O C atarina FUNDAÇÃO CATARINENSE DE CULTURA | NÚMERO 68 | 2008 ESPECIAL A autoria centenária de Pesquisador do folclore ilhéu e artista de múltiplos suportes, catarinense construiu uma voz capaz de continuar ecoando na sociedade contemporânea Franklin Cascaes
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O Catarinaf u n daç ão c ata r i n e n s e d e c u lt u r a | n ú m e r o 6 8 | 2 0 0 8
e spec i a l
A autoria centenária de
Pesquisador do folclore ilhéu e artista de múltiplos suportes, catarinense construiu uma voz capaz de continuar ecoando na sociedade contemporânea
Fra nkl in Ca sca e s
Presidente | Anita Piresdiretor AdministrAtivo | Armando CostadiretorA de difusão ArtístiCA | mary GarciadiretorA de PAtrimônio CulturAl | simone HargerAssessorA de ComuniCAção | deluana BussConsultor de Projetos esPeCiAis | ray Borges martinsConsultorA jurídiCA | juliana CaonGerente de AdministrAção, finAnçAs e ContABilidAde | nelson lealGerente oPerACionAl | domingos GuedinGerente de loGístiCA e eventos | soraya fóes Bianchini
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| marita Balbi
editorA| deluana Buss (jP/sC 01009)editorA Assistente| jade martins lenhartCoordenAdorA| mary GarciaConselHo editoriAl | jayro schmidt, joão evangelista, mary Garcia, jade martins lenhart, Péricles Prade e onor filomeno
PlAnejAmento GrÁfiCo e Arte | Ayrton CruzimPressão | Imprensa Oficial do Estado de santa Catarina (ioesc)tirAGem | 10 mil exemplares
distribuição gratuita
publicação da fundação catarinense de culturaAPoio |
escultor, desenhista, Franklin Cascaes foi vários, e todos ao mesmo tempo. autor de trajetória sincrética, com atuação em múltiplas fronteiras da cultura catarinense, abraçando cada desdobramento com convicção, construiu-se como sujeito com o mesmo ímpeto com que revelou e consolidou a identidade do Estado, enfatizan-do os pormenores da cultura açoriana. Sua colaboração, valiosa, precisa, firme, permitiu o desvelamento e o resgate de causos, gentes e lendas engolidos pelo asfalto selvagem da modernidade. Abastecido do bloquinho de folhas gastas, e com o ouvido sempre atento aos contos alheios, Francolino, apelido nas vilas onde cos-tumava se perder entre dados já quase gastos pelo tempo, deixou à Ilha de Santa Catarina um legado da importância do seu amor e respeito: sua literatura, faminta em denunciar a forma da fala local, em todas as escolhas e modulações; suas pesquisas exaus-tivas, coletadas em diálogos de frente para o mar ou em noites de lua cheia; suas esculturas minuciosas, recriando formas e en-cantos típicos da cultura açoriana, já quase perdidos na névoa do contemporâneo. Mais do que relatar, recriar, repassar, Franklin Cascaes ajudou a nos construir.
É com muita felicidade que apresentamos a primeira edição especial do jornal o Catarina, a estréia de uma série que preten-demos lançar ao longo do próximo ano. O suplemento homenageia o centenário de nascimento do nosso plural e rico homem, nascido em Itaguaçu, logo após o bairro de Coqueiros, quando a região ainda pertencia ao município de São José, e não a Florianópolis. Para homenagear a pluralidade da personagem com a consistência merecida, convidamos um grupo de especialistas para discorrer sobre algumas das mais ousadas facetas do pesquisador. A separa-ção por atuação, então, objetivou justamente acentuar tal diver-sidade: demarcar o posicionamento oceânico de Franklin Cascaes para a solidificação da nossa identidade cultural. O objetivo aqui é revelar os arredores das andanças do catarinense, expandindo seus limites, geográficos e temáticos, assinalando suas escolhas, difíceis e corajosas.
Na primeira matéria, de Emerson Gasperin, um perfil com a tra-jetória biográfica e as curiosidades da vida do escritor, que mor-reu lutando pela preservação da nossa cultura. O texto seguinte, da historiadora Aline Carmes Krüger, narra o detalhista ofício de pesquisador, envolvido com a coleta e narrativa das lendas e tradi-ções que ajudaram a nos transformar naquilo que somos hoje. Na
seqüência, a professora Kellyn Batistela discor-re sobre Franklin Cascaes — o escri-tor, aquele que, sentado à frente de uma resma de papel, de-batia-se para c o n s e g u i r transformar em literatu-ra os causos ouvidos em andanças sem fim pelas comunidades. Para finali-zar a primeira metade da edição, o Catari-na apresenta uma entrevista com o antropólo-go Eugênio Lacerda, vislumbrada a partir de uma dúvida que explica nosso empenho na elaboração deste especial: o mundo contemporâneo ainda consegue abarcar a multiplicidade do folclore e da tradição?
Dando continuidade à priorização do caráter plural da trajetória do folclorista, o texto de Pé-ricles Prade, presidente do Conselho Estadual de Cul-tura, discorre sobre os contornos exclusivos das gravuras de Franklin Cascaes. Em seguida, a conservadora-restauradora Va-nilde Rohling Ghizoni comenta sua produção artística, agora nas artes plásticas. o Catarina especial franklin Cascaes ainda traz à tona uma resenha literária elaborada pela professora Tânia Re-gina de Oliveira Ramos, doutora em Teoria Literária, sobre o li-vro 13 Cascaes, compilação de contos com base na obra do autor, organizada pelos escritores Salim Miguel e Flávio José Cardozo, além de um texto do próprio Franklin Cascaes, pequena amostra do talento multifacetado do catarinense.
Esperamos agradá-los com este primeiro especial: relembrar o centenário de Franklin Cascaes é apenas o nosso primeiro passo no resgate de personagens e cenas que marcaram e continuam mar-cando a história de Santa Catarina. Boa leitura! n
2
ed
ito
rial
o Catarina | número 68 | 2008
tânia regina oliveira ramos
os artistas que permanecem são
aqueles autores de obras acompa-
nhadas por grandes sistemas estéti-
cos. A cultura produzida na ilha de
santa Catarina possui algumas mar-
cas e alguns marcos. Hoje eu não
temo dizer que há uma literatura
antes e depois de 13 Cascaes1, uma
antologia que reúne treze leitores
de franklin Cascaes, em treze nar-
rativas que, evitando o naturalismo,
o puro simulacro da realidade que
não se repete, criam uma seqüência
de histórias fantasmais, aventuras
da mente, no que estas cinco letras
— mente — têm de carga semânti-
ca. Cérebro, sufixo de advérbios de
modo e terceira pessoa do singular
do verbo mentir. Assim cada mente,
dos treze convidados para este revi-
val de Cascaes, mente verdadeira e
poeticamente2.
A epígrafe do ensaio faz uma ho-
menagem a estes falsos mentirosos3,
arrolados alfabeticamente: Adolfo
Boos junior, Amilcar neves, eglê ma-
lheiros, fábio Brüggemann, flávio
josé Cardozo, jair francisco Hamms,
júlio de queiroz, maria de lourdes
Krieger, olsen junior, Péricles Pra-
de, raul Caldas filho, salim miguel
e silveira de souza. numa mistura
de memórias de leituras e memó-
rias ficcionais, onde o fantástico é
sempre evocado, somos encantados
pelas histórias contadas por autoras
e autores, especialmente porque em
cada narrativa há uma presença ou
uma essência de franklin Cascaes
como um fantasma que, sem cair
no fetichismo da tradição, assom-
bra a cultura moderna. daí a cum-
plicidade dos autores às genealogias
(talvez a primeira e última carta);
aos lugares próximos e distantes (O
presépio; Uma noite de profunda
insônia solitária); aos espaços míti-
cos e místicos (O “Minha Querida”;
O Abençoado; Mistério no Miramar);
ao tempo transgressor (Dois bando-
lins; O diário da virgem desapareci-
da); ao humanismo (Branco assim da
cor da lua; O folheto); às referências
reais ou simbólicas em histórias mes-
cladas de verdade e de poesia (His-
tória praiana; ao entardecer; Noites
de encantamento), que conseguem
elaborar um universo rico em con-
tradições, especialmente porque
todos os enredos passam pelo poder
da linguagem, da palavra contada,
da história inventada, e não apenas
pela preocupação teórica da veros-
similhança.
o fascínio da alteridade — des-
te outro inexplicável — é uma das
marcas das narrativas fantásticas.
outras dimensões, outros mundos
narrados, as ilustrações de tércio da
Gama, o prefácio, as notas do editor,
os créditos estatais, que remetem
e dialogam com os traços e com os
desenhos bruxólicos de franklin Cas-
caes, não desglamourizam a fantasia
das letras e das palavras. Pelo con-
trário. servem como complemento e
suplemento. Complemento que Gel-
ci josé Coelho, o Peninha, é no li-
vro com seu depoimento factual, de
quem conviveu e viveu com franklin
Cascaes. suplemento na invocação
feita por dennis radünz, numa lei-
tura auricular, profunda, pontual,
do significado deste que “não é ape-
nas um livro, mas treze lugares da
linguagem”. Complemento e suple-
mento obtidos pela organização e
apresentação destes dois escritores,
leitores sempre, flávio josé Cardozo
e salim miguel.
denise de Castro, em sua boni-
ta canção-homenagem, diz que “a
festa hoje é pra Cascaes”.4 no re-
frão ela alegremente canta que na
freguesia do Ribeirão “é vento, é
fogo, é caldeirão; eu vi passean-
do na clareira, uma misteriosa
reunião”. Poderíamos dizer que
era essa misteriosa reunião de
cascaes. na festa do livro que
agora li entraram cabalistica-
mente “treze cascaes”. Mas
se “passam no ar vassouras
voadoras, que dão gargalha-
das pelo ar”; aproveitando
a “lua cheia; em coro”
começando “a cantar”5,
não haverá mistérios se
daqui a pouco encon-
trarmos mais cascaes
continuando a contar.
Porque, como sabe-
mos, temos muitos fal-
sos mentirosos. logo,
verdadeiros. simples-
mente cascaes. n
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simplesmente cascaes
texto | tânia regina oliveira ramos professora da ufsC, atualmente coordena o Programa de Pós-Graduação em literatura.
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1 13 CAsCAes. flávio josé Cardozo e salim miguel (org.). ilustrações de tércio da Gama e franklin Cascaes. florianópolis: fundação franklin Cascaes, 2008.
2 Affonso romano de sant’Anna em 1980 faz um jogo poético com este sufixo em um instigante poema político, chamado “Implosão da Mentira”.
3 silviano santiago, em 2004, lançou um romance intitulado “Falso Mentiroso”, que coloca em xeque exatamente os limites entre real e ficção num jogo de máscaras e de referências.
4 Para ouvir a canção recomendo o blog www.carosouvintes.org.br/blog/?p=370. Acesso em 02 de novembro de 2008.
5 Festa pra Cascaes é interpretado também pela cantora ive luna no Cd a ser lançado em breve: Narrativas de Catarina.
“eu ouvi muitas
histórias, também, de
mentirosos, e aprendi
a ser mentiroso.”
Fra nk l i n Ca s ca e s
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causos e lendas do universo do feiticeiro de itaguaçu
emerson gasperin
florianópolis, ilha da magia. o apelo aparece em reporta-
gens, folhetos promocionais e campanhas publicitárias para
exaltar as belezas naturais e a qualidade de vida de “um lugar
aonde quem vem uma vez apaixona-se e logo quer voltar”,
inclusive para morar. mais do que apenas marketing para en-
cantar turistas, porém, sua origem está na cultura popular da
cidade, repleta de causos sobre bruxas, crendices e simpatias
— relatos passados de geração a geração que ninguém soube
valorizar, ouvir e registrar como franklin Cascaes.
no ano que marca o centenário do professor, pesquisa-
dor, folclorista, gravurista e escritor, deve-se ao seu traba-
lho o que restou dessas “crenças espirituais fantásticas que
dão vidas simbólicas fictícias a seres invisíveis”. A fúria do
progresso, cujas conseqüências como poluição, descarac-
terização e especulação imobiliária ele denunciou até sua
morte, fez com que a Política (“uma madame manhosa”)
invariavelmente levasse a melhor sobre a madame tradição
(“um monumento de beleza que o homem errante, habitan-
te do globo terráqueo, guarda carinhosamente nos baús do
seu pensamento e, na maioria das vezes, oralmente, ofe-
recendo aos descendentes, imortalizando-a”). sobraram a
“beleza incomparável” da Ilha de Santa Catarina, enalte-
cida em toda a sua obra, e uma trajetória pessoal que a
Madame História, “na sua sutil e nobre sabedoria secular”,
certamente abençoaria.
Cascaes nasceu em 1908 no bairro itaguaçu (parte conti-
nental de florianópolis), à época pertencente ao município
de são josé. desde cedo, ajudava os pais em tarefas liga-
das ao cotidiano da comunidade, como fazer balaios, armar
cercas de bambu, tecer tarrafas e cordas de cipó, moldar
peças de argila e trabalhar no engenho de farinha. entre
uma tarefa e outra, era exposto às lendas contadas pelos
pescadores e agricultores a respeito de seres mitológicos,
seus estranhos poderes e suas ocorrências no interior da
ilha, despertando seu interesse pelo assunto que exploraria
nas décadas seguintes.
fotomontAGem Ayrton Cruz
5
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o talento para retratar o que escutava — no papel, no
barro ou na pedra — o levou a lecionar na escola de Apren-
dizes e Artífices de Santa Catarina (atual Centro Federal de
educação tecnológica — Cefet), a convite do diretor da ins-
tituição, o professor Cid rocha Amaral. durante cerca de 40
anos, Cascaes ensinaria desenho, escultura, modelagem e
trabalhos manuais, construindo uma carreira que vem sendo
estudada pela aluna denise Araújo meira em sua dissertação
de mestrado em educação pela universidade do estado de
santa Catarina (udesc).
foi nas dependências da escola que, em 1946, o pro-
fessor começou a aprofundar seu mergulho pelos costumes,
práticas e conhecimentos dos descendentes dos açorianos
que colonizaram florianópolis. na época, a provinciana ca-
pital aderia incondicionalmente ao desenvolvimento urbano,
abrindo mão do passado em prol de um estilo de vida trazido
dos grandes centros. Aos 38 anos, talvez prevendo que, se
as mudanças continuassem naquele ritmo, pouco da cidade
que ele aprendeu a amar chegaria intacta aos netos e bisne-
tos dos pioneiros, Cascaes trilhava a direção contrária.
Às suas próprias custas, passou a coletar antigas histó-
rias, que tratava de eternizar em alguma das muitas artes
que dominava. Havia virado artista, então? sim, mas não
com essa intenção. mesmo se quisesse, não poderia aban-
donar o magistério: “Não dá para viver de arte, o artista é
sempre pobre, visto como um malandro”, dizia. em vez de
lamentar a falta de apoio, embrenhava-se pelo interior da
ilha, onde se sentia mais à vontade com as manias e o lingua-
jar peculiar dos manezinhos — traduzidos com fidelidade em
seus escritos — do que com a última novidade tecnológica
incensada pelos “almofadinhas” da cidade.
Graças ao que o clichê acadêmico convencionou cha-
mar de “resgate” perpetrado por Cascaes, veio à tona todo
um universo imaginário condenado ao desaparecimento em
nome da modernidade. Como, por exemplo, as diferenças
entre bruxas e feiticeiras. Conforme a explicação de nico-
lau, a Sulpício do Quintino, as primeiras são “muhié malina
que nascero cá sina, somente, pra podê fazê o máli (Con-
gresso Bruxólico). em outra passagem (Balanço Bruxólico),
Cumpadre zeferino as descreve ao Cumpadre manuéli como
“canahias desavergonhadas (...), não é a toa que no céu da
boca delas nasce um dente canino.”
os manezinhos tinham suas razões para temer e odiar
as tais bruxas: elas roubavam embarcações, davam nós nas
crinas e nos rabos dos cavalos (isso quando não os faziam ga-
lopar pelos ares!), “inticavam” com as pessoas mais velhas,
chupavam sangue das criancinhas e aprontavam mil e umas
“malas-arte”. Já as feiticeiras eram “as muhié que só pri-
curo fazê o bem prôs sôs próximo”, continua nicolau. nessa
categoria entram as curandeiras e benzedeiras como sinhá
Marculina do Joronço. Ao examinar Zeferino, que “não tugia
nem mugia”, “desmaiado e sem fala, que nem um boneco de
cera virgem”, ela diagnosticou o caso como “empresamento
por vingança bruxólica cipoadamente balanceira”.
As ilustrações acentuam o caráter sobrenatural dessas
narrativas. inspirado por ossos de peixes, garras, escamas
e demais elementos do mar, o artista forjava bruxas cada-
véricas e pontudas. no livro Franklin Cascaes: Uma Cultura
em transe (editora insular), o autor evandro André de sousa
observa que, mais tarde, essas criaturas aparecem relacio-
nadas ao “asfalto, à eletrificação, à construção de prédios
no lugar dos antigos casarios coloniais, aos avanços tecno-
lógicos como a ida do homem à lua, a popularização da
televisão, a construção da segunda ponte e a intensificação
do turismo” — situações que assustavam Cascaes mais do
que qualquer praga rogada por uma mulher “enganadeira
dos marido com os próprios cumpadres”.
Antes de a preocupação com o meio ambiente trans-
formar-se em retórica onipresente em qualquer segmento
“inteligente” da sociedade, ele já atacava o descaso com
a natureza. “Que fazem os homens responsáveis pela fau-
na e pela flora? Nada, é tudo conversa fiada”, indignava-se
contra aqueles “que têm a distinta obrigação social, técni-
ca-ambiental de protegê-las contra a ganância desenfreada
de ricos depredadores”. E lamentava: “Que pena, ó minha
mui querida ilha de nossa senhora do desterro! o homem
que vive este século está obcecado pelo deus inferior que o
está conduzindo por caminhos tão tortuosos que me fogem
à imaginação, para poder comentar a direção certa da sua
desaconselhável caminhada.”
Cascaes não viveu para ver alguns de seus piores temo-
res confirmados, como o aterramento de mangues para sedi-
mentar empreendimentos comerciais, as “favelas de ricos”
(como se referia aos prédios de apartamentos) alterando
radicalmente a paisagem da cidade e ruas sendo duplicadas
para dar vazão ao trânsito crescente. sua morte, em 1983, o
impediu também de presenciar histórias que desafiam a ló-
gica muito mais do que aquelas recolhidas em suas andanças
pelos recônditos da ilha. só que, desta vez, protagonizadas
por gente letrada, urbana e vivíssima. Até demais. n
“Que pena, ó minha mui querida
ilha de nossa senhora do desterro!
o homem que vive este século
está obcecado pelo deus inferior
que o está conduzindo por
caminhos tão tortuosos que me
fogem à imaginação, para poder
comentar a direção certa da sua
desaconselhável caminhada”.
texto | emerson gasperin é jornalista.
Fran
klin C
ascae
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6o Catarina | número 68 | 2008
aline carmes krüger
A Coleção Professora elizabeth Pa-
van Cascaes, nome dado ao conjunto
de obras do artista franklin joaquim
Cascaes, é composta de esculturas em
argila crua e gesso, desenhos a bico de
pena e grafite, e manuscritos. A prin-
cipal característica da obra de Cascaes
é sua ligação profunda com as fontes
populares; seu trabalho registrou o jei-
to de ser, agir e pensar dos moradores
da ilha de santa Catarina e arredores.
em suas pesquisas folclóricas nas co-
munidades no interior da ilha, coletou
dados da tradição local, construindo e
organizando o tempo e o espaço da sua
memória oral e visual.
As manifestações folclóricas são
dinâmicas e se renovam pela incorpo-
ração de novos elementos dos grupos:
transformam-se, ampliam-se, adaptam-
se. entende-se por folclorista a pessoa
que exerce como atividade de trabalho
a investigação das tradições populares.
Cascaes, como pesquisador, sempre es-
teve interessado em registrar e preser-
var a cultura das comunidades, princi-
palmente as do interior da ilha de santa
Catarina. em seu Caderno 74, expõe:
“possuo um grande acervo de obras em
letras, esculturas, desenhos e trabalhos
manuais, documentando vários assuntos
ou motivos folclóricos, material sempre
recolhido na fonte original [...] o meu
interesse é ajudar a recolher, divulgar e
guardar as tradições desta ilha de santa
Catarina e seus arredores. faço desinte-
ressadamente, e a apresento também,
imortalizando-o na força espiritual que
as artes plásticas exercem sobre as na-
ções para documentarem a raiz histórica
das suas culturas tradicionais dentro dos
tempos e que hoje avançam acelerada
para o futuro tecnológico moderno”.
o folclore é o retrato vivo dos sen-
timentos populares. o registro etno-
gráfico feito por Franklin Cascaes até o
ano de 1983 reflete a formação de uma
identidade através da oralidade, dos co-
nhecimentos tradicionais, dos saberes e
dos sistemas de valores. Como sugere
entre rendas e bruxas, as malhas
do folclore catarinense
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a Carta do folclore Brasileiro, elabora-
da no i Congresso Brasileiro do folclore
Brasileiro: “Constitui o fato folclórico a
maneira de pensar, sentir e agir de um
povo, preservada pela tradição popular
e pela imitação, e que não seja direta-
mente influenciada pelos círculos eru-
ditos e instituições que se dedicam, ou
à renovação e conservação do patrimô-
nio científico humano, ou à fixação de
uma orientação religiosa e filosófica”. O
folclore ocupa-se de todas as manifes-
tações e aplicações da cultura e o fato
folclórico pertence ao coletivo.
Para compreender a obra de Cascaes
é preciso entender e contextualizar suas
fontes populares. sob o enfoque do fol-
clore, podemos observar em sua obra a
tradição religiosa nas procissões, as brin-
cadeiras infantis como a ciranda, o jogo
de bolinha de gude e a pandorga. Há os
folguedos, como o boi-de-mamão, o ca-
cumbi e os negros velhos do caxangá. As
atividades produtivas das comunidades
pesquisadas também foram contempla-
das pelo artista, que registrou nos seus
conjuntos escultóricos o lambe-lambe, o
engraxate, os vendedores ambulantes,
a tecelagem manual, a pescaria, a ren-
deira e os diferentes tipos de engenho.
A língua indígena está presente em seus
cadernos sob forma de dicionários e a li-
teratura popular, através dos provérbios,
adivinhações, contos, frases feitas, ora-
ções, danças, trovas. Há ainda as crendi-
ces populares, representadas nos mitos
das bruxas, boitatás e lobisomens: “Todo
homem anêmico, pálido, que come bar-
ro, areia, rói as unhas, come roupa é
dado como lobisomem entre seus fami-
liares, vizinhos.”
A religiosidade, o imaginário popu-
lar e o conhecimento do uso das ervas
medicinais fundiram-se para formar as
benzeduras, prática ainda comum. Para
cada moléstia há um tipo de benzedu-
ra que Cascaes registrou junto das co-
munidades: “Campainha Caída. Abra-te
porta e fecha-te. Abra-te pela banda do
mar. si é campainha caída que vorte ao
seu lugá. em nome de deus e da virgem
maria Amém. esta oração deve ser dita
três vezes. o paciente deve conservar o
dedo polegar dentro da boca que é para
ajudar a levantar a campainha durante a
benzedura. recolhida no Pântano do sul.
narrada pelo senhor rosalino. 1956”.
em argila, modelou o homem do li-
toral catarinense, porém não se limitou
aos descendentes de açorianos, como
pode ser observado nas coleções negros
Velhos do Caxangá e Cacumbi, que afir-
mam a presença do negro. nas pesqui-
sas, também registrou as atividades fol-
clóricas da população afro-descendente:
“Estes dados sobre a dança de Cacubi
foram fornecidos por dois senhores de
cor. senhor estanislau jacinto de Aguiar,
com 85 anos de idade, residente no ca-
minho da Caeira, saco dos limões. se-
nhor joão joaquim vieira, com 79 anos
de idade, residente nos Barreiros. eles
foram bastante camaradas para comigo
nestas narrativas de coisas do tempo
passado [...] diz o senhor estanislau que
esta dança de cachangá era uma dança
de homens de cor que se vestiam com
trajes característicos da representação
de homens velhos, e que procuravam re-
cordar o tempo da escravidão.”
franklin joaquim Cascaes tentou ex-
pressar da melhor forma possível o que
viu, viveu e sentiu enquanto trabalhava.
Percebeu as transformações que coloca-
vam em ameaça o cotidiano e o conheci-
mento popular dos habitantes da ilha, já
em risco de esquecimento pelas futuras
gerações. As representações das imagens
folclóricas construídas por Cascaes são
hoje, na sua maioria, cotidianos ausentes
na nossa história local: as festas popula-
res e religiosas, as atividades produtivas,
os jogos e brincadeiras infantis, a litera-
tura oral. Conhecer estes conjuntos de
fatos folclóricos é valorizar o ser humano,
ou seja, a sua diversidade cultural, tão
bem registrada por Cascaes. o estudo in-
terpretativo de sua obra nos leva à diver-
sidade da população local, da maneira de
construir suas vidas e de vivê-las. n
texto | aline carmes krüger é historiadora.
fotos | gill konell
esp
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esp
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o Catarina | número 68 | 2008
kellyn batistela
muitos são os escritores, artistas ou
críticos que se debruçaram no estudo
da memória, buscando, ao se voltar
para o passado, compreender o homem
em sua individualidade e em seu conví-
vio social. muitos destes não se furta-
ram em basear sua busca em elementos
de vivência pessoal. talvez a principal
motivação de franklin Cascaes, no de-
senvolvimento de seu trabalho, tenha
sido pessoal, pois, ao testemunhar
melancolicamente o desenvolvimento
urbano de florianópolis, Cascaes fazia
parte da comunidade representada em
sua obra. não há como separar sua vida
de seu trabalho, pois seus sentimentos
e suas idéias tiveram origem no tecido
da coletividade.
Cascaes percorria a ilha de carroça,
canoa, Kombi ou a pé, anotando, em
cadernos ou folhas avulsas, histórias,
rezas, hábitos e costumes das fregue-
sias pesqueiras e rendeiras do interior
da ilha. não é à toa que diz ter iniciado
seu trabalho pela saudade do passado,
pois ao ouvir os causos contados pelos
colonos-pescadores, evoca simultanea-
mente a sua experiência individual,
construída entre as rodas de trabalha-
dores de engenho. desta relação de per-
tencimento com a comunidade, ou seja,
apoiando a sua memória na memória
dos outros, advém a autoridade a partir
da qual legitima seu trabalho escrito e
plástico, sustentando que viveu tudo o
que narrou.
o procedimento de salvaguardar a
tradição, bem como a operosidade da
criação do artista/escritor, apresenta-se
através de textos em processo, os quais
deram origem a publicação de dois livros
de contos. todavia, existem outros que,
entre folhas manuscritas, hibernam a ori-
ginalidade de seus conteúdos. Cascaes
inventariou, a seu modo, a experiência
de sua comunidade afetiva. este procedi-
mento arquivista construiu um rico acer-
vo nas letras, escultura e desenho. Como
supérstites da memória, os textos de
Cascaes, resultados de anos de pesquisa
com os narradores populares, guardam o
registro da experiência no momento em
que se inicia a queda da oralidade ou do
enfraquecimento dos laços comunitários.
A memória de Cascaes pode ser en-
tendida como conservação ou elabora-
ção do passado, pois o medo de esque-
cer motiva o pesquisador a registrar a
experiência dos interioranos, além de
haver a necessidade de reinvenção deste
mesmo passado pela impossibilidade de
recuperá-lo como experiência autêntica
de vida. Compreender a memória de
Cascaes como algo socialmente vivo é
opor-se ao uso que as instituições públi-
cas, inclusive a academia, faz da tradi-
ção. Por isso, Cascaes filia-se a figura do
narrador épico, aquele cuja obra é res-
taurar as tramas desfeitas pelo esqueci-
mento ou ameaçadas pelos novos hábitos
da palavra ao texto: a experiência do narrador cascaes
Fr a n k l i n Ca s ca e s
F
9o Catarina | número 68 | 2008
não na-
turais no
convívio do
homem com seu
espaço coletivo.
quando franklin
Cascaes decide iniciar seu
trabalho, o objetivo explíci-
to fora o de manter viva uma
tradição que inevitavelmente
ruía ao compasso do progresso.
sua iniciativa foi a de registrar da
forma mais ampla possível todas
as manifestações culturais da ilha
de santa Catarina. Para isso, viaja-
va constantemente pelas freguesias
pesqueiras, conversando com pesso-
as, escutando suas histórias, escre-
vendo provisoriamente, para depois
apresentá-las de modo, segundo ele,
mais elaborado, através de narrativas,
desenhos ou esculturas. Apesar de se
manifestarem nos mais variados supor-
tes (peças tridimensionais, trabalhos
bidimensionais, cadernos e folhas
avulsas), técnicas (argila, grafite
e nanquim), linguagens (imagem
e texto) e categorias artísticas
(escultura ou desenho), os
textos, qualquer que seja
seu tratamento (obra,
estudo ou manuscrito),
compõem sem dú-
vida uma unida-
de. os textos
autógra-
f o s
(imagem e narração)
enunciam a experiência pres-
tes ao desvanecimento.
independentemente do seu códi-
go de linguagem, texto ou desenho
são marcados pelo contexto político,
histórico e social que presidiu a sua
elaboração. Há intertextualidade e
pluralidade de vozes narradoras que
emergem das fabulosas narrações de
Cascaes. talvez o maior elemento de
diferenciação, no que concerne aos
cadernos do artista/escritor, está no
fato de que os manuscritos, além de
apresentarem o processo de pesquisa
que transita pela etnografia, enunciam
as tradições antigas da ilha, recolhidas
por franklin em suas constantes prosas.
este aspecto faz com que o texto de
Cascaes, por mais escritural que seja,
evoque mais a memória coletiva que a
memória individual. diferentemente
de outros escritores e artistas, desti-
nou em seus cadernos de pesquisa, que
totalizam 110 volumes, pouco campo à
experimentação. muito raramente há
esquemas, idéias desconexas ou frases
soltas. o artista/escritor demarca bem
suas preocupações em legar ao futuro
o registro de suas viagens, e para tanto
referencia o nome dos contadores dos
causos e os locais nos quais foram re-
colhidas as narrações. Percebe-se que
esta é a principal preocupação arquivis-
ta de Cascaes. Como cada texto apre-
senta as marcas do ambiente cultural
e suas relações históricas, é relevante
salientar que na sua escrita preserva-
se a oralidade dos causos colhidos. sem
perder a vitalidade lingüística do relato
falado, Cascaes empreende a faculda-
de mais épica de todas as práticas do
recordar, a memória do contador de
histórias.
Como a memória
ocupa-se do ato de lembrar
e contar, é através dela que se expli-
cam e lamentam as mudanças, quando
permanecem apenas vestígios de uma
realidade anterior. todas as comunida-
des e sociedades têm, no campo das
tradições, seus diferentes narradores,
alguns mais épicos que outros, porém
todos dotados da faculdade de trans-
mitir conhecimento. o narrador oral
seria então o responsável por articular
as diversas memórias. A este narrador
também estaria reservado o papel de
encontrar herdeiros e sucessores de
sua narração, garantindo e preservan-
do assim a vida diante da inevitabilida-
de da morte.
de ouvinte a prosador, o narrador
nunca está só. ele agrega ao seu conhe-
cimento de mundo as experiências dos
outros — por isso, além de narrar, sabe
dar conselhos. entretanto, os conselhos
apenas são concedidos por preservarem
formas de conhecimento; e, na mesma
proporção, porque seus ouvintes ainda
necessitam deles. este tipo de expe-
riência é épica, pois encontramos nos
textos clássicos menção a esta forma do
saber: o exercício do trabalho associa-
do à arte do contar histórias.
Como forma de constituição de sua
própria memória, franklin Cascaes lem-
bra com os outros. A constituição de
tais imagens encontra-se apenas na so-
ciedade, onde estão todas as indicações
necessárias para reconstruir as partes
desejadas de nosso passado, cuja lem-
brança atribuímos normalmente à nossa
própria memória. Ao localizar o narrador
em um contexto prático, precisamente
nas fontes do trabalho comunitário,
Walter Benjamin destaca a dimensão
utilitária da narração. ela se
d e -
senvolve
nos afazeres
domésticos, no
preparo e cultivo da
terra, no içar das velas,
no alçar das redes, no an-
corar dos barcos. então, ao
sedimentar suas recordações
individuais na experiência co-
munitária, francolino cantou a
rapsódia de poetas desconhecidos,
sem os quais seria impossível hoje
descobrir a fantástica história da ilha
de santa Catarina. eis o trabalho ela-
borativo do Cascaes prosador. n
esp
eci
al
“Quando franklin
Cascaes decide
iniciar seu trabalho,
o objetivo explícito
fora o de manter
viva uma tradição
que inevitavelmente
ruía ao compasso do
progresso.”
texto | kellyn batistela é mestre em teoria literária pela ufsC, autora da dissertação As Alegorias da Modernidade em Franklin Cascaes.
foto | divulgação agecom
entre a impossibilidade e a permanência, o folclore na sociedade contemporânea
10o Catarina | número 68 | 2008
o catarina | segundo a ótica antropo-
lógica, o que significa folclore?
eugênio lacerda | A palavra folk-lore
é, tipicamente, um termo importado da
língua inglesa, muito usado no século 20,
significando, originalmente, estudo, co-
nhecimento (lore) dos costumes e tradi-
ções de um povo (folk). o termo foi cria-
do pelo arqueólogo inglês William john
thoms (1803-1885), pesquisador da cultu-
ra popular européia. em 22 de agosto de
1846, ele publicou um artigo com o título
“Folk-lore”, na revista the athenaeum,
propondo a criação do termo. este dia
acabou se tornando data de referência
do surgimento do termo folclore, grada-
tivamente incorporado a todas as línguas
dos povos considerados civilizados. no
Brasil, o folclore sempre esteve asso-
ciado ao trabalho de coleta e descrição
de lendas, festas, provérbios, folguedos,
simpatias etc., pelos chamados folcloris-
tas. o mais conhecido deles foi luis da
Câmara Cascudo, que escreveu, entre
outras obras, o Dicionário Brasileiro do
Folclore. muitos antropólogos valeram-se
das coletas e narrativas dos folcloristas
para produzirem suas etnografias, nota-
damente sobre a cultura brasileira. Para
a antropologia, o material descritivo dos
folcloristas constitui um acervo etnográ-
fico valioso para a produção de estudos
e desenvolvimento de teorias sobre cul-
tura, identidade, representação, mitos e
ritos. Portanto, a antropologia considera
o folclore não propriamente uma ciên-
cia, mas uma área de pesquisa factual
extremamente útil como fonte de da-
dos etnográficos para a elaboração de
análises e tematização de problemas
acerca do comportamento humano em
sociedade. Hoje em dia, o termo fol-
clore caiu em desuso. foi substituído,
nos anos 70 e 80, pelo termo cultura(s)
popular(es). este também perdeu ex-
pressão, sendo incorporado, contempo-
raneamente e, em nível mundial, pelo
conceito de patrimônio intangível, ou
imaterial, dos povos.
OC | E tradição?
lacerda | tradição pode ser entendida
como aquele costume, prática social ou
saber que se consolidou no processo de
transmissão de geração a geração e, por
isso, alcança aceitação popular ou públi-
ca. o importante, na questão das tradi-
ções, é percebermos suas dinâmicas de
transformação e invenção, superando
certa visão romântica da história como
algo feito de fenômenos originais, essen-
ciais e, portanto, imaculados no tempo.
Cada geração lê e relê a seu modo as
tradições herdadas, a partir de novos
valores, novas influências e novas aquisi-
ções culturais. se há algo que não muda,
justamente, é o espírito do tempo, o
zeitgeist, que envolve, contextualiza e
significa nossas práticas e representa-
ções, assim como a todos nós, atores
e portadores de cultura. As tradições
só têm sentido se forem observadas do
presente em direção ao passado, e não
ao contrário.
oc | a modernidade liquidou nossas
alternativas de folclore? Esta situação
tem se agravado ou parece estável nos
últimos tempos?
lacerda | A tensão essencial da mo-
dernidade é a tensão entre o particular
e o universal, entre o local e o global.
no início dos anos 90, com o boom da
globalização, muitos analistas diziam
que as identidades primordiais, aquelas
feitas de laços e lealdades comunitários
e locais, iriam desaparecer diante do
processo avassalador de homogeneiza-
ção cultural. isto não aconteceu, e o que
se viu foi um processo generalizado de
afirmação étnica em todos os cantos do
planeta: bens culturais, línguas, estilos
genuínos ganharam espaço em um mun-
do de incrível mobilidade e conectivi-
dade, onde o diferente tornou-se fonte
de crescimento e melhoria da qualidade
de vida das populações autóctones. es-
tamos vivendo, neste momento, a exa-
cerbação destas tensões, um cenário
em que um índio do xingu, com acesso
à internet, percebe que as fronteiras da
cultura são ilimitadas e semoventes e, ao
contrário dos preservacionistas puros,
poderá sim usar essa tecnologia a favor
da continuidade do seu rico repertório
de vida, sua identidade e sua visão de
mundo ancestral.
oc | É importante preservar os ensi-
namentos e as construções populares?
de que maneira isto pode ser levado
até as crianças? A universidade e a
escola têm cumprido papel relevante
neste resgate?
lacerda | É importante preservar não
por causa do passado, mas por causa
do futuro. A memória social, tal como
a pessoal, é seletiva. dizendo de outra
maneira: há uma dialética formidável
entre a lembrança e o esquecimento no
processo de interação social. daí, dessa
luta entre o que se quer preservar e o
que se quer mudar, resultam referen-
ciais culturais permanentes que o povo
consagra e elege como seus, pelo menos
durante certo tempo de sua história. o
desafio de qualquer comunidade humana
é a sua reprodução. se você vai ver uma
festa tradicional, como a festa do divi-
no, por exemplo, e nota que ali há um
espaço democrático em que convivem
várias gerações ao mesmo tempo, pode
jade martins lenhart
Compreender as lendas do folclore é como aceitar o convite para uma festa povoada de personagens pi-
torescos e tipos carregados de esquisitices: bruxas voltadas para o mal, curandeiros dotados de segredos
capazes de modificar o corpo e a alma, luas cheias de poder, lobisomens bravos atormentando noites sem
luzes, animais disformes e cheios de mistérios, tortuosos embates entre a fé e a descrença. Conhecê-los
é saber um pouco mais da história, do passado, da tradição, da vida, e até de nós mesmos. Para guiar esta
viagem, convidamos o antropólogo eugênio Pascele lacerda, gestor de projetos culturais da fundação
Catarinense de Cultura, professor do curso de museologia do Centro universitário Barriga verde (uni-
bave), em orleans, e associado do instituto Cultura em rede e do núcleo de estudos Açorianos da ufsC.
esp
eci
al
entrevista | jade martins lenhart é jornalista e doutora em teoria literária.
fotos | pedro alípio 11
esp
eci
al
o Catarina | número 68 | 2008
ter certeza que aquela comunidade está
preservando seu futuro. Aqui uma ob-
servação crítica: qual tem sido o papel
da escola no processo de valorização da
cultura? vejo uma cisão desestruturante
entre o que se ensina na escola e o mun-
do da cultura. todas as lições deixadas
por Paulo Freire não foram suficientes
para provocar nos nossos gestores edu-
cacionais uma quebra dos paradigmas
oficiais do ato de educar, tão desconec-
tado da cidadania, das artes, do corpo
e da autonomia do indivíduo. o melhor
exemplo que vi nestes últimos tempos
vem de Portugal, da escola da Ponte, do
educador josé Pacheco.
oc | de que maneira o folclore cata-
rinense, bem como suas tradições,
relacionam-se às características da co-
lonização do Estado?
lacerda | santa Catarina é um esta-
do multiétnico e multilingüístico. Aqui,
a história, a cultura, a demografia e a
geografia combinaram-se para formar,
ao longo de 300 anos, um arquipélago
de etnias. temos uma notável diversida-
de de modos de vida e expressões cultu-
rais. não vemos a predominância de um
só tipo, mas a coexistência de várias et-
nias, o que confirma a diversidade como
característica da identidade catarinen-
se. A paisagem litorânea é marcada pelo
povoamento português dos séculos 17 e
18. uma cultura pesqueira desenvolvida
em moldes artesanais e industriais, alia-
da à pequena lavoura familiar e, mais
recentemente, à maricultura e à econo-
mia do turismo. temos uma arquitetura
representada nas casas térreas, fortale-
zas e pequenas capelas à beira-mar com
cruzeiro à frente. É possível brincar de
boi-de-mamão ou correr do boi bravo
enquanto esperamos um camarão ao
bafo. É possível acompanhar as festas
do divino ou de nossa senhora de nave-
gantes, em favor de graças e promessas.
À noite podem aparecer bruxas e lobi-
somens, mas não sem rezas e simpatias
de cura. são as lendas cultivadas pelos
descendentes de açorianos e madeiren-
ses. já nos vales temos outra arquite-
tura, com exemplares típicos da técnica
construtiva do enxaimel. nos vales onde
aportaram os imigrantes alemães e seus
descendentes, impressiona a qualidade
da indústria em contraste com o imenso
fluxo de bicicletas em direção às fábri-
cas. Há museus e jardins bem cuidados,
além de um ciclo de festas de grande
apelo étnico. Ainda nos vales, mais ao
sul, e mesmo na região central e oes-
te, não raro ouvem-se sonoras cantatas
e corais em língua ou dialetos italianos.
nas festas, o fervor religioso mistura-se
à alegre expansividade das famílias, ao
lado de construções em pedra que re-
cordam a conhecida habilidade dos mes-
tres italianos. no planalto, a herança do
tropeirismo nas taipas e fazendas, com
proeminente cultura campeira tipifica-
da na roda de chimarrão, no churrasco
e nas danças e músicas tradicionalistas.
Ao norte, em direção ao Paraná, polone-
ses e ucranianos, austeros, cuidadosos e
sofisticados nas artes domésticas, como
nas pêssankas, afora os lambrequins
adornando os beirais das casas e danças
graciosas como a mazurka. Há ainda a
presença austríaca em uma pequena
cidade que parece ter sido transfor-
mada em jardim. lá, temos habilidosos
artesãos no entalhe de madeiras no-
bres. Há ainda o oriente com os agri-
cultores descendentes de japoneses e
suas belas tradições ornamentais. não
se pode deixar de marcar a presença
da cultura afro-brasileira, sua plastici-
dade, terreiros, ritmos e danças como
a do cacumbi. Acrescem os gregos, sí-
rios, libaneses, russos e, finalmente,
ou primordialmente, os remanescentes
dos primeiros habitantes do território,
tupis-guarani, xokleng e kaingang, hoje
assentados em reservas e sujeitos ao
seu próprio devir histórico.
oc | de acordo com as movimentações
da sociedade contemporânea, é possí-
vel afirmar que seremos condenados
à tecnologia, sujeitos de um universo
cada vez mais distinto das cantigas po-
pulares e das histórias passadas de pai
para filho?
lacerda | não vejo uma contradição
entre desenvolvimento tecnológico e
transmissão de valores e práticas cultu-
rais. não há razão em demonizar a tec-
nologia. Ela não é um fim em si mesmo,
mas um meio que deve ser utilizado para
o nosso bem-estar. entretanto, quando
o indivíduo não dispõe de uma pauta de
valores cidadãos, uma ética solidária, se
não tiver uma consciência capaz de sele-
cionar, dentre todos os estímulos impos-
tos diariamente pela sociedade de consu-
mo, aquilo que deteriora a sua qualidade
de vida e a qualidade sócio-ambiental do
espaço urbano, estará condenado à per-
da de identidade e à desterritorialização
do seu universo cultural. Acredito que
somente o investimento educacional em
longo prazo poderá salvar os povos das
mazelas materiais e imateriais do mundo
contemporâneo.
oc | a colonização açoriana guarda
algumas características peculiares na
conformação desta tradição? Quais se-
riam elas?
lacerda | A herança cultural dos po-
voadores açorianos, quer dizer, dos
descendentes lusitanos marcados pela
cultura insular do arquipélago dos Aço-
res, caracteriza-se, no presente, por um
conjunto de tradições e certo tipo de so-
ciabilidade. em minhas pesquisas como
antropólogo concluí que três eventos são
emblemáticos na sociabilidade e na cul-
tura do açoriano-descendente em santa
Catarina: a polêmica farra-do-boi, liga-
da ao mundo da diversão, da terra, do
mato, do ócio e da ferocidade animal;
o culto-festa do Divino, relacionado ao
universo mágico-religioso, sendo tam-
bém o espaço privilegiado de execução
das promessas e dívidas de fé; e a pes-
ca artesanal da tainha, ligada ao mundo
marítimo e ao trabalho como coopera-
ção e seguridade comunitárias. O “boi”,
o “divino” e a “tainha” podem ser toma-
dos como ícones da visão de mundo do
açoriano-descendente, mundo informado
por crenças em seres fantásticos que se
metamorfoseiam, onde pontuam bruxas,
lobisomens, borboletas, maus-olhados e
bem-querências. quanto à sociabilidade
nativa, está explícita nas paróquias, vi-
zinhanças e festas rituais; na jocosidade
verbal e nas trocas de favores e ajudas.
tais são, em geral, os núcleos constitu-
tivos da sociabilidade e da cultura entre
os açoriano-descendentes do litoral de
santa Catarina.
oc | franklin cascaes foi peça chave
no resgate do folclore catarinense?
de acordo com a sua análise, qual é
o principal destaque do trabalho do
pesquisador?
lacerda | franklin Cascaes foi um fol-
clorista no sentido tradicional do termo.
mas isso é pouco para o homem versá-
til que foi: escultor, desenhista, conta-
dor de histórias, narrador, compilador,
pesquisador da cultura popular que foi
a campo sem ir à academia. ele foi um
homem pioneiro, um artista iconográfico
que deixou a todos um vasto repertório
de registros e obras de arte originais,
criadas a partir de sua própria leitura
estética do mundo ilhéu, da ilha de san-
ta Catarina. sua fertilidade está provada
na quantidade de trabalhos que artistas
novos e pesquisadores têm elaborado,
bebendo de suas fontes. n
“cada geração lê e relê a seu modo
as tradições herdadas, a partir de
novos valores, novas influências e
novas aquisições culturais.”
esp
eci
al o fantástico nos desenhos de franklin cascaes
trata-se, portanto, da primeira
preocupação dos estudiosos no tocante
a suas produções bidimensionais e tridi-
mensionais.
2. suporte/técnicaComo suporte da produção bidimen-
sional, usava esboços (ou rascunhos) so-
bre papeizinhos velhos e amarelados, os
quais, segundo o museólogo Gelcy Coe-
lho, constituem o elemento mais valioso
para a tentativa de compreensão de seu
processo criativo.
são, a rigor, verdadeiros ensaios grá-
ficos, obsessivos, visando à composição
dos desenhos definitivos, trasladados
com grafite ou nanquim preta (bico de
pena) para uma folha maior e de melhor
qualidade, adstritos a um atípico ponti-
lhismo, e, às vezes, ao redor (nos can-
tos), ou no rodapé, explicados mediante
textos compactos decorrentes de idéias
surgidas no momento, quando, então,
provocavam o advento de novas obras,
algumas retomadas anos após.
3. repertório temáticoo repertório é composto por temas
inerentes ao imaginário popular, fru-
to da tradição oral dos habitantes do
interior da ilha de santa Catarina (co-
munidades rurais), de origem indígena
(Carijós) e portuguesa, mormente de
influência açoriana.
os desenhos, plenos de detalhes,
com texturas nem sempre harmônicas,
às centenas, alguns inacabados, repre-
sentam, na transposição do código da
oralidade para o da visualidade, perso-
nagens e cenas (a) de bruxaria, em que a
sexualidade é reprimida pelo “atavismo
cristão”2, (b) de monstros de variegadas
espécies (boi-tatá, lobisomem, caipo-
ra, vampiro, seres terrestres, marinhos
e aéreos), além de registrar (c) festas
profanas ou sob o signo da religiosidade,
(d) jogos infantis e tipos populares, sem
esquecer, o obcecado pesquisador, (e) a
típica arquitetura colonial, as atividades
relativas ao (f) exercício da pesca (com
as redes, bóias, cordas, catutos), (g) o
cultivo da mandioca (agricultura artesa-
nal), (h) o ambiente físico (pondo relevo
nas pedras de insinuação orgânica), e,
inclusive, entre outras, (i) preocupa-
ções de ordem política (bomba atômica,
guerra fria, lutas feministas, campanhas
eleitorais etc.), para demonstrar o vín-
culo ao real, não obstante as fantasias
também emergidas ao tratá-las.
temas que, diga-se de passagem,
realçando o Bestiário, fundados em
costumes, crenças e superstições, cor-
respondem a estórias recontadas. daí o
caráter/conteúdo narrativo neles, nos
contos e versos, divulgando a tradição
oral sob duplo enfoque: o visual e o da
escritura. Aliás, para melhor compreen-
dê-los, necessária é a justaposição ana-
lítica desses dois discursos complemen-
tares de sua poética.
Assim, sem colocar à margem sua es-
pecificidade, no plano do conjunto das
características formais, os desenhos,
sob pena de reducionismo estético, não
devem ser examinados de modo autôno-
mo, isto é, sem remetê-los à linguagem
da prosa e da poesia, conquanto aquela
seja permeada de erros gramaticais, e
esta de versos de extração ingênua.
4. reinos mescladosConsta3 que Cascaes não acreditava
nas descrições dos moradores da região,
“pessoas analfabetas ou semi-alfabe-
tizadas de meados do século xix”4, se,
para ele, fantásticas são as coisas e as
criaturas, resultantes do medo das famí-
lias isoladas, à época, mas não o homem
enquanto tal, integrante da realidade fí-
sica circundante.
Acredito nisso. o artista não se li-
mitava a transcrever, ou visualizar,
pÉricles prade
1. vida e obraPondero, de início, que, se “o ar-
tista é origem da obra, assim como a
obra é origem do artista”1, não se pode
analisar o vasto acervo dos desenhos de
franklin Cascaes sem o prévio conheci-
mento de sua vida.
quer-se dizer, por
óbvio, que a obra e
o autor são indis-
sociáveis, pois,
como alertou
o filósofo ale-
mão, nenhum
dos dois se
sustenta isola-
damente.
Enfim, sem conhecer a
biografia de Cascaes, com ênfa-
se no passado, desde a época
em que brincava na Praia de
itaguaçu, onde nasceu, ou
seja, in illo tempore, qual-
quer exegese pecará pela
base.
12o Catarina | número 68 | 2008
13
esp
eci
al
o Catarina | número 68 | 2008
d) o Alegorismo, dado que o artista
pretende, talvez até de forma incons-
ciente, encartar “um significado oculto
nos temas eleitos”10, a par do fato de a
mitologia de lastro cristão e seus símbo-
los estarem presentes;
e) o medievalismo, ancorado na in-
tegridade, espiritualidade, pureza ima-
ginativa e sinceridade artística na reve-
lação do mundo imaginário, contando
estórias;
f) o Simbolismo, de perfil esotérico,
explorando, pela intuição, os lados do
mistério, do desconhecido e do indizível,
através do uso de formas simplificadas na
disposição espacial, e contornadas pela
cor preta (no contraponto luz e sombra);
g) o naïf, em virtude da falta de do-
mínio técnico, constatável na ausência
da perspectiva, prevalecendo a emoção
intuitiva, a força expressiva, e que não
se confunde com o primitivismo de Gau-
gin, nolde ou Picasso;
h) o Surrealismo pictórico, ao “ex-
plorar o outro lado da razão, isto é, o
sonho, o maravilhoso, a loucura, os es-
tados alucinatórios”11 daqueles que des-
creviam o estupor diante das visões no
interior da nossa ilha.
6. presença do fantásticoEntretanto, toda essa confluência
estilística, no fundo, presta obséquio ao
universo do fantástico, cujo espectro,
maior do que se supõe, reside, origina-
riamente, na idade média gótica, proje-
tando, até hoje, suas forças pelos “en-
cantamentos” de seus “prodígios”12.
A afirmação é verdadeira, já que
se pode “apreciar a presença fantás-
tica em todas as épocas e disciplinas
artísticas”13, sem ter características tí-
picas de escola ou Corrente.
Assim é, se não se pode desmerecer
o pensamento segundo o qual “o gênero
as histórias verbalizadas. recriava-as,
quase sempre, embutindo, em espe-
cial nos desenhos, novos dados, tam-
bém fantásticos, a partir dos modelos
tradicionais, mesmo porque, como ele
mesmo dizia, as pessoas contavam de
forma diferente as assombrações (fe-
nômenos naturais), que imaginavam
ver no lusco-fusco ou à noite.
os seres que infestam o seu arquetí-
pico imaginário, mais voadores e menos
terrestres e marinhos, sem desprezar o
artista os elementos primordiais da na-
tureza, unem, em sua concepção, em
regime de mágica unção, o tempo e o
espaço, instaurando atemporalidade,
porque se está diante de algo não ex-
plicado pelo senso comum. o visível e o
invisível, desse modo, entremostram-se
na representação conjugada do natural
e do sobrenatural.
eis que de repente, não mais que de
repente, surgem “reinos mesclados”5,
onde as formas são compostas pela mis-
tura deles, sem haver barreira radical,
separando-os. este hibridismo, em Cas-
caes, ao considerar os reinos da natureza
como mera convenção, fundindo entes
animados e inanimados, lembra imagens
do universo de monstros e maravilhas
sediados nos fins da Idade Média. Sim,
porque “o monstro é um objeto essen-
cialmente visual”6.
5. Estilos: confluênciafeitas estas considerações, cabe as-
sinalar que o estilo de franklin Cascaes,
nos desenhos, revela confluência de vá-
rias vertentes. Compreende:
a) o Grotesco, como “estrutura de
um mundo alheado”7, de linhagem mais
bruegheliana e menos boschiana, sem
ser bizarro, no caso, mas de expressão
romântica, privilegiando temas medie-
vais, com atitude criadora no sentido
do onírico;
b) o maneirismo, caracterizado pela
contorção, distorção, deformação e
ambigüidade, embalado pela “relativi-
dade das coisas e do espaço”8, em que
as formas e figuras alongadas, sinuosas,
convulsivas, sofisticadas, revelando vir-
tuosidade e procura de efeito, lembram
a serpentinata, quando se manifesta “o
desejo ainda infantil de relativizar os
objetos”9, como ocorria no auto-retrato
de Parmigianino;
c) o Barroco, por estarem à deriva
das proporções clássicas, valorizando
mais a unidade do desenho e seu efeito,
arte dominada pelo movimento, e pelo
excesso, enfatizando o preciosismo na
elaboração, com a finalidade de, pela
ilusão, transformar a realidade;
texto | péricles prade é advogado e presidente do Conselho estadual de Cultura.
fantástico tem um caráter alusivo, é di-
zer, refere-se a algo alheio à sua própria
natureza”14.
Gênero fantástico, ressalte-se, de
cunho ostensivamente mitológico, numa
obra aberta, reveladora de apropria-
ção de mitos universais, “adaptados
ao contexto histórico em que o artista
viveu”15, até porque “existiu uma rica
tradição mítica entre o povo ilhéu”16,
cuja recriação, por meio de desenhos
exemplares, propiciou o renascimen-
to de uma mitologia de estranhamento
local, e também pessoal, desvinculada
de seu criador, depois, por força das
metamorfoses imantadas pela memória
coletiva. n
1 HeideGGer, martin. A Origem da Obra de Arte. lisboa: edições 70, 2007, p. 11.
2 neves filHo, joão otávio. mitos açorianos na arte Catarinense. Florianópolis: Jornal “Ô Catarina”, 1996, p. 25.
3 esPAdA, Heloisa. Na Cauda do Boi-tatá. florianópolis: Publicações fundação franklin Cascaes, 1996, p. 25.
4 CAruso, raimundo. Franklin Cascaes (Vida e Arte) e a Colonização açoriana. florianópolis: ed. ufsC, 1981, p. 51.
5 FURLAN, Oswaldo Antônio. “O texto: seu estabelecimento, traços dialetais e glossário”. in CAsCAes, franklin. O Fantástico na Ilha de Santa Catarina. florianópolis: ed. ufsC, 5a ed., 2005, p. 7.
6 KAPPler, Claude. monstruos, Demonios y maravilhas a fines de la Edad Media. madrid: Akal, 1986, p. 154 e 162.
7 KAPPler, Claude. monstruos, Demonios y maravilhas a fines de la Edad Media. madrid: Akal, 1986, p. 13.
8 KAyser, Wolfgang. O Grotesco. são Paulo: Perspectiva, 1957, p. 15.
9 HoCKe, Gustav r. maneirismo: o mundo como labirinto. são Paulo: Perspectiva, 1974, p. 49.
10 little, stephen. ...ismos Entender a arte. londres (ed. Portuguesa): lisma, 2007, p. 46.
11 FABRIS, Annateresa. “O Surrealismo Pictórico: a Alquimia da imagem”. in GuinsBurG, j.; leiner, sheila (org.). O Surrealismo. são Paulo: Perspectiva, 2008, p. 477.
12 BAltrusÄitis, jurgis. la Edad media Fantastica. madrid: Catedra, 1994, p. 278.
13 sCHuriAn, Walter. arte Fantastica. madrid: taschen, 2005, p. 7.
14 vAx, louis. arte y literatura Fantasticas. Buenos Aires: eudeba, 1965, p. 36.
15 esPAdA, Heloisa. Na Cauda do Boi-tatá. florianópolis: Publicações fundação franklin Cascaes, 1996, p. 30.
16 ArAújo, Adalice maria de. Mito e Magia na Arte Catarinense. florianópolis: ioesc; 1979, p. 83.
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o Catarina | número 68 | 2008
sob o domínio atento das mãos e dos dedosvanilde rohling ghizoni
A coleção escultórica de franklin
joaquim Cascaes diferencia-se, entre
outros aspectos, pela fragilidade do ma-
terial utilizado como suporte da maioria
das peças: argila não cozida e gesso. A
maneira como o artista utilizou a argila,
porém, afasta-se daquela comumente
trabalhada pelos ceramistas: em sua co-
leção, o material jamais foi submetido à
queima, condição obrigatória para clas-
sificação de uma cerâmica.
de acordo com o teórico Claude
Vittel, a cerâmica é um “conjunto de
produtos à base de argila e de caulin,
transformados pela ação do fogo”. já
por escultura entendemos “a arte e a
técnica de plasmar a matéria esculpindo
a madeira, modelando o barro, cinze-
lando a pedra ou o mármore, fundindo
e metal [...] a fim de representar em
relevo, ou em três dimensões estátuas,
figuras e formas abstratas”.
Cascaes empregou o gesso e a argila
como matéria final na produção de suas
peças. Grandes mestres, como o escul-
tor francês Auguste rodin (1840-1917),
empregavam a argila como meio tran-
sitório para elaboração dos modelos,
confeccionando-os depois em fôrmas-
moldes em gesso. nesses moldes de ges-
so, a peça era fundida em metal, como
o bronze. A argila também proporciona-
va a realização de estudos escultóricos,
antecessores da produção da peça em
outro material, como o mármore.
nas esculturas de Cascaes, cada con-
junto representa um episódio cenográ-
fico, projetando relação de interdepen-
dência entre as diferentes figuras. Na
Procissão do senhor jesus dos Passos,
por exemplo, cada figura é uma per-
sonagem da procissão, dona de função
específica e interligada à mesma ação.
A relação entre as figuras é enfatizada,
ainda, pelo modo como o artista ela-
borou suas peças, dando unidade na
forma e na homogeneidade da cor, em
sua apresentação estética. no caderno
de número 60, que compõe o acervo
do museu universitário, o artista
resume esta interdependência:
“Cada Conjunto representa um
livro e cada figura uma página.
Portanto, se vender uma figura
arrancarei uma página do livro, e
um livro com falta de uma pági-
na, apresentar-se-á trincado.”
se determos o olhar sobre
sua coleção de peças, cons-
tatamos que a unidade es-
tabelecida pelo conjunto se
desfaz, já que cada figura apresen-
ta uma riqueza exclusiva de detalhes,
revelados na expressão do rosto e dos
movimentos, tornando-a única. median-
te a modelagem, a escultura nasce das
mãos do artista, e vai aos poucos dando-
lhe corpo. Pouco a pouco surge uma for-
ma indefinida, para depois aparecerem
os detalhes, os lábios, o traço dos olhos,
os sulcos dos cabelos e finalmente o ros-
to adquire vida. A obra está criada.
Ao pensarmos nas esculturas de
franklin Cascaes, logo recordamos suas
exposições, apreciadas ao longo dos
anos nas salas de exposição do museu
universitário Professor oswaldo rodri-
gues Cabral, no campus da universidade
federal de santa Catarina. A totalidade
do acervo encontra-se em reserva téc-
nica. Atualmente o museu está em fase
final da construção do pavilhão de ex-
posição, o que explica as apresentações
fora das instalações do museu. n
texto | vanilde rohling ghizoni é conservadora-restauradora de obras de arte.
fotos | divulgação agecom
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sempre foi crença do povo hospi-
taleiro desta ilha dos famosos bois de
mamão que, na sexta-feira santa, não
se deve tomar instrumentos de trabalho
para usá-los, seja qual finalidade for.
É também costume tradicional deste
povo, descendente de colonos açoria-
nos, que, na sexta-feira santa, a par-
tir de zero hora, devem banhar-se nas
ondas do mar, levando consigo animais
domésticos, para purificarem-se e pro-
tegerem-se de todos os males do copo
físico e espiritual.
As águas colhidas nesta hora servem
para todo o tipo de cura.
É a fé, longínqua dos tempos, aliada
à superstição, ao medo e ao amor pela
conservação do corpo físico, na cura dos
males que atacam o homem em franca vi-
vência espiritual e física com o seu deus.
As forças atuantes de práticas religio-
sas freiam os instintos animalescos do ho-
mem, encaminhando-o, espiritualmente,
para viver com bons modos junto com o
seu deus, com a cultura, na sociedade e
conseqüentemente com o seu próximo.
entrementes, sempre aparecem nos
meandros desses cenários fantásticos,
e outros moderados, pessoas que se
arrojam contra os poderes divinos, mal-
tratando esses conjuntos de sociedades
freadoras, veículos insubstituíveis de
abrandamento dos sofrimentos que mar-
tirizam e açoitam a criatura humana.
um caso de desrespeito espiritual
aconteceu há muitos anos passados, lá
pras bandas do sul da ilha de santa
Catarina.
A maria vivina, moradora da Praia dos
naufragados, fez uma aposta com a Carri-
ça, de que, na sexta-feira santa daquele
ano, ela tomaria uma vassoura e com a
mesma, varreria o quintal de sua casa e,
certeza tinha, nada lhe aconteceria de
extraordinário. Apostaram um par de ta-
mancos contra uma botina. E firmaram a
promessa da aposta, casando-a.
na sexta-feira santa daquele ano,
de manhã cedo, ela chamou a Carriça,
apanhou uma vassoura e foi varrer o
quinta “prá-mode” mostrar a sua cora-
gem contra o poder da fé guardada por
seus ancestrais e também para cumprir
a promessa da aposta.
quando a vivina deu a primeira
varredela, a vassoura soltou-se de
suas mãos quiném um relâmpago,
metamorfoseou-se em bruxa, ganhou
altura sobre o morro do ribeirão da
ilha e desapareceu, num repente, no
espaço sideral das alturas incomensu-
ráveis da quiméria.
A maria vivina caiu de joelhos no
terreiro, rezou e pediu perdão aos
céus pelo ato impensado que havia
cometido contra as ordens divinas,
chorando copiosamente. A Carriça
abraçou-se com ela e ambas choraram
e sentiram o amargo do néctar da de-
sobediência humana.
nenhuma das duas era bruxa, por-
que a vassoura, que é um instrumento
de montaria de bruxas, foi embora, via-
jar pelo espaço sideral, sozinha.
oh! minha querida ilha de santa Ca-
tarina de Alexandria, és a graciosa se-
reia que repousa sobre brancas areias de
cômoros errantes, sambaquis seculares,
banhada pelas ondas acasteladas do
oceano, perfumada pela brisa acarician-
te dos ventos e enxuta com as toalhas
felpudas dos raios solares que beijam ca-
lorosamente seu corpo mitológico.
franklin cascaes, 1946.
livro: O Fantástico na Ilha
de Santa Catarina, franklin
Cascaes, editora da ufsC.
vassoura bruxólica
“É, neste mundo de deus, há muitos mistérios
e esta gente simples aqui da ilha vive estas coisas