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kriterion, Belo Horizonte, n 126, Dez./2012, p. 449-461
MONTAIGNE E A NATUREZA HUMANA NO FEMININO
Maria Clia da Veiga Frana* [email protected]
RESUMO Partindo de algumas passagens dos ensaios de Montaigne,
e, especialmente, do captulo Sobre versos de Virglio, consideramos
o retrato da mulher elaborado pelo autor. Contrariamente maioria
dos autores de sua poca dentre os quais Bodin e Charron que,
seguindo Aristteles, consideram que a mulher possui uma natureza
inferior do homem, feita para obedecer, enquanto este ltimo o foi
para governar , Montaigne nos apresenta outro quadro. Influenciado,
acreditamos, pelo texto de Agrippa sobre as mulheres, ele prope uma
igualdade dos gneros desequilibrada, perturbada e aniquilada tanto
pela tradio quanto pelos costumes.
Palavras-chave Mulher, natureza humana, costumes, Agrippa.
ABSTRACT Taking as a starting point some passages of Montaignes
essays and the chapter On some verses of Virgil, we consider the
womans portrait composed by the author. In contradicion with the
majority of his contemporary authors such as Bodin and Charron who,
in accordance with Aristotle, consider womens nature as inferior to
that of men, since women are meant to obey while men are meant to
rule , Montaigne presents us another picture. Influenced by, we
believe, Agrippas text on women, he proposes an equality between
the genders unballanced, perturbed and annihilated by both
tradition and customs.
Keywords Woman, human nature, habits, Agrippa.
*
DoutorapelaUniversidadeCaen-Normandie.Artigorecebidoem31/5/2012eaprovadoem05/08/2012.
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Maria Clia da Veiga Frana450
Debruar-se sobre a questo da natureza humana em Montaigne um
empreendimento arriscado e difcil. Assim como no esperaramos tirar
uma definio da natureza humana dos Ensaios, tambm no esperaremos
tirar uma definio da natureza ou essncia da mulher. todavia,
encontramos passagens que esclarecem o que ele entende por mulher e
qual acredita ser seu papel no mundo: acreditamos desta forma
poder, sim, vislumbrar sua natureza. verdade que ele abre espao
para algumas mulheres virtuosas em sua obra; porm, no geral, a viso
feminina apresentada por ele no texto tende a ser bastante misgina
e conservadora, seguindo a tradio renascentista, ao afirmar a
inadequao da mulher, por exemplo, para os estudos, assim como seu
lugar de submisso junto ao marido. esta viso e o apagamento da
mulher de tal forma comum em seu tempo, que elas apenas so
mencionadas em textos (sejam eles sobre poltica, biologia ou
filosofia...) referentes ao casamento.
em Montaigne no muito diferente, tanto que um dos captulos em
que ela se torna mais presente o Sobre versos de Virglio, onde ele
fala longamente sobre sexo, sobre amor e sobre casamento. Para
tentar esboar o que nosso autor entende por natureza da mulher,
vamos nos limitar praticamente a este captulo; no trabalharemos o
texto como um todo e deixaremos a questo do casamento de lado, para
analisar mais detalhadamente algumas pequenas passagens e,
sobretudo, as ltimas linhas do captulo mencionado. todavia, antes
de tratarmos do texto dos Ensaios propriamente dito, passaremos por
trechos de autores contemporneos de Montaigne, na tentativa de
esboar o que estes entendiam, em sua maioria, pela natureza da
mulher.
Comearemos nosso percurso com algumas passagens de Jean Bodin,
que apresenta, como poderemos ver, uma opinio amplamente
compartilhada neste perodo. no captulo 5 do sexto livro da
Repblica, ele afirma que:
a Monarquia deve ser destinada unicamente aos machos, dado que a
Ginecocracia diretamente contra as leis da natureza que deu aos
homens a fora, as armas, o comando e a tirou das mulheres: e a lei
de Deus ordena eloquentemente que a mulher seja submissa ao homem,
no somente quanto ao governo dos reinos e imprios, mas tambm quanto
famlia de cada um em particular. e at mesmo a lei proibiu mulher
qualquer cargo e servio prprios aos homens, como o julgar, o
postular e outras coisas semelhantes: e isto no somente por falta
de julgamento, mas tambm porque as aes viris so contrrias ao sexo,
e ao pudor e castidade femininas1.
essa submisso e incapacidade tm sua causa explicitada em uma
passagem do primeiro livro da Repblica, com o estabelecimento e a
justificativa do poder marital. A famlia, fundamento da repblica,
no poderia
1 Bodin,p.233.
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451MONTAIGNE E A NATUREZA HUMANA NO FEMININO
existir sem a mulher. esta , portanto, necessria e fundamental,
mas nem por isto semelhante ao homem. remetendo-se com frequncia a
Aristteles, Bodin sugere que a manuteno da repblica depende da
preservao da famlia, que depende do saber comandar bem, obviamente
masculino. o homem livre s pode ser comandado pela razo, que tem
conformidade com a vontade divina. Portanto, o mais antigo comando
aquele da razo sobre o apetite animal2, comando que ele transferir
para o homem, representante da razo, sobre a mulher, representante
do apetite animal. o comando que Deus deu ao homem sobre a mulher
tem dois sentidos e dois comandos: o literal, do poder marital; e o
moral, da alma sobre o corpo e da razo sobre a concupiscncia, que a
santa escritura chama quase sempre de mulher3.
neste ponto especfico, ou seja, relativamente diferena entre o
homem e a mulher e a consequente submisso desta ao homem, Bodin
parece seguir bastante de perto as proposies de Aristteles.
esperamos conseguir mostrar, ao longo deste texto, o quanto a
leitura de Montaigne diverge destes dois autores. Mais ainda,
esperamos tambm apontar para mais uma tese do aristotelismo que,
ainda que de forma no explcita, rejeitada pelos Ensaios: a da
natureza especfica da mulher, somada da natureza humana
desconstruda na Apologia.
retomemos, rapidamente, alguns pontos da Poltica aristotlica. A
relao entre o homem e a mulher necessria para a repblica, assim
como, em menor grau, a relao entre o homem livre e seu escravo. em
1254b 12 ele afirma: tambm entre os sexos, o macho por natureza
superior e a fmea inferior, o macho governador e a fmea subjugada,
isto porque aquele naturalmente mais adequado para o comando.
Diferentemente do escravo, que no possui a parte deliberativa da
alma, a mulher a possui, mas em menor grau do que o homem. Aquele
que tem o comando deve possuir a virtude intelectual em sua
completude, o que no o caso da mulher, que pode, sim, possuir
virtudes, mas adequadas a seu papel de subordinao. Aristteles
termina sua argumentao a respeito da inferioridade da mulher,
afirmando4 que a virtude moral, a temperana, a coragem e a justia
que homens e mulheres possuem no podem ser as mesmas, concluindo
com o exemplo de que a coragem de um a do comando e a coragem de
outro a da submisso. Por fim, refuta explicitamente Scrates, que
teria sustentado a tese da igualdade da coragem ou da justia, ou
seja, da virtude, de um e outro.
2 Ibid,p.52.3 Ibid.4 Aristteles, Poltica, 1260 a 7-8.
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Maria Clia da Veiga Frana452
enquanto alguns autores recorrem filosofia, notadamente a
Aristteles, para afirmar a diferena natural existente entre homens
e mulheres, partindo da para justificar o comando daqueles e a
submisso delas, como aconteceu claramente no caso de Bodin, outros
lanam mo da tradio bblica para a obteno de provas que os levem s
mesmas concluses. o caso, por exemplo, de Charron, no captulo sobre
o casamento do livro i do Da Sabedoria. Mantendo a tradio, este
autor tambm falar da natureza da mulher no captulo sobre o
casamento, captulo este que se encontra entre os captulos Sobre o
comando e a obedincia, Sobre pais e filhos e Sobre senhores e
escravos, fazendo com que o desenvolvimento da temtica se assemelhe
bastante queles propostos por Bodin e por Aristteles.
A distino entre superioridade e inferioridade, nos diz ento
Charron, consiste no fato de que o marido tem poder sobre a mulher
e a mulher sujeita ao marido, segundo todas as leis e governos.
esta superioridade e esta inferioridade so naturais, pois se
encontram fundamentadas na fora e na suficincia de um, na fraqueza
e insuficincia do outro. os telogos a fundamentam ainda sobre
outras razes, tiradas da Bblia. So elas o fato de que o homem foi
feito por Deus primeiramente e sozinho, imediata e deliberadamente,
para Deus e sua imagem. neste sentido ele deve ser perfeito, j que
a natureza comea sempre pela coisa perfeita. Quanto mulher, ela foi
feita com a substncia do homem, em segundo lugar, depois dele, por
acaso e com outra finalidade, ou seja, para servir de ajuda e de
companhia para o homem seu chefe. esta a razo de sua imperfeio,
baseada na ordem da gerao. A ordem da corrupo e do pecado servem
para trazer a mesma prova. A mulher foi a primeira em prevaricao, e
por sua prpria autoridade pecou. o homem pecou em segundo lugar,
por causa da mulher. A mulher ento foi ltima quanto ao bem e tambm
quanto gerao, mas primeira a provocar o mal e ainda foi o motivo
dele. , portanto, com justia que ela deve ser sujeitada ao homem,
que foi o primeiro no bem e ltimo no mal5.
As passagens dos textos de Bodin e de Charron ilustram, de forma
bastante reveladora, a leitura da natureza e do perfil da mulher
feita pela maioria dos autores contemporneos de Montaigne. Podemos
resumir essa leitura em uma tese, dizendo que se trata de um ser
humano por natureza inferior; ligado luxria e no razo; criado para
cuidar do lar, para viver submisso e para obedecer ao homem (seja
ele o pai no caso da infncia, seja ele o marido, quando na
puberdade). Podemos dizer que Montaigne acompanha sua poca
5 Charron,p.303.
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453MONTAIGNE E A NATUREZA HUMANA NO FEMININO
no que diz respeito aceitao de alguns desses elementos, como,
por exemplo, o fato de a mulher ser considerada mais dada e
suscetvel luxria do que o homem. no prprio captulo Sobre versos de
Virglio, Montaigne afirma que seria loucura tentar refrear o desejo
sexual nas mulheres, uma vez que este lancinante e natural
nelas6.
Quanto ao papel que a mulher deve exercer na sociedade e em sua
casa, parece-nos bastante claro que Montaigne tambm assume uma
posio conservadora, ou tradicional. Saindo um pouco do captulo
Sobre versos de Virglio para o captulo Da vaidade, por exemplo,
encontramos uma definio expressa do papel que Montaigne atribui
mulher:
[B] A mais til e honrosa cincia e ocupao para uma mulher a
cincia da administrao dos bens. Vejo alguma avarenta; boas
administradoras, muito poucas. sua qualidade mestra, e que devemos
procurar antes de qualquer outra, como o nico dote que serve para
arruinar ou salvar nossas casas. [C] Sem discusso: de acordo com o
que a experincia me ensinou, de uma mulher casada exijo, acima de
qualquer outra virtude, a virtude administrativa (iii, 9,
975/284-285).
Caberia aqui perguntarmo-nos se esta cincia administrativa ou a
responsabilidade incumbida mulher podem ser ditas equivalentes
subordinao, inferioridade ou incapacidade atestadas pelos autores
anteriores. Continuando a citao, ele faz uma referncia experincia
pessoal com sua mulher, afirmando em [B]:
Coloco-a altura disso, deixando-lhe nas mos, com minha ausncia,
todo o governo. Vejo com irritao em muitos lares o cavalheiro
retornar aborrecido e em frangalhos da azfama de seus negcios, por
volta de meio-dia, e eis que a dama ainda est se penteando e se
adornando em sua alcova (iii, 9, 975/284-285).
A ao de deixar o governo nas mos de sua mulher, ainda que seja o
governo da casa (e da educao de sua filha, como veremos
posteriormente), parece indicar a atribuio de uma capacidade bem
mais ampla do que vimos at ento. Apesar de tudo, Montaigne j se
distancia um tanto das teses apresentadas anteriormente. Com
efeito, previamente a mulher tinha um papel totalmente passivo na
relao familiar estabelecida, enquanto ela parece ter, no caso
proposto por nosso autor, uma funo j um tanto quanto ativa ainda
que restrita e bem delimitada pelo homem.
6 VerIII,5,866/120-121.CitamososEnsaios
consultandoatraduodeRosemaryCosthekAblio(EditoraMartinsFontes)emodificando-aeventualmente.Asrefernciastrazem,emalgarismosromanos,onmerodolivroe,emalgarismosarbicos,emsequncia,onmerodocaptulo,dapginadaEdioVilley(PUF)edapginadatraduobrasileira.
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Maria Clia da Veiga Frana454
interessante ressaltarmos ainda a ausncia, seja no Sobre versos
de Virglio, seja no Da Vaidade (dois captulos que abordam mais
diretamente a questo do papel da mulher), de alguns elementos que
normalmente acompanham a discusso. So eles: o estabelecimento da
famlia como necessria boa manuteno da sociedade, e o poder marital,
situado dentro do quadro mais geral das diferentes relaes de
comando e obedincia, onde encontramos tambm a relao senhor-escravo.
Como vimos anteriormente, esta a estrutura desenvolvida por
Aristteles e seguida por muitos dos autores do renascimento.
na medida em que o desenvolvimento terico no qual encontramos a
mulher muito homogneo neste perodo, e estruturado de forma bastante
semelhante ao da Poltica, e na medida ainda em que possvel
identificar alguns desvios por parte de Montaigne no que se refere
a este esquema, traremos a leitura de outro autor, que foi seu
contemporneo e a quem ele conhecia, responsvel por uma tese
totalmente revolucionria sobre a natureza da mulher. no paralelo
estabelecido entre o pensamento tradicional e o texto Da excelncia
e da nobreza da mulher, de Cornelius Agrippa, buscaremos situar o
lugar de Montaigne7. Para sua demonstrao, o alemo se apoia
principalmente nos textos bblicos, recorrendo tambm algumas vezes
aos filsofos antigos. interessante notar que, enquanto Bodin se
apoiava em Aristteles para construir sua argumentao, Agrippa recusa
explicitamente a filosofia deste autor, recorrendo por sua vez a
Plato e a Santo Agostinho.
Buscaremos fazer uma pequena recapitulao desse texto, que pouco
divulgado, trazendo os elementos principais da argumentao do autor.
ele
7
GostaramosdeagradecerapreciosasugestodeleiturafeitapeloprofessorLuizEvaduranteoColquio
Montaigne: Novas
Leituras,aoapontarparaoparadoxocomoumaimportantechavedeleituraparaostextosdeAgrippaedeMontaigneutilizadosaqui.Apesardenotermosaindacomeadoumtrabalhocomestachavedeinterpretao,gostaramosdesalientarque,noquedizrespeitoaotextodeAgrippa,esta
nos parecemuito plausvel. Emumprimeiromomento, todavia, no temos
amesma clareza
noquedizrespeitoaotextodeMontaigne.ApresenaeautilizaodoparadoxonosEnsaios,trabalhadade
formaminuciosa pelo professor Eva emA figura do filsofo, nos parece
acontecer sobretudo
emtextosondeencontramosumareflexosobreoceticismoeaquestodoconhecimento.MomentosemqueMontaigneempregaoparadoxocomouminstrumentodestinadoaconduziroleitorajulgarporsimesmo,anteoefeitodesconcertantedoselementosdispostos(A
figura do
filsofo,p.227),seservedelecomoinstrumentoparaconduziroleitorboaatividadefilosfica,talcomoapreconizaebuscapremprtica(Idem,p.240)edesejalevardvidacticaemseusentidofilosficoprprio,encaminhandoojuzonumainvestigaoemcujohorizonteseprojetaaperspectivadereconhecimentodaincapacidadedeescolherentreasfilosofiasqueprometemaverdade(Idem,p.243).Oqueestemjogonareflexosobre
asmulheres, assim como na reflexo sobre os indgenas e tantos outros
deMontaigne,
nospareceseroutracoisa.Acreditamosquesetratedeumaopiniojconsolidada,queelenocolocaemdiscusso,aindamaisporsetratardetemastoenvolvidoscomamoral.OtextodeAgrippa,repletodeironiaseexageros,provavelmenteescritocomodiscursoparadoxal,parece-nosterinfluenciadootextodeMontaignenoporsuaforma,masporseucontedo,queofrancsretomadeformagraveelivredeironias.
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455MONTAIGNE E A NATUREZA HUMANA NO FEMININO
comea seu texto fazendo uso da religio para mostrar que Deus
criou o homem macho e fmea com diferenas em suas naturezas que se
limitam s partes do corpo relacionadas procriao. no mais,
distribuiu uma mesma forma de alma ao macho e fmea; a mulher
possui, portanto, o mesmo sentido, o mesmo entendimento, a mesma
razo e a mesma palavra que o homem, tendendo ainda ao mesmo fim de
beatitude e de felicidade que ele8. no que diz respeito essncia e
substncia espiritual, e este ponto fundamental, no pode, dessa
maneira, existir nenhuma preeminncia de nobreza entre eles. Mais
ainda, segundo Agrippa, receberam uma liberdade igual e justa.
Quanto natureza, assim, parecem ter recebido o mesmo lote, mas
quanto ao resto, Agrippa parece atribuir uma melhor fortuna mulher.
Seria, por exemplo, o caso do nome, que a mulher recebeu melhor do
que o homem, pois Ado significa terra, enquanto eva significa
vida.
Quanto ordem da criao, que j havia sido mencionada por Charron
em sentido oposto, Agrippa afirma que a mulher foi criada por ltimo
para concluir com perfeio a ordem do mundo. tanto assim que depois
de cri-la, Deus repousou, finalizando com ela a obra em que colocou
e conformou toda a sua sabedoria e poder. Sendo a mulher a ltima
das criaturas colocada no mundo, o fim e o cumprimento mais
perfeito das obras de Deus e perfeio do universo, dentre as
criaturas, deve tambm ser a mais digna em nobreza e grandeza, pois
sem ela o mundo seria imperfeito. Deus no terminaria uma obra to
grandiosa com uma coisa no perfeita. o que tambm pode ser
demonstrado pela filosofia, que afirma que o fim o primeiro em
inteno, mas o ltimo em execuo9. invertendo mais ainda os papis,
Agrippa sugere que todas as outras criaturas deveriam am-la,
honr-la, obedecer-lhe e tornarem-se escravas da rainha das
criaturas.
no que diz respeito matria da criao, tambm a mulher parece
sobressair-se, uma vez que o homem, como todos os outros seres e
animais, foi criado do lodo e da lama, enquanto a mulher foi criada
de uma matria purificada, vivificada, animada, racional e
participante do entendimento divino10. ou seja, a mulher obra de
Deus, enquanto o homem obra da natureza. Agrippa estabelece ento
uma diferena significativa, uma vez que atribui mulher uma maior
capacidade para receber a luz divina do que o homem, retrato,
segundo ele, de sua pureza e beleza. Da pureza e beleza da mulher
ele conclui uma honestidade oposta luxria realada pelos outros
8 Agrippa,p.9.9 Ibid.,p.11.10 Ibid.,p.19.
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Maria Clia da Veiga Frana456
autores. Somemos a isto o fato de que a mulher foi escolhida
para a procriao do gnero humano11. Somemos ainda o dado
importantssimo de que no foi pecadora como Ado, porque o fruto da
rvore do conhecimento tinha sido proibido ao homem e no mulher, que
ainda no tinha sido criada. o pai pecou e carregou a morte, no ela
que caiu em erro por ignorncia. Da mesma forma que o diabo a tentou
por ser ela a mais excelente dentre as criaturas, tambm Jesus
ressuscitado dos mortos apareceu primeiramente s mulheres e no aos
homens, que abandonaram sua f. Agrippa procura ento provar, na
sequncia, a importncia das mulheres para a sobrevivncia do
cristianismo, contra o qual elas nunca se revoltaram, no tendo sido
herticas nem idlatras. Alm disso, a traio, acusao, condenao,
crucificao e morte de Jesus foram obras masculinas e no
femininas12.
Passemos a um outro aspecto crucial, a refutao de Aristteles,
segundo o qual os machos so os mais fortes entre os animais, os
mais sbios e os mais nobres. Agrippa se dirige a So Paulo, que
responde ao filsofo grego que Deus tomou e escolheu o louco, para
confundir o sbio; o fraco, para derrubar o forte e o desprezado,
para rebaixar quem no o era. esta inverso chega ao ponto de mostrar
que muitas vezes, nos textos sagrados, a iniquidade da mulher mais
abenoada e louvada do que a bondade dos homens13. retomando um
outro argumento de Aristteles para provar a excelncia da mulher,
ele lembra que o gnero do qual a excelncia mais nobre do que a de
um outro, ele tambm mais nobre que o outro. ora, a virgem Maria, a
melhor do gnero feminino, mais excelente do que So Joo, o melhor do
gnero masculino.
Agrippa fecha esta prova da excelncia, bondade e inocncia
femininas afirmando que todos os males vieram dos homens, no das
mulheres. o primeiro homem criado foi quem violou as regras do
Senhor, fechando as portas do cu para sua posteridade; o primeiro
invejoso, o primeiro homicida, o primeiro parricida. Lamech foi o
primeiro a ter mulheres; no o primeiro que se embebedou e nemrod o
primeiro tirano e idlatra. o homem foi o primeiro adltero, o
primeiro incestuoso, o primeiro a estabelecer uma aliana com o
diabo e o primeiro a apresentar volpia contra a natureza (em Sodoma
e Gomorra).
ele acrescenta ento que, se tivesse sido dada s mulheres a
permisso de fazer leis e de escrever histrias, estas teriam criado
tragdias sanguinolentas inspiradas na malcia dos homens, que so
assassinos, ladres, sequestradores,
11 Ibid.,p.30.12 Ibid.,p.36.13 Ibid.,p.40.
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457MONTAIGNE E A NATUREZA HUMANA NO FEMININO
falsrios e traidores. enquanto isto as mulheres foram as
inventoras das artes liberais, das virtudes e dos bens; tanto que
as artes e virtudes possuem nomes femininos, assim como as
diferentes regies da terra tais a sia, a frica, a europa, a Lbia...
Alm do mais, ela foi a primeira a dedicar sua virgindade a Deus, e
as profetisas sempre foram mais inspiradas pelo esprito Santo. Sem
contar sua constncia, pacincia, desprezo pela morte, determinao e
resoluo, todos testemunhados pelas santas escrituras14. neste sexo
altamente devoto, reluz, segundo o autor alemo, a f universal, e
nele ainda permanecem as obras de piedade. Voltemos rapidamente a
Montaigne para lembrar que este um ponto com o qual o autor
certamente estaria de acordo, uma vez que ele apresenta, ao longo
de todos os Ensaios, inmeras histrias, exemplos e at mesmo
anedotas, testemunhando a constncia, a pacincia e o desprezo pela
morte em mulheres da antiguidade, dos textos bblicos, mas tambm das
contemporneas, como no caso das judias portuguesas e das
americanas.
Para que no permaneam dvidas sobre a igual capacidade entre umas
e outros, Agrippa afirma que, no fosse a interdio s mulheres de
aprenderem as letras, estas ultrapassariam os homens em saber e em
grandeza de esprito. Com o meio exclusivo de seu natural j superam
os grandes mestres das disciplinas; assim como as mes e
amas-de-leite ensinam melhor o falar bem do que os gramticos; assim
como os aritmticos no enganam uma mulher ao pagar uma conta; nem o
msico torna um canto to agradvel e gracioso; nem os filsofos, os
matemticos e os astrlogos se mostram superiores s adivinhaes e
conhecimentos das mulheres dos campos; ou os mdicos fazem melhor do
que certas velhas15.
Apesar de as mulheres do renascimento terem sido afastadas da
vida pblica e consideradas incompetentes em termos de poltica,
Agrippa desenvolve uma argumentao na sequncia de seu texto com
inmeros exemplos, sobretudo antigos, da habilidade feminina neste
mbito. existiram mulheres com grande prudncia e de grande nobreza
que, com sua coragem e virtude, salvaram seus pases16, assim como
salvam e preservam, alm de suas famlias e repblicas, todo o gnero
humano. Por todas estas razes foram honradas pelos primeiros reis
persas e romanos, mas, sobretudo, pelo controverso Justiniano, que
abriu grande espao para sua mulher em seu governo, tomando sua
opinio na elaborao de suas leis. no toa que os grandes
legisladores, que foram
14 Ibid.,p.46.15 Ibid.,p.51.16 Ibid.,p.56.
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Maria Clia da Veiga Frana458
Plato e Licurgo17, decretaram que as mulheres no perdem para os
homens em excelncia de esprito, em fora fsica nem em dignidade
natural. em consequncia, ordenaram que elas se exercessem, assim
como os homens, nas lutas, exerccios e coisas pertencentes
disciplina da guerra.
Agrippa acrescenta ainda alguns exemplos de povos antigos (como
os citas, os trcios ou os gauleses) entre os quais os homens eram
por costume moles e desocupados, enquanto as mulheres aravam os
campos, edificavam, comercializavam, cavalgavam, guerreavam, eram
chamadas para tratar da guerra e da paz, e faziam tudo aquilo que
sculos depois lhes seria proibido fazer. nos dias de hoje, nos diz
o alemo, a liberdade usufruda por aquelas mulheres foi reprimida
pela tirania dos homens, que se voltam contra o direito e as leis
da natureza. Agora, diz ele, as leis probem sua liberdade; o
costume e os usos a eliminam, a educao a apaga e aniquila. isto
porque desde o seu nascimento, a mulher contida em uma indolncia
que no lhe permite fazer mais do que cuidar de seu fio e de sua
agulha, como se no fosse capaz de manejar e conduzir cargos mais
altos e importantes. e assim que atinge a idade de quinze anos,
entregue ao comando ciumento de um marido ou fechada nas paredes de
um claustro de religiosas18. Uma vez proibido seu acesso aos
servios pblicos, todas as aes jurdicas lhes so obviamente negadas,
assim como procuraes, tutelas e participao em negcios testamentrios
e criminais.
A malcia dos fazedores de leis to grande, nos diz ele, que vo
contra as escrituras e a vontade divina, recusando tambm a
participao delas no plpito da palavra de Deus, porque as escrituras
diziam: suas filhas profetizaro assim como ensinavam no tempo dos
apstolos19. Aqueles maliciosos no levaram em conta o comando de
Deus, e estabeleceram tradies nas quais as mulheres valiam menos do
que os homens, mesmo tendo conscincia do contrrio. essas tradies
estabeleceram leis que as mulheres foram obrigadas a obedecer,
segundo ele como pobres cativas de guerra sob seus vencedores. nada
disso, portanto, estabelecido por necessidade, por razo divina ou
natural, mas por um costume, uma educao, um acaso e uma
oportunidade tirnicas. notemos rapidamente que, na passagem final
de Sobre versos de Virglio, ao afirmar ele tambm que a diferena
entre homens e mulheres no natural, mas estabelecida, Montaigne
utiliza termos muito prximos dos de Agrippa, dizendo que a educao e
o costume so responsveis por essa diferena.
17 Ibid.,p.60.18 Ibid.,p.61.19 Ibid.,p.62.
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459MONTAIGNE E A NATUREZA HUMANA NO FEMININO
na sequncia de uma passagem em que Montaigne tenta estabelecer
as diferenas entre o amor e o casamento, escrita basicamente na
camada [B]; e na sequncia ainda a um pequeno acrscimo em [C], em
que faz meno aos dois legisladores apontados por Agrippa como sendo
aqueles que estabeleceram a igualdade entre os sexos em suas
repblicas, que so Licurgo e Plato, o francs faz uma observao muito
interessante no que diz respeito s regras sociais:
As mulheres tm razo ao recusar as regras da vida introduzidas no
mundo, ainda mais que foram os homens que as criaram sem elas.
existe naturalmente uma rixa e uma disputa entre as mulheres e os
homens, at mesmo o maior acordo entre uns e outros tempestivo e
perturbado (iii, 5, 854/103).
Alm de demonstrar a abertura de esprito de nosso autor,
concordando com a liberdade das mulheres de recusar regras que lhe
foram impostas, este trecho lembra ainda a argumentao final de
Agrippa. Com efeito, este ltimo nos diz, ao fim de sua obra, que na
medida em que tiveram sua liberdade natural tolhida, e que sofreram
a imposio de uma educao e de um costume que as submeteram ao homem
e as colocaram em um lugar de inferioridade e de incompetncia,
estas podem, sim, julgar esta imposio.
Continuando tal reflexo, Montaigne acompanha mais uma vez
Agrippa ao apontar para o objetivo imposto s mulheres pela
sociedade. Agrippa j dizia que, uma vez tolhida sua liberdade, a
mulher era confinada inatividade e sua ocupao limitada costura.
Montaigne, que parece mais fazer uma constatao do que um julgamento
de valor como Agrippa, afirma que elas so tratadas desde a infncia
em funo daquilo que diz respeito ao amor ou, melhor dizendo,
conquista e ao casamento: [B] Sua graa, vestimenta, cincia, palavra
e instruo visam este fim (iii, 5, 856/106).
Por fim, a condio de esposa como nica acessvel mulher j est to
enraizada que as prprias mulheres, salienta Montaigne, na medida em
que se ocupam da educao das moas, fazem do casamento o fim de sua
criao. registramos, como curiosidade, que na sequncia do texto ele
acrescenta ainda que sua filha, na poca j com uma idade considerada
apta para o casamento, no parece estar pronta para tal passagem,
porque teve uma educao isolada e particular por parte de sua me e,
contrariamente ao comum, ainda no tinha se desembaraado da
ingenuidade da infncia. e comenta um pouco mais frente (iii, 5,
884/148) que a austeridade na educao das moas no oferece o
resultado almejado, e que em sua poca elas so preparadas com
segurana, enquanto em outras geraes eram preparadas pelo medo e
pela vergonha.
tendo sido visualizado o quadro mais geral sobre a mulher, ainda
que de forma rpida, assim como tendo sido visualizados alguns
elementos do
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Maria Clia da Veiga Frana460
texto de Montaigne que nos permitem aproxim-lo de uma ou outra
tendncia, podemos finalmente abordar as ltimas linhas do captulo
Sobre versos de Virglio, onde acreditamos encontrar uma resposta
mais concreta para sua filiao. na camada [B] ele escreve: Digo que
os homens e as mulheres so feitos no mesmo molde: exceto a educao e
os usos, a diferena no grande. Passando para a camada [C], ele
continua:
Plato convida indiferentemente uns e outras para a participao em
todos os estudos, exerccios, cargos, profisses da guerra e da paz,
em sua repblica; e o filsofo Antstenes suprimia qualquer distino
entre a virtude delas e a nossa. [B] muito mais fcil acusar um sexo
do que escusar o outro (iii, 5, 897/168).
Lembremos que Agrippa tambm utiliza a mesma metfora, afirmando
que so feitos na mesma forma.
Plato, citado pelo francs e pelo alemo, e aprovado por ambos no
que diz respeito sua viso sobre a mulher, introduz essa questo em
meio a uma reflexo sobre o estado, j que se trata do livro A
Repblica, mais especificamente aps discutir a questo da virtude e
da justia, juntamente com o problema da educao das crianas. A
diferena entre ele e Aristteles aparece j na organizao do texto:
enquanto o estagirita anuncia a natureza menor da mulher,
apresentando-a no captulo sobre o comandar e o obedecer ao lado dos
escravos e crianas, o ateniense aponta para sua igualdade,
mencionando-a em seguida a uma discusso sobre a necessidade da
virtude para o cidado. Alm disso, enquanto afirma que homens e
mulheres devem receber a mesma educao para estarem aptos a exercer
as mesmas tarefas, ele sustenta ainda20, com o exemplo de mulheres
fazendo ginstica junto aos homens, que esta prtica poderia parecer
risvel para alguns, porque a tradio enraizou o costume contrrio.
trata-se, portanto, de um costume a ser superado, e no de uma regra
estabelecida pela natureza. Montaigne e Agrippa tambm apresentam o
lugar da mulher estabelecido pela tradio, no pela natureza.
Assim, no que diz respeito tese da diferena de natureza entre o
homem e a mulher, j mencionada como amplamente aceita pelos autores
renascentistas, Montaigne se distancia claramente de sua poca,
propondo a ideia bastante radical da igualdade de natureza entre os
gneros feminino e masculino. Fica manifesto, sobretudo nestas
ltimas linhas do captulo, que o francs apresenta importantes
semelhanas com passagens encontradas na
20 Plato,A Repblica,V,452d.
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461MONTAIGNE E A NATUREZA HUMANA NO FEMININO
obra de Cornelius Agrippa. Ainda que no constando no catlogo dos
livros de Montaigne, como no caso da Filosofia oculta e da
Incerteza e vaidade das cincias, acreditamos que esta obra, escrita
em latim em 1509, poderia ter sido lida por ele e ter exercido
influncias sobre o pensamento de nosso autor.
Fechando este trabalho, o momento de tentar fazer um resgate do
percurso empreendido. Primeiramente, bom lembrar que, em muitos
aspectos, Montaigne no se desliga totalmente da viso predominante e
conservadora sobre a mulher de sua poca. no obstante, alguns pontos
de clara distino podem ser destacados. Comecemos pela recusa da
definio da natureza da mulher como uma menor racionalidade, face
racionalidade plena da natureza do homem que, diga-se de passagem,
ele tambm recusa. Segundo ponto, homens e mulheres possuem
diferenas fsicas e morfolgicas dadas as necessidades de reproduo da
espcie, mas sua natureza a mesma, ainda que no definvel. isto
significa afirmar uma igualdade de ambos quanto ao entendimento,
virtude, s capacidades e s finalidades. Montaigne abraa, portanto,
Plato para recusar Aristteles. ltimo ponto, o papel atribudo mulher
em sua sociedade arbitrrio, porque imposto pela tradio masculina.
Ainda que no se trate de uma definio, estes traos nos permitem ter
uma boa viso da mulher pintada pelos Ensaios.
Refernciasbibliogrficas
AGriPPA, Henri-Corneille. De lexcellence et de la superioritde
la femme. trad. Franois Peyrard. Paris: Louis, 1801. De nobilitate
et prcellentia feminei sexes [1509].AriStteLeS. Politics. trad. de
H. rackham. Londres: Loeb Classical Library, 2005.BoDin, Jean. Les
six livres de la rpublique. Vol. 6. Paris : Fayard, 1986.
[1576].CHArron, Pierre. De la Sagesse. Paris: Fayard, 1986.
[1601].MontAiGne, Michel. Les Essais. PUF: Paris, 2004.
[1595].MontAiGne, M. Os Ensaios. trad. rosemary C. Ablio. So Paulo:
Martins Fontes, 2000.PLAto. Rpublique. Bibliothque de la Pliade.
traduo e notas de Lon robin com a colaborao de M.-J. Moreau, Paris
: Gallimard, 1950.