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Francisco Suárez (1548-1617). Tradição e Modernidade

Mar 06, 2023

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Raquel Vilaça
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Page 1: Francisco Suárez (1548-1617). Tradição e Modernidade

I

Page 2: Francisco Suárez (1548-1617). Tradição e Modernidade

Biblioteca Nacional - Catalogação na Publicação

Seminário Internacional "A obra de Francisco Suarez",

Lisboa, 1998

Francisco Suarez (1548-1617) tradição e m o d e r n i d a d e :

actas / Seminário Internacional.. . ; coord. Adelino Cardoso,

António Manuel Martins, Leonel Ribeiro dos Santos. -

(Actas & colóquios ; 21)

ISBN 972-772-106-0

I - C a r d o s o , Adelino, 1950-

II - Martins, António Manuel , 1949-

III - Santos, Leonel Ribeiro dos, 1947-

CDU 1 Suarez, Francisco

111

Título: Francisco Suarez (1548-1617)

Tradição e Modernidade

Coordenação: Adelino Cardoso, António Manuel Mart ins ,

Leonel Ribeiro dos Santos

Edição: Edições Colibri / Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa

Composição: Impressão e Encadernação: Colibri - Artes Gráficas

Capa: Ricardo Moita

Depósito Legal n." 143 015/99

Tiragem, 1.000 exemplares

Patrocínio

Fundação Calouste Gulbenkian

e

Fundação para a Ciência e Tecnologia

Lisboa, Outubro de 1999

ÍNDICE

Apresentação 7

I

Suarez et l'avènement du concept d'être Pierre Aubenque 11

Suarez e o regresso ao momento ontológico de Parménides no dealbar da Modernidade

José Enes 21

Suarez e o objecto e a natureza da metafísica António Braz Teixeira 37

Sobre el concepto de individuo en F. Suarez Mariano Alvarez Gomez 45

Suarez: tempo e duração Mário Santiago de Carvalho 65

The proof for the existence of God in Suarez Robert Fastiggi 81

El Dios de Suarez y los espacios imaginários Miquel Beltran 93

Entes e modos en las Disputaãones Metafísicas Guillermo Hurtado 99

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II

Francisco Suarez e a modernidade filosófica - a distinção essência-existência

Joaquim Cerqueira Gonçalves 1 2 1

The achievement of Suarez and the suarezianization of thomism

José Pereira "3

Tópica metafísica: de Fonseca a Suarez António Manuel Martins 1 5 7

Autoconocimiento intelectual en el De Anima de Francisco Suarez y Las Meditaciones sobre Filosofia Primem de Descartes

Giannina Burlando B 169

Descartes y Suarez: sobre la falsedad non judicativa

Claudia Lorena Garcia 187

A viragem glissoniana do pensamento de Francisco Suarez

Adelino Cardoso 2 0 7

I I I «.

Uma nota sobre a praxis em Francisco Suarez José Barata-Moura 225

Francisco Suarez: as relações entre a Igreja e o Estado

Amândio A. Coxito 239

A ideia de soberania em Francisco Suarez

Pedro Calafate 251

El libre albedrío y la gracia: Molina, Suarez y Ia reforma Adolfo Garcia de la Sienra 265

La ley natural en Suarez Mauricio Beuchot 279

La raison et 1'empire de la loi

Jean-François Courtine 289

APRESENTAÇÃO

O presente volume recolhe as comunicações apresentadas ao Seminário Internacional A OBRA DE FRANCISCO SUAREZ, realizado na Faculdade de Letras de Lisboa, a 5 e 6 de Março de 1998, em come­moração dos 450 anos do nascimento de F. Suarez (Granada, 1548) e dos 400 anos da publicação da obra fundamental do autor, as Disputa-tiones Metaphysicae (Salamanca, 1597), e também do início do magis­tério de Suarez na Universidade de Coimbra (1 de Maio de 1597).

O âmbito do Seminário não se restringiu à metafísica, intentando focar tópicos fundamentais de uma obra que se distribuiu pela teologia, pela metafísica e pela filosofia política. A par do aprofundamento de aspectos nucleares do pensamento suareziano, visou-se determinar o lugar da obra do Exímio no desenrolar histórico do pensar, evidencian­do a especificidade do momento suareziano enquanto ponto de encon­tro entre a tradição escolástica e a modernidade europeia.

A ordenação dos materiais deste volume obedeceu a um critério temático, segundo três subdivisões, separadas por numeração romana: I - pensamento teológico-metafísico; II - o pensamento suareziano na encruzilhada entre o antigo e o novo; Hl, filosofia político-jurídica de Suarez.

Na concepção e realização deste evento colaboraram o Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa e o Instituto de Estudos Filosófi­cos da Universidade de Coimbra. A conjugação de esforços entre as duas instituições ajudou a viabilizar a participação de um número significativo de investigadores que em diversos países - Espanha, França, Estados Unidos da América, México, Chile - interrogam a filosofia de Francisco Suarez.

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8 /iprescnui^uu

Queremos manifestar o nosso agradecimento aos participantes no Seminário e a todos aqueles que contribuíram de alguma maneira para o êxito do evento. Ao Prof. Doutor Joaquim Cerqueira Gonçalves agra­decemos a disponibilidade permanente para apoiar a organização desta iniciativa. Ao Prof. Doutor Guillermo Hurtado agradecemos a suges­tão, que gostosamente acolhemos, no sentido de incluir neste volume parte das comunicações - nomeadamente as de Mauricio Beuchot, Adolfo Garcia de la Sienra e Claudia Lorena Garcia - apresentadas no Colóquio La filosofia de Francisco Suarez, promovido pelo Instituto de Investigaciones Filosóficas de la Universidad Nacional Autónoma de México, a 2 e 3 de Junho de 1997. Expressamos igualmente o nosso agradecimento a todas as instituições que asseguraram materialmente a realização do Seminário: à Fundação para a Ciência e Tecnologia, à Embaixada de França, à Caixa Geral de Depósitos, ao Conselho Direc­tivo da Faculdade de Letras de Lisboa. Uma palavra de especial grati­dão é devida à Fundação Calouste Gulbenkian, que, através de um subsídio dos seus Serviços de Educação, tornou realmente viável a pre­sente edição.

Os Coordenadores

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For the larger a community is, the more difficult it is to govern; most difficult it will be to bring the whole world under one government. It appears then that the authority in question never embraced the entire human race, and that it was always divided among separate communities. But that does not make the communities totally unrelated units, as their members still belong to the human species. And "the human race," observes the Uncommon Doctor,

"although divided into various peoples and kingdoms, always has a certain unity, which is not only specific [i.e. as a species], but also politicai and moral, which the precept of mutual love and mercy proclaims, a precept that extends to ali, even to strangers, and of any condition whatsoever. Hence, though each autonomous city, state or kingdom be in itself a complete community, and made up of its members, nonetheless any one of them is also a member in some way of this world, in so far as it belongs to the human race. For those communities will never singly be so sufficient to themselves that they will not need mutual help and fellowship, as well as communication, sometimes for a better mode of life and greater utilily, sometimes indeed out of moral necessity and need, as the actual state of affairs makes clear. For this reason they will need some law, by which they can be directed and rightly ordered in this kind of communication and fellowship." 6 0

With these words, Suarez develops the philosophy of intemational law, the idea of which he had received from his great forerunner Francisco de Vitoria, and which was to be given systematic form by Hugo Grotius (1583--1645), who described his Jesuit predecessor as a man in philosophia... tantae subtilitatis, ut vix quemquam habeatparem.61

6 0 De legibus, lib. 2, cap. 19, n. 9 [5: 169]. 6 1 Hugo GROTIUS, Letter to Canon John Cordesius, 15 October 1633. Epistolae quotquot

reperiri potuerant, Amsterdam 1687, p. 118. Quoted by James St. LEGER, The 'Etiamsi daremus' of Hugo Grotius. A Study in the Origins of International Law Rome: Pontificium Athenaeum Internationale "Angelicum", 1962, p. 110.

TÓPICA METAFÍSICA: DE FONSECA A SUAREZ

António Manuel Martins

Univers idade de Co imbra

Quando usamos a expressão "tópica metafísica" no título queremos designar algo que se refere, antes de mais, aos lugares que a interrogação filosófica de Fonseca e Suarez percorre em sede de construção metafísica. Neste primeiro momento da nossa reflexão em que pretendemos analisar alguns dados relativos à estrutura arquitectónica dos CMA e das DM, orien-tamo-nos mais pela compreensão kantiana de uma "tópica sistemática" (KrV B 110) do que pelo esquema usado por Otto Põggeler em "Metaphysik und Seinstopik bei Heidegger"1.

Quer a metafísica de Fonseca quer a de Suarez poderiam ser interpreta­das à luz de uma tópica ou topo-logia que vai além da tópica sistemática. Será, porventura, a única maneira de integrar e articular a conceptual idade destas filosofias de modo a ressaltar melhor a sua especificidade. A comple­xidade da matéria e o escasso tempo disponível levam-nos a confinar a nossa intervenção a uma série de comentários breves sobre alguns tópicos que deveriam merecer melhor atenção na interpretação destas duas metafísicas. Está fora de causa, neste contexto, qualquer tentativa de comparação ainda que sumária entre a metafísica de Fonseca e a de Suarez. A nossa reflexão parte do pressuposto, contestável sem dúvida, de que ainda há muito caminho para andar até ser viável uma reconstrução plausível do sistema da metafísica nestes dois pensadores da Contra-Reforma. Se G. Hurtado pôde dizer, em comunicação apresentada esta tarde, que, apesar da vasta bibliografia suare-ziana, "a verdadeira metafísica suareziana está ainda por fazer"2, que diremos da metafísica de Fonseca? O muito pouco que iremos dizer mais não preten-

1 O. PÕGGELER, "Metaphysik und Seinstopik bei Heidegger" in Philosophisches Jahrbuch 70

(1962): 118-137.

2 G. HURTADO, "Entes y modos en las Disputaciones Metafísicas", supra, p. 102.

Francisco Suarez (1548-1617). Tradição e Modernidade, Lisboa, Edições Colibri,

1999, pp. 157-168.

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de ser do que um modesto contributo para a criação de uma consciência mais aguda da necessidade de remover alguns obstáculos a uma leitura crítica destes textos. Tal só será possível quando eles forem percebidos na sua sin­gularidade. As comparações com outras configurações teóricas contemporâ­neas, anteriores ou posteriores, só a partir daí poderão ter alguma hipótese de sucesso. Até lá continuaremos embrenhados na floresta de enganos dos luga­res comuns pelas inúmeras veredas das interpretações, guiados por modelos mais ou menos ambiciosos de articulação do sentido da história da filosofia.

1. A metafísica como sistema e a tradição aristotélica

Temos hoje uma consciência mais aguda da pluralidade que se esconde sob a designação de aristotelismo, muito particularmente no séc. XVI. O aristotelismo que define o horizonte onde se inserem as obras de Fonseca e Suarez é o da tradição escolástica - também ela plural - aberta ao contributo do humanismo e de outras correntes de pensamento. Precisamente neste contexto surge um dos lugares comuns mais insistentemente repetido. Saúda--se em Suarez a construção de uma metafísica sistemática independente de Aristóteles. Suarez, ao contrário de Fonseca, libertou-se dos constrangimen­tos da tradição escolar de comentário e questões sobre o texto aristotélico da Metafísica. Há, com certeza, uma diferença assinalável entre a metafísica de Fonseca e a de Suarez que passa, antes de mais, pelo método de exposição e pela relação com o texto aristotélico. Contudo, esta diferença inegável de método tem levado a maior parte dos comentadores a uma interpretação excessivamente unilateral da relação destas duas metafísicas com a matriz aristotélica.

Jean-François Courtine, na sua monografia sobre Suarez e o sistema da metafísica, apesar de toda a atenção dada à obra de Fonseca e da crítica de algumas caracterizações demasiado sumárias da originalidade de Suarez, mantém a dicotomia básica "Fonseca - Suarez" em termos de construção da metafísica como sistema3. Fonseca é apresentado como o humanista não só pelo regresso às fontes mas também pela preocupação clara de se libertar de alguma ganga inútil de muitas quaestiones metaphysicales. A sua metafísica seria pré-modema não só, nem sobretudo, pelo seu compromisso com a tradi­ção medieval e o humanismo mas por lhe faltar um traço característico da modernidade: sistematicidade metafísica. Ora, é precisamente a presença desta sistematicidade nas DM que confere à obra de Suarez originalidade e modernidade. Courtine chama a atenção para os possíveis equívocos gerados por algumas afirmações do texto de Suarez. Com efeito, não se trata apenas

3 J.-F. COURTINE, Suarez et le système de la métaphysique (Paris: P U F , 1990).

de evitar o carácter rapsódico e repetitivo do texto aristotélico em favor de um ideal de clareza. O ponto fulcral reside no facto de Suarez "propor uma ordo doctrinae incompatível com o carácter peirástico e diaporético da investigação aristotélica"4. Esta incompatibilidade do sistema suareziano com o método aristotélico não é, por si mesma, sinal de modernidade. Por isso, talvez, Courtine vai mais longe colocando a ordo doctrinae de Suarez numa órbita quási ou pré-cartesiana. Ao fazer isto, Courtine conduz-se mais por uma lógica de aproximação estratégica à figura emblemática do pensamento moderno do que por uma real semelhança estrutural entre a ordem suareziana e a ordem cartesiana. Isto não impede que tenha toda a razão quando sublinha que a ordem de que se reclama o texto das DM não é, primordialmente, a da exposição pedagógica. Sem negar a importância desta dimensão pedagógica, não podemos deixar de subordiná-la a uma tópica sistemática efectivamente actuante tanto em Fonseca como em Suarez.

Retomemos o tópico da relação das DM com o projecto aristotélico de uma filosofia primeira. O que constituiria, de acordo com a leitura de Courti­ne, a "singularidade absoluta" do projecto suareziano seria precisamente o facto de acontecer uma nova ordem metafísica assente numa "decisão metafí­sica totalmente liberta da obra de Aristóteles"5. Tudo se joga no sentido exacto desta libertação do texto aristotélico e na incompatibilidade da nova com a antiga ordem. Também pensamos, em sintonia com Courtine, que a questão da novidade do projecto metafísico de Suarez é prioritária. Questões como as da "autoridade" ou da independência face a Aristóteles ou outras figuras cimeiras ou menores da tradição filosófica, formuladas em registo puramente doxográfico, são, de facto, subsidiárias. Courtine, dando como adquirida a ruptura, limita-se a justificá-la pela emergência de uma nova con­figuração da filosofia primeira. Assim, só é possível deixar de considerar a Metafísica de Aristóteles como a metafísica se, de facto, estiver disponível outra metafísica, construída ou em construção, mas já claramente visada num esboço programático minimamente articulado. Para Courtine é incontestável o facto de as DM materializarem uma configuração sistemática do saber metafísico deste tipo. Sublinha, com acerto, que a compreensão de real e de realidade é a pedra de toque desta metafísica. Qualquer aproximação pura­mente exterior e verbal entre a letra do texto suareziano e outros projectos filosóficos confunde mais do que esclarece. Poderemos concordar inteira­mente com as observações críticas de Courtine designadamente quando diz que a expressão suareziana ad res ipsas "marca o momento a partir do qual a interpretação de Aristóteles e o projecto de uma metafísica sistemática se

4 J.-F. COURTINE, Suarez et le système de la métaphysique (Paris: P U F , 1990), 327.

5 J.-F. COURTINE, o.c, 326.

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separam definitivamente" 6 com a condição de ser viável mostrar a efectiva originalidade da determinação suareziana da essência da realitas. Para que esta interrogação se dirija à singularidade suareziana importa explicitar o modo como se realiza em Suarez o suposto corte com as categorias e con­ceitos fundamentais do texto aristotélico e a tradição que dele se reclama, com ou sem razão.

2. As «Disputationes» de Suarez e a «Metafísica» de Aristóteles

O facto de Suarez ter apresentado no início das DM um índice detalhado da Metafísica de Aristóteles é encarado pela generalidade dos intérpretes como mera concessão estratégica à inércia da tradição escolar. Talvez por isso tenha recebido menos atenção do que efectivamente merece. Com efeito, o trabalho aí desenvolvido por Suarez talvez não tenha sido feito apenas para facilitar ao leitor um cotejo dos temas das Disputationes com o texto aristo­télico. Essa função, a que alude o prefácio, não impede que ele tenha desem­penhado também um papel decisivo na construção arquitectónica da metafí­sica suareziana. De facto, não parece tratar-se de mera concordância analítica entre o articulado das DM e a quantidade de questões, mais ou menos desco­nexas, que se iam levantando, tradicionalmente e em jeito de rapsódia, a pro­pósito de cada unidade do texto aristotélico. Neste índice podemos ver o resultado do primeiro momento do trabalho de ordenação e reorganização que a dimensão tópica do método seguido por Suarez exigia. Antes de ele ser capaz de "colocar perante os olhos do leitor" tudo aquilo que se pode analisar e investigar no âmbito da metafísica 7, numa ordem diferente, precisou de fazer um trabalho prévio de reorganização dos lugares das questões, doutri­nas e conceitos metafísicos. A maneira mais simples e eficaz foi pegar no texto da Metafísica e, seguindo a ordem e divisão correntes, procurar sinteti­zar e hierarquizar os conteúdos do texto apresentando, simultaneamente, um elenco exaustivo das questões que se poderiam encontrar na vastíssima lite­ratura de comentário produzida pela Escola. Este trabalho de reconstrução da filosofia primeira de Aristóteles de que nos dá conta este índice é um momento importante para compreender a orgânica da metafísica suareziana. Ficar pela simples indicação remissiva para o texto das DM, ligando o tema das questões ao articulado das secções das Disputationes parece-nos uma leitura demasiado redutora. De facto, o esforço por compreender a especifici­dade da metafísica suareziana deve começar pela leitura atenta deste índice que se revela, assim, indispensável.

6 J.-F. COURTINE, o.c, 329. 7 SUAREZ, DM, Ad Lectorem.

Este índice detalhado pode ter usos múltiplos de grande utilidade. Constitui, de facto, um excelente ponto de partida para uma primeira análise comparativa das obras que integram essa pujante literatura de comentário à Metafísica de Aristóteles. O caso que nos interessa mais directamente é o de Pedro da Fonseca. Limitar-me-ei a um comentário muito breve suscitado por uma leitura deste índice.

É claro e sabido que a ordem de exposição é diferente em Fonseca e Suarez. O que o índice de Suarez nos permite é uma análise comparativa das questões articuladas pela obra de Fonseca quer em termos de completude quer de possível reordenamento dos temas que integram a sua metafísica bem como uma reapreciação do seu estado de inacabamento. Neste contexto, con­vém não esquecer que as DM são publicadas depois dos tomos I e II dos CM A de Fonseca. Um simples cotejo entre o número e o lugar das questões associadas aos primeiros quatro livros da Metafísica, a título meramente exemplificativo, permite-nos reavaliar a problemática da tópica sistemática inerente às quaestiones dos CMA e sua ligação com a tópica dos comentários ao texto aristotélico conhecidos na segunda metade do séc. XVI. Sem entrarmos em pormenores fastidiosos, não podemos deixar de notar algumas diferenças flagrantes que mostram claramente a unilateralidade da leitura da obra de Fonseca como mero comentário na linha da tradição a que estão associadas as "quaestiones metaphysicales".

Seguindo a metodologia de Suarez, percorremos Met. A (I) pela ordem dos 7 capítulos em que se dividia então o texto aristotélico. Para o primeiro capítulo Suarez aponta oito questões, quatro das quais encontram correspon­dência no texto dos CMA. Já no que diz respeito ao capítulo segundo, o dese­quilíbrio entre os tópicos é muito maior. Contra três quaestiones selecciona­das por Fonseca, encontramos no índice suareziano nada menos que vinte. Sobre a matéria dos capítulos 3-6 Fonseca não propõe qualquer questão. O índice das DM também refere uma escassa meia dúzia de questões. Final­mente, a propósito do capítulo 7 Fonseca propõe três questões sobre a causa­lidade que correspondem, parcialmente, à temática referida nas três questões do índice suareziano. No quadro de Met. a (II) o mais interessante não é tanto a disparidade entre o número e o enunciado das questões. Referindo-se à questão 2 do capítulo 3, Suarez diz que ela parte da pergunta pelo sentido da afirmação de Aristóteles segundo a qual "é absurdo investigar ao mesmo tempo uma ciência e o seu método (modum sciendi)". Quase todos os intér­pretes, continua Suarez, entendem por método a dialéctica e, por isso, discu­tem aqui questões relativas à natureza da dialéctica. De facto, Fonseca segue esta linha introduzindo quatro quaestiones sobre a dialéctica. Porém, não se trata apenas de seguir uma tópica consagrada mas, mais importante, de escla­recer aspectos básicos ligados à conexão entre lógica e metafísica. Estamos

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perante um caso em que é óbvia a divergência entre Fonseca e Suarez sobre o lugar deste conjunto de questões. Fonseca, admitindo embora a possibilidade de as discutir em sede dialéctica, julgou ser a metafísica o lugar mais adequa­do para as apresentar. Suarez, vinte anos mais tarde, vem dizer exactamente o contrário: o seu lugar é na dialéctica.

Relativamente a Met. B há apenas a notar que Fonseca não inclui qual­quer quaestio apesar de a tradição dos comentários, tanto quanto podemos julgar pelo índice suareziano, colocar um número apreciável de questões sobretudo a propósito do primeiro capítulo. Suarez enumera dezoito. O texto de Met. G é sobejamente conhecido como ponto fulcral da reflexão metafísi­ca. Também para Fonseca funciona como texto básico para lançar os funda­mentos da sua metafísica. Salientemos apenas a simplicidade e economia de questões colocadas neste lugar dos CMA. No índice de Suarez notamos uma maior atomização das questões e, sobretudo, a ausência de questões ligadas aos transcendentais verdadeiro e bom. Quanto ao resto, baste assinalar a coin­cidência natural quanto ao lugar do princípio de não contradição.

Esta simples divergência tópica quanto ao lugar de dois transcendentais nucleares merece ser explorada na caracterização da duas metafísicas em pre­sença mas não deve ser logo sobreinterpretada como sintoma de um hipotéti­co retomo a Parménides.

Esta alusão ao índice que introduz as DM pretendeu apenas chamar a atenção para o seu interesse na economia da obra de Suarez e como informa­ção valiosa para estudar outros textos da época.

3. Suarez e o projecto de uma metafísica sistemática

No mesmo ano em que foi publicada a monografia de Courtine, saiu na Alemanha uma obra importante de Ludger Honnefelder, Scientia transcen­dem na qual a metafísica de Suarez aparece inserida num horizonte amplo de constituição de uma metafísica formal que vai da Idade Média - Escoto - até aos Tempos Modernos - Wolff, Kant e Peirce 8 . Também Honnefelder apre­senta Suarez como figura decisiva no processo de sistematização da metafísi­ca. Apesar de sublinhar os traços de modernidade das DM, o que lhe interes­sa mais é o papel de mediação entre a tradição metafísica medieval e a metafísica dos Tempos Modernos.

Não deixa de ser curioso notar que, na caracterização das DM, são usa­dos, mais uma vez e acriticamente, os lugares comuns de Grabmann, Gilson e

L. HONNEFELDER, Scientia transcendem. Dieformale Bestimmung der Seiendheit und Realitãt in der Metaphysik des Mittelalters und der Neuzeit (Duns Scotus - Suarez - Wolff -Kant-Peirce), (Hamburg: F. Meiner, 1990).

Tópica Metafísica: de Fonseca a Suarez 163

B. Jansen justamente criticados por Courtine. Assim, a prova da modernidade da metafísica suareziana far-se-ia, antes de mais nada, pela recepção da sua obra na primeira metade do séc. XVII nas universidades alemãs 9 . O sucesso desta recepção explica-se porque, dirá Honnefelder, as Disputationes satisfa­zem as condições fundamentais que deveria preencher qualquer metafísica que se apresentasse com a pretensão de poder enfrentar a crise que, então, abalava os fundamentos da teologia cristã:

1) não deveria incluir elementos específicos da teologia revelada; 2) deveria permitir resolver mais facilmente as questões mais controver­

sas pelo recurso a elementos primeiros e fundamentais; 3) exposição sistemática de todos os conhecimentos assim adquiridos. 1 0.

Honnefelder faz uma breve alusão ao Discurso do Método onde pode­ríamos encontrar, basicamente, as mesmas exigências. Porém, ao contrário de Descartes, Suarez caracterizar-se-ia precisamente pela integração crítica da racionalidade tradicional. O horizonte em que se inscreve a leitura de Honnefelder é, em nosso entender, mais limitado do que o da obra de Courti­ne na medida em que se trata de seguir as estações principais de uma tradição metafísica particular inaugurada por Duns Escoto. Daí que a sua interpreta­ção do ente real em Suarez como "aptitudo intrínseca" se oriente pela trans­formação da compreensão escotista da ratio entis e pela desconstrução do tomismo explícito de Suarez. Nesta perspectiva, o sistema da metafísica em Suarez reduzir-se-ia a uma "explicação da ratio entis sob a forma de uma explicação dos seus modos e, uma vez que o seu objecto é esta ratio, ela é apenas i s to" 1 1 .

A inclusão de filosofias tão heterogéneas sob uma mesma concepção fundamental da metafísica como "ciência transcendente" tem, entre outros, o mérito de nos alertar para a importância e permanência de uma linhagem de esboços de uma construção sistemática da metafísica marcada por Duns Escoto. Por outro lado, torna-se mais difícil ver a originalidade de autores como Suarez num quadro desta amplitude. Outra das consequências, prati­camente inevitável, de uma abordagem deste tipo é a redução drástica do campo textual analisado a um conjunto limitado de textos de figuras-chave. Daí a ausência de Pedro da Fonseca nesta monografia de Honnefelder. Sem entrar em polémica estéril, diríamos que a não inclusão de Fonseca se pode justificar perfeitamente numa obra deste tipo quanto mais não seja por uma questão de economia de recursos. O que já não parece tão aceitável é a omis-

9 L. HONNEFELDER, o.c, 202 S.

10 L. HONNEFELDER, o.c, 200-1. 1 1 L. HONNEFELDER, o.c, 247.

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são deformante que leva a nem sequer consultar o texto de Fonseca. Honne­felder parte de uma compreensão da história da metafísica em que a filosofia primeira, desde Platão e Aristóteles, teria que responder simultaneamente à pergunta pelo seu objecto e pela sua própria possibilidade como forma espe­cífica de saber. As mudanças significativas na história da metafísica são, então, interpretadas como algo que diz respeito ao modo como se articula o nexo entre estas duas questões básicas. A pergunta pela possibilidade da metafísica passaria para primeiro plano na medida em que o seu estatuto como ciência se tornaria questionável. A resposta adequada à questão da pos­sibilidade da metafísica passaria pela sua transformação de ciência do trans­cendente em ciência transcendental 1 2 . O primeiro passo decisivo neste senti­do teria sido dado por Duns Escoto estando reservado a Kant o segundo passo, mais radical, nesta transformação. Suarez e Wolff surgem, assim, como duas estações intermédias neste processo. Honnefelder estabelece uma ligação histórica que vai de Escoto a Kant e trabalha com a hipótese de uma semelhança estrutural entre os conceitos de metafísica destes dois pensado­res. Assim, o "momento Suarez" de que nos fala Courtine transforma-se em simples mediação do "momento Escoto". A dimensão transcendental da metafísica está bem presente nos estudos de Honnefelder. Contudo, a história é mais longa e sinuosa. A transformação de Suarez de epígono de Tomás de Aquino em mero epígono de Duns Escoto não contribui muito para uma ver­dadeira compreensão do projecto suareziano de uma filosofia primeira. Neste sentido parece-nos mais promissora e eficaz a leitura de Courtine.

N u m dos capítulos mais interessantes da sua obra, Courtine procura mostrar a importância fulcral de autores como Bento Pereira, Pedro da Fon­seca e Francisco Suarez nas transformações epocais das configurações tradi­cionais da metafísica condicionando, assim, em grande parte, a história da metafísica nos Tempos Modernos. Uma das grandes vantagens e mérito da monografia de Courtine é a atenção dada a autores e textos mais próximos do contexto histórico em que se inscreve a obra de Suarez. A tese de Courtine sobre o papel desempenhado pelo trio Pereira - Fonseca - Suarez na trans­formação da estrutura da metafísica clássica tem tanto mais interesse quanto apela para o movimento real das ideias mesmo num contexto institucional onde, de acordo com as orientações oficiais de cariz conservador, muitos não esperariam encontrar qualquer espécie de inovação. Vistas a partir da crise aberta, em 1562, pelo texto de B. Pereira sobre os princípios 1 3 , as metafísicas

2 L. HONNEFELDER, 'Transzendent oder transzendental? Úber die Móglichkeit der Metaphysik" in Philos. Jahrbuch 92(1985): 273-290.

3 B. PEREIRA, De communibus omniwn rerum naturalium principiis et affectionibus. Roma, 1562.

Tópica Metafísica: de Fonseca a Suarez 165

de Fonseca e Suarez surgem como parte de um esforço titânico para manter e reforçar a unidade e coerência da metafísica como filosofia primeira. Depois de aludir à reconstrução da atomização da metafísica feita por Fonseca no tomo I dos CMA, Courtine sublinha o ponto fraco desta réplica a Pereira. Ao integrar na sua crítica a distinção entre cinco modos de compreender o objecto da metafísica e sua unidade, Fonseca acaba por admitir no seio da sua própria construção sistemática o princípio de divisão que conduzirá, em últi­ma análise e depois de um complexo longo de metamorfoses, à consagrada divisão de Wolff em ontologia geral e ontologias regionais. Importa sublinhar que, neste caso, Courtine não considera que Suarez tenha tido mais êxito do que Fonseca, vinte anos mais tarde, nesta luta contra a desintegração da meta­física enquanto configuração teórica dotada de unidade integradora 1 4 . Isto é tanto mais importante quanto o que está em causa é precisamente o conjunto do sistema de saberes teoréticos. Sistema que, com maior ou menor dificul­dade, tinha conseguido, até então, resistir a todas as crises sem perder as características principais do seu traçado arquitectónico. O fracasso de Fonse­ca e Suarez era inevitável, segundo Courtine, porque lhes faltava o elemento capaz de ligar todas as partes do sistema de modo a formar um todo orgânico. As metafísicas de Fonseca e Suarez estavam condenadas ao fracasso porque lhes faltava o cimento da metafísica: uma "doutrina reitora da analogia do ser" 1 5 . De facto, apesar de todas as afirmações em contrário, nesta neo-esco-lástica dos jesuítas de seiscentos, a tese da univocidade do conceptus entis é determinante. Aqui o texto de Courtine refere-se mais explicitamente a Suarez mas, pelo contexto, presumo que também envolva Fonseca no mesmo juízo. Não está em causa negar a existência de uma doutrina explícita da ana­logia em Suarez. O que Courtine defende é que este núcleo temático da meta­física perdeu, pura e simplesmente, qualquer função arquitectónica 1 6 . Curio­samente, por esta conclusão, a leitura de Courtine acaba por se aproximar bastante das teses de Honnefelder sobre Suarez.

A importância desta temática e as suas dificuldades exigiriam análises mais detalhadas que não podemos levar a cabo nesta breve intervenção. Numa apreciação global e sumária desta leitura de Courtine, diríamos que sobrevaloriza as reais potencialidades da doutrina da analogia tal como ela surge na escolástica medieval. De facto, fala como se o edifício da metafísica de feição aristotélica fosse uma construção sólida alicerçada numa doutrina coerente e fundamentada da analogia entis. Edifício que teria começado a ruir no dealbar da modernidade. Fonseca e Suarez só aparentemente pode-

14 J.-F. COURTINE, o.c, 460-481.

15 J.-F. COURTINE, o.c, 480.

16 ID.,Ib.

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riam ter evitado o desastre. Efectivamente, dada a lógica interna das suas filosofias, não tinham qualquer possibilidade de evitar a desintegração do modelo aristotélico de estruturação do saber teorético. Salvo melhor opinião, não cremos que seja possível manter, com rigor analítico, a existência de tal coesão doutrinal em Tomás de Aquino e seus discípulos. Aquilo que passa por metafísica tomasina ou tomista é um conjunto de doutrinas, mais ou menos dispersas e avulsas, que não evidenciam maior coerência e unidade sistemática do que as doutrinas que integram as metafísicas de Fonseca e Suarez. Isto não nos impede de reconhecer a existência de tensões internas e défices teóricos nestas duas metafísicas. Apesar de tudo, cremos ser razoável considerá-las como as primeiras construções arquitectónicas com a pretensão de apresentar um sistema metafísico integrado. Neste contexto, a primeira tentativa é a de Fonseca apesar de ter ficado inacabada ao contrário das DM de Suarez. Embora a ordem de exposição de Fonseca seja menos sistemática do que a de Suarez, cremos que Courtine continua, como muitos outros, a sub-estimar o grau de sistematicidade da metafísica de Fonseca. Contudo, a leitura de Courtine contém uma intuição que seria interessante explorar, noutra ocasião.

Para além da questão da analogia que seria útil enquadrar numa pers­pectiva tão ampla e radical quanto possível, há que definir melhor os contor­nos de toda a problemática das modalidades em Fonseca e Suarez. Courtine reconhece a centralidade da questão dedicando-lhe um capítulo onde analisa o "estatuto ontológico do possível" 1 7 . A questão é fulcral e o papel de Suarez neste processo de construção de uma metafísica essencialista é reconhecido por muitos autores independentemente de querelas menores adjacentes. Já o mesmo não se pode dizer de Fonseca que, em geral, é, pura e simplesmente, ignorado neste contexto.

A temática das modalidades engloba um conjunto de questões comple­xas que, na sua interacção, determinam a estrutura básica de uma metafísica. Os tópicos clássicos que esta problemática suscita numa metafísica como a de Fonseca ou Suarez são conhecidos: "as ideias em Deus, a omnipotência, a scientia Dei, a relação entendimento - vontade, a oposição entre a «ciência de simples inteligência» e a «ciência de visão», o conhecimento dos futurí-veis, o estatuto dos futuros contingentes" 1 8 . Mais do que discutir e analisar por si mesmos todos estes tópicos, importa ressaltar a complexidade da pro­blemática do possível nestes autores.

Também nós não podemos entrar numa análise minimamente satisfató­ria das grandes linhas dos essencialismos de Fonseca e Suarez. Contudo, é

1 7 J.-F. COURTINE, o.c, 293-321. 1 8 J.-F. COURTINE, o.c, 294.

Tópica Metafísica: de Fonseca a Suarez 167

neste contexto que adquire todo o sentido a tópica metafísica que define a singularidade destas filosofias. E inegável que, em certo sentido, este essen­cialismo reduz o ens reale ao possível. Mas, convém não confundir os planos nesta teia de conceitos. Não se pode falar, sem mais, de pura logicização, abstracção de toda a positividade, etc. Ou, em sentido contrário, de uma interpretação existencial da filosofia primeira de Suarez 1 9 . Confundem-se, muitas vezes, neste contexto, os conceitos de possibilidade e contingência. Quando isto acontece estamos perante alguma falta de rigor terminológico e domínio de certas distinções básicas mas também de características específi­cas do essencialismo em causa. O próprio termo essencialismo, tal como é usado em alguma literatura filosófica contemporânea, tem muito pouco que ver com as configurações teóricas de que estamos a falar. Tanto Fonseca como Suarez estruturam a metafísica a partir da pressuposição nuclear da existência de Deus como o único ens reale não contingente. Pressuposição que, entendida num sentido amplo, é comum a muitos outros autores. Estas metafísicas de uma categoria só começam a revelar a sua diferença quando acompanharmos todo o processo de desdobramento da categoria última.

Courtine orienta a sua análise em ordem a mostrar a influência da matriz escotista do essencialismo de Suarez de modo a transformar-se numa "tino-logia" - para usarmos uma expressão que ele recolheu de Pierre Aubenque 2 0 . Com Suarez o ens teria sido interpretado como sinónimo de res, termo que os pós-suarezianos leram como aliquid. Isto poderá ter o seu interesse em termos de desenvolvimento histórico da metafísica escolar no começo da Moder­nidade. Mas vai em sentido oposto ao da dinâmica da metafísica de Suarez.

As questões mais virulentas desta tópica metafísica colocam-se a propó­sito do estatuto ontológico do ente finito/criado. A realização da possibilida­de que o define é concebida como uma extra-posição a partir do primeiro absoluto. A dimensão metafísica da tópica significa, entre outras coisas, que nenhum ente finito pode realizar-se fora do espaço-tempo. O cunho teológico destas metafísicas fez com que Fonseca e Suarez recorressem a construções que hoje temos grande dificuldade em compreender. Porém, sem este esforço dificilmente poderemos saber qual o lugar exacto de cada uma destas metafí­sicas na história da metafísica nem o lugar dos conceitos-chave dentro de cada uma delas. Neste contexto desempenha papel importante o conceito de espaço-tempo imaginário. É no espaço tempo imaginário que se situa tudo o que pode existir, em todos os mundos possíveis.

19 Ver, como exemplo e por muitos outros, Santiago Fernandez BURILLO, "Las Disputaciones Metafísicas de Francisco Suarez S.J., su inspiración y algunas de sus líneas maestras" in Revista Espahola de Filosofia Medieval, 4(1997): 65-86.

20 J.-F. COURTINE, o.c, 536.

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Questões como a da articulação da liberdade divina com a humana pas­sam também por esta dimensão tópica dos essencialismos de Fonseca e Sua­rez. Neste contexto, não podemos esquecer que ambos estão muito ligados institucionalmente e em termos de magistério à polémica suscitada pelas teses de Molina, em sede teológica, sobre a graça e a liberdade. Também sobre este ponto de vista seria interessante explorar as posições de Fonseca e Suarez. As DM são publicadas em Salamanca quase dez anos depois de ter saído em Lisboa a I a edição da Concórdia de Molina. O texto de Fonseca mais relevante para o esclarecimento das questões envolvidas nesta contro­vérsia só foi publicado postumamente em Évora (1604).

Para além de sabermos que Suarez se envolveu também nesta querela, não se podem ler as análises das DM sobre a omnipotência, a liberdade e o saber divino sem passar, entre outras, pela questão dos futuríveis. A mesma problemática central encontramos já em Fonseca que recorre ao construto do espaço e tempo imaginários. É aqui que será possível traçar as coordenadas que condicionam decisivamente tudo quanto é ente real e toda a sua acção. O próprio Deus está no espaço e tempo imaginários, algo que seria absurdo para outras filosofias. Mas aqui a percepção do lugar que cada indivíduo ocupa naquele espaço determina de tal modo as condições de possibilidade da sua existência que não pode ser apagado nem sequer por uma eventual ou hipo­tética aniquilação. Daí a importância extraordinária da tópica nestas metafísi­cas essencialistas e modais.

Na impossibilidade de explicitar melhor algumas das considerações feitas até aqui, não quereria terminar sem aludir a um aspecto que também não deve ser esquecido quando se trata da tópica em sede metafísica. Ela está intimamente articulada com o que há de mais radical no pensamento utópico que, aliás, também está bem representado nesta época. A utopia é, por defini­ção, aquilo que, por uma ou outra série de ordens de razões, não pode ter lugar num determinado aqui e agora. Por isso ela é expressão de rebeldia e aspiração de liberdade que recusa a fatalidade de um presente constrangedor e injusto. Mas, projecta sempre a realização do sonho que a anima num tempo e num lugar, normalmente distante. Com isto não queremos, de modo algum, transformar Fonseca e Suarez em expoentes do pensamento utópico nos finais do século XVI. Procurámos apenas abrir uma perspectiva que per­mita reapreciar a tópica metafísica no sentido de explorar os múltiplos luga­res que se oferecem no vastíssimo universo dos mundos possíveis. Não para nos perdermos em viagens sem regresso mas para abrir novos horizontes ao nosso presente tão carente de utopia.

AUTOCONOCIMIENTO INTELECTUAL EN EL DE ANIMA

DE FRANCISCO SUAREZ Y LAS MEDLTACIONES SOBRE

FILOSOFIA PRIMERA DE DESCARTES.

Giannina Burlando B. Pontifícia Univcrsidad Catól ica de Chile

Al final de la denominada década dei cérebro aún no se llega a resulta­dos conclusivos acerca de si la mente es una ilusión, tesis que promueven con vehemencia Ias diversas versiones dei materialismo contemporâneo. Al con­trario, se puede apreciar que filósofos tan reconocidos, como John Searle, siguen admirados de la realidad de esa mente, cuya consciência todos expe­rimentamos. Con resonancias familiares, Searle declara: "Yo soy consciente. Podríamos descubrir todo tipo de cosas sorprendentes acerca de nosotros mismos y nuestro comportamiento: pero no podemos descubrir que no tene-mos mente, que nuestras mentes no tienen consciência" 1 .

Al escuchar a Searle, de inmediato muchos de nosotros no podemos evitar escuchar conjuntamente pasajes centrales de la II Meditación de las Meditaciones sobre Filosofia Primem (1641) de Descartes. Y, luego, si intentamos ver alguna conexión entre el título de esa meditación, i. e., de la naturaleza de la mente, y al mismo, su planteamiento sobre la naturaleza real de un trozo de cera, algunos no podemos dejar de reconocer, ya sin mayor sorpresa, el procedimiento y esquema conceptual establecido por Francisco Suarez en su tratado De Anima.

De acuerdo con John Carriero (1986) 2 , pienso que efectivamente en la Med. II, Descartes no sólo trata de probar la existência de la mente (asunto que Tomás de Aquino considero muy remoto), sino también dar una explica-ción completa de su naturaleza o esencia. Este proyecto lo emprende Des-

1 J. SEARLE (1980). 2 J. CARRIERO, (1986) The Second Meditation and the Essence ofthe Mind, pp . 199-221.

Francisco Suarez (1548-1617). Tradição e Modernidade, Lisboa, Edições Colibri, 1999, pp. 169-186.