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FICHA TCNICA
Ttulo Perspetivas sociolgicas e educacionais em estudos da
criana: as marcas das dialogicidades luso-brasileiras Autor Leni
Vieira Dornelles e Natlia Fernandes (ed.) Editor Centro de
Investigao em Estudos da Criana, Universidade do Minho, Braga Tipo
Suporte Edio Electrnica Layout Amanda Nogueira e Ricardo Fernandes
Publicao 2012 ISBN 978-989-8537-02-7
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I
NDICE INTRODUO
Leni Vieira Dornelles, Natlia Fernandes - As marcas da
dialogicidade nos estudos da criana luso-brasileiros notas
introdutrias
1-7
CAPTULO 1 - INFNCIA E PESQUISA COM CRIANAS Altino Jos Martins
Filho, Ana Claudia Ferreira Martins - A complexidade da Infncia:
balano de uma dcada das pesquisas com crianas apresentadas na
ANPEd/Brasil Anne Carolina Ramos - Pesquisas com crianas:
possibilidades e desafios metodolgicos Andra Carla Pereira Campos
Cunha, Natlia Fernandes - Participao infantil: a sua visibilidade a
partir da anlise de teses e dissertaes em Sociologia da Infncia
9-21 22- 35 36-48
CAPTULO 2 - INFNCIA E CIDADANIA Alexandra Bernardete Roadas
Botelho - Aprendendo a Vida, Escutando as Vozes das Crianas Maria
Manuela de Sampaio Pinto Silva, Rosana Coronetti Farenzena -
Participao Infantil e Autonomia no Jardim de Infncia: uma Questo de
Cidadania Gabriela de Pina Trevisan - Cidadania infantil e
participao poltica das crianas: interrogaes a partir dos Estudos da
Infncia Ilda Freire-Ribeiro - Quais so os teus direitos? Direito da
privacidade, direito da alegria, direito de ser feliz, direito de
brincar, direito de ser digno: Conceo das crianas sobre os direitos
da criana Denise Hosana de Sousa Moreira - Infncias para alm da
participao: um estudo sobre crianas na pesca artesanal
50-71 72-83 84-105 106-121 122-136
CAPTULO 3 - INFNCIA E PROTEO Cristvo Pereira Souza, Maria da
Conceio Passeggi - As narrativas videobiogrficas no estudo da
infncia de risco Ana Margarida Canho - Entre a Proteco e a
Participao Olhares das Crianas e Jovens sobre as Prticas de
Interveno de uma CPCJ em Portugal Carlos Alberto Batista Maciel,
Edval Bernardino - Violncia Contra Crianas e Adolescentes em
Municpio de Fronteira na Amaznia Brasileira Antnio Genivaldo Silva
Feitosa - A Infncia Abrigada: Impresses das Crianas na Casa Abrigo
Maria Paula Panncio-Pinto, Bruna Maria Coelho Freitas - Crianas
vitimizadas: relato de experincia de interveno
138-150 151-180 181-200 201-218 219-228
CAPTULO 4 - INFNCIA E DEVIRES Cristiano Bedin da Costa -
Arquitetnicas infantis: mapas, trajetos e devires em educao Alberto
Filipe Arajo, Armando Rui Guimares - Da criana arquetipal mitologia
da infncia. Uma abordagem a partir de James Hillman Antnio Camilo
Cunha - A Criana e o brincar como obra de arte - O sentido de um
esclarecimento Andrea Abreu Astigarraga, Maria da Conceio Passeggi
- O governo de si e o governo do outro no contexto da famlia rural:
do trabalho infantil universidade Nilce Vieira Campos Ferreira,
Fernanda de Alencar Machado Albuquerque - Educao profissionalizante
para crianas: Minas Gerais no incio do sculo xx
230-240 241-261 262-269 270-284 285-298
CAPTULO 5 - INFNCIA E DIFERENAS
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II
Thasa de OliveiraLima - Qual o teu segredo para ser to pretinha:
o preconceito com crianas negras na educao infantil Leni Vieira
Dornelles, Daniela Lemmertz Bischoff - Misturas de cores: Olhares
sobre diversidade e raa na Educao Infantil Marinete Loureno Mota,
Antnia Rodrigues Silva - A Escola ao p de fronteira: percepo e
possibilidades de uma educao multi/intercultural crtica para a
cidadania infantil
300-308 309-319 320-331
CAPTULO 6 - INFNCIA E POLTICAS EDUCACIONAIS Filomena Correia,
Ariana Cosme - O desenvolvimento comunitrio e a ao dos Agrupamentos
de Escolas: Um estudo de caso Viviane Aparecida Silva, Carla Maria
Fidelis - A escuta da criana em uma auto avaliao institucional
Emlia Vilarinho As polticas da educao pr-escolar em Portugal Slvia
Nli Barbosa Entre concepes e prticas: desafios para o currculo na
educao infantil
333-353 354-364 365-384 385-401
CAPTULO 7 - INFNCIA, PROFESSORES E EDUCAO Isa M. C. S. Domingues
,Teresa Sarmento, Maria da Graa N. Mizukami - Os casos de ensino na
formao-investigao de professores dos anos iniciais Heloisa Josiele
Santos Carreiro, Mrcia Fernanda Carneiro Lima Os combinados como
prtica na educao infantil: algumas reflexes Maria de Ftima Arajo,
Maria da Conceio Passeggi - A escola e os professores da educao
infantil sob a tica das crianas Maria Conceio Pillon, Marlene Rozek
- A Formao de leitores na Educao Infantil. Marlia Felippe, Paula
Pecker - Multiplicando saberes: conversas sobre msica entre o
professor especialista e o educador de infncia Francinaide de Lima
Silva, Maria Arisnete Cmara de Morais - Escolarizao da criana no
Grupo Escolar Modelo Augusto Severo (Natal | RN | Brazil,
1908-1920).
403-414 415-429 430-441 442-450 451-464 465-477
CAPTULO 8 - INFNCIA E INCLUSO Maria Amlia Dias Martins,Rui
Trindade - Educao Para Todos: NEERE Modelo de No Excluso pela
Eficcia na Remediao Educativa Andra Tonini, Ana Paula Louo Martins
- Dificuldades de aprendizagem especficas: As polticas Educacionais
de incluso em Portugal e no Brasil Letcia F. Dal-Forno, Feliciano
H. Veiga, Sara Bahia - Caractersticas de sobredotao e criatividade
percecionadas por educadores de Infncia no Brasil e em Portugal Ana
Barreto, Cristina Vieira - A criana diferente vista pelos seus
pares: resultados de um estudo feito numa escola inclusiva
portuguesa do 1 ciclo do ensino bsico Geraldo Eustquio Moreira, Ana
Lcia Manrique - O que pensam os professores que ensinam matemtica
sobre a incluso de alunos com NEE? Diana Tereso Coelho - Dislexia,
disgrafia, disortografia e discalculia
479-497 498-509 510-522 523-543 544-564 565-581-
CAPTULO 9 - INFNCIA, ARTES, VISUALIDADES e LINGUAGENS Maria
Arlete Carrapatoso Figueiredo - A poesia de Matilde Rosa Arajo
(re)vista pelas crianas Magda Viegas - Mosaico de Infncia Debora
Perillo Samori - Pegaram o livro que voc ia pegar - A produo de
culturas infantis a partir da escolha de livros pelas crianas do 1
ano do Ensino Fundamental
583-603 604-625 626-646
CAPTULO 10 - INFANCIA E LUDICIDADE Vernica Maria de Arajo
Pontes, Daniela Deyse Silva de Alencar - O brincar na educao
648-658
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III
infantil: um olhar sobre os(as) professores(as) e sua prtica
pedaggica Alberto Ndio Silva - Infncia, Cultura e Ludicidade Coisas
das Crianas Geovanna de Lourdes Alves Ramos - Memrias, infncia e
brincadeiras: vivncias de moradores na cidade de Uberlndia/MG.
659-684 685-698
CAPTULO 11 - CIBERINFNCIA E CULTURAS INFANTIS Alessandra
Alcntara, Antnio Jos Osrio - A internet na vivncia ldica da criana
Leticia Porto Pedrosa - Cmo socializan las pelculas de animacin a
los ms pequeos? Estudio de los conflictos emocionales a partir de
grupos de discusin con menores Nlia Mara Rezende Macedo - Curtir,
comentar, compartilhar: O que fazem as crianas no Facebook? Grcia
Rodrguez, Leonardo Albuquerque - A Rdio chiquita: Uma ao formativa
de educomunicao e cidadania infantil
700-713 714-727 728-744 745-756
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1
AS MARCAS DA DIALOGICIDADE NOS ESTUDOS DA CRIANA
LUSO-BRASILEIROS
NOTAS INTRODUTRIAS1
Leni Dornelles
Natlia Fernandes
A obra Perspetivas sociolgicas e educacionais em estudos da
criana: as marcas das
dialogicidades luso-brasileiras vem sistematizar no registo
escrito a ampla participao de
pesquisadores no I Simpsio Luso-Brasileiro em Estudos da Criana.
Este evento veio ajudar
consolidao da rea dos estudos da criana, como uma rea viva, de
gradual visibilidade na
comunidade acadmica e portanto, de uma enorme relevncia
cientfica e tambm social, que
tem encontrado no contexto das lusofonias entre Portugal e o
Brasil um aliado importante. em
constantes travessias transatlnticas, das quais este simpsio
revelador.
O nosso objetivo ao organizar este Ebook o de trazer a
dialogicidade que pautou as discusses
entre pesquisadores, estudiosos da rea de Estudos da Criana, no
que se refere pesquisa
sobre e com crianas, bem como tratar da formao de professores,
buscando similaridades,
regularidades, ausncias, presenas e tambm urgncias. Entendemos
que este trabalho possa
contribuir para o dilogo entre as diferentes reas e tpicos
temticos desenvolvidos em cada
texto aqui apresentado, dando visibilidade a um percurso
construdo nas ltimas dcadas, que
vai desconstruindo a ideia de Davies, nos anos 40.
H 70 anos atrs Davies afirmava, numa daquelas que foram as
primeiras publicaes onde a
criana aparecia como palavra chave, que2
[...] as funes mais importantes de qualquer indivduo na
sociedade so
desempenhadas por aqueles que j so completamente adultos, no
quando
eles so imaturos. Nesse sentido o tratamento que a sociedade
deve dar
criana principalmente preparatrio e a sua avaliao
essencialmente
preventiva. Qualquer doutrina que veja as necessidades da criana
como
1 Este Ebook teve como rgos financiadores a CAPES do Brasil e a
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a Universidade do
Minho,
Departamento de Cincias Sociais da Educao e Centro de Estudos da
Criana de Portugal.
2 Davies, k. (1940). The child and the social structure. The
Journal of Educacional Sociology, 14, n 4, 217:229
-
2
fundamentais e as da sociedade organizada como secundrias uma
anomalia
sociolgica. (Davies, 1940: 217)
Passados 70 anos, os estudos sociais da infncia tm como
principal objetivo a negao da
afirmao de Davies. Negam que as crianas no tenham funes
importantes na sociedade:
elas so determinantes na vida familiar, social e no domnio
profissional: quantas profisses no
existiriam se no existissem crianas? Quantos milhares de
empresas deixariam de gerar
milhes de capital em produtos para as crianas e dessa forma
dinamizar a economia mundial?
At poderemos querer enganar-nos e omitir que elas so invisveis
nestes processos, mas no
podemos ignorar que assumem uma importncia fulcral! Negam esta
dicotomia entre
crianas/sociedade organizada afinal as crianas esto aonde? No
faro elas parte da
sociedade tal qual como qualquer outro ser humano?
Os estudos da criana no negam, claro, que as crianas so pessoas
pequenas, mas este facto
no as torna menos humanas. Como referem Qvortrup,
Corsaro&Honig, no Palgrave Handbook
of Childhood Studies (2009), por vezes, fica-se com a impresso
que a sua pequenez nos conduz
a, conceptualmente, as encarcerar num micromundo ou num mundo de
particularismos.
As crianas raramente so estudadas como pessoas que fazem parte
de uma esfera universal
cosmopolita ou global. Contudo, elas esto presentes em todas as
sociedades e na maior parte
dos contextos e devem ser tidas em conta em todos estes tempos e
espaos.
As crianas esses seres de que tanto se fala na academia, na
sociedade mas sem as deixar
falar, indo de encontro ao Jenks refere quando defende que a
criana -nos familiar, e no
entanto, estranha; habita os nossos mundos e, ainda assim,
parece responder a um outro,
essencialmente nossa mas parece mostrar uma forma diferente de
ser ( [1982] 1992: 9), tero
uma oportunidade mpar ao longo desta obra para fazer ouvir as
suas vozes na caraterizao
daqueles que so os seus mundos de vida.
Apesar de a totalidade de comunicaes que iro ser apresentadas ao
longo do Ebook no ser
reveladora destas vozes na primeira pessoa, pareceu-nos
pertinente integr-las como uma
estratgia de estabelecer pontes e dilogo, na convergncia daquele
que deve ser o mote
orientador das nossas pesquisas: o interesse superior da criana
e a legitimao da ideia de que
as crianas so atores sociais, com direitos reconhecidos em
termos formais, os quais a
academia deve tambm respeitar e consolidar.
, portanto, necessrio convocar para esta tarefa diferentes
parceiros, com diferentes
enfoques, e neste Ebook encontramos textos que abarcam uma
diversidade significativa de
reas cientficas: das artes, educao, passando pela psicologia,
pela sade e pela interveno
social, encontramos captulos que iro refletir sobre temas como
ludicidade / politicas
-
3
educacionais / devires / incluso / pesquisa com crianas / proteo
/ diferenas / educao
infantil / cidadania / formao de professores /artes,
visualidades e linguagens.
, no entanto, fundamental desenvolver este processo de uma forma
cuidadosa, atravs de
aquilo que Weber designa por afinidades eletivas, ou seja, a
possibilidade de construir relaes
internas e dialgicas, fundamentais para a compreenso de
realidades complexas e a infncia
uma realidade complexa! e no uma realidade menor como foi
considerada at h bem pouco
tempo - , de relaes complexas, tentando desta forma superar
reducionismos correlacionistas,
que nos impedem de dar resposta complexidade de que se reveste a
infncia e os estudos da
criana. Talvez a nica convergncia seja esta relativa imagem de
infncia que nos deve
orientar e ao papel que os sujeitos desse grupo geracional
desempenham quer na pesquisa,
quer na sociedade.
Um dos desafios que acompanha os estudos da criana, enquanto
cincia pluriparadigmtica,
o desenvolvimento de um trabalho de articulao entre as
diferentes reas do saber que j
pontuam nesta discusso, mas tambm outras, que continuam
ausentes, nomeadamente as
cincias biolgicas e as cincias mdicas, na nossa opinio um pouco
devido a esta ideia
avanada por Bauman de que 'O horror mistura reflecte a obsesso
pela separao.' (Bauman,
1991:14).
De acordo com as palavras recentes de Urry "At muito
recentemente, esta diviso acadmica
entre o mundo dos factos naturais e o dos factos sociais nunca
causou controvrsia... Sempre se
pensou que havia um abismo entre a natureza e a realidade
social" (Urry, 2000: 10).
Pensamos que no final da leitura dos diferentes textos que
compem este Ebook teremos j
algumas condies para argumentar acerca da importncia de que se
assume a construo de
zonas de transao, afinidades eletivasou seja, a construo de
redes e interlocues entre
as reas de conhecimento que esto interessadas em construir
conhecimento cientifico
relevante e implicado sobre, mas sobretudo com as crianas.
Que tipo de pesquisa se faz?
Ao propormos uma discusso sobre os estudos da criana, neste
Ebook numa perspectiva
sociolgica e educacional, defendemos um olhar mais atento ao que
as crianas nos dizem, ao
que elas constroem nos seus quotidianos, sem que ns, adultos,
demos a devida ateno e o
merecido respeito. Trazemos baila para a rede discursiva deste
trabalho a analogia, a
dialogicidade, a conversa que funciona como uma experincia no
sentido que lhe d Larrosa
(2002),
aquela que carrega sempre uma dimenso da incerteza, que no
pode
ser reduzida [que] no se pode antecipar o resultado, [pois]
a
-
4
experincia no o caminho at um objetivo previsto, at uma meta
que se conhece de antemo, mas uma abertura para o
desconhecido,
para o que no se pode antecipar nem pr-ver nem pr-dizer (p.
28).
Desse modo ao convocarmos os estudos da e sobre criana, para
pensar a formao dos
professores, entendemos que possvel pensar diferente do que se
pensava sobre as crianas
partcipes das nossas investigaes. As crianas sugerem caminhos,
traam cartografias,
ensinam-nos a ousar, a transpor o modo tranquilizador de como
vnhamos pesquisando e
analisando nossos dados at ento. E, atravessar esse modo
tranquilizador de se pesquisar
sobre as crianas e no apenas com elas, colocarmo-nos em perigo,
darmos um passo fora e
alm do que j foi pensado sobre o que dizem, fazem e nos ensinam
as crianas. Ou melhor,
usarmos as possibilidades de nos aventurarmos para fora do que
nos reconhecvel. inventar
novos conceitos e isso ensina-nos Foucault quando diz que pensar
um ato arriscado, que se
exerce primeiro sobre ns mesmos como pesquisadores e
pesquisadoras, professores e
professoras de crianas. ir alm do sermos apenas e, meramente, um
investigador de crianas.
dar condies de possibilidade para que esse movimentos
entre-mares como props o
Simpsio e, agora reafirma o Ebook, que possamos cruzar calmarias
e tempestades, traar
cartografias que envolvem metas, mudanas de rotas, retomadas e
novos caminhos e, isso nos
ensinam as crianas. termos a coragem de se lanarmos ao mar e ver
que o mais profundo
est na superfcie. Inventarmos modos de pesquisar com crianas e
nos afastarmos do que
somos at ento, abandonarmos a tranquilidade que se vive nos
espaos com crianas, e dessa
forma nos reestruturarmos como pesquisadores. Retomar as nossas
verdades cada vez mais
aligeiradas pelas agncias, pelos prazos, pela produo e, talvez,
pensar na pesquisa com
crianas como uma experincia, no sentido de algo que nos acontece
e isso requer como afirma
Larrosa (2002)
[...] um gesto de interrupo, um gesto que quase impossvel
nos
tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar,
parar
para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar
mais
devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos
detalhes,
suspender a opinio, suspender o juzo, suspender a vontade,
suspender
o automatismo da ao, cultivar a ateno e a delicadeza, abrir os
olhos e
os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentido,
escutar
aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter
pacincia e dar-se
tempo e espao. (p. 24)
Ao tomar cada texto como um acontecimento como refere o autor,
observamos que os
diferentes trabalhos que compem esta obra apresentam-nos trs
possibilidades de
-
5
compreender a pesquisa nos estudos da criana: pesquisa que
envolve as crianas, pesquisa
sobre crianas e pesquisa sobre adultos que trabalham com
crianas. Nenhuma exclui a outra.
Todas elas so importantes para dar conta da complexidade que
reveste e de que se reveste a
infncia.
O que nos mobiliza nos estudos da criana a considerao de um
conjunto de princpios
orientadores que se afasta da investigao tradicional:
mobiliza-nos a construo de dinmicas
de investigao nas quais as crianas participem, de forma mais ou
menos intensa, mas cuja
participao deixe marcas, deixe as suas pegadas no conhecimento
que se constri sobre os
seus mundos de vida porque as identidades produzem conhecimento
- enfrentando desta
forma uma hegemonia adulto-centrada na construo de conhecimento
sobre as crianas;
mobiliza-nos a consolidao de uma praxis tica na investigao com
crianas, na qual
tenhamos sempre presentes os conceitos da alteridade e
diversidade das infncias, na definio
das estratgias de incluso ou excluso das crianas na pesquisa, na
definio do seu mbito e
objectivos, na definio de protocolos e contratos, na negociao do
consentimento informado
ou ainda na devoluo da informao, nunca esquecendo que O maior
desafio tico para os
investigadores que trabalham com crianas a disparidade de poder
e estatuto entre adultos e
crianas. Morrow e Richards (1996: 98). Finalmente, no que diz
respeito pesquisa de que
fomos falando e aquela que poderemos ir desenvolvendo no futuro
pensamos que ser
fundamental adotar aquilo que Gallaguer e Gallaguer designam por
uma atitude de imaturidade
metodolgica (2008), que se carateriza por privilegiar processos
em aberto sobre tcnicas pr-
definidas, sendo importante nos processos de pesquisa, no tanto
os mtodos que so usados
mas sim as formas e o esprito em que so usados: a atitude
metodolgica que se adopta. Uma
boa prtica de pesquisa no pode ser reduzida a tcnicas
engenhosas, planeadas previamente e
aplicadas cuidadosamente. Seguirmos nas nossas pesquisas o mpeto
foucaultiano de vontade
de saber, irmos adiante, a procurar a todo momento examinar as
mudanas que ocorrem nas
prticas escolares das crianas como nas relaes entre a educao
escolarizada e essas novas
e estranhas configuraes que est assumindo o mundo contemporneo
(Veiga-Neto, 2000,
p.181). Sem esquecer que a pesquisa inerentemente
imprevisvel.
Gostaramos neste balano de deixar expresso que a inteno dos
estudos da criana se
mobiliza no sentido de "Em vez de apenas chamarmos a ateno para
o facto de as crianas
tambm serem seres completos, mostrmos como til considerar quer
os adultos quer as
crianas como seres parcialmente em formao. (Mannion e I'Anson,
2004: 21).
Este outro desafio exige de todos ns enfrentar registos de
alteridade que por vezes damos
como assumidos, mas que afinal no sero pois tal como Alan Prout
(2005) nos diz a tarefa
dever ser tentar descobrir como diferentes verses da criana ou
adulto emergem da
-
6
interaco complexa, da organizao em rede e orquestrao dos
diferentes materiais, sejam
eles naturais, discursivos, colectivos ou hbridos.
Dar conta deste desiderato no se esgota na mobilizao de uma nica
rea do saber. Por isso
se reveste de importncia inquestionvel a consolidao da rea dos
estudos da criana e em
particular dos estudos da infncia luso-brasileiros.
Cada uma destas investigaes mostraram-nos que possvel
aproximar-nos mais do que
pensam as crianas, pois aprendemos com Sarmento (2011), que as
crianas tm muito a nos
dizer, basta querer ouvi-las, visto que,
O seu modo de interpretar e significar o mundo [] permeado pelas
culturas nas
quais se inserem, marcado pela sua condio biopsicolgica e pelo
estatuto
social dependente em que se encontram. Nas suas relaes com os
adultos e nas
suas relaes com outras crianas, partilham, reproduzem,
interpretam e
modificam cdigos culturais que so actualizados nesse processo
interactivo (p.
43).
Assim, o itinerrio traado nas diferentes discusses apresentadas
nestes entre-mares
discursivos est para ser inventado a cada nova pesquisa com
crianas. E, se estivermos
respeitosamente atentas a elas como nos ensina Sarmento, talvez
consigamos pensar diferente
do que se pensava ao fazermos nossas investigaes com crianas.
Entendemos ser importante
mantermos nossa dialogicidade com crianas e
professores-pesquisadores e que na mesma no
se evite o arriscar, as incertezas, os desvios de rotas. Sentir
como as crianas pensam seu
pensamento, ou seja, como elas do sentido ao que lhes acontece
na vida, no mundo.
Ao abrir este Ebook resultado do Simpsio Perspetivas sociolgicas
e educacionais em estudos
da criana: as marcas das dialogicidades luso-brasileiras
queremos deixar, ainda registado a
cada um dos autores que, de algum modo possibilita em suas
reflexes aqui apontadas que, as
marcas da dialogicidade dos estudos da criana podem ser sempre
reconstrudas com as
crianas, por sermos capazes de colocarmos em suspenso nossas
certezas sobre a maneira
como nossas crianas so vistas em nossos caminhos
investigativos3.
3 Queremos agradecer a Universidade do Minho, a Universidade
Federal do Rio Grande do Sul; A Coordenao de Aperfeioamento de
Pessoal
de Ensino Superior (CAPES); a comisso cientifica de nosso evento
- Doutor Manuel Jacinto Sarmento Pereira UMINHO; Doutora Natlia
Fernandes- UMINHO; Doutora Maria Emlia Pinto Vilarinho Rodrigues
Barros UMINHO; Doutora Maria Beatriz Ferreira Leite Oliveira
Pereira
UMINHO. As nossas conferencistas Doutora Maria Letcia Nascimento
da Universidade de So Paulo; Doutora Rosangela Franschini da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte; Doutora Catarina
Tomas, da Escola Superior de Educao de Lisboa. Agradecer muito
especialmente, a nossa equipa que levou adiante e concretizou o
evento que agora se apresenta como um Ebook. Obrigada ao Doutor
Manuel
Jacinto Sarmento Pereira -UMINHO, Doutora Natlia Fernandes -
UMINHO, Doutoranda Rosana Farenzena Universidade de Passo
Fundo,
RS/BR, Doutoranda Andrea Carla Pereira Campos Cunha -
UMINHO/Brasil, Mestranda - Amanda Nogueira UMINHO/ Brasil e aquelas
que se
juntaram a nossa causa: mestranda Ana Cludia Ferreira Martins
UMINHO/Brasil, Doutoranda Janaina Joo/ UMINHO/Brasil. Aos
funcionrios
da UMINHO. A todas as alunas da graduao Brasil e Portugal que
conosco estiveram. As crianas do Grupo de Percusso Bombos do
Infante, do
-
7
Referncias Bibliogrficas Bauman, Z. (1991) Modernity and
Ambivalence. Cambridge: Polity. Davies, k. (1940). The child and
the social structure, The Journal of Educacional Sociology, 14, n
4, pp. 217:229. Gallaguer, L., Gallaguer, M. (2008). Methodological
immaturity in childhood research?, Childhood, Vol. 15 (4), pp.
499-516. Jenks C. (1982). The Sociology of Childhood: Essential
Readings. Batsford Academic and Educational: London. Larrosa ,J.
(2002). Tecnologias do eu e educao. In: Silva, T.(Org.).O sujeito
da Educao: estudos foucaultianos.Petrpolis:Vozes,2002,p.35-86.
Mannion, G., I'Anson, J. (2004) 'Beyond the Disneyesque: childrens
participation, spatiality and adult-child relations'. In Childhood,
Vol. 11, No. 3, pp 303-18. ISSN 0907-5682. Morrow, V., Richards,
M.P.M (1996). The ethics of social research with children. an
overview, Children&Society, Vol. 10, pp. 90-105. Prout, A.
(2005). Reconsiderar a nova sociologia da infncia. Conferncia
apresentada no Ciclo de Conferncias em Sociologia da Infncia,
Instituto de Estudos da Criana, Universidade do Minho
(policopiado). Qvortrup, J.; Corsaro, W.& Honig, M.S. (Ed.)
(2009). The Palgrave Handbook of Childhood Studies. Basingstoke,
Palgrave/MacMillan Sarmento, Manuel Jacinto (2011). Conhecer a
infncia: os desenhos das crianas como produes simblicas. In: Filho,
Altino Jos Martins e Prado, Patrcia Dias (orgs.). Das pesquisas com
crianas complexidade da infncia. Campinas, SP: Autores Associados,
2011, p. 27-60 Urry, J. (2000). Sociology Beyond Societies:
Mobilities for the Twenty-First Century. London: Routledge.
Veiga-Neto, A. (2000). "Michel Foucault e os estudos culturais".
In: Costa, M. V. (org.). Estudos culturais em educao: mdia,
arquitetura, brinquedo, biologia, literatura, cinema. Porto Alegre,
Ed. UFRGS.
externato Infante D. Henrique de Ruilhe, Braga - Cabeudos - que
compe a oficina de Cultura Popular e aos estudantes do Mestrado
em
Associativismo e Animao Scio-cultural da UMINHO, obrigada doutor
Fernando Ildio Ferreira.
http://hdl.handle.net/1893/898http://hdl.handle.net/1893/898
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8
INFNCIA E PESQUISA COM CRIANAS Altino Jos Martins Filho, Ana
Claudia Ferreira Martins - A complexidade da Infncia: balano de uma
dcada das pesquisas com crianas apresentadas na ANPEd/Brasil Anne
Carolina Ramos - Pesquisas com crianas: possibilidades e desafios
metodolgicos Andrea Carla Campos Cunha, Natlia Fernandes Participao
infantil: a sua visibilidade a partir da anlise de teses e
dissertaes em sociologia da infncia
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9
A complexidade da Infncia: balano de uma dcada das pesquisas com
crianas apresentadas na ANPEd/Brasil
Altino Jos Martins Filho
Ana Claudia Ferreira Martins Resumo O estudo reuniu as escolhas
terico-metodolgicas dos trabalhos apresentados na ANPED/GT07, entre
1999 e 2009, na pretenso de oferecer um panorama da produo das
pesquisas com crianas, dando nfase na complexidade que reveste a
categoria infncia na contemporaneidade. O objetivo foi mapear e
examinar as metodologias utilizadas e as concepes de criana e
infncia subjacentes s escolhas dos pesquisadores. Tivemos como foco
investigar os trabalhos com crianas e nos sobre crianas. No
planejamento partimos do pressuposto segundo o qual as pesquisas tm
trazido indicaes epistemolgicas, terico-metodolgicas, sociais,
culturais e polticas que advogam um emergente conhecimento das
crianas como crianas (Faria 1999; Ferreira, 2002), dando eco s
vozes desses sujeitos de pouca idade. A metodologia da investigao
foi anlise de contedo. O estudo demonstrou as polmicas que geram
controvrsias participao das crianas nas pesquisas; evidencia-se que
o crescimento de pesquisas com crianas aumentou a produo de
conhecimentos sobre as infncias, bem como o interesse em
desenvolver metodologias e procedimentos no convencionais de
pesquisas que qualifiquem as vozes das crianas. Palavras-Chave:
Pesquisa com crianas; infncia; metodologia de pesquisa; crianas.
Abstract
The study met the choices theoretical and methodological papers
presented at the ANPED/GT07 between 1999 and 2009, on the pretense
of offering an overview of the production of research with
children, emphasizing the complexity that surrounds the child in
the contemporary category. The objective was to map and examine the
methodologies used and the conceptions of children and childhood
underlying the choices of the researchers. We focused on
investigating the work with children and not about children. In
planning we assume according to which research has brought
indications epistemological, theoretical and methodological,
social, cultural and political advocates an emerging dearest ending
of children as children (Faria 1999; Ferreira, 2002), echoing the
voices of those subjects low age. The research methodology was
content analysis. The study showed that the controversy to generate
controversy involving children in research, it is evident that the
growth of research with children has increased the production of
knowledge about childhood, as well as the interest in developing
methodologies and procedures unconventional research that qualify
the voices of children. Keywords: Research with children,
childhood, research methodology; children.
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Introduo
O interesse em desenvolver pesquisas com crianas pequenas tem
crescido substancialmente nas ltimas dcadas. Podemos dizer que as
crianas tm ocupado um lugar de destaque nos estudos sobre a
infncia. Pesquisadores da rea da educao infantil, buscam construir
uma compreenso cada vez mais abrangente a respeito dessa faixa
etria, lanando-se prtica de pesquisas que tenham como sujeito de
preocupao a prpria criana, o que possibilita conhecer a(s)
infncia(s) com base nos jeitos de ser criana. Tal interesse os tem
levado a examinar e analisar os processos de constituio do
conhecimento das crianas como seres humanos concretos e reais em
diferentes contextos, bem como suas culturas, suas capacidades
intelectuais, criativas, estticas, expressivas, emocionais (Rocha,
1999, 2001), ticas, corporais e afetivas, constitutivas de suas
infncias.
Essa matriz de preocupao dos pesquisadores apresenta-se como uma
porta aberta s peculiaridades positivas que diferem a criana do
adulto (Vygotsky, 1985). Tal perspectiva lhes propiciou desenvolver
um considervel esforo no intuito de ampliar a compreenso sobre os
pensares, sentires, dizeres, saberes e fazeres especficos das
crianas. Como decorrncia, possibilitou demarcar o reconhecimento
categoria infncia como uma fase da vida dotada de caractersticas
prprias com fundamental importncia para a constituio da identidade
humana das crianas, tanto do ponto de vista subjetivo, social como
cultural.
No Brasil, muito nova entre pesquisadores a preocupao de
desenvolver metodologias de pesquisas que levem o adulto a escutar
o ponto de vista das crianas, ou ainda, que considere as crianas
como informantes e interlocutoras competentes para falarem de si
mesmas durante a coleta dos dados. Se tradicionalmente desenvolver
pesquisas sobre as crianas j gerava enfrentamentos e muitos
desafios ao pesquisador, o que dizer do propsito de desenvolver
prticas metodolgicas de pesquisas com as crianas desde tenra idade?
Rocha (1999) realizou um amplo levantamento de pesquisas sobre a
infncia da dcada de 1990. Em relao a esse perodo foi possvel
constatar que
J se busca ouvir" as crianas a partir dos contextos educativos
da creche ou da pr-escola, estudam-se variaes de sua voz, o seu
ponto de vista (...). Nestes casos, procuram-se utilizar
metodologias que respeitem as manifestaes infantis (...). No
obstante esta tnica, estas prprias metodologias, especialmente as
no-convencionais que melhor podem adequar-se ao estudo da criana,
no tm sido objeto de discusso entre os pesquisadores (...) se a
criana vista pelas pesquisas ganha contornos que definem sua
heterogeneidade, isto ainda no suficiente para que ela ganhe voz e
seja ouvida pelo pesquisador (ROCHA, 1999, p.95).
De fato, a deciso de desenvolver prticas de metodologias que
tomam as crianas como
protagonistas do processo no algo simples. Ao contrrio do que se
pensa, mesmo estando diante de um movimento de pesquisas que inclui
as crianas como sujeitos participantes do processo metodolgico, o
desenvolvimento de metodologias e procedimentos de pesquisas com
crianas ainda um campo incipiente. Isso pelo fato de que ns,
adultos, necessitamos
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abrir mo de muito do que tradicionalmente afirmamos sobre os
grupos infantis. Sarmento e Pinto (1997) esclarecem melhor esta
questo:
O estudo das realidades da infncia com base na prpria criana um
campo de estudos emergente, que precisa adotar um conjunto de
orientaes metodolgicas cujo foco a recolha da voz das crianas.
Assim, alm dos recursos tcnicos, o pesquisador precisa ter uma
postura de constante reflexibilidade investigativa (...), a no
projetar o seu olhar sobre as crianas colhendo delas apenas aquilo
que o reflexo dos seus prprios preconceitos e representaes.
(SARMENTO & PINTO, 1997, p.78).
Temos analisado que por muito tempo o campo educacional se fixou
em concepes de
criana e infncia advindas do domnio da psicologia do
desenvolvimento. Essa rea anunciou a concepo de infncia e criana
pela herana biolgica fundamentada em um paradigma bio-psicolgico, o
que conformava essa categoria e seus sujeitos em um modelo
universal, abstrato, a-histrico e pr-determinado (Jobim &
Souza, 1996; Rocha, 1999; Ferreira, 2002). Porm, se por um lado
temos criticado a psicologia do desenvolvimento pela sua definio de
criana descontextualizada e nica, por um prisma da cincia que
investigou seu desenvolvimento descolado de sua condio social, por
outro, temos que reconhecer o pioneirismo dessa rea na tradio e
regularidade em desenvolver pesquisas sobre as infncias.
Considerando esse quadro, ora trazemos uma pesquisa sobre
pesquisas (Rocha, 1999, p.16), no intuito de reunir as indicaes e
as escolhas terico-metodolgicas do maior nmero possvel de trabalhos
apresentados na mais importante reunio cientfica de pesquisadores
da rea da Educao, a Reunio Anual da Associao Nacional de Ps-Graduao
e Pesquisa em Educao/ANPED, especificamente no Grupo de Trabalho
Educao de Crianas de zero a seis anos/GT07. Analisar o conjunto
dessas indicaes, seus limites e suas possibilidades, passou a ser
importante para conhecermos a trajetria dos procedimentos
metodolgicos eleitos nos estudos. Acreditamos que esta anlise,
considerando sua abrangncia possibilitar oferecer um panorama que
represente a produo nacional sobre a temtica em questo, j que
concordamos que os procedimentos metodolgicos ocupam um lugar
central e decisivo em qualquer investigao.
Nessa direo, nos propusemos a investigar alguns trabalhos
apresentados na ANPED, no perodo compreendido entre 1999 e 2009. No
planejamento partimos do pressuposto segundo o qual as pesquisas tm
trazido indicaes epistemolgicas, terico-metodolgicas, sociais,
culturais e polticas que advogam um emergente conhecimento das
crianas como crianas (Faria 1999; Ferreira, 2002), dando eco s
vozes desses sujeitos de pouca idade. Dessa forma, o objetivo foi
investigar as pesquisas que se dedicaram a observar, analisar e
compreender jeitos de ser criana, tendo em vista traar, mapear e
examinar os procedimentos terico-metodolgicos utilizados, bem como
as concepes de criana e infncia subjacentes s escolhas metodolgicas
dos pesquisadores. Pergunta-se: as crianas so pesquisadas? Que
lugar as crianas vm ocupando nas pesquisas? Quais os limites e as
possibilidades traadas pelos pesquisadores em relao s metodologias
de pesquisas com crianas? Que concepo terica de criana e de infncia
tem direcionado as escolhas metodolgicas dos pesquisadores?
Quais
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as metodologias, procedimentos e instrumentos que se tem
construdo e utilizado nas pesquisas?
Dividimos a exposio do texto em trs partes: a primeira dedica-se
a apresentar brevemente o desenvolvimento da pesquisa; na segunda
parte trazemos as tendncias, contribuies e procedimentos eleitos
nos trabalhos selecionados, destacando aspectos que incidem sobre a
participao das crianas; na terceira parte evidenciamos as concepes
de infncia e criana que aliceram as escolhas referentes aos
procedimentos terico-metodolgicos, realizando uma amostra do
conjunto dos trabalhos selecionados. Desenvolvimento da
Pesquisa
A presente investigao fruto de uma pesquisa j concluda que se
desafiou a lanar um olhar para as categorias infncia e criana por
meio do olhar de outros pesquisadores. Como vimos acima, a amostra
emprica partiu de trabalhos apresentados nas reunies da ANPED em um
determinado perodo histrico (1999-2009). Foi realizada uma busca
ano por ano do referido perodo de todos os trabalhos disponveis no
portal da ANPED, os quais foram localizados por consulta pela
Internet. A escolha do perodo no foi aleatria. Esse intervalo de
produo abrange no campo da educao infantil um momento de grande
efervescncia acadmica, coadunando-se com o aumento de cursos de
ps-graduao no Brasil (Rocha, 1999) e o concomitante crescimento de
pesquisas que tomam as crianas como referentes empricos nos estudos
sobre as infncias (Sarmento, 2000, 2004) o que, consequentemente,
aumenta a produo de conhecimentos e o interesse j consagrado pelos
pesquisadores ainda de maneira tmida em desenvolver metodologias,
procedimentos e instrumentos no-convencionais de pesquisas que
qualifiquem as vozes das crianas.
A busca do material emprico da pesquisa seguiu um padro manual,
quase artesanal, pois partimos da ideia segundo a qual quanto maior
a aproximao na organizao dos dados maior a probabilidade de o
pesquisador inquietar-se e por eles surpreender-se. O material
coligido dos dez anos incluiu todos os trabalhos e psteres
apresentados. Para chegar ao levantamento foram utilizados diversos
descritores, conforme segue: pesquisa com crianas, prticas de
pesquisas, criana e pesquisa, metodologias de pesquisa,
procedimentos metodolgicos, metodologias com crianas, sociologia da
infncia e crianas. Com base no escrutnio dos textos, foram
destacados: ttulo da pesquisa, autores, ano de apresentao,
assuntos, tipo de pesquisa (mestrado/doutorado) quando indicado, as
referncias bibliogrficas utilizadas pelos pesquisadores, as formas
de metodologias, os procedimentos e instrumentos de pesquisa
utilizados. Nesse levantamento foram identificados, no total, 193
trabalhos. Desses, foram selecionados 38 trabalhos referentes s
pesquisas com crianas, os quais foram lidos integralmente. Isso
permitiu fazer outro enquadramento, pois apenas 25 dos 38 trabalhos
realmente se referiam a pesquisas com crianas. No que diz respeito
aos trabalhos sobre estudos terico-metodolgicos de pesquisas com
crianas, identificamos apenas quatro trabalhos nesses ltimos dez
anos de ANPED, dois deles so os realizados por pesquisadoras
brasileiras na Universidade do Minho em Braga/Portugal.
Aps a seleo da amostra emprica, realizamos a leitura de todos os
25 textos na ntegra, o que nos possibilitou fazer comparaes,
agregaes, classificaes e interpretaes;
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culminando na elaborao de categorias. As categorias foram
elaboradas buscando estabelecer uma perspectiva comparativa que
facilitasse a percepo dos pontos de convergncia e as eventuais
divergncias; as regularidades e as tendncias sem, contudo, deixar
de atentar para o vrio e a exceo.
A incluso do descritor Sociologia da Infncia deu-se pelo fato de
essa rea ganhar destaque nas pesquisas com crianas em nosso pas. J
nos primeiros trabalhos selecionados, foi possvel perceber a forte
presena, nesta ltima dcada, do aporte terico dessa recente rea de
conhecimento, principalmente em relao aos delineamentos e escolha
de procedimentos terico-metodolgicos, aparecendo como base terica
em maior escala autores portugueses (Sarmento & Pinto, 1997;
Sarmento, 2000, 2001; Toms, 2000; Ferreira, 2002). A Sociologia da
Infncia um campo recente que estuda a infncia em si mesma, isto ,
como uma categoria sociolgica do tipo geracional. Para a Sociologia
da Infncia as crianas so atores sociais ativos. Em outros termos,
alertam para a importncia de os pesquisadores captarem situaes
relacionais das crianas quando esto entre elas, no intuito de
desvelar os jeitos de ser criana. Em nossa anlise, tal afirmao
justifica a crescente busca dos pesquisadores por esse recente
campo de conhecimento nas pesquisas com crianas, o que tem
contribudo fortemente para que a criana seja revelada em sua
especificidade, considerando-se os mltiplos contextos sociais e
culturais. Com base nas pesquisas analisadas, podemos inferir que a
Sociologia da Infncia se configura como um campo importante nessa
discusso e tem se colocado como interlocutora privilegiada no mbito
de constituio de uma Pedagogia da Infncia.
Ressalte-se que na sociologia brasileira localizamos alguns
trabalhos de pesquisas com crianas, mesmo sendo escassos. Registros
inditos de Florestan Fernandes (1961), j na primeira metade do
sculo XX4, demonstram que o autor utilizou como encaminhamento
metodolgico o testemunho direto das crianas, por meio da observao
direta e prolongada, tendo o objetivo de realizar uma descrio fiel
nos parmetros da etnogrfica para capturar o modo de atuao e
socializao prprias dos grupos infantis. Outra pesquisa que marcou a
rea ao eleger as vozes das crianas na coleta dos dados, dando
estatuto terico-metodolgico a esses sujeitos, o trabalho de Jos de
Souza Martins, publicado em 1993. O autor elege a criana como
testemunha da histria amazonense, justificando ter sua escolha
metodolgica recado sobre a fala das crianas, que por meio delas me
falam (e nos falam) do que ser criana (Martins, 1993, p.18).
Fernandes (1940) e Martins (1993) so apontados nos estudos de
Quinteiro (2000) e Marchi (2007) como os precursores da Sociologia
da Infncia no Brasil. Porm, as duas autoras tecem crticas a esses
dois pesquisadores, sobretudo por considerarem as crianas como
sujeitos imaturos. Nas reflexes de Marchi (2007), embora os autores
tenham rompido com o que a autora chamou de cerco de silncio
imposto s crianas nas pesquisas de cunho sociolgico, ambos
mantiveram inalterada a viso tradicional de socializao. As crianas
foram compreendidas como sujeitos passivos do trabalho adulto de
transmisso cultural.
Estudos mais recentes (Quinteiro, 2000; Dermartine, 2002;
Delgado & Mller, 2005; Marchi, 2007) tambm vm intensificando as
reflexes terico-metodolgicas sobre Educao e Sociologia. O
intercmbio entre essas duas disciplinas tem trazido importantes
contribuies
4 O trabalho de 1940, porm s foi publicado em 1961.
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que se abrem a novos desafios, possibilidades e limites no
delineamento de procedimentos metodolgicos de pesquisas com
crianas.
Desse modo, o recente interesse pela rediscusso da construo
social da infncia, tomando a criana como uma varivel em si, aponta
metodologias que procuram compreender a categoria infncia e os
sujeitos a ela pertencentes as crianas , por meio do descentramento
do olhar de adulto para poder entender, por meio das falas das
crianas, os mundos sociais e culturais da infncia. Portanto, temos
um movimento de pesquisas que tem desenvolvido a mxima de que a
criana, sendo um ser humano de pouca idade, capaz de representar o
mundo e a si mesma (Quinteiro, 2000). Essa expresso tem ganhado
fora e vez nas pesquisas e trazido novos ares, permitindo aos
pesquisadores revelarem as interpretaes infantis e seus respectivos
modos de vida.
Das pesquisas com crianas complexidade da infncia: procedimentos
terico-metodolgicos eleitos nos trabalhos selecionados
No contexto dos trabalhos examinados, foi possvel identificar
que a escolha da forma de pesquisar crianas tem sido, em grande
maioria, o estudo de caso, adotado numa abordagem qualitativa e
interpretativa. De um total de 25 trabalhos, foi citada em 21
trabalhos. Como podemos constatar, o estudo de caso foi
praticamente utilizado em todas as pesquisas com crianas
apresentadas na ANPED desta ltima dcada. Os pesquisadores
caracterizam-no como sendo um mtodo que permite penetrar na
realidade social e descrever a complexidade de um caso concreto,
desvelando a multiplicidade de dimenses presentes numa determinada
situao ou problema, focalizando-o como um todo. Em sntese, essa
forma de pesquisa definida como sendo um mtodo propcio para
aprender os modos explcitos e implcitos dos sistemas simblicos que
regulam ou favorecem as relaes, as manifestaes, as aes, as formas
de sociabilidades e a produo das culturas infantis entre as
crianas.
Coaduna-se com essa reflexo a crescente perspectiva que parte de
um enfoque multidisciplinar e interdisciplinar para discutir as
questes em torno da criana e da infncia, rompendo com o tradicional
domnio da Psicologia, principalmente a Psicologia
Desenvolvimentista, como j foi constatado, por exemplo, na pesquisa
de Rocha (1999). A justificativa encontrada no material compilado,
por um lado, impera na indicao de que para olhar os fenmenos da
infncia requer que o pesquisador transite pelas diversas reas do
conhecimento no sentido de dar conta de seus processos em suas
mltiplas facetas e determinaes (Rocha, 2001). Por outro lado, este
transitar pelas diferentes reas, entra em convergncia com os
aportes terico-metodolgicos da Pedagogia da Infncia, a qual vem
ganhando importncia e se configurando como campo de estudos da
educao infantil, na ltima dcada.
Dentre o universo de contribuies das diferentes abordagens
terico-metodolgicas, o ponto de ancoragem da abordagem em maior
escala o do recente campo da Sociologia da Infncia (21 trabalhos
dos 25 analisados, o que soma 47% do total). Em escala decrescente
aparecem ainda as seguintes abordagens: perspectiva dos autores
italianos (dez trabalhos, somando 22% do total); a
histrico-cultural, principalmente no que diz respeito ao pensamento
de Vygotsky e seus interpretes (sete trabalhos, somando 16% do
total); a perspectiva
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foucaultiana (quatro trabalhos, somando 9% do total).
interessante ressaltar que esses quatro trabalhos so de uma mesma
universidade e de uma mesma autora. Por ltimo, em proporo bem menor
encontramos referncias perspectiva de Piaget (dois trabalhos,
somando 4% do total) e Wallon (um trabalho, somando 2%). Como
podemos constatar, alguns trabalhos fazem referncia a mais de uma
perspectiva terico-metodolgica. Nesse caso, o cruzamento entre os
aportes tericos geralmente ocorreu entre os autores italianos e a
perspectiva terica da Sociologia da Infncia.
Os trabalhos, em sua grande maioria, resultaram de estudos
empricos, os quais foram realizados em contextos de educao coletiva
de creches e/ou pr-escolas. Alguns, com crianas indgenas no
contexto de suas respectivas tribos; outros, em menor proporo,
versam sobre a experincia infantil vivida fora dos contextos
educacionais. Dos 25 trabalhos analisados, 22 indicavam a
necessidade de trazer as vozes das crianas, seu ponto de vista, sua
perspectiva, ou seja, ouvir delas o que tm a dizer. As trs
pesquisas que no realizaram estudos empricos abordaram os
procedimentos terico-metodolgicos de pesquisas com crianas, tambm
dando uma ateno especial escuta das vozes das crianas. Esses
trabalhos fundamentavam-se na Sociologia da Infncia. Em todos os
trabalhos examinados constatamos a nfase atribuda pelos autores
crena de que a criana capaz de dar, em primeira mo, informaes e
opinies sobre seu mundo educacional, social e cultural. Isso
significa dizer que so elas os sujeitos privilegiados para o
pesquisador perguntar, observar, conversar, fotografar, filmar e
registrar para conhecer os diversos jeitos das crianas viverem a
infncia. H um desejo terico e metodolgico em tangenciar os contedos
das falas das crianas, o que se coloca como um exerccio fecundo
para qualificar suas formas de sociabilidade e de produo
cultural.
Nesse contexto, tendncias terico-metodolgicas de pesquisas vm se
formando e trazendo alguns destaques de temas. Em especial
apresentamos as mais evidenciadas: prticas sociais concernentes s
relaes entre crianas e as delas com os adultos; relaes de poder;
adultocentrismo e subordinaes de idade; infncia plural; questes de
gnero; produo das culturas infantis; brinquedo, jogo e brincadeira;
os modos singulares de subjetivao das crianas; experincias
cotidianas das crianas; as prticas de interao na creche sob o olhar
das crianas; infncia e natureza; criana indgena e suas
especificidades; lgica de transgresso das crianas, crianas fora das
creches ou pr-escolas e a alteridade da infncia.
No que se refere educao das crianas pequenas, os trabalhos
analisados apontam que sempre nos deparamos com a necessidade de
prescrever formas, modelos e tcnicas, enfatizando o como fazer para
as crianas e nunca o como fazer com as crianas ou ainda, o como
fazer das crianas. Sendo assim, fica ntido o atual movimento
investigativo na rea da Educao Infantil na busca de construir um
canal de comunicao profcuo entre adultos e crianas, principalmente
no intuito de potencializar a autonomia, a participao e os
relacionamentos das crianas. H forte indicao, nos estudos
analisados, da necessria observao, aproximao, penetrao, percepo e
interao dos adultos em relao ao mundo peculiar das crianas. Trazem
uma perspectiva terico-metodolgica que supera as disparidades de
poder existente entre adultos e crianas, principalmente no que diz
respeito aos procedimentos eleitos tradicionalmente nas pesquisas
realizadas com as crianas. Para tal, postulam a necessidade de
ultrapassar o discurso esmagador legitimado historicamente pela
razo adultocntrica que at o momento alimentou as cincias humanas e
sociais. Nesse sentido, os autores afirmam a necessidade premente
de o pesquisador ficar entre as crianas.
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Somente assim, entendem, poder gerar um envolvimento muito maior
com os sujeitos pesquisados, pois o contato direto permite
construir uma atmosfera muito positiva, ldica e humana no
desenvolvimento das pesquisas com as crianas.
De forma geral, nesta ltima dcada de pesquisas com crianas
apresentadas na ANPED, foi localizado um ncleo de abordagens
terico-metodolgicas que pretendem ultrapassar as barreiras
disciplinares historicamente impostas s cincias humanas e sociais
no intuito de romper com o paradigma que considera o fenmeno
infncia como algo irrelevante e sem nada de especial. Essa frente
de anlise corresponde prpria evoluo dos estudos sobre e com crianas
nas cincias humanas e sociais.
Na mesma direo, os trabalhos analisados, na sua maioria, fazem
referncia necessidade de considerar elementos como insero social,
cultura, etnia, religio, gnero, espao geogrfico e gerao (Sarmento
& Pinto, 1997), pois tais dimenses vo construir diferentes
jeitos de ser criana e viver a infncia em cada momento histrico;
enfim, definem a importncia de singularizar as crianas com base no
contexto em que esto inseridas, de no pesquisar a criana
isoladamente, de forma assptica, alheia a sua condio social. Est
posto ento o desafio de se buscar lanar um olhar crtico sobre a
infncia na sua doce, tnue e forte complexidade (Kramer, 1996).
Diante dessa rota, os autores dos estudos selecionados, seguem
alertando para a necessidade de ir alm da mera descrio dos dados
coletados com as crianas, indicam a necessria descrio do contexto
social e cultural, analisando-o em suas mltiplas determinaes
histricas. Interagir, analisar e contextualizar historicamente as
falas captadas das crianas ultrapassar as aparncias do fenmeno,
aproximar-se de sua essncia. Cabe atualizar aqui a afirmao celebre
de Marx (1974, p.399), toda a cincia seria suprflua se a aparncia
das coisas e sua essncia se coincidissem diretamente. Assim,
importante ressaltar que essncia e aparncia so produzidas pelo
mesmo complexo social e histrico, pois so produzidas pelas mesmas
necessidades sociais. Queremos dizer com isto que preciso envidar
esforos, explicitando os limites e descobrindo as possibilidades
para estabelecer uma comunicao frtil com as crianas pequenas,
principalmente no sentido de inventar, criar e estabelecer outras
formas de comunicao com elas o que coincidir com a criao de outros
procedimentos terico-metodolgicos de pesquisas.
Na investigao em questo e no que diz respeito a esse ltimo item,
foram citados nada menos que oito tipos diferentes de procedimentos
e ainda foram denominados de diversas formas nas pesquisas. O
agrupamento das semelhanas dos tipos de procedimentos que nos
permitiu chegar a uma reduo das tipologias encontradas (oito tipos
de procedimentos em 25 trabalhos analisados), s foi possvel de ser
realizado aps a leitura dos trabalhos na ntegra. Igualmente a
existncia de uma multiplicidade de perspectivas tericas, pelas
quais os autores dos trabalhos procuraram articular diferentes reas
de conhecimento na abordagem de seu objeto de estudo, h tambm uma
quantidade significativa de trabalhos que utilizam mais de dois
procedimentos metodolgicos para coletar os dados empricos.
Constatamos que o cruzamento mais frequente foi a utilizao
simultnea do registro etnogrfico, registro fotogrfico, filmagens em
vdeo, uso de desenhos das crianas e a observao participante. H
consenso nos trabalhos examinados de que em pesquisas com crianas
necessrio lidar com mais de um procedimento metodolgico para
compreender o fenmeno que se quer estudar. Nesse sentido, os
trabalhos apresentados vm intensificando uma diversidade de
alternativas metodolgicas que ultrapassam as formas tradicionais de
pesquisar crianas. Diramos, como
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Quinteiro (2000, p.112), que os novos procedimentos usados
formam um feixe que no se esgota e que apresenta inmeras
dificuldades para serem vencidas pelo pesquisador. Sumariamente
apresentaremos algumas indicaes referentes aos procedimentos de
pesquisas com crianas que mais se destacaram.
O Registro etnogrfico h forte tendncia para o uso da etnografia
em pesquisas com crianas. Considerando a natureza dessa
metodologia, os autores dos trabalhos, em sua maioria, excluindo os
que os desenvolveram com crianas indgenas, indicam, tal qual Andr
(1999), a necessidade de adio de palavras como orientao, do tipo,
de inspirao, de cunho, para situar a diferena entre fazer
etnografia e utilizar essa ferramenta como um dos instrumentos de
observao. Nota-se que em alguns estudos os autores so mais
enfticos, explicitando que em pesquisas educacionais no possvel
levar ao p da letra os preceitos clssicos da etnografia. Nesse
caso, sublinham que, sem dvida nenhuma, a etnografia contribui para
estabelecer maneiras criativas de contato e interao com os sujeitos
investigados. Em outros trabalhos, os pesquisadores anunciam que a
utilizao das estratgias do mtodo etnogrfico poder ser um elemento
frtil para permanecer no campo, para decifrar e anotar o modo que
os pesquisados dialogam com a cultura contempornea, ou ainda, para
compreender de que maneira a cultura contempornea se manifesta nos
sujeitos investigados. Assim, advertem que o texto e o contexto so,
para qualquer pesquisador, importantes ferramentas conceituais, e a
etnografia importante recurso para realizar a leitura desse
universo. nessa perspectiva que se insere a utilizao da etnografia
em pesquisas com crianas.
O conjunto dos trabalhos que se utilizaram da etnografia indica
o uso do caderno de campo, bloco de anotaes ou, ainda, dirio de
bordo. A recomendao escrever o que se v e em casa, ao digitar as
anotaes, reorganiz-las tecendo alguns comentrios que complementem o
vivido. Existe igualmente um nmero significativo de trabalhos em
que indicam ser necessrio manter o registro etnogrfico intacto e ao
lado, em outra folha anexa, escrever as observaes e as impresses.
Nesse caso, quando for realizar a anlise, o pesquisador coloca as
duas folhas lado a lado para elaborar as interpretaes. Tal exerccio
indicado como sendo mais fidedigno com a realidade. Sendo assim,
alertam que importante no sucumbir tentao de julgar o que se vai
analisar, outrossim, necessrio tentar compreend-la nos seus prprios
termos.
O registro fotogrfico aparecendo em 18 das 25 pesquisas
selecionadas, a fotografia nas pesquisas com crianas, mais do que
um clic, um importante recurso metodolgico. O coletivo dos autores
examinados afirma que a fotografia ajuda a tomar posse das coisas
transitrias que tm direito a um lugar nos arquivos da memria. Sendo
assim, falam da possibilidade de olhar para a imagem congelada,
retratada pela foto, inmeras vezes, um exerccio pleno de ver e
rever a cena, os personagens e o contexto. Tal possibilidade agua a
memria, a imaginao, a criao e a reconstituio da prpria histria
vivida, pelas imagens e nas imagens. Indicam que a fotografia
mostra sempre o passado lido aos olhos do presente, embora j no
seja o mesmo passado, mas sua leitura ressignificada. Diante disto,
a leitura das imagens se apresentou como um instrumento de
aproximao da realidade scio-histrica e cultural do grupo
fotografado. Portanto, mas do que ilustrar as sees do texto ou
dar-lhe um colorido, a fotografia reconstri o prprio olhar do
pesquisador, apresentando-se como outras possibilidades de escritas
outros textos da realidade estudada.
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A filmagem em vdeo Tambm um recurso bastante utilizado em
pesquisas com crianas. A utilizao desse procedimento geralmente
coincide com o uso do registro fotogrfico. Dessa forma, o registro
em vdeo vem contribuindo marcadamente na captao de imagens que
revelam os diferentes jeitos de ser criana em suas peculiaridades,
bem como a dinmica do mundo cultural que circunda as (re)produes
infantis presentes no contexto da instituio. O emprego da filmagem
nas pesquisas uma maneira de obter dados os mais prximos possveis
ao movimento das crianas, pois a imagem filmada e a sua transcrio,
simultaneamente, articulam entre si a possibilidade de captar com
maior expanso e expresso aquilo que no perceptvel primeira
vista.
Nesta direo, os trabalhos analisados sinalizam que a imagem
captada espontaneamente pode traduzir uma situao que no se reproduz
uma segunda vez; a filmagem traz algo diferente da observao e do
registro escrito, pois o que a observao a olho nu muitas vezes no
percebe ou deixa escapar, a filmagem capta com maior veracidade.
Assim, afirmam os autores, a cada cena assistida e revista
percebiam novas significaes e novas interpretaes. A filmagem,
portanto, foi tornando-se para eles uma memria audiovisual.
A observao participante A observao participante ou a observao
com participao tem sido o ponto forte nas pesquisas com crianas;
aparece 22 vezes dos 25 trabalhos examinados. Encontramos
argumentaes nas vozes-escritos dos pesquisadores do tipo: em
pesquisas com crianas impossvel observar sem participar, a observao
sempre com participao. Tambm pela leitura dos trabalhos fica
explicito que o pesquisador no tem como fugir da participao, j que
as crianas esto o tempo todo pedindo e puxando os adultos para suas
brincadeiras, interaes, relaes, produes, experimentos e dilogos. Os
pesquisadores tornam-se um Outro, que observa e tambm observado.
Dessa forma, pesquisados e pesquisadores vo pouco a pouco
estabelecendo e criando laos, o que favorece as relaes e o
desenvolvimento de uma participao sensvel s produes das crianas. A
observao participante possibilitar o acesso dos adultos ao que as
crianas pensam, fazem, sabem, falam e de como vivem, esmiuando suas
peculiaridades e as particularidades desse grupo geracional. Esta
forma aberta e desprovida de amarras poder aprofundar as
heterogeneidades das infncias.
O que se constata que os pesquisadores realizavam suas observaes
em um perodo de dois a trs dias por semana, durante, no mximo, oito
meses de coleta de dados. As observaes ocorriam em todo o contexto
da creche, em que lhes era facultado participar e acompanhar
diferentes momentos da vida em curso no espao e tempo das
instituies pesquisadas. Geralmente os pesquisadores se detinham em
um grupo de crianas, porm contextualizando todas as relaes no
intuito de compreender as significaes do universo estudado.
Desenhos das crianas no conjunto das pesquisas analisadas, essa
estratgia tomada como importante recurso metodolgico, embora
aparecendo em menor proporo: apenas em sete dos 25 trabalhos
analisados. O desenho infantil considerado uma produo cultural das
crianas e um instrumento revelador das representaes infantis. A
justificativa que mais aparece nos trabalhos em relao ao uso dos
desenhos das crianas que a iconografia representa uma possibilidade
de reconstruir o espao da creche como lugar da infncia. Afirmam
que, para alm de simplesmente desenhar, necessrio elaborar uma
interpretao dos desenhos a partir dos olhares e falas de seus
autores as crianas. O desenho
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19
compreendido como atividade de criao e expresso humana. Nesse
sentido, com a especificidade do desenho, aparece a considerao de
quatro aspectos que o descrevem: o autor (a criana que o desenha),
o prprio desenho em si, a fala do autor que o produz e o contexto
em que ele produzido. Esses aspectos, em se tratando de pesquisas
com crianas, so essenciais para as anlises.
As crianas nas pesquisas: anlise das concepes de infncia e
criana que se entrecruzam nos trabalhos em foco
Partindo do pressuposto de que as escolhas dos procedimentos de
pesquisa so diretamente atravessadas pela concepo de criana e
infncia dos pesquisadores e que tais concepes conformam os
delineamentos terico-metodolgicos, iremos trazer de maneira breve
algumas indicaes dos trabalhos analisados. Destaca-se nesses
trabalhos a concepo de criana como ator social em seu sentido
pleno, sujeito competente, dotado de capacidade, de ao e
culturalmente criativo. Podemos dizer que h uma crescente tendncia
em legitimar as particularidades das crianas, por meio de registros
de suas prprias falas, comportamentos e culturas infantis. Os
autores dos trabalhos advertem que a infncia e a criana nessa acepo
so tomadas como categoria social e histrica, o que lhes possibilita
romper de vez com o carter evolucionista, biologizante e
desenvolvimentista. Desse modo, podemos inferir que nas concepes
que predominam nos 25 estudos apresentados na ANPED referentes
ltima dcada, a criana retratada considerando a importncia de levar
em conta seu alto grau de protagonismo, ou seja, fala-se de uma
criana que produz cultura e ao mesmo tempo produto dessa
cultura.
Essa concepo centraliza as interaes sociais como mecanismo de
anlise dos grupos infantis. Assim, os trabalhos falam da
necessidade de considerar as crianas como sujeitos de relaes
sociais amplas e que essas integram suas vidas. Participando nas
relaes sociais, as crianas se apropriam de valores e comportamentos
prprios do local e do tempo em que vivem. Esse processo histrico,
social, cultural e psicolgico (Kuhlmann, 1998). Para os
pesquisadores este tem sido o caminho que possibilita descortinar o
lugar das crianas, vendo-as como agentes ativos.
A concepo de infncia e de criana demonstrou seguir uma mesma
linha de pensamento terico-metodolgico: h uma ntida convergncia
entre os autores da amostra selecionada, tanto de nfase terica,
foco de anlise, como de mtodo e procedimentos eleitos na investigao
das duas categorias ou at mesmo em relao s problemticas levantadas
nas pesquisas sobre as crianas. As concepes enfatizadas circulam em
torno do pressuposto de que a infncia uma condio da criana, sem,
contudo, negar a imaturidade biolgica desse sujeito.
Os trabalhos analisados demonstraram ainda que as dimenses
socializao, aprendizagem e desenvolvimento infantil esto
inter-relacionadas. Contudo, constatamos que fogem de uma anlise
mais profcua no que diz respeito compreenso dos processos de
aprendizagem e aspectos do desenvolvimento infantil. Quase todos os
trabalhos (21 dos 25 analisados 84%) referem-se aos processos de
socializao, dando nfase s relaes sociais
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20
entre adultos e crianas e entre as crianas. Isso posto,
confirma-se a crescente busca dos autores pelo referencial
terico-metodolgico da recente rea da Sociologia da Infncia.
Entendemos, entretanto, que a elaborao de orientaes
terico-metodolgicas para captar as relaes sociais das crianas e
suas culturas, tanto no que tange definio de procedimentos quanto
anlise dos dados, no constitui tarefa fcil, por tratar-se de um
campo de pesquisa em construo, sujeito, ainda, a muitos equvocos,
controvrsias e ambiguidades. Portanto, dados os limites deste
trabalho, terminamos questionando com base nas indicaes dos estudos
examinados, se com a renovao conceptual da categoria infncia
possvel ou no falarmos da existncia de uma autonomia conceptual das
culturas infantis.
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-
22
Pesquisas com crianas: possibilidades e desafios
metodolgicos
Anne Carolina Ramos
Resumo
Nas ltimas duas dcadas temos visto uma preocupao crescente e um
decorrente aumento no nmero de pesquisadores que tm se interessado
em conhecer a vida e o cotidiano das crianas a partir de suas
prprias perspectivas. Todavia, acessar os mundos sociais de meninos
e meninas no uma tarefa necessariamente fcil, uma vez que a prpria
aceitao do pesquisador por parte das crianas no se faz sem
impasses. Entre eles existem diferenas que envolvem questes
comunicativas, comportamentais, cognitivas, relaes de poder,
interesses e o prprio tamanho fsico, pontos que precisam ser
profundamente refletidos e debatidos pelo pesquisador. Por outro
lado, adultos e crianas tambm tm um modo diferente de conhecer,
viver, experimentar e agir no mundo, o que traz novos desafios para
os estudos que buscam analisar o ponto-de-vista das crianas. O
presente trabalho parte de minhas reflexes e experincias como
pesquisadora no campo de estudos das infncias e tem por objetivo
colocar em foco as prprias relaes estabelecidas entre pesquisadores
e crianas em campo. Neste trabalho, eu defendo a ideia de que a
forma como o pesquisador entra, age e permanece no campo crucial
para que ele consiga desenvolver uma pesquisa com crianas, na qual
elas no ocupem o lugar de objeto de estudo, mas sejam consideradas
como sujeitos ativos nas produes de suas prprias biografias.
Palavras-chave: infncia; pesquisa com crianas, pesquisa de campo;
mtodos qualitativos. Abstract:
In the last two decades we have seen an increasing concern and a
resultant increase of the number of researchers who have been
interested in knowing the life and the day-to-day of children from
childrens perspectives. However, it is not necessarily easy to
access the social worlds of boys and girls, since many obstacles
lie in the way of a researchers attempts to be accepted by the
children. These include obvious differences in communication
strategies, behavior, patterns of cognition, (real or perceived)
power relations, interests and even physical stature, which the
researcher needs to address. On the other hand, adults and children
also have different ways of experimenting and finding out about the
world, and living and acting in it, which brings new challenges for
the researches that want to analyze the point-of-view of children.
This study is a result of my thoughts and experiences as researcher
in the field childhoods studies, and aims to focus on the relations
established between researchers and children in the field. In this
paper I defend the idea that the way a researcher enters the field
and acts within in is crucial for developing this research with
children, in which the children are not objects of study, but
active subjects producing their own life-stories. Keywords:
childhood; research with children; field research; qualitative
methods.
-
23
Abrindo o dilogo
O presente simpsio intitula-se I Simpsio Luso-Brasileiro em
estudos da criana: perspectivas sociolgicas e educacionais e coloca
sob relevo, como seu prprio subttulo enuncia, um aspecto de extrema
importncia para a atualidade: as pesquisas com crianas. Trata-se de
um tema caro a todos ns aqui reunidos, estudiosos e pesquisadores
interessados nas infncias. Mas trata-se tambm de um desafio que nos
bate porta, uma vez que desenvolver pesquisas com crianas no uma
tarefa necessariamente fcil ou simples. Requer estudo, preparo e
habilidade por parte do pesquisador, assim como tato, pacincia e
muito jogo de cintura para tecer os fios dessa conversa.
Desenvolver pesquisas com crianas um desafio que s consegue
conhecer profundamente aquele que se arrisca no campo, aquele que
se coloca cara a cara com as crianas, indagando-se curioso sobre as
mincias e os emaranhados de seus cotidianos. Isso porque,
desenvolver pesquisas com crianas no o mesmo que desenvolver
pesquisas sobre crianas, da a importncia do foco de debate
escolhido para este simpsio.
Desenvolver pesquisas com crianas significa reconhec-las como
atores sociais plenos, como sujeitos ativos na construo de seus
mundos sociais, dando a elas espao para que ajam como co-autoras e
etngrafas de suas prprias biografias (Zinnecker, 2000). Acontece
que ingressar nos mundos sociais das crianas, dando a elas esse
lugar legtimo de co-autoria, no uma tarefa necessariamente fcil,
uma vez que muitos desafios se fazem presentes. Primeiramente
porque adultos e crianas tm um modo diferente de conhecer, viver,
experimentar e agir no mundo (Alanen, 1994, p.41), o que lana um
impasse importante para ns, pesquisadores adultos, que desejamos
desenvolver uma sociologia pautada no ponto de vista das crianas.
Em segundo lugar porque para fazermos uma pesquisa com crianas, ns
precisamos, antes de tudo, sermos aceitos por elas. Isso sem contar
a aceitao dos diretores, dos coordenadores pedaggicos, dos
supervisores, dos psiclogos, dos professores e dos pais, que
normalmente precedem a prpria aceitao das crianas, principalmente
quando as pesquisas so desenvolvidas em ambientes escolares.
Mas voltemos ao aceite das crianas, que possivelmente o aceite
mais desafiador que temos a frente. Eu no estou me referindo aqui
apenas ao aceite que diz sim, eu gostaria de participar dessa
pesquisa, mas aquele aceite que profundo, que toca na intimidade
dos sujeitos, permitindo que pesquisadores e crianas construam uma
ponte interpessoal que dem a eles a chance de tomarem gosto um pelo
outro (Errante, 2000). Eu estou me referindo a um aceite que faz do
pesquisador algum com quem [as crianas achem que] vale a pena
conversar (Geertz, 2006, p.107). E aqui surgem novos desafios, como
o fato de existir, entre crianas e adultos pesquisadores, diferenas
que envolvem questes comunicativas, comportamentais e cognitivas,
assim como interesses muitas vezes diversificados. Alm disso, o
prprio tamanho fsico, assim como as relaes de poder entre adultos e
crianas tambm se fazem presentes, uma vez que os adultos
normalmente ocupam o lugar de pais, cuidadores, professores ou
instrutores, e no necessariamente de parceiros das crianas.
Neste trabalho eu gostaria, justamente, de focar minhas anlises
nas relaes estabelecidas entre pesquisadores e crianas em campo. A
idia que eu gostaria de defender e discutir aqui que a forma como o
pesquisador entra, age e permanece no campo crucial para que ele
consiga desenvolver uma pesquisa com crianas, na qual elas no
ocupem o lugar de
-
24
objeto de estudo, mas sejam consideradas como sujeitos ativos
nas produes de suas prprias biografias. Isso significa dizer que
meninos e meninas s aparecero efetiva e legitimamente nas pesquisas
quando o pesquisador conseguir conferir a eles o lugar de
intrpretes competentes de seus mundos sociais, o que depende
fundamentalmente da sua prpria capacidade de imerso nos contextos
de vida infantis. Uma vez que as investigaes interpretativas
emergem das interaes estabelecidas entre as pessoas, a construo do
papel do pesquisador um processo contnuo, que depende
substancialmente da forma como ele se relaciona com as crianas no
campo. Nesse sentido, eu gostaria, partindo de minhas reflexes e
experincias como pesquisadora interessada nas crianas e em suas
infncias5, de abordar e discutir trs ideias principais: a) que
importante que o pesquisador assuma uma postura de adulto atpico
(Corsaro, 1997) que diminua as diferenas existentes entre adultos e
crianas; b) que importante que o pesquisador possibilite que as
crianas falem por meio de suas mltiplas linguagens (Malaguzzi,
1995; Graue & Walsh, 2003; Sarmento, 2006), o que captura o
verdadeiro sentido de dar voz s crianas nas pesquisas; c) que
importante que o pesquisador se descentre de seu olhar de adulto
para poder perceber o olhar da criana (Sarmento & Pinto, 1997),
o que possibilita o seu deslocamento de uma perspectiva de estudo
sobre as crianas para uma perspectiva de estudo com as crianas.
Analisemos mais profundamente esses trs aspectos. Um adulto atpico
entre as crianas:
Entrar em campo nem sempre algo fcil, principalmente quando se
trata de estabelecer uma relao de reciprocidade e confiana entre
adultos e crianas. Os pesquisadores no so figuras conhecidas e
familiares para as crianas e, se por um lado, eles podem despertar
curiosidade, por outro, eles tambm podem suscitar certo
desinteresse ou desconfiana. As relaes estabelecidas com as crianas
vo depender fundamentalmente do modo como o pesquisador entra em
campo e se comporta com elas; do tempo que ele se dedica construo
de laos e ao engajamento da conversa. Quando entramos em uma sala
de aula repleta de meninos e meninas a nos olhar curiosos, o que
dizemos? Onde nos posicionamos? Como agimos? Seguramente essas so
perguntas que nos fazemos bem antes de colocarmos nossos ps no
campo e que nos inquieta permanentemente quando estamos l.
Construir uma imagem de adulto atpico (Corsaro, 2003), ou seja, um
adulto que no nem o professor, nem o coordenador pedaggico ou o
psiclogo escolar, mas um adulto que est ali apenas interessado em
olhar e conhecer a vida e os movimentos das crianas uma tarefa que
desafia tanto os pesquisadores quanto as prprias crianas, uma vez
que isso tambm pode ser algo relativamente novo para elas.
5 Os exemplos que sero trazidos ao longo do texto so oriundos do
trabalho que desenvolvi durante minha
pesquisa de doutorado, onde analisei, por meio de entrevistas em
pares, as relaes entre avs e netos na perspectiva das crianas
(Ramos, 2011).
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25
preciso atentar que as crianas no esto habituadas a dar
entrevistas e a explicar o que elas sabem aos adultos em contextos
diferentes daqueles vivenciados nas relaes professor-aluno.
Raramente pedido s crianas que elas nos ensinem coisas sobre suas
vidas assim como raramente os adultos possuem uma postura mais
simtrica em relao a elas. Por outro lado, no raro que crianas e
adultos tenham perspectivas diferentes em relao a comportamentos
considerados adequados ou a atividades percebidas como perigosas, o
que faz com que muitas vezes elas evitem estar na companhia deles,
dificultando ainda mais a aproximao do pesquisador das culturas de
pares das crianas.
Na minha experincia de campo, feita com crianas entre sete e dez
anos de idade, a conquista deste lugar de adulto atpico se fez
visvel quando eu comecei a observar que a minha presena no
atrapalhava as suas atividades e brincadeiras na sala de aula.
Quando sozinhas, elas no paravam de brincar, correr ou gritar
porque eu chegava ou estava com elas. Isso no significa que elas me
ignorassem ou que eu no interagisse com elas. A diferena que eu no
controlava ao menos diretamente suas atividades ou comportamentos.
Desde o incio eu procurei assumir uma postura diferente daquela
frequentemente adotada pelos adultos em relao s crianas. Por isso,
para decises do tipo: Posso ir ao banheiro?, Posso ir ao
ambulatrio?, Posso ir tomar gua?, Posso copiar essa atividade nesta
folha?, quem respondia era sempre a professora. Aos poucos as
crianas tambm foram me conhecendo melhor, o que fez com que elas
mesmas me posicionassem em outro lugar dentro da escola.
Eu me interessava pelas coisas que elas estavam fazendo, fazia
perguntas, dava pequenas sugestes e tambm deixava que elas fizessem
perguntas sobre minha vida e meu trabalho. Ns conversvamos sobre
minha pesquisa, sobre porque eu estava interessada em conhecer
aquilo que elas sabiam, sobre como seriam as entrevistas, de modo
que elas pudessem decidir se elas gostariam ou no de participar
dessa atividade. Ao contrrio dos professores, eu no interagia com
elas apenas na sala de aula: eu tambm estava l na entrada, no
recreio, no refeitrio e na sada da escola, o que abria o nosso
leque de contato. Quando as crianas estavam na minha companhia,
muitas vezes elas me convidavam para conversar, para jogar
figurinhas ou para me mostrar os brinquedos que haviam trazido de
casa, coisas que elas raramente faziam com os outros adultos. Com o
tempo ns fomos criando uma relao de maior cumplicidade, o que fez
com que o fato de eu no ser mais criana no proibisse a minha
participao ainda que limitada de algumas situaes vividas por elas
em suas culturas de pares.
No exemplo que narrarei a seguir, que retrata um momento em que
fiquei sozinha com trs meninas uma de sete e duas de oito anos de
idade durante o perodo do recreio, podemos ver como esse lugar de
adulto atpico foi vivido por mim em uma situao de campo. Estava
chuviscando e toda a turma tinha decido para o ptio coberto. Como
elas ainda no haviam lanchado, me pediram se eu poderia pegar a
chave da sala de aula com a professora para que elas pudessem fazer
suas refeies. Assim, ficamos ns quatro na sala de aula. Enquanto
elas lanchavam, eu fazia algumas anotaes no meu Dirio de Campo. Foi
quando o lanche terminou e elas comearam a brincar:
Catarina foi a primeira a levantar e a cutucar as colegas,
convidando-as para brincar de pega-pega. Sbito elas comearam a
correr pela sala, movimentando-se entre as classes. Eu continuei
parada escrevendo, mas
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26
cuidando o que acontecia. Tanto elas quanto eu sabamos que no
era permitido correr dentro da sala de aula. Da a pouco rica pegou
uma rgua e disse que era uma varinha mgica, que quem fosse
encostado por ela viraria esttua. O pega-pega havia se transformado
em se colar, segundo o nome dado pelas prprias crianas. Com os 30
cm de rgua, a brincadeira comeou a ficar mais ativa, porque agora
era fcil alcanar a colega. No meio da gritaria e dos largos passos
de quem fugia da varinha mgica com medo de ser colada, outra menina
da turma que estava passando pelo corredor ouviu, abriu a porta e
resolveu se juntar a elas. Agora eram quatro e a sala se tornara
pequena para elas. Foi ento que ouvi Adriana gritar: A Anne o
ferrolho!. Eu, que h muito tempo no brincava de pega-pega, no havia
entendido qual seria a minha participao na brincadeira. Mas logo
percebi que quando algum estava em perigo corria na minha direo e
se atirava sobre mim, agarrado a minha roupa e permanecendo
protegida contra os feitios da varinha mgica. Eu fui includa no
jogo sem precisar correr ou falar. Eu era um lugar da brincadeira e
tornou-se divertido correr at mim. De repente, ouvimos o sinal. O
recreio havia terminado. Elas continuaram correndo, mas enquanto
brincavam iam at a porta para observar se a professora estava
chegando com o resto da turma. De repente, ouvimos murmurinhos no
corredor. Adriana corre para a porta, espia, olha para cada uma de
ns e diz, olhando fixamente nos meus olhos: Acabou a brincadeira! A
professora chegou!. Naquele momento, eu entendi que eu realmente
ocupava um lugar singular. Eu no proibia a brincadeira. Pelo
contrrio, eu podia inclusive fazer parte dela. [Dirio de campo]
Eu era adulta, mas eu no mostrava habitar um mundo completamente
alheio e distante do delas. No bilhetinho que ganhei de Betina (9
anos), por exemplo, ela destaca justamente as coisas que ns duas
teramos em comum: seramos emotivas, sorridentes e tudo mais.
Fig. 1: Bilhetinho que ganhei de Betina (9 anos).
Algo semelhante tambm aconteceu no desenho que ganhei de Ktia (9
anos). Podemos
observar que ns duas temos muitas semelhanas: o mesmo penteado,
o mesmo tom de cabelo, a mesma fisionomia, a mesma postura e usamos
a mesma roupa: camiseta de manga longa, cala, sapato e echarpe. A
nica coisa que nos diferencia a altura: um indicativo para
diferenciar a minha situao de adulta e a dela, de criana.
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27
Fig. 2: Desenho que ganhei de Ktia (9 anos).
Tais exemplos no significam que as crianas no me identificassem
como uma pessoa adulta, mas significa que elas me identificavam
como uma adulta diferente das demais, o que foi importante para o
prprio desenvolvimento de minha pesquisa. A criao de vnculos,
perpassada por essa postura de adulto atpico por parte do
pesquisador , a meu ver, parte fundamental do processo de pesquisa
com crianas. Caso o pesquisador no consiga criar uma boa relao com
as crianas, dificilmente conseguir conquistar a sua permisso para
adentrar nas particularidades de sua vida e para criar uma relao de
fluxo que fomente o [...] senso de confiana, de respeito e validao
medida que a rememorao, o ato de contar, a audio e a investigao se
desenvolvem (Errante, 2000, p.153). Muitas vezes chegamos no campo
e queremos logo entrevistar as crianas sem dar tempo para que elas
nos conheam, sem dizer a elas quem somos ou o que fazemos, sem
deixar claro seus direitos de participantes ou permitir que elas
optem ou no em fazer parte de nossos estudos.
Penso que nenhuma pessoa, nem mesmo seus pais, podem exercer
plenamente o direito de consentir pelas crianas. Eles podem,
enquanto representantes legais, permitir a sua participao, mas ela,
a criana, quem deve concordar ou no com a sua participao (Goldim,
2009), quem deve ou no querer participar, o que s pode acontecer
plenamente se ela souber como, o qu, porqu e com quem ela est
interagindo. Se o objetivo do pesquisador o de desenvolver uma
pesquisa com as crianas, ento do mesmo modo elementar que elas
atuem como co-participes desse processo, estabelecendo uma relao de
partner com o pesquisador. O estabelecimento dessa posio de adulto
atpico rearranja as diferenas entre adultos e crianas, fazendo com
que elas se sintam mais vontade para falar ou no de si e para tomar
decises em relao sua prpria permanncia e participao na pesquisa.
Frases do tipo: obvio! obvio! obvio! Tem alguma dvida? quando
pergunto se Andr (8 anos) gostaria de participar das entrevistas ou
D-lhe Pedro Bial! Ganhei no Big Brother! quando Alexandre (9 anos)
sorteado para os encontros, mostram o desejo das crianas em estar
comigo e participar dos encontros de pesquisa, o que um diferencial
importante para os estudos interpretativos.
O desenvolvimento de pesquisas com crianas tambm perpassa pela
escolha de uma metodologia que d a elas a possibilidade de se
comunicarem por meio de suas mltiplas linguagens, ponto que eu
gostaria de adentrar nesse momento.
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Uma comunicao ativa: as crianas e suas mltiplas linguagens O uso
de tcnicas mistas de entrevista, que contemplem as mltiplas
linguagens das
crianas, tem sido destacado por diferentes autores (Graue &
Walsh, 2003; OKane, 2008; Scott, 2008) como um recurso importante
na incluso de meninos e meninas nos inquritos investigativos. Muito
embora as crianas consigam participar de entrevistas faladas,
tcnicas substancialmente orais costumam deix-las rapidamente
cansadas e tornam a atividade pouco divertida e prazerosa. Os
estudos de OKane (2008) tm mostrado que as atividades que envolvem
comunicaes mais ativas, articulando a fala com expresses grficas e
corporais, costumam ser realizadas com muito entusiasmo pelas
crianas, sendo avaliadas por elas como um importante fator de
interesse na participao dos encontros de pesquisa.
James, Jenks & Prout (2007) tambm destacam que o
deslocamento de mtodos talk-centred para as task-centred activities
permite que as crianas tenham acesso a formas de comunicao
variadas, trabalhando com diferentes habilidades e possibilitando a
sua expresso por meio de componentes diversos. preciso atentar que
enquanto algumas crianas se expressam melhor pela fala, outras
preferem desenhar, recortar, pintar, encenar ou escrever, e que um
leque mais amplo de intervenes pode ajud-las nesse processo, assim
como tornar o encontro menos previsvel e montono. Dar voz s c