67 Revista Anhangüera v.8 n.1 jan./dez. p.67-88 2007 FLORA MEDICINAL NATIVA DO BIOMA CERRADO CATALOGADA POR ESTUDOS ETNOBOTÂNICOS NO ESTADO DE GOIÁS, BRASIL. Cristiane Soares Pereira da Silva 1 , Carolyn Elinore Barnes Proença 2 Resumo Este estudo teve como objetivo registrar os trabalhos etnobotânicos realizados no cerrado goiano e catalogar as espécies medicinais que são utilizadas pelas comunidades locais. A pesquisa bibliográfica identificou oito trabalhos, sendo registradas 141 espécies nativas distribuídas em 48 famílias. A família Fabaceae foi a mais representativa quanto ao número de espécies (17%) e o hábito de vida predominante foi o arbóreo (36%). Nos trabalhos avaliados verificou-se que o número amostral de informantes e a quantidade de espécies nativas catalogadas variaram entre os informantes generalistas e os especialistas locais. Os trabalhos que enfocaram os generalistas, pessoas da região selecionadas aleatoriamente, entrevistaram uma média de 294 ± 256 informantes por autor e o conhecimento de plantas medicinais esteve condicionado às espécies cultivadas em quintais. Em contrapartida, a pesquisa realizada com os especialistas locais, grandes conhecedores das plantas medicinais da região, mostrou que o número de espécies nativas registradas foi maior, sendo possível compreender que os curadores populares detêm conhecimentos aprofundados sobre técnicas tradicionais de reconhecimento e extrativismo da flora do Cerrado. Palavras-chave: etnobotânica, plantas medicinais, comunidades locais, curadores populares, quintais. NATIVE MEDICINAL PLANTS OF THE CERRADO CATALOGUED BY ETHNOBOTANICS STUDIES IN THE STATE OF GOIÁS, BRAZIL Abstract This paper aims to register the ethnobotanic studies carried out in the Cerrado of Goiás and to catalogue the medicinal plants used by local communities. This review identified eight works, and has shown 141 species, belonging to 48 families. The family with the greatest number of species was Fabaceae (17%) and the preponderance was of arboreal species (31%). In the studies evaluated, the number of informers and the amount of native species varied with the general and local specialist informers. The works that had focused on the general informers, people of the region selected at random, interviewed an average of 294 ± 256 informers by author and the knowledge of medicinal plants was conditional to the species cultivated in backyards. The research carried out with local 1 Bióloga, Mestre em Botânica pela Universidade de Brasília, UnB. [email protected]2 Agrônoma, Doutora pela University of St. Andrews, Escócia. Professora do Departamento de Botânica da Universidade de Brasília, Campus Darcy Ribeiro, Ala Sul, Brasília, DF.
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FLORA MEDICINAL NATIVA DO BIOMA CERRADO CATALOGADA … · bioma Cerrado deve ser considerado área prioritária para a realização de pesquisas etnobotânicas, uma vez estas que
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Cristiane Soares Pereira da Silva1, Carolyn Elinore Barnes Proença2
Resumo
Este estudo teve como objetivo registrar os trabalhos etnobotânicos realizados nocerrado goiano e catalogar as espécies medicinais que são utilizadas pelas comunidadeslocais. A pesquisa bibliográfica identificou oito trabalhos, sendo registradas 141 espéciesnativas distribuídas em 48 famílias. A família Fabaceae foi a mais representativa quantoao número de espécies (17%) e o hábito de vida predominante foi o arbóreo (36%). Nostrabalhos avaliados verificou-se que o número amostral de informantes e a quantidadede espécies nativas catalogadas variaram entre os informantes generalistas e osespecialistas locais. Os trabalhos que enfocaram os generalistas, pessoas da regiãoselecionadas aleatoriamente, entrevistaram uma média de 294 ± 256 informantes porautor e o conhecimento de plantas medicinais esteve condicionado às espéciescultivadas em quintais. Em contrapartida, a pesquisa realizada com os especialistaslocais, grandes conhecedores das plantas medicinais da região, mostrou que o númerode espécies nativas registradas foi maior, sendo possível compreender que os curadorespopulares detêm conhecimentos aprofundados sobre técnicas tradicionais dereconhecimento e extrativismo da flora do Cerrado.
AbstractThis paper aims to register the ethnobotanic studies carried out in the Cerrado of Goiásand to catalogue the medicinal plants used by local communities. This review identifiedeight works, and has shown 141 species, belonging to 48 families. The family with thegreatest number of species was Fabaceae (17%) and the preponderance was of arborealspecies (31%). In the studies evaluated, the number of informers and the amount ofnative species varied with the general and local specialist informers. The works that hadfocused on the general informers, people of the region selected at random, interviewedan average of 294 ± 256 informers by author and the knowledge of medicinal plants wasconditional to the species cultivated in backyards. The research carried out with local
1Bióloga, Mestre em Botânica pela Universidade de Brasília, UnB. [email protected]ônoma, Doutora pela University of St. Andrews, Escócia. Professora do Departamento deBotânica da Universidade de Brasília, Campus Darcy Ribeiro, Ala Sul, Brasília, DF.
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specialists showed that the total of native species was bigger, being possible tounderstand that the folk healers withhold deep knowledge on traditional techniques ofrecognition and collect the species of Cerrado.
Key-words: ethnobotany, medicinal plants, local communities, folk healers, backyard.
Introdução
O bioma Cerrado está localizado basicamente no Planalto Central brasileiro
e ocupa uma área original de dois milhões de Km2, o que representa 23% do
território nacional (AB’SABER, 1983). Segundo a classificação de Köppen, o
clima predominante é do tipo Aw ou tropical úmido, com a presença de duas
estações bem definidas marcadas por invernos secos e verões chuvosos (EITEN,
1994).
O Cerrado engloba uma das maiores diversidades taxonômicas e
bioquímicas do planeta (GOTTLIEB e BORIN, 1994) e apresenta uma grande
variedade de sistemas ecológicos decorrentes de uma combinação peculiar de
condições edáficas e climáticas, que somadas ao relevo e à altitude, originaram
uma vegetação diversificada (EITEN, 1994) e amplamente utilizada para fins
econômicos, destacando-se as espécies de interesse medicinal (SIQUEIRA,
1981 e 1988; VIEIRA e MARTINS, 2000; RODRIGUES e CARVALHO,
2001; GUARIM-NETO e MORAIS, 2003), alimentício (ALMEIDA, 1998;
ALMEIDA et al., 1998), tintorial (GARCIA, 1981; MIRANDOLA FILHO e
MIRANDOLA, 1991; ALMEIDA et al., 1998), oleaginoso (MACEDO, 1992;
ALMEIDA et al., 1998) e ornamental (SILVA et al., 2001; PROENÇA et al.,
2006).
Apesar do grande número de trabalhos realizados até o momento, ainda
há carência de estudos sobre as espécies úteis do Cerrado sensu lato,
principalmente aqueles relacionados ao uso de plantas medicinais (GUARIM-
NETO e MORAIS, 2003). Este é um fato preocupante, pois se estima que
mais de 80% da área territorial do Cerrado se encontra em estágio avançado
de antropização e fragmentação, sendo que apenas 2,5% estão protegidas por
lei em unidades de conservação (ARRUDA, 2003). É neste contexto que o
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Tabela 1. Relação dos trabalhos etnobotânicos realizados no Estado
de Goiás por ordem cronológica da realização do estudo, número de
espécies nativas do Cerrado amostradas e número total de espécies
catalogadas, entre nativas e exóticas. Autores Município Tipo e nº de
informantes* Nº de spp.
nativas Total
Rizzo et al. (1985) Goiânia G (249) 13 94 Rizzo et al. (1999) Pirenópolis/ Cidade de Goiás G (250) 33 110 Silva et al. (2001) Alto Paraíso de Goiás E (8) 26 41 Tridente (2002) Porangatu G (180) 10 123 Arantes et al. (2003) Itumbiara G (802) 27 177 Vila-Verde et al. (2003) Mossâmedes G (200) 35 - ** Souza e Felfili (2006) Alto Paraíso de Goiás E (20) 58 103 Silva (2007) Ouro Verde de Goiás E (6), G (84) 52 (E = 47,
G = 19) 161
* G = Informantes generalistas. E = Informantes especialistas locais.** Os autores não divulgaram o número de espécies medicinais exóticas e cultivadas
utilizadas em Mossâmedes, citaram apenas as espécies nativas do Cerrado.
A pesquisa etnobotânica realizada junto aos informantes generalistas revelouque a forma de acesso mais comum às plantas medicinais é por cultivo doméstico.
Tridente (2002) e Rizzo et al. (1999), respectivamente, constataram que 94%
das plantas medicinais citadas na cidade de Porangatu e 71% das espécies
citadas na cidade de Goiânia são cultivadas nos quintais domiciliares. Resultado
semelhante também foi encontrado por Vila-Verde et al. (2003) em
Mossâmedes, onde 80% da população entrevistada desconhecem o valor
terapêutico da flora nativa e citam, na maioria das vezes, plantas exóticas e
domesticadas.
Entre os trabalhos etnobotânicos avaliados, constatou-se que o
conhecimento de plantas medicinais entre os informantes generalistas esteve
condicionado basicamente às espécies que são cultivadas em quintais. Acredita-
se que esse resultado possa ser influenciado pela própria presença do quintal, a
qual aumenta o campo de explanação do informante, podendo agir como um
auxílio à memória, influenciando no número de espécies citadas. Já o maior
conhecimento das espécies nativas do Cerrado encontra-se confinado,
principalmente, junto a um grupo de informantes especializados, tais como
raizeiros, parteiras, curandeiros e benzedeiras, cuja atuação na comunidade
representa a permanência das tradições de reconhecimento, extrativismo e uso