universidade do Vale do Rio dos Sinos,
29
indispensável conhecimento sobre os tipos de sítios arqueológicos que ocorrem na
região do Pantanal Matogrossense. Contudo, também foram úteis nesta etapa dos
trabalhos, experiências de outros arqueólogos, especialmente daqueles que recorreram
a um levantamento probabilístico, dentre os quais Hilbert et al. (1993) através das
aulas de levantamento arqueológico junto ao Mestrado em Arqueologia da PUCRS
, Neves (1984) e Redman (1979).
Decidiu-se primeiramente percorrer todo o traçado do gasoduto, exceto as
partes do terreno em que as condições ambientais impossibilitassem o acesso e o
trânsito por parte dos pesquisadores, priorizando os sítios arqueológicos evidenciados
na superfície dos terrenos. Para tanto, entendeu-se por sítio arqueológico qualquer
local que apresentasse evidências materiais da presença ou atividade humana pretérita
(independentemente de sua classificação funcional), onde o termo pretérito não
necessariamente se restrinja a tempos pré-históricos.
A utilização de sondagens pedológicas, a partir de espaçamentos regulares,
foi proposta, em princípio, para pontos designados na literatura arqueológica,
etnológica e histórica ou através de informantes, desde que estivessem em áreas
favoráveis a assentamentos humanos, não apresentassem visibilidade das evidências
arqueológicas e realmente estivessem dentro da área de estudo delimitada ou em suas
proximidades. No entanto, durante os trabalhos de campo não foi necessário recorrer a
esta técnica.
O pressuposto básico para a definição da estratégia de levantamento
arqueológico foi entender o traçado do gasoduto como um transect que atravessa uma
grande área, compreendida por diferentes ambientes, constituindo uma verdadeira
linha de percurso a ser esquadrinhada, isto é, uma linha de caminhamento orientada.
Nesta perspectiva, foi delimitada como área de pesquisa a faixa de serviço do
gasoduto, incluindo, no mínimo, mais 40 m de cada lado, totalizando assim 100 m de
largura. Em segmentos com considerável densidade de sítios arqueológicos foi
necessário ampliar a largura da área de levantamento, delimitando uma área piloto de
acordo com a realidade local, com o propósito primeiro de fornecer subsídios à
orientação de possíveis desvios do traçado do gasoduto, em função da preservação do
patrimônio arqueológico.
Faz-se oportuno esclarecer que metodologias como esta são válidas
especialmente para empreendimentos como dutovias, rodovias e ferrovias, onde se
tem uma linha de caminhamento orientada, e não em áreas de empreendimentos com
recortes naturais da paisagem, como é o caso de hidrelétricas.
O percurso do traçado foi precedido pelo estudo detalhado das
correspondentes cartas topográficas do exército (1: 100.000) e das cartas de traçado
do Gasoduto Bolívia-Brasil (1: 50.000). Também foi indispensável o estudo
aerofotogramétrico do traçado através de imagens de satélite Landsat 5 (1: 100.000) e,
em parte, de fotografias aéreas, em sua maioria datadas de 1966 (1: 60.000), bem
como da bibliografia referente ao meio ambiente5. O uso desses recursos foi
fundamental para a revelação dos aspectos físicos da área a ser percorrida, incluindo,
em algumas ocasiões, sítios arqueológicos. Possibilitou conhecer com antecedência
representada pelo Instituto Anchietano de Pesquisas. O autor deste artigo participou desse projeto desde
o início até o ano de 1995.
5 As fotografias aéreas utilizadas foram obtidas junto ao Programa Arqueológico do MS - Projeto Corumbá.
30
características da área a ser estudada, tais como: vias de acesso, sedes de fazendas
próximas à dutovia, relevo, tipo de solos, afloramentos rochosos, distância do traçado
em relação ao nível das águas próximas, vegetação, diques lacustres, diques fluviais,
diques marginais, terraços fluviais etc. Trata-se de uma metodologia que também
utiliza variáveis ambientais para a detecção de bens arqueológicos em áreas pouco
conhecidas, tendo por base a interdisciplinaridade. Mas ela somente foi possível
porque os autores já dispunham de estudos anteriores sobre os ambientes a serem
percorridos, especialmente para a porção do Pantanal, os quais possibilitaram,
posteriormente, a conclusão de suas respectivas dissertações de mestrado (ver
Oliveira, 1995 e Peixoto, 1995).
Os trabalhos de campo ocorreram durante o mês de outubro de 1993, tendo
sido necessário realizar cerca de 250 horas de levantamento arqueológico, numa
média de, no mínimo, 12 km diários. Antes de percorrer um determinado trecho do
traçado, realizavam-se novos estudos sobre o meio ambiente físico, no intuito de
planejar as atividades, detectar as vias de acesso e identificar áreas onde, em nível de
hipótese, são mais prováveis a ocorrência e a visualização de sítios arqueológicos pré-
históricos ou históricos: áreas próximas a cursos d‟água, as que tiveram o solo
revolvido para cultivo, as erodidas com voçorocas por exemplo e aquelas áreas
com afloramentos rochosos. Não raras vezes foi preciso contar com um guia da região
para orientar os pesquisadores sobre as vias de acesso ao trecho a ser levantado,
principalmente para a região do Pantanal. Contudo, não se deve pensar que somente
as áreas que hipoteticamente apresentavam maiores probabilidades de se encontrar
sítios arqueológicos foram as percorridas. Como já foi dito anteriormente, mas vale a
pena lembrar novamente, foi feita a opção inicial por percorrer todo o traçado da
dutovia. Entretanto, quando se levantam variáveis que dizem respeito à complexidade
dos sistemas sócio-culturais inerentes ao levantamento de bens arqueológicos,
constata-se que raramente uma metodologia, como a utilizada, poderá detectar a
totalidade dos sítios existentes numa área. Logo, a estratégia de levantamento
arqueológico empregada para este trabalho não teve a pretensão de ser a exceção.
A complementação dessa metodologia deu-se, essencialmente, através de
uma pesquisa bibliográfica exaustiva sobre os trabalhos arqueológicos realizados
anteriormente nas diversas esferas ambientais do trecho Corumbá-Terenos. Dentre os
principais, merecem destaque os de Martins (1987), Passos (1975) e Schmitz (1993).
Sem embargo, realizou-se ainda um estudo bibliográfico sobre a história e a etnologia
das áreas a serem percorridas, fundamentalmente em obras como Corrêa Filho (1969),
Loukotka (1968), Nimuendajú (1981) e Susnik (1972 e 1978). Fichas de sítios
arqueológicos cadastrados junto ao IPHAN também foram utilizadas. No entanto, por
mais exaustivo que fosse o levantamento bibliográfico, não seria possível a partir dele
conhecer preditivamente a realidade arqueológica da região, muito menos avaliar o
impacto da dutovia sobre o patrimônio arqueológico de Mato Grosso do Sul, uma vez
que se tratava de uma região ainda pouco pesquisada.
Em campo, os sítios arqueológicos identificados foram plotados nas cartas
de traçado com auxílio de um GPS (Sistema de Posicionamento Global),
documentados fotograficamente e registrados previamente em uma ficha de registro
de sítios arqueológicos elaborada para a ocasião dos trabalhos e adequada às
especificidades regionais, tendo como base a proposta de Wüst, Lima & Neves
(1989). Nos sítios arqueológicos também foram realizadas coletas de material de
superfície, evitando maiores intervenções que pudessem comprometer a incolumidade
dos estratos arqueológicos e com o propósito de viabilizar futuros estudos que
31
pudessem contribuir ao conhecimento da arqueologia regional. Os sítios localizados
através de levantamento bibliográfico também foram plotados nas cartas de traçado,
desde que estivessem localizados nas áreas por elas abrangidas.
Em laboratório, os sítios arqueológicos foram definitivamente plotados nas
respectivas cartas de traçado e descritos igualmente nas fichas de registro. Em ambos
os casos receberam uma sigla específica utilizada para designá-los, obedecendo à
seguinte seqüência: sigla do Estado, sigla da sub-bacia hidrográfica e ordenação
numérica. Para a identificação das sub-bacias hidrográficas utilizou-se o Referencial
Hidrográfico de Mato Grosso do Sul (1990). Todo o material recolhido dos sítios
arqueológicos foi devidamente limpo, averiguado, catalogado e depositado nas
instalações do Instituto Anchietano de Pesquisas para posteriores estudos.
Vale a pena mencionar ainda que a participação de técnicos da Petrobrás em
algumas atividades de campo foi importante para que, através deles, os
empreendedores tomassem conhecimento dos trabalhos realizados e, principalmente,
dos tipos de sítios arqueológicos encontrados, da sua importância e das avaliações a
serem feitas para sua proteção. Isso porque, muitas vezes, empreendedores supõem
aprioristicamente que somente grandes monumentos arqueológicos, a exemplo das
pirâmides egípcias, merecem ser preservados. Por isso, em certas situações, é preciso
que os pesquisadores desmistifiquem algumas idéias equivocadas que se têm a
respeito da arqueologia, muitas das quais veiculadas pela mídia.
RESULTADOS DOS TRABALHOS DE LEVANTAMENTO ARQUEOLÓGICO
Constataram-se in loco 41 aterros com vestígios de ocupação cerâmica, em
sua maioria conservados e situados na planície de inundação do Pantanal. São
facilmente visualizados pela densa cobertura vegetal que os destaca nos campos,
justificando as denominações regionais de capões-de-mato e cordilheiras6, sendo
igualmente localizados através da aerofotogrametria. Atualmente é possível afirmar
que a tecnologia cerâmica das populações indígenas que ocuparam esses aterros
pertencem a uma nova tradição denominada Pantanal. Em Oliveira (1996) há maiores
informações sobre a ocupação indígena da planície de inundação do Pantanal,
inclusive a respeito dos aterros.
O material coletado da superfície desses sítios geralmente são fragmentos de
vasilhas cerâmicas, restos de alimentação basicamente ossos de répteis e
mamíferos, vértebras de peixes e conchas de moluscos e ossos humanos.
Raramente encontrou-se material lítico lascado ou polido, pontas de flecha ósseas e
contas de colar feitas de conchas de moluscos.
Foram observadas três áreas onde ocorrem aterros: a primeira (km 10-35)
compreende a área de influência da Lagoa do Jacadigo; a segunda (km 50-55)
corresponde ao rio Verde e adjacências; e a terceira (km 75-130) está inclusa na
fazenda Bodoquena, localizada nas sub-regiões de Nabileque e Miranda, que possui
203.828 ha de terras utilizadas para atividade de pecuária extensiva de corte.
6 Cordilheiras são elevações do terreno que separam lagoas, em sua maioria, temporárias. São
formações areno-argilosas com 1 a 2 m de altura, caracterizadas por uma densa vegetação que as
destaca na paisagem como verdadeiras ilhas de vegetação, podendo ser comumente alongadas. Capões-
de-mato, por sua vez, são semelhantes às cordilheiras, distinguindo-se dessas basicamente pelo fato de
apresentarem formas circulares e subcirculares, muitas vezes de tamanho menor e não necessariamente separando lagoas.
32
No segmento correspondente ao Planalto da Borda Ocidental da Bacia do
Paraná (km 260-350) foram identificados dois sítios arqueológicos, sendo um abrigo-
sob-rocha e um sítio lítico a céu aberto. O primeiro, sítio MS-MA-37 (UTM 7740000-
640500), encontra-se conservado e localiza-se na Serra do Paxixi, município de
Aquidauana, na localidade da Fundação Centro Educacional Rural de Aquidauana
(CERA), onde ocorrem isoladas figuras rupestres em branco e isolados petroglifos,
ambos com motivos zoomorfos. Encontra-se a 8,7 km de distância da dutovia e foi
investigado apenas para se conhecer como se apresentam os abrigos-sob-rocha que
ocorrem nessa região serrana. O segundo, sítio MS-PA-01 (UTM 7723700-692410),
situa-se numa pequena colina, próximo a um córrego intermitente onde aflora basalto,
a 200 m da dutovia, estando parcialmente destruído pela ação antrópica recente.
Trata-se de uma oficina lítica caracterizada principalmente por material de refugo em
córtex), lascas unipolares secundárias e lascas unipolares secundárias com retoque.
Em nenhum desses segmentos foi encontrado qualquer sítio arqueológico
histórico.
AVALIAÇÃO DO IMPACTO SOBRE O PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO
O segmento do Pantanal (km Zero-260) corresponde à área de maior risco de
destruição do patrimônio arqueológico, devido à grande densidade de aterros
identificados ao longo dos primeiros 350 km do traçado do gasoduto e proximidades,
especialmente na área abrangida pelo rio Verde (km 50-55) e parte da fazenda
Bodoquena (km 80-l20). Esses sítios, em sua maioria, encontram-se conservados e
devem ser preservados. Nesta ótica, cada aterro deve ser entendido como parte
indispensável de um conjunto de dados materiais culturais que se consolidou ao longo
de gerações, constituindo um importante registro para a história quaternária do
homem no continente sul-americano. Tal história, por sua vez, ainda está longe de ser
amplamente conhecida.
Ressalta-se ainda que é errôneo e apriorístico interpretá-los como simples
réplicas de um tipo de sítio arqueológico, como se todos os aterros apresentassem um
único conteúdo ou repetidas informações culturais. Portanto, para cada aterro a ser
atingido pela construção do gasoduto será necessário o devido e antecipado
salvamento arqueológico, sendo de fundamental importância advertir para a existência
de um aterro conservado, o sítio MS-MA-22 (UTM 7826850-493970), que se
encontra exatamente sobre a linha do traçado do gasoduto, no km 103. Também é
importante deixar claro que, em princípio, todos os capões-de-mato e cordilheiras que
ocorrem no segmento do Pantanal devem ser entendidos, para fins de diagnóstico
arqueológico, como sítios arqueológicos, no caso, aterros.
Nas áreas onde ocorrem os aterros, a possibilidade de ser encontrado algum
sítio arqueológico enterrado no solo é praticamente nula. Isso porque esses sítios
provavelmente configuram-se como os únicos lugares protegidos das cheias
periódicas que atingem as porções mais baixas do segmento do Pantanal. Dessa
forma, podem ser considerados como os únicos pontos favoráveis a assentamentos
humanos em áreas onde as demais porções do terreno permanecem periodicamente
inundadas. Os recentes estudos de Oliveira (1996) comprovam que, no caso do grupo
étnico Guató (lingüisticamente Macro-Jê e último remanescente de todos os grupos
que ocuparam a planície de inundação desde antes da Conquista Ibérica da região
33
platina), os aterros são ocupados especialmente durante as cheias periódicas que
atingem a planície de inundação, quando se torna possível a mobilidade em áreas até
então inacessíveis através da canoa.
Alguns dos aterros localizados nos segmentos km 50-60 e km 105-120 não
foram devidamente investigados por encontrarem-se em pontos de difícil acesso,
dadas as condições ambientais desfavoráveis. No entanto, poderiam ser facilmente
localizados através de fotografias aéreas ou imagens de satélite em escala igual ou
superior a 1: 60.000, recursos estes não colocados a disposição dos pesquisadores por
parte do empreendedor, apesar de solicitados com antecedência.
Na região dos relevos residuais do planalto de Urucum (km 10-50), inclusos
na área do Pantanal (km Zero-260), a bibliografia examinada indica um número
considerável de sítios cerâmicos a céu aberto e igualmente sítios com inscrições
rupestres. Entretanto, não foi constatada a presença de algum sítio arqueológico que
ainda não tivesse sido registrado anteriormente. Assim, a probabilidade de destruição
de algum sítio ainda desconhecido é mínima, porque nesta parte do traçado do
gasoduto os solos são geralmente rasos e cascalhentos, o que facilita a visualização de
possíveis sítios e dificulta a existência de algum abaixo da superfície dos terrenos.
Nos últimos 70 km do segmento do Pantanal, no município de Miranda (km
190-260), os riscos de destruição de sítios arqueológicos são maiores que nas áreas
anteriores, em conseqüência da grande quantidade de pastagens artificiais e,
principalmente, de matas naturais que dificultam a visualização dos remanescentes
materiais de culturas passadas. Muitas vezes a própria dificuldade de acesso e
mobilidade nessas áreas impossibilita a identificação dos sítios. Esta avaliação
também justifica-se através da literatura etnológica, que aponta esse trecho e/ou
proximidades como uma área de ocupação indígena, notadamente durante o período
colonial, por populações lingüisticamente Arawak e Tupi-Guarani.
O Planalto da Borda Ocidental da Bacia do Paraná (km 260-350) é área de
menor risco de destruição ao patrimônio arqueológico, em relação ao Pantanal (km
Zero-260). Dos dois sítios identificados apenas o MS-PA-01 encontra-se próximo do
gasoduto. As possibilidades de destruição do patrimônio arqueológico nessa área
restringem-se a sítios que possam estar abaixo da superfície dos terrenos ou em áreas
de pastagens e matas naturais onde há pouca visibilidade dos remanescentes culturais.
A própria etnologia também justifica esta idéia, porque indica o médio curso do rio
Aquidauana e/ou proximidades como uma área de ocupação Terena/Layana.
Verificou-se que o impacto da dutovia sobre o trecho Corumbá-Terenos (km
Zero-350) limita-se basicamente à limpeza do terreno para a construção da faixa de
serviço de 20 m de largura e à escavação das valas de, no mínimo, 1 x 1,5 m, onde
serão enterrados os dutos de 28” de diâmetro. Durante essas atividades haverá grande
circulação de pessoas e maquinários diversos pela área a ser impactada. Neste sentido,
propõem-se as seguintes medidas preventivas e/ou mitigadoras a serem adotadas pela
Petrobrás, empresa responsável pelo empreendimento:
1ª) Viabilização de estudos que possibilitem desviar o traçado do gasoduto
dos sítios arqueológicos identificados, especialmente do sítio MS-MA-22. Caso
contrário, tornam-se-á indispensável propiciar as condições necessárias para o
conseqüente salvamento arqueológico;
34
2ª) Em caso de desvio do traçado do gasoduto, em função da preservação, ou
não, do patrimônio arqueológico, torna-se imprescindível o acompanhamento de outro
parecer arqueológico favorável;
3ª) Mapeamento de todos os capões-de-mato e cordilheiras dos segmentos
km 50-60 e km 95-120, numa faixa mínima de 1.000 m de cada lado da área de
serviço. Este trabalho possibilitará detectar possíveis aterros que não foram
identificados em campo nessas partes do traçado. Justifica-se esta avaliação em
virtude das condições ambientais desfavoráveis ao acesso e à mobilidade dos
pesquisadores nos referidos segmentos. Outrossim, porque o empreendedor não
tornou possível contar com imagens de satélite ou fotografias aéreas numa escala
igual ou maior que 1: 60.000, que tornam mais segura a identificação dos sítios
arqueológicos. Esta medida poderá também indicar possíveis desvios do gasoduto, de
acordo com as especificidades técnicas do empreendimento e com o objetivo primeiro
de evitar a destruição de aterros;
4ª) Plotação, nas correspondentes cartas de traçado, dos sítios que foram
identificados em campo, bem como aqueles que foram arrolados pela pesquisa
bibliográfica;
5ª) Divulgação, junto às empresas responsáveis pela construção da obra, da
localização dos sítios arqueológicos e da necessidade de evitar a sua depredação por
parte de quaisquer pessoas participantes dos trabalhos, que por ventura venham a
querer coletar material arqueológico ou perturbar as camadas dos sítios arqueológicos.
Com isso objetiva-se proteger os sítios arqueológicos principalmente dos caçadores
de tesouros ou enterros;
6ª) Acompanhamento de um arqueólogo em cada frente de trabalho durante a
construção do gasoduto. Isso para que, caso se encontre, durante a escavação da vala,
algum sítio não previamente identificado, se possa realizar o devido resgate dos
remanescentes arqueológicos. Nesta perspectiva, observa-se um impacto positivo da
dutovia, uma vez que ela também possibilitará melhor conhecer a arqueologia da
região e, dificilmente, sua vala destruirá grande parte de um sítio arqueológico;
7ª) Quando do contato com os proprietários e moradores das localidades a
serem atingidas diretamente pelo empreendimento, torna-se necessário participar a
eles, através de um informativo (a exemplo do Informativo do Gasoduto Bolívia-
Brasil, 1993), a ocorrência de sítios arqueológicos ao longo do traçado do gasoduto e
a importância de sua preservação;
8ª) Colocação de placas de advertência nos sítios situados num raio mínimo
de 200 m de distância de cada lado da faixa de serviço do gasoduto, informando que
aquele local é um sítio arqueológico, sendo proibida sua depredação.
Em complementação a essas medidas preventivas e mitigadoras, propuseram-
se alguns procedimentos básicos para um possível salvamento arqueológico, seja para
o sítio MS-MA-22, seja para quaisquer outros aterros que possam ser detectados no
mapeamento dos capões-de-mato e cordilheiras dos segmentos km 50-60 e km 95-
120. Os procedimentos propostos não devem ser entendidos como uma camisa-de-
força para um eventual salvamento arqueológico, mas considerações a serem
ponderadas na elaboração do projeto de salvamento. São os seguintes:
1º) Objetivos: Resgatar e analisar de forma sistemática os remanescentes
culturais evidenciados na área do(s) aterro(s) a ser destruída pela construção do
gasoduto, evitando ao máximo maiores intervenções nos estratos arqueológicos;
35
2º) Delimitação da área: A escavação limitar-se-á à largura da área a ser
atingida pela vala do gasoduto (1 m) acrescida de, ao menos, 50 cm de cada lado,
totalizando assim uma trincheira de 2 m de largura que atravessará o(s) aterro(s),
servindo desde então de vala para enterrar os dutos. Esta proposta somente terá
validade caso não haja circulação de maquinário pesado nos limites do sítio,
preservando-o para pesquisas futuras. A delimitação da área a ser escavada deverá ser
preferencialmente antecedida dos respectivos serviços de topografia que precederão à
construção das valas, pois o rastreador de satélites do sistema GPS apresenta uma
pequena margem de erro de alguns poucos metros que, neste caso, pode ser crucial
para os trabalhos de salvamento arqueológico. Durante os trabalhos de levantamento
arqueológico na área do Pantanal (km Zero-260), foi realizado um croqui da área de
dois sítios, visando embasar possíveis salvamentos e/ou desvios do traçado da
dutovia;7
3º) Procedimentos metodológicos: Os processos de resgate dos
remanescentes culturais deverão estar de acordo com as características morfológicas
do(s) aterro(s), principalmente quanto à extensão e à altura das camadas culturais. Em
campo, será indispensável delimitar a trincheira a ser escavada e realizar o
levantamento topográfico do(s) sítio(s). Para a escavação torna-se pertinente obedecer
a níveis artificiais de 10 ou 5 cm até atingir a camada estéril do(s) sítio(s), coletando e
documentando sistematicamente todas as evidências arqueológicas, restos faunísticos,
sepultamentos e amostras de rochas, minerais, carvão, solo e pólen8. Em laboratório,
os materiais arqueológicos (cerâmico, lítico, ósseo e outros) deverão ser analisados de
acordo com as normas padronizadas, buscando compreender as tecnologias
evidenciadas nos remanescentes culturais. A análise das amostras de restos
faunísticos, sepultamentos, rochas, minerais, carvão, solo e pólen será norteada por
uma perspectiva interdisciplinar, tendo como objetivo último tratar da relação
existente entre sociedades humanas e seus ambientes de vida (por exemplo, problemas
pertinentes a assentamento e subsistência). A apresentação dos resultados, com as
necessárias explanações das etapas dos trabalhos, deverá ser feita sob forma de
relatório final a ser publicado em sua íntegra;
4º) Duração dos trabalhos e recursos necessários: A duração dos trabalhos,
o cronograma das atividades e os recursos materiais e humanos necessários serão
apontados pelos arqueólogos designados para a realização do salvamento, caso este
venha a ser necessário. Sugere-se que os trabalhos de campo sejam realizados
preferencialmente no período da seca do Pantanal.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os dados apresentados comprovam a grande potencialidade de sítios
arqueológicos, principalmente de culturas indígenas passadas, do Estado de Mato
Grosso do Sul, especificamente da área de estudo aqui abrangida.
O segmento do Pantanal (km Zero-260) destaca-se com uma considerável
quantidade de aterros, geralmente conservados e que se sucedem na planície de 7 Faz-se necessário não restringir a escavação aos limites visíveis do(s) sítio(s), mas também escavar
fora do aterro para verificar se ali existem evidências de ocupação ou atividade humanas pretéritas.
8 Atualmente penso ser mais pertinente realizar uma escavação através da decapagem dos níveis
naturais dos aterros, apesar da dificuldade de identificá-los em muitos casos, e não a partir de níveis arbitrários de 5 ou 10 cm de espessura.
36
inundação. É possível inferir que o Pantanal constitui-se numa das regiões de maior
concentração de sítios arqueológicos, notadamente de aterros, do território nacional.
Sua relevância arqueológica dá-se, principalmente, pela incolumidade da grande
maioria dos sítios ali existentes, e estes, por sua vez, devem ser indicadores de uma
considerável densidade de populações indígenas que habitaram a região em tempos
pretéritos. Por outro lado, constata-se a necessidade urgente de definição de
estratégias para sua preservação, enquanto patrimônio cultural, devido a sua
relevância para os estudos sobre a ocupação indígena da América do Sul, bem como
para a história e a cultura da população sul-matogrossense.
Nota-se ainda que a construção do Gasoduto Bolívia-Brasil não ocasionará
um grande impacto ao patrimônio arqueológico brasileiro se comparado a outros
empreendimentos, como rodovias, ferrovias, hidrelétricas e hidrovias. Além dos
impactos negativos abordados, possui um impacto positivo importante a vala
construída para enterrar os dutos. Trata-se de um impacto de fundamental importância
para o conhecimento da ocupação indígena pretérita de Mato Grosso do Sul. Também
será importante para o conhecimento da geologia e geomorfologia regionais, que
propiciará um melhor entendimento da história quaternária do Pantanal e do Planalto
brasileiros, da qual fazem parte muitas sociedades humanas ainda pouco conhecidas
ou praticamente desconhecidas.
A partir dos resultados obtidos torna-se crucial o cumprimento das medidas
preventivas e mitigadoras apontadas neste trabalho, a fim de prevenir ou compensar a
destruição do patrimônio arqueológico em questão.
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39
O USO DE MODELOS PREDITIVOS PARA DIAGNOSTICAR
RECURSOS ARQUEOLÓGICOS EM ÁREAS A SEREM AFETADAS
POR EMPREENDIMENTOS DE IMPACTO AMBIENTAL
Renato Kipnis
INTRODUÇÃO
A distribuição dos recursos arqueológicos no espaço não é aleatória. Ela é
padronizada segundo vários fatores, dentre os quais, o comportamento de populações
passadas, processos naturais e ação humana na paisagem. De um modo geral, o
comportamento humano pretérito produz padrões na cultura material e na paisagem
(resultado da interação entre sociedades humanas e meio-ambiente). Com o tempo
estes padrões podem ser alterados por processos naturais e pela contínua ação humana
(Wood and Johnson 1978 ) que, apesar de alterarem os vestígios arqueológicos,
também são padronizados. O desenvolvimento de modelos preditivos baseam-se
nestes pressupostose têm por objetivo, prever a ocorrência de um determinado
fenômeno arqueológico a partir do conhecimento prévio das variáveis envolvidas na
formação dos padrões arqueológicos, segundo uma perspectiva sistêmica. A idéia
básica que está por trás do desenvolvimento de um modelo arqueológico locacional é
que se existem tendências ou padrões entre as localizações de sítios arqueológicos e
uma ou mais variáveis distribuidas regionalmente, pode-se então desenvolver um
modelo baseando-se nesta associação (Brandt et al. 1992).
É quase que inevitável que empreendimentos de impacto ambiental,
principalmente os de grande escala (rodovias, hidroelétricas, gasodutos, etc.), irão
deparar com recursos arqueológicos. Um vez que a distribução destes recursos não é
aleatória, sería extremamente útil, e eficiente, se pudessemos de alguma forma prever,
se não a localização destes recursos, pelo menos a probabilidade de sua ocorrência em
uma determinada região. Isto daria subsídios para o empreendedor levar em
consideração os recursos arqueológicos na elaboração de um empreendimento de
impacto ambiental já nas primeiras etapas (i.e. planejamento e diagnóstico) da
formulação do projeto. Sem dúvida, isto dária melhores condições para contemplar
alternativas de localização do projeto, assim como custos com mitigação dos impactos
negativos.
O diagnóstico dos recursos arqueológicos é de extrema importância, pois é ele
que deve ser a primeira instância de avaliação do potencial do patrimônio
arqueológico. É baseado neste estudo que a primeira análise dos impactos culturais do
empreendimento será feita. Durante a etapa do diagnóstico devem ser levantados os
principais problemas a serem pesquisados dentro de um empreendimento de impacto
ambiental. Os problemas a serem atacados, que tipo de dados são necessários para
resolver estes problemas e qual a metodologia a ser utilizada para gerar os dados e
processá-los durante o período do projeto como um todo, têm que ser desenvolvido já
na primeira fase do empreendimento de impacto ambiental. Em outras palavras, o
detalhamento dos programas propostos para mitigação dos impactos negativos têm
que se basear no diagnóstico. Eventualmente, como em qualquer outra pesquisa,
durante o desenvolvimento do projeto irá ocorrer um refinamento dos problemas e
métodos; mas a estrutura básica da pesquisa, o que chamamos de “design”, tem que
sair deste estudo inicial. Caso contrário fica impossível de se fazer um planejamento
40
eficiente, condição sine qua non neste tipo de empreendimento. O diagnóstico dos
recursos arqueológicos também é de extrema importância para dar subsídios aos
orgãos competentes para a avaliação do patrimônio arqueológico, dos projetos de
mitigação e monitoramento dos recursos.
A questão fundamental do estudo de diagnóstico dos recursos arqueológicos é
como gerar informação que dê subsídios para avaliar o impacto do empreendimento
nos recursos arqueológicos e para planejar atividades de mitigação a partir de dados já
existentes. Ou seja, como realizar o estudo de diagnóstico de uma forma eficiente e
não onerosa baseado em dados secundários.
É raro uma região no mundo, se é que há uma, em que não exista nenhum
registro escrito sobre algo característico do local. Em sua maioria, estes registros
contém dados sobre as populações que ali habitam e/ou habitavam. Os registros
também contém, em sua maioria, informações sobre o meio-ambiente. No caso
específico dos recursos arqueológicos, estas informações podem variar entre um
extremo, onde temos informações aprofundadas sobre o passado com alguns trabalhos
de campo já realizados e coleções arqueológicas que podem ser consultadas a outro
extremo onde nada se sabe. Como o objetivo do diagnóstico dos recursos
arqueológicos é o de levantar informações para podermos caracterizar a situação atual
do patrimônio cultural de uma dada região a ser impactada, precisamos fazer uso de
todos as informações possíveis, sejam elas empíricas ou somente teóricas para
caracterizar a região do empreendimento. Na pior das hipóteses, ou seja, a falta total
de referências, sempre haverá dados de locais circundantes desta suposta região
incógnita e informações sobre o comportamento humano que podem ser utililizadas
para os estudos de impacto ambiental.
A utilização de modelos preditivos no contexto de estudo de impacto
ambiental é de grande utilidade uma vez que estes modelos são dispositivos que se
utilizam de um conhecimento prévio para prever tendências e eventos. Ou seja, eles se
utilizam do conhecimento de dados arqueológicos e não-arqueológicos para
caracterizar o potencial de uma região, baseados em variáveis definidas pelo
pesquisador sem a necessidade de realizar trabalho de campo. É importante ressaltar
que precisamos sempre ter em mente o processo de um empreendimento de impacto
ambiental como um todo, e que a utilização de modelos não elimina o trabalho de
campo, muito pelo contrário, o trabalho de campo é importantíssimo para refinar e
validar os modelos e em última instância faz parte da atividade mitigadora. Mas, em
se tratando especificamente da fase de diagnóstico, a caracterização dos recursos
arqueológicos quando feita nesta etapa do projeto não envolve trabalho de campo. O
estudo fica limitado à utilização de dados secundários.
MODELOS EM ARQUEOLOGIA
O que são modelos? Modelos são hipóteses, ou um conjunto de hipóteses que
simplifica observações complexas ao mesmo tempo em que oferece um quadro
preditivo exato que estrutura estas observações, frequentemente separando
redundância (noise) de informação. A maioria dos modelos mais sofisticados são
modelos matemáticos ou estatísticos, estes têm a vantagem de apresenter um grau
mais baixo de viés e normalmente são sistemas dedutivos mais robustos.
Há duas áreas em que os modelos preditivos têm um grande potencial dentro
de um contexto de estudos de impacto ambiental, a saber: custo-eficiência e utilidade
41
em planejamentos. A perspectiva quanto ao custo-eficiência está no seu potencial de
projetar a provável distribuição dos recursos arqueológicos de uma região a partir de
uma amostra cuidadosamente escolhida da área a ser impactada. A utilização de
modelos preditivos nos primeiros estágios do planejamento dá condições, oferece
subsídios, para que os planejadores evitem os recursos naturais quando possível, ou
pelo menos escolham alternativas de menor impacto (Kohler & Parker 1986).
Tomemos por exemplo a construçao de uma auto-estrada. O estudo de diagnóstico dos
recursos arqueológicos pode gerar um modelo que prevê a probabilidade de
ocorrência ou não de sítios arqueológicos. O resultado final deste estudo sería um
mapa com diferentes áreas, representando diferentes probabilidades de ocorrência dos
recursos arqueológicos. Esta informação poderia ser então, utilizada na computação
geral dos custos do projeto para gerar alternativas do traçado da estrada. Do ponto de
vista dos recursos arqueológicos, as áreas de baixa probabilidade seriam as áreas de
menor custo para mitigação.
O desenvolvimento e a utilização de modelos preditivos em arqueologia estão
associados à projetos de impacto ambiental na América do Norte. A utilização de
modelos preditivos nos Estados Unidos teve um grande avanço no final da década de
70 e ínicio da década de 80 através de projetos financiados por agências
governamentais que gerenciam as terras federais norte americanas. O objetivo destes
projetos era o desenvolvimento de modelos que poderiam indicar locais de ocorrência
de recursos arqueológicos em grandes áreas, baseados em amostras obtidas através de
prospecções feitas somente em algumas partes da região (Ambler, 1984, Ebert 1988,
Kvamme 1990, Kohler and Parker 1986, Warren 1990). Em outras palavras, levantar
subsídios para avaliação dos impactos culturais e desenvolvimento de programas de
mitigação dos impactos negativos de um modo eficiente e sem custos abusivos.
O resultado destes estudos foi o desenvolvimento de modelos preditivos
locacionais que procuram prever, no mínimo, a ocorrência de sítios arqueológicos,
material arqueológico ou estruturas pré-históricas em uma região, baseados em
padrões ou tendências observadas em uma amostra desta região ou fundamentados em
noções ou suposições fundamentais sobre o comportamento humano. A localização
dos assentamentos pré-históricos pode ser vista como uma estratégia com fins
econômicos, sociais e políticos (Jochim 1981). O desenvolvimento de modelos que
incluam todos os possíveis aspectos que possam influenciar o padrão de assentamento
humano é muito complexo. A maioria dos modelos desenvolvidos até agora
conseguiram uma certa simplificação através da concentração no componente
econômico do padrão do assentamento humano. Argumenta-se, ou assume-se, que
dentre as várias relações econômicas relizadas por indivíduos e sociedades pré-
históricas, uma das mais importantes é com o meio ambiente (Jochim 1981). Esta
suposição é importante pois é o fundamento no qual a utilização da distribuição de
características ambientais para prever a localização de assentamentos humanos está
baseada. Pressupõe-se também, que seres humanos tendem a minimizar o tempo ou
esforço gasto em suas transações econômicas com o meio ambiente (Jochim 1981).
Suposição esta que tem implicações importantes no desenvolvimento de modelos
preditivos.
Uma outra suposição, não menos importante, é a de que o comportamento e
suas mudanças ao longo do tempo produzem padrões. Qualquer estudo que visa gerar
conhecimento arqueológico tem que partir da caracterização destes padrões. A base de
tudo isto está na definição de cultura como sendo modos comportamentais
apreendidos e sua manifestação material, socialmente transmitidos de uma geração
42
para outra e de uma sociedade ou indivíduo para outro (Clarke 1968). Segundo uma
perspectiva sistêmica, o registro arqueológico é a soma da agregação dos materiais
descartados no curso do padrão repetitivo da localização de partes diferentes do
mesmo sistema.
Quando um pesquisador descobre um padrão em um conjunto de observações
e desenvolve uma hipótese para explicar o padrão observado, esta hipótese tem
implicações preditivas para observações futuras. As implicações podem ser testadas
com novos dados independentes. Se os dados são compatíveis com as previsões, a
hipótese é validada cientificamente. Caso a hipótese seja refutada, ela tem que ser
reformulada. Um aspecto importante deste processo, mas pouco adotado, é a
operacionalização das hipóteses, ou seja, criar modos delas serem testadas através de
dados empíricos. Este ponto é muito importante, pois é o único modo de se poder
avaliar uma pesquisa, seja uma avaliação feita por pesquisadores ou gerenciadores do
patrimônio cultural.
Os vários modelos preditivos têm três elementos básicos em comum:
informação, método e resultado. O modelo preditivo utiliza o método para transformar
informação em resultados previsíveis. Informação é o conjunto do conhecimento já
existente do qual o modelo é derivado. Dois tipos básicos de informação podem ser
utilizado no desenvolvimento de modelos preditivos. (1) Teorias que explicam os
efeitos processuais das variáveis independentes nos eventos de interesse segundo uma
relação de cause e efeito, e (2) observações empírcas, que normalmente consistem em
(a) interações observadas entre variávies dependentes e independentes em estudos
prévios ou em partes amostradas da área de interesse, e (b) informação sobre as
variáveis e condições que possam influenciar o resultado na área de interesse
amostrada (Warren 1990).
A informação é fundamental para o desenvolvimento do projeto como um
todo. Os dados que coletamos e como os coletamos, isto é, o método empregado em
uma pesquisa tem que ser determinado pelo problema que queremos solucionar e pelo
conhecimento teórico e empírico previamente adquirido.
O desenvolvimento de um modelo preditivo pode se dar segundo uma
perspectiva puramente dedutiva, baseada em teorias, ou de uma forma puramente
“transect”; abertura de vala com significativa incisão pedológica;
canteiros de obras; instalações
industriais de gera-ção de energia
Destruição total ou parcial de
sítios arqueológicos; conflitos étnicos
Tipos de
região
Tipos de
empreendimento
Tipos de impactos ambientais Possíveis impactos sobre o
patrimônio histórico/cultural
h- Rodovias e ferrovias
Abertura de “picadas”; sonda-gens geofísicas; terraplanagem,
aterros e dematamento na linha
do “transect”; caixas-de-empréstimo; asfaltamento e
cascalhamento; canteiros de
obras; processos erosivos dos acostamentos e barrancos;
edificações do sistemas de apoio
e serviços permanentes ao
usuário e ao sistema; pontes e túneis
Destruição total ou parcial de inúmeros sítios arqueo-lógicos;
descaracterização de
monumentos naturais como morros, vales, etc, com valor
paisagístico ou simbóli-
co/cultural; conflitos étnicos
i-Projetos de
desenvolvimento e
sustentação econômica em
áreas indígenas
Desmatamentos; açudes, po-ços;
áreas de plantio; pasta-gens;
sistema viário; instalação de edificações escolares, en-
fermarias e unidades admi-
nistrativas; pistas de pouso
Destruição parcial de sítios
arqueológicos; ruralização do
espaço natural tradicional; des-caracterização da arquitetura
tradicional; destruição parcial ou
integral de áreas de capta-ção de recursos naturais com potencial
de uso cultural (por ex. plantas
medicinais); integracionismo cultural
agrícola a- áreas extensas
de monocultura
agrícola ou pastagens
Desmatamento; esgotamento dos
solos; intensa movimen-tação
mecânica dos solos; assoreamento da rede hídrica;
acentuada erosão pluvial;
poluição agrotóxica dos solos e
águas; eliminação da fauna e flora originais; instalação de
complexas edificações rurais;
açudes e canais de irrigação; abertura de linhas de transmis-
são de energia; pistas de pouso.
Destruição total ou parcial de
sítos arqueológicos;
descaracterização de paisagens de relevância significativa
b reflorestamento Desmatamento da cobertura
vegetal em áreas recuperadas naturalmente; perturbação da
fauna; movimentação intensa da
superfície quando do plan-tio das mudas; erosão acen-tuada da
superfície dos solos e
Destruição parcial de sítios
arqueológicos; descaracterização de paisagens naturais
88
assoreamento hídrico.
Tipos de região
Tipos de empreendimento
Tipos de impactos ambientais Possíveis impactos sobre o patrimônio histórico/cultural
c- pólos regionais
de apoio e serviços
Implantação de complexo
sistema viário; grandes áreas de
terraplanagem; multiplica-ção de vilas e povoados; linhas de
transmissão de energia; po-luição
dos mananciais
Destruição total ou parcial de
sítios arqueológicos;
descaracterização de paisagens naturais
urbana a- Grandes obras
de engenharia civil
para insta-lação de
projetos habitacionais,
anéis viários,
canalizações de córregos, distri-tos
industriais,
aeroportos, cen-tros comerciais,
etc; metrô; redes
subterrâneas de
telefonia, sanea-mento e energia
Intensa pavimentação da
superfície; terraplanagem de
grandes áreas; movimentação do
solo em obras subterrâneas; intensa ocupação das áreas
ribeirinhas
Destruição total ou parcial de
sítios arqueológicos históricos,
etno-arqueológicos e pré-
históricos; descaracterização de monumentos arquitetônicos e
artísticos; destruição ou des-
caracterização de paisagens urbanas tradicionais (ruas,
bairros, praças,etc)
turística a-urbanização da
orla litorânea
Desmatamento; abertura de redes
de saneamento básico; poluição
sanitária; terrapla- nagem; fragilização de en-
costas
Destruição total ou parcial de
sítios arqueológicos, princi-
palmente, sambaquis; desca-racterização de paisagens
naturais; “pasteurização” de
populações tradicionais, por ex., colônias de pescadores
b- valorização
turística de áreas
históricas e culturais urbanas
(ex. Olinda,
Corumbá, etc)
Desmatamentos na periferia;
terraplanagens; calçamentos;
poluição dos mananciais; am-pliação do sistema viário;
instalação de complexas
edificações de serviço e apoio ao turismo
Destruição total ou parcial de
monumentos históricos, artísticos
e culturais;destruição parcial ou total de sítios arqueológicos
c- caça/pesca e
ecoturismo
Desmatamento parcial com
abertura de trilhas e edifica-ções
turísticas nas margens de cursos fluviais; alterações em áreas
espeleológicas; pertur-bação da
fauna; queimadas; lixo
Destruição/descaracterização
parcial de sítios arqueológicos
ribeirinhos e abrigos com inscrições rupestres; desca-
racterização parcial de monu-
mentos espeleológicos
Sendo assim, conforme o tipo de empreendimento, ocorrerá uma
alteração em menor ou maior grau na integridade dos sítios arqueológicos de uma
região. Qualquer projeto de pesquisa que pretenda ter uma abrangência espacial
extensiva, deverá considerar as variáveis acima. Qualquer síntese de conhecimento
arqueológico regional, implicará em relevar não só os monumentos mais
89
significativos, mas também os dados científicos provenientes dos sítios impactados,
independentemente do seu grau.
4- A avaliação dos impactos de empreendimentos regionais e algumas
considerações sobre medidas mitigadoras
Como já foi comentado anteriormente os critérios para definir uma região são
variáveis, bem como a extensão da mesma. Entretanto alguns projetos, devido ao seu
gigantismo, são evidentemente impactantes a nível regional. Exemplos, tais como a
Hidrovia Paraguai-Paraná, que poderá provocar danos diretos e indiretos em grandes
extensões do Pantanal, gasodutos de longa extensão, grandes barragens como Itaipu,
etc, necessariamente determinam que os projetos mitigadores planejem suas ações em
carácter regional. Nesses casos, muitas vezes, os efeitos chegam a ser transfronteriços.
Sendo assim, alguns parâmetros podem ser estabelecidos como pressupostos
para esse tipo de avaliação, a saber:
Repensar as alternativas ao modelo de desenvolvimento econômico
adotado;
Partir da idéia de que em princípio, todo e qualquer dano deve ser evitado,
e considerar a opção de alternativas para o empreendimento, ou, ao menos, opções
operacionais, por exemplo, no caso do gasoduto, desvios do “transect” quando o
mesmo incidir sobre sítios arqueológicos, no caso de barragens, rebaixamento das
cotas de inundação;
Analisar cada caso como único;
Conhecer e estudar o maior número possível de situações provocadas por
empreendimentos análogos;
A avaliação deve sempre ser produzida numa ótica multidisciplinar,
recorrendo-se e manejando-se os dados temáticos organizados pelos outros ítens
integrantes do EIA/RIMA, ou seja, de forma holística, evitando a compartimentação
do conteúdo, evitando situações do tipo, “o abastecimento energético de uma cidade é
mais importante que salvar os peixes de tal rio”, etc;
1.A seleção do ferramental metodológico deve considerar diferentes
propostas para minimizar o risco reducionista;
O conhecimento da Etno-História regional deve esclarecer a extensão das
áreas culturais e as unidades ambientais com elas relacionadas, verificando-se ainda a
ocorrência de superposições de sistemas culturais, bem como o entendimento da
dinâmica paleo-ambiental;
Os recursos disponíveis e o tempo necessário para os estudos devem ser
compatíveis com a complexidade do empreendimento.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AB‟SÁBER, A. Z. Bases conceptuais e papel do conhecimento na previsão de
impactos. In: Previsão de Impactos. São Paulo, EDUSP, 1994.
90
BEZERRA DE MENEZES, U. T. Arqueologia de Salvamento no Brasil: uma
avaliação crítica. Texto apresentado no Seminário de Salvamento Arqueológico.
Rio de Janeiro, SPHAN, 1988.
91
AVALIAÇÃO DE IMPACTOS AMBIENTAIS DE EMPRENDIMENTOS
URBANÍSTICOS E MEDIDAS MITIGADORAS APLICÁVEIS
Lúcia de Jesus Cardoso Oliveira Juliani
A preocupação com os recursos arqueológicos urbanos é recente. As
complexidades estruturais das áreas urbanas contribuiram, por muito tempo, para que
elas recebessem pouca atenção dos arqueólogos, pois não se acreditava nas
possibilidades de preservação desses recursos. O patrimônio edificado, ao contrário,
devido a sua visibilidade, sempre foi objeto de ações preservacionatistas.
Como reflexo direto dessa visão, com o surgimento da legislação ambiental
brasileira, principalmente da Resolução CONAMA 001/86, as atenções dos
avaliadores dos impactos ambientais têm sido voltadas, prioritariamente, para áreas
não urbanizadas, quando o componente a ser avaliado diz respeito a recursos culturais
não identificados.
Outro fator agravante é que as áreas urbanas apresentam a tendência de
possuir grande número de empreendimentos de pequeno porte, para os quais os órgãos
ambientais não exigem os Estudos de Impacto Ambiental. A Resolução CONAMA
considera, em seu artigo 2°, como empreendimentos que têm seu licenciamento
vinculado aos EIA/RIMA, entre outros, os projetos urbanísticos em áreas com mais de
100 ha ou naquelas consideradas de relevante interesse ambiental.
Surge, aqui, a necessidade de legislações específicas municipais que variem
com o porte da cidade e que sejam mais restritivas do que a Resolução CONAMA.
Papel importante desempenham, então, os planos diretores, as leis orgânicas e outros
instrumentos de planejamento e gestão.
Paradoxalmente, com o aparecimento do conceito de Arqueologia Urbana, a
cidade passa a ser compreendida como um sistema unificado e significante de
recursos materiais, loco de maiores e mais complexas ações antropogênicas, bem
preservadas no registro arqueológico (SALWEN, 1982; STASKI, 1982).
Percebe-se, entretanto, que o patrimônio arqueológico brasileiro ainda recebe
pouca atenção dos responsáveis por estudos e projetos ambientais desenvolvidos em
áreas urbanas, bem como dos próprios órgãos de gestão cultural e ambiental. O
resultado é que, na maioria das vezes, essas ações apenas contemplam o patrimônio
edificado pela sua alta visibilidade e consequente fácil percepção por parte dos
agentes envolvidos nas avaliações.
O art. 5 da Resolução CONAMA, em seu parágrafo único, define que, ao
determinar a execução do EIA o órgão competente fixará as diretrizes adicionais que,
pelas peculiaridades do projeto e características ambientais da área, forem julgadas
necessárias.
Entre essas diretrizes, relacionadas nos Termos de Referência, estão os
componentes ambientais considerados relevantes para a elaboração de determinado
EIA. O patrimônio arqueológico e histórico deveria estar sempre presente nesses
termos de referência porque através desses estudos surgem as grandes possibilidades
de descoberta, reconhecimento e proposta de medidas de preservação desses recursos.
Nesse momento, surgem os desafios:
92
- O que diagnosticar como relevante, se praticamente todo o solo urbano
pode conter vestígios materiais de processos culturais passados? Desse diagnóstico
advém a avaliação de impactos, portanto a definição de critérios para o diagnóstico se
faz de fundamental importância.
- O solo urbano, em grande parte impermeabilizado, não permite sua leitura
direta. Como diagnosticar?
A nosso ver, a aplicação de critérios de significância arqueológica,
associados ao grau de preservação do solo urbano, definiria o potencial arqueológico,
possibilitando o diagnóstico de uma área (JULIANI, 1996b).
O cruzamento desses dados com o risco arqueológico, definido a partir das
intervenções propostas pelo empreendimento em estudo, permitiria a identificação,
valoração e interpretação dos prováveis impactos.
As medidas mitigadoras aplicáveis em áreas urbanizadas, são melhor
viabilizadas se desenvolvidas através de programas, na fase de implantação do
empreendimento. É nesse momento, em que uma nova remodelação da paisagem
urbana exige a demolição do já existente, que o solo pode ser acessado.
Entre as medidas mitigadoras para os recursos culturais a serem afetados por
um empreendimento proposto, os programas desenvolvidos com a participação da
comunidade local na valoração dos bens e no desenvolvimento das ações, mostram a
possibilidade de melhor preservação na fase de operação.
SIGNIFICÂNCIA ARQUEOLÓGICA
A aplicação de critérios de significância arqueológica9 na fase de diagnóstico
possibilita a previsão dos impactos e o planejamento de ações apropriadas de
gerenciamento dos recursos arqueológicos.
Para que esses critérios sejam utilizados de maneira eficaz na gestão dos
recursos arqueológicos, é necessário que se proceda à identificação de todos os
aspectos de significância possíveis, de maneira que se possa prever todos os impactos
e planejar ações apropriadas de gerenciamento.
A avaliação de significância é fundamental para a pesquisa arqueológica,
pois influencia as decisões de quais sítios pesquisar e dos tipos de dados que se deve
coletar. Do mesmo modo, nos planos de gerenciamento arqueológico, auxilia nas
decisões (de preservar, alterar ou destruir recursos culturais) que se baseiam no valor
dos recursos X outras considerações do planejamento.
Embora a importância de um recurso arqueológico possa variar de acordo
com os interesses do pesquisador é imperativo que os arqueólogos envolvidos na
gestão dos recursos culturais avaliem significância além de seus interesses
profissionais imediatos. Faz-se importante, também, que reconheçam que mesmo
sítios pequenos, de superfície e perturbados podem ser fontes de dados arqueológicos
significativos e não devem ser desconsiderados.
9 Conceito altamente discutido pelos arqueólogos norte-americanos, por definir elegibilidade de sítios para o National Register of Historic Places - NRHP, segundo seu valor informativo (UTLEY, 1973).
93
Fica claro, portanto, que só se pode avaliar o valor de bens arqueológicos
através da formulação de um conjunto completo de questões de pesquisa (MORATTO
& KELLY, 1978).
McMANAMON (1990) utiliza uma abordagem de modelagem em
levantamento em escala regional como auxílio para determinar significância.
Discutindo que a frequência é um aspecto importante na consideração de significância
de bens arqueológicos individuais, aponta o uso do modelo para determinar a
frequência de sítios por tipo, num exemplo de como levantamentos visando
gerenciamento de recursos culturais, modelagem e determinações de significância
podem ser mesclados.
SMITH (1990) sugere a utilização de significância de contexto, isto é, do
modo como um sítio se relaciona com um sistema social mais amplo. Ele defende a
elaboração de site surveys para a abordagem de um sítio individual em termos de suas
associações históricas, pois uma vez que o contexto histórico de um sítio é claramente
compreendido, seu potencial informativo para questões relacionadas àquele contexto
pode facilmente ser definido em termos não ambíguos.
As categorias de significância mais utilizadas pelos arqueólogos norte-
americanos e que vêm gerando altas discussões e ampla bibliografia a respeito
através do Ministério Público, ou de outras instituições, porque Organizações Não
Governamentais podem e devem intentar ações dessa natureza. Acho que esse assunto
deveria ser trazido à baila novamente amanhã, quando estarão presentes especialista
de renome do mundo jurídico brasileiro nessa área: doutor Paulo Afonso Machado,
Roberto Monteiro e Carlos Caldarelli, que poderão examinar com mais consciência
esse fato específico, que pode ser levado como bandeira a partir desse Fórum. E
também uma questão ao Fórum: que seja consignado, nos seus estatutos, defesa do
patrimônio paisagístico, artístico e arqueológico também, muito obrigado.
Solange Caldarelli - Sandro Junqueira, da FEMAGO
Sandro Junqueira - Eu sou Sandro, tenho 16 anos de FEMAGO, e sou também
professor da Universidade Católica. Nós estivemos à frente do licenciamento da Serra
da Mesa. Dilamar já é companheira de longa data. Então, o que a gente quer colocar
são coisas gerais e perguntar se os modelamentos da arqueologia acadêmica ou da
arqueologia de salvamento, as matrizes variáveis, se elas foram suficientes para as
diversas etapas existentes: levantamento, prospecção, salvamento e resgate,
considerando que diversos profissionais têm tecido críticas ao enchimento do
reservatório da UHE Serra da Mesa, considerando a enorme área da Barragem
(1.784Km) e o fato de 20% dos sítios histórico-culturais não terem sido cobertos. Nós
estamos considerando aqui, custos, o tempo necessário, resultados obtidos e a
comparação com outros projetos, com eficiência e eficácia. Basta saber que o
Ministério Público Federal do Tocantins protocolou uma ação cautelar que nós temos
que suspender esse licenciamento e na análise que pude fazer, acurada, a conversa que
eu tive com a professora Dilamar (eu quero parabenizar os estudos que a UFG e
UFMG fizeram) e a gente está sendo uma vidraça de críticas (...) e uma outra
recomendação que eu faria é que esses resultados do encontro de vocês fossem
encaminhados aos órgãos ambientais, porque lá nós somos curingas. Eu sou geógrafo
e tive quatro horas de antropologia cultural, fui aluno da professora Irmhild, do
professor Altair Sales Barbosa, eu não trabalho direto na área, convivo com o pessoal
do IGPA desde 88, que sou professor aqui e que façam realmente esses contatos; eu
não acredito que os estados vão contratar arqueólogos, eles não estão dando conta de
pagar nosso décimo terceiro, nós temos que trabalhar em comum com uma equipe
multidisciplinar. É isso que quero falar aproveitando a oportunidade e agradeço o
respeito que vocês deram pelo avançar da hora. Obrigado.
Solange Caldarelli - Eu quero dizer que os resultados do Simpósio serão
encaminhados, através do documento-síntese, a todos os órgãos ambientais e ao
Ministério Público; isso já foi decidido.
172
4ª MESA-REDONDA:
RECURSOS CULTURAIS INTANGÍVEIS: MEIOS DE
DIAGNOSTICÁ-LOS E DE AVALIAR, MITIGAR E
MONITORAR SEUS IMPACTOS
COORDENAÇÃO:
Prof. Jézus Marco de Ataídes
Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia/UCG
Membro do Fórum Interdisciplinar para o Avanço da Arqueologia
173
EXPOSITORES
ANTONIO CARLOS SANT’ANNA DIEGUES
Livre-Docente em Sociologia pela ESALQ-Escola Superior de Agricultura Luiz de Queirós/USP
Professor do Departamento de Economia e Sociologia Rural da ESALQ/USP
Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental/USP
Coordenador do NUPAUB-Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Populações Humanas e Áreas Húmidas Brasileiras/USP e do CEMAR-Centro de Culturas Marítimas/USP
Membro da IUCN-International Union for Conservation of Nature no Brasil
Há vários anos dedica-se a estudos de sócio-antropologia de regiões litorâneas, do Pantanal e da Amazônia, em colaboração com várias universidades brasileiras e
organizações internacionais, tendo vários livros e artigos científicos publicados sobre o
assunto.
RINALDO SÉRGIO VIEIRA ARRUDA
Doutor em Ciências Sociais (Antropologia) pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo
Professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC/SP
Chefe do Departamento de Antropologia da PUC/SP
Sócio-fundador e coordenador do IPA-Instituto de Pesquisas Ambientais de São Paulo
Desde 1982, tem realizado trabalhos de consultoria e assessoria para associações indígenas
e comunitárias, bem como em projetos de desenvolvimento regional. Dentre estes, destacam-se a avaliação do componente indígena do projeto Polonoroeste, em Mato
Grosso e Rondônia, de 1982 a 1986; a consultoria para o CNEC/ELETRONORTE para
avaliaçào de impacto de projeto hidrelétrico em áreas indígenas de Rondônia, de 1986 a 1988; a assessoria à Associação dos Moradores da Juréia, em São Paulo, em 1989/90; a
avaliação de impactos ambientais e culturais de projeto hidrelétrico na sociedade
Nambiquara em 1992. Atualmente, presta assessoria ao CNEC no projeto PRODEAGRO,
no Mato Grosso.
Tem livros e artigos publicados em revistas científicas, voltados principalmente para as
questões indígenas.
CARLOS EDUARDO CALDARELLI
Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo
Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo
Advogado com escritório em São Paulo (SP)
Coordenador de Projetos (Área Sócio-Econômica) da Scientia Consultoria Científica,
participando de EIAs/RIMAs, regularização de Unidades de Conservação e projetos de Zoneamento Ambiental
Membro da IAIA - International Association for Impact Assessment
HELOÍSA S. F. CAPEL DE ATAÍDES
Mestre em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Goiás
Professora de História do Departamento de História, Geografia e Ciências Sociais da UCG
Historiadora do “Projeto de Levantamento e Resgate do Patrimônio Histórico-Cultural da
UHE Corumbá, GO” - Furnas/UCG
174
O PATRIMÔNIO NATURAL E O CULTURAL: POR UMA VISÃO
CONVERGENTE
Antonio Carlos Diegues
Introdução
A Constituição Brasiloeira, em seu artigo 216, considera como constituintes
do patrimônio cultural brasileiro “os bens de natureza material e imaterial ...
portadores de referência ã identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira. Esse artigo inclui como integrante desse
patrimônio as formas de expressão, os modos de criar, fazer e viver. A mesma
Constituição, por outro lado, define como regiões prioritárias de conservação
ambiental a Mata Atlântica, a Floresta Amazônica, o Pantanal e outros ecossistemas
importantes, espaços territoriais onde existem sub-culturas importantes, como a dos
caiçaras do litoral do Estado de São Paulo e Rio de Janeiro. Por outro lado, o Estado
implantou nessas áreas uma série de parques nacionais e reservas naturais que, pela
legislação em vigor, levam à exclusão e mesmo reassentamento das comunidades e
culturas tradicionais em outras áreas. Essa política ainda em vigor tem criado
inúmeros conflitos entre a administração de parques e reservas e as comunidades
tradicionais que, ainda presentes nessas áreas protegidas são pribidas de exercerem
suas práticas econômicas e sociais. A prática de pequenas roças, o uso de tecnologias
patrimôniais na pesca, no fabrico de farinha, na construção de canoas tem sofrido
severas restrições, colocando em risco a própria reprodução social e simbólica dessas
comunidades tradicionais cujos membros, frequentemente são forçados a migrar para
as periferias pobres das cidades da região. Aí sofrem um processo de perda de sua
identidade cultural, com o abandono de práticas simbólicas essenciais à sobrevivência
do grupo. Essas práticas preservacionistas oficiais, impulsionadas por grupos
ecológicos urbanos, desconhecedores das relações e práticas históricas desses grupos
com o mundo natural, em grande parte responsável pela conservação das florestas e
áreas costeiras tem, frequentemente ocasionado uma redução da diversidade cultural
brasileira e contribuido para um aumento da degradação de matas e mares.
A existência de comunidades tradicionais foi, por inúmeras décadas, ignorada
pelas instituições conservacionistas brasileiras e somente nos últimos anos, sobretudo
após o fim do período autoritário, veio à cena política como resultado de uma
organização incipiente dessas populações, de ações de organizações não-
governamentais sócio-ambientais (ex. Conselho Nacional dos Seringueiros) e de
algumas universidades e instituições de pesquisa. Como resultado de intensos debates,
o novo projeto de lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, cujo relator é
o dep. Fernando Gabeira, (substitutivo ao Projeto de Lei 2.892/92) reconhece o papel
positivo dessas populações tradicionais para a conservação. No entanto, as décadas de
uma política conservacionista inapropriada, baseada em modelo importado dos
Estados Unidos tiveram efeitos nefastos, que ainda perduram, sobre essas culturas
tradicionais moradoras de parques e reservas.
Na década de 80, a figura do tombamento, proposta pelo Serviço (Instituto) do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional foi também proposta seja para preservar o
175
patrimônio natural (ex: o tombamento da Serra do Mar, das Ilhas do Litoral Paulista)
seja para preservar o patrimônio cultural (tombamento das vilas caiçaras como as de
Picinguaba e Icapara, nos municípios litorâneos paulistas de Ubatuba e Iguape,
respectivamente).
Este artigo pretende analisar a importância das culturas tradicionais para
conservação das florestas e áreas costeiras e a necessidade de, ao se implantar projetos
de proteção ambiental, levar em consideração a presença das comunidades humanas
que vivem na área há muitas gerações e dependem do uso sustentável dos recursos
naturais renováveis para sua reprodução social e simbólica. As comunidades caiçaras,
que vivem na Mata Atlântica de São Paulo são tomadas como exemplo para a análise
dos conflitos e do potencial que apresentam para novas políticas de proteção
ambiental e de conservação do patrimônio cultural da região.
O Patrimônio natural
A idéia de patrimônio natural já figurava no decreto-lei n. 25, de 30 de
novembro de 1937, visando proteger valores paisagísticos, “como sítios e paisagens
que importe conservar e proteger pela feição notável com que tenham sido dotados
pela natureza ou agenciados pela indústria humana”. (Fonseca, 1996). Nesse sentido,
o patrimônio natural tinha seu equivalente no primeiro parque nacional brasileiro, o de
Itatiaia, criado nesse mesmo ano. Já em 1934, o Código Florestal definia parques
nacionais como monumentos naturais destinados a proteger áreas de grande beleza
cênica, com composição florística primitiva. A idéia de parque nacional como
monumento natural, de onde os homens deveriam ser excluidos tomou força com os
preservacionistas americanos do século XIX. Herny Thoreau e John Muir afirmavam
que no mundo selvagem estava a salvação do homem e sua transformação em parques
nacionais era o antídoto para os venenos da sociedade urbano-industrial norte
americana, destruidora da natureza. No entanto, como afirma Simon Schama (1996),
os santuários naturais de Yellowstone e Yosemite, assim como a natureza selvagem
eram um produto cultural, uma “elaboração da cultura tanto quanto qualquer jardim
imaginado” (p.17). Como produto simbólico, o parque natural americano, um
santuário sem vestígios humanos, incorpora uma visão antiga do Éden primitivo de
onde os primeiros serem humanos foram expulsos. Nesse sentido, ele faz parte do
mito moderno da natureza intocada e intocavel. Como afirma Simon Schama, à
semelhança de todos os jardins que povoam a imaginação humana, o parque nacional
americano de Josemite “pressupunha barreiras contra a bestialidade. No entanto, seus
protetores inverteram as convenções, deixando os animais dentro e os humanos fora.
Assim, tanto as companhias de mineração que penetraram nessa área da Sierra
Nevada quanto os índios Ahwahneechee foram meticulosa e energicamente expulsos
do idílico cenário” (18).
Ou ainda, como afirma Simon Schama, as pradarias reluzentes de Josemite já
não eram simplesmente natureza selvagem, mas o resultado de frequentes queimadas
realizadas pelos indígenas para servir de alimento aos bizontes.
A noção de patrimônio natural selvagem, sem qualquer tipo de4 morador, não
esteve somente na base da criação do primeiro parque nacional brasileiro nos anos 30,
mas reapareceu também na defesa da transformação de espaços territoriais florestados
da Mata Atlântica, como sucedeu com a Juréia que, nos anos 70, ameaçada em
176
transformar-se em condomínio de luxo e até em área de usinas nucleares, foi tombada
pelo CONDEPHAAT (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico,
Arqueológico e Turístico) como área natural, ainda que fosse a morada de centenas de
famílias caiçaras. Os ecologistas paulistas que propuseram a implantação de uma
Estação Ecológica, uma das mais restritivas unidades de conservação ao uso humano
esqueceram-se também que as comunidades indígenas e caiçaras aí residentes, que
por décadas e mesmo séculos transformaram a paisagem da mata tropical e as zonas
costeiras circundantes através de suas tecnologias patrimoniais usadas na pequena
agricultura, na pesca e no extrativismo.
O Patrimonio Cultural não-consagrado
A idéia de patrimonio Cultural não-consagrado surgiu no SPHAN -
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional também por volta da década de 70
designando os bens culturais que, até então, não integravam o conjunto do patrimônio
histórico e artístico nacional. Segundo Fonseca (1996), “tratava-se das produções dos
“excluidos” da história oficial; indígenas, negros, populações rurais, imigrantes, etc.
Para alguns funcionários do SPHAN, a exclusão desses bens culturais se justificava
pelo fato de não haver, no Brasil, testemunhos materiais significativos da cultura
desses grupos sociais, e por estarem esses bens, em geral, imersos em uma dinâmica
que inviabilizava o tombamento”. (Fonseca, 1996:159). A criação do centro Nacional
de Referência Cultural - CNRC- fundado em 1975, e em 1979 incorporado à
Fundação Nacional Pró-Memória contribuiu para a valorização da produção cultural
mais ampla, voltando-se para a valorização da cultura viva, sobretudo aquela
enraizada no fazer popular, com a intenção de tornar mais diversificada a
representação da cultura brasileira. O trabalho realizado pelo Pró-Memória serviu para
resgatar a cultura de importantes setores marginalizados das políticas culturais.Como
afirma Fonseca (1996), o reconhecimento desses setores não somente como objetos
de pesquisa, mas como produtores de cultura foi uma alavanca importante para a
afirmação da cidadania daqueles até então excluidos das políticas culturais. Como
resultado dessa nova proposta, várias manifestações da cultura viva dos grupos sociais
até então tidos marginais, como a dos negros, indígenas, caiçaras passaram a ser
objetos de tombamento.
Dentro dessa nova perspectiva, em 1976, o CONDEPHAAT, em São Paulo,
realizou o tombamento da vila caiçara de Picinguaba, no municipio de Ubatuba e
propôs também o tombamento da vila de Icapara, no município de Iguape com o
objetivo de preservar aldeias caiçaras como representativas de uma forma de
assentamento humano que fazia parte integrante da história do povoamento paulista,
ameaçada de extinção. Em abril de 1984, oito anos após o tombamento de Picinguaba,
a conselheira do CONDEPHAT, profa. Eunice Durhan propôs transformar o
processo de tombamento numa intervenção controlada permanente, tendo em vista as
transformações ocorridas, nesse período, na paisagem humana da vila, causadas pela
especulação imobiliária e pela construção de casas de veranistas. No momento do
tombamento, havia sido aprovado um plano diretor da vila, que se propunha a
regulamentar a densidade populacional, a doação de medidas para a conservação da
arquitetura original e da paisagem. Dez anos depois do tombamento pode-se dizer
que, ainda que tenha vida um certo controle da ocupação desenfreada, a vila passou
por um processo de descentralização cultural que acompanhou uma decadência das
177
atividades econômicas tradicionais, sobretudo aquelas ligadas à pesca artesanal. E na
base desta, está o desafio básico para esse tipo de tombamento: trata-se de uma cultura
viva, cujas bases sociais e econômicas foram sendo solapadas pelo contato com a
sociedade urbano-industrial, sem que o Estado tomasse medidas de apoio a uma
economia local indefesa frente aos avanços da chamada modernidade. os caiçaras
foram perdendo o controle sobre o seu território, sobre suas areas de plantio, suas
praias enquanto lugar de trabalho e vida e sobre o fazer e conhecer tradicionais.
Infelizmente, para isso contribui não só a especulação imobiliária, mas a implantação
dos momentos naturais, os parques e reservas que restringiram as atividades
tradicionais caiçaras. Aqui se revela uma dos efeitos da aplicação das políticas
dissociadas de proteção ambiental e cultural praticada tanto IPHAN como pelos
órgãos de conservação ambiental. Frequentemente, o chamado patrimônio natural a
ser protegido faz parte integrante do patrimônio cultural das populações tradicionais e
não podem ser protegidos separadamente. Essa proteção dividida torna-se ainda mais
grave quando o território do chamado patrimônio natural é o lugar reprodução
economica, social e simbólica das populações tradicionais, como é o caso das
caiçaras. Toda tentativa de congelamento dessas áreas naturais onde vivem
populações tradicionais acaba por, a longo prazo, desarticular a vida dessas
comunidades e comprometer a própria conservação ambiental. Por outro lado, pode-se
pensar que a implantação de áreas naturais protegidas que incorporem os interesses
das populações tradicionais possa contribuir para transforma-las em verdadeiros
laboratórios para a realização de ações visando o desenvolvimento sustentavel, através
do qual sejam respeitados e valorizados o saber tradicional, a tecnologia patrimonial e
mesmo sejam introduzidas técnicas alternativas de uso sustentavel do solo e dos
recursos naturais.
A proteção ecológico-cultural: uma síntese da defesa do patrimônio cultural e
ambiental
Já existe, a nivel internacional uma consciente crescente que a proteção da
diversidade biológica, de espécies, ecossistemas e genes não pode ser dissociada da
proteção daquelas culturas tradicionais que possuem um vasto conhecimento do meio-
natural em que vivem. (Diegues, 1966). Uma das maiores instituições ecologicas
globais, a UICN- União Mundial para a Conservação (1993) tem alertado para a
nexessidade de proteger tanto a biodiversidade quanto a diversidade sócio-cultural.
Estudos recentes (Gomes-Pompa, 92; Balée, 1988; Posey, 1987) tem demonstrado
também que as populações tradicionais, tem contribuido, em inúmeros casos, para a
manutenção e até fortalecimento da biodiversidade.
Até recentemente, os ecologistas preservacionais norte-americanos e europeus,
e seus sequidores dominavam o cenário da conservação com sua proposta de parques
e reservas sem a presença de populações, mesmo as tradicionais. Essa política não tem
garantindo a conservação das florestas, sobretudo nos países do Terceiro Mundo,
onde, ao contrário dos Estados Unidos, vivem comunidades tradicionais indígenas e
não-indígenas ameaçadas de expulsão com a criação dessas áreas naturais protegidas.
A partir dos anos 70, em vários países do Sul, os ecologistas sociais tem
criticado essa ação impositora do Estado sobre as populações tradicionais, propondo
formas de harmonização para a manutenção da proteção ambiental e sócio-
cultural.Uma dessas propostas é a da reserva extrativa para os seringueiros da
178
Amazônia. Uma outra, proposta pelo Nupaub-Núcleo de Pesquisa Sobre Populações
Humanas e Áreas Úmidas, da USP, agora incorporada no projeto de lei do Deputado
Fernando Gabeira é a reserva ecológico-cultural.Essa nova unidade visa proteger, de
forma dinâmica as relações entre populações tradicionais, como a caiçara e seu
ambiente, designando áreas de preservação permanente de florestas, estuários e rios.
O importante, nessas propostas recentes é a consideração que nem o ambiente nem a
cultura são fenôminos estáticos, mas que co-evoluem e se interpretam profundamente,
em processos complexos e dinâmicos. Nesse pocesso, na maioria das vezes
assimétrico, as culturas tradicionais se desorganizam, mas, em outros, elas resistem,
incorporando elementos novos, sobretudo aqueles que favorecem uma melhor
organização da produção e comercialização dos produtos agrícolas, pesqueiros e
artesanais. A proteção ambiental e cultural precisa levar em conta essa dinâmica, caso
contrário corre-se o risco de congelar as culturas tradicionais como peças de museu e
não como processos vitais relacionados com a produção e reprodução de um modo de
vida ainda existente.
Atenção especial deve ser dada ao turismo que, se de um lado pode contribuir
severamente para a desorganização das comunidades tradicionais, por outro lado, se
adequadamente planejado, pode ser um aliado importante na revitalização da
economia e da cultura tradicionais. No caso dos caiçaras pode-se observar que,
quando as comunidades litorâneas souberam manter seu território e suas atividades
tradicionais, seu relacionamento com turistas e veranistas não foi um elemento
desorganizador, ao contrário daqueles casos em que a perda das praias e das terras foi
uma das causas mais importantes da marginalização social.
Conclusões
A conservação do patrimônio natural e cultural não podem mais ser
considerados dois processos separados e opostos. O desafio maior é ainda o de
conservar processos e produtos sócio-ambientais que são dinâmicos e históricos. As
culturas tradicionais não são peças de museus como sugerem alguns folcloristas, mas
encontram-se profundamente inseridas em formas de vida que subsistem, ainda que
ameaçadas, em muitas regiões brasileiras, sobretudo em ecossistemas tidos até agora
como marginais, como florestas, mangues e estuários. Essas culturas coexistem em
diversos graus de integridade e identidade própria com a sociedade urbano industrial.
Sua identidade também é uma marca estática, mas se constrói e se reconstrói
continuamente em oposição à sociedade industrial envolvente. No caso da cultura
caiçara e de outras, essa identidade se reconstrói e se afirma, hoje, em oposição à
grilagem de seu território e às restrições às formas de vida das comunidades
tradicionais por parte de instituições preservacionistas que importaram modelos
inadequados de áreas naturais protegidas. A nosso ver, é preciso abandonar as formas
tradicionais de tombamento de áreas naturais separadas das culturas humanas que aí
tem o seu território de produção e reprodução de suas práticas econômicas, sociais e
simbólicas. Na área ambiental, a discussão, a nivel nacional de figuras como a da
reserva ecológico-cultural e reserva extrativista apontam alternativas novas para
conservação da diversidade biológica e sócio-cultural.
Referências Bibliográficas
179
BALÉE,W, 1992 “Indigenous History of Amazonian Biodiversity”, in H.K. Steen &
Tucken (eds). Changing Tropical Forest: Historical Perspectives on Today’s
Challanges in Central and South America, Durhan: Forest History Society,
185-97.
DIEGUES, A 1996 O Mito Moderno da Natureza Intocada, São Paulo, Huicitec.
FONSECA, M.C. 1996 Da Modernização à Participação: A Política Federal de
Preservação nos Anos 70 e 80. in Revista do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, n.24.
GOMES-POMPA, A & KAUS, A. 1992 The Tropical Rainforest: A Non Renewable
Resource, in Science 177: 762-5.
SCHAMA, S. 1996 Paisagem e Memória, São Paulo, Cia das Letras.
POSEY, D. 1984. Manejo da Floresta Secundária: Capoeiras, Campos e Cerrados
(Kayapó). in Ribeiro, B. (org.) Suma Etnológica Brasileira, Vol.1. Petrópolis,
Vozes.
180
A CONTRIBUIÇÃO DOS ESTUDOS ANTROPOLÓGICOS NA ELABORAÇÃO DOS
RELATÓRIOS DE IMPACTO SOBRE O MEIO AMBIENTE.
Rinaldo S. V. Arruda
1. Considerações iniciais
Agradeço o convite para participar do Simpósio “Política Nacional do Meio
Ambiente e Patrimônio Cultural” e parabenizo os promotores pela relevância e
oportunidade do tema.
No ofício de antropólogo tenho trabalhado há quase 15 anos em pesquisas e
projetos com comunidades indígenas, comunidades rurais tradicionais e até grupos
urbanos culturalmente diferenciados. De uma certa forma, como dizia Levi-Strauss,
por força dessa vivência, o antropólogo se converte em parte num estrangeiro entre
mundos culturalmente diversos. Para conhece-los neles nos imiscuímos e nesse
processo adquire-se uma visão dupla e reflexiva, de forma que a realidade de nossa
cultura e da do “outro” adquirem um mesmo grau de vitalidade e, ao mesmo tempo,
de afastamento.
Talvez por isso discorde e considere estranha a definição temática da mesa
em que participo14
que, denominando as tradições culturalmente diferentes de bens
intangíveis e classificando-as como manifestações do passado humano na
atualidade, de pronto as insere na categoria de folclore e de bens de museu. Esse viés
se acentua na sua denominação inicial como recursos culturais, termo de conotação
econômica e designativo de algo que pode ser usado com proveito por quem assim o
denomina.
Esses comentários não visam criticar, de forma alguma, os promotores do
evento, com alguns dos quais já tive oportunidade de trabalhar e de cujas
preocupações e perspectivas científicas e sociais tive o privilégio de partilhar. Na
verdade, essa definição reproduz, e permite colocar em discussão, a perspectiva
vigente sobre as populações tradicionais no contexto empresarial, financeiro e
governamental dos estudos de impacto ambiental.
Essa visão, infelizmente ainda hegemônica, se encontra profundamente
encravada nos pressupostos culturais de nossa civilização, os quais orientam nossa
percepção da natureza e do papel da humanidade em relação a ela, afirmando que:
a natureza é algo separado do homem;
o homem é superior a todas as outras formas de vida;
a natureza é hostil, caótica e perigosa, sendo necessário antes domá-la,
para poder utilizá-la na satisfação dos interesses humanos. Mais do que um direito,
é dever do homem transformá-la, domesticá-la;
a natureza não passa de “recursos” ou é apenas uma “paisagem”;
as sociedades com maior poder de transformação do ambiente natural
são, portanto, superiores às de menor poder de transformação da natureza. São as
promotoras do “progresso e desenvolvimento”. E aí, entram todas as variantes
históricas de legitimação científica/ideológica dessa concepção de superioridade:
racial, climática, civilizatória, etc;
14 O título da mesa era “Recursos culturais intangíveis: meios de diagnosticá-los e de avaliar, mitigar e monitorar seus impactos”.
181
e, finalmente, a natureza é vista como uma fonte ilimitada de
“recursos”. Mesmo a consciência recente de que estes recursos são limitados, e
portanto, o “progresso” e “desenvolvimento” infindável devam ser redirecionados,
encontram sua salvação na crença mágica do poder da ciência como redentora
deste impasse.
Em suma, nossa visão de mundo separa o homem da natureza e hierarquiza
as sociedades, legitimando todas as formas de sujeição da natureza e de outras
sociedades com base nestes pressupostos.
A antropologia clássica de cunho evolucionista foi uma das promotoras e
legitimadoras desta visão que, hoje, foi incorporada pelo senso comum e orienta a
visão da maior parte das pessoas. Por outro lado, o desenvolvimento da antropologia
se fez a partir da crítica a estas primeiras formulações introduzindo outras concepções,
baseadas tanto na reflexão teórica quanto nos intensivos e extensivos trabalhos de
campo etnográficos.
Nesse sentido, uma primeira contribuição da antropologia se funda na
reflexão sobre a constituição do ser humano, como ser cultural e natural, parcela
constitutiva dos ecossistemas nos quais se aloja. Por outro lado, tanto a idéia de
evolução, quanto a hierarquização das sociedades devem ser desnaturalizadas e
relativizadas num contexto de análise de dinâmicas históricas e culturais, onde a
diferenciação e a homogeneização são vistas como aspectos concomitantes de um
processo global de complexificação das relações sociais e ecossistêmicas.
O pressuposto da separação homem X natureza, além de naturalizar as
sociedades humanas, promove também o mito da “natureza intocada”. Pois bem,
estudos de ecologia cultural vem demonstrando cabalmente que até mesmo a “floresta
primária” é fruto do manejo milenar de populações locais (ex. Willian Ballée), Posey
e os Caiapós, etc. Promove o mito de que só a tecnologia mais moderna, a
monocultura e as espécies selecionadas pela “revolução verde” é que são válidas e
“produtivas”.
2. O trabalho antropológico na avaliação de impactos
Em geral o antropólogo é chamado quando se prevê que o empreendimento
provocará impactos diretos sobre populações indígenas ou “populações tradicionais”,
como seringueiros, ribeirinhos, quilombolas, ou outros tipos de comunidades
culturalmente diferenciadas da população brasileira.
A avaliação do impacto sobre as outras formas de vida que compõem o meio
ambiente não é menos difícil ou complexo, porém é voltado para um contexto de
maior regularidade de comportamento, característicos das espécies vegetais e animais
ou dos efeitos sobre o terreno.
Quando se avalia impactos sobre populações humanas a equação é dupla, já
que os humanos são, ao mesmo tempo, mais adaptáveis e mais imprevisíveis. Como
espécie adaptam-se a situações muito mais variadas que outras formas de vida mas,
por outro lado, comunidades humanas tem história e culturas específicas e a
variabilidade e potencialidade de sua adaptação a mudanças depende do ambiente
sócio-cultural em que foram formados. A cultura é o gabarito através do qual vêem o
mundo, classificam e atribuem significado a seus aspectos, direcionando seu
comportamento. A classificação do mundo, sendo sempre valorativa, coloca restrições
182
e impõe tendências de comportamento tão fortes quanto as de origem genética. No
aspecto alimentar, por exemplo, a existência de tabus (o que é considerado alimento, o
que não é) varia amplamente e seleciona o uso dos recursos naturais. Identidades e
papéis sociais estabelecem normas de relacionamento entre pessoas restringindo e
direcionando as formas de cooperação no trabalho, de resolução de conflitos, de
distribuição de alimentos, de acesso à terra e das possibilidades de ação conjunta. Isto
é, as mudanças no meio ambiente físico e social são mediadas pela grade cultural. Os
impactos ambientais sobre populações humanas, portanto, são equações diversas para
diferentes formas sócio-culturais, não podendo ser reduzidas ao quadro de
estereótipos atribuídos a populações humanas genéricas.
Apesar de óbvia, é necessário insistir nesta questão, sempre desprezada ou
mal aceita em suas implicações práticas. No caso de perdas territoriais indígenas
derivadas da implantação de empreendimentos variados, a legislação e o senso
comum prevêem a compensação por área contígua, da mesma amplitude e
características ambientais. Mesmo assim há perdas irreparáveis, seja pelo significado
mítico ou sagrado agregado a parcelas da área perdida, seja pelas modificações nas
redes de sociabilidade decorrentes da mudança de local de moradia. Mas, sempre,
nestes casos, emerge novamente um questionamento do direito indígena: „por que
tanta terra para estes índios, se os colonos “se viram” com muito menos terra?‟.
Quando populações tradicionais são deslocadas, o máximo que se consegue é a
indenização aos indivíduos com títulos ou posses antigas comprovadas. Mas, e aquele
território de uso comum, do qual ninguém é dono porque a posse é comunitária,
respaldada no direito costumeiro? Há questões relativas à especificidade de modos de
vida e utilização de recursos naturais, característicos de uma vasta população no
Brasil e no chamado terceiro mundo em geral, com jurisprudência ainda incipiente ou
inexistente, que encontram pouca acolhida nas empresas responsáveis pelos RIMAS.
A questão da diversidade/especificidade sócio-cultural é o motivo do
trabalho antropológico e nele imprime características próprias de investigação. A
primeira delas foi cunhada na história da disciplina como observação participante,
implicando num longo período de convivência, condição para a impregnação no
antropólogo do quadro simbólico de referência da população estudada, para a
observação detalhada das rotinas cotidianas e dos ciclos de atividades através dos
quais se reproduzem, único meio de compreensão da lógica social e comportamental
vigente localmente.
Além disso, o contexto de contato com as populações indígenas ou
tradicionais é sempre de conflito aberto ou latente, pressionados que são
permanentemente pelas frentes de expansão da sociedade brasileira. No caso das áreas
indígenas, cerca de 526 no Brasil, a maioria delas tem problemas recorrentes de
limites, invasões, etc.
Assim, a pesquisa antropológica, ainda mais quando se realiza em povos
indígenas, é sempre longa, exigindo em geral muito mais tempo que o cronograma do
empreendimento prevê. Portanto, a condição inicial para se trabalhar num RIMA é o
conhecimento já acumulado que o antropólogo tem sobre o povo em questão e a
região do empreendimento.
A utilização de estudos sócio-econômicos, ambientais, arqueológicos e
antropológicos, visando avaliar os efeitos de projetos de grande porte, tais como a
construção de usinas hidrelétricas, estradas, etc., sobre a natureza e sobre a vida das
183
populações locais, é uma prática indispensável, já incorporada e normatizada pela
legislação brasileira e pelos proponentes de tais projetos.
Entretanto, para que esses estudos possam contribuir de modo realmente
efetivo, deveriam ter peso equivalente aos estudos de engenharia, geo-morfologia,
etc., na definição do local, tipo e porte do projeto, devendo ser realizados
conjuntamente desde a fase do inventário preliminar. O diagnóstico das implicações
ambientais, sócio-políticas e culturais deveria ampliar a abrangência, e ser parte
integrante, da equação custo X benefício normalmente restrita aos componentes
materiais da obra em questão.
Por sua vez, na fase de viabilidade, além da continuidade dos estudos
antropológicos, torna-se obrigatória a participação direta das populações locais,
indígenas ou de outro tipo, através de suas lideranças, como interlocutores dos
proponentes do projeto, nos processos de detalhamento dos problemas, da procura de
soluções e de decisão a respeito de alternativas diversas.
As possíveis respostas aos sérios problemas criados para as populações locais
costumam implicar no envolvimento de vários órgãos estatais (municipais, estaduais e
federais) e de grupos econômicos privados, na tentativa de harmonização de
interesses, por vezes contraditórios entre si, num contexto de alta tensão política e de
muita violência derivada da luta pela terra e pelos recursos naturais. Isso implica em
que os encaminhamentos devam ser procurados com grande antecedência, com as
empresas proponentes dando demonstrações práticas de respeito e defesa da
integridade tribal e dos territórios dos grupos atingidos, no caso dos povos indígenas.
No caso de relatórios de impacto ambiental, o estudo antropológico não se
configura como um estudo acadêmico. Não pretende comprovar teorias ou defender
hipóteses inovadoras, instaurando um debate relativo à questões priorizadas no
momento pela comunidade científica. Ainda que possa adquirir estas características,
seu objetivo principal é responder a questões pontuais e avaliar resultados de
processos práticos. Entretanto, são trabalhos que mantém as características científicas
e se apoiam sobre as contribuições teóricas acumuladas na história da disciplina, no
conhecimento sobre a região e as populações em questão e em pesquisa de campo
específica que complemente e estabeleça um maior grau de precisão à compreensão
da situação local.
Por outro lado, o eixo analítico “ambiental” impõe uma abordagem mais
“holística”, uma vez que a questão ambiental se constitui como um mosaico dinâmico
de interfaces interdependentes de múltiplas áreas de especialização. Nenhuma destas
áreas, isoladamente, é suficiente para a compreensão de todas as questões envolvidas.
Por esse motivo tornaram-se comuns, ao menos como proposta, os estudos
multidisciplinares. Em tese, os relatórios de impacto ambiental são fruto de equipes
multidisciplinares. Deveriam ser iniciados por um processo preliminar de trabalho
conjunto, visando a adequação dos objetivos específicos de cada área num plano de
pesquisa e trabalho comum, complementar e integrado. Dessa forma, as conclusões de
cada área se beneficiariam em precisão e abrangência com a incorporação, durante o
processo, dos dados levantados nas outras áreas.
Na prática corrente, raramente é o que acontece. O contato entre os
especialistas costuma ser mínimo, ou inexistente; suas metodologias e objetivos são
particulares e setorizados. Muitas vezes as informações básicas sobre o
empreendimento, necessárias para avaliação das implicações ambientais e sociais
184
chegam mesmo a serem “maquiadas” de forma a amenizar as implicações negativas
do projeto.
Mas o RIMA é apresentado como uma peça única. Os relatórios setorizados
são reescritos pela empresa executora que, articulando as informações setorizadas,
detem o poder de estabelecer ênfases ou omissões que podem, em certos casos,
apresentar os impactos ambientais e sócio-culturais em graus diversos de afastamento
das conclusões dos especialistas. Nessa fase, a totalização feita na empresa é que
define a contribuição dos especialistas, os quais perdem a autoria de seus trabalhos e o
controle sobre os resultados.
3. Impactos de grandes empreendimentos sobre culturas tradicionais
O relato de algumas experiências de trabalho na avaliação de grandes
projetos permitirá que se visualize melhor algumas das implicações sobre as muito
tangíveis populações locais atingidas pelas transformações ambientais e sociais de tais
projetos .
A primeira delas antecede a resolução do CONAMA, mas ao mesmo tempo
já a antecipa. É o caso do Projeto Polonoroeste, do qual participei, de 1982 a 1986,
como membro da equipe de avaliação do componente indígena, coordenada pela
antropóloga Betty Mindlin no âmbito da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas
- FIPE - da Universidade de São Paulo. No final da década de 1970 pressões
crescentes de Ongs. sobre o Banco Mundial e sobre os países membros impuseram
medidas de proteção às comunidades tradicionais na zona de influência dos projetos
financiados pelo Banco, tal como o Polonoroeste, ainda que este projeto ainda não se
estruturasse na ótica da preservação ambiental, o que passaria a ocorrer quase uma
década após.
3.1. O POLONOROESTE.
No noroeste do Mato Grosso e, principalmente no Estado de Rondônia, o
Programa Polonoroeste foi um dos projetos mais impactantes, iniciado pelo governo
brasileiro em 1981. Centralizado ao longo do eixo da BR 364 (Cuiabá-Porto Velho), o
programa previa o asfaltamento dessa rodovia, a abertura de estradas vicinais e o
desenvolvimento e colonização da região. Com uma verba de 1,5 bilhões de dólares e
co-financiado em um terço desse valor pelo Banco Mundial, previa a destinação de 26
milhões de dólares para medidas de proteção às 60 comunidades indígenas na sua área
de influência. Na verdade, não chegou a alocar nem sequer a metade dessa quantia
para tal fim, tendo representado uma tragédia para a maioria dos povos indígenas
atingidos.
Algumas das áreas indígenas como, por exemplo, o território ocupado pelos
Erikbaktsa, pelos Kayabi e Apiaká, ficaram relativamente ao largo desse movimento,
ainda que atingidos pelo adensamento geral da população regional, pelo incremento
de doenças transmissíveis, pelos novos municípios surgidos, pelos empreendimentos
agro-pastoris e de mineração que avançavam e pelos projetos governamentais no
campo da produção de energia elétrica. Outras povos foram atingidas mais
fortemente, encontrando-se hoje em trágica situação, como os Nambikwara, os Cinta-
185
Larga, Suruí, Zoró, entre muitos outros. Em apenas dois anos depois da pavimentação
da BR 364 já haviam sido destruídos 2 milhões de hectares de floresta (Junqueira &
Mindlin, 1987: 4) sob a ação de companhias madeireiras, afetando negativamente a
economia tradicional indígena e sua qualidade de saúde e vida. Embora tenha
demarcado cerca de 30 das 60 áreas indígenas atingidas, ao fim do Programa
Polonoroeste a maioria delas não estava com o processo demarcatório finalizado e boa
parte continuava sofrendo invasões.
Além das profundas mudanças regionais, o Polonoroeste se apresentou aos
índios principalmente através da mudança de atuação da FUNAI. Esta passou a impor
sua presença no campo de intermediação, legitimada pela sua exclusiva e pouco usada
capacidade de demarcar áreas indígenas, além da oferta de "projetos" econômicos,
educacionais, de saúde e outros, financiados pelo Polonoroeste.
No decorrer de sua vigência o Polonoroeste propiciou um necessário
melhoramento da infraestrutura da Funai, dotando-a de mais viaturas, sedes,
funcionários e maior capacidade de intervenção no campo dos projetos econômicos,
educacionais e no atendimento à saúde. Esta capacidade, apesar de produzir resultados
medíocres frente às necessidades indígenas, propiciava ao menos uma presença mais
marcante nas áreas e, para os índios, alguma perspectiva de apoio e alternativas frente
às pressões da sociedade envolvente.
Por outro lado, a política indigenista desenvolvida pela Funai, voltada para a
integração dos índios na sociedade regional e no modelo prevalecente de ocupação do
espaço e utilização dos recursos naturais não contribuiu para o fortalecimento da
autonomia indígena e muito pouco para a garantia de seus direitos. Os projetos
econômicos, educacionais e de saúde, praticamente não levavam em consideração as
estruturas e dinâmicas sócio-culturais próprias de cada etnia.
No setor agropecuário privilegiava-se a introdução de projetos
“comunitários” (roças comunitárias, criação de gado comunitária) de monoculturas
valorizadas regionalmente, cuja produção deveria destinar-se a obtenção de renda
monetária. O resultado foi uma interferência autoritária e paternalista nas estruturas
sócio-econômicas e políticas internas, promovendo o relativo abandono de práticas
sociais próprias, com resultados negativos sobre a dieta alimentar dos grupos
atendidos e a criação de uma maior dependência da continuidade da ajuda paternalista
da Funai. Além disso, as atividades econômicas que tradicionalmente geravam renda
monetária para os índios perderam importância monetária, como foi o caso da
borracha e da castanha, cujos preços tornaram-se tão baixos que desestimulavam a
produção para a venda.
A permanente incapacidade da Funai e do governo brasileiro de efetivamente
demarcar, desintrusar e garantir os direitos indígenas sobre seus territórios num
contexto de enormes pressões sobre suas terras veio agravar esta situação. Estes
fatores promoveram, em conjunto, uma deterioração das condições de vida indígenas
e abriram o campo para as transformações que viriam, em seguida, a agravar estas
condições.
De acordo com os relatórios da equipe de avaliação do componente indígena
do Polonoroeste, já no final do Programa as sedes regionais da Funai não tinham mais
verbas para a manutenção das viaturas, equipamentos e continuidade do atendimento
nas áreas indígenas, inclusive na área de saúde. A maioria delas encontrava-se tão
individada no comércio local que as verbas que chegavam destinavam-se a
186
pagamentos atrasados, necessários para a liberação de veículos retidos em oficinas
mecânicas e outras dívidas pendentes. Os índios, por sua vez, enfrentavam o insucesso
dos projetos econômicos inadequados empreendidos pela Funai, os quais, entre outras
implicações, provocaram em quase todas as áreas indígenas a negligência em relação
à manutenção de suas roças familiares. Em muitas áreas o adensamento da ocupação
regional promoveu invasões nas áreas indígenas, cuja resolução dependia muito mais
da disposição de enfrentamento físico dos índios do que da garantia legal que o
governo deveria proporcionar.
As áreas em maior estado de penúria que contavam com recursos naturais
economicamente atraentes a curto prazo, principalmente minério e madeiras nobres,
viram-se mais do que nunca assediadas pelas frentes econômicas regionais, muitas
vezes contando com a “legitimação” ilegal da própria Funai. Em 1987, por exemplo, o
então presidente da Funai, Romero Jucá e funcionários regionais celebraram contratos
de venda de madeira do Parque Indígena do Aripuanã e de outras áreas indígenas
vizinhas com empresas regionais. Só num dos contratos, com a empresa Brasforest,
foi autorizada a retirada de quotas anuais de 40.000 m3 de mogno. Para os índios,
apesar das divergências internas, este passa a apresentar-se como o único caminho
para a resolução de seus graves problemas: melhor vender já que não conseguiam
estancar o roubo continuado de madeira renovado a cada estação seca. Apesar da
expoliação das madeireiras (baixo valor pago pelo m3, impossibilidade de controlar as
reais quantidades retiradas, etc.) o retorno imediato em dinheiro, crédito no comércio
local, possibilidade de atendimento à saúde, acesso a posse de veículos e gastos
variados, provocou a adesão quase total dos índios na continuidade desta relação.
Como vimos, a orientação da política indigenista oficial, potencializada pelo
Programa Polonoroeste, pressionava no sentido da adoção de práticas produtivas
típicas do modelo regional. Este, apoia-se no modelo agrícola da "revolução verde",
desenvolvido pelos países industriais do primeiro mundo, de clima temperado,
sustentado por fertilizantes químicos e maquinaria pesada. No caso do Centro-Oeste
Amazônico a predominância de tal modelo tem significado a erradicação da floresta
natural e sua substituição por monoculturas extensas de soja e arroz, pela proliferação
dos pastos, da mineração, da extração da madeira e dos conflitos sociais provocados
por uma estrutura agrária marcada pela concentração fundiária.
O índice atual de desmatamento do Estado do Mato Grosso é um forte
indicador da progressão do modelo “desenvolvimentista” vigente na Amazônia, cujo
avanço mais recente neste Estado foi incrementado pelo Polonoroeste. Dados do
INPA (Fearnside, 1995) mostram que o Estado já tinha em 1991 cerca de 16,4 % de
suas florestas originais derrubadas, sem contar as áreas de cerrado, extensamente
alteradas pelas monoculturas e pastos. Os dados referentes à totalidade da Amazônia
demonstram que cerca de 30% do desmatamento em 1991 pode ser atribuído a
pequenos agricultores com propriedades de menos de 100 ha. e 70% a médios e
grandes fazendeiros. O Estado do Mato Grosso sozinho representa 26% do total do
desmatamento anual de 11,1 mil km2 ocorrido na Amazônia legal entre 1987 e 1991,
coincidindo com o fato de que 84% das terras particulares são fazendas de 1.000 ha.
ou mais e apenas 3% são pequenas propriedades (IBGE - Censo Agropecuário de
1985).
A situação atual das áreas indígenas do Estado reflete a continuidade deste
movimento colonizador orientado e facilitado pelas políticas governamentais e pela
frágil posição nelas ocupada pela política indigenista.
187
Sem contar as áreas invadidas por fazendeiros, posseiros e extratores, boa
parte das áreas indígenas do Estado apresentam hoje alguma forma de utilização dos
recursos naturais para finalidades estranhas aos índios.
Há dez áreas indígenas sob a ameaça de influência de usinas hidrelétricas
planejadas e uma sob a influência de uma UHE já construída. Há 13 áreas com
rodovias acompanhando um ou mais de seus limites. Há 6 áreas atravessadas por
rodovias. Duas áreas ameaçadas por rodovias planejadas. Há 14 áreas dentro das quais
foram concedidos alvarás de pesquisa mineral para empresas particulares.
Além disso, há superposição (não necessáriamente negativa) de duas
unidades de conservação sobre áreas indígenas - a Estação Ecológica do Iquê
encravada no território Enawenê-Nawê e a A. I. Rikbaktsa e A.I. Japuíra dentro da
Reserva Florestal do Juruena. Há também a superposição da gleba Matrinxã, das
Forças Armadas, totalmente dentro da Área Indígena São Marcos e da área Cachimbo
das Forças Armadas (PA) dentro da área indígena Panará. Finalmente, a A.I. Teresa
Cristina está ameaçada pela ferrovia planejada Ferronorte.
O fim do Polonoroeste (1986 em diante) coincide com um período, que se
prolonga até hoje, de falência dos serviços da FUNAI e do crescimento do assédio de
madeireiros e garimpeiros sobre as áreas indígenas.
A Funai se enfraqueceu mais ainda nos anos recentes a partir dos decretos
23/92 que responsabiliza a Fundação Nacional de Saúde pelo atendimento à saúde dos
índios, do decreto 24/92 que transfere para o Ministério da Educação os recursos
destinados a educação indígena e pelo decreto 25/92 que inclui o IBAMA nas ações
de fiscalização de limites e exploração de recursos das áreas indígenas. Os decretos
tiraram muito da, já muito baixa, capacidade operacional da Funai, reduzindo suas
competências e sua presença nas áreas indígenas.
O órgão indigenista padece de sérios problemas administrativos e de pessoal.
Os funcionários (Hargreaves, 1993) de modo geral desconhecem a vida dos índios,
são pouco qualificados, sem programas de reciclagem, tendo pouco envolvimento
com as questões indígenas. Por outro lado, quase não contam com apoio nas áreas: em
muitos postos indígenas não tem rádio, ou este não funciona, faltam veículos, casas,
etc. Os mais íntegros são ameaçados por garimpeiros, madeireiros ou fazendeiros, os
quais substituem a Funai - cobrando um alto preço que é o de exploração dos recursos
naturais das áreas indígenas - nas suas funções de auxílio aos índios.
Nas áreas em que a Funai, superando todas estas deficiências, apresenta um
trabalho sério no desempenho de suas obrigações, ela não consegue apoio judicial,
institucional e nem policial necessários nas operações de fiscalização. Há reclamações
reiteradas, de funcionários da Funai e de índios, de que a justiça local muitas vezes se
nega a fazer o auto de infração e apreensão de boa parte da madeira roubada,
apreendida nas áreas indígenas Quando o faz, muitas vezes, a madeira fica retida até
apodrecer ou então, antes que isso ocorra, acaba sendo liberada para a própria
empresa que a retirou ilegalmente. Por outro lado, pela precariedade do atendimento
jurídico da Funai e pela falta de apoio institucional e pela morosidade da justiça, os
processos de indenização movidos contra madeireiras dificilmente chegam a seu
termo, inviabilizando uma das melhores possibilidades de estancamento da retirada
ilegal de madeira das áreas indígenas. Sómente em relação as áreas indígenas Sararé e
Vale do Guaporé (Seilert, 1995) estão em trânsito na Justiça Federal de Mato Grosso
cerca de 20 processos (civis e criminais) relacionados a casos de esbulho e
188
depredação. Cerca de 50 réus (muitos deles reincidentes) continuam impunes e
atuantes.
A Funai, sem recursos, capacitação e envolvimento dos funcionários e sem
autoridade, não tem demonstrado condições de competir com as pressões e ofertas
locais. De modo geral, os funcionários (com honrosas excessões) parecem preocupar-
se mais com a disputa por cargos no interior da burocracia do órgão do que com a
situação indígena. Não tem havido uma política indigenista definida e a política
oficial tem mudado a cada alteração nos escalões mais altos da instituição. As sedes
administrativas regionais tem funcionários em demasia os quais, sem apoio e
desmotivados, opõem resistências dos mais variados tipos para evitar longas estadias
em campo, as quais são imprescindíveis para o cumprimento das obrigações da Funai.
No âmbito da saúde quase não há mais atendentes nas áreas e nem estão em
andamento projetos sistemáticos de formação de monitores de saúde indígena.
Atendimento mais sistemático e projetos de formação de atendentes locais só alguns
realizados por entidades civis, como o da Missão Anchieta nos Erikbaktsa, o do
CERNIC nos Suruí, o trabalho da Escola Paulista de Medicina no Parque Nacional do
Xingú, da OPAN nos Enawenê-Nawê e poucos outros. A FNS por sua vez tem
dificuldades de articulação com a Funai e os distritos sanitários ainda não se tornaram
suficientemente operacionais.
Hargreaves (1993:) relata que no Grande Aripuanã “os remédios, exames,
atendentes, casas, hospitais, etc., são bancados com a venda da madeira e outros
recursos naturais”... “São 100.000 m3 mogno/ano nos últimos 5 anos = 500.000 m
3 da
área do Grande Aripuanã”...”Se somarmos as outras espécies vegetais, este número
dobra, superando 1 milhão de m3”. O mesmo relatório mostra que o envolvimento dos
índios na rede ilegal de exploração de madeira e minério, longe de resolver seus
problemas trouxe outros agravantes. A população Cinta-Larga, uma das mais
envolvidas por este processo, foi reduzida de 849 indivíduos em1989 para 643
pessoas em 1993...
Como acentua Seilert (1995:6) “o flagrante sucateamento dos serviços
públicos de assistência às comunidades indígenas, em curso nos últimos anos, está
favorecendo o surgimento de um novo modelo de exploração daquelas comunidades.
Neste modelo, sem oposição, os invasores passam a barganhar precária assistência por
livre acesso à exploração do patrimônio indígena”.
No caso dos grupos Tupi-Mondé e dos Nambikwara criaram-se situações de
conflitos continuados, com várias mortes acumuladas na última década, entre os
índios e os garimpeiros (nos Cinta-Larga parece que a cada conflito estes substituem-
se no acordo com os índios para exploração de ouro, cassiterita, diamantes); entre
índios e madeireiras e entre madeireiras (atualmente parece ter-se estabilizado uma
certa divisão de áreas de exploração entre as madeireiras); entre os próprios índios
(madeiras de uma área indígena são contabilizadas como de outra, índios de uma área
vendem madeira de outra, etc.); e, entre os índios aliados com madeireiras e/ou
garimpeiros contra Funai, Ibama e Polícia Federal. A fiscalização do IBAMA não tem
ocorrido com eficácia nem dentro nem fora das áreas indígenas. Os madeireiros e
garimpeiros (Hargreaves, 1993) “afirmam que estão lá ajudando a comunidade e que
pagam o IBAMA e que tem um “acerto”com o governo do Mato Grosso para não
serem molestados. Dizem que “esquentam” as notas fiscais e guias em Mato Grosso
ou em Rondônia”.
189
Boa parte das áreas indígenas reconhecidas no Mato Grosso, encontram-se
em graus variados envolvidas em contextos semelhantes e ainda sofrendo invasões
(projetos de colonização privados e governamentais, fazendeiros, etc.) e roubo de
madeira (retiradas não autorizadas pelos índios).
Assim, os impactos sobre as culturas tradicionais decorrentes do
Polonoroeste podem ser sumarizados como se segue:
Impactos diretos:
* invasão de terras;
* roubo de madeira e pressões para a venda de madeira;
* invasão de garimpos;
* doenças: malária endêmica e crescente, doenças venéreas, tuberculose,
etc.;
* poluição dos rios: mercúrio do ouro, sujeira do diamante, poluição por
agrotóxicos.
Impactos indiretos:
* pressão sobre os limites territoriais de áreas indígenas já demarcada ou
em fase de demarcação;
* projetos econômicos paternalizados e inadequados as especificidades
indígenas, regionais e ambientais (desestruturação economia tradicional e aumento
dependência);
* educação inadequada ás especificidades indígenas;
* agravamento de tensões intertribais e no interior de cada sociedade
indígena;
* diminuição da oferta alimentar ( diminuição da fauna regional);
impedimento de acesso a recursos fora da área demarcada) , etc.
A apresentação desses processos sociais como “impactos”, jargão técnico
incorporado na linguagem dos R.I.M.A., dificulta a visualização de sua complexidade,
interdependência e das múltiplas potencializações.
Ocorre ainda como agravante que, como dizia anteriormente, tanto os
relatórios científicos referentes à situação quanto as sugestões de encaminhamento de
soluções acabam sendo menosprezadas pelos órgãos contratantes que, via de regra, só
solicitam sua realização por imposição legal e formal, não incorporando estes
“componentes” nos critérios de validade da obra ou projeto e evitando ao máximo
incluí-los como itens intrínsecos ao orçamento.
3.2. A USINA HIDRELÉTRICA JP-14
Essa situação fica ainda mais evidente quando se trata de grandes obras
realizadas por empreiteiras de porte, como a construção de usinas hidrelétricas. Este
foi o caso dos estudos de viabilidade da UHE JP-14 em Ji-Paraná, realizado pelo
CNEC/ELETRONORTE, dos quais participei de1986 a 1988.
Já sob a vigência da resolução CONAMA, participei da avaliação de impacto
sobre a área a ser inundada, que atingiria parte da AI Igarapé Lourdes dos índios
Gavião e Arara.
190
O empreendimento se situava numa região que já vinha recebendo os
impactos mais profundos do projeto Polonoroeste e os povos indígenas atingidos já
viviam uma situação de grande complexidade.
O povo Gavião de Rondônia faz parte do complexo TUPI_MONDÉ, isto é,
sua sociedade se reproduz articulada a outras sociedades indígenas da região: Cinta-
Larga, Zoró, Suruí. Principalmente com os Zoró, suas relações são tradicionalmente
mais próximas: costumam realizar casamentos intertribais regulares, fazem festas
conjuntas, etc. Na época já estavam separados por um corredor de fazendas de grande
porte dificultando o contato entre eles.
Pressões sobre a área decorrentes do adensamento regional promovido pelo
Polonoroeste eram crescentes. Promovia-se invasões na área Zoró, Cinta-larga, Suruí
e Gavião. Área Gavião havia sido desintrusada em 1985 depois de mais de um ano de
conflitos, com grande dificuldades e as relações com a população regional era
bastante conflituosa. O empreendimento, neste contexto, aparecia como uma ameaça a
mais. Já em 1984 um helicóptero da empresa havia sido retido na área pelos índios ao
colocar marcos e realizar pesquisas sem sua autorização .
Os impactos diretos previstos eram a inundação de cerca de 11 mil ha. da
área indígena Igarapé Lourdes, inundação aldeia principal, roças, fruteiras, etc. ,
alterações no regime de águas no interior da área e repercussões negativas sobre a
flora e a fauna.
Previa-se também graves alterações no regime de águas (previsão de pelo
menos 30 dias de águas sem oxigênio a jusante da barragem) , na flora ciliar e interna,
na fauna, com repercussões por uma área calculada em 60 mil ha. da área indígena. O
deslocamento dos Gavião no interior da área poderia, além disso, provocar conflitos
com os Arara, que também habitavam a mesma área indígena.
Os impactos indiretos seguiam o padrão já apresentado no Polonoroeste,
somando-se aos impactos já detectados na região: aumento das pressões sobre as
terras, aumento das doenças, etc.
Os índios eram totalmente contra o projeto. Depois de um trabalho de
pesquisa de mais de um ano, realizado juntamente com Lars Lavold, um antropólogo
norueguês, elaboramos uma proposta de compensação que, se não houvesse outra
alternativa, seria aceitável pelos índios e, de alguma forma, contribuiria para refazer
em parte o padrão de convivência entre os Tupi-Mondé. Bàsicamente a proposta
previa o auxílio na formação de outra aldeia e para mudança e a compra e doação aos
índios de 60 mil ha. de terras (florestas preservadas) contíguas à reserva, formando
um corredor ligando a área dos Gavião com a área dos Zoró.
Pois bem, nem os relatórios científicos, nem a proposta jamais foram aceitos
pela empresa contratante, nem pela Eletronorte, as quais limitavam-se a fazer
reiteradas sugestões para a “reformulação” dos resultados dos estudos. O valor de tal
compensação era mínimo frente aos impactos detectados e era irrisório frente ao custo
do empreendimento. Em meio às negociações para que os relatórios e a proposta
fossem aceitos ocorreu um corte nos empréstimos do Banco Mundial para o setor
elétrico e a obra foi suspensa até hoje, assim como a do complexo de Altamira no
Xingú. Aliás, a retenção de tais verbas pelo Banco foi desencadeada por Darrel Posey,
antropólogo que fazia os estudos de impacto da hidrelétrica do Xingú, ao apresentar
denúncia da situação, juntamente com líderes Kaiapó, numa reunião do Banco
Mundial em Whasington.
191
Não se trata, é óbvio, em advogar a paralização de todo e qualquer projeto
que provoque mudanças. A questão é abrir espaço para que as populações locais,
tradicionais ou não, possam participar de forma efetiva na identificação dos
problemas e definição das soluções, possibilitando a elas um espaço de mudança mais
autônomo. É a mesma questão central que sempre está colocada: a relação entre
interesses do Estado associados aos das grandes empresas e as populações locais,
principalmente as populações tradicionais.
A resolução CONAMA constituiu um avanço nesta direção mas, como
vimos, estamos ainda longe de atingir os objetivos que essa resolução pressupõe e que
as situações apresentadas demandam.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARRUDA, Rinaldo S. V. - 1988 - Relatório de impacto ambiental e sócio-cultural
da UHE - Ji-Paraná sobre os povos indígenas Gavião e Arara da área
indígena Igarapé Lourdes; sobre o complexo cultural Tupi-Mondé do Parque
do Aripuanã e sobre os índios isolados da região. CNEC/ELETRONORTE,
julho de 1988.
ARRUDA, Rinaldo S. V. -1994 - “Existem realmente índios no Brasil? “. Artigo
publicado na Revista São Paulo em Perspectiva, volume 8, no 3, julho-
setembro de 1994, págs. 66 a 77. Fundação SEADE, São Paulo.
FEARNSIDE, Philip M. - “Quem desmata a Amazônia, os pobres ou os ricos?”. IN
Ciência Hoje, vol. 19, no. 113, set./95.
HARGREAVES, Maria Inês Saldanha - Levantamento Sócio-Ambiental do Grande
Aripuanã. PNUD, 1993.
JUNQUEIRA, Carmen - 1992 - A Questão Indígena no Brasil: evolução, principais
problemas e perspectivas de ação governamental. Texto inédito.
SANTOS, Leinad & ANDRADE, Lúcia (org.) - 1988 - As Hidrelétricas do Xingú e os
Povos Indígenas. Comissão Pró-Índio de São Paulo.
SEILERT, Fritz - Áreas indígenas em Mato Grosso. PNUD, 1995.
SEPLAN-MT - 1992 - Fisiomorfologia, solos e uso atual da terra: região Noroeste do
Estado do Mato Grosso. Secretaria de Estado de Planejamento e
Coordenação Geral. Governo do Estado do Mato Grosso.
192
LEVANTAMENTO E DIAGNÓSTICO DE BENS CULTURAIS INTANGÍVEIS
Carlos Eduardo Caldarelli
Primeiro, devo a vocês uma explicação: era para estar aqui Emília Botelho,
que ia fazer esta exposição. Infelizmente, porém, ela teve um imprevisto e não pôde
comparecer a este Simpósio. Uma vez que eu também participei dos trabalhos que ela
iria relatar, fiz algumas notas daquilo que eu ainda pude retirar do baú da memória e
vou tentar expor algo acerca daqueles trabalhos para vocês, a fim de que tenham idéia
do que foi feito, então, e de que contribuição se pode extrair deles para a discussão do
tema que nos preocupa nesta mesa-redonda, qual seja, o dos recursos culturais
intangíveis.
Os trabalhos mencionados dizem respeito a Porto Primavera, que é um
projeto hidroelétrico, e a Ourinhos, outro projeto hidroelétrico. Em ambos, essa
questão cultural ligada a populações vivas foi muito sentida pela equipe
multidisciplinar que fez os estudos de impacto ambiental.
No caso de Porto Primavera, estava-se diante de uma Usina Hidroelétrica que
já estava em construção antes da edição da resolução CONAMA nº 1 e que foi
alcançada pelos efeitos da resolução CONAMA nº 10/87, pela qual era preciso que se
fizesse um estudo prévio de impacto ambiental para que se obtivesse a licença de
operação.
Formou-se, então, a equipe multidisciplinar encarregada de fazer o estudo, da
qual faziam parte um sociólogo, uma antropóloga, um arquiteto e um historiador, para
lidar com as questões relacionadas ao patrimônio cultural. Ocorre que, a essa altura,
como já ficou dito acima, a Usina já estava em estado avançado de construção, estava
praticamente pronta. Assim, o estudo prévio de impacto ambiental que foi feito ali,
em primeiro lugar, não foi prévio e, em segundo lugar, padeceu com o fato de muitos
dos impactos que deveriam ter sido estudados antecipadamente já estarem
acontecendo, ou mesmo já terem acontecido.
Tendo em vista essas dificuldades de ordem prática, interessa discorrer, aqui,
acerca de como foi que essa questão do patrimônio cultural, e mais particularmente a
da cultura das populações presentes e atuantes ali, na região afetada pela construção
de Porto Primavera, acabou, então, por ser colocada.
Em primeiro lugar, na cabeça do empreendedor, a idéia de patrimônio
cultural estava muito ligada ao patrimônio edificado, enquanto composto de bens
tangíveis, visíveis, facilmente identificáveis, ao mesmo tempo que havia a consciência
da proteção legal de que gozam os restos arqueológicos, ou seja, a idéia que permeava
a cabeça do empreendendor era a de que aquilo que iria ser atingido, aquilo que iria
ser destruído, aquilo que iria ser turbado pela construção da Usina, era quase que tão
somente aquilo que existia materialmente, ou seja, a água destinada ao reservatório da
Usina, a construção desta última, a do canteiro de obras, etc., que são atividades
exercidas sobre o mundo material, atuariam (destruindo, fazendo submergir, etc.)
somente sobre coisas que também existiam no mundo material e nisto se resumiam os
impactos negativos que a implantação de um empreendimento como o de que se
tratava podia exercer sobre o patrimônio cultural.
193
Quanto aos outros aspectos da cultura local e regional, no máximo,
reconhecia-se a existência de festas religiosas populares, como a de N. Sra. dos
Navegantes, à qual se estava procurando dar um tratamento cujo rationale era muito
semelhante ao descrito anteriormente: buscava-se oferecer um novo local onde a festa
pudesse ser relizada, uma vez que aquele onde a maior parte dela se desenrolava
tradicionalmente, o bairro de Porto Quinze, ia ser inundado.
Porém, como é sabido, a cultura é um todo indivisível, sendo as suas
manifestações materiais, visíveis e palpáveis, inseparáveis da adesão a certas tradições
e valores e da posse dos conhecimentos, habilidades e atitudes necessários para que
aquilo que ela torna possível que seja exposto aos sentidos seja produzido e
reproduzido. Não é possível sequer compreender eventos comezinhos e simples para
nós, como uma festa de aniversário, por exemplo, se não se pensa em instituições
como o ano civil e a idade cronológica das pessoas, esta computada com base na
regularidade da passagem ordenada, inevitável e infinda daqueles. É impossível
comparecer a uma dessas festas e dela participar, se não se conhece e adere a
costumes tais como os de oferecer presentes ao aniversariante e vê-lo apagar velinhas
espetadas em um bolo. É, também, desejável que se possuam algumas habilidades,
dentre as quais conta-se o saber cantar, em coro (ainda que desafinado), “Parabéns a
Você”. Por último, espera-se do participante da festa que este mantenha uma atitude
de alegria e receptividade. Promover uma festa dessas implica, evidentemente, saber
de tudo isto e ter as habilidades necessárias para lidar com todos os seus elementos.
Não menos sabido é que inexistem manifestações culturais que dispensem as
relações sociais que as engendram. No caso das nossas festas de aniversário, as
relações mais importantes são as de parentesco e amizade, que fornecem pessoas para
preparar a festa e a ela comparecer. Existem outras, tais como as que se estabelecem
entre quem compra e quem vende um objeto qualquer que será dado de presente ao
aniversariante; quem encomenda, quem prepara e quem transporta o bolo de
aniversário, etc.
A maior parte das manifestações culturais exige, também, uma base material.
Porém, uma vez que parece que ninguém duvida disto, não vale a pena perder tempo
encarecendo o fato.
Assim, há pelo menos três formas de um empreendimento de grande porte
produzir impactos negativos sobre o patrimônio cultural, vale dizer, sobre a cultura:
alterando a valoração que se atribui a tradições, conhecimentos, habilidades e atitudes
ligados a bens culturais, em geral, de natureza material ou imaterial; interferindo no
modo como as relações sociais se entretêm para permitir a realização das suas
manifestações e agindo sobre as bases materiais em que se assentam estas últimas.
Voltando a Porto Primavera, vejamos o que tem a ver o que se acabou de
dizer com o que ocorreu ali. Para tanto, vou expor brevemente os casos das olarias
locais e da arquitetura vernacular das habitações das ilhas fluviais e ribeirinhas.
Antes disso, porém, peço licença para a seguinte digressão sobre a
visibilidade dos fenômenos culturais: Assim como é fácil reconhecermos como tais
manifestações culturais muito diversas daquelas a que estamos acostumados, é difícil
admitir que o são, igualmente, aquelas a que estamos habituados. É estranho
observarmos uma festa de aniversário como uma manifestação cultural, do mesmo
modo que admitimos observar dessa forma um ritual em uma aldeia indígena.
194
Muito bem, isto posto, é fácil compreender que, a olhos desatentos, a
produção artesanal de tijolos e outros artefatos de argila cozida, bem como o uso de
métodos originais de construção de residências, baseados em materiais pouco
utilizados em meio urbano, aliados a práticas construtivas e habitacionais adaptadas a
regiões ribeirinhas e a ilhas, possam parecer anacronismos e, mesmo, sinais de
miséria, ao invés de manifestações culturais locais.
Em Porto Primavera, aos olhos do empreendedor e dos seus prepostos, era da
primeira forma que apareciam a produção oleira e a arquitetura vernacular locais, isto
é, como excrescências que pouco ou nenhum valor possuíam e que podiam, quase
automaticamente e com vantagem, ser substituídas por bens de uso similar, só que de
valor mais alto e de utilidade maior, tais como pequenas propriedades rurais
agricultáveis, no primeiro caso, e casas de alvenaria, no segundo.
Assim, ofereceu-se aos oleiros tratos de terra para plantio e aos ribeirinhos e
ilhéus, casas de alvenaria, em troca das suas olarias e casas de madeira.
A esta altura, vale notar que esse é o primeiro impacto negativo importante
que os grandes empreendimentos costumam causar sobre os patrimiônios culturais
locais: a sua desvalorização e desprestígio, que conduz ao seu abandono,
principalmente porque, para oleiros e ribeirinhos, o acesso à terra e a residências de
aparência urbana acabaram parecendo, de fato, modos de ascensão social.
Por outro lado, a brusca alteração da composição e espacialização de grupos
domésticos e de trabalho acaba por alterar grupos de vizinhança e de amigos, bem
como rotinas diárias e de maior periodicidade, de modo que onde antes havia uma
comunidade, aparece uma população amorfa e desarticulada, sendo este o segundo
impacto negativo de grandes empreendimentos sobre a cultura, a que se fez alusão
agora, há pouco.
Em Porto Primavera, malgrado o que continha o tardio EIA-RIMA
produzido, tudo isso acabou ocorrendo: oleiros que, quando muito, cultivavam
pequenas roças complementares, voltaram-se para tentar viver principalmente do
plantio em pequenas propriedades isoladas e proprietários de casas de madeira
espalhadas pelo curso do rio foram levados a viver em aglomerações de casas de
alvenaria, tendo havido casos em que, em uma só pessoa ou família, materializaram-
se ambas as ocorrências.
Daí a desinteressarem-se todos, completamente, do destino das suas antigas
casas e olarias não foi preciso mais: submergiram, sem lamentações e sem deixar
qualquer testemunho, umas e outras, realizando-se, assim, o terceiro e último impacto
negativo mencionado, qual seja, a destruição pura e simples de parte do patrimônio
cultural local.
Então, devido a não se ter reconhecido que as pessoas com que se estava
interagindo detinham uma parte do patrimônio cultural local, cujas características só
elas mesmas podiam compreender e manipular, desastrada e talvez
irremediavelmente, acabou-se por destruir aqueles elementos do patrimônio cultural
local.
Deve-se ressaltar que, mesmo que se tivessem mantido as olarias e as casas
de madeira em uma redoma, estas e aquelas, sem os conhecimentos, habilidades e
atitudes a que estavam ligadas, pouco ou nada passariam a significar.
195
Apenas tomar cuidado com aquilo que é palpável, que é material, que é cal
pedra e cimento, sem se preocupar com o conhecimento necessário para reproduzir
aquela pedra cal e cimento, de nada adianta, no que diz respeito à preservação do
patrimônio cultural.
Poder-se-ia, por outro lado, fazer restrições ao que acabou de ser dito,
trazendo à baila o inconformismo dos oleiros com o seu modo-de-vida, por exemplo,
que de fato existia e era manifesto em Porto Primavera.
Acontece que a atividade manufatureira ligada àquela atividade é muito
complicada: exige uma série de equipamentos e conhecimentos especializados a
respeito de como utilizá-los e vincula-se a fenômenos, naturais e não naturais, de
periodicidade especial, muito diferente da ligada às lidas do agricultor. Pretender
transformar repentinamente oleiros em agricultores é uma coisa que, no mínimo, é
muito difícil de ser feito. O que é provável que aconteça (que esteja acontecendo,
aliás) é que, num relativo curto espaço de tempo, não se tenha mais oleiros nem
agricultores, tampouco cultura ligada à olaria, na região.
Sem pretender ditar receitas infalíveis e aplicáveis a quaisquer situações,
parece óbvio que uma transição lenta e participativa de uma atividade à outra e que se
preocupe com valorizar a atividade que se está abandonando poderia conduzir a
resultados mais duradouros, menos destrutivos e menos traumáticos.
Outro tanto se pode e deve dizer das pequenas casas de madeira da zona
ribeirinha e das ilhas: a evolução que esse tipo de arquitetura vernacular ainda poderia
ter, ali, em Porto Primavera só poderia dar-se, se a essa cultura e a esse conhecimento
se tivesse dado a oportunidade de continuar desenvolvendo-se, ou seja, se, destruídas
aquelas casinhas de madeira, se tivesse procurado dar aos seus antigos proprietários a
possibilidade de reconstrui-las, em outro lugar, talvez em outros termos, mas
aproveitando o conhecimento que tinham acerca de métodos construtivos, materiais
de construção locais, etc..
Certamente esse aspecto da cultura da população ribeirinha teria sua própria
evolução e continuaria evoluindo em seus próprios termos.
Havia, ainda, em Porto Primavera, uma questão muito aguda que era a
necessidade de acabar-se com um dos bairros de uma das cidades atingidas pelo
empreendimento: tratava-se de Porto Quinze, de onde partia a procissão de Nossa
Senhora do Navegantes que, entre outras particularidades, tinha a especificidade de
acontecer no meio do ano e não no começo do ano como no resto do país.
A solução que se adotou implicou a retirada da população daquele bairro
para um outro local, de modo que a procissão de Nossa Senhora dos Navegantes
passou a sair daquela outra localidade, com uma série de pequenos prejuízos que
acabaram considerados como tendo sido compensados pelo fato de o empreendedor
estar fornecendo aos deslocados novas casas e nova infra-estrutura.
Em suma, em Porto Primavera, casas de madeira compensaram-se com casas
de alvenaria; olarias, com terra agricultável e bairros e trajetos de procissões, com
outros bairros, “quase iguais, até um pouco melhores”, e outros trajetos para
procissões, tudo na velha tradição segundo a qual os incomodados que apanhem o que
puderem e se mudem!
Enfim, o que eu gostaria de ressaltar nessa experiência de Porto Primavera é
que, a partir de uma desconsideração da problemática posta pelas diferenças culturais,
196
dificeis de serem vistas em determinados contextos, reconheça-se, o empreendedor,
deixando de lado o fato de estar diante de uma cultura viva, em evolução, na região
em que se ia instalar, acabou por levar as populações que a portavam a transacionar
com aspectos do próprio modo de vida, da própria cultura, da própria tradição,
oferecendo-lhes em troca apenas bens materiais, o que é, no mínimo confundir alhos
com bugalhos.
Assim procedendo, perturbou seriamente, quando não liqüidou de vez, os
aspectos do patrimônio cultural local com que interferiu, comprometendo-o todo,
dada a sua coerência interna e a sua irredutibilidade ao meramente material e
utilitário, numa palavra, dada a sua indivisibilidade.
Quanto a Ourinhos, que é a segunda experiência que eu queria relatar para
vocês, trata-se de uma cidade próxima ao rio Paranapanema, cujo nome foi dado à
represa que ali se iria construir.
Bem, em Ourinhos, as questões mais agudas não se prendiam à visibilidade
do patrimônio cultural local, nem à sua indivisibilidade, embora esses problemas
estejam sempre presentes, mas ao modo como aquele patrimônio é produzido e
reproduzido.
Isto era muito bem ilustrado por uma Folia de Reis que havia lá.
A Folia de Reis, em poucas palavras, é uma uma expedição petitória que
consiste de uma bandeira, atrás da qual vão músicos.
Faz-se uma coleta de dinheiro que é utilizado para que se faça, depois, uma
grande festa para honrar os Santos Reis.
A Folia de Reis é muito preciosa, porque ela é relativamente rara, no País,
hoje. Ela é permeada por relações de parentesco e compadrio, que fornecem os
colaboradores do promotor da Folia, e baseia-se em crenças e acontecimentos
peculiares.
É preciso que o Folião que promove a Folia sonhe com os Reis Magos e que
lhes prometa que vai realizá-la durante sete anos seguidos e que depois vai passar esse
encargo para outra pessoa, que também vai sonhar com os Reis Magos e continuar a
tradição.
É fácil notar que, além de depender de uma série de acontecimentos que não
se dão todos os dias, a Folia é um empreendimento de vulto considerável para as
pequenas comunidades em que acontece.
Tudo isto implica repousar a sua continuidade sobre a estabilidade das
relações entre as pessoas que a promovem e dela participam. Reassentá-las sem levar
essa questão em conta é o mesmo que inviabilizar a Folia.
Felizmente, isso não ocorreu em Ourinhos.
A problemática, no entanto, tinha de ser reconhecida enquanto tal e em suas
verdadeiras dimensões: uma Folia de Reis é uma jóia que não nos é permitido perder,
por deixar que se quebrem, abruptamente, os elos da corrente de colaboração e
transmissão de conhecimentos, crenças e habilidades que a tornam possível.
Dito isto, eu gostaria de encerrar, colocando essas questões da visibilidade,
indivisibilidade e fragilidade do patrimônio cultural para o debate que virá depois.
Obrigado.
197
198
O RESGATE DA CULTURA INTANGÍVEL REFLETIDA NA
CULTURA MATERIAL
Heloisa Capel de Ataídes
Tendo como base a ênfase levantada em mesas anteriores à uma interpretação
legal que privilegia estudos e análises relacionadas à arqueologia e à arquitetura( por
parte tanto dos órgãos que administram a proteção do Patrimônio, quanto dos
empreendedores), e , ainda, considerando que tais estudos têm por referência a cultura
material; é que nós gostaríamos de contribuir com a discussão demonstrando a
indissociabilidade dos aspectos culturais mais amplos ou “intangíveis” de sua
expressão material e objetiva e, ainda, a partir de um exemplo concreto, fazer
considerações sobre as possibilidades de efetuar um resgate dessa natureza.
Após ouvir as exposições que destacaram a relação cultura / meio ambiente, o
impacto dos empreendimentos sobre as culturas tradicionais e os meios de
diagnosticar os bens culturais, cabe a nós refletir sobre o resgate da cultura intangível
e seu relacionamento com a cultura material.
Em todo trabalho que envolve o diagnóstico, a avaliação e o resgate de
Patrimônios Culturais é importante considerar, que, eles necessariamente,
correspondem a todas as “manifestações presentes do passado humano”
compreendendo tanto as formas materiais (pré-históricas e históricas), quanto as ditas
imateriais, normalmente relacionadas aos modos tradicionais de vida e de expressão.
Nesse sentido é importante observar que os elementos “materiais”, ou físicos
são indissociáveis de sua imaterialidade, relacionada ao terreno das idéias e das
instituições, das manifestações não visíveis, intangíveis da cultura.
Cientistas sociais como Kroeber já na década de 40, ponderavam que: “afinal,
o que conta não é o machado, a capa ou o trigo como coisas físicas, mas a idéia de tais
coisas e o conhecimento de como produzí-las e usá-las, ou seu lugar no mundo”...
Entre os historiadores, apesar do uso constante, de seu abandono e
revalorização através da historiografia francesa, as reflexões acerca da cultura
material ainda estão se processando. Nelas é possível encontrar a idéia de
imaterialidade da realidade objetiva e suas implicações. Como afirma o historiador
medievalista Georges Duby: “o estudo das realidades materiais e o das realidades
imateriais sâo indissociáveis, se quisermos explicar a situação de uma sociedade no
espaço e no tempo”.
A despeito dos avanços e do vigor em que se encontram os estudos que têm a
cultura material como referência para diversas áreas das Ciências humanas, é na
arqueologia que vamos encontrar um maior aprofundamento nas tentativas de utilizá-
la de forma mais abrangente, definindo-a como fonte e objeto de atuação social. Os
pré-historiadores têm-lhe conferido cada vez mais, um perfil antropológico e os
arqueólogos históricos, contribuído para a compreensão de sua natureza,
desvendando, por vezes, seu papel ativo na dinamização cultural em que está inserida.
Da definição fluida e demasiadamente genérica proposta por uma “proto-
arqueologia” social desde a década de 70, à visão passiva de simples reflexo da
cultura intangível desenvolvida pelos processualistas, é na arqueologia pós-processual
199
que encontraremos uma visão mais dinâmica sobre a “imaterialidade” da cultura
material, encarada não sob simples reflexo das práticas sociais, mas como sujeito e
objeto da ação social. O comportamento humano é culturalmente constituído,
informado através do significado e ação dos indivíduos. A estrutura sempre em
mudança do seu significado depende do contexto em que está inserida e é negociada
através das ações dos indivíduos que produzem a cultura. Assim sendo, a cultura só
pode ser compreendida como um código ideacional e deve incluir função e
significado, processo e estrutura, entre outros aspectos. A cultura intangível é,
portanto, indissociável da cultura material encarada sob uma perspectiva ampla e
ativa, como a relação entre pessoas e coisas.
Portanto, há inúmeras possibilidades de análise sobre a cultura material. Ela é
uma expressão singular do Patrimônio Cultural por possibilitar interpretações que põe
à mostra a dinamicidade das culturas e épocas e locais historicamente determinados.
Através dela e nela própria pode-se compreender aspectos estruturais mais amplos ou
mesmo, elementos específicos pertencentes a um domínio micro-estrutural e único.
Como elemento ativo, sua ação pode ser desvendada e discutida, como reflexo
intencional, pode ser lida e exposta à crítica textual. Como expressão formal e física,
pode viabilizar o resgate do cotidiano histórico, lugar privilegiado de lutas sociais e da
memória.
O resgate da cultura dita “intangível” pode ser realizado, dessa forma, tendo
como referência a cultura material. As análises a respeito tem demonstrado que a
cultura material é bastante eficaz para fazer emergir os elementos que servirão de
apoio à discussão de problemáticas culturais levantadas em áreas impactadas. Nesse
sentido, como considerá-la apenas em seu aspecto físico, concreto ? As definições de
cultura são fluidas e amplas, hoje compreendidas não apenas no sentido antropológico
de invenção coletiva e temporal de práticas, valores, símbolos e idéias, como também
no sentido de trabalho cultural. Assim, cultura é mais do que o monumental ou o
artístico. Cultura é memória, é política, é história, é técnica, é cozinha, é vestuário, é
religião. Há cultura onde os homens criam símbolos, valores e práticas. Há também
cultura onde se criam o sentido do tempo, do sagrado e do profano, do prazer e do
desejo, da beleza e da feiúra. Portanto, há cultura naquilo que é material e visível,
assim como no que é intangível ou imaterial. Da associação desses elementos, num
trabalho de resgate científico elaborado a partir de problemáticas culturais relevantes,
o Patrimônio Cultural pode ser adequadamente resgatado.
Tomemos nossa experiência como exemplo:
O PROJETO DE LEVANTAMENTO E RESGATE DO PATRIMÔNIO
HISTÓRICO CULTURAL DA ÁREA DIRETAMENTE AFETADA PELA USINA
HIDRELÉTRICA DE CORUMBÁ, realizado sob o patrocínio de Furnas Centrais
Elétricas, através do Instituto Goiano de Pré História e Antropologia da UCG,
demonstrou as potencialidades do resgate da cultura intangível tendo como referência
a cultura material. O Projeto desenvolveu-se entre 1994 e 1996, envolvendo os
municípios goianos de Pires do Rio, Caldas Novas , Ipameri e Corumbaíba.
A problemática da pesquisa nasceu da fluidez inerente ao conceito de cultura,
da extensão e complexidade da área e das discussões sobre a subjetividade de
conteúdos que tenham como objeto, a análise social. O rio Corumbá, referência
mestre do universo da pesquisa, eixo sobre o qual gravitaram os elementos culturais
mais rapidamente afetados pela construção da hidrelétrica, seria afinal, um elemento
de peso na ocupação, povoamento, e na dinâmica dos acontecimentos que se
200
desenvolveram em dois séculos de história ? Foi a partir desta reflexão que nasceu a
hipótese norteadora de todo o trabalho: a suposição de que por suas características
naturais e histórico de ocupação, o rio Corumbá seria muito mais um obstáculo, do
que um estímulo à dinamização da área. O relacionamento com ele foi sempre
norteado muito mais pelos esforços em transpô-lo do que em fixar-se nele.
A ocupação da área, portanto, e sua dinâmica cultural estiveram relacionadas,
em certo sentido, a uma perspectiva de isolamento, em que traços culturais próprios e
identitários puderam ser reconhecidos.
Nesta visão, o patrimônio a ser resgatado relacionou-se diretamente com a
área de estudo, identificando-se a produção cultural de elementos sob uma ótica-
problema, que levou em conta, entre outros aspectos, a viabilidade de preservação no
tempo determinado. Para isso, adotou-se a idéia de cultura como normas de “controle”
subjetivo identificadas num tempo longo e expressas seletivamente através da
memória. A opção de cultura adotada implicou, portanto, numa seleção de discussões,
à medida em que a problemática cultural foi definida para a área.
A preservação foi realizada em consonância com estes princípios. Neste
esforço, os elementos do fazer cotidiano foram sempre incluídos, buscando-se, a partir
deles, traços de identificação cultural de toda a área. As fontes de documentos
preservados foram diversas e responderam às necessidades de análise do objeto. As
opções metodológicas se desenvolveram portanto, em torno de um princípio
norteador: o de que a cultura material é suficiente e eficaz para fazer emergir os
elementos de discussão da problemática cultural levantada.
A cultura material em interação com a problemática da área esteve, dessa
forma, relacionada à paisagem , à arquitetura e aos caminhos, pontes e portos. Estes
elementos materiais deveriam responder à questão norteadora da pesquisa. Sua análise
deveria ser suficiente para elucidar questões sobre o papel do rio Corumbá e as
especificidades definidas pelo isolamento da área de estudo.
Tendo como origem o princípio genérico de que a cultura material pode se
compreendida como qualquer elemnto do meio físico culturalmente apropriado, a
paisagem foi utilizada como instrumento legítimo de leitura. Por ser considerada
como documento histórico sobre o qual a população escreveu a respeito de si mesma e
de seus ideais, a paisagem pode revelar os recursos disponíveis e costumes
decorrentes de seu uso, além de laços abstratos que a ligaram afetivamente à
população.
Ao histórico da ocupação da área agregou-se suas características físico-
culturais. Associados às características da vegetação, da fauna, da geologia e da
geomorfologia foram observados os elementos de construção que, de acordo com as
fases históricas de constituição, modificaram-se no decorrer do tempo. Neste
contexto, os elementos construídos apresentaram-se em interação com os elementos
vivos (vegetação e água). Após vários anos de formação de plantações e pastagens
observou-se um equilíbrio entre as árvores e as sedes de fazendas, as pontes e o rio,
elementos que se constituiram em tempos diversos e contrastantes. A vegetação
mascara os desequilíbrios das proporções e ameniza a silhueta dura do meio
construído influenciando o psiquismo do homem na área de estudo - daí ter sido
importante enfatizá-la no processo de preservação.
A afetividade, como traço cultural ligado à paisagem, relacionou-se às
formações vegetais do conjunto das edificações. Estes elementos refletiram a
201
interação natureza e meio construído, sob os quais a tradição local pode ser lida.
Foram, dessa forma, considerados como elementos do patrimônio selecionados pela
memória. As árvores e plantas inscritas na paisagem de algumas fazendas contaram
histórias familiares revelando a associação do homem com o meio e sua afetividade.
O rio Corumbá mereceu, neta análise, um destaque especial devido à
problemática levantada. A investigação sobre o papel afetivo e valorativo do rio
Corumbá reforçou a hipótese dos obstáculos relacionados à ocupação de suas
margens.
Ao ressaltar elementos da superfície visível da água, da qualidade visual e das
encostas do rio, além da vegetação e dos elementos valorizantes e desvalorizantes,
observou-se que o rio Corumbá influenciou e foi pela população influenciado muito
mais como obstáculo a ser transposto do que como potencial produtivo.
Outros elementos de peso na discussão da problemática cultural (tendo a
cultura material como pano de fundo) foram as expressões arquitetônicas. A
arquitetura da área foi levantada e reconhecida, identificando-se nela e através dela a
produção cultural necessária e suficiente para elucidar questões relevantes. As
influências arquitetônicas envolvendo materiais construtivos e elementos estilísticos
foram evocadas, buscando-se a constitução de procedência que conferiu às
construções urbanas e rurais da área algumas especifidades. Nesta trajetória, foram
evidentes as dificuldades de entrosamento com o rio Corumbá expressas na
dissociação de emprego de material construtivo ligado ao rio e na distância das sedes
de suas margens na área rural. Ainda sob este aspecto, outros elementos constribuíram
para a discussão da problemática como o isolamento expresso nas construções que, no
século XX, ainda conservaram técnicas construtivas próprias do século XVIII.
As questões relacionadas ao programa de necessidades das construções, ou
melhor, à organização interna que expressa a cultura de morar, foram importantes ao
descortinar usos quase indistintos na área rural das sedes de fazendas e casas de
agregados que se apresentaram com a mesma organização interna. A estes fatores
somaram-se as idéias do isolamento e da dinâmica própria do local que,
desenvolvendo desde o início do povoamento atividades relacionadas à pecuária,
estreitaram laços de solidariedade social.
Para complementar este estudo considerou-se, sobretudo, que o espaço
construído da casa é importante não apenas no entendimento de sua estrutura física,
mas do uso dos espaços que expressa a cultura de morar.
A análise do programa de necessidades demonstrou que a estrutura
arquitetônica reflete a estrutura sócio-econômica familiar da população rural em
Goiás. A separação das construções ligadas à família e ao trabalho, a criação de uma
faixa composta de sala de visitas e quarto de hóspedes, a existência de uma varanda
ou solar de convivência para onde estão voltados os quartos dos moradores e, ainda, a
valorização do espaço da cozinha como eixo cuore das residências, formaram um
tipologia da casa rural tradicional na área de estudo. Esta discussão proporcionou o
levantamento das atividades cotidianas e suas implicações na delimitação de tarefas
de natureza feminina e masculina, que se desenvolveram em espaços públicos e
privados. Através desses dados, elementos da estrutura familiar, econômica e mental
foram identificados e discutidos.
A materialidade das evidências arquitetônicas serviu, ainda, para se investigar
a religiosidade local - instituída e doméstica - identificando sua constituição no Brasil
202
e suas características de singularidade local acentuadas pelo isolamento. Para discutí-
la, fêz-se uso da história oral, resgatando traços da memória seletiva dos moradores,
além do levantamento geral de fontes elucidativas de questões religiosas e suas
expressões diversas.
Ainda buscando expressões materiais significativas para a discussão da
problemática cultural da área de estudo, além da paisagem e dos elementos
arquitetônicos ligados às sedes de fazendas, foram examinados, sob orientação da
Arqueologia Histórica, as pontes, portos e caminhos. Estes elementos, em sua maioria
encontrados em estado de ruínas ou ainda, tendo sua integridade física ameaçada pela
construção da hidrelétrica, apresentaram uma forte base de apoio ao levantamento de
questões ligadas ao rio Corumbá, e seu papel como agente dinamizador do
povoamento e das atividades culturais que se desenrolaram em períodos históricos
subsequentes.
Enfatizou-se ainda, a análise artefatual em interação com estruturas
arquitetônicas permitindo a reconstituição de edifícios e seus espaços. A cultura
material de uso cotidiano revelou hábitos culturais significativos para a discussão dos
domínios públicos e privados nas construções, servindo de apoio às reflexões sobre a
problemática no restante do trabalho. Através dela, pôde-se reafirmar as concepções
iniciais sobre o papel do rio e as dinâmicas culturais associadas à vida cotidiana.
Portanto, através dos referenciais de aproximação objetiva, material,
elementos subjetivos ou “intangíveis” puderam ser examinados. Através da cultura
material, encarando-a de uma maneira reflexa e ao mesmo tempo atuante, os
elementos de discussão sobre o povoamento, o isolamento da área e do rio Corumbá
como agente dinamizador, puderam ser investigados. A cultura material demonstrou,
à luz de um olhar interdisciplinar, ser um recurso eficaz para a análise proposta. A
fundamentação teórica de referência representou um avanço na definição da cultura
material, encarando-a de maneira dinâmica e atuante sobre a cultura e não apenas com
a perspectiva reflexa e inerte de outros estudos. De natureza discursiva e subjetiva, a
cultura material tem poder transformativo. Ela dá opção a uma análise
multidimensional e pode ser até usada para criar, no plano imaginário, um universo
cujo conteúdo e forma diferem completamente da realidade social. Daí ter sido
valorizada no trabalho, a importância de se considerar a subjetividade nas
interpretações dos textos decorrentes da cultura material, sob os olhares da História,
da Antropologia, da Arqueologia e outras áreas afins.
Assim, o princípio metodológico adotado na pesquisa revelou eficiência ao
possibilitar uma discussão ampla e multidisciplinar sobre o objeto construído e a
problemática adotada. O Projeto Corumbá comprovou ser possível elaborar um
trabalho científico partindo de um objeto delimitado artificialmente. Envolvendo
procedimentos interdisciplinares e pouco ortodoxos, foi possível dotar de sentido um
resgate complexo e de grande amplitude. Este é um dos grandes legados de pesquisas
dessa natureza: oportunamente inventariar áreas nem sempre conhecidas, ou mesmo
lançar novos olhares sobre um mesmo objeto, demonstrando, na prática, a
possibilidade de construir problemáticas com referenciais coerentes e próprios. Que a
iniciativa seja imitada, para que o Patrimônio Cultural do homem, em seu aspecto
material e intangível, possa ser valorizado, estimulando trabalhos científicos sobre
áreas impactadas.
203
DEBATE
Coordenador: Prof. Jézus Marco de Ataídes - IGPA/UCG
Relatora: Ana Guita de Oliveira - 14a. CR/IPHAN
OBS.: Esse debate, em consequência de falhas técnicas, foi gravado apenas
parcialmente. Seguem-se, aqui, entre aspas, as questões e respostas
trasncritas e, precedidos do aviso de “reconstituição”, alguns resumos das
outras intervenções ocorridas, feitos com base nas notas tomadas pela
relatora da mesa.
Ana Maria Martins - DEFA/GDF - Arquiteta - “Vou fazer um comentário e uma
pergunta para professora Heloisa. Eu sou do Departamento de Patrimônio Histórico e
Artístico do Distrito Federal. Fiquei muito interessada, porque os nossos trabalhos
cotidianos estão relacionados com uma cidade nova, cheia de problemas, cheia de
empreendimentos, cheia de relatórios de impacto ambiental. Então, eu fiquei muito
feliz com a exposição de todos vocês, porque eu acho que existe uma preocupação e
todas as pessoas demonstram isto na medida em que estabelecem medidas concretas
para que se preserve esses bens intangíveis. Eu tenho duas considerações a fazer,
apesar de ser arquiteta e não antropóloga: acho que existem as transformações que a
gente aceita e que vão ocorrendo sobre a sociedade, conforme os valores culturais
vão-se modificando; existem aquelas que são objeto desse Simpósio, ocorridas a partir
de alguma intervenção de grande porte e é sobre essas transformações que eu teria
algum comentário a fazer.
No caso, aqui, uma série de projetos de Usinas hidroelétricas foram
apresentados, em todos eles existem a necessidade de se realocar as populações; como
apresentou o Doutor Caldarelli, a questão de Porto Primavera foi bastante complicada,
na medida em que se tentou minorar os impactos, simplesmente dando um outro tipo
de realidade para população que nem sempre era aquele de que ela estava precisando.
Por outro lado, o que a Professora Heloisa apresentou foi verificado a partir de um
relatório, onde a comunidade desejava exatamente isso. Como sugestão para redação
do trabalho final, eu gostaria de colocar que seria interessante propor que os relatórios
de impactos ambiental, os EIAS principalmente, passassem por um momento de
analise como o do Projeto de Corumbá, que vocês desenvolveram. E que também
propusessem realmente medidas concretas, no sentido de chegar a resultados. Não
aquele obstáculo, no caso do rio, que era um obstáculo para o desenvolvimento da
comunidade e que eles não valorizavam esse elemento natural. Ou, então, chegar a
uma conclusão como em Porto Primavera, pelo menos pela notícia que eu fiquei
tendo, de que atualmente a comunidade toda se dispersou daquele território para qual
ela foi alocada, porque a concepção urbana não estava de acordo com os valores
culturais que a comunidade tinha. Então, que houvesse algum tipo de recomendação
nos relatórios de impacto ambiental a respeito das medidas que o empreendedor
deveria executar quando fosse feita a realocação da população ou fosse executado o
tipo de empreendimento.
Para a Doutora Heloisa eu tenho uma pergunta: vocês têm notícia de como
essa população ficou e para onde ela foi ?”
204
Heloisa Capel - “A hidrelétrica Corumbá está terminando, o lago ainda não está
totalmente formado. O Jézus pode responder melhor, porque ele é coordenador do
projeto e pode dar informações mais atuais.”
Jézus Ataídes- “Bom, é um caso diferente, a hidrelétrica de Corumbá vai ocupar uma
área pequena, de 65Km/2. É uma área rural, pouco habitada, não houve grandes
problemas com a população; as fazendas quase todas só tinham um peão, as casas-
sedes quase sempre eram habitadas apenas por um peão, as casas de agregados já
tinham sido abandonadas; então, a população era muito pequena; não houve reação
dessa população, que já tinha se transferido, na sua maioria, para área urbana; não
teve problema como em outras hidrelétricas.”
Antônio Carlos Diegues - (reconstituição) - Falou dos bens tangíveis e das
percepções diferenciadas do ambiente. As medidas mitigadoras são apenas
compensatórias. Citou a experiência da USP. Sugeriu que as populações atingidas
façam seu estudo de impacto a partir do entendimento que possuem - seus próprios
valores. Explicitou as diversas racionalidades contidas nos grupos/segmentos sociais
envolvidos nos projetos.
Rinaldo Arruda - (reconstituição) - Ressaltou as “racionalidades distintas”
envolvidas no processo de realocação. A noção de propriedade deve ser entendida no
âmbito das relações sociais e não são vistas como legítimas pela sociedade nacional.
A idéia de preservar como formas passadas. Preservar não somente a cultura, mas o
espaço de suas possíveis mudanças - de sua autodeterminação. Ressaltou o caráter
político das questões relacionadas à preservação da cultura.
Carlos Caldarelli - “Frequentemente, as populações submetidas passam a ver-se com
os olhos do outro e, consequentemente, perdem as próprias referências. Os meios de
evitar isso têm de ser formulados caso a caso. Portanto, não é o caso de haver normas
que antecipem o que o empreendedor deve fazer concretamente. Deve haver, isto
sim, normas que vinculem fortemente o empreendedor às conclusões e
recomendações do EIA/RIMA.”
Ana Lúcia Abrahim - 1ª CR/IPHAN - “Nos dois casos, Corumbá e Paraná, na
prática, que propostas de mitigação foram feitas ? Foram implementadas ? Foram
avaliadas?”
Carlos Caldarelli - “Em Porto Primavera, não pôde haver implementação,
monitoramento e avaliação das propostas de mitigação, porque os impactos já
estavam ocorrendo quando se fez o EIA/RIMA.”
Jézus Ataídes - “Em Corumbá, as sedes das fazendas, na sua maioria, já não estavam
mais na área a ser inundada, na época da pesquisa. A especulação imobiliária foi e
está sendo muito grande. Já existem loteamentos de várias propriedades que vão ficar
nas margens do futuro lago. Até então, a população não tinha nenhuma relação mais
íntima com o rio Corumbá, ele sempre foi um rio que causou medo. Não é navegável,
não é piscoso, nem atrai o turismo.”
Ana Lúcia Abraim - ( reconstituição) - Mencionou o boi de Parintins. Perguntou
como mitigar os impactos sobre a situação de saúde da população.
205
Ana Cláudia Lima e Alves - IPHAN - (reconstituição) Falou da retomada dos
trabalhos referentes à cultura. Foram realizados no âmbito da Pró-Memória como no
caso dos impactos sofridos pela comunidade de pescadores por ocasião da
construção do Porto de SUAPE, em Maceió. Mencionou o ínicio da retomada destes
trabalhos. Falou sobre o tombamento do Terreiro da Casa Branca, na Bahia.
Estimulou a retomada desta prática.
Alenice Baeta - (reconstituição) Retomou alguns pontos: culpa das universidades em
assumir sua responsabilidade no sentido da proteção. Mencionou as escolas
indígenas que valorizam o etnocentrismo. Mencionou que projetos que deram certo
no Acre tentam intervir no contexto indígena em relação à arqueologia. Mencionou a
não inclusão dos territórios míticos nos trabalhos de demarcação (fala dirigida ao
Dr. Rinaldo). Perguntou como o impacto sobre o bem intangível pode ser mitigado.
Mencionou os Krenak e Caxixó. Trabalhou com sítios pré-históricos que são sítios
encantados para os Krenak. Mencionou que os índios se apropriam dos sítios pré-
históricos como territórios sagrados.
Rinaldo Arruda - (reconstituição) - Na educação indígena, a arqueologia tem papel
fundamental, permite uma configuração mais sólida, quando comparados com os
relatos etnohistóricos e antropológicos. A idéia é a complementariedade entre as
disciplinas. A terra não é vista como mercadoria para as populações indígenas.
Reforçou a necessidade da multidisciplinaridade na avaliação dos impactos.
Dificuldade em avaliar por um único prisma os impactos. O empreendedor enfatiza
um único ponto de vista. Mencionou a necessidade de desenvolvimento de
metodologia própria.
Ana Isa Bueno - IPHAN - (reconstituição) Falou que, em Porto Primavera, a
população tinha emprestado os outros “olhos”. Mencionou o conjunto habitacional
construído nos moldes do BNH. A população removida retomou seus valores.
Reordenaram seu espaço. Perguntou se o Dr. Carlos Caldarelli tinha trabalhado com
os índios Ofaié.
Carlos Caldarelli - “Não”.
206
5ª MESA-REDONDA:
GESTÃO DOS RECURSOS CULTURAIS NO ÂMBITO DO
FEDERALISMO COOPERATIVO E COMPATIBILIZAÇÃO
DAS NORMAS LEGAIS DAS ÁREAS CULTURAL E
AMBIENTAL
COORDENAÇÃO:
Dr. José Luiz de Morais
Museu de Arqueologia e Etnologia/USP
Consultor do Fórum Interdisciplinar para o Avanço da Arqueologia
207
EXPOSITORES
SUZANNA CRUZ SAMPAIO Licenciada em Geografia e História pela PUC - Instituto Sedes Sapientiae
Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo
Diretora do Departamento do Patrimônio Histórico da Prefeitura Municipal de São Paulo (1985/6)
Conselheira Titular da Área de Patrimônio Cultural do CINC-Conselho Nacional de Incentivos à
Cultura (MinC)
Conselheira do Conselho Consultivo do IPHAN-Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional
Presidente do ICOMOS/BRASIL - Conselho Internacional de Monumentos e Sítios - UNESCO
ROBERTO MONTEIRO GURGEL SANTOS Graduado pela Faculdade Nacional de Direito (Faculdade de Direito da Universidade Federal do
Rio de Janeiro).
Advogado no Rio de Janeiro.
Membro do Ministério Público Federal desde julho de 1982, atuando agora perante o Colendo
Supremo Tribunal Federal.
Subprocurador-Geral da República, integra o Conselho Superior do Ministério Público Federal e é o
Coordenador da 4ª Câmara do Ministério Público Federal, incumbida da coordenação e revisão da
atuação da instituição em todo o país nas áreas do Patrimônio Cultural e do Meio Ambiente.
HELITA BARREIRA CUSTÓDIO Doutora em Direito e Livre-Docente em Direito Civil (pela Universidade de São Paulo)
Aperfeiçoamento em Ciências da Administração Pública, com especialização em Direito
Urbanístico (pela Universidade de Roma)
Especialização em Direito Municipal (pela Fundação Getúlio Vargas, São Paulo)
Vice-Presidente da Sociedade Brasileira de Direito do Meio Ambiente (SOBRADIMA)
Membro da Comissão do Meio Ambiente da OAB-SP
Mais de cem trabalhos publicados, notadamente em revistas técnico-jurídicas, sobre assuntos direta ou indiretamente relacionados com Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direito
Competência privativa dos Municípios. Dentre as normas constitucionais
relevantes sobre as atribuições municipais de interesse ambiental e cultural, de
competência privativa, destacam-se, particularmente, aquelas, segundo as quais
compete aos Municípios: legislar sobre assuntos de interesse local (logicamente,
em seus diversos aspectos sócio-econômico-urbanístico-ambiental-culturais - CF,
art. 30, I); instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar
suas rendas (art. 30, III); organizar e prestar, diretamente ou sob o regime de
concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local (incluídos aqueles
de defesa e preservação dos recursos naturais e dos bens de valor cultural - CF, art.
30, V): promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante
planejamento e controle do parcelamento, da ocupação e do uso do solo urbano
(incluindo-se o zoneamento ambiental, com a previsão de todos os recursos
ambientais e culturais integrantes do território do Município, para fins de
preservação, no interesse de todos - CF, art. 30, VIII).
Neste sentido, observa-se a relevância das normas do art. 182 da
Constituição, referentes à política urbana a ser executada pelo Poder Público
municipal, mediante plano diretor obrigatório aos Municípios com dicade de
população superior a vinte mil habitantes e facultativo aos demais que não atendam
ao requisito constitucional. O plano diretor, como plano urbanístico geral a nível
local, deverá conter diretrizes aplicáveis a todos os usos suscetíveis na totalidade
do território de cada Município, inclusive a atividades agropecuárias e florestais,
tudo de acordo com as peculiaridades locais e com as respectivas zonas de uso
ajustáveis. Sem prejuízo de normas mais restritivas e ajustáveis às
peculiaridades de cada zona de uso, as diretrizes do plano diretor devem
compatibilizar-se com as normas gerais da lei federal sobre Direito Urbanístico
(CF, art. 24, I, § 1º), bem como com as diretrizes gerais da lei federal sobre
desenvolvimento urbano, habitação, saneamento básico e transportes urbanos (CF, art. 21, XX, dentre outras diretrizes aplicáveis), além de outras regras gerais
previstas nas normas constitucionais (CF, arts. 21, XI; 22, I, IV, XII, dentre
outras).
Competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios
(executiva), de forma cooperativa, sobre expressas e implícitas providências
tutelares ambientais, para a conservação do patrimônio público dos respectivos
territórios. Trata-se de competência sobre assuntos de interesse comum das
Unidades da Federação, em igualdade de condições, observando-se, todavia, as
normas para a cooperação, estabelecidas em lei complementar federal, sem
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interferências nas respectivas competências. Como atribuições de natureza
executiva, evidenciam-se, dentre os poderes de competência comum, relacionados
com a proteção do patrimônio ambiental e cultural, os seguintes: conservar o