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O C atarina FUNDAÇÃO CATARINENSE DE CULTURA | NÚMERO 68 | 2008 ESPECIAL A autoria centenária de Pesquisador do folclore ilhéu e artista de múltiplos suportes, catarinense construiu uma voz capaz de continuar ecoando na sociedade contemporânea Franklin Cascaes
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Fra nklin Ca scaes - cultura.sc.gov.br

Apr 07, 2022

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O Catarinaf u n daç ão c ata r i n e n s e d e c u lt u r a | n ú m e r o 6 8 | 2 0 0 8

e spec i a l

A autoria centenária de

Pesquisador do folclore ilhéu e artista de múltiplos suportes, catarinense construiu uma voz capaz de continuar ecoando na sociedade contemporânea

Fra nkl in Ca sca e s

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Presidente | Anita Piresdiretor AdministrAtivo | Armando CostadiretorA de difusão ArtístiCA | mary GarciadiretorA de PAtrimônio CulturAl | simone HargerAssessorA de ComuniCAção | deluana BussConsultor de Projetos esPeCiAis | ray Borges martinsConsultorA jurídiCA | juliana CaonGerente de AdministrAção, finAnçAs e ContABilidAde | nelson lealGerente oPerACionAl | domingos GuedinGerente de loGístiCA e eventos | soraya fóes Bianchini

Gerente de PAtrimônio | Karla fonsecaGerente de PesquisA e tomBAmento | Halley filipouskiAdministrAdorA do Centro inteGrAdo de CulturA | iara r. da silvaAdministrAdorA do teAtro Ademir rosA | margarett WestphalAdministrAdor do museu de Arte de sAntA CAtArinA | ronaldo linharesAdministrAdorA do museu dA imAGem e do som | denise thomasiAdministrAdorA dA BiBlioteCA PúBliCA do estAdo de

sAntA CAtArinA | Élia mara magalhães BritesAdministrAdorA do museu HistóriCo de sAntA CAtArinA

| susana simonAministrAdorA do teAtro ÁlvAro de CArvAlHo | márcia dutra BoosAdministrAdorA dA CAsA dA AlfândeGA | lucília Polli

AdministrAdorA dA CAsA de CAmPo do GovernAdor

HerCílio luz | marilóide da silvaAdministrAdor dA CAsA dos Açores museu etnoGrÁfiCo

| josé nevesAdministrAdorA do museu nACionAl do mAr | Ana CoutinhoseCretÁriA exeCutivA do ConselHo estAduAl de CulturA

| marita Balbi

editorA| deluana Buss (jP/sC 01009)editorA Assistente| jade martins lenhartCoordenAdorA| mary GarciaConselHo editoriAl | jayro schmidt, joão evangelista, mary Garcia, jade martins lenhart, Péricles Prade e onor filomeno

PlAnejAmento GrÁfiCo e Arte | Ayrton CruzimPressão | Imprensa Oficial do Estado de santa Catarina (ioesc)tirAGem | 10 mil exemplares

distribuição gratuita

publicação da fundação catarinense de culturaAPoio |

fundAção CAtArinense de CulturAAv. Governador irineu Bornhausen, 5.600 — Agronômica — CeP 88025-202 — florianópolis — santa CatarinaE-mail | [email protected] | (48) 3953-2383SitE | www.fcc.sc.gov.br

expediente

en

tre

em

co

nta

to

GovernAdor do estAdo de sAntA CAtArinA |

luiz Henrique da silveira

viCe-GovernAdor |

leonel Pavan

seCretÁrio de estAdo de turismo, CulturA e esPorte | Gilmar Knaesel

O Catarina

especialandarilho, escritor, viajante, prosador, folclorista, observador,

escultor, desenhista, Franklin Cascaes foi vários, e todos ao mesmo tempo. autor de trajetória sincrética, com atuação em múltiplas fronteiras da cultura catarinense, abraçando cada desdobramento com convicção, construiu-se como sujeito com o mesmo ímpeto com que revelou e consolidou a identidade do Estado, enfatizan-do os pormenores da cultura açoriana. Sua colaboração, valiosa, precisa, firme, permitiu o desvelamento e o resgate de causos, gentes e lendas engolidos pelo asfalto selvagem da modernidade. Abastecido do bloquinho de folhas gastas, e com o ouvido sempre atento aos contos alheios, Francolino, apelido nas vilas onde cos-tumava se perder entre dados já quase gastos pelo tempo, deixou à Ilha de Santa Catarina um legado da importância do seu amor e respeito: sua literatura, faminta em denunciar a forma da fala local, em todas as escolhas e modulações; suas pesquisas exaus-tivas, coletadas em diálogos de frente para o mar ou em noites de lua cheia; suas esculturas minuciosas, recriando formas e en-cantos típicos da cultura açoriana, já quase perdidos na névoa do contemporâneo. Mais do que relatar, recriar, repassar, Franklin Cascaes ajudou a nos construir.

É com muita felicidade que apresentamos a primeira edição especial do jornal o Catarina, a estréia de uma série que preten-demos lançar ao longo do próximo ano. O suplemento homenageia o centenário de nascimento do nosso plural e rico homem, nascido em Itaguaçu, logo após o bairro de Coqueiros, quando a região ainda pertencia ao município de São José, e não a Florianópolis. Para homenagear a pluralidade da personagem com a consistência merecida, convidamos um grupo de especialistas para discorrer sobre algumas das mais ousadas facetas do pesquisador. A separa-ção por atuação, então, objetivou justamente acentuar tal diver-sidade: demarcar o posicionamento oceânico de Franklin Cascaes para a solidificação da nossa identidade cultural. O objetivo aqui é revelar os arredores das andanças do catarinense, expandindo seus limites, geográficos e temáticos, assinalando suas escolhas, difíceis e corajosas.

Na primeira matéria, de Emerson Gasperin, um perfil com a tra-jetória biográfica e as curiosidades da vida do escritor, que mor-reu lutando pela preservação da nossa cultura. O texto seguinte, da historiadora Aline Carmes Krüger, narra o detalhista ofício de pesquisador, envolvido com a coleta e narrativa das lendas e tradi-ções que ajudaram a nos transformar naquilo que somos hoje. Na

seqüência, a professora Kellyn Batistela discor-re sobre Franklin Cascaes — o escri-tor, aquele que, sentado à frente de uma resma de papel, de-batia-se para c o n s e g u i r transformar em literatu-ra os causos ouvidos em andanças sem fim pelas comunidades. Para finali-zar a primeira metade da edição, o Catari-na apresenta uma entrevista com o antropólo-go Eugênio Lacerda, vislumbrada a partir de uma dúvida que explica nosso empenho na elaboração deste especial: o mundo contemporâneo ainda consegue abarcar a multiplicidade do folclore e da tradição?

Dando continuidade à priorização do caráter plural da trajetória do folclorista, o texto de Pé-ricles Prade, presidente do Conselho Estadual de Cul-tura, discorre sobre os contornos exclusivos das gravuras de Franklin Cascaes. Em seguida, a conservadora-restauradora Va-nilde Rohling Ghizoni comenta sua produção artística, agora nas artes plásticas. o Catarina especial franklin Cascaes ainda traz à tona uma resenha literária elaborada pela professora Tânia Re-gina de Oliveira Ramos, doutora em Teoria Literária, sobre o li-vro 13 Cascaes, compilação de contos com base na obra do autor, organizada pelos escritores Salim Miguel e Flávio José Cardozo, além de um texto do próprio Franklin Cascaes, pequena amostra do talento multifacetado do catarinense.

Esperamos agradá-los com este primeiro especial: relembrar o centenário de Franklin Cascaes é apenas o nosso primeiro passo no resgate de personagens e cenas que marcaram e continuam mar-cando a história de Santa Catarina. Boa leitura! n

2

ed

ito

rial

o Catarina | número 68 | 2008

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tânia regina oliveira ramos

os artistas que permanecem são

aqueles autores de obras acompa-

nhadas por grandes sistemas estéti-

cos. A cultura produzida na ilha de

santa Catarina possui algumas mar-

cas e alguns marcos. Hoje eu não

temo dizer que há uma literatura

antes e depois de 13 Cascaes1, uma

antologia que reúne treze leitores

de franklin Cascaes, em treze nar-

rativas que, evitando o naturalismo,

o puro simulacro da realidade que

não se repete, criam uma seqüência

de histórias fantasmais, aventuras

da mente, no que estas cinco letras

— mente — têm de carga semânti-

ca. Cérebro, sufixo de advérbios de

modo e terceira pessoa do singular

do verbo mentir. Assim cada mente,

dos treze convidados para este revi-

val de Cascaes, mente verdadeira e

poeticamente2.

A epígrafe do ensaio faz uma ho-

menagem a estes falsos mentirosos3,

arrolados alfabeticamente: Adolfo

Boos junior, Amilcar neves, eglê ma-

lheiros, fábio Brüggemann, flávio

josé Cardozo, jair francisco Hamms,

júlio de queiroz, maria de lourdes

Krieger, olsen junior, Péricles Pra-

de, raul Caldas filho, salim miguel

e silveira de souza. numa mistura

de memórias de leituras e memó-

rias ficcionais, onde o fantástico é

sempre evocado, somos encantados

pelas histórias contadas por autoras

e autores, especialmente porque em

cada narrativa há uma presença ou

uma essência de franklin Cascaes

como um fantasma que, sem cair

no fetichismo da tradição, assom-

bra a cultura moderna. daí a cum-

plicidade dos autores às genealogias

(talvez a primeira e última carta);

aos lugares próximos e distantes (O

presépio; Uma noite de profunda

insônia solitária); aos espaços míti-

cos e místicos (O “Minha Querida”;

O Abençoado; Mistério no Miramar);

ao tempo transgressor (Dois bando-

lins; O diário da virgem desapareci-

da); ao humanismo (Branco assim da

cor da lua; O folheto); às referências

reais ou simbólicas em histórias mes-

cladas de verdade e de poesia (His-

tória praiana; ao entardecer; Noites

de encantamento), que conseguem

elaborar um universo rico em con-

tradições, especialmente porque

todos os enredos passam pelo poder

da linguagem, da palavra contada,

da história inventada, e não apenas

pela preocupação teórica da veros-

similhança.

o fascínio da alteridade — des-

te outro inexplicável — é uma das

marcas das narrativas fantásticas.

outras dimensões, outros mundos

narrados, as ilustrações de tércio da

Gama, o prefácio, as notas do editor,

os créditos estatais, que remetem

e dialogam com os traços e com os

desenhos bruxólicos de franklin Cas-

caes, não desglamourizam a fantasia

das letras e das palavras. Pelo con-

trário. servem como complemento e

suplemento. Complemento que Gel-

ci josé Coelho, o Peninha, é no li-

vro com seu depoimento factual, de

quem conviveu e viveu com franklin

Cascaes. suplemento na invocação

feita por dennis radünz, numa lei-

tura auricular, profunda, pontual,

do significado deste que “não é ape-

nas um livro, mas treze lugares da

linguagem”. Complemento e suple-

mento obtidos pela organização e

apresentação destes dois escritores,

leitores sempre, flávio josé Cardozo

e salim miguel.

denise de Castro, em sua boni-

ta canção-homenagem, diz que “a

festa hoje é pra Cascaes”.4 no re-

frão ela alegremente canta que na

freguesia do Ribeirão “é vento, é

fogo, é caldeirão; eu vi passean-

do na clareira, uma misteriosa

reunião”. Poderíamos dizer que

era essa misteriosa reunião de

cascaes. na festa do livro que

agora li entraram cabalistica-

mente “treze cascaes”. Mas

se “passam no ar vassouras

voadoras, que dão gargalha-

das pelo ar”; aproveitando

a “lua cheia; em coro”

começando “a cantar”5,

não haverá mistérios se

daqui a pouco encon-

trarmos mais cascaes

continuando a contar.

Porque, como sabe-

mos, temos muitos fal-

sos mentirosos. logo,

verdadeiros. simples-

mente cascaes. n

3

simplesmente cascaes

texto | tânia regina oliveira ramos professora da ufsC, atualmente coordena o Programa de Pós-Graduação em literatura.

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eci

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o Catarina | número 68 | 2008

1 13 CAsCAes. flávio josé Cardozo e salim miguel (org.). ilustrações de tércio da Gama e franklin Cascaes. florianópolis: fundação franklin Cascaes, 2008.

2 Affonso romano de sant’Anna em 1980 faz um jogo poético com este sufixo em um instigante poema político, chamado “Implosão da Mentira”.

3 silviano santiago, em 2004, lançou um romance intitulado “Falso Mentiroso”, que coloca em xeque exatamente os limites entre real e ficção num jogo de máscaras e de referências.

4 Para ouvir a canção recomendo o blog www.carosouvintes.org.br/blog/?p=370. Acesso em 02 de novembro de 2008.

5 Festa pra Cascaes é interpretado também pela cantora ive luna no Cd a ser lançado em breve: Narrativas de Catarina.

“eu ouvi muitas

histórias, também, de

mentirosos, e aprendi

a ser mentiroso.”

Fra nk l i n Ca s ca e s

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o Catarina | número 68 | 2008

causos e lendas do universo do feiticeiro de itaguaçu

emerson gasperin

florianópolis, ilha da magia. o apelo aparece em reporta-

gens, folhetos promocionais e campanhas publicitárias para

exaltar as belezas naturais e a qualidade de vida de “um lugar

aonde quem vem uma vez apaixona-se e logo quer voltar”,

inclusive para morar. mais do que apenas marketing para en-

cantar turistas, porém, sua origem está na cultura popular da

cidade, repleta de causos sobre bruxas, crendices e simpatias

— relatos passados de geração a geração que ninguém soube

valorizar, ouvir e registrar como franklin Cascaes.

no ano que marca o centenário do professor, pesquisa-

dor, folclorista, gravurista e escritor, deve-se ao seu traba-

lho o que restou dessas “crenças espirituais fantásticas que

dão vidas simbólicas fictícias a seres invisíveis”. A fúria do

progresso, cujas conseqüências como poluição, descarac-

terização e especulação imobiliária ele denunciou até sua

morte, fez com que a Política (“uma madame manhosa”)

invariavelmente levasse a melhor sobre a madame tradição

(“um monumento de beleza que o homem errante, habitan-

te do globo terráqueo, guarda carinhosamente nos baús do

seu pensamento e, na maioria das vezes, oralmente, ofe-

recendo aos descendentes, imortalizando-a”). sobraram a

“beleza incomparável” da Ilha de Santa Catarina, enalte-

cida em toda a sua obra, e uma trajetória pessoal que a

Madame História, “na sua sutil e nobre sabedoria secular”,

certamente abençoaria.

Cascaes nasceu em 1908 no bairro itaguaçu (parte conti-

nental de florianópolis), à época pertencente ao município

de são josé. desde cedo, ajudava os pais em tarefas liga-

das ao cotidiano da comunidade, como fazer balaios, armar

cercas de bambu, tecer tarrafas e cordas de cipó, moldar

peças de argila e trabalhar no engenho de farinha. entre

uma tarefa e outra, era exposto às lendas contadas pelos

pescadores e agricultores a respeito de seres mitológicos,

seus estranhos poderes e suas ocorrências no interior da

ilha, despertando seu interesse pelo assunto que exploraria

nas décadas seguintes.

fotomontAGem Ayrton Cruz

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o talento para retratar o que escutava — no papel, no

barro ou na pedra — o levou a lecionar na escola de Apren-

dizes e Artífices de Santa Catarina (atual Centro Federal de

educação tecnológica — Cefet), a convite do diretor da ins-

tituição, o professor Cid rocha Amaral. durante cerca de 40

anos, Cascaes ensinaria desenho, escultura, modelagem e

trabalhos manuais, construindo uma carreira que vem sendo

estudada pela aluna denise Araújo meira em sua dissertação

de mestrado em educação pela universidade do estado de

santa Catarina (udesc).

foi nas dependências da escola que, em 1946, o pro-

fessor começou a aprofundar seu mergulho pelos costumes,

práticas e conhecimentos dos descendentes dos açorianos

que colonizaram florianópolis. na época, a provinciana ca-

pital aderia incondicionalmente ao desenvolvimento urbano,

abrindo mão do passado em prol de um estilo de vida trazido

dos grandes centros. Aos 38 anos, talvez prevendo que, se

as mudanças continuassem naquele ritmo, pouco da cidade

que ele aprendeu a amar chegaria intacta aos netos e bisne-

tos dos pioneiros, Cascaes trilhava a direção contrária.

Às suas próprias custas, passou a coletar antigas histó-

rias, que tratava de eternizar em alguma das muitas artes

que dominava. Havia virado artista, então? sim, mas não

com essa intenção. mesmo se quisesse, não poderia aban-

donar o magistério: “Não dá para viver de arte, o artista é

sempre pobre, visto como um malandro”, dizia. em vez de

lamentar a falta de apoio, embrenhava-se pelo interior da

ilha, onde se sentia mais à vontade com as manias e o lingua-

jar peculiar dos manezinhos — traduzidos com fidelidade em

seus escritos — do que com a última novidade tecnológica

incensada pelos “almofadinhas” da cidade.

Graças ao que o clichê acadêmico convencionou cha-

mar de “resgate” perpetrado por Cascaes, veio à tona todo

um universo imaginário condenado ao desaparecimento em

nome da modernidade. Como, por exemplo, as diferenças

entre bruxas e feiticeiras. Conforme a explicação de nico-

lau, a Sulpício do Quintino, as primeiras são “muhié malina

que nascero cá sina, somente, pra podê fazê o máli (Con-

gresso Bruxólico). em outra passagem (Balanço Bruxólico),

Cumpadre zeferino as descreve ao Cumpadre manuéli como

“canahias desavergonhadas (...), não é a toa que no céu da

boca delas nasce um dente canino.”

os manezinhos tinham suas razões para temer e odiar

as tais bruxas: elas roubavam embarcações, davam nós nas

crinas e nos rabos dos cavalos (isso quando não os faziam ga-

lopar pelos ares!), “inticavam” com as pessoas mais velhas,

chupavam sangue das criancinhas e aprontavam mil e umas

“malas-arte”. Já as feiticeiras eram “as muhié que só pri-

curo fazê o bem prôs sôs próximo”, continua nicolau. nessa

categoria entram as curandeiras e benzedeiras como sinhá

Marculina do Joronço. Ao examinar Zeferino, que “não tugia

nem mugia”, “desmaiado e sem fala, que nem um boneco de

cera virgem”, ela diagnosticou o caso como “empresamento

por vingança bruxólica cipoadamente balanceira”.

As ilustrações acentuam o caráter sobrenatural dessas

narrativas. inspirado por ossos de peixes, garras, escamas

e demais elementos do mar, o artista forjava bruxas cada-

véricas e pontudas. no livro Franklin Cascaes: Uma Cultura

em transe (editora insular), o autor evandro André de sousa

observa que, mais tarde, essas criaturas aparecem relacio-

nadas ao “asfalto, à eletrificação, à construção de prédios

no lugar dos antigos casarios coloniais, aos avanços tecno-

lógicos como a ida do homem à lua, a popularização da

televisão, a construção da segunda ponte e a intensificação

do turismo” — situações que assustavam Cascaes mais do

que qualquer praga rogada por uma mulher “enganadeira

dos marido com os próprios cumpadres”.

Antes de a preocupação com o meio ambiente trans-

formar-se em retórica onipresente em qualquer segmento

“inteligente” da sociedade, ele já atacava o descaso com

a natureza. “Que fazem os homens responsáveis pela fau-

na e pela flora? Nada, é tudo conversa fiada”, indignava-se

contra aqueles “que têm a distinta obrigação social, técni-

ca-ambiental de protegê-las contra a ganância desenfreada

de ricos depredadores”. E lamentava: “Que pena, ó minha

mui querida ilha de nossa senhora do desterro! o homem

que vive este século está obcecado pelo deus inferior que o

está conduzindo por caminhos tão tortuosos que me fogem

à imaginação, para poder comentar a direção certa da sua

desaconselhável caminhada.”

Cascaes não viveu para ver alguns de seus piores temo-

res confirmados, como o aterramento de mangues para sedi-

mentar empreendimentos comerciais, as “favelas de ricos”

(como se referia aos prédios de apartamentos) alterando

radicalmente a paisagem da cidade e ruas sendo duplicadas

para dar vazão ao trânsito crescente. sua morte, em 1983, o

impediu também de presenciar histórias que desafiam a ló-

gica muito mais do que aquelas recolhidas em suas andanças

pelos recônditos da ilha. só que, desta vez, protagonizadas

por gente letrada, urbana e vivíssima. Até demais. n

“Que pena, ó minha mui querida

ilha de nossa senhora do desterro!

o homem que vive este século

está obcecado pelo deus inferior

que o está conduzindo por

caminhos tão tortuosos que me

fogem à imaginação, para poder

comentar a direção certa da sua

desaconselhável caminhada”.

texto | emerson gasperin é jornalista.

Fran

klin C

ascae

s

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6o Catarina | número 68 | 2008

aline carmes krüger

A Coleção Professora elizabeth Pa-

van Cascaes, nome dado ao conjunto

de obras do artista franklin joaquim

Cascaes, é composta de esculturas em

argila crua e gesso, desenhos a bico de

pena e grafite, e manuscritos. A prin-

cipal característica da obra de Cascaes

é sua ligação profunda com as fontes

populares; seu trabalho registrou o jei-

to de ser, agir e pensar dos moradores

da ilha de santa Catarina e arredores.

em suas pesquisas folclóricas nas co-

munidades no interior da ilha, coletou

dados da tradição local, construindo e

organizando o tempo e o espaço da sua

memória oral e visual.

As manifestações folclóricas são

dinâmicas e se renovam pela incorpo-

ração de novos elementos dos grupos:

transformam-se, ampliam-se, adaptam-

se. entende-se por folclorista a pessoa

que exerce como atividade de trabalho

a investigação das tradições populares.

Cascaes, como pesquisador, sempre es-

teve interessado em registrar e preser-

var a cultura das comunidades, princi-

palmente as do interior da ilha de santa

Catarina. em seu Caderno 74, expõe:

“possuo um grande acervo de obras em

letras, esculturas, desenhos e trabalhos

manuais, documentando vários assuntos

ou motivos folclóricos, material sempre

recolhido na fonte original [...] o meu

interesse é ajudar a recolher, divulgar e

guardar as tradições desta ilha de santa

Catarina e seus arredores. faço desinte-

ressadamente, e a apresento também,

imortalizando-o na força espiritual que

as artes plásticas exercem sobre as na-

ções para documentarem a raiz histórica

das suas culturas tradicionais dentro dos

tempos e que hoje avançam acelerada

para o futuro tecnológico moderno”.

o folclore é o retrato vivo dos sen-

timentos populares. o registro etno-

gráfico feito por Franklin Cascaes até o

ano de 1983 reflete a formação de uma

identidade através da oralidade, dos co-

nhecimentos tradicionais, dos saberes e

dos sistemas de valores. Como sugere

entre rendas e bruxas, as malhas

do folclore catarinense

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7o Catarina | número 68 | 2008

a Carta do folclore Brasileiro, elabora-

da no i Congresso Brasileiro do folclore

Brasileiro: “Constitui o fato folclórico a

maneira de pensar, sentir e agir de um

povo, preservada pela tradição popular

e pela imitação, e que não seja direta-

mente influenciada pelos círculos eru-

ditos e instituições que se dedicam, ou

à renovação e conservação do patrimô-

nio científico humano, ou à fixação de

uma orientação religiosa e filosófica”. O

folclore ocupa-se de todas as manifes-

tações e aplicações da cultura e o fato

folclórico pertence ao coletivo.

Para compreender a obra de Cascaes

é preciso entender e contextualizar suas

fontes populares. sob o enfoque do fol-

clore, podemos observar em sua obra a

tradição religiosa nas procissões, as brin-

cadeiras infantis como a ciranda, o jogo

de bolinha de gude e a pandorga. Há os

folguedos, como o boi-de-mamão, o ca-

cumbi e os negros velhos do caxangá. As

atividades produtivas das comunidades

pesquisadas também foram contempla-

das pelo artista, que registrou nos seus

conjuntos escultóricos o lambe-lambe, o

engraxate, os vendedores ambulantes,

a tecelagem manual, a pescaria, a ren-

deira e os diferentes tipos de engenho.

A língua indígena está presente em seus

cadernos sob forma de dicionários e a li-

teratura popular, através dos provérbios,

adivinhações, contos, frases feitas, ora-

ções, danças, trovas. Há ainda as crendi-

ces populares, representadas nos mitos

das bruxas, boitatás e lobisomens: “Todo

homem anêmico, pálido, que come bar-

ro, areia, rói as unhas, come roupa é

dado como lobisomem entre seus fami-

liares, vizinhos.”

A religiosidade, o imaginário popu-

lar e o conhecimento do uso das ervas

medicinais fundiram-se para formar as

benzeduras, prática ainda comum. Para

cada moléstia há um tipo de benzedu-

ra que Cascaes registrou junto das co-

munidades: “Campainha Caída. Abra-te

porta e fecha-te. Abra-te pela banda do

mar. si é campainha caída que vorte ao

seu lugá. em nome de deus e da virgem

maria Amém. esta oração deve ser dita

três vezes. o paciente deve conservar o

dedo polegar dentro da boca que é para

ajudar a levantar a campainha durante a

benzedura. recolhida no Pântano do sul.

narrada pelo senhor rosalino. 1956”.

em argila, modelou o homem do li-

toral catarinense, porém não se limitou

aos descendentes de açorianos, como

pode ser observado nas coleções negros

Velhos do Caxangá e Cacumbi, que afir-

mam a presença do negro. nas pesqui-

sas, também registrou as atividades fol-

clóricas da população afro-descendente:

“Estes dados sobre a dança de Cacubi

foram fornecidos por dois senhores de

cor. senhor estanislau jacinto de Aguiar,

com 85 anos de idade, residente no ca-

minho da Caeira, saco dos limões. se-

nhor joão joaquim vieira, com 79 anos

de idade, residente nos Barreiros. eles

foram bastante camaradas para comigo

nestas narrativas de coisas do tempo

passado [...] diz o senhor estanislau que

esta dança de cachangá era uma dança

de homens de cor que se vestiam com

trajes característicos da representação

de homens velhos, e que procuravam re-

cordar o tempo da escravidão.”

franklin joaquim Cascaes tentou ex-

pressar da melhor forma possível o que

viu, viveu e sentiu enquanto trabalhava.

Percebeu as transformações que coloca-

vam em ameaça o cotidiano e o conheci-

mento popular dos habitantes da ilha, já

em risco de esquecimento pelas futuras

gerações. As representações das imagens

folclóricas construídas por Cascaes são

hoje, na sua maioria, cotidianos ausentes

na nossa história local: as festas popula-

res e religiosas, as atividades produtivas,

os jogos e brincadeiras infantis, a litera-

tura oral. Conhecer estes conjuntos de

fatos folclóricos é valorizar o ser humano,

ou seja, a sua diversidade cultural, tão

bem registrada por Cascaes. o estudo in-

terpretativo de sua obra nos leva à diver-

sidade da população local, da maneira de

construir suas vidas e de vivê-las. n

texto | aline carmes krüger é historiadora.

fotos | gill konell

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esp

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o Catarina | número 68 | 2008

kellyn batistela

muitos são os escritores, artistas ou

críticos que se debruçaram no estudo

da memória, buscando, ao se voltar

para o passado, compreender o homem

em sua individualidade e em seu conví-

vio social. muitos destes não se furta-

ram em basear sua busca em elementos

de vivência pessoal. talvez a principal

motivação de franklin Cascaes, no de-

senvolvimento de seu trabalho, tenha

sido pessoal, pois, ao testemunhar

melancolicamente o desenvolvimento

urbano de florianópolis, Cascaes fazia

parte da comunidade representada em

sua obra. não há como separar sua vida

de seu trabalho, pois seus sentimentos

e suas idéias tiveram origem no tecido

da coletividade.

Cascaes percorria a ilha de carroça,

canoa, Kombi ou a pé, anotando, em

cadernos ou folhas avulsas, histórias,

rezas, hábitos e costumes das fregue-

sias pesqueiras e rendeiras do interior

da ilha. não é à toa que diz ter iniciado

seu trabalho pela saudade do passado,

pois ao ouvir os causos contados pelos

colonos-pescadores, evoca simultanea-

mente a sua experiência individual,

construída entre as rodas de trabalha-

dores de engenho. desta relação de per-

tencimento com a comunidade, ou seja,

apoiando a sua memória na memória

dos outros, advém a autoridade a partir

da qual legitima seu trabalho escrito e

plástico, sustentando que viveu tudo o

que narrou.

o procedimento de salvaguardar a

tradição, bem como a operosidade da

criação do artista/escritor, apresenta-se

através de textos em processo, os quais

deram origem a publicação de dois livros

de contos. todavia, existem outros que,

entre folhas manuscritas, hibernam a ori-

ginalidade de seus conteúdos. Cascaes

inventariou, a seu modo, a experiência

de sua comunidade afetiva. este procedi-

mento arquivista construiu um rico acer-

vo nas letras, escultura e desenho. Como

supérstites da memória, os textos de

Cascaes, resultados de anos de pesquisa

com os narradores populares, guardam o

registro da experiência no momento em

que se inicia a queda da oralidade ou do

enfraquecimento dos laços comunitários.

A memória de Cascaes pode ser en-

tendida como conservação ou elabora-

ção do passado, pois o medo de esque-

cer motiva o pesquisador a registrar a

experiência dos interioranos, além de

haver a necessidade de reinvenção deste

mesmo passado pela impossibilidade de

recuperá-lo como experiência autêntica

de vida. Compreender a memória de

Cascaes como algo socialmente vivo é

opor-se ao uso que as instituições públi-

cas, inclusive a academia, faz da tradi-

ção. Por isso, Cascaes filia-se a figura do

narrador épico, aquele cuja obra é res-

taurar as tramas desfeitas pelo esqueci-

mento ou ameaçadas pelos novos hábitos

da palavra ao texto: a experiência do narrador cascaes

Page 9: Fra nklin Ca scaes - cultura.sc.gov.br

Fr a n k l i n Ca s ca e s

F

9o Catarina | número 68 | 2008

não na-

turais no

convívio do

homem com seu

espaço coletivo.

quando franklin

Cascaes decide iniciar seu

trabalho, o objetivo explíci-

to fora o de manter viva uma

tradição que inevitavelmente

ruía ao compasso do progresso.

sua iniciativa foi a de registrar da

forma mais ampla possível todas

as manifestações culturais da ilha

de santa Catarina. Para isso, viaja-

va constantemente pelas freguesias

pesqueiras, conversando com pesso-

as, escutando suas histórias, escre-

vendo provisoriamente, para depois

apresentá-las de modo, segundo ele,

mais elaborado, através de narrativas,

desenhos ou esculturas. Apesar de se

manifestarem nos mais variados supor-

tes (peças tridimensionais, trabalhos

bidimensionais, cadernos e folhas

avulsas), técnicas (argila, grafite

e nanquim), linguagens (imagem

e texto) e categorias artísticas

(escultura ou desenho), os

textos, qualquer que seja

seu tratamento (obra,

estudo ou manuscrito),

compõem sem dú-

vida uma unida-

de. os textos

autógra-

f o s

(imagem e narração)

enunciam a experiência pres-

tes ao desvanecimento.

independentemente do seu códi-

go de linguagem, texto ou desenho

são marcados pelo contexto político,

histórico e social que presidiu a sua

elaboração. Há intertextualidade e

pluralidade de vozes narradoras que

emergem das fabulosas narrações de

Cascaes. talvez o maior elemento de

diferenciação, no que concerne aos

cadernos do artista/escritor, está no

fato de que os manuscritos, além de

apresentarem o processo de pesquisa

que transita pela etnografia, enunciam

as tradições antigas da ilha, recolhidas

por franklin em suas constantes prosas.

este aspecto faz com que o texto de

Cascaes, por mais escritural que seja,

evoque mais a memória coletiva que a

memória individual. diferentemente

de outros escritores e artistas, desti-

nou em seus cadernos de pesquisa, que

totalizam 110 volumes, pouco campo à

experimentação. muito raramente há

esquemas, idéias desconexas ou frases

soltas. o artista/escritor demarca bem

suas preocupações em legar ao futuro

o registro de suas viagens, e para tanto

referencia o nome dos contadores dos

causos e os locais nos quais foram re-

colhidas as narrações. Percebe-se que

esta é a principal preocupação arquivis-

ta de Cascaes. Como cada texto apre-

senta as marcas do ambiente cultural

e suas relações históricas, é relevante

salientar que na sua escrita preserva-

se a oralidade dos causos colhidos. sem

perder a vitalidade lingüística do relato

falado, Cascaes empreende a faculda-

de mais épica de todas as práticas do

recordar, a memória do contador de

histórias.

Como a memória

ocupa-se do ato de lembrar

e contar, é através dela que se expli-

cam e lamentam as mudanças, quando

permanecem apenas vestígios de uma

realidade anterior. todas as comunida-

des e sociedades têm, no campo das

tradições, seus diferentes narradores,

alguns mais épicos que outros, porém

todos dotados da faculdade de trans-

mitir conhecimento. o narrador oral

seria então o responsável por articular

as diversas memórias. A este narrador

também estaria reservado o papel de

encontrar herdeiros e sucessores de

sua narração, garantindo e preservan-

do assim a vida diante da inevitabilida-

de da morte.

de ouvinte a prosador, o narrador

nunca está só. ele agrega ao seu conhe-

cimento de mundo as experiências dos

outros — por isso, além de narrar, sabe

dar conselhos. entretanto, os conselhos

apenas são concedidos por preservarem

formas de conhecimento; e, na mesma

proporção, porque seus ouvintes ainda

necessitam deles. este tipo de expe-

riência é épica, pois encontramos nos

textos clássicos menção a esta forma do

saber: o exercício do trabalho associa-

do à arte do contar histórias.

Como forma de constituição de sua

própria memória, franklin Cascaes lem-

bra com os outros. A constituição de

tais imagens encontra-se apenas na so-

ciedade, onde estão todas as indicações

necessárias para reconstruir as partes

desejadas de nosso passado, cuja lem-

brança atribuímos normalmente à nossa

própria memória. Ao localizar o narrador

em um contexto prático, precisamente

nas fontes do trabalho comunitário,

Walter Benjamin destaca a dimensão

utilitária da narração. ela se

d e -

senvolve

nos afazeres

domésticos, no

preparo e cultivo da

terra, no içar das velas,

no alçar das redes, no an-

corar dos barcos. então, ao

sedimentar suas recordações

individuais na experiência co-

munitária, francolino cantou a

rapsódia de poetas desconhecidos,

sem os quais seria impossível hoje

descobrir a fantástica história da ilha

de santa Catarina. eis o trabalho ela-

borativo do Cascaes prosador. n

esp

eci

al

“Quando franklin

Cascaes decide

iniciar seu trabalho,

o objetivo explícito

fora o de manter

viva uma tradição

que inevitavelmente

ruía ao compasso do

progresso.”

texto | kellyn batistela é mestre em teoria literária pela ufsC, autora da dissertação As Alegorias da Modernidade em Franklin Cascaes.

foto | divulgação agecom

Page 10: Fra nklin Ca scaes - cultura.sc.gov.br

entre a impossibilidade e a permanência, o folclore na sociedade contemporânea

10o Catarina | número 68 | 2008

o catarina | segundo a ótica antropo-

lógica, o que significa folclore?

eugênio lacerda | A palavra folk-lore

é, tipicamente, um termo importado da

língua inglesa, muito usado no século 20,

significando, originalmente, estudo, co-

nhecimento (lore) dos costumes e tradi-

ções de um povo (folk). o termo foi cria-

do pelo arqueólogo inglês William john

thoms (1803-1885), pesquisador da cultu-

ra popular européia. em 22 de agosto de

1846, ele publicou um artigo com o título

“Folk-lore”, na revista the athenaeum,

propondo a criação do termo. este dia

acabou se tornando data de referência

do surgimento do termo folclore, grada-

tivamente incorporado a todas as línguas

dos povos considerados civilizados. no

Brasil, o folclore sempre esteve asso-

ciado ao trabalho de coleta e descrição

de lendas, festas, provérbios, folguedos,

simpatias etc., pelos chamados folcloris-

tas. o mais conhecido deles foi luis da

Câmara Cascudo, que escreveu, entre

outras obras, o Dicionário Brasileiro do

Folclore. muitos antropólogos valeram-se

das coletas e narrativas dos folcloristas

para produzirem suas etnografias, nota-

damente sobre a cultura brasileira. Para

a antropologia, o material descritivo dos

folcloristas constitui um acervo etnográ-

fico valioso para a produção de estudos

e desenvolvimento de teorias sobre cul-

tura, identidade, representação, mitos e

ritos. Portanto, a antropologia considera

o folclore não propriamente uma ciên-

cia, mas uma área de pesquisa factual

extremamente útil como fonte de da-

dos etnográficos para a elaboração de

análises e tematização de problemas

acerca do comportamento humano em

sociedade. Hoje em dia, o termo fol-

clore caiu em desuso. foi substituído,

nos anos 70 e 80, pelo termo cultura(s)

popular(es). este também perdeu ex-

pressão, sendo incorporado, contempo-

raneamente e, em nível mundial, pelo

conceito de patrimônio intangível, ou

imaterial, dos povos.

OC | E tradição?

lacerda | tradição pode ser entendida

como aquele costume, prática social ou

saber que se consolidou no processo de

transmissão de geração a geração e, por

isso, alcança aceitação popular ou públi-

ca. o importante, na questão das tradi-

ções, é percebermos suas dinâmicas de

transformação e invenção, superando

certa visão romântica da história como

algo feito de fenômenos originais, essen-

ciais e, portanto, imaculados no tempo.

Cada geração lê e relê a seu modo as

tradições herdadas, a partir de novos

valores, novas influências e novas aquisi-

ções culturais. se há algo que não muda,

justamente, é o espírito do tempo, o

zeitgeist, que envolve, contextualiza e

significa nossas práticas e representa-

ções, assim como a todos nós, atores

e portadores de cultura. As tradições

só têm sentido se forem observadas do

presente em direção ao passado, e não

ao contrário.

oc | a modernidade liquidou nossas

alternativas de folclore? Esta situação

tem se agravado ou parece estável nos

últimos tempos?

lacerda | A tensão essencial da mo-

dernidade é a tensão entre o particular

e o universal, entre o local e o global.

no início dos anos 90, com o boom da

globalização, muitos analistas diziam

que as identidades primordiais, aquelas

feitas de laços e lealdades comunitários

e locais, iriam desaparecer diante do

processo avassalador de homogeneiza-

ção cultural. isto não aconteceu, e o que

se viu foi um processo generalizado de

afirmação étnica em todos os cantos do

planeta: bens culturais, línguas, estilos

genuínos ganharam espaço em um mun-

do de incrível mobilidade e conectivi-

dade, onde o diferente tornou-se fonte

de crescimento e melhoria da qualidade

de vida das populações autóctones. es-

tamos vivendo, neste momento, a exa-

cerbação destas tensões, um cenário

em que um índio do xingu, com acesso

à internet, percebe que as fronteiras da

cultura são ilimitadas e semoventes e, ao

contrário dos preservacionistas puros,

poderá sim usar essa tecnologia a favor

da continuidade do seu rico repertório

de vida, sua identidade e sua visão de

mundo ancestral.

oc | É importante preservar os ensi-

namentos e as construções populares?

de que maneira isto pode ser levado

até as crianças? A universidade e a

escola têm cumprido papel relevante

neste resgate?

lacerda | É importante preservar não

por causa do passado, mas por causa

do futuro. A memória social, tal como

a pessoal, é seletiva. dizendo de outra

maneira: há uma dialética formidável

entre a lembrança e o esquecimento no

processo de interação social. daí, dessa

luta entre o que se quer preservar e o

que se quer mudar, resultam referen-

ciais culturais permanentes que o povo

consagra e elege como seus, pelo menos

durante certo tempo de sua história. o

desafio de qualquer comunidade humana

é a sua reprodução. se você vai ver uma

festa tradicional, como a festa do divi-

no, por exemplo, e nota que ali há um

espaço democrático em que convivem

várias gerações ao mesmo tempo, pode

jade martins lenhart

Compreender as lendas do folclore é como aceitar o convite para uma festa povoada de personagens pi-

torescos e tipos carregados de esquisitices: bruxas voltadas para o mal, curandeiros dotados de segredos

capazes de modificar o corpo e a alma, luas cheias de poder, lobisomens bravos atormentando noites sem

luzes, animais disformes e cheios de mistérios, tortuosos embates entre a fé e a descrença. Conhecê-los

é saber um pouco mais da história, do passado, da tradição, da vida, e até de nós mesmos. Para guiar esta

viagem, convidamos o antropólogo eugênio Pascele lacerda, gestor de projetos culturais da fundação

Catarinense de Cultura, professor do curso de museologia do Centro universitário Barriga verde (uni-

bave), em orleans, e associado do instituto Cultura em rede e do núcleo de estudos Açorianos da ufsC.

esp

eci

al

Page 11: Fra nklin Ca scaes - cultura.sc.gov.br

entrevista | jade martins lenhart é jornalista e doutora em teoria literária.

fotos | pedro alípio 11

esp

eci

al

o Catarina | número 68 | 2008

ter certeza que aquela comunidade está

preservando seu futuro. Aqui uma ob-

servação crítica: qual tem sido o papel

da escola no processo de valorização da

cultura? vejo uma cisão desestruturante

entre o que se ensina na escola e o mun-

do da cultura. todas as lições deixadas

por Paulo Freire não foram suficientes

para provocar nos nossos gestores edu-

cacionais uma quebra dos paradigmas

oficiais do ato de educar, tão desconec-

tado da cidadania, das artes, do corpo

e da autonomia do indivíduo. o melhor

exemplo que vi nestes últimos tempos

vem de Portugal, da escola da Ponte, do

educador josé Pacheco.

oc | de que maneira o folclore cata-

rinense, bem como suas tradições,

relacionam-se às características da co-

lonização do Estado?

lacerda | santa Catarina é um esta-

do multiétnico e multilingüístico. Aqui,

a história, a cultura, a demografia e a

geografia combinaram-se para formar,

ao longo de 300 anos, um arquipélago

de etnias. temos uma notável diversida-

de de modos de vida e expressões cultu-

rais. não vemos a predominância de um

só tipo, mas a coexistência de várias et-

nias, o que confirma a diversidade como

característica da identidade catarinen-

se. A paisagem litorânea é marcada pelo

povoamento português dos séculos 17 e

18. uma cultura pesqueira desenvolvida

em moldes artesanais e industriais, alia-

da à pequena lavoura familiar e, mais

recentemente, à maricultura e à econo-

mia do turismo. temos uma arquitetura

representada nas casas térreas, fortale-

zas e pequenas capelas à beira-mar com

cruzeiro à frente. É possível brincar de

boi-de-mamão ou correr do boi bravo

enquanto esperamos um camarão ao

bafo. É possível acompanhar as festas

do divino ou de nossa senhora de nave-

gantes, em favor de graças e promessas.

À noite podem aparecer bruxas e lobi-

somens, mas não sem rezas e simpatias

de cura. são as lendas cultivadas pelos

descendentes de açorianos e madeiren-

ses. já nos vales temos outra arquite-

tura, com exemplares típicos da técnica

construtiva do enxaimel. nos vales onde

aportaram os imigrantes alemães e seus

descendentes, impressiona a qualidade

da indústria em contraste com o imenso

fluxo de bicicletas em direção às fábri-

cas. Há museus e jardins bem cuidados,

além de um ciclo de festas de grande

apelo étnico. Ainda nos vales, mais ao

sul, e mesmo na região central e oes-

te, não raro ouvem-se sonoras cantatas

e corais em língua ou dialetos italianos.

nas festas, o fervor religioso mistura-se

à alegre expansividade das famílias, ao

lado de construções em pedra que re-

cordam a conhecida habilidade dos mes-

tres italianos. no planalto, a herança do

tropeirismo nas taipas e fazendas, com

proeminente cultura campeira tipifica-

da na roda de chimarrão, no churrasco

e nas danças e músicas tradicionalistas.

Ao norte, em direção ao Paraná, polone-

ses e ucranianos, austeros, cuidadosos e

sofisticados nas artes domésticas, como

nas pêssankas, afora os lambrequins

adornando os beirais das casas e danças

graciosas como a mazurka. Há ainda a

presença austríaca em uma pequena

cidade que parece ter sido transfor-

mada em jardim. lá, temos habilidosos

artesãos no entalhe de madeiras no-

bres. Há ainda o oriente com os agri-

cultores descendentes de japoneses e

suas belas tradições ornamentais. não

se pode deixar de marcar a presença

da cultura afro-brasileira, sua plastici-

dade, terreiros, ritmos e danças como

a do cacumbi. Acrescem os gregos, sí-

rios, libaneses, russos e, finalmente,

ou primordialmente, os remanescentes

dos primeiros habitantes do território,

tupis-guarani, xokleng e kaingang, hoje

assentados em reservas e sujeitos ao

seu próprio devir histórico.

oc | de acordo com as movimentações

da sociedade contemporânea, é possí-

vel afirmar que seremos condenados

à tecnologia, sujeitos de um universo

cada vez mais distinto das cantigas po-

pulares e das histórias passadas de pai

para filho?

lacerda | não vejo uma contradição

entre desenvolvimento tecnológico e

transmissão de valores e práticas cultu-

rais. não há razão em demonizar a tec-

nologia. Ela não é um fim em si mesmo,

mas um meio que deve ser utilizado para

o nosso bem-estar. entretanto, quando

o indivíduo não dispõe de uma pauta de

valores cidadãos, uma ética solidária, se

não tiver uma consciência capaz de sele-

cionar, dentre todos os estímulos impos-

tos diariamente pela sociedade de consu-

mo, aquilo que deteriora a sua qualidade

de vida e a qualidade sócio-ambiental do

espaço urbano, estará condenado à per-

da de identidade e à desterritorialização

do seu universo cultural. Acredito que

somente o investimento educacional em

longo prazo poderá salvar os povos das

mazelas materiais e imateriais do mundo

contemporâneo.

oc | a colonização açoriana guarda

algumas características peculiares na

conformação desta tradição? Quais se-

riam elas?

lacerda | A herança cultural dos po-

voadores açorianos, quer dizer, dos

descendentes lusitanos marcados pela

cultura insular do arquipélago dos Aço-

res, caracteriza-se, no presente, por um

conjunto de tradições e certo tipo de so-

ciabilidade. em minhas pesquisas como

antropólogo concluí que três eventos são

emblemáticos na sociabilidade e na cul-

tura do açoriano-descendente em santa

Catarina: a polêmica farra-do-boi, liga-

da ao mundo da diversão, da terra, do

mato, do ócio e da ferocidade animal;

o culto-festa do Divino, relacionado ao

universo mágico-religioso, sendo tam-

bém o espaço privilegiado de execução

das promessas e dívidas de fé; e a pes-

ca artesanal da tainha, ligada ao mundo

marítimo e ao trabalho como coopera-

ção e seguridade comunitárias. O “boi”,

o “divino” e a “tainha” podem ser toma-

dos como ícones da visão de mundo do

açoriano-descendente, mundo informado

por crenças em seres fantásticos que se

metamorfoseiam, onde pontuam bruxas,

lobisomens, borboletas, maus-olhados e

bem-querências. quanto à sociabilidade

nativa, está explícita nas paróquias, vi-

zinhanças e festas rituais; na jocosidade

verbal e nas trocas de favores e ajudas.

tais são, em geral, os núcleos constitu-

tivos da sociabilidade e da cultura entre

os açoriano-descendentes do litoral de

santa Catarina.

oc | franklin cascaes foi peça chave

no resgate do folclore catarinense?

de acordo com a sua análise, qual é

o principal destaque do trabalho do

pesquisador?

lacerda | franklin Cascaes foi um fol-

clorista no sentido tradicional do termo.

mas isso é pouco para o homem versá-

til que foi: escultor, desenhista, conta-

dor de histórias, narrador, compilador,

pesquisador da cultura popular que foi

a campo sem ir à academia. ele foi um

homem pioneiro, um artista iconográfico

que deixou a todos um vasto repertório

de registros e obras de arte originais,

criadas a partir de sua própria leitura

estética do mundo ilhéu, da ilha de san-

ta Catarina. sua fertilidade está provada

na quantidade de trabalhos que artistas

novos e pesquisadores têm elaborado,

bebendo de suas fontes. n

“cada geração lê e relê a seu modo

as tradições herdadas, a partir de

novos valores, novas influências e

novas aquisições culturais.”

Page 12: Fra nklin Ca scaes - cultura.sc.gov.br

esp

eci

al o fantástico nos desenhos de franklin cascaes

trata-se, portanto, da primeira

preocupação dos estudiosos no tocante

a suas produções bidimensionais e tridi-

mensionais.

2. suporte/técnicaComo suporte da produção bidimen-

sional, usava esboços (ou rascunhos) so-

bre papeizinhos velhos e amarelados, os

quais, segundo o museólogo Gelcy Coe-

lho, constituem o elemento mais valioso

para a tentativa de compreensão de seu

processo criativo.

são, a rigor, verdadeiros ensaios grá-

ficos, obsessivos, visando à composição

dos desenhos definitivos, trasladados

com grafite ou nanquim preta (bico de

pena) para uma folha maior e de melhor

qualidade, adstritos a um atípico ponti-

lhismo, e, às vezes, ao redor (nos can-

tos), ou no rodapé, explicados mediante

textos compactos decorrentes de idéias

surgidas no momento, quando, então,

provocavam o advento de novas obras,

algumas retomadas anos após.

3. repertório temáticoo repertório é composto por temas

inerentes ao imaginário popular, fru-

to da tradição oral dos habitantes do

interior da ilha de santa Catarina (co-

munidades rurais), de origem indígena

(Carijós) e portuguesa, mormente de

influência açoriana.

os desenhos, plenos de detalhes,

com texturas nem sempre harmônicas,

às centenas, alguns inacabados, repre-

sentam, na transposição do código da

oralidade para o da visualidade, perso-

nagens e cenas (a) de bruxaria, em que a

sexualidade é reprimida pelo “atavismo

cristão”2, (b) de monstros de variegadas

espécies (boi-tatá, lobisomem, caipo-

ra, vampiro, seres terrestres, marinhos

e aéreos), além de registrar (c) festas

profanas ou sob o signo da religiosidade,

(d) jogos infantis e tipos populares, sem

esquecer, o obcecado pesquisador, (e) a

típica arquitetura colonial, as atividades

relativas ao (f) exercício da pesca (com

as redes, bóias, cordas, catutos), (g) o

cultivo da mandioca (agricultura artesa-

nal), (h) o ambiente físico (pondo relevo

nas pedras de insinuação orgânica), e,

inclusive, entre outras, (i) preocupa-

ções de ordem política (bomba atômica,

guerra fria, lutas feministas, campanhas

eleitorais etc.), para demonstrar o vín-

culo ao real, não obstante as fantasias

também emergidas ao tratá-las.

temas que, diga-se de passagem,

realçando o Bestiário, fundados em

costumes, crenças e superstições, cor-

respondem a estórias recontadas. daí o

caráter/conteúdo narrativo neles, nos

contos e versos, divulgando a tradição

oral sob duplo enfoque: o visual e o da

escritura. Aliás, para melhor compreen-

dê-los, necessária é a justaposição ana-

lítica desses dois discursos complemen-

tares de sua poética.

Assim, sem colocar à margem sua es-

pecificidade, no plano do conjunto das

características formais, os desenhos,

sob pena de reducionismo estético, não

devem ser examinados de modo autôno-

mo, isto é, sem remetê-los à linguagem

da prosa e da poesia, conquanto aquela

seja permeada de erros gramaticais, e

esta de versos de extração ingênua.

4. reinos mescladosConsta3 que Cascaes não acreditava

nas descrições dos moradores da região,

“pessoas analfabetas ou semi-alfabe-

tizadas de meados do século xix”4, se,

para ele, fantásticas são as coisas e as

criaturas, resultantes do medo das famí-

lias isoladas, à época, mas não o homem

enquanto tal, integrante da realidade fí-

sica circundante.

Acredito nisso. o artista não se li-

mitava a transcrever, ou visualizar,

pÉricles prade

1. vida e obraPondero, de início, que, se “o ar-

tista é origem da obra, assim como a

obra é origem do artista”1, não se pode

analisar o vasto acervo dos desenhos de

franklin Cascaes sem o prévio conheci-

mento de sua vida.

quer-se dizer, por

óbvio, que a obra e

o autor são indis-

sociáveis, pois,

como alertou

o filósofo ale-

mão, nenhum

dos dois se

sustenta isola-

damente.

Enfim, sem conhecer a

biografia de Cascaes, com ênfa-

se no passado, desde a época

em que brincava na Praia de

itaguaçu, onde nasceu, ou

seja, in illo tempore, qual-

quer exegese pecará pela

base.

12o Catarina | número 68 | 2008

Page 13: Fra nklin Ca scaes - cultura.sc.gov.br

13

esp

eci

al

o Catarina | número 68 | 2008

d) o Alegorismo, dado que o artista

pretende, talvez até de forma incons-

ciente, encartar “um significado oculto

nos temas eleitos”10, a par do fato de a

mitologia de lastro cristão e seus símbo-

los estarem presentes;

e) o medievalismo, ancorado na in-

tegridade, espiritualidade, pureza ima-

ginativa e sinceridade artística na reve-

lação do mundo imaginário, contando

estórias;

f) o Simbolismo, de perfil esotérico,

explorando, pela intuição, os lados do

mistério, do desconhecido e do indizível,

através do uso de formas simplificadas na

disposição espacial, e contornadas pela

cor preta (no contraponto luz e sombra);

g) o naïf, em virtude da falta de do-

mínio técnico, constatável na ausência

da perspectiva, prevalecendo a emoção

intuitiva, a força expressiva, e que não

se confunde com o primitivismo de Gau-

gin, nolde ou Picasso;

h) o Surrealismo pictórico, ao “ex-

plorar o outro lado da razão, isto é, o

sonho, o maravilhoso, a loucura, os es-

tados alucinatórios”11 daqueles que des-

creviam o estupor diante das visões no

interior da nossa ilha.

6. presença do fantásticoEntretanto, toda essa confluência

estilística, no fundo, presta obséquio ao

universo do fantástico, cujo espectro,

maior do que se supõe, reside, origina-

riamente, na idade média gótica, proje-

tando, até hoje, suas forças pelos “en-

cantamentos” de seus “prodígios”12.

A afirmação é verdadeira, já que

se pode “apreciar a presença fantás-

tica em todas as épocas e disciplinas

artísticas”13, sem ter características tí-

picas de escola ou Corrente.

Assim é, se não se pode desmerecer

o pensamento segundo o qual “o gênero

as histórias verbalizadas. recriava-as,

quase sempre, embutindo, em espe-

cial nos desenhos, novos dados, tam-

bém fantásticos, a partir dos modelos

tradicionais, mesmo porque, como ele

mesmo dizia, as pessoas contavam de

forma diferente as assombrações (fe-

nômenos naturais), que imaginavam

ver no lusco-fusco ou à noite.

os seres que infestam o seu arquetí-

pico imaginário, mais voadores e menos

terrestres e marinhos, sem desprezar o

artista os elementos primordiais da na-

tureza, unem, em sua concepção, em

regime de mágica unção, o tempo e o

espaço, instaurando atemporalidade,

porque se está diante de algo não ex-

plicado pelo senso comum. o visível e o

invisível, desse modo, entremostram-se

na representação conjugada do natural

e do sobrenatural.

eis que de repente, não mais que de

repente, surgem “reinos mesclados”5,

onde as formas são compostas pela mis-

tura deles, sem haver barreira radical,

separando-os. este hibridismo, em Cas-

caes, ao considerar os reinos da natureza

como mera convenção, fundindo entes

animados e inanimados, lembra imagens

do universo de monstros e maravilhas

sediados nos fins da Idade Média. Sim,

porque “o monstro é um objeto essen-

cialmente visual”6.

5. Estilos: confluênciafeitas estas considerações, cabe as-

sinalar que o estilo de franklin Cascaes,

nos desenhos, revela confluência de vá-

rias vertentes. Compreende:

a) o Grotesco, como “estrutura de

um mundo alheado”7, de linhagem mais

bruegheliana e menos boschiana, sem

ser bizarro, no caso, mas de expressão

romântica, privilegiando temas medie-

vais, com atitude criadora no sentido

do onírico;

b) o maneirismo, caracterizado pela

contorção, distorção, deformação e

ambigüidade, embalado pela “relativi-

dade das coisas e do espaço”8, em que

as formas e figuras alongadas, sinuosas,

convulsivas, sofisticadas, revelando vir-

tuosidade e procura de efeito, lembram

a serpentinata, quando se manifesta “o

desejo ainda infantil de relativizar os

objetos”9, como ocorria no auto-retrato

de Parmigianino;

c) o Barroco, por estarem à deriva

das proporções clássicas, valorizando

mais a unidade do desenho e seu efeito,

arte dominada pelo movimento, e pelo

excesso, enfatizando o preciosismo na

elaboração, com a finalidade de, pela

ilusão, transformar a realidade;

texto | péricles prade é advogado e presidente do Conselho estadual de Cultura.

fantástico tem um caráter alusivo, é di-

zer, refere-se a algo alheio à sua própria

natureza”14.

Gênero fantástico, ressalte-se, de

cunho ostensivamente mitológico, numa

obra aberta, reveladora de apropria-

ção de mitos universais, “adaptados

ao contexto histórico em que o artista

viveu”15, até porque “existiu uma rica

tradição mítica entre o povo ilhéu”16,

cuja recriação, por meio de desenhos

exemplares, propiciou o renascimen-

to de uma mitologia de estranhamento

local, e também pessoal, desvinculada

de seu criador, depois, por força das

metamorfoses imantadas pela memória

coletiva. n

1 HeideGGer, martin. A Origem da Obra de Arte. lisboa: edições 70, 2007, p. 11.

2 neves filHo, joão otávio. mitos açorianos na arte Catarinense. Florianópolis: Jornal “Ô Catarina”, 1996, p. 25.

3 esPAdA, Heloisa. Na Cauda do Boi-tatá. florianópolis: Publicações fundação franklin Cascaes, 1996, p. 25.

4 CAruso, raimundo. Franklin Cascaes (Vida e Arte) e a Colonização açoriana. florianópolis: ed. ufsC, 1981, p. 51.

5 FURLAN, Oswaldo Antônio. “O texto: seu estabelecimento, traços dialetais e glossário”. in CAsCAes, franklin. O Fantástico na Ilha de Santa Catarina. florianópolis: ed. ufsC, 5a ed., 2005, p. 7.

6 KAPPler, Claude. monstruos, Demonios y maravilhas a fines de la Edad Media. madrid: Akal, 1986, p. 154 e 162.

7 KAPPler, Claude. monstruos, Demonios y maravilhas a fines de la Edad Media. madrid: Akal, 1986, p. 13.

8 KAyser, Wolfgang. O Grotesco. são Paulo: Perspectiva, 1957, p. 15.

9 HoCKe, Gustav r. maneirismo: o mundo como labirinto. são Paulo: Perspectiva, 1974, p. 49.

10 little, stephen. ...ismos Entender a arte. londres (ed. Portuguesa): lisma, 2007, p. 46.

11 FABRIS, Annateresa. “O Surrealismo Pictórico: a Alquimia da imagem”. in GuinsBurG, j.; leiner, sheila (org.). O Surrealismo. são Paulo: Perspectiva, 2008, p. 477.

12 BAltrusÄitis, jurgis. la Edad media Fantastica. madrid: Catedra, 1994, p. 278.

13 sCHuriAn, Walter. arte Fantastica. madrid: taschen, 2005, p. 7.

14 vAx, louis. arte y literatura Fantasticas. Buenos Aires: eudeba, 1965, p. 36.

15 esPAdA, Heloisa. Na Cauda do Boi-tatá. florianópolis: Publicações fundação franklin Cascaes, 1996, p. 30.

16 ArAújo, Adalice maria de. Mito e Magia na Arte Catarinense. florianópolis: ioesc; 1979, p. 83.

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sob o domínio atento das mãos e dos dedosvanilde rohling ghizoni

A coleção escultórica de franklin

joaquim Cascaes diferencia-se, entre

outros aspectos, pela fragilidade do ma-

terial utilizado como suporte da maioria

das peças: argila não cozida e gesso. A

maneira como o artista utilizou a argila,

porém, afasta-se daquela comumente

trabalhada pelos ceramistas: em sua co-

leção, o material jamais foi submetido à

queima, condição obrigatória para clas-

sificação de uma cerâmica.

de acordo com o teórico Claude

Vittel, a cerâmica é um “conjunto de

produtos à base de argila e de caulin,

transformados pela ação do fogo”. já

por escultura entendemos “a arte e a

técnica de plasmar a matéria esculpindo

a madeira, modelando o barro, cinze-

lando a pedra ou o mármore, fundindo

e metal [...] a fim de representar em

relevo, ou em três dimensões estátuas,

figuras e formas abstratas”.

Cascaes empregou o gesso e a argila

como matéria final na produção de suas

peças. Grandes mestres, como o escul-

tor francês Auguste rodin (1840-1917),

empregavam a argila como meio tran-

sitório para elaboração dos modelos,

confeccionando-os depois em fôrmas-

moldes em gesso. nesses moldes de ges-

so, a peça era fundida em metal, como

o bronze. A argila também proporciona-

va a realização de estudos escultóricos,

antecessores da produção da peça em

outro material, como o mármore.

nas esculturas de Cascaes, cada con-

junto representa um episódio cenográ-

fico, projetando relação de interdepen-

dência entre as diferentes figuras. Na

Procissão do senhor jesus dos Passos,

por exemplo, cada figura é uma per-

sonagem da procissão, dona de função

específica e interligada à mesma ação.

A relação entre as figuras é enfatizada,

ainda, pelo modo como o artista ela-

borou suas peças, dando unidade na

forma e na homogeneidade da cor, em

sua apresentação estética. no caderno

de número 60, que compõe o acervo

do museu universitário, o artista

resume esta interdependência:

“Cada Conjunto representa um

livro e cada figura uma página.

Portanto, se vender uma figura

arrancarei uma página do livro, e

um livro com falta de uma pági-

na, apresentar-se-á trincado.”

se determos o olhar sobre

sua coleção de peças, cons-

tatamos que a unidade es-

tabelecida pelo conjunto se

desfaz, já que cada figura apresen-

ta uma riqueza exclusiva de detalhes,

revelados na expressão do rosto e dos

movimentos, tornando-a única. median-

te a modelagem, a escultura nasce das

mãos do artista, e vai aos poucos dando-

lhe corpo. Pouco a pouco surge uma for-

ma indefinida, para depois aparecerem

os detalhes, os lábios, o traço dos olhos,

os sulcos dos cabelos e finalmente o ros-

to adquire vida. A obra está criada.

Ao pensarmos nas esculturas de

franklin Cascaes, logo recordamos suas

exposições, apreciadas ao longo dos

anos nas salas de exposição do museu

universitário Professor oswaldo rodri-

gues Cabral, no campus da universidade

federal de santa Catarina. A totalidade

do acervo encontra-se em reserva téc-

nica. Atualmente o museu está em fase

final da construção do pavilhão de ex-

posição, o que explica as apresentações

fora das instalações do museu. n

texto | vanilde rohling ghizoni é conservadora-restauradora de obras de arte.

fotos | divulgação agecom

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sempre foi crença do povo hospi-

taleiro desta ilha dos famosos bois de

mamão que, na sexta-feira santa, não

se deve tomar instrumentos de trabalho

para usá-los, seja qual finalidade for.

É também costume tradicional deste

povo, descendente de colonos açoria-

nos, que, na sexta-feira santa, a par-

tir de zero hora, devem banhar-se nas

ondas do mar, levando consigo animais

domésticos, para purificarem-se e pro-

tegerem-se de todos os males do copo

físico e espiritual.

As águas colhidas nesta hora servem

para todo o tipo de cura.

É a fé, longínqua dos tempos, aliada

à superstição, ao medo e ao amor pela

conservação do corpo físico, na cura dos

males que atacam o homem em franca vi-

vência espiritual e física com o seu deus.

As forças atuantes de práticas religio-

sas freiam os instintos animalescos do ho-

mem, encaminhando-o, espiritualmente,

para viver com bons modos junto com o

seu deus, com a cultura, na sociedade e

conseqüentemente com o seu próximo.

entrementes, sempre aparecem nos

meandros desses cenários fantásticos,

e outros moderados, pessoas que se

arrojam contra os poderes divinos, mal-

tratando esses conjuntos de sociedades

freadoras, veículos insubstituíveis de

abrandamento dos sofrimentos que mar-

tirizam e açoitam a criatura humana.

um caso de desrespeito espiritual

aconteceu há muitos anos passados, lá

pras bandas do sul da ilha de santa

Catarina.

A maria vivina, moradora da Praia dos

naufragados, fez uma aposta com a Carri-

ça, de que, na sexta-feira santa daquele

ano, ela tomaria uma vassoura e com a

mesma, varreria o quintal de sua casa e,

certeza tinha, nada lhe aconteceria de

extraordinário. Apostaram um par de ta-

mancos contra uma botina. E firmaram a

promessa da aposta, casando-a.

na sexta-feira santa daquele ano,

de manhã cedo, ela chamou a Carriça,

apanhou uma vassoura e foi varrer o

quinta “prá-mode” mostrar a sua cora-

gem contra o poder da fé guardada por

seus ancestrais e também para cumprir

a promessa da aposta.

quando a vivina deu a primeira

varredela, a vassoura soltou-se de

suas mãos quiném um relâmpago,

metamorfoseou-se em bruxa, ganhou

altura sobre o morro do ribeirão da

ilha e desapareceu, num repente, no

espaço sideral das alturas incomensu-

ráveis da quiméria.

A maria vivina caiu de joelhos no

terreiro, rezou e pediu perdão aos

céus pelo ato impensado que havia

cometido contra as ordens divinas,

chorando copiosamente. A Carriça

abraçou-se com ela e ambas choraram

e sentiram o amargo do néctar da de-

sobediência humana.

nenhuma das duas era bruxa, por-

que a vassoura, que é um instrumento

de montaria de bruxas, foi embora, via-

jar pelo espaço sideral, sozinha.

oh! minha querida ilha de santa Ca-

tarina de Alexandria, és a graciosa se-

reia que repousa sobre brancas areias de

cômoros errantes, sambaquis seculares,

banhada pelas ondas acasteladas do

oceano, perfumada pela brisa acarician-

te dos ventos e enxuta com as toalhas

felpudas dos raios solares que beijam ca-

lorosamente seu corpo mitológico.

franklin cascaes, 1946.

livro: O Fantástico na Ilha

de Santa Catarina, franklin

Cascaes, editora da ufsC.

vassoura bruxólica

“É, neste mundo de deus, há muitos mistérios

e esta gente simples aqui da ilha vive estas coisas

quase como uma realidade. meus lobisomens,

bruxas, demônios e boitatás existem.”

Fra nk l i n Ca s ca e s

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