FOME DA NOVELA de MANDO MARTINS Tive a desgraça de nascer muQher independente numa épcca em que .passam vidas inteiras de mulheres a dançar nos bailes abraçadas aos ra- pazes e e m casa a fazer ren- das detrás dos janelas. Por sobre isto, Dive a des- graça de nascer no seio duma faaniUia feliz e aconchegada. Por esta razão, quando saí da paz satènfeiíba da casa de meus pais para o escritório do se- nhor Morais—o de bigode branco e botas de biqueiras In- chadas, à policia, sócro da fir- ma Morais e Companhia— tudo foram cantrairiedades, estrainihezals, pequeninas des- graças inúmeras que molha- vam die lágrimas os meus de- sesperos. Meses passadios, o escritório dos senhcras Memalis e Compa- nhia era o prolongamento do aconchego da minha oasa, tinha lá uns chinelos de aga- salho e u m a pasta dentífrica. Um dia descobri que tinha dezdito alr.os e u m oonpo bem talhado, quie meu pali era ve- lho, o escritório e o dono con- fortáveis, mie a minha vida era demasiadamente cómoda para poder ser feliz. Apareceu então, vindo da Alemanha, o Antóndo Gaspar, filho do senhor Morais: uim rapaz viajado, lciro, bem fa- lante, que sabia gastar o di- nheiro do pai. Apanhou-me nessa época de criise em que eu ia ensaiar o salto para uma vida dúversa, lar.çar-me no turbilhão de sensações deli- rantemente imaginadas, e ati- rei-me ao Antór.èo Gaspar c:mo os garotos quis se pren- dem à cauda do comboio para uim país estranho e desejado, sem pagar bilhete. Meses depois conheci que era estúpido e banal como a maioria do rebanho d a s h o - mens, mas foi êle a porta por onde entrei para a vMla: por- que eu nasci com dezoito anos feitos. Foi ainda, à custa dele. me- to dizendo, à custa do pai dele, que entrei' para o teatro. Nunca gostei de teatro, nun- ca julguei que viesse a apre- ciar tam fútil maneira de en- treter a vida. Foi nuima noite de domin- go: no palco havia uma casa com heras, um comboio imó- vel ao Icnge e u m a actriz, que afinal nem ora tam bonita :omo eu, a berrar desalmada- mente pelo namorado. No In- tervalo atiraram-lhe muitas palmas, ela dei-ceu do palco e veio dar um beijo na calva dum velho, ao meu lado. O v e - lho derreteu-se de gozo; a m u - lher do velho chamou-lhe des- carada, atrevida, limpando a mancha vermelha de báton cem um lenço de seda e c u s - po. Encantou-me a liberdade da- quela rapariga alegre que po- dia beijar um homem diante de tanta gente. Acaso havia ali outra mulher com direito de o fazer? Claro q u e n ã o . niem mesmo a sua esposa. Que b o m n ã o e r a ! Ter assim uma vida livre, aplaudida, es- crita nos jornais, e sobretudo poder beijar um homem que nunca se viu. em público, sem ser chamado à policia. Fui actriz, uma actriz me- díocre. Como não tenho feitio para viver dependente de ninguém, e multo menos de homEms— qiu'e e l e s j u l g a m ,que tèm sobre mós mate direitos que sobre quaisquer outros animais—de- pois de me encher de- amor, depois de bebedeiras seniti- mentate a rimar dedicações etarnas, depois das semanas intimas convividas em ternu- ras carinhosas e passeios de contentamentos unidos numa ou noutra aldeia branca e pe- quena com ramadas ao sair da ^citação e pensões aimávete * pitorescas, depois de saitàsfa- zeT o m e u instinto amoroso, fiz-me uma miuMier que se governa, independente, que tanõe a sua afirmação social. Fiz-me chefe duma troupe. Fomos representar pela pro- víncia. A peça intitulava-re «Flor Abandonada > — a costumada vaoíação tola da mulher que teve /um filho e é deixada pelo homem que a deshonrou. Eu tinha quj chorar em cena durante uns bens vinte minutes seguidos. A minha interpretação era Cria, desin- terespada. Ser artista era para mrtn uma profissão teomo qual- ouer outra, com a obrigação órfica de reter o público lòr- pa. a olhar cara nós durante umas horas. De resto, chorava ermo uma dactilógrafa es- creve à máquina, fria. pro- ^"••'irinnilmente. Nem comore- findia aue pude? 1 * ser doutra maneira. Uma noite sal do teatro a pé, para casa. A u m canto num largo brincava um homem gordo, alto, vermelho da cara, com uma rapariguita esquelé- t'ca e miúda, que lhe girava em volta corutentísima, cheia de riso. de meiguices, de fra- ses de ternura amiga, de pe- queninas carícias infantis. De- viam ser antigos e bons na- morados. O homem vermelho da cara. quando farto de to- das aquelas solicitudes cari- nhosas disse—basta!, c o m a r aborrecido aprwolmau-fe mais da rapariga, apalpou-lhe os braços magros, deu-lhe uma pancada no hombro como se faz aos cavalos nas feiras e pronunciou uma frase dúbia de negociante. Virou-lhe as costas, batendo uma gargalhada dura seguida do martelar das botas nas pe- dras nocturnas. A rapariguita ficou imóvel a olhá -lo como se a tivessem pregado ao chão. Passado multo temipo, aiTancou os pés vagarosamtnte e foi sentar-se- ã porta velha duma parede próxima. Um candeeiro agres- sivo babava-a duma luz ama- refia idiota. Desaitou a chorar. Sentei-me junto dela. Os soluços que lhe levantavam o peito magro faziam ouvir o respirar fundo dos puCimões: tinha a Impressão de que aqueles soluços saiam d o m e u corpo, e qiue uma angústia enorme me abalava. Queria dlzer-Uie alguma coisa, con- íolá-la. dar-lhe uma esmola; mas s ó m e ocorriam palavras banais, vaidosamente, cnía- tuadauiemte estúpidas. E fugi. O meu papei na «Flor Aban- donada» constava dum trecho aeslm. Mas que diferença en- tre o m e u de-empenho e o daquela rapariga magra! Só ela me fez compreender a dis- tância que vai da Vida. apa- rente à vida sentida, da su- perfície d"as expressões à pro- fundidade rica. ansiosa, fer- vente, vibrante, do lodo da vi- da do homem, onde têm raízes as raivas sanguinolentas, as riinftbdades abãVcadoras e cal- mas, os desesperos doidos, Im- ncJtenites como mã^ts paralí- fiicas a desejarem uma gar- ganta para o estrangulamen- to. A sua sincera alegria for- çada, a sua fabricada sinceri-> dade davam-me a medida da dór que as produzia. Foi a primeira vez que senti sofrer um semelhante: aquele contentamento expansivo, tempestuoso, que de repente caiu numa tristeza morta, cenfrangeu-me a alma. Abalou-me a simplicidade brutal da vida: que uma min- to se compra, fácil, rapida- mente, como um quilo de arroz na mercearia. Comecei a sofrer com Inten- sidade e propósito. Gozei pelo sofrimento: que hoje para sorver a vida toda, vivê-la até ao fundo, é preciso sofrer mul- to. A dôr é o maior gozo de viver, um delicioso excitante do prazer aumentado. Sofrer uma dôr enorme para saborear merdo a mordo o prazer sem íim que vem depois, e n ã o cabe no corpo: é preciso para a vida. Tempo virá, e m q u e n a vida só o prazeT dará gozo e feli- cidade. Procurei a rapariguita es- quelética, cuja teatral alegria me fez sofrer e m e revelou a Potência comovedora d u m e s - tado de alma bem definido nas atitudes. Trabalhamos as duas. Fo- mos duas artistas geniais. A vida que fabricávamos para o palco era por vezes mais in- tensa do que a realidade em que estávamos metidas. Depois de certas interpretações fazia esforços pesados para me ada- ptar aos meus hábitos, para representar a existência a que cs outros chamavam real. Se interpretava a Nora de Ibreu, ddas e dias a reguir agia eu pela psicologia daquela .personagem e pensava pelo sen cérebro. Apertadas numa amizade irmã e compreensiva, bebemos do mesmo copo o vipbo forte da glória, deliramos juntas, pelos pafeos de todo o mun- do, bebedeiras de génio. Na amizade sólida, há sem- pre um a dominar, e o outro a adaptar-se, a ser trabalhado pela individualidade do domi- nador. Entre m i m e a minha ami- ga, nada nos separava, e r a e u que comandava sem dar or- dens, a sua maneira de ser; a VIDA sua psicologia desenhara-se .inconscientemente a tal pon- to pela manha, que cumpria os meus desejos sem lhos dizer nas palavras. •Revoltada com o sincero servilismo da amizade, pro- pus-Khe que nos separássemos. Choramos. Tinha que ser. Eu resolvera-o. Deixei também o teatro. Que malte podia eu fazer? Ne- nhuma artista de ,todos os tempos do mundo alcançara a minha raiva genial, o arrebato doido das minhas criações. Começava a repetir o m e u s u - blime, j á n ã o podia excedê-lo. Aquela qualidade de vida já a tinha sorvido a t é a o fundo. •Repetir sensações é a cobar- dia dos ociosos e dos impoten- tes para criar. Saborear sem- pre os mesmos prazeres faz perder a intensidade do prazer primeiro e estraga o paladar. De mais o teatro estava a deteriorar toda a minha ma- neira de ser. Nos clubes, em casa, representava inconscien- temente para m i m e para os outros. O m e u primeiro Ímpe- to de ser sincera com alguém estacava ao surgir-me a ideia —e se eu mentisse? E mentia teatralmente, e r a - m e um enorme prazer quando alguém me contrariava falando ver- dade e, por fim, se convencia dos meus dizeres perante a compostura recta fios meus gestos. Sobrepor a mentira à irealildadie fabricada, à reali- dade sensível e concreta, es- carnecer da natureza steutía e da sinceridade dolorosa dos outros, tornou-se-me um pas- satempo. E o pior é que representava para m i m . n a s minhas acções e atitudes mais humanas, exa- minava-me constante, miuda- mente, reprimia os meus ges- tos mais espontâneos, outras vezes lançava gestos e frases propositadas para observar o efeito que deixavam e m m i m e nos outros. A cada passo me surpreen- dia a fazer teatro na minha vida mais íntima e a mane- jar, a fazer dos meus amigos actores para apreciar como espectadora toda aquela peça. Sofria com teso um prazer doloroso, prinoipatonente quando os outros sofriam e choravam sinceramente, mexi- dos pelo meu capricho. Depois chamava-me hipócrita, má— e recomeçava: para ser hipó- crita devia aparentar... e se- guia. Quási endoideci, perdida por completo a espontaneidade natural e efusiva que faz sal- tar a alegria e a tristeza ime- diatas, virgens da personali- dade humana. Hoje, preguntQ-me onde co- meça o teatro e onde acaba a vida sincera. Farta de agitações, de sen- sações inquietas e potentes, embarquei para a índia. Compus poesias líricas no estilo de Tagore e casei com um príncipe Indiano déspota e bruto. Amei o amor de ser domi- nada por um homem de qua- renta anos, selvagem e áspero como o seu idioma estranho. Amei o amor bizarro num pais exótico e quente, onde o amor é u m a sensualidade se- guida debaixo d u m s o l e m bra- sa, diante de paisagens sere- nas, à tarde, com céus dese- nhados de palmeiras elegan- tes e u m rio ocioso a lamber ipernas de salgueiros, duma largura de água aberta des- caradamente como uma barri- ga. Saboreei a volúpia dos es- cravos sob o chicote, q u e m e abriu vergões de sangue no corpo, do meu senhor déspota e bárbaro. Os nervos cansaram-se da- quela Inactividade, do descan- ço parado como num poço, dos meus dias vagarosos. Depois de correr todo o Oriente e deixar um amor em cada pais novo, um desespero em cada um desses orientais, ardentes e caprichosos que me beijavam os pés com vo- lúpia, fui para Paris. Ai en- contrei de toda a minha vida -^o primeiro HOMEM. Fomos amigos como dote cais. Trabalhávamos juntos noites inteiras. Dele só posso dizer: n ã o e r a como nenhum dos que até al havia encon- trado: era outro. Tinha um crâneo forte como os pulsos ginastas. Raciocina- va dura e facilmente como uma fonte a correr água. No amor mais carnal éra- mos simplesmente dote bons camaradas. Choquei c o m ê l e n a vida por acaso—mas foi o meu primei- To Hncontro Humano. Como estava longe de compreender a aproximação próxima, o contacto intimo, profundo, hu- mano, que gera o entendimen- to de d-ols semelhantes! Quando um homem e u m a mulher se encontram desta maneira. intimamente, Irmã- mente, sem qualquer contacto carnal que os junte, podem produzir coisas admiráveis, revolver o mundo inteiro, in- ventar uma vida nova. como dois homens machos que cons- truíssem—oh fantasia! — u m filho do seu esforço incarnai. Eu andava alegre como uma gargalhada saudável. Depois acabou. Estava a e n - fraquecer a tensão do nosso entendimento e perdíamos tempo de trabalho. Separámo- nos. Depois disto, cai num esta- do imbecil: escrevi livros, (que hoje são estudados nas histó- rias da literatura por profes- sores de lunetas), sobre o nosso Encontro. Ressaboreei. revivi as nossas relações des- de o começo, lembrando os pormenores u m a u m . Também Isso j á l á vai—não gosto de ler livros n e m dte v e r teatro. Só aprecio a vida na- tural, espontânea, que sai dentro de nós como uma fol- gada de sangue bom. Na procura inquieta, cons- tante, do fim da Vida, s ó l h e encontro este—VIVER. Mas isto é a vida fechada a dar a volta a si própria. O F i m d a Nassa Vida deve ser tornar melhor a nossa e a vida dos aue vierem. Há tanto a fazer! A vida pode aflaTgar-se ainda tonto em extensão e profun- didade! Deus? Os que vierem tmmito depois de nós talvez ftenhaim razão e tempo para pensar nisso. O médico aconselha-me que vá descansar para o campo. Para quê? faço hoje 40 anos e não estou cansada de viver. Chamo-me Maria Laura; mas isto n ã o tem importância. BIOGRAFIA por António Gameiro Cada novo dia que seja o meu primeiro dia. Que nada se afigure estranho e tudo inteiramente novo se alargue e recorte em outra claridade. Os meus olhos serão mais claros e luminosos e tudo em mim guardará uma virtualidade mais profunda. O delíquo do instante despedindo-se a feliz pei turbação da chegada próxima a doce inquietude para além das formas e dos seios vigorosos e descobertos — a simplicidade duma biografia sem detalhes. De tudo que foi e porque ou para que a vida me jogou, de tudo me alongo, em cada instante, sem lágrimas nem uma saudade nem um adeus. Caminho. Caminho para reflorir-me em mim mesmo na florescência túmida e suavíssima de cada novo dia, — mais forte mais generoso mais verdadeiro, ' acarinhando todos os sonhos de braços bem abertos para cada novo dia. E mais decidido mais confiante mais e mais humano para que tudo em mim guarde a virtualidade mais profunda e cada novo dia seja o meu primeiro dia. (De <íA Minha Condição de Escravo», inédito.)