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Ano 1 • Edição 2 Fevereiro 2006 R$ 15,00 Classes
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Fevereiro 2006 • R$ 15,00

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Ano 1 • Edição N° 2 Fevereiro 2006 • R$ 15,00

Classes

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Foto Jorge Nunes/PRISMA

• la ASSOCIAÇÃO PARA O DESENVOLVIMENTO DA IMPRENSA ALTERNATIV

Notiziario Brasil

Informe Internacional

Opinão

Histórias de Nossa América

Teoria e Praxi

Agenda do Movimento

Meio Ambiente

Video

ECONOMIA SOLIDARIA REVISTAS OVO LIVROS

Agora www.portalpopular.org.br usa LINU

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sUMÁRIO Apresentação

DOSSI Ê: LINGUAGEM, COMUNICAÇÃO E CULTURA

Mídia e poder mundial Dênis de Moraes

Imprensa alternativa: uma resposta dialética à lógica do pensamento único Achille Lollo

"Desse pão, eu não como": trajetória revolucionária no Brasil, França e Alhures, de Benjamin Péret, militante-e-poeta permanente

Roberto Ponge

O poder da mídia e a luta pela democratização dos meios de comunicação no Brasil

Vito Gianotti

Discurso e poder Nildo Viana

De volta ao fardo do homem branco: o novo imperialismo e suas justificativas culturalistas

Adriana Facina

Veja: mais um partido neoliberal Carla Luciana Silva

Para além do espelho: os problemas das leituras do Círculo de Bakhtin Florence Carboni

Graciliano Ramos : modernista engajado Marisa Schincariol de Mello

Os grilhões de Rubem Fonseca: uma análise dos dois primeiros livros do autor - Os prisioneiros e A coleira do cão - sob o viés de uma teoria materialista da cultura

Aline Andrade Pereira

ARTIGOS

Luiz Carlos Prestes e Luiz Inácio da Silva (Lula): duas grandes lideranças x duas opções políticas opostas

Anita Leocádia Prestes

Igualitarismo marxista e liberdade humana Valério Arcary

RESENHAS

Gramsci sob novos ângulos de análise: Resenha do livro de Marcos Del Roio. Os prismas de Gramsci. A fórmula política da frente única (1919-1926). São Paulo, Xamã, 2005.

Marcelo Badar6 Mattos A linguagem escravizada: língua, história, poder e luta de classes

Adelmir Fiabani

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História & Luta de Classes Número 2 - Fevereiro de 2006

Organizadores gerais deste número: Adriana Facina, Carla Luciana Silva, Florence Carboni, Nildo Viana. Cornisão Editorial : Carla Luciana Silva, Enrique Padrós, Florence Carboni , Francisco Dominguez, Gilberto

Calil , Marcelo Badaró, Mário Maestri , Théo Pifieiro, Virgínia Fontes. Conselho Editorial Adalberto Paranhos (UFU), Adelmir Fiabani (RS), Adriana Facina (UFF), Afonso Alencastro (UFSJ), Alvenir

de Almeida (FAC e IDEAU-RS), Antonio de Pádua Bosi (UNIOESTE), Armando Boito (UNICAMP), Beatriz Loner (UFPEL), Carla Luciana Silva (UNIOESTE), Carlos Bonamigo (UNIPAR), Carlos Zacarias (UNEB), Claudira Cardoso (UFRGS), Dulce Portilho (UEG), Edílson José Gracioli (UFU), Enrique Serra Padrós (UFRGS), Érika Arantes (UFF), Eurelino Coelho (UEFS), Euzébio Assunpção (Faculdade de Osório) , Felipe Demier, Fernando Zemor (RS), Florence Carboni (UPF), Francisco Dominguez (Middlesex Universitty), Gelson Rosentino (UERJ), Gilberto Calil (UNIOESTE), Hélvio Mariano (UNICENTRO), Isabel Gritto (URI), João Pinto (UFG), João Raimundo Araújo, Jorge Magasish (Bélgica), Jorge Nóvoa (UFBA), José Pedro Cabrera (UNOESC), Kátia Paranhos (UFU), Leonardo Bruno (UFRRJ), Luciana Pereira Lombardo (UFF), Luis Carlos Amaro (RS), Magali Engel (UFF), Marcelo Badaró (UFF), Marcelo Carvalhal (UNIOESTE), Marcos Alvito (UFF), Maria Aparecida Papali (UNIVAP), Maria do Carmo Brazil (UFGD), Maria José Acedo Del'Olmo (UNIVAP), Mario Jorge Bastos (UFF), Mário José Maestri Filho (UPF), NaraMachado (PUCRS), Nildo Viana (UFG), Noeli Woloszyn (Universidade do Contestado), Olgário Vogt (UNISC), Patricia Mafra, Patrícia Trópia (UNICAMP), Paulo Esselin (UFMS), Paulo Zarth (UNIJUÍ), Pedro Paulo Funari (UNICAMP), Philomena Gebran (USS), Renato Lemos (UFRJ), Ricardo Gama da Costa, Roberto Radunz UNISC / UCS), Romualdo Oliveira (USP), Selma Martins Duarte (UFGD), Sérgio Lessa (UFAL), Soleni Fressato (UFBA), Sônia Regina Mendonça (UFF), Sydernham Lourenço (UERJ), Tarcísio Carvalho (UFF), Teones Pimenta de França (FSSSL) Thaís Wenczenovicz (URI), Theo Pifieiro (UFF), Valéria de Almeida (UNIVAP), Valério Arcary (CEFET-SP), Virgínia Fontes (UFF) .

Distribuição : Associação para o Desenvolvimento da Imprensa Alternativa - ADIA Praça Pio X, n.o 7 - 9° andar Sala Projetoadia CEP 20040-202 - Rio de Janeiro/RJ TeleFax: (021) 2263-0187 Endereço eletrônico: [email protected]

historiaelutadeclasses@uol .com.br

Projeto gráfico e diagramação : Patricia Mafra Impressão : ADIA Foram impressos 1.000 exemplares em fevereiro de 2006

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Apresentação

"Classe social e comunidade semiótica não se confundem. Pelo segundo termo entendemos a comunidade que utiliza um único e

mesmo código ideológico de comunicação. Assim, classes sociais diferentes servem-se de uma só e mesma língua. Conseqüentemen­

te, em todo signo ideológico confrontam-se índices de valor con­traditório. O signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de

classes. "

A cultura constitui um campo da atividade huma­na particularmente sujeito a mistificações. Visões idealistas das mais diversas vertentes insistem em abordar a cultura como um reino à parte, imune às determinações da vida material, regi­do por regras próprias e auto-referentes. Mais recentemente, o culturalismo pós-moderno tem procurado criticar o marxismo, que identifica à sua redução mecanicista, a partir de enfoque cultural do mundo social que inverte a ótica das determinações materiais.

Essa visão amplia e afrouxa o conceito de cultu­ra, tanto nos seus conteúdos quanto em seu poder explicativo, promovendo a idéia de que tudo o que diz respeito às sodedades humanas é cultural. Essa ampliação arbitrária questiona inclusive as deter­minações da natureza. Em última análise, para tal visão, até mesmo os fenômenos naturais, entre eles o próprio corpo humano, seriam culturais.

Ao atribuir a essa compreensão de cultura o poder de determinação, o culturalismo retira as explicações dos processos históricos e sociais do terreno concreto da luta de classes, material e historicamente determinada. Dessa maneira , a cultura representaria o que há de mais essencial em uma sociedade, verdadeira instância coesa e unificadora, pairando por cima dos conflitos e processo sociais.

Mikhail Bakhtin, Marxismo e filosofia da linguagem

Reunidos no dossiê "Linguagem, Comunica­ção e Cultura" , os artigos do segundo número da revista História &...Luta de Classes opõem-se a essa ótica culturalista, buscando analisar em forma materialista os fenômenos culturais. Essa pers­pectiva, explicitamente vinculada ao marxismo, entende a cultura como parte da produção e re­produção material da vida e, portanto, como um fenômeno social e histórico inserido na dinâmica da luta de classes.

Aprendemos com Antonio Gramsci que, nas sociedades de classes, os modos de ver, expressar e analisar o mundo que nos cerca estão em dispu­ta permanente. Essa disputa é parte do esforço das classes em confronto de construírem hege­monias e contra-hegemonias. Para constituírem­se enquanto tal, as classes exploradoras neces­sitam que seus valores, sua moral, suas institui­ções, suas visões de mundo sejam considerados naturais, legítimos e universalizáveis. No entan­to, os confrontos sociais abrem inexoravelmente brechas nas narrativas apologéticas, explicitando as contradições que expõem a parcialidade das propostas universalizantes. São essas brechas que

. procuramos fortalecer e ampliar como espaços da luta contra-hegemônica.

Para conquistar a hegemonia, as classes do­minantes utilizam meios cada vez mais agre sivos

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e coercitivos, nesses tempos de capitalismo senil e de novo ciclo de acumulação selvagem de capi­tal, que transformam as promessas de libertação social através do mercado em brutal opressão da imensa maioria da população do planeta. À apo­logia e à coerção soma-se a busca por consenso que sonha fazer crer que os sujeitados são sujei­

tos de sua própria sujeição. Através da linguagem verbal, todas as cons­

ciências individuais incorporam um universo de fatos semióticos, de sistemas conceptuais, de va­lores, de distinções e de oposições. Apresentadas como códigos neutros de comunicação, as lín­guas são o instrumento privilegiado das classes exploradoras para impor suas ideologias e man­ter sua hegemonia. Atualmente, termos como modernização, riforma,flexibilização, liberalização,

desregulamentação figuram amplamente nos noti­ciários para consolidar a idéia que o desempre­go e a imensa transferência de recursos públicos para as mãos privadas são parte de processo de evolução natural e inexorável da economia e da sociedade. Adotar a perspectiva bakhtiniana da linguagem como arena da luta de classes é pro­ceder, por meio da crítica, à desnaturalização e

historicização desses termos. Através da análise de textos literários, da

crítica do papel dos meios de comunicação na sociedade contemporânea, da reflexão acerca da linguagem verbal, os artigos reunidos neste número de História &...Luta de Classes pretendem desvendar alguns dos mecanismos pelos quais as classes dominantes constroem o consenso ideo­lógico para continuar mantendo os explorados

na submissão. O número conta ainda com dois artigos, um

sobre política atual à luz da história de Luiz Car­los Prestes e outro sobre o papel do igualitaris­

mo marxista.

Os organizadores

4 História & Luta de Classes

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o PAPEL ESTRATÉGICO DA MíDIA GLOBAL

As corporações de mídia e entretenimento ocu­pam um duplo papel estratégico no processo de reprodução ampliada do capitalismo. O primei­ro diz respeito à sua condição peculiar de agentes operacionais da globalização, do ponto de vista da enunciação discursiva. Não apenas legitimam o ideário global, como também o transformam no discurso social hegemônico, propagando visões de mundo e modos de vida que transferem para o mercado a regulação das demandas coletivas.

A retórica da globalização enquadra o con­sumo como valor universal, capaz de converter necessidades, desejos e fantasias em bens inte­grados à esfera da produção. Como se somente o mercado pudesse atender aos anseios do que se convencionou chamar de organização societária . Os aparatos de veiculação fabricam o consenso sobre a hipotética superioridade das" economias abertas", insistindo que não há saída fora dos pressupostos neoliberais .

• Dênis de Moraes é professor do Programa do De­

partamento de Estudos Culturais e Mídia e do Pós­

Graduação em Comunicação da Universidade Federal

Fluminense e p qui ador do CNPq.

Mídia e poder mundial

Dênis de Moraes '~

O avanço do neoliberalismo no terreno político-cultural repousa, em larga medida, na capacidade demonstrada pelas indústrias de infor­mação e entretenimento de operar como máqUi­nas produtivas que estruturam, simbolicamente, o discurso da vida e da produção. A mídia ocupa posição destacada no âmbito das relações sociais, visto que é no domínio da comunicação que se fixam os contornos ideológicos da ordem hege­mônica e se procura reduzir ao mínimo indispen­sável o espaço de circulação de idéias alternativas e contestadoras. A meta precípua é neutralizar as expressões de crítica e dissenso. Essa variante do pensamento único - que subordina os direitos sociais dos cidadãos à razão competitiva dos mer­cados financeiros - oculta a carga atômica de de­sigualdades que viceja nos espaços e subespaços socioeconômicos planetários .

A difusão midiática incumbe-se de associar o prisma de revelação da realidade a concepções ali­nhadas com o "livre mercado" . A construção ideo­lógica evidencia-se nas mudanças propositais no sentido de algumas palavras. Atilio Boron exem­plifica: "Em vastos territórios do globo a palavra 'reforma' foi exitosamente utilizada para designar o que qualquer análise minimamente rigorosa não vacilaria em qualificar de 'contra-reforma' .As pro­paladas 'reformas' se materializavam em políticas

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tão pouco reformista como o desmantelamento da eguridade social, a redução dos investimentos sociais, o corte nas verbas para saúde, a educação e a habitação, e a legalização do controle oligopólico da economia. A palavra 'desregulamentação", por seu turno, foi ativamente promovida pelos id ó­logos neoliberais para aludir a um processo pelo qual se uprimiam as intervenções governamen­tais na economia, a fIm de restaurar a 'auto-regu­lação natural' dos processos econômicos.")

A mídia assim atua tanto por adesão ideoló­gica à globalização capitalista quanto por deter a capacidade única de interconectar o planeta, através de satélites, cabos de fibra óptica e re­des infoeletrônicas. Não creio existir outra esfera habilitada a interligar povos, países, sociedades, culturas e economias. A característica integrado­ra é algo intrínseco aos complexos de difusão, e isto se viabiliza por sua conjugação ao sistema tecnológico que rege a vida contemporânea . Po­tencializada tecnologicamente, a mídia conca­tena, simbolicamente, as partes das totalidades, procurando unificá-las em torno de determina­das significações. A partir de uma retórica que demonstra sutil sensibilidade para lidar com SLm­bolos abrangentes, extravasam emoções que sus­citam identificações sociais e psíquicas, influindo em hábitos de consumo e direcionando pontos de vista. Pensemos na CNN, que distribui, por satélites e cabos, a partir da matriz em Atlanta, notícias 24 horas por dia para 240 milhões de lares em 200 países e 86 milhões nos Estados Unidos, além de 890 mil quartos de hotéis con­veniados. O mundo em tempo real exibido para 1 bilhão de telespectadores. A CNN não apenas criou e universalizou uma linguagem e um for­mato para a informação televisiva, como, vária vezes, alinha a sua orientação editorial com inte­r s es estratégicos norte-americanos.

Eis o significado concreto da articulação exis­tente entre o modo de produção capitalista e a

I Atilio A. Boron. Império &..imperiaiismo. Buenos Aire :

Clacso, 2002, p. 139-140.

6 Histól"ia & Luta de Classes

tecnologias de comunicação e informação: uma sinergia que, de um lado, alimenta a acumulação de capital financeiro numa economia de interco­nexões eletrônica e, de outro, permite ao capi­tal mobilidade para conservar a rédea sobre os circuitos produtivos e as inovações. 2

A informação assumiu a dianteira na rota­ção vertiginosa do capitalismo global. Tornou­se fonte alimentadora das engrenagens indis­pensáveis à hegemonia do capital, uma espécie de "mais-valia decisória" que se qualifica como recurso básico de gestão e produção. A própria noção de informação não se cinge mais à idéia de notícia e embute várias concepções: infor­mação de base (bancos de dados, acervos digi­tais, arquivos multimídias), informação cultural (filmes, vídeos, jornais, programas televisivos, livros etc.) e know-how (invenções, patentes, pro­tótipos etc.). Cada vez mais, a produtividade e a competitividade dependem da capacidade dos agentes econômicos de aplicar de modo efIciente informações baseadas em conhecimentos. A dis­ponibilização de dados em tempo real passa a ser elemento-chave para a diminuição do prazo de resposta de investidores e especuladores diante das variações dos mercados globalizados. Não é casual a lucratividade obtida por agências trans­nacionais como Reuters e Bloomberg, que cole­tam, selecionam e fornecem, a peso de ouro, um volume ininterrupto de notícias. A análise dos dados ajuda a instruir as intervenções de traders,

corretores e analistas. O controle da informação situa-se no vérti­

ce de estruturas de dominação que submetem discrepâncias políticas e diferenças culturais às razões do mercado e a inj unções geopolíticas e econômicas . Ex-colaborador d Bill Clinton e hoje diretor-geral da Kissinger Associate , David Rothkopf não hesita em expor sua convicção im­periali ta ao afIrmar que, para os Estados Unidos,

2Yer Manuel Ca tell . La era de la irifàrmación: economÍa,

sociedad J cultura (Voi. i: La sociedad red). Madri: Alianza

Editorial, 1998, p. 506-510.

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tão pouco reformista como o desmantelamento da eguridade social, a redução dos investimentos sociais, o corte nas verbas para saúde, a educação e a habitação, e a legalização do controle oligopólico da economia. A palavra 'desregulamentação", por seu turno, foi ativamente promovida pelos id ó­logos neoliberais para aludir a um processo pelo qual se uprimiam as intervenções governamen­tais na economia, a fIm de restaurar a 'auto-regu­lação natural' dos processos econômicos.")

A mídia assim atua tanto por adesão ideoló­gica à globalização capitalista quanto por deter a capacidade única de interconectar o planeta, através de satélites, cabos de fibra óptica e re­des infoeletrônicas. Não creio existir outra esfera habilitada a interligar povos, países, sociedades, culturas e economias. A característica integrado­ra é algo intrínseco aos complexos de difusão, e isto se viabiliza por sua conjugação ao sistema tecnológico que rege a vida contemporânea . Po­tencializada tecnologicamente, a mídia conca­tena, simbolicamente, as partes das totalidades, procurando unificá-las em torno de determina­das significações. A partir de uma retórica que demonstra sutil sensibilidade para lidar com SLm­bolos abrangentes, extravasam emoções que sus­citam identificações sociais e psíquicas, influindo em hábitos de consumo e direcionando pontos de vista. Pensemos na CNN, que distribui, por satélites e cabos, a partir da matriz em Atlanta, notícias 24 horas por dia para 240 milhões de lares em 200 países e 86 milhões nos Estados Unidos, além de 890 mil quartos de hotéis con­veniados. O mundo em tempo real exibido para 1 bilhão de telespectadores. A CNN não apenas criou e universalizou uma linguagem e um for­mato para a informação televisiva, como, vária vezes, alinha a sua orientação editorial com inte­r s es estratégicos norte-americanos.

Eis o significado concreto da articulação exis­tente entre o modo de produção capitalista e a

I Atilio A. Boron. Império &..imperiaiismo. Buenos Aire :

Clacso, 2002, p. 139-140.

6 Histól"ia & Luta de Classes

tecnologias de comunicação e informação: uma sinergia que, de um lado, alimenta a acumulação de capital financeiro numa economia de interco­nexões eletrônica e, de outro, permite ao capi­tal mobilidade para conservar a rédea sobre os circuitos produtivos e as inovações. 2

A informação assumiu a dianteira na rota­ção vertiginosa do capitalismo global. Tornou­se fonte alimentadora das engrenagens indis­pensáveis à hegemonia do capital, uma espécie de "mais-valia decisória" que se qualifica como recurso básico de gestão e produção. A própria noção de informação não se cinge mais à idéia de notícia e embute várias concepções: infor­mação de base (bancos de dados, acervos digi­tais, arquivos multimídias), informação cultural (filmes, vídeos, jornais, programas televisivos, livros etc.) e know-how (invenções, patentes, pro­tótipos etc.). Cada vez mais, a produtividade e a competitividade dependem da capacidade dos agentes econômicos de aplicar de modo efIciente informações baseadas em conhecimentos. A dis­ponibilização de dados em tempo real passa a ser elemento-chave para a diminuição do prazo de resposta de investidores e especuladores diante das variações dos mercados globalizados. Não é casual a lucratividade obtida por agências trans­nacionais como Reuters e Bloomberg, que cole­tam, selecionam e fornecem, a peso de ouro, um volume ininterrupto de notícias. A análise dos dados ajuda a instruir as intervenções de traders,

corretores e analistas. O controle da informação situa-se no vérti­

ce de estruturas de dominação que submetem discrepâncias políticas e diferenças culturais às razões do mercado e a inj unções geopolíticas e econômicas . Ex-colaborador d Bill Clinton e hoje diretor-geral da Kissinger Associate , David Rothkopf não hesita em expor sua convicção im­periali ta ao afIrmar que, para os Estados Unidos,

2Yer Manuel Ca tell . La era de la irifàrmación: economÍa,

sociedad J cultura (Voi. i: La sociedad red). Madri: Alianza

Editorial, 1998, p. 506-510.

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"o objetivo central de uma política externa na era da informação deve r O de ganhar a batalha dos fluxos de informação mundial, dominando as suas ondas, da mesma forma como a Grã-Bre­tanha reinava antigamente obre os mares" .3 Não é difícil entender por que os recursos aplicados em tecnologias de informação respondem por uma porcentagem que oscila entre 3,5% e 5,2% do Produto Interno Bruto dos Estados Unidos. Na Europa Ocidental e na Ásia, o crescimento dos gastos com tais tecnologias são ainda mais significativos: 7% e 10%, respectivamente.

O sistema tecnológico incorpora ao capita­lismo a sua lógica expansiva, caracterizada pela contínua integração dos fluxos de informação em um sistema comum de altíssima velocidade, a um custo decrescente (em boa parte assegu­rado pela redução da força de trabalho em face da introdução de tecnologias de ponta). É por meio da absorção de privilegiados que as forças do capital garantem o monopólio de acesso a co­nhecimerftos essenciais à volatilidade das transa­ções financeiras e à constituição de dividendos competitivos. A fluidez informativa possibilitada pelas tecnologias, portanto, não representa um bem comum e não desfaz, por si só, exclusões na periferia do capitalismo. Apenas grandes em­presas e instituições hegemônicas têm a prerro­gativa de utilizá-la extensivamente em função de eus interesses particulares. 4

Nesse contexto, os conglomerados de mÍ­dia desempenham um segundo papel distinti­vo, o de agentes econômicos globais. Todos eles figuram entre as 300 maiores empresas não fi ­nanceiras do mundo. 5 De acordo com o banco

3 David Rothkopf, citado por Herbert I. Schiller. "00-

miner I' ere éleetronique" , Le Monde Diplomatique, agos­

to de 1998.

+ Ler Milton Santos. Por uma outra Blobalização: do pen­

samento único à consciência universal. Rio de Janeiro : Re­

eord, 2000, p. 38-39.

5 Con ultar Robert MeChe ney. " Mídia global, neolibe­ralismo e im pel-iali mo", em Dêni de Moraes (org.) .

de investimentos Veronis Suhler, a indústria de comunicação é o setor de crescimento mai rá ­pido da economia norte-americana entre 1999 e 2004, com média de 7,3% - à frente dos mer­cados financeiro (6,4%), de serviços (5,6%), (4,9%) e de bens duráveis (3,8 %).

Para este resultado, contribuíram bastante as desregulamentações neoliberais dos anos 80 e 90. Os megagrupos alastraram-se pelos Con­tinentes sem se submeter a maiores restrições legais. Mesmo que o desempenho atual seja afe­tado pela retração das verbas publicitárias pela desaceleração internacional, con ultorias e pe­cializadas prevêem que os investimento em co­municação continuarão a aumentar a médio e a longo prazos.

Os plaJers de mídia buscam alcançar os parâmetros de rentabilidade que norteiam os gigantes transnacionais. Não vejo distinção re­levante entre filosofias, estruturas operativas e objetivos mercadológicos. AOL-Time Warner, Disney, News Corporation, Viacom: nada difere seus perfis corporativos dos da General Motors, da McDonald's e da IBM. As nuanças localizam­se nas áreas de atuação - muito embora essa se­paração venha se reduzindo a olhos vistos, em função da convergência multimídia, de alianças, fusões e participações cruzadas.

Durante a década de 1990, a indústria de comunicação adequou-se às linhas mestras da corporação-rede, explorando ramos conexos e sinergias capazes de racionalizar custos, conju­gar know-how e economizar na escala. Os lucros muitas vezes são reaplicados em outro setores de atividades com o objetivo de minar antigas supremacias e, quando possível, instituir novos monopólios.

Em suma, as corporações de mídia projetam­se, a um só tempo, como agentes discursivos, com uma proposta de coesão ideológica em tor­no da globalização, e como agentes econômicos

Por uma outra comunicação: m/dia, mundializaçào cultural e

poder. Rio de Janeiro : Reeord, 2003, p. 221 .

Oênis de Moraes / Mídia e poder mundial 7

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pl"oeminentes nos mercados mundiais, venden­do os próprio prodütos e intensificando a visi­bilidade dos de seus anunciantes. Evidenciar e se duplo papel parece-me decisivo para entender­mos a sua forte incidência na atualidade.

PARADIGMA TECNOLÓGICO E

REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA

Vivemos uma mudança de paradigma comuni­cacional. Do gabarito midiático · evoluímos para o multirnidiático ou multimídia, sob o signo da digitalização. A linguagem digital única favorece a convergência de redes e plataformas, forjando a base material para a hibridação das'infra-estru­turas de transmissão de dados, imagens e sons, em proporções incalculáveis.

A soma dos prefixos dos setores convergen­tes (informática, telecomunicação e comunica­ção) em uma só palavra - infotelecomunicações - designa a conjunção de poderes estratégicos relacionados ao macrocampo multimídia. O pa­radigma infotelecomunicacional constitui vetor fundamental para a expansão e a reconfiguração dos complexos midiáticos, tendo por escopo a comercialização diversificada e sem limites geo­gráficos. A capacidade de transmissão das tecno­logias digitais é muito maior do que o estágio atual de geração de conteúdos, tendo em vista que os novos canais e suportes (Internet, OVO, TV interativa de alta definição, celulares com web móvel, webcam, MP3 e os tantos que virão) multiplicam os fluxos informativos, financeiros, culturais e comerciais.

A convergência de sistemas digitais de trans­missão e recepção materializa-se na terceira ge­ração da telefonia móvel, que permite a um ce­lular conectar-se sem fio à Internet; ser utilizado como câmera e filmadora digital, MP3 e rádio fM; disponibilizar correio eletrônico, mensa­gens e noticiários em tempo real, horóscopo, jo­gos eletrônicos, mapas e filmes, além de captu­rar e enviar imagens. Note a espiral reprodutiva: é necessário produzir e disponibilizar conteúdos diver wcados para e tes canais; e cada um deles

8 História & Luta de Classes

constitui uma mídia específica, com dinâmicas de linguagem, áreas de entretenimento, padrões de interação e campos de atração de assinantes, usuário , capitais publicitários e serviços pagos.

Na corrida digital, agrupam-se interesses dos mais diferentes setores da economia interessa­dos em rentabilizar seus negócios no universo digital, aí incluídos fabricantes, anunciantes, pa­trocinadores, fornecedores, administradores de marcas e campanhas publicitárias, operadores fi­nanceiros etc. O aproveitamento de um me mo produto em diferentes suportes tecnológicos faz sobressair a mais-valia na economia multimídia. Em 1980, 75% da receita de um filme produ­zido em Hollywood provinham de sua exibição nas telas, contra 18% na televisão. Em 2000, as salas de cinema respondiam por 34% do total ar­recadado, ao passo que a televisão subia sua par­ticipação para 20% e o vídeo/DVD conquistava 40% do faturamento do filme (incluindo pelícu­las remasterizadas digitalmente), enquanto 3% cabiam ao merchandising e 3% ao pay-per-view. 6

Para se ajustar ao novo padrão tecnoproduti­vo e às exigências de uma economia globalizada com bases mercadológicas geograficamente dis­persas, as corporações de mídia passaram a gerir seus empreendimentos a partir de um centro de inteligência - a holding - incumbido de estabe­lecer prioridades, diretrizes, planos de inovação e parâmetros de rentabilidade para subsidiárias e filiais. A holding destaca-se como pólo de plane­jamento e decisão ao qual se remetem as estra­tégias locais, nacionais e regionais. Ela organiza e supervisiona a instituição de cima a baixo, em fragmentos e nódulos de uma rede formada por eixos estratégicos comuns e hierarquias interme­diárias flexíveis.

O êxito da corporação-rede vincula-se ao aprimoramento de tecnologias que favoreçam o comando à distância. As organizações interco­nectam seus investimentos sob a égide de uma

6 Jorge Leitão Ramo . « A febre do OVO", Expresso, Li -

boa, 7 de fevereiro de 2004.

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racionalidade empresarial única. Já não se exige proximidade entre os lugares de produção e de consumo. Pelo contrário, há uma íntima relação entre a desterritorialização da produção e a ve­locidade circulatória do capital. As corporações implementam políticas de produção, comercia­lização e marketing, absorvendo certas particu­laridades socioculturais dos países em que ope­ram. Para uma adaptação mercadológica sólida, valem-se de parcerias com sócios e fornecedores locais.

Os sentidos de pertencimento já não se res­tringem às tradições nacionais. Os consumido­res passam a ser classificados não exclusivamente por faixas de renda, classes ou escolaridade, mas também em função de estilos de vida e gostos comuns, que se superpõem às identidades clássi­cas. Claro que, para os titãs de mídia e entrete­nimento, importam muito pouco os indicadores de miséria, desemprego estrutural e desigualda­des sociais em países periféricos; eles querem, isto sim, explorar os potenciais de consumo ali existentes.

O desafio consiste em adaptar os alvos mer­cadológicos com traços específicos de cada área, seja para fixar a impressão de que os produtos pairam acima de singularidades geoculturais, seja para incorporar demandas e preferências locais, desde que isso aumente a predisposição ao con­sumo e a fidelização a marcas. É eloqüente o caso do parque temático da Disney em Marne-Ia-Val­lée, na França. Só começou a dar lucros depois que combinou métodos de gestão importados dos EUA com adaptações ao gosto local, como a adoção de cardápios franceses e a venda de cer­vejas e vinhos nos restaurantes existentes dentro do parque.

Quando as bases consumidoras se inclinam pela produção local, os conglomerados incum­bem- e de reforçar estratégias de regionaliza­ção. A Sony realiza filmes em parcerias com produtoras da China, da França, da Índia e do México, e mantém contratos de distribuição com empresas independente de música em vá­rios paíse . A News Corpo avança no mercado

asiático co-produzindo, em e túdios e idiomas locais, programas de televisão para 240 milhões de espectador s do Japão, China, Indonésia, fi­

lipinas, Coréia do Sul, Tailândia, Malá ia, Hong Kong, Taiwan, Índia e Paquistão. Pr ocupada com o crescimento da produção televisiva eu­ropéia, a Disney associou-se à Bertelsmann nos canais RTL e RTL2; comprou parte da Scandina­vian Broadcasting System; dubla desenhos ani­mados e seriados para o francês e o espanhol.

Essa "aculturação" na verdade esconde uma ambigüidade intencional: se de um lado as cor­porações assimilam alguns predicados regionais, de outro em momento algum renunciam à idéia de atrair o público de massa com programações padronizadas, requisito indispensável à sustenta­ção da competitividade na arena internacional. Os focos das políticas de comercialização são a diminuição de custos industriais e enormes ga­nhos de produtividade.

Temos, portanto, uma concentração de po­der sem centralização operacional. Todavia, não percamos de vista que essa flexibilidade é relati­va, pois filiais e subsidiárias permanecem no raio de eventuais reorientações da matriz. A holding avaliza uma rede corporativa formada por ele­mentos complementares, mas mantém a ascen­dência sobre o todo, recorrendo a mecanismos de acompanhamento de metas de produção e lu­cro viabilizados pela informatização de processos e sistemas.

o DOMíNIO DA PRODUÇÃO SIMBÓLICA

A mídia global está nas mãos de duas dezenas de conglomerados, com receitas entre US$ 8 bi­lhões e US$ 40 bilhões. Eles veiculam dois ter­ços das informações e dos conteúdos culturais disponíveis no planeta. São proprietários de es­túdios, produtoras, distribuidoras e exibidoras de filmes, gravadoras de discos, editoras, par­ques de diversões, TVs abertas e pagas, emisso­ras de rádio, revistas, jornais, serviços on line,

portais e provedore de Internet, vídeos, videoga­mes, jogos, softwares, CD-ROMs, DVDs, equipes

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esportivas, megastore ,agência de publicidade e marketing, telefonia celular, telecomunica­ções, transmissão de dados, agências de notícias e casa de espetáculos.

AOL-Time Warner, Viacom, Disney, New , Bertelsmann, NBC-Universal, Comcast e Sony, as oito primeiras do ranking de mídia e entre­tenimento, têm idênticas pretensões de domí­nio: estar em toda parte, a qualquer tempo, para exercel- hegemonia.

Em tal moldura, a competição restringe-se a um número mínimo de pla'yers com poderio fi­

nanceiro, conhecimento estratégico, capacidade industrial e redes de distribuição. Esse grau de hiperconcentração reproduz o que sucede no comércio internacional, no qual as corporaçõe globais movimentam dois terços das transações. De um total de 40 mil empresas transnacionais, as 100 maiores (0,3%) detêm um terço do es­toque de capital, sendo que 32 são norte-ame­ricanas e 19 japonesas. O faturamento anual das 220 maiores companhias, orçadas em trilhões de dólares, equivale à riqueza combinada de 80% da população mundial (os 20% restantes corres­pondem aos países do G-8). Em um contraste chocante, os gigantes transnacionais, que têm suas matrizes em oito países, empregam apenas 1 % da população da Terra. 7

Ocupam posições de destaque as parcerias e joint ventures. Ao optarem por estratégias de co­laboração, as corporações vi am aumentar seus lucros, seja reduzindo e repartindo despesas e perdas, seja contornando fatores de risco - em especial os decorrentes da instabilidade econô­mica e do encolhimento da vida útil das merca­dorias. Os projeto exigem aportes financeiro e logí tica adequada, a fim de facilitar o escoamen­to nas praça e trangeiras.

A vantagem competitiva de uma corporação se mantém enquanto ela demonstrar capacidade

7 Ver José Luiz Fiori. 60 lições dos 90: uma década de neo­

liberalismo. Rio d Janeiro: Record, 2001, p. 26; Atilio

A. 80ron. Império &..imperialismo, ob. cit., p. 47.

10 História & Luta de Classes

criativa e conhecimento mab-icia] nos diverso setores e nas interfaces de suas atividade , agre­gando valor à cadeia produtiva. Na mão oposta, estreita-se a participação d empre as de menor porte nos negócios de ponta. Resta às pequena e médias fIrmas nichos mercadológicos ou o for ­necimento de in umos e serviços especializado , sempre que é mais vantajoso para as grandes companhias terceirizar a produção ou adquirir itens cuja fabricação seria dispendiosa. Em am ­bos os casos, gravitam em torno da economia de escala das corporações e precisam demons­trar produtividade, agilidade e criatividade para sobreviver. Nesse molde, a concorrência efetiva limita-se dramaticamente a um número resb-ito de superempresas, que impõem barreiras à en­b-ada de novos competidores.

Como efeito exb-emamente perverso da re­estruturação tecnoprodutiva, sucedem-se ondas de demi sões e reduções de quadros de pessoal. Na obsessão pela mais-valia, ignora-se qualquer preocupação com os custos sociais. A Interpu­blic demitiu 5.700 funcionários; a AOL-Time Warner, 5.000; a Disney, 4.000; a EMI Music, 1.800; a Havas, 1.600. A Sony dispensará 20 mil funcionários entre 2003 e 2006. Sem falar no impactos maléficos da precarização do emprego (redução de salários, extensão da jornada de tra ­balho, terceirização desenfreada de serviços) e das perdas de direitos trabalhistas e previdenciá­rios com as "reformas" neoliberais.

Robert Kurz sublinha que, para o conjunto do capital social, fusões e incorporações provo­cam um efeito destrutivo, visto que, no cômputo geral, empregos e capital são muito mais ani­quilados do que recriados. "Uma grande parte das incorporações, abstraindo o outsourcin8, ó serve para tirar proveito da disparidade de cus­tos, ou seja, para fechar setore relativamente dispendiosos da empresa e reabri-los em outras localidades, com encargos b-ibutário e impos­tos ecológicos menore e salários mais baixos. ( ... ) Mesmo quando as empresa incorporadas continuam a produzir, a fusão é acompanhada, em geral, do urto de racionalização na e fera

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administrativa: empregos são extintos, setores inteiros da hierarquia ão eliminados e filiais fe­cham suas portas."8

A contração da concorrência atinge o seu pa­tamar máximo quando os protagonistas de um mesmo setor optam por fusões, com vistas a ga­rantir a rentabilidade perdida em conjunturas de crise econômica. Somente em 2003, houve mais de 460 fusões e aquisições de empresas do se­tor de mídia nos Estados Unidos, movimentando cerca de US$ 36 bilhões. As vantagens empresa­riais são evidentes: aumenta o poder de negocia­ção comercial com fornecedores, diminui des­pesas, reparte dívidas e soma ativos. Por outro lado, o monopólio privado reduz a possibilidade de escolha dos consumidores, já que as opções e agrupam em um único portfólio e sob idêntica diretriz estratégica.

Nas indústrias culturais, a concentração alcan­ça níveis alarmantes. Em % do planeta, as prin­cipais cadeias de distribuição e exibição cinema­tográficas pertencem a cartéis de Hollywood. E 80% do mercado fonográfico estão em poder das chamadas "cinco irmãs": Universal Music, War­ner (Time Warner), Sony, BMG (Bertelsmann) e EMI. Se consolidada a fusão da Sony Music com a BMG, restarão quatro irmãs, com a Universal respondendo por 25,9% das vendas e a nova em­presa por 26,7%. O ramo editorial é controlado por dez megafirmas (Bertelsmann, Time Warner, Viacom, News, Pearson, Hachette, McGraw­Hill, Reed Elsevier, Wolters Kluwer, Thomson e Rizzoli-Corriere della Sera). Conglomerados asiáticos (quanto à fabricação de equipamentos e fitas) e norte-americanos (quanto à produção de fitas pré-gravadas) dominam as indústrias de vídeo e DVD. Dez empresas japonesas, entre elas Sony, Hitachi, Fuji e Matsushita, são responsáveis por 90% das exportações mundiais de aparelhos de vídeo e fitas virgens. Sony, Sega e Nintendo centralizam 90% das vendas de videogames. 9

8 Robert Kw-z, "A orgia do capitali mo", Folha de S. Pau­

lo, 31 de maio de 1998 .

Fredric Jameson ressalta que não e trata mais de ver a cultura como expressão relativa­mente autônoma da organização social, e sim de perceber que os bens simbólicos estão totalmen­te imersos na lógica da mercadoria e do lucro. 10

"É a transformação da cultura em economia e da economia em cultura. É uma imensa 'desdiferen­ciação', na qual as antigas fronteiras entre a pro­dução econômica e a vida cultural estão desapa­recendo. Cultura é negócio, e produtos são feitos para o mercado. ( ... ) Na lógica da 'coisificação' , a intenção final é transformar objetos de todos os tipos em mercadorias. Se esses objetos são estrelas de cinema, sentimentos ou experiência política não importa." I I Em tal configuração, a esfera cultural torna-se componente essencial na lubrificação do sistema econômico dominante, a ponto de a indústria do entretenimento, jun­tamente com a de software, liderar a pauta de exportações dos Estados Unidos.

DILEMAS E PERSPECTIVAS

Não é difícil deduzir que a convergência digital se instaura à sombra da oligopolização de suportes e serviços, ainda que a retórica neoliberal insis­ta na suposição dos benefícios tecnológicos. Essa hibridação de técnicas e meios de difusão está longe de equacionar deSigualdades nos acessos aos conhecimentos e às inovações. Ao contrário, ela repõe tensões e desníveis entre hierarquias planetárias, em consonância com a dinâmica ca­pitalista global.

A concentração da mídia consolidou-se no vácuo aberto pela liberalização desenfreada, pela insuficiência de marcos regulatórios e pela

9 Sobre a oligopolização das indústrias culturais, vel'

Dêni de Moraes. O planeta mídia: tendências da comuni­

cação na era 810bal. Rio de Janeiro: Letra Livre, 1998,

p.135-153 . 10 Fredric Jameson. A cultura do dinheiro: ensaios sobre a

810balização . Petrópolis: Vozes. 2001, p. 143 -172 . 11 Fredric Jame on, "Falso movimento", Folha de S. Pau­

lo, 19 de novembro de 1995 .

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deliberada omissão dos poderes públicos e de organismos multilaterais. Os desequillbrios co­merciais e as disparidades tecnológicas favore­cem as corporações norte-americanas. Metade das bilheterias dos mais de 400 filmes produzi­dos anualmente nos Estados Unidos vem do ex­terior - o que representa salto expressivo, pois , em 1980, as praças internacionais respondiam por 30% . Por outro lado, as matrizes norte­americanas e britânicas das gravadoras que de­finem o rol de artistas e gêneros musicais como as linhas de comercialização e marketing. As fi­liais estão submetidas a políticas gerenciais que conciliam gêneros e artistas globais com fenô­menos musicais regionais (por exemplo, a ma­carena, a música sertaneja e o pagode român­tico). Às vezes, por sua aceitação comercial, sucessos localizados territorialmente acabam disseminados mundialmente (casos do reggae e do rap). A primazia dos repertórios anglófonos é o corolário do status imperante no mercado fonográfico, o que contribui para frear o reco­nhecimento musical de artistas de outros países e idiomas. 12

À medida que essa configuração se cristaliza, reduz-se o campo de manobra para um desen­volvimento equilibrado e estável das redes de informação. A feição oligopolística das indústrias culturais acentua descompassos estruturais, no contexto da desnacionalização de áreas estratégi­cas da comunicação. Por falta de legislação espe­cífica, a televisão digital via satélite no Brasil está sob controle de grupos estrangeiros. O grupo Abril vendeu todas as suas ações na DirecTV e as Organizações Globo têm apenas 22% das cotas da Sky Latin América, que pertence majoritaria­mente à News e à norte-americana Liberty Me­dia e inclui a Televisa, do México. Na Argentina, as medidas tomadas pelos dois governos de Car­los Menem desnacionalizaram o sistema de co­municação. A ratificação do Tratado de Proteção

12 Mario D' Angelo. "L'impitoyable industrie du dis­

que", Le Monde Diplomatique, junho de 1998 .

12 História & Luta de Classes

Recíproca de Investimentos com os EUA escan­carou o ingresso de capitais estrangeiros em em­presas de mídia, com algumas restrições para os meios audiovisuais e sem limites para as teleco­municações. O acordo permitiu que programas de televisão cheguem a qualquer dos dois países, indistintamente, ab-avés de satélites argentinos ou norte-americanos.

Estamos diante de um impasse. Cresce a ofer­ta de mercadorias, tanto aquelas para públicos massificados quanto as direcionadas a nichos de consumidores, mas não pára de se concentrar a propriedade dos meios, sob o olhar complacente ou cúmplice dos poderes públicos. A diversifica­ção televisiva com duas centenas de canais a cabo e via satélite não alterou o acúmulo pab-imonial. Os.canais pertencem às mesmas corporações que se assenhoraram do entretenimento.

As assimeb-ias resultantes da oligopolização das indúsb-ias de informação e entretenimento consagram a liderança dos países ricos. Os Esta­dos Unidos ficam com 55% das receitas mundiais geradas por bens culturais e comunicacionais; a União Européia, com 25%; Japão e Ásia, com 15%; e a América Latina, com apenas 5%.13 Se compararmos o desempenho sofrível dos países latino-americanos com o que se arrecada em uma região com 500 milhões de habitantes, conclui­remos que a maior fatia é sugada por potências estrangeiras. As principais organizações de mídia (Globo do Brasil; Televisa do México; Cisneros da Venezuela; Clarín da Argentina) têm acordos e joint ventures com conglomerados transnacio­nais. Além de monopolizar os mercados nacio­nais, ajudam a rentabilizar os negócios dos sócios globaiS com a importação e royalties de filmes, seriados, vídeos, discos, livros, programas de TV e desenhos animados (a maioria dublada em es­panhol e português). A dependência aos cartéis é ainda mais problemática diante dos insuficientes

13 Consultar Néstor GarcÍa Canclini. Latinoamericanos

buscando lUBar en este siBlo. Barcelona: Paidós, 2002 , p. 55 .

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investimentos dos governos latino-americanos em ciência, tecnologia e industrialização de en­tretenimento, restringindo as condições de com­petitividade dos produtos autóctones. Há que se considerar também as deficiências crônicas de planejamento e gestão das empresas de comuni­cação da região, a maioria das quais atolada em dívidas com bancos e credores estrangeiros (caso da Globopar, holding da Globo).

O volume crescente de informação e entre­tenimento origina-se, na maior parte das vezes, de fontes de emissão controladas por superem­presas que se movimentam pela Terra sem pres­tar contas a ninguém, exceto a seus acionistas. Impossível não admitir abalos socioculturais em meio à vertigem provocada por 150 mil horas de filmes, seriados e programas esportivos ex­portados pelos Estados Unidos, equivalentes a 77% das programações televisivas da América Latina. 14

Os globalófilos poderiam objetar que jamais a humanidade se deparou com tantos dados, sons e imagens. Mas quem comanda e centraliza a dis­seminação dos bens simbólicos? Quem define o que vai ser produzido e como e onde divulgado? Como acreditar no valor absoluto da liberdade de escolha quando verificamos que 85,5% das importações audiovisuais da América Latina pro­vêm dos Estados Unidos?15

O apetite voraz da mídia global transforma os grupos sociais em componentes intrínsecos de

14VeJ· Dênis de Moraes. O planeta mídia, ob. cit ., p. 65.

IS Nestor GarcÍa Canclini acentua que o declínio das in­

dústrias culturais latino-americanos, nos anos 80 e 90,

se relaciona ao fato de os Estados terem ignorado suas

responsabilidades para com a infra-estrutura produtiva

no campo audiovisual, desistindo de participar das ino­

vações tecnológicas. E acrescenta: "Além de se priva­

rem dos meios em que a comunicação de massa crescia,

os governos dei;xaram em mãos privadas - muitas vezes

transnacionai - os instrumentos-chave para informar a

cidadania e oferecer canais públicos para a sua expres­

são." Ver . G. Canclini. A alobalização imaainada . São Paulo : I1uminw·as, 2003, p. 147.

um processo de permanente ativação do consu­mo - mesmo que as respostas ao consumismo possam ser diferenciadas em função dos perfis socioeconômicos e culturais. Se, de um lado, aumentam as alternativas quando se dispõe, por exemplo, de 200 canais de TV paga, de outro as políticas de programação almejam a maximiza­ção de lucros, sem se importar com a formação educacional e cultural das platéias. Na verdade, associam os vestígios de variedade às repercus­sões mercadológicas (mais assinantes, mais au­diências, mais anunciantes, mais consumidores, mais ganhos). O que significa embaralhar, no itinerário sufocante dos canais, empatias cogniti­vas e eventuais dissonâncias em relação a relatos, imagens e sonoridades que provêm do caudal midiático.

Se desejamos a livre circulação de informa­ções, é hora de revitalizar a sociedade civil e arregimentar forças para as ingentes tarefas de revalorizar a política como âmbito público de representação de anseios e de revitalizar os la­ços comunitários. Insistamos no estabelecimento de políticas públicas de comunicação, assentadas em mecanismos democraticamente instituídos de regulação, de concessão, de tributação e de fiscalização. Políticas debatidas por segmentos representativos da opinião pública e formula­das com equilibrio e realismo, considerando as transformações da era digital e seus efeitos socio­econômicos. Quatro medidas de salvaguarda das identidades culturais na América Latina sugeri­das por N éstor GarcÍa Canclini podem ser apre­ciadas pelo conjunto de países periféricos: 1) os governos precisam preservar o patrimônio histó­rico tangível e intangível, bem como incentivar a geração de conteúdos que ampliem as ofertas de entretenimento fora da bitola da mídia; 2) ações coordenadas envolvendo a sociedade civil com­patibilizariam o avanço tecnológico, a expressão multicultural e a participação democrática dos cidadãos; 3) políticas públicas devem apoiar e desonerar a produção cultural nacional, aumen­tando a competitividade nos mercados interno e externo; 4) é importante proteger legalmente

Oênis de Moraes / Mídia e poder mundial 13

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as singularidades culturais (inclusive no âmbito da futura Área de Livre Comércio das Amél-icas) através de mecanismos consistentes de regulação dos fluxos de programações e imagens. 16

Obstáculos às intervenções democratizado­ras se sucederão, porque a organização da cida­dania é lenta, sujeita a dilemas, tensões, avanços e recuos . No curso da integração transnacional, a defesa da prevalência pública sobre os interes­ses corporativos não pode limitar-se a contra­fortes dentro de cada nação; tem que almejar formas supranacionais de resistência e mobi­lização. Os poderes efetivos são globalizados, enquanto os instrumentos sociais de influência e pressão precisam unir-se para ampliar a sua repercussão. 17

Erro clamoroso seria subestimar o poder de fogo das corporações e dos arautos da governan­ça global (Fundo Monetário Internacional, G-8, Banco Mundial). Eles resistirão tenazmente a qualquer perda de mando. Tolice também mini­mizar o predomínio das megafirmas no cenário de transnacionalização e oligopolização da indús­tria de comunicação.

Não se pode ignorar a habilidade do capita­lismo de se adaptar às circunstâncias da luta de classe e de gerar continuamente uma vasta faixa de oposição a si próprio. "É uma oposição frag­mentada, bastante localizada, e infmdavelmente diversificada em termos de objetivos e méto­dos", argumenta David Harvey, defendendo que se organize essa oposição para que ela se torne "uma força global com presença global" .18

Com a retomada da discussão política, surtem efeito junções de movimentos contra-hegemôni­cos, a começar pelos protestos antiglobalização

16 Consultar Néstor GarcÍa Canclini. Latinoamericanos

buscando IUBar en este siBlo, ob. cit., p. 93-108 . 17 Ler Zygmunt Bawnan. Em busca da polftica . Rio de

Janeiro: Jorge Zahar, 2000, p. 172 . 18 David Harvey, «Reinventando a geografia", em Emir

Sader (org.). Contracorrente: o melhor da New Lift Review

em 2000. Rio de Janeiro : Record, 2001, p. 190-191.

14 História & Luta de Classes

(Seattle , Nice, Praga, Quebec, Barcelona, Mel­bourne, Gotemburgo, Washington, Davos, Ná­poles, Gênova, Bruxelas, Nova York, Monterrey, Madri, México, Sevilha, Salzburg). Os Fóruns Sociais Mundiais ressaltam os nexos e interdepen­dências entre organizações não-governamentais de mais de 130 países, representando 210 etnias e 186 línguas. O pensamento único está sendo contraditado pela idéia-força de que é possível construir modelos de democracia participativa, de desenvolvimento econômico comunitário e de controle público sobre os meios de comuni­cação.

Um dos caminhos para a mundialização das lutas sociais é a expansão de redes que entrosem visões de mundo afins e campanhas pelos direitos da cidadania. Redes aqui compreendidas como sistemas organizacionais, com estruturas flexíveis e dinâmicas de trabalho colaborativo, baseadas em afinidades eletivas, valores e objetivos comuns entre seus integrantes. As frentes de ação com­partilhada promovem o diálogo, a cooperação ~ descentralizada e uma sociabilidade política ba­seada em aspirações convergentes . Rede torna­se um conceito propositivo, na medida em que dilui a hierarquização do poder entre os partici­pantes e institui relações mais horizontalizadas e participativas. 19 A teia de conexões permite in­ter cambiar experiências, funcionando como es­tuários para a defesa de identidades culturais e da democratização da vida social. Contribui, assim, para potencializar táticas de denúncia, resistên­cia, pressão e insurgência contra o statu quo.

Falemos particularmente da Internet. Com baixo custo e rapidez, o ecossistema digital favo­rece a difusão descentralizada de informações e conhecimentos, sem submetê-los às hierarquias de juízos e aos fIltros ideológicos da mídia con­vencional. No espaço público desterritorializa­do da World Wide Web, organismos sociais po­dem ampliar a circulação de conteúdos críticos,

19 Ler llse Scherer-Warren. Cidadania semfronteiras: ações

coletivas na era da Blobalização . São Paulo: Hucitec, 1999.

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debater alternativas ao neoliberalismo e difundir reivindicações éticas.

Cabe realçar que as formas tradicionais de mobilização coletiva continuam insubstituÍveis. A Internet constitui uma vertente complemen­tar de mobilização e articulação, pois é no ter­ritório físico, socialmente reconhecido e viven­ciado, que se tece o imaginário do futuro. Apon­tar potencialidades da rede virtual em absol uto significa subordinar as lutas políticas ao avanço tecnológico, ou ainda aceitar impulsos volunta­ristas que tendem a menosprezar as mediações sociais e os mecanismos clássicos de representa ­ção política. A mega-rede prefigura-se como um ambiente adicional de divulgação e politização, somando-se a comícios, passeatas, assembléias, fóruns e greves, bem como aos meios de comu­nicação comunitários.

Não percamos de vista que, sendo produto da inteligência humana, a Internet está na linha de fogo das contradições e paradoxos do mundo em que vivemos. Como desconhecer a ofensiva das corporações para estender ao ciberespaço sua febre desmedida por mercantilização? Como sonhar com um paraíso digital diante da infoe­xclusão que restringe o acesso à Web nos países periféricos?

São fundamentais políticas e investimen­tos públicos para universalizar os acessos e in­crementar os usos sociais, culturais, educativos e políticos das tecnologias digitais. De resto, o ativismo precisa utilizar melhor as ferramentas da comunicação virtual, aprimorando a divul­gação das publicações eletrônicas, simplificando os procedimentos informáticos para a navegação em rede e estimulando o trabalho cooperativo. Cabe destacar que o uso do software livre pode ajudar a reduzir a exclusão digital, sobretudo em países periféricos que 'têm dificuldade de acesso a programas avançados, cujas patentes estão mo­nopolizadas por grandes empresas.

Reconheçamos que não será fácil o proces­so de acumulação de forças e de consolidação de re i tências às lógicas do poder. Entre os desa­fios que e interpõem, doi sobressaem: 1) como

impul iona~' o caráter propositivo dessa confede­ração reivindicante, respeitando especificidades culturais e projetos nacionais; 2) como conciliar horizontes estratégicos (curto, médio e longo prazos), metodologias de atuação (movimentos autônomos ou redes) e raios de abrangência (in­ternacional, nacional, regional ou local). Es a di­versidade pode ser transformada em vantagem estratégica, desde que, alienta Immanuel Wal­lerstein, os organismos anticapitalistas superem suas eventuais divergências internas e se perce­bam mutuamente como "uma família planetária de movimentos anti-sistêmicos que não podem ter - ou apenas em uma mínima medida - uma estrutw-a hierárquica". 20

Impõe-se aprofundar os esforços por uma agenda comum de iniciativas que articulem os apelos globaiS com as singularidades locais e re­gionais, procurando enxergar as relações de causa e efeito dentro de um quadro de análise dinâmi­co e com ajustes contínuos. Nada conseguiremos de substancial s..em examinar, com uma potente lupa, o emaranhado de continuidades, rupturas e interdependências socioculturais, econômicas, geopolíticas e ideológicas que incide sobre a cena contemporânea.

Se não nos deixarmos levar pelas ilusões ingê­nuas e examinarmos com atenção este complexo início de milênio, veremos que, a despeito das dificuldades, se delineia um quadro persistente de iniciativas cívicas, como o atestam os atos an­tiglobalização, os fóruns sociais e as manifesta­ções de massa, em vários países, contra a invasão do Iraque. Os espaços para a política tran forma­dora existem, segundo Harvey, porque o capital nunca consegue fechá-los, dadas as contradi­ções que atravessam o itinerário até a acumu­lação de poderes e a concentração de riquezas2t

20 lmmanueI Wallerstein. Un DJundo incierto. Buenos Ai­

res: Libros dei Zonal, 2002 . p. 192 . 21 David Hat'vey. liA arte de lucrar: globalização. mo­

nopólio e explonção da cultura". em Dêni de Moraes (org.). Por uma outra cODJunicação. oh. cit, p. 169-170.

Oênis de Moraes/ Mídia e poder mundial 15

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- contradições que devem ser alargadas pelas forças contra-hegemônicas e pelo pensamento socialista comprometidos com a construção de um tipo de globalização que incorpore a justiça social ao desenvolvimento sustentável.

O novo intemacionalismo em gestação não pode prescindir de formas criativas de enfren­tamento da lógica financeira globalizante e da neurose do lucro a qualquer preço. No plano ideológico-cultural, trata-se de intensificar ba­talhas pelo estabelecimento de um marco insti­tucional democrático que garanta o pluralismo cultural e a diversidade informativa, além de impedir que as tecnologias prossigam sendo be­nefícios exclusivos do capital oligopólico. Para isso, é crucial consolidar alianças e coalizões que entrelacem vivências, propostas, estratégias e mobilizações dos movimentos antineoliberais e anticapitalistas. Significa organizar e dar vida a ações concatenadas que estendam a longa luta pela emancipação a todos os quadrantes .

16 História & Luta de Classes .

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Imprensa alternativa: uma resposta dialética à lógica do pensamento único

o qüinqüênio de 1968/72 foi um período ma­ravilhoso em que toda a criatividade política, li­terária, gráfica, comunicativa e, sobretudo, foto­jornalística de uma geração finalmente explodiu na América Latina - apesar da repressão pratica­da pelas ditaduras militares - e na Europa, inclu­sive sob o peso do "controle social" dos governos conservadores ou dos social-democratas.

Um fenômeno que rompeu os parâmetros sócio-políticos estabelecidos após o fim da Se­gunda Guerra Mundial e que, com a compla­cência da social-democracia e PCs reformis­tas, haviam sido legitimados durante 25 anos com a justificativa da existência da Guerra Fria

• AduBe LoBo começou a publicar seus primeiros artigos

no jornal italiano Potere Operaio Del Lunedl. Em 1978/82

foi Chefe do Setor Internacional do jornal de Anaola, a

seguir Chefe de redação da revista bilíngüe da SADCC.

Também desempenhou a tarefa de enviado especial e

correspondente com um pseudônimo por Afiique Asie,

Le Matin. o Brasil, desde 1996, é presidente da ADIA

(Associação para o Desenvolvimento da Imprensa

Alternativa) e Diretor/Editor das três revistas (Nação

Brasil, Conjuntura Internacional, Critica Social) e do site

www.portalpopular.org.br. É também comentarista da rádio Boca Livre AM.

Achille Lollo ,t-

e, conseqüentemente, das estratégias dos blocos contrapostos (EUA x URSS).

Sem querer reconstruir o contexto político daqueles anos, quero, apenas, lembrar que ao enfrentar frontalmente a ditadura do capital du­rante cinco anos em diferentes regiões do mun­do e quase ao mesmo tempo, o movimento de rebelião juvenil e operária determinou que a rá­pida evolução de suas lutas e de suas conseqüen­tes formulações ideológicas desenhasse um novo cenário conjuntural que, objetivamente, desarti­culou os projetos de re-estruturação capitalista, bem como as formas de colaboracionismo elabo­radas pelo tardo-reformismo dos partidos e das centrais sindicais ligados e dependentes da ima­gem e do "verbo" da URSS.

Um combate que ficou visível em duas fren­tes: nas ruas, enfrentando - pacífica ou violenta­mente - polícias, guardas patronais ou fascistas, e no contraponto da comunicação social, através de uma nova imprensa escrita e falada, que co­meçou a ser conhecida por "imprensa alternati­va". Uma nova forma de luta - historicamente inspirada nos grandes projetos de imprensa re­volucionária (a Pravda de Lênin-Trotski; L' Ordine

Nuovo de Gramsci) que logo produziu jornais e revistas que se diferenciavam das publicaçõe da esquerda reformista e sindical pelos conteúdos,

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pelas formas de apresentar os argumentos e a maneira de visualizar os acontecimentos e por ser um instrumento de mobilização na luta anti­capitalista e antiimperialista.

De fato, o editor-diretor de um jornal ou re­vista alternativa tinha e fazia questão de manter sua autonomia política, intervindo na conjuntura como um sujeito político revolucionário e não como um porta-voz daquele Secretário de Bu­reau Político. Conseqüentemente, a informação era política e a política do jornal era socializada ,­através da informação. Assim, a simples prática jornalística de denunciar as contradições do sis­tema capitalista e invocar reformas sociais eram questionadas com maior discernimento e com base nos interesses da luta de classe. Cada denún­cia se tornava um claro instrumento de educação e de formação política, cujo objetivo era fazer com que os leitores se sensibilizassem e enten­dessem a necessidade de construir a ruptura em cada pequena ação e situação de vida social.

Tudo isto significava criar, em continuação, ferramentas para conscientizar as massas, apos­tando na necessidade e na possibilidade de des­truição do modelo capitalista para construir uma sociedade socialista. Praticamente naqueles anos, a imprensa alternativa, mesmo sendo po­bre financeira e tecnologicamente - mas rica de conteúdo revolucionário e de um significativo potencial militante - fez estremecer os estrate­gistas da ordem capitalista que não hesitaram em apontar o dedo contra os editores e os principais jornalistas desta imprensa, acusando-os de serem "potenciais aliados da subversão comunista e do terrorismo" .

A voz DE DENÚ CIA E REVOLTA AUMENTOU

A EVOLUÇÃO DAS PUBUCAÇÕES "ALTERNATIVAS"

o movimento Hippie, em Los Angeles, e o dos Provos, em Amsterdam, foram os primeiros a lançar a chamada "under8round-press" (imprensa subterrânea) que, rapidamente, saiu do gueto para circular na sociedade. E este fenômeno se deu no momento em que no seio do Império,

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isto é nos Estados Unidos , havia quatro frentes de lutas de massas: as marchas pacíficas pelos di­reitos civis lideradas por Martin Luther King; a luta revolucionária dos Black Power nos guetos negros sob o comando de Ângela Davis, Carmin­chel e Malcom X; as revoltas nas universidades de Berkeley e Yale contra a guerra no Vietnã e a contestação contra o conservadorismo sócio­cultural inspirada nas canções de Bob Dylan, Jimmy Hendrix, The Doors e Joan Baez.

Na Europa, as principais capitais eram palco de contínuas manifestações (e choques violentos com a polícia e grupos fascistas), cuja agenda iniciava em setembro com a reabertura das escolas de se­gundo grau para se estender até março, altura em que nas fábricas iniciavam as primeiras greves para o dissídio coletivo. Esta agenda era elaborada com muito voluntarismo e iniciava, quase sempre, com as manifestações contra a ditadura em Portugal, contra os regimes fascistas na Espanha, Grécia e Turquia, contra a repressão na Irlanda e no país Basco. A seguir, as praças eram ocupadas com am­plos atos de solidariedade com a luta de liberta­ção da Palestina, do ANC sul-africano, do MPLA angolano, da FRELIMO moçambicana, do PAIGC guineense; voltando a tentar derrubar os portões da embaixada dos EUA, do Irão (do Xá Reza Pha­levi) , de Israel e de quase todos os regimes gol­pistas latino-americanos: Brasil, Chile, Colômbia, Argentina, Bolívia, Guatemala e México.

A seguir, começava o grande calendário das ma­nifestações ligadas às lutas operárias contra a rees­truturação e o desemprego, seguidas pelas ocupa­ções dos sem-teto, a auto-redução do aluguel e das contas de luz e telefone e, finalmente, em março, explodiam as ocupações das universidades, das es­colas secundaristas ou dos institutos técnicos, exi­gindo a libertação dos presos políticos.

Enfim, havia sim material informativo riquís­simo com o qual eram redigidas maravilhosas re­portagens! ! !

Eram os anos em que os filhos da pequena e média burguesia rompiam o vidro da cultu­ra conservadora para abraçar as temáticas do socialismo revolucionário, enquanto os jovens

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proletários empregados no novo ciclo industrial automotivo descobriam na imprensa alternativa a "outra verdade" sobre a introdução nas fábricas das "ilhas de automatização", as plataformas tra­balhistas dos pelegos reformistas, o pensamento de Che Guevara e Camilo Torres.

Estes foram os anos em que uma geração de jovens formou rapidamente seus ideais políticos aprendendo que a Ofensiva do Têt, em Saigon; a Primaver:-. de Praga; a manifestação dos 100.000 no Rio de Janeiro ou os duros choques com a polícia em Roma para defender a Ocupação Per­manente na Faculdade de Arquitetura de Valle Giulia não eram fatos isolados de poucos esquer­distas, como tentavam argumentar os teóricos da esquerda reformista.

Esta geração descobriu que aquela conjuntura tinha um elevado nível de conflituosidade, porque suas lutas pela autonomia política eram parte in­tegrante de um processo que, pela primeira vez, apresentava globalmente características anticapi­talistas, antiimperialistas e potencialmente revo­lucionárias. Pela primeira vez, parecia que os po. -tulados revolucionários de Marx produziam lutas sociais pela independência e contra a dependência imperial nas diferentes regiões do mundo.

E não foi por acaso que os reformistas dos PCs e da social-democracia se recusavam a se re­lacionar com o novo contexto social dizendo que era" obra de provocadores da burguesia" .

Imaginem que em 1968, o consagrado inte­lectual comunista Píer Paolo Pasolini publicava no diário do PCI, "L 'Unitá", um pequeno poema onde idolatrava o policial da tropa de choque por ser um "fllho do proletariado pobre e semi­analfabeto do sul a serviço do estado democrá­tico atacado pelos fllhos da burguesia nos jardins da Universidade de Roma" .

É claro que um ano depois , quando vários estudantes e jovens proletários morreram ba­leados pela polícia e começaram a explodir as bomba fasci ta da estratégia da ten ão, Píer Paolo Pa olini e de flliou do PCI para denun­ciar com eu artigo, poema e filmes a dupla alma perversa daquele "E tado Democrático".

Infelizmente, em 1975, a voz de Pasolini e seus "teoremas de profunda e incômoda acusação" se calaram. Ele foi misteriosamente assassinado no litoral de Roma com uma encenação que fez lembrar o assassinato do deputado Matteotti por ordem de Mussolini.

Não foi por acaso que, em 1972, os estrategis­tas da OTAN "aconselhavam" que, para garantir a evolução do processo de reestruturação capitalis­ta na Europa, era necessário impedir que a afir­mação política das lutas operárias e proletárias no território urbano chegasse a organizar um movi­mento de ruptura política de massa. O segundo passo foi" deletar" a história daquele qüinqüênio de lutas e de rebelião mundial, e em particular 1968 e 1969, para substituir estes períodos por apenas dois ícones históricos. Um apresentando a revolta de Praga contra a ocupação soviética em chave universalmente anticomunista; outro limitado à intervenção policial no bairro Qyar­tier Latin de Paris, em Maio de 1968, induzindo a pensar que a primeira foi uma verdadeira revolta popular anticomunista, enquanto a segunda teria sido uma "contestação meramente estudantil e de tipo anarquizador", dos filhos da burguesia de Pa­ris que durou apenas dois meses, ficando isolada das massas, dos sindicatos e do bom povo traba­lhador "amante da ordem" .

Diante deste seleto processo de manipulação, a imprensa alternativa daqueles anos travou uma grande batalha ao tentar analisar a Primavera de Praga, não isoladamente, mas sim dentro do conjunto de lutas e greves operárias realizadas na Polônia, na RDA, Romênia e na URSS, em favor da reconquista de sua autonomia política. Mo­tivo pelo qual os pequenos jornais alternativos eram acusados pela imprensa dos PCs de serem dirigidos por "agentes da CIA" ou "trotskistas traidores". Na realidade, a imprensa alternativa procurava relatar a evolução das greves massivas que os comitês operários haviam proclamado para reconquistar sua autonomia e refundar seus sindicatos, visto que, em sua totalidade, tinham sido transformados em correntes de comando dos governo da nomenclatura soviética.

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N a França, o semanários RouBe e La Gauche

foram categóricos ao revelar que a mobilização havia acabado, não tanto pela dura repressão poli­cial, mas, sobretudo, pela destemida traição do p -leguismo reformista (PS, PCF e CGT), que tudo fez para aprofundar a divisão política e ideológica entre os operários que ocupavam as fábricas da Renault, da Saint Gobain e da Liz e os estudantes que "praticavam a autogestão" na Sorbonne.

As referidas publicações foram as únicas que denunciaram o acordo "subterrâneo" que as lide­ranças do reformismo (entre eles o consagrado líder comunista Marchais) fizeram com o general De Gaulle, em troca de algumas efêmeras con­cessões salariais para algumas categorias, em vez de proclamar a greve geral e ir apoiar os comi­tês populares autogestionários que começavam a surgir em vários bairros de Paris e Lyon, visando "le combat pour chanBer la sociétê' (o combate para mudar a sociedade).

Foi neste clima de lutas sociais, de solidarie­dade internacionalista e de esperança na capaci­dade de ampliar em todo o planeta a luta contra o capitalismo e o imperialismo, que nasceu uma nova categoria de jornalistas, repórteres, fotó­grafos, desenhistas, chargistas e editores. Uma categoria que, antes de se considerar "profissio­nais", acreditavam serem militantes da revolução na informação e que, em função disso, usavam seus conhecimentos tecnológicos e comunicati­vos como arma de combate contra a lógica do pensamento único. Uma lógica que, no fim da década de setenta, começava a querer "deletar" tudo que era considerado contra a ordem e, por­tanto, "subversivo" .

Foi neste específico momento histórico que nasceu um jornalismo de outro tipo. Alternati­vo, mas fundamentalmente libertário e diferente dos consagrados jornais sindicais ou dos partido de esquerda. Era um jornalismo cujos redatore queriam er os militantes de um processo de co­municação social que pretendia revolucionar o mundo da informação e a própria sociedade. Não se tratava de jornali tas que inventavam a revo­lução. Eram sim, profissionais de uma imprensa

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pobre que, com base em sua consciência política, interpretavam o elemento da conjuntura uti­lizando seus conhecimentos e sua capacidades tecnológicas para desempenhar a famosa função educativa evocada por Gramsci dentro de um contexto utópico de revolução permanente sem ser, de fato, trotskistas.

JORNAIS E REVISTAS COMO

PRODUTO DE CONSUMO

A atividade editorial das publicações alternativas não conseguiu romper a hegemonia da grande mí­dia. Porém, no referido qüinqüênio, começaram a surgir, em específicas regiões da Europa, dos Estados Unidos e da América Latina, as chamadas "ilhas de conhecimento alternativo", onde as fai­xas de leitores se caracterizavam pela qualidade e a capacidade de a similar as novas propostas polí­ticas, de forma que o jornal ou revista alternativa não eram mais produtos descartáveis que iriam para o lixo após a primeira leitura. O jornal ou revista alternativa fica nas prateleiras das bibliote­cas dos leitores como um produto de estudo, que representa um fenômeno cultural e político.

Um contexto que ficou evidente nas metró­poles italianas, francesas, holandesas e alemãs, onde os jornais da chamada esquerda extra­parlamentar floresciam na saída das fábricas, bem como nos principais bairros proletários e de imi­grantes e na totalidade das universidades e escolas de segundo grau. O exemplo mais paradigmático deste processo se deu em 1969, na social-demo­crata Suécia de Olf Palme, quando até no extre­mo norte polar de Kiruna, o mineiros ligados ao sindicato anarco-comuni ta SAC, lançaram seu próprio periódico para veicular suas luta .

Os iniciais sucessos editoriais registrados em 1969 e 1972 foram temporário e ficou evidente que ampliar e sustentar os projetos editoriais era uma tarefa difícil, de forma que, a partir de 1975, alguns jornais e revistas começaram a reduzir a ti­ragem até fecharem sua redaçõ s. Houve também O ca O de aprisionamento de redatore e edi­tores por serem con iderados "demasiadamente

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interessados em veicular teses e comunicados dos grupos da luta armada", como foi o caso da revista italiana Contralriformazione, cujo diretor­editor, Antonio Bellavita, ficou 15 anos exilado em Paris. Igual destino tiveram as revistas publi­cadas em língua basca na província espanhola de Euskadi, ou na província britânica de Ulster (Ir­landa do Norte) ou ainda na Alemanha.

Entretanto, é oportuno lembrar que a partir de 1975, em quase toda a Europa Ocidental, o clima de restauração do ideário conservador era associado à tentativa de inserção política e cultural da social-democracia para gerenciar a reestrutu­ração do modelo capitalista, de forma que a "con­

certacion" dos reformistas com o capital virou pa­lavra de ordem e todos aqueles que faziam oposi­ção eram considerados " extremistas" . Na prática, a conseqüência imediata disso tudo foi o "refluxo político" das lutas e dos movimentos. Um refluxo que deve também ser associado ao medo da re­pressão, seja ela praticada por vulgares torturado­res ou por sofisticados juízes" democráticos" ! ! !

A TRA SFORMAÇÃO TECNOLÓGICA,

MERCADOLÓGICA E CONCEITUAL

DA GRANDE MíDIA

A revolução tecnológica da grande mídia foi to­tal. Ela trocou por completo o ciclo de produção por um outro, mais avançado e, logicamente, terceirizável em todos os seus escalões. De fato, o processo de reestruturação do setor gráfico, mesmo com a introdução dos primeiros compu­tadores Compygraphic Universal II e dos pesados scanners para a transferência das páginas diagra­madas em negativo, permitiu que os grandes jor­nais reduzissem tempo e custos do ciclo de pro­dução, além de se livrarem da antiga categoria de operários linotipistas, muito sindicalizados e, na maioria, de fé comunista e socialista.

Por outro lado, a nova "flexibilidade" entre a redação - tran formada em empresa jornalística - e a tipografia - que virou uma empresa gráfica multifacética do grupo editorial - permitiu um maior fluxo de investimento para aprimorar o

parque tecnológico e ampliar a veiculação no in­terior e no exterior.

Este cenário promoveu um novo tipo de con­centração dos meios de comunicação nas mãos de grupos industriais ativos nas bolsas de valores e ligados aos centros de decisão do capitalismo. As principais vítimas deste processo de concentra­ção foram os velhos jornais liberais ou indepen­dentes, cujas pequenas gráficas eram vendidas, inviabilizando a impressão dos jornais ou revistas alternativos nas rotativas dos grandes grupos.

A brutal concentração de meios tecnológicos foi determinante para começar na grande mídia a reestruturação intelectual das redações , empur­rando a maioria dos jornalistas e jovens redatores para o pensamento único; o fim da história; o en­terro da ideologia socialista e a nova" dominação democrática do Império" .

É evidente que neste cenário a imprensa alternativa ficou virtualmente asfixiada, tanto que fecharam tanto a brilhante revista norte­americana Seven Days, quanto o jornal italiano Loua Continua, assim como todos os jornais e revistas alternativos que surgiram em Portugal com a Revolução dos Cravos em 74, na Espanha após a morte do ditador Franco e na Grécia com a queda do regime militar. Lembro que a redação de Pagina Um - uma das mais internacionais, com brasileiros, uruguaios, italianos, árabes, france­ses, argentinos, espanhóis e portugueses -, em 1976, já apontava o setor de distribuição como o bug da imprensa alternativa.

Um fato que não era novo, mas que começou a favorecer unicamente a grande mídia, visto que os grupos editoriais também se tornavam donos das empresas de distribuição e de publiCidade, que, desde então, passaram a desprezar com mais firmeza os pequenos jornais, em particular os al­ter nativos.

Para o mercado financeiro, a transforma­ção visual de jornais, revistas e televisões foi de fundamental importância, pois ao depender ab­solutamente das verbas da publiCidade, a mídia com mais facilidade passava a desempenhar uma função determinante na implantação do modelo

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neoliberal, passando a ser o centro dinâmico da visualização do processo de reestruturação do modelo capitalista e, conseqüentemente, a pro­mover uma permanente campanha contra o ideá­rio socialista.

Por último, a grande mídia contribuiu para a afirmação do novo conceito de vida social que privilegiava o individualismo e o consumo de bens como necessidades para o funcionamento da sociedade moderna interclassista, onde as varia­ções do consumo pessoal representam, também , as possibilidades de ascensão do indivíduo, e da formação de novos setores sociais inseridos na ló­gica da sociedade de mercado. De forma que o consumo - retratado apenas com base nas múlti­plas facetas da publiCidade - passou a ser identifi­cado como "sinônimo da felicidade social". Aliás, para os teóricos do marketing, seria a escala de consumos que definiria a colocação do indivíduo na escala social. Por isso, os teóricos do neolibe­ralismo começaram a associar as novas arquitetu­ras da publiCidade visual com a idéia de liberdade e de democracia, enquanto a capacidade de ser feliz passava pela vontade de consumar.

Foi nesta lógica que as empresas e sobretudo os grupos multinacionais começaram a destinar mi­lhõe de dólares para a publicidade de seus produtos, enquanto os bancos faziam fabulosos investimentos em favor dos centros de pesquisa destinados a lan­çar novas tecnologias capazes de desenvolver ainda mais o potencial audiovisual e de comunicação.

De fato, é neste período que personagens como Berlusconi, Murdock, Turner e tantos ou­tros, sem evidentemente esquecer o nosso Rober­to Marinho, começaram a aparecer nas manchetes de todo o mundo como os "novos escaladores da mídia mundial", por terem transformado suas em­presas jornalísticas em super-funcionais centro de produção de comunicação midiática, inteira­mente d votados na defesa dos princípios e da ló­gica da sociedade de consumo capitalista e adeptos das idéia do neoliberalismo. Empresas rnidiática especializadas em transformar idéia , imagens e textos em produto de consumo, que, desta for­ma, passaram a impor ao "povo-consumidor" os

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novos valores da sociedade das multinacionais; o programa do neoliberalismo dentro da chamada "transformação pós-modernista".

Este foi, praticamente, o prelúdio do pensa­mento único que apareceu em 1989, encontran­do toda a grande imprensa já devidamente prepa­rada para o ataque ao estado do Bem Estar Social para veicular a necessidade da implementação das reformas neoliberais, da "democratização" e dos direitos humanos associados à flexibilização e às privatizações.

É evidente que tudo isso deu um poder imen­so a quem controla os centros de produção mi­diática. De fato, não foi por acaso que Berlusconi se tornou primeiro-ministro da Itália; ou que a TV Globo elegeu o presidente Collor e que nas eleições norte-americanas Turner é o principal interlocutor dos candidatos.

Para melhor entender como tudo isto acon­teceu é bom lembrar que este processo foi im­plementado no momento em que a Guerra Fria alcançava sua maior ênfase, com a guerra nas estrelas de Ronald Reagan, enquanto a britânica Margareth Thatcher, após a operação relâmpago nas Malvinas, iniciava o desmonte do estado de Bem-Estar Social herdado dos trabalhistas com a realização das primeiras reformas neoliberais. Cabe dizer que a generalizada desmoralização da classe operária foi causada, também, pelo posi­cionamento do reformismo sindical europeu e de seus homólogos estadunidenses da AFL-CIO, segundo os quais a derrota dos trabalhadores era considerada um fator absolutamente normal para a definição da nova conjuntura econômica mar­cada pel? processo de reestruturação capitalista.

Neste contexto, a mensagem consumista veiculada pela publiCidade era constituída pelos novos produtos de Hollywood que enalteciam o individualismo e o anticomunismo e pela mani­pulação visual dos atletas de futebol, basquete e fórmula 1, que começavam a ser apre entados como autênticos "super-homens-consumidores". Também não podemos esquecer que é nesta ló­gica que os tele pectadore do mundo inteiro são bombardeados com as novas novelas produzidas

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em Las Vega , no Brasil e no México, que real­çam, apena , a infalibilidade dos valores morais e ociai da ociedade capitalista, ajudando a criar

um autêntico deserto intelectual. Os únicos órgãos da antiga comunicação al­

ternativa e militante que sobreviveram até hoje ão o jornal francê Liberation, que Serge Julie e

outros militantes de Gauche Prolétarienne cria­ram em 1974, também com o apoio financeiro de Jean Paul Sartre, e o italiano Il Manifesto, cria­do em 1969 pelo quatro deputados expulsos do PCI por terem criticado a direção política daque­le partido. Também na Itália, permanecem vivos dois grandes projetos radiofônicos: Ramo Popola­

re e Ramo Onda Rossa.

No Brasil, os jornais da imprensa alternativa fecharam no fim da década de oitenta. Primeiro foi o Movimento, depois o Opinião e por último o Pasquim. Assim, quando em 1989 a Grande Mídia anuncia o desmoronamento da URSS e o fIm da história, de Fukiyama, imediatamente jornais e te­levisõe identifIcaram este acontecimento como o fim do socialismo e da luta de cla')ses, martelando os leitores de que, a partir de então não haveria como duvidar da "efIcácia do capitalismo".

BARRiCADA E JORNAL DE ANGOLA

A vitória da Frente Sandinista na Nicarágua e a consolidação da resistência do MPLA em An­gola diante da segunda invasão sul-africana em 1982 são os elementos conflitantes, mas vito­rio os, de um período em que o jornal nicara­güense Barricada e o angolano jornal de Angola

(carinhosamente conhecido como o jota-A) de-empenharam um papel muito importante na

denúncia internacional da estratégia do impe­riali mo, no momento em que também jornais progre i ta como Le Monde, The Guardian, La

Repubblica, El Pais e Afionbladet justificavam a re ­taliação do contra na Nicarágua e o apoio ul ­africano à UNITA, em razão da presença cubano­'ovi ' tica em Angola e na Nicarágua.

Trabalhando como Chefe do etor Internacio­nal do Jornal de Angola, vivenciei intensamente,

durante cinco anos, aquele período, contribuin­do para que o j ota -A se tornasse a principal fonte de informação durante a invasão sul-africana , ao querer ir pela frente de Kahama comu enviado e pecial, além de fazer a cobertura todas as vezes que havia operações militares de alto nível no Sul e no centro do país. Graças à confiança política com vários responsáveis do exército angolano (FAPLA), foi possível fazer reportagens nas zo­nas de combates mais adiantadas - muitas vezes de forma irresponsável e arriscada, ao ponto de ser quase capturado pelos sul-africanos ou morto pela UNITA que achavam que eu fosse cubano.

Este material informativo, de fato, rompeu o círculo fechado das informações que Voz de

América, A FP-Africa, Reuters e South African Voi ce

haviam construído. Mas também rompeu com a retórica dos assessores soviéticos que não que­riam que o mundo soubesse que aquela guerra era heroicamente combatida pelos soldados an­golanos e cubanos , enquanto os generais e diplo­máticos soviéticos estavam preocupados apenas na composição dos quadros de sua geo-estratégia mundial. Assim foi possível denunciar o uso de bombas ao fósforo de origem britânica e norte­americana sobre Njiva e Calueque, os bombar­deios sobre aldeias angolanas sem importância estratégica e sem alguma presença militar. Foi possível revelar como eram massacrados os sol­dados das FAPLA e os civis que não aceitavam se entregar à UNITA, e enquanto "brincávamos ao gato e ao rato" com as patrulhas sul-africa­nas no território ocupado, foi possível relatar o seqüestro do Bispo (negro) Alexandre Nasci­mento em Xangongo por parte dos homens de Savimbi que julgavam o bi po progressista ser o elo de contato entre o governo de Luanda e as diferente etnias da província de Cunene.

O jornal Barricada - onde trabalhavam jor­nalistas militantes como o venezuelano Freddy Bal an (hoje embaixador bolivariano em Buenos Aires) e tantos outros militante internaciona­listas que haviam combatido no famoso Bata­lhão América - também foi quem dinamizou a campanha que desmascarou a investidas dos

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Contras nas regiões fronteiriças da Nicarágua e a colaboração nestes ataques do exército de Hon­duras. Vários jornalistas morreram enquanto fa ­ziam reportagens "brincando ao gato e rato" com os Contras nas florestas da Cordilheira Isabelia . Como o Jota-A, esse jornal sempre manteve um grau de autonomia que era impensável num jornal que, ao mesmo tempo, era diário de um Estado socialista, órgão de um partido marxista­leninista e jornal de massa.

Talvez estas características - que, por exem­plo, em Moçambique o jornal Domingo nunca conseguiu alcançar - se devam ao fato que a luta interna no MPLA-Partido entre as tendências filo-soviética e revolucionária de esquerda seguia a evolução da guerra não declarada da África do Sul e do Imperialismo norte-americano. De for­ma que, após a acusação de trotskismo contra o editor Moutinho Pereira e de filo-iugoslavo con­tra o diretor Co ta Andrade "Ndunduma", o Jor­

nal de Angola passou a ser dirigido pelos seis che­fes de setor (Nacional, Reportagem, Desporte, Internacional, Cultura e Produção), sem que isto afetasse a estrutura do jornal que, a partir daquele momento, encarou o papel de ser um produto da revolução, visto que todo o jornal era uma coo­perativa de trabalhadores que haviam assumido a empresa logo depois que os donos haviam fugido, pouco antes da proclamação da independência.

Este fato fez com que o partido nomeas­se um diretor administrativo (Arnaldo Santos) que, pelo fato de ser "poeta", admitia não ter a necessária sensibilidade pela burocracia e por eventuais medidas de controle. O diretor que o Comitê Central do partido enviou, após a im­

possibilidade de João Melo coordenar a agência de informação nacional "(ANGOP) e o jornal , era um pequeno intelectual burocrata do parti­do, branco, sem um passado revolucionário rele­vante e sem algum conhecimento sobre funcio­namento orgânico, técnico e informativo de um jornal como o Jota-A, que tinha uma edição diária de 100.000 exemplares e, no domingo, saía com uma tiragem de 250.000 cópias, dependendo do estoque de papel.

24 História & Luta de Classes

Era um jornal onde eu era praticamente o mais velho dos chefes de redação, pois o Editor Chefe da redação, Paulo Pinha, tinha apena 24 anos e o meu adjunto, Filomeno Manacás (hoje superintendente do Jota-A) tinha 2 O anos e era es­tudante na faculdade de química, mas doente por jornalismo. Por isso, após a "cassação" do Diretor, Costa Andrade (um dos principais intelectuais e jornalistas revolucionários angolanos), coube aos chefes de setor fazer o que hoje os jovens vão aprendendo nas faculdades de jornalismo. So­mente não aprendiam apenas as técnicas de jor­nalismo, eram também iniciados à política, a fun· de desempenharem o papel de segmento ativo da revolução e não de burocratas-jornalistas com privilégios e bons salários. Aliás, foi por este mo­tivo que durante algum tempo, nos primeiro anos da década de oitenta, em Luanda, se dizia que os filhos da burguesia negra dos Catetes (grupo in­terno do MPLA que de dia vestia a camisa do filo­sovietismo e à noite escutava os comunicados da Voz deAmérica) ingressavam na agência ANGOP e na TPA (Televisão), enquanto os revolucionários confluíam no Jota-A ou na RNA (Rádio nacional).

A verdade é que, em 1979, os filo-soviéticos do partido não puderam liqUidar o Jota -A e rees­truturá-Io, como desejavam. Em primeiro lugar, porque não tinham o material humano capacita­do para isso. Em segundo lugar, por não conse­guirem manifestar sua ascendência de nova elite burguesa e, ao mesmo tempo, recitar o papel de socialistas. E, finalmente, porque a maneira como fazíamos o jornal havia se tornado muito popular em função da pontual cobertura sobre a política internacional, do debate sobre as grandes ques­tões da Revolução, inclusive o papel da mulher e do jovem. Além disso, o Jota-A se tornou popular pela maneira como relatou a agressão sul-africana, inclusive graças às minhas reportagens realizada nos principais avampostos (postos avançados) das FAPLA (exército popular angolano), na frente (no fronte) da guerra, todas as vezes que os sul­africanos invadiam o sul do país.

Um jornal que era bastante horizontal, onde as temáticas e as metas de trabalho eram elaboradas

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por um conjunto de jornalistas muito jovens, mas também muito unidos , politizados e solidá­rios com os trabalhadores dos setores técnicos, sobretudo os da fotocomposição e da rotativa.

Por isso, achávamos que os filo-soviéticos do partido não teriam coragem de efetuar outras "cassações", porque isto significaria fechar o jor­nal e publicamente assumir uma posição de rup­tura com a esquerda, representada pela totalidade do exército, além de merecer a condenação dos próprios responsáveis cubanos que conheciam perfeitamente as contradições do MPLA-Partido. Então, como dizia o querido Paulo Pinha, "eles nos devem engolir, o problema é saber até quan­do esta revolução vai manter seus conteúdos de luta de classes ou os vai trocar para garantir os interes es das novas elites étnicas":

Admitir que um dia deveríamos recuar já era um sintoma de derrota que não saboreei porque fui chamado a montar a revista bilíngüe SADCC EnerBJ Bulletin IRevista Energia-SADCC, que repre­sentava os nove países independentes da África Austral, que haviam decidido criar uma comu­nidade econômica regional para melhor enfren­tar o poder econômico e militar do Apartheid sul-africano. Um projeto difícil que o angolano Carvalho Simões e o Ministro de Energia e Pe­tróleo decidiram entregar-me em função do tra­balho desempenhado no Jota-A e, sobretudo, na criação e estruturação da Revista Militar Angolana do Ministério da Defesa, sem recorrer à ajuda do assessores soviéticos e aos cubanos. Também esta foi encarada com outra tarefa da revolução onde tudo devia ser organizado e até inventado para er politicamente alternativo e não cair na retórica do democraticismo ocidental. Foi este um momento histórico decisivo para minha for ­mação de editor e jornalista militante . De fato, ter tido a possibilidade de dialogar os proble­ma do mundo, da Revolução e do Socialismo durante várias horas com lideranças como Ju ­lius Nyerere e Samora Machel foi determinante para reconhecer, em 1986, que, em Angola e na África Au tral, "aquela revolução ... linda" tinha' acabado.

ADIA: R EVISTA N AÇÃO B RASIL,

CONJUNTURA INTERNACIONAL,

CRITICA S OCIAL E PORTAL POPUUR

Quando, em 1996, criamos a Associação para o Desenvolvimento da Imprensa Alternativa (ADIA), sabíamos que não queríamos criar um mostrengo onguista , mas sim dar vida a uma en­tidade que promoveria projetos editoriais, as­sessoraria projetos das entidades do movimento popular, além de procurar transformar o antigo semanário Nação Brasil, que a base petroleira ha­via fundado para fazer o contraponto com a mí­dia durante a reforma constitucional de 1995.

Tratava-se de um jornal interessante, que havia amadurecido bastante durante aquela importante campanha de mobilização. Porém, com a derro­ta, os membros da direção da FUP (Federação Unitária da Petroleiros) e do Sindipetro, ligado ao grupo majoritário do PT ICUT, não souberam dar-lhe uma perspectiva política. Assim, até os úl­timos dias de vida, o jornal permaneceu dividido em duas "almas políticas": a nacionalista-desen­volvimentista e a revolucionária de esquerda.

Mesmo assim, em vez de fechar o jornal e chorar o glorioso passado de luta, a última di­retoria chamou um grupo de militantes petistas que estudavam na UFRJ e propuseram-lhes re­fazer o jornal, mantendo a antiga manchete. Foi neste contexto que o coletivo me convidou para reestruturar o jornal e, assim, tentar uma nova edição como jornal de esquerda.

Hoje, sabendo o que passamos e o que tivemos de enfrentar para sustentar o projeto do jornal, não aceitaria outro desafio parecido, visto que não se tratava de refazer apenas o jornal do ponto de vista técnico. O problema principal foi querer viabilizar um projeto de um pequeno grupo de independentes do PT que pretendiam veicu­lar no movimento um produto editorial - com uma linguagem e propostas políticas claramen­te de esquerda - num momento em que todos os projetos editoriais seguiam a orientação das tendências petistas, cujo objetivo principal era alimentar apenas a luta interna .

Achil\e Lol\o / Imprensa alternativa... 25

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Praticamente sabíamos que estávamos re­mando contra a corrente, mas esta teimosia era a verdadeira "parte nobre" da recém-criada ADIA, isto é uma entidade (sem fins lucrativos) para fazer militância política através da informação, mantendo assim uma ligação orgânica com todos os setores do movimento popular e não apenas com uma tendência petista ou um setor dela.

Infelizmente o jornal Nação Brasil, mensal com 36 páginas, escrito em três cadernos (Con­juntura, Sociedade e Cultura), logo chocou-se com a máquina do Sr. José Dirceu. De fato, com a arrogância de quem considera o partido e o movimento meros instrumentos do seu poder, recebemos a "ordem" de suspender a impressão da edição de janeiro de 1997 (que já estava na rotativa) para refazer a primeira página com um novo artigo de abertura assinado pelo Sr. Dirceu. É claro que, ao aceitar esta imposição, seriam ga­rantidas as 1.980 assinaturas dos diretórios re­gionais e municipais do PT, que o Dirceu tinha prometido para sustentar o projeto do jornal. E era ainda mais claro que, desta forma, o Jornal se alinharia ao grupo do Sr. Dirceu.

Do contrário, era também evidente que chu­tar o balde contra o Sr. Dirceu significava assu­mir uma posição política de ruptura com o grupo majoritário do PT e isto, traduzido na realidade, significava que, para o jornal, morriam todas as esperanças para um próspero e estável futuro. Mesmo sabendo o risco que o projeto corria, todos os membros da ADIA rejeitaram a chanta­gem do Sr. Dirceu e decidiram que o jornal de­via continuar independente e longe da máquina do grupo majoritário petista . Esta posição foi de fato surpreendente ao ponto que fiquei comovi­do, como os tempos do antigo jota-A.

Na prática, isto significou dever enfrentar as mais pérfidas malvadezas de alguns responsáveis petistas do Rio de Janeiro, em particular Benedita da Silva e Marcelo Sereno, que, quando o jornal passou a apoiar Vladimir Palmeira na convenção do PT para definir quem seria o candidato a Go­vernador do Rio de Janeiro, em 1998, pratica­ram uma perseguição aberta que cluase provocou

26 História & Luta de Classes

o fechamento do Jornal. Eles e seus assessores chegaram a pedir aos sindicatos cutistas e a enti­dades do movimento que rompessem todo tipo de acordos de venda e consignação, solicitando até que fosse suspensa a renovação das assinatu­ras. Uma perseguição que descobrimos graças à inadvertência do presidente do Sindicato das Minas que, sem se dar conta, manteve ligado o telefone no momento em que o Sr. Marcelo Se­reno lhe dizia: "( ... ) o Sindiminas deve suspender todas as assinaturas com o jornal Nação Brasil e anular o acordo para o número especial sobre as

. . - I E f - c h I" pnvatizaçoes. stes ......... s vao lec ar . É inútil dizer que não conseguiram fechar a

ADIA, mas é necessário sublinhar quanto foi di­fícil sustentar o projeto durante todos estes anos. Em 25 de maio de 2006, a ADIA vai marcar seu décimo ano de ininterrupta atividade editorial que, hoje, conta com um site (www.portalpopu­lar.org.br), com uma média de 28.000 entradas mensais, isto é 335.000 visitas durante o ano e com três revistas trimestrais que abordam ques­tões específicas:

1) Revista Nação Brasil, que, nas suas 78 pá­ginas, aborda a conjuntura política nacional, dando muita ênfase à questão do meio am­biente, a história social, as relações de traba­lho e, evidentemente, à política. 2) Conjuntura Internacional, que, com uma edição de 88 páginas, procura analisar as principais questões da política internacional. 3) Crítica Social, revista teórica por excelên­cia, que, em suas 12 O páginas une a análise po­lítica pura aos questionamentos de natureza ideológica da nossa atualidade. Além disso, tentamos, e conseguimo, lançar

a Coleção Movimento Popular, onde a ADIA publica livros, CDs e OVOs de autores cujas temática estão ligadas ao Movimento Popular. Nesta ótica, nos últimos três anos foram lançados:

1) Do siê Meio Ambiente 1 (em CO) 2) História de um Povo e suas Lutas (em CO) 3) Do siê Meio Ambiente 2 (em CO) 4) O Novo Sindicalismo, livro de Guilherme Marques" Soninho"

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5) Colômbia: A Guerrilha desmascara o

Narcotráfico (em DVO) 6) Biblioteca Digital do Portal Popular com

mais de 4500 artigos (em CO) No momento em que uma grande parte da

esquerda reformista e social-democrata optou por gerenciar o projeto neoliberal e consideran­do que muitas lideranças históricas do movimen­to operário - como, por exemplo, Lula - fazem de tudo para que a sociedade, e sobretudo seus antigos companheiros, acreditem que é possível "construir um novo mundo sem mudar o sistema capitalista", dando a entender que a problemáti­ca da exploração, da exclusão e da dependência ficariam resolvidas se houvesse uma socialização dos elementos de crise, permitindo, assim, que o capitalismo se tornasse "mais humano", não há mais espaço para a imprensa alternativa: ou ela se alinha aos programas compensatórios das Ongs e sobrevive fartamente enaltecendo os progres­sos do social-neliberalismo ou ela vai contribuir para a reconstrução de uma nova esquerda, cujo objetivo é a ruptura e a construção de um novo tipo de relações políticas que definam o que é e o que significa hoje e nos próximos vinte anos, lutar pelo socialismo.

AchiJle LoJlo I Imprensa alternativa.. . 27

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"Desse pão, eu não como": trajetória revolucionária no Brasil, França e Alhures,

de Benjamin Péret, militante-e-poeta permanente

Roberto Ponge'!-"Não se pode separar; em Péret, o poeta do militante revolucionário,

o amante do poeta, o revoltado do militante. Mas não se pode

esquecer que ele nunca confundiu os distintos níveis da realidade

que correspondem a essas múltiplas vocações. Péret nunca foi

redundante consigo mesmo. "

ESTRÉIA A VIDA

Benjamin Péret nasce em 1899, numa pequena localidade dos arredores da cidade portuária e operária de Nantes (oeste da França), filho úni­co de uma familia modesta (seu pai é servidor público) .2 A partir de 1901, quando acontece a separação de seus pais, é criado pela mãe com uma severidade que suporta com dificuldade. Criança turbulenta, menino arteiro, moço re­belde, mau aluno, detesta a escola, uma pesada sujeição, que comparará a uma prisão.

Em 1914, estoura a Primeira Guerra Mun­dial, desejada pelas principais potências de então para resolver seus desacordos relativos à divi ão e controle do mercado do planeta. Em 1917, para puni-lo de uma travessma (com um amigo, pin­tara uma estátua da cidade de Nantes), sua mãe

• Roberto Ponge é doutor em Letras pela USP e docen­

te do In tituto de Letras da Universidade Federal do

Rio Grande do Sul - UFRGS, em Porto Alegre, RS . I B ' EDOUI , Jean-Louis. Benjamin Péret. Paris: Segher , coll. "Poete d'aujourd'hui" , 1961. ·

2 Em matéria de informações biográficas sobre Benja­

min Péret bem como de estudos obre seu pensamen­

to, ua atividade e ua obra, ver os trabalho listados na bibliografia no ítem " E tudos gerais sobre Péret" .

Jean-Louis Bedouin1

obriga-o a alistar-se na grande carnificina. Ele nunca lhe perdoará por isso. 3 É nomeado para o 10 Regimento de Couraceiros,

"verdadeiro campo de trabalhos forçados no qual os superiores, qualquer que fosse sua pa­tente, só sabiam dirigir-se aos soldados com os mais grosseiros insultos, ameaçando-os, sempre, com punições."""

Terminada a fase de adestramento militar, é despachado para a frente de batalha, na Gré­cia; em seguida, é repatriado para tratamento de uma disenteria; após, é nomeado para o leste da França, participando da ocupação da Renânia. Consegue sair são e salvo do massa­cre mundial, porém extremamente revoltado. Continua, obviamente, odiando a guerra e as forças armadas. No final dos anos 50, ao pre­encher um questionário, à pergunta "Estréia na

3 Ver : PRÉVA ,Guy. Péret Benjamin, révolutionnaire per­

manent. Paris: Syllepse, col!. li Archipel du surréalis ­

me" , 1999, p. 9.

.. PÉRET, Benjamin. "Introduction" à l'AntholoBie des

mythes, léBendes et contes populaires d'Amérique. In: Idem.

CEuvres completes. Tomo 6 . Pari : José Corti/ A súciation des amis de Benjamin Péret, 1992 , p. 22.

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vida?", responderá: "A Guerra de 1914, o que facilitou tudo!" s

Ignora-se quando e como nasceu a paixão de Péret pela poesia, mas não há dúvida de que, já em 1917, redigia poemas de inspiração e com­posição simbolistas. Em 1918, ao encontrar um número da revista S/C abandonado num banco de uma estação ferroviária, descobre a obra de Guillaume Apollinaire (1880-1918), então um dos mais avançados expoentes - senão o mais avançado - da poesia moderna; provocou-lhe um verdadeiro "abalo":

"Foi como se eu desembarcasse numa terra desconhecida, no meio de uma fauna e de uma flora insuspeitadas ."6

Pouco depois, toma contato com a poesia de Arthur Rimbaud (1854-1891): trata-se de outra autêntica revelação, sem igual até deparar com as obras de Lautréamont (1846-1870) e de Alfred Jarry (1873-1907). O que não deve ter aconteci­do antes do começo de 1920.

A liberação das obrigações militares permite­lhe desenvolver contatos com os meios ligados à poesia moderna, principalmente com a revis­ta Littérature (recém fundada por Louis Aragon, André Breton e Philippe Soupault), a qual, após iniciar, em 1919, as experiências de escritura au­tomática (que tornar-se-ão essenciais à formação do surrealismo), está, justo naquele momento, engajando-se no dadaísmo.

Do DADAíSMO AO SURREALISMO

Extremamente irreverente, o movimento Dadá propõe-se questionar e desmontar tudo, sem ab­solutamente nenhum respeito por nada - nem mesmo pela arte. Define-se como um "protesto

5 Idem . " Réponse à un questionnaire" . In: BEDOUIN.

Benjamin Péret. Ob. cito h.t . 6 Idem . "LesArmes parlantes". 07 déc. 1952 . In: Idem .

(fuvres completes. T. 7 . Paris : José Corti/ Association des

amis de Benjamin Péret, 1995, p. 242 .

30 História & Luta de Classes

nos punhos de todo o ser em ação destrutiva", que procura cumprir "um grande trabalho nega­tivo [ ... ]. Varrer, limpar", dando-se por objetivo "destr[ uir] as gavetas do cérebro e da organização social: desmoralizar em todo lugar [ . . . ]" .7 No terreno da criação, Dadá não se propõe a produ­zir arte ("A priori, nos domínios da literatura e da pintura, seria ridículo esperar uma obra prima Dadá"8), mas almeja "obras fortes, retas , precisas e para sempre incompreendidas" . 9

O convívio com a equipe de Littérature,

mesmo sendo fisicamente limitado (ele tI-aba­lha como jornalista em Nantes), ajuda Péret a "abandonar os caminhos fáceis" da literatura. Tanto os exemplos daquilo que a escritura au­tomática permite alcançar como a mensagem de Dadá convidam-no a partir à procura das sendas secretas sugeridas por Jarry, Rimbaud e Lautréa­mont, em busca da aventura mental e poética. )0

Um poema como "Passageiros de segunda classe e seus cabelos" :

"Corro pra lá Para onde está correndo Para nenhum lugar Eu também Então"))

- poema que deixa o leitor sem saber com qual ponto (interrogação? exclamação? reti­cências?) terminá-lo - é um bom exemplo do êxito alcançado neste sentido por O passa8eiro

7TZARA, Tristan. Manifeste dada 1918. 1918 . ln : Idem .

Lampisteries , précédées des Sept Manifestes dada . Paris: Pauvert, 1979, p. 34, 33 e 27 . 8 BRETON, André. "Deux Manifestes dada, 11". Mai

1920. In: Idem . Les Pas perdus. (1924). Paris: Gallimard, 1949, p. 76. 9TZARA. Ob. cit., p. 3l. 10 PÉRET. "Les Armes parlantes" . Oh. cit., p. 242 . 11 Idem. "Passagers de seconde ela se et leurs cheveux" .

Le Passaaef du transatlantique. 1921 . In: Idem . (fuvres

completes. T. 1. Paris: Éric Losfeld/ Association des amis

de Benjamin Péret, 1969, p. 27 .

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do transatlântico (1921, com quatro ilu trações de Hans Arp), ua primeira coletânea, na qual a "fala" consegue, com uma radicalidade em p-e-

d " d al " 12 al ce entes, escapar ao peso as p avras, can-çando assim sentidos múltiplos.

O movimento Dadá ganha uma fama imedia­ta em função das polêmicas e dos escândalos ge­rados pelo caráter iconoclasta e provocador das manifestações públicas que promove periodica­mente. Por exemplo, por ocasião da primeira matinê Dadá em Paris (23 de janeiro de 1920), em vez de ler um de seus textos, como acaba de ser anunciado, Tristan Tzara procede à leitu­ra do último discurso proferido na Câmara pelo deputado Léon Daudet (do 1.: Action jrançaise, mo­vimento de extrema direita e monarquista) en­quanto, nos bastidores, Breton e Aragon cobrem sua voz agitando freneticamente sinetas; quando da soirée de 27 de março, Breton comparece no palco vestido de homem-sanduíche, em cujos cartazes pode-se ler:

"Para que vocês gostem de algo, é preciso que o tenham visto e ouvido desde muito tempo, seus idiotas";

ou, ainda, na mesma ocaslao, o anunciado quadro de Francis Picabia revela-se ser um macaco de pelúcia afixado numa tela e enqua­drado com as seguintes inscrições: "Retrato de Cézanne - Retrato de Rembrandt - Retrato de Renoir - Naturezas mortas".13 Em suma, Dadá não mede os meios para, com a maior insolên­cia, e candalizar, provocar o público, suscitar sua exasperação, ira e protestos.

A manifestações dadaístas acabam, porém, comprazendo-se com o uso repetido deste tipo de

12 BÉDOUI . Ob. cit., p. 40 .

13 As informaçõe relativa às referidas manifestações

dadaí ta encontram-se em : SA OUILLET, Michel. Dada à Paris. (1965) . ice: Centre du XX· siecle, 1980, p. 147, 165 e 167, e em: BO ET, Marguerite. André

Breton eL la naissance de l'aventure surréaliste. Paris: Jo é Corti, 1975 . Ch. 6: "Passage de Dada", p. 198-258 .

procedimento, de artifício; cultivam o escândalo pelo e cândalo. Dadá torna-se estereotipado, ba­naliza- e, esvazia-se de sua originalidade e de ua carga subversiva. O que é insuportável para aque­les que, como Breton, aderiram ao dadaísmo por­que viram, em suas provocações, uma forma - e apenas uma forma - de protesto contra a ordem vigente. Surgem divergências, que se aguçam. Em fevereiro-abril de 1922, acontece a cisão.

Afastado em Nantes, Péret participara rela­tivamente pouco das atividades públicas do da­daísmo. Dera, no entanto, o melhor que pudera de si para o movimento (por exemplo, em maio de 1920, na abertura da exposição de colagens de Max Ernst, ele desempenhara o ingrato pa­pel de, escondido em um armário, saudar cada recém-chegado com um palavrão). Na confu­são inicial do racha, ele fica ao lado de Tzara, o produtor mor dos espetáculos Dadá. Não tarda, entretanto, em revisar seu posicionamento, re­digir um manifesto d ruptura e figurar entre aqueles que, com Breton, abandonam o dada­ísmo à esterilidade, ao puro niilismo nos quais se deleitam certos membros do movimento em Paris e dos· quais Dadá falecerá após alguns me­ses de agonia. 14

No entanto, nem Péret (agora instalado em Paris, onde conseguiu um emprego de jornalista), nem os demais abandonaram Dadá para voltar as costas à rebeldia e aderir à mesmice vigente mes­mo que vestida à moda modernista. Pelo contrário. O nO 4 da "nova série" (pós-dadaísta) de Liuérawre

estampa o programa radical que perseguem:

"Não admirar-se, não encerrar-se na escola revolucionária convertida em academicista [o dadaísmo], não admitir a e peculação mer­cantil, não buscar a glória oficial, inspirar­se somente na vida, ter como ideal apena o movimento contínuo da inteligência." 15

14Ver: PO GE, Robert. "Mai luz!". In : Idem (Org.) . O

surrealismo. Porto Alegre: Ed . da Univer idade/UFRGS, 1991, p. 19-20, e BÉDOUIN. Oh. cit., p. 22-28.

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Para dar prosseguimento às suas investigações (iniciadas em 1919 com as experiências de escri­tura automática) sobre o funcionamento psíqui­co, a criação poética e o relacionamento entre ambos, Breton e seus companheiros procuram explorar o subconsciente. Inicialmente, anotan­do, logo no despertar, o relato de seus sonhos; depois, através de experiências com o sono indu­zido (hipnótico ou auto-hipnótico), para as quais Péret demonstra uma extrema disposição e atra­vés das quais ele revela sua personalidade mais profunda, secreta, eufórica, mostrando-se cap:lz de achados deliciosos; quando de seu primeiro sono induzido, acreditando ver água, atira-se em cima da mesa e faz os gestos de nadar; certa vez, acredita estar num planeta desconhecido; nou­tra, se toma por uma flor; ... 16

Em 1923, Péret publica No número 125 do bu1evar Saint-Germain, O primeiro daquele novo tipo de contos (cuja invenção o surrealismo de­seja: "contos escritos para os adultos, contos ainda quase fabulosos" 17), nos quais demonstra uma "soberba desenvoltura" em relação a seus personagens; 18 contos que criará como que na­turalmente: Era uma vez uma padeira (1925), E os

seios morriam ... (1928, com um frontispício de Joan Miró), No paraíso dos fantasmas (1938, com uma ilustração, novamente de Miró) etc.

Em 1924, O movimento (até então sem de­nominação) que Breton, Aragon, Péret, Éluard e seus amigos vem impulsionando desde o racha

15 PICABIA, Francis. "Littérature" . Littérature, nouvelle série, n° 4 . Paris, 1 cr sept. 192 2, p. 6.

16 Sobre os sonos induzidos de Péret, ver: ALEXAN­

DRIA ,Sarane. Le Surréalisme et le rêve. Paris : Galli­mard, 1974. Partie I, ch . 4, p. 108-109 e 117-119. - BE AYOU ,Robert. Le Rire des surréalistes. Pari: La

Bougie du sapeur, 1988. Ch. lI , p. 111 -112. 17 BRETON. Manifeste du surréalisme. 1924. In: Idem . Manifestes du surréalisme. Paris : Gallimard, coll. " Idées" ,

1966, p. 26 . 18 COURTOT, CIaude. 1ntroduction à la lecture de Benja­

min Péret. Paris : Le Terrain vaguei Association des amis

de Benjamin Péret, 1965, p. 160 .

32 História & Luta de Classes

com Dadá, assume o nome de surrealismo que Breton, em seu histórico Manifesto, define como um "não-conformismo absoluto" . 19 Eliminam o pe­riódico Littérature para fundar a revista La Révolu­

tion surréaliste (a mudança de título é muito signi­ficativa); a direção dos três primeiros números é confiada a Benjamin Péret e Pien-e Naville por­que, conforme o testemunho do próprio Breton, são "então tidos como os mais integralmente possuídos pelo novo espírito e os mais rebeldes a toda e qualquer concessão" .20

O que é o surrealismo? É, primeiro, preciso esclarecer que o surrealismo não se define como um modo literário, uma forma artística, mas como um estado de espírito:

"O surrealismo não é uma forma poética. É um grito do espírito que se volta para

si mesmo e está mesmo decidido a quebrar desesperadamente seus grilhões,

se necessário com martelos materiais."21

De maneirà resumida, digamos que o sur­realismo:

- Parte de uma vontade de exploração das camadas e dos mecanismos do mundo mental aliada a um esforço de compreensão da natureza do fenômeno poético;

- Propõe-se, inicialmente, em propiciar uma revolução mental, intelectual que permita alcan­çar o ideal visado por Rimbaud: Mudar a vida,

através de novas maneiras de pensar, de sentir, de se expressar;

19 BRETO . Manifeste du surréalisme. Ob. cit. , p. 63 . Grifado por Breton. 20 BRETO N, André. "Entretien radiophonique avec An­dré Parinaud", n° 8 . In: Idem. Entretiens (1913-1952) .

(1952). Paris: Gallimard, coll. "Idée ", 1969, p. 110. 21 Déclaration du 27 janvier 1925, declaração coletiva do grupo urrealista datada de 27.01 .1925 . In: Traas sur­réalistes et déclarations collectives. T. 1: 1922-1939. Orga­

nisation, présentation et commentaire de Jo é Pierre. Pari: Lo feld/Le Terrain vague, 1980, p. 35 .

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- A busca destes novos modos de viver está assentada, por um lado, na recusa da lógica está­tica, linear e estreita bem como na rejeição das pretensas verdades do chamado bom senso ou SénSO

comum (que, no mais das vezes, não se pauta se­não pelo imediatismo e pelo utilitarismo); por outro lado, na firme vontade de não admitir e combater toda e qualquer censura (a começar pela auto-censura , donde a procura de técnicas permitindo liberar as forças internas, dar vazão espontânea à realidade interna); enfim, na exal­tação de valores vitais como a liberdade, a poe­sia, o amor, o humor.

I GRESSO DA POrJTICA A PAUTA SURREALISTA

Em 1925, a participação da França na Guerra do Marrocos choca e revolta os surrealistas. Persua­dem-se de que, para quebrar os grilhões denuncia­dos pela Declaração coletiva de janeiro, o espírito precisa mesmo de martelos materiais; convencem­se de que a consecução de "uma nova declara­ção [surrealista] dos direitos do homem"22 (que inclua , por exemplo, o direito de sonhar) exi ­ge também a luta no terreno político e social. Assinam um apelo contra a Guerra, pelo direito à autodeterminação do povo marroquino e ini­ciam uma colaboração com o Partido Comunista Francês (PCF), que - não é inútil relembrá-Io - gozava então de todo o prestígio da Revolu­ção de Outubro de 1917 (cuja imagem pública não fora ainda chamuscada pelo processo de bu­rocratização da URSS, embora este já estivesse em marcha desde, no mínimo, 1923). Come­çam a ler obras de Marx e Engels bem como dos dois maiores dirigentes e teóricos da Revolução Bolchevique, Lenin e Trotski. Junto com outros intelectuais, lançam uma declaração intitulada A Revolução, antes de mais nada e sempre! , na qual se

22" É preci o al cançar urna nova Declaração do direitos

do Homem". Fra e impre a na capa do número inau­gw·al da revi ta La Révolution surréaliste (nO 1. Pari-, l er déc. 1924).

posicionam pela revolução social, condenando o sistema vigente que reduz o homem a mera mer­cadoria. A partir de então, o posicionamento e a atividade políticas passam a integrar de maneira definitiva a pauta surrealista. Postura que André Breton resumirá numa bela fórmula :

''' Transformar o mundo', disse Marx; ' mudar a vida', disse Rimbaud: para nós [os surrealis­tas], estas duas palavras de ordem são apenas uma." 23

O grupo inicia uma discussão sobre o tipo de relação a manter com o PCF, a qual rapidamente desemboca na seguinte dúvida: cabe filiar-se?

Tudo isto não ocorre impunemente na França extremamente conservadora de então. Por ter as­sinado o documento contra a Guerra do Marro­cos bem como uma violenta carta aberta coletiva de resposta ao escritor e embaixador Paul Clau­deI (que acabara, publicamente, de caracterizar o surrealismo como pederástico) , Benjamin Péret é despedido do jornal Le Petit Parisien ; pelos mes­mos motivos, o Le Qyotidien desiste de contra­tá_Io. 24 Consegue sobreviver graças ao diário do PCF, L Humanité, no qual colabora de setembro de 1925 a dezembro de 1926, inicialmente nas colunas de crítica cinematográfica, depois com as denúncias contra as forças armadas e a Igreja.

Em 1926 , provavelmente no início ou em meados do primeiro semestre, Péret filia-se, in­dividualmente, ao PCF; Jacques-André Boiffard, outro surrealista, também. O coletivo surrealis­ta reafirma sua opção pela revolução social, ou seja, comunista (o que provoca algumas poucas saídas do grupo: Artaud e Soupault), mas, ó em dezembro , consegue concluir a discussão a respeito da conveniência de filiar-se ou não ao

23 BRETON. "Di cour au Congr ' des écrivain ". Juin

1935 . In : Idem . Position poli tique du surréalisme. Paris:

DenoeI-Gonthier, coll . " Médiation ", 1972 , p. 95. 2i PÉRET. Carta a Jacques Doucet do 14.08 .1925 . In : Idem . (Eu vrescompletes. T. 7 . Ob. cit ., p. 317.

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Partido: resolve-se deixar cada um decidir indi­vidualmente a respeito. Os defensores da adesão decidem, porém, esperar a resposta do Partido à solicitação de Breton - o diretor da revista do grupo - para apresentar a sua.

O PCF submete Breton a vários longos in­terrogatórios diante de sucessivas "Comissões de Controle" encarregadas de avaliar seu pedido de adesão. Por q~ tantas dillculdades? Os m:igen­tes do PCF cultivavam um sem número de reti­cências e preconceitos em relação ao grupo sur­realista. Por um lado, é provável que receassem ter dificuldades em enquadrar esses imprevisíveis "poetas" que se tinham revelado contestadores (em outubro, Péret e três outros companheiros do PCF - não-surrealistas - atreveram-se a cUs­tribuir, no prédio do L Humanité, uma brochura na qual Breton ousava criticar a página cultural daquele diário e certos aspectos do PCF); por outro lado e, até, sobretudo, o tal de surrealismo

era encarado com má vontade, a começar pelo próprio título - A Revolução Surrealista - de sua revista (que "suscitava todo o tipo de suspeitas" por parte do Partido). Ao fazer uma retrospec­tiva deste período, Breton relembrará as "obje­ções" que, embora de "caráter extremamente simplista", eram levantadas pelos membros das Comissões de Controle como "obstáculos insu­peráveis" à filiação dos surrealistas ao PCF:

''[. .. ] eu tentava justificar a atividade sur­realista e dar provas da lealdade de minhas intenções. [ ... ]. Rapidamente minhas expli­cações eram julgada atisfatórias, mas sem­pre chegava um momento em que um dos inquiridores exibia um número da Révolution

surréaliste, o que recolocava tudo novamente em questão. O mais engraçado, à distância - se posso assim dizer -, é que eram certas ilustrações que inevitavelmente os colocavam fora de i, sobretudo as reproduções de obras de Pica o. Diante dela , eles se instigavam un ao outro, competindo para ver quem seria o mai cáu tico: em que sentido deveria ser olhado? será que eu poderia dizer o que

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aquilo "representava"? como eu me permitia perder tempo com essas bobagens pequeno­burguesas? será que eu considerava isso compatível com a Revolução? etc. Eu tinha a ilusão de não me sair muito mal: afinal de contas, cada Comissão reunÍa-se para homo­logar minha adesão; porém, não sei por que motivos, uma nova Comissão decidia reunir­se pouco depois e, para a consternação geral, a revista de capa alaranjada era, novamente, atirada na mesa ... "25

Finalmente, as resistências acabam sendo - oficialmente, pelo menos - vencidas: em janei­ro de 1927, quatro stYrrealistas (André Breton, Louis Aragon, Paul Éluard e Pierre Unik) filiam­se à seção francesa da Terceira Internacional. Como vimos, Benjamin Péret e J.-A. Boiffard já são membros do Partido desde o ano anterior.

Em abril de 1928, Péret casa-se, em Paris, com a cantora lírica brasileira EI ie Houston (cunhada do jovem advogado, jornalista e mili­tante comunista Mário Pedrosa, por sua vez casa­do com sua irmã, Mary). Segundo o depoimento de Antônio Bento, Elsie "possuía uma voz de tim­bre inesquecível, incluía em seu repertório peças modernas, tendo-se tornado [ ... ] uma recitalista de câmara de renome internacional."26

Também em 1928 sua coletânea de poemas Le Grand Jeu parece coroar um conjunto poético que - do PassaBeiro do transatlântico a esta última, passando por Imortal doença (1924, com um fron­tispício de Man Ray) e Dormir~ dormir nas pedras

(1927, com ilustrações de Yves Tanguy) - mos­tra-se extraordinariamente capaz de revelar se­gredos,

25 BRETO ." ntretien radiophonique [ .. . )", n° 9 . Ob.

cit. , p. 129-131.

26 BE TO, Antônio. "O ambiente no Rio ao tempo de

I mael ery" . Cadernos Brasileiros, nO 35 . Ano VIII, nO 3.

Rio de Janeiro, maio-junho 1966, p. 67.

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'I [ •.. ] segredos que lhes farão pensar segredos tão fluídos que deslizarão entre seus

dedos

como os minutos entre as coxas de uma bela mulher

e o sono dos insensatos no sol ao meio-dia!"27

No mesmo ano de 1928, embora sem romper com o PC francês, os surrealistas não renovam sua carteira no Partido. Benjamin Péret e seus amigos continuam a declarar-se marxistas e a as­sumir os ideais comunistas; um conjunto de dú­vidas e desilusõe incita-os, porém, a tomar um mínimo de distância daquele Partido. Sem dú­vida alguma, devem pesar os numerosos e vigo­rosos questionamentos levantados pelos escritos das diver as oposições bolcheviques à equipe no comando da URSS, bem como a surpreendente e chocante expulsão, das fileiras do PC da União Soviética, do ex-presidente do Soviete de Petro­grado e ex-fundador do Exército Vermelho: Leon Trotski. Também, e talvez sobretudo, o cansaço diante de certas práticas que testemunharam no Partido (Péret fala em "intrigas e conchavo us­peitos", em "ambiente envenenado" e em "estrei­teza de visão" então reinantes no PCF28).

Ainda em 1928, os surreali tas conhecerão Mário Pedrosa em Paris. É sabido que, enviado para Mo cou, pelo Partido Comunista do Brasil (PCB), para cursar a Escola Leninista Internacio­nal, Pedro a não chega à capital soviética: doente, vê- e forçado a interromper sua viagem em Ber­lim, onde toma conhecimento das divergências existentes na URSS e, em particular, das teses do grupo internacional ligado a Zinoviev. Desiste de seguir até Moscou aproveitando para documen­tar-se avidamente sobre as questões em debate. Durante uma estadia em Paris , aproxima-se da

27 PÉR T. .. L' rdew' dé espél'ée". Le Grand Jell . In :

Id m . CElIvres compJ(~tes. T. 1. Ob. cit. , p. 159 . 28 PÉRET. "Le rme parJantes". In : Ob. cit., p. 2+2 .

Oposição Internacional de bLfuerda (impulsio­nada por Trotski), acabando por aderir àquele agrupamento.

Por sua vez, Péret irá, também, aproximan­do-se da Oposição de Esquerda (terá seu concu­nhado o influenciado nisto?). No início de 1929 , ele teria, inclusive, tentado um contato neste sentido com Pierre Naville, então o principal re­presentante de Trotski na França, Péret, porém , rumou para o Brasil com Elsie sem que o encon­tro se concretizasse.

P ÉRET NO BRASIL (1929-1931)

O que leva Benjamin Péret ao Brasil? Sem dúvi­da, seu amor por Elsie, a qual deve estar por de­mais desejosa de viver algum tempo em sua terra natal . Mas, também, o interesse de ambos pelas artes populares e primitivas deste país e da Amé­rica Latina: Elsie tem, com efeito, publicado, em Paris, em francês, um livro intitulado Cantos po­

pulares do Brasil; quanto a Benjamin, junto com seus companheiros surrealistas , vê , nas artes populares e sobretudo primitivas, a essência do pensamento poético, do pensamento analógico,

A chegada de Elsie e Benjamin ao Brasil, no início de fevereiro de 1929 , recebe, inicialmen­te, uma boa cobertura da imprensa paulista. Em entrevistas e artigos, Péret procura explicar o que é o surrealismo, 29 Tece laços com a Revista de

AntropoJaBia, que o saúda como "um antropófago que merece cauÍns de cacique", reproduz alguns de seus Provérbios atualizados para o Bosta de hoje

(por exemplo, "Carne fria não apaga o fogo")30 e ainda diz a seu respeito:

29 Sobl'e a vinda de Péret ao Bra iI e e tada em 1929-

1931 , ver o documentado e tudo de PUYADE, Jean

(' Benjamin Pér t: um urreaJista no Brasil". Revista Co­

nexão-Letras, nO 1. Porto AJegre: Programa de Pós-Gra­

duação em Letras, oct. 2005).

30 Revista de Antropcifaaia, 2' dentição, n° 1. Diário de São

Palllo.17.03.1929.

Roberto Ponge / "Desse pão, eu não como": trajetória revolucionária... 35

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"Foi uma lição. O Ocidente que nos tem mandado tanta coisa ruim, desta vez nos en­viou uma exceção. Péret trouxe a magnífica coragem de uma liberdade."31

Ele participa da famosa comitiva de antro­

pófagos que acompanham Tarsila do Amaral ao Rio para sua exposição de julho de 1929. No entanto, não é bem acolhido por todos: Carlos Orumond de Andrade rompe com a Revista de An­

uopcfagia pois, entre outros motivos e sem esque­cer a possível pitada de provocação, esta "ainda não jantou" Péret, elemento inaceitável no grupo brasileiro "por ser supra-realista e francês". 32 Não há dúvida que, nisto, deve ter pesado tanto a qua­lidade do engajamento político-revolucionário de Péret (um seguidor de Marx, um agitador comu­

nista) como o fato de que sua revolta, sua contes­tação estendem-se a todos os domínios da vida e do pensamento, incluindo a religião e a própria instituição artístico-literária.

Péret tenta empreender uma viagem no nor­te e nordeste do Brasil e entre os índios brasi­leiros; sem sucesso, por falta de dinheiro. Limi­ta-se a estudar os cultos afro-brasileiros no Rio, assunto sobre o qual publica, no Diário da Noite

de São Paulo, de 25.11.1930 a 30.01.1931, uma série de trezd artigos intitulados "Candomblê e makumba" cujo conjunto, na opinião do histo­riador Clovis Moura, constitui "um marco signi­ficativo dos estudos afro-brasileiros, levando-se em consideração, inclusive, o seu pioneirismo, pois ele precede a Gilberto Freyre, Artur Ra­mos, Édison Carneiro e os demais africanis ­tas brasileiros". 33 Também, procura realizar um

31 SEM AUTOR. "A conferência de Péret" . Revista deAntro­

pefaBia, 2' dentição, nO 2. Diario de São Paulo. 24.03.1929 .

32" Cartas na mesa: os Andrades se dividem" (Carta de

Carlos Drumond de Andrade a Oswald de Andrade) .

Revista de AntropifaBia. 2' dentição, n° 11 . Diário de São

Paulo . 19.06 . 1929 .

B MOURA, Clovis. "Três vertentes de interesse de um

poeta francês obre o negro bra ileiro" . Comunicação

apre entada em 07.11 .1985, na "Semana surrealista"

36 História & Luta de Classes

filme no qual o palhaço Piolim ficaria com o pa­pel principal (novamente sem sucesso e por falta de dinheiro). Redige um prefácio para um livro de F. Slang sobre a revolta, em 1905 , da mari­nhagem do encouraçado russo Potemkin e, em base numa documentação extremamente rica (pesquisada inclusive nos Arquivos Nacionais da Marinha) , redige um livro intitulado O almirante

negro sobre a revolta liderada, em 1910, pelo ma­rinheiro negro João Cândido, contra os castigos corporais na esquadra brasileira.

É no Brasil que Péret rompe definitivamente com os PCs, aderindo às posições trotskistas. Tudo indica que, em 1929, com Mário Pedrosa e ou­tros, participa do processo de discussões visando à unificação de diversos grupos de militantes que abandonaram o PC brasileiro durante as crises que este vivenciou em 1928. O que resulta, no início de 1930, na constituição do Grupo Comunista Lenin (seção brasileira da Oposição Internacional de Esquerda), que, em janeiro de 1931, transfor­ma-se em Liga Comunista do Brasil. Além de Pé­ret (que, por óbvios motivos de segurança, atua sob os pseudônimos de Maurício, Seis ou Sete), a Liga conta, entre seus membros fundadores, com nomes como Mário Pedrosa, Lívio Xavier, Aristi­des Lobo, Rodolfo Coutinho, Edmundo Moniz, Fúlvio e Lélia Abramo. Após transferir-se para o Rio, Péret assume a responsabilidade de secretá­rio do Comitê Regional da organização. 34-

Em agosto de 1931, nasce seu filho Geyser. Pouco depois, em novembro, é preso devido a suas atividades políticas, provavelmente em fun ­ção de uma denúncia. Os originais de O almirante

negro acabaram desaparecendo. Algumas sema­nas depois, em 30 de dezembro, Benjamin Péret é embarcado no navio Siqueira Campos - com

organizada pela Aliança Francesa de São Paulo. Citado por PUYADE, art. cito l+ Sobre a atividade política de Péret no Brasil, ver : KA­

REPOVS. 1994:" Benjamin Péret: surreali mo e trotski -mo no Bra i}" . In: COGGIOLA, Osvaldo (Org.). Trotsky

hoje. São Paulo: Editora Ensaio, "Caderno Ensaio, -érie

Grande Formato", 1994, p. 217-234.

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destino ao porto francês de Le Havre -, expulso do país por ordem de um decreto do então Sr. Presidente da República, Getúlio Vargas.

A DÉCADA QUE A TECEDE A SEGUNDA GUERRA

De volta à França, Péret reencontra os amigos surrealistas (com os quais se manteve em conta­to durante sua estada brasileira), colabora com a nova revista do grupo - Le Surréalisme ou service de la Révolution (O Surrealismo a Serviço da Revo­lução) - e consegue empregar-se como revisor, atividade profissional que será a sua até o frnal de sua vida. Em agosto de 1934, Elsie e ele decidirão

( . "b d fi d " 35) separar-se mOTIvo: 50 retu ° o un o amor . Numa conjuntura marcada pelo ascenso do

fascismo, Péret retoma a militância nas fileiras da Oposição de Esquerda, enquanto os demais sur­realistas continuam desenvolvendo esforços para cooperar com o PCF - embora com cada vez mais desconfianças. A falta de democracia no Partido é sua principal queixa. A partir da segunda metade de 1934, acrescentam-se desacordos com as prá­ticas patrióticas e de colaboração com a burguesia dita democrática desenvolvidas por esse Partido sob a égide da chamada política de Frente Popular. Em 1935, os surrealistas rompem definitivamen­te com o PCF e com a Internacional Comunista. Sem, no entanto, romper com o marxismo, nem com os ideais revolucionários do socialismo.

Em 1934, Péret publicou De derriere les Jàaol s

(com uma água forte de Picasso), coletânea na qual transborda uma

"poesia especificamente subversiva que tem a cor do futuro [ ... , pois] milita de modo in­alente por um novo regime, aquele da lógi ­

ca ligada à vida, não como uma sombra, mas como um a tro."36

3S PÉRET Carta a Marcelle Ferrydo 18.08 .1934. In: Idem . (fuvrescomplec.es.T 7. Ob. cit., p. 330. Grifado por Péret. 36 ÉLU RD." Prihe d' in érer pour De derriere les Ja80cs

de Benjamin Péret" . 1934. In: Idem . (fuvres completes .

T 2. Ob. cit., p. 846.

É de 1936 Desse pão, eu não como, volume de poemas nos quais a poesia foi substituída pela viru­lência, a violência e a raiva através dos quais Pé­ret açerta contas com uma série de instituições oficiais e de personagens cujos nomes povoam os manuais escolares de história e de moral-e­cívica. No mesmo ano, como que por um plane­jado contraste, Eu sublime (com quatro fr0uages

de Max Ernst) permite conhecer o mais puro e inebriante lirismo com o qual se possa sonhar:

"Meu avião em chamas meu castelo inundado de vinho do Reno

meu gueto de íris negras minha orelha de cristal

meu rochedo despencando-se pela falésia para esmagar o guarda-florestal

[ ... ] minha cascata azul como uma vaga de

maremoto que faz a primavera meu revólver de coral cuja boca me chama

como o olho d'um poço cintilante gelado como o espelho onde contemplas a

fuga dos colibris do teu olhar perdido numa mostra de lençóis rodeada de

múmias eu te amo"37

Em 19 de julho de 1936, o pronunciamento dos generais espanhóis, liderados por Franco, deflagra o início da guerra civil e da revolução na Espanha. Sem perdel- tempo, no começo de agosto, Péret deixa a França para engajar-se ao lado dos anti­franquistas. Milita inicialmente nas flleiras do Par­tido Operário de Unificação Marxista (POUM, que criticava, pela esquerda, as políticas do PC e do PS espanhóis). Em Barcelona, conhece a pinto­ra Remedios Varo, que torna-se sua companheira.

37 PÉRET "Alô". In : Idem . Amor sublime: ensaio e poesia.

Organizado por Jean Puyade. Edição bilíngüe. Traduzi­do do francês por Sergio Lima e Pierre Clemen . São Paulo : Bra ilien e, 1985 , p. 105-107.

Roberto Ponge / "Desse pão, eu não como": trajetória revolucionária... 37

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No início de 1937, passa para as milícias anarquis­tas. Sua correspondência deixa transparecer suas críticas ao POUM, sua total inconformidade com a política do PC espanhol ("[eles] sabotam aberta­

mente a revolução") e suas conseqüentes preocupa­ções a respeito da evolução da situação ("Há tan­tas coisas, tantos sinais inquietantes no mais alto grau, que não posso [ ... ] contar [devido à censura à correspondência]").38 Em maio de 1937, con­vencido de que não há mais nada que possa ser fei­to para a Revolução Espanhola, volta para a França - Remedios Varo acompanha-o -, onde os demais membros do grupo sw-realista desenvolvem uma intensa atividade tanto de apoio à Espanha Repu­blicana como de denúncia e protesto contra os Processos de Moscou.

Em 1939, começa a Segunda Guerra Mun­dial. Péret é mobilizado e, pouco tempo depois, preso devido a sua atividade política no seio do exército. Consegue fugir no momento do colap­so das tropas francesas diante daquelas do Tercei­ro Reich. Refugia-se em Marselha, na zona livre da ocupação nazista mas submetida ao regime fascista e pró-nazista do marechal Pétain. Obtém um visto de entrada no México. 39

o MÉXlCO, A FRANÇA

Não sem dificuldades , sai da França em outubro de 1941. No início de janeiro de 1942, chega no México onde, durante seis anos, vive no exílio com Remedios, com quem casa, em 1943, após o falecimento de Elsie Houston .

Desenvolve intensa pesquisa sobre os povos pré-colombianos e começa a reunir textos de mitos, lendas e contos da América, com vistas à organização de uma antologia. Redige a primeira parte do texto de apresentação desta - um es­tudo sobre as relações entre os mitos e a poe ia

38 PÉRET. Carta a André Breton do 07 .03 . 1937. In :

COURTOT. Introduction à la lecture de Benjamin Péret.

Ob., cito p. 36.

39 Yer PRI~YAN. Ob. cit . , p. 43-46 e 49-60.

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- e o envia a Breton. Entusiasmado pela sua qua­lidade, este o publica imediatamente em Nova Iorque (onde está exilado), sob o título A palavra

e::tá com Péret. Em 1945, vem à luz, no México, seu polêmico, corajoso e necessário A desonra dos

poetas, no qual

"manifesta sua hostilidade contra todos aque­les que, sob o pretexto de participar da luta contra os nazistas, transformaram a poesia numa técnica propagandística e que, ao exal­tar uma 'liberdade decorada com atributos religiosos ou nacionalistas', na verdade er­gueram um obstáculo à 'liberação total do homem' ."40

Em 1946, junto com a viúva de Trotski, Na­t;ilia, rompe com a Quarta Internacional. O mo­tivo central é a divergência sobre a manutenção da caracterização da URSS: não se trataria mais, no entender dele, de um estado operário, mesmo que deaenerado, mas de um capitalismo de Estado. Péret continua, porém, a declarar-se marxista, a assumir o trotskismo.

Volta à sua terra natal no início de 1948 (Re­medios fica no México). Continua a trabalhar como revisor. Como sempre fez, continua cola­borando nas revistas e atividades do grupo sur­realista. É na França que publica o que o México lhe ditou: em 1952, seu magnífico poema Ar me­

xicano,

"tentativa absolutamente feliz de transplante

de cultura, como se fala de transplante de cora­

ção em medicina. Péret [ ... ] não dá a palavra à cultw-a nahua, ele é a palavra viva, o poeta do povo nahua. [ ... ]. O poema é um soberbo grito de revolta: é a revanche poética de um povo condenado pela História."4-!

40 AYARRI, Roger. «Péret (Benjamin)". In : BEAU­

MARCHAIS, J. -P ; COUTY, Daniel; REY, Alain. Dic­

tionnaire des littératures de lanauefrançaise. Pari : Borda ,

1984. p. 1734. A passagen citada por avarri são

extraídas de A desonra dos poetas.

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E, em 1955, aparece sua excelente "Apresen­tação" da bela tradução que realizou, a partir do espanhol, do Livro de Chilám Balám de Chumayel,

manuscrito que é uma "tensão por uma sobre­vida cultural", uma das maiores expressões "do esforço do povo maia em salvar o que podia ser salvo de suas tradições culturais" .42

No decorrer de 1954, é acometido por múl­tiplos problemas de saúde (crises extremamente dolorosas e quase permanentes de neurite na ca­beça, pressão alta, arritmia cardíaca, gripes su­cessivas), que se agravam até sua hospitalização no início de janeiro de 1955 quando é operado dos nervos trigêmeos e quando os médicos diag­nosticam uma angina crônica do peito. Conva­lescência difícil. Seu filho convida-o para vir ao Brasil, para descansar, encontrá-lo, e - o mais importante para alguém que passou a vida intei­ra com dificuldades materiais - manda o dinhei­ro para a passagem. No dia 24 de maio, Péret embarca no porto de Le Havre, com destino ao hemisfério sul.

NOVAMENTE NO BRASIL (1955-1956)

Desembarca no Rio de janeiro em 7 de junho de 1955. Lamenta as transformações que torna­ram a cidade "ir reconhecível" ("Os arranha-céus cresceram de maneira desordenada, feitos cogu­melos venenosos"43). Em uma entrevista, anun­cia sua intenção de redigir um texto sobre o qui­lombo de Palmares. No final do mês, transfere­se para São Paulo, também desfigurada (a cidade tornou-se "extremamente americanizada", está

41 COURTOT, Claude."O passageiro do transatlântico (Péret e a América)". Traduzido do francês por Ricar­

do Iuri Canko. In: PO GE (Org.). Surrealismo e Novo

Mundo. Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS, no prelo. Grifado por COW"tot.

42 PÉRET. "Introduction" au Livre . de Chilám Balám de

Chumayel. 1955. In: Idem. (fuvres completes. T. 6. Ob. cit., p. 168.

+3 Idem. Carta a Geo Dupin do 11 .06 .1955. In: Idem . (fuvTes completes. T. 7. Ob. cit., p. 416.

sem "nenhum charme"4+). Encontra seu filho, que está casando.

Um amigo brasileiro lembra "a febre que o possuia de ler tudo que tratasse do Brasil; as obras sobre Palmares solicita[ vam 1 em especial seu interesse" .45 Péret esforça-se também em obter, das mais diversas fontes, borboletas (que adora colecionar), bem como obj etos e / ou fotos de objetos de arte brasileira indígena e popular. Além do ensaio sobre Palmares, está projetando dois outros livros: um de fotos de peças de arte primitiva, pré-colombiana e popular do Brasil; outro, bem mais volumoso (150 a 200 páginas), no qual desenvolveria seus trabalhos de etno­grafia já publicados em 1950-1952. Nunca se­rão editados. No mês de agosto, acaba a segunda parte da "Introdução" à AntoloBia dos mitos, lendas

e contos populares da América que vem organizando desde o México. 46 No final do mês de setembro, termina o texto sobre Palmares; sairá na revista Anhembi em abril e maio do ano seguinte. 47

Após vários adiamentos, consegue finalmen­te, em 5 de outubro, iniciar uma viagem, de avião, de seis semanas que o leva a Manaus (uma decepção), Belém, São Luís, Fortaleza e o inte­rior do Ceará, Recife, Salvador e de volta a São Paulo e ao Rio. Fica no Rio até 26 de janeiro de 1956 quando embarca num avião da FAB com destino ao Mato Grosso. Visita uma aldeia de Ín­dios xavantes, em Xavantina (hoje Nova Xavan­tina). Volta ao Rio e, pelo 10 de fevereiro, viaja de novo ao Mato Grosso, visitando inicialmente uma aldeia de índios karajás, na ponta norte da

44 Idem. Carta a Eugenio F. Granell do 09 .09.1955. In: Ibidem, p. 427 . 45 COELHO, Ruy. "Prefácio" a: PÉRET. O quilombo de

Palmares. Lisboa: Fenda Edições, 1988, p. 11 . 46 A primeira parte de ta introdução ficara pronta em novembro de 1942, no México; fora publicada por

Breton, em Nova Iorque, em 1943, sob o título A pala­

vra está com Péret (ver acima) . 47 Ver: PÉRET, Benjamin. O quilombo dos Palmares. Or­

ganização, ensaios e com ntários por Robert Ponge e Mário Maestri. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2002.

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ilha de Bananal, a seguir o posto Capitão Vascon­celos (hoje posto Leonardo Villas Boas) instalado pelo Serviço de Proteção ao Índios (SPI) à bei­ra do rio Kuluene, no Alto Xingú (hoje Parque Indígena do Xingú). Prevista para dez dias, essa segunda viagem entre os índios acaba durando um mês. 48

Pouco após retornar ao Rio, é preso, em 12

de abril, às vesperas de embarcar para a França, por agentes da Polícia Política e Social: o Servi­ço de Registro de Estrangeiros descobriu que ele tinha, em 1931, sido expulso do Brasil . Embora já velho de um quarto de século, o decreto de expulsão continua em vigor por não ter sido re­vogado. Em protesto, Péret inicia uma greve de fome. Por sua vez, setores importantes da inte­lectualidade do Rio e de São Paulo mobilizam-se sem tardar, organizando um manifesto que, em pouco mais de 24 horas, é entregue à Presidên­cia da República com a assinatura de 76 escri­tores, artistas e jornalistas, sendo encabeçado por Manuel Bandeira, Antonio Callado e Murilo Mendes. O caso tem também repercussão ime­diata na imprensa. Pressionado, o governo acaba logo reconhecendo não subsistirem os motivos que, em 1931, determinaram a expulsão de Pé­reto Este é posto em liberdade no dia 14, às 18 horas. 49 Mal lhe resta tempo para festejar com os amigos, preparar as malas e, em 18 de abril, como previsto, embarcar no navio que o leva de volta à terra natal, onde chega em 3 de maio.

Como vimos, os dois livros que projetava no Brasil não se tornam realidade; consegue, no

48 Sobre a e tada de Péret no Brasil em 1955-1956 e

suas viagens ao norte, nordeste e Mato Gros o, ver :

PO GE, Robert. "Des anthropophage de São Paulo

aux pri ons de Rio de Janeiro en passant par le indien

kalapálos qui ont 'mangé I' explorateur Fawcett' : les

séjours bré ilien de Benjamin Péret" . Trois Cerises et

une sardine , nO 17. Paris : A sociation des amis de Benja­

min Péret, oct. 2005.

49 Devo a Dainis Karepovs e Jean Puyade os documen­

tos relativos à esta prisão de Péret. A eles meus agra­

decimentos.

40 História & Luta de Classes

entanto, publicar cinco artigos sobre os índios do Brasil, um dos quais na Manchete, outro na Anhembi, os demais em revistas francesas. 50

Os ÚLTIMOS ANOS

Em 1956, vem à luz sua Antologia do amor sublime,

com um belo ensaio introdutório ("O núcleo do cometa"51). 1958 vê a publicação de seu conto História natural (com ilustrações de Toyen), que,

"sob a luz de um passado fabuloso [, ... ] relata a história do mundo físico, revista e corrigi­da por Benj amin Péret. [ ... ] contrariamente ao espírito estático das explicações lógicas ou religiosas às quais o homem ocidental [ ... ] está habituado, as narrativas de Péret, à se­melhança daquelas dos índios da América, descrevem, inventam um mundo de meta­morfoses e de surpresas incessantes."52

Em 1959, é publicada, na Itália, A poesia

surrealista francesa, antologia que organizou e prefaciou. 53

Participa em todas as revistas surrealistas publicadas em Paris a partir de 1948 (Néon; Mé­

dium; Le surréalisme, même; Biif) e assina todos os documentos coletivos lançados pelo grupo para posicionar-se sobre os acontecimentos da década

50 Ver: PÉRET. (EUVTes completes. T. 6. Ob. cit. , p. 117-

164. Doi dos quatro artigos 5<;0 na verdade extrato de um longo texto ('Visites aux Indiens"), cuja íntegra per­

maneceu inédita até sua publicação na (Euvres completes.

51" O núcleo do cometa" foi publicado no Brasil em um

volume que também inclui dua coletânea de poema

seus (E ponto final e Eu sublime): PÉRET. Amor sublime:

ensaio e poesia. Ob. cito 52 BAILLY, Jean-Chri tophe. Au-delà du lanaaBe: une étu­

de sur Benjamin Péret . Pari : Éric Lo feld, coll. "Le Dé­

sordre", 1971, p. 75-76 . 53 PÉRET (Org.) . La poesia surrealista francese. Traduzio_

ne di Roberto Sane i e Arturo Schwarz. Introduzione di

Arturo Schwarz. Prefazione di B njamin p'r t. Milano :

Ed . Schwarz, 1959 (2' ed. : Milano: Feltrinelli, 1978).

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(entre os quais, a repressão desencadeada pela URSS nos países do chamado Leste Europeu, com destaque para o sangrento esmagamento da Revolução dos Conselhos, na Hungria em 1956; também as guerras coloniais da França - Vietnã, Argélia - e seus efeito sobre a política interna da França). A partir de 1958 , colabora ao perió­cüco Le 14 juillet, que reagrupa intelectuais de esquerda contra o regime instaurado, na França, pelo general de Gaulle.

Em 1960 - até que enfim! -, sai (com o lon­go e importante ensaio introdutório sobre a arte primitiva e a poesia) a Antoloaia dos mitos, lendas

e contos populares da América que começou a or­ganizar no México. Benjamin Péret, entretanto, não conhecerá sua publicação, que é póstuma: falecera em setembro de 1959 de uma trombo­se na aorta. Ao receber a noticia, Paulo Duarte, Diretor da Anhembi, não esquecerá de saudar a figma daquele francês que colaborara por quatro vezes em sua revista:

"Surrealista militante, nas letTas, nas artes e mesmo na vida -, Benjamin Péret participou de 1920 até sua morte [ ... ], de todas as cüs­cussões, de todas as batalhas do surrealismo, impávido, coerente e fiel. Entusiasmado e de­sesperado, zangado e apaixonado, violento e ca­rinhoso, ele prosseguia na sua busca do maravi ­lhoso no seio do movimento do qual foi um dos principais fundadores, apondo sua assinatura em todos os manifestos e panfletos, criticando, condenando, insultando, utilizando para isso até o escândalo, sabendo, por outro lado, enal­tecer, compreender e temperar a sua violência, graças a sua cultura enciclopécüca: tudo havia lido, os france es e estrangeiros, os antigos, os autores da Idade Mécüa, assim como aqueles que, nas eparatas e revistas, transmitiam ua men ag m. Arra ava com facilidade o papa, o arrivista, o acadêmico, ma era preciso ouvi-lo falar de algumas páginas de Gide ou de algum poema de Valéry para poder aval iar a autêntica e perfeita sinceridade de Péret, o intran igente, de Péret, o impiedoso. [ ... ] ."54

Em 1967, o grupo surrealista de São Paulo resolverá, como merecida homenagem à obra e à "presença" do poeta surrealista "na cultura brasileira",55 reservar-lhe um espaço na 1 a Ex­posição Surrealista no Brasil e consagrar-lhe, no catálogo da mesma, um artigo, cujo parágrafo finais conseguem, em poucas linha, apresentar uma justa e precisa síntese da trajetória de Péret:

"A significação de sua poesia e de sua obra crítica (de reivincücações e de humour noir),

quase desconhecida entre nós, os seus traba­lhos sobre o amor sublime e sobre a tracüção popular nos contares das Américas e sobre a mitologia sacrée da religião maia, conferem­lhe uma posição sem igual no movimento surrealista e nas artes contemporâneas.

Além do que, a significação para os cida­dãos do mundo do seu livro O almirante nearo

e dos seus trabalhos sobre as artes no Brasil restará imponderável.

Benjamin Péret, poeta essencial na época contemporânea, é o enunciador da ' verdade seI vagem com olhar de evidência' , é a poesia mesma."56

5+ Anhembi. nO 109. Dez. 1959 . Citado in : PÉRET. Amor

sublime. Ob. cit., p. 188.

55 A Phala. Ob. cit., p. 115.

56 LIMA, Sergio. "Je ne mange pas de ce pain-là : Ben­

jamin Péret". Art. cito Trata-se, sa lvo engano, do pri ­

meiro estudo elaborado e publicado na América lati­

na sobre Péret. O primeiro estudo, pois o interessante

"Reentrevi tando a Benjamin Péret" de Stefan Baciu

(In: BACIU. Presença de Péret. 1" ed .: Rio de Janeiro :

Associação Bra ileira do Congre o pela Liberdade da

Cultura, 1962 ; 2" ed.: Honolulu [HawaiJ : Mele, 1981)

é constituido de uma entrevi ta de Péret precedido de

uma apre entação - misto de homenagem e memó­

rias - do próprió Baciu (foi novamente publicado no

Bra il , porém em espanhol, sob o título "Entrevi tan­

do a Benjam in Péret", em: Travessia, revista do Cw' o

de PÓ -Graduação em Literatura Bra ileira da UFSC,

n° 16-17-18, intitulado "Bra il -França" . Florianópolis :

Ed. UFSC, 1988-1989 . p. 303-311).

Roberto Ponge / .. Desse pão, eu não como": trajetória revolucionária... 41

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Com inegável acerto, Sérgio Lima, autor do artigo, denominou seu texto com palavras do próprio Péret, aquelas mesmas palavras que seus companheiros parisienses haviam gravado, em letras vermelhas, na placa de granito afixada em sua tumba, na qual se pode ainda hoje ler:

BENJAMIN PÉRET 1899-1959 DESSE PÃO, EU NÃO COMO

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o poder da mídia e a luta pela democratização dos meios de comunicação no Brasil

Costuma-se iniciar qualquer discussão sobre a Idade Moderna falando da Revolução Francesa, de 1789. Análises históricas, sociológicas, políti­cas e culturais tomam este marco como o ponto de partida de inúmeras reflexões.

Ao falar em comunicação também podemos pegar a queda da Bastilha como um marco refe­rencial. Na França do Rei Luis XIV, a comuni­cação de qualquer idéia era feita ou através da oratória de padres, bispos ou dos laicos iluminis­tas; ou através de livros, caros e raros naqueles tempos. Não havia toda a parafernália que hoje conhecemos, desfrutamos e usamos à profusão.

A diferença entre a comunicação dos reis franceses com seus súditos no século XVI e no século XVIII era muito pequena.

Luis XVI se vangloriava que no seu reino só existia um único jornal . E isto até 14 de julho de 1789. A Bastilha caiu e com ela a história da Fran­ça e do mundo mudou. E a comunicação tam­bém. Do dia em que a Revolução triunfou, 14 de julho, até 31 de dezembro daquele ano, a França viu nascer 184 periódicos, muitos deles diários.

• Vito Giannotti é coordenador do úcleo Piratininga

de Comunicação e autor de vinte livros sobre movi­

mento indicai , história das lutas dos trabaLhadore e

comunicação sindical.

Vito Gianotti*

No ano seguinte, no qual o novo regime po­lítico precisava se firmar, em Paris foram criados 335 novos jornais . Dez anos após a derrubada da monarquia francesa, com direito ao corte das cabeças de Luis XV e sua senhora Maria Anto­nieta, em 1878, uma lista da polícia relacionava 107 jornais parisienses e mais 60 no interior da França.

Por que este florescimento enorme de jornais com a Revolução Francesa? Pela mesma razão que, anos depois, Napoleão, ao conquistar rei­nos e principados, a primeira coisa que fazia era montar uma tipografia e criar um jornal . Preci­sava difundir os ideais da Revolução e depois do novo Império Francês.

Os primeiros revolucionários e o regime que nasceu daqueles erros turbulentos sabiam da ne­cessidade de difundir suas idéias, seus ideais, sua visão de mundo enfim. Gracco Babeuf, jornalista revolucionário dos primeiros dias, assim nos fala da centralidade da comunicação num dos seus jornais daqueles anos turbulentos:

"É pela opinião pública que se pode fazer tudo. Desde que se consiga orientá-la para um sistema qualquer, tem-se a certeza de fa­zer prevalecer este sistema. Porque a opinião do povo, como se diz muito bem, é sua força

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e a força do povo é tudo"! (Journal de Laberté

de Presse - 27.09.1794).

Certamente se o precursor do ocialismo, Babeuf tive se vivido no século XX após as ex­periências das revoluções deste século e após as reflexões de Gramsci sobre a hegemonia, teria matizado mais seu discurso. Teria percebido, com Gramsci, que a hegemonia não se apóia só no convencimento, na propaganda. Ela precisa, junto com O conhecimento, do poder de coer­ção. Mas isto não vem ao caso neste momento.

O que fica é a percepção clara da centrali­dade de comunicação na política moderna. Na­quele tempo se falava do poder da imprensa, dos jornais e dos já tradicionais livros (embora não na dimensão de massa do tempos hoje). Hoje, século XXI, se fala do poder da mídia e há várias defmições sobre este poder.

Uns chamaram a imprensa, e com maior ra­zão a mídia, de quarto poder. Algo diferente do clássico poder perfigurado na distinção escolásti­ca dos famosos três poderes.

Na verdade a mídia não é simplesmente uma força estranha à máquina do poder. Ela é parte integrante dele. Hoje não há poder sem mídia. A mídia é o que divulga, propagandeia, sustenta ou derruba um sistema, um regime.

O que transformou as 3.000 mortes do aten­tado terrorista (de não se sabe quem) às Torres Gêmeas de NewYork, em 2001, num fato que influenciou tremendamente a política mundial? Qual o peso da enorme exposição deste atentado pela mídia e a aceitação da invasão americana no Iraque, em seguida?

Mas qual o peso que a mídia deu ao quase idêntico número de soldados americanos mor­to desde a invasão do IJ-aque em 2003? Quem determina que as dezenas de milhares de mortos daquele paí não tenham nenhum peso nos noti­ciários de jornai ,rádio e TVs do mundo todo?

A mídia americana, a partir do 11 de etem­bro de 2001, se tornou parte integrante do po­der. ó começou a dar inai d um leve de con­forto com e te pap I de "inbedded" (o jornali ta

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americanos que dormem em instalações militares americanas) agora com a devastação provocada pelos furacões Katrina e Rita em New Orleans.

Em síntese, a mídia há tempos assumiu um papel central na política. Um papel determinan­te na construção e manutenção da hegemonia.

É POSSíVEL DEMOCRATIZAR ESSA MíDIA?

Ao olhar o poder que a mídia possui hoje (não em 1750), surge uma pergunta que necessita uma resposta clara. Se a mídia é tudo isso, se é uma das duas pernas sobre as quais se baseia a hegemonia, a dominação, será que os donos do poder vão permitir democratizá-la? Ou seja, é possível democratizar a mídia?

A sociedade está numa guerra. De um lado os interesses do capital financeiro e industrial e do outro os interesses dos povos, dos trabalhadores, da imensa maioria.

Não há interesses comuns. Há os interesses do grande capital de extrair o máximo de lucros, a qualquer custo. Disso deriva que os EUA não queiram assinar o Protocolo de Kyoto.

Não podem se preocupar com questões "se­cundárias" sobre aquecimento global, limitação de emissão de poluentes e outras questões de ambientalistas, ecologistas e alteromundistas.

Ceder a estas pressões seria limitar os lucros. E isso o FMI, o Banco Mundial, o Pentágono e o comitê central das multinacionais não podem permitir. E então, onde fica a mídia dos EUA nesta estória? Do lado do Bush e do complexo industrial-militar que não quer o Protocolo de Kyoto.

Como democratizar a mídia? Um jornalista individualmente poderia desafiar o establishment?

Tomemos o caso do transgênicos no nos o país. O poder da Monsanto pa a pelo Ministério da Agricultura, Banco Central e seus interes es de­terminam toda uma política agrária no paí . E nossa mídia? Repete o qu a Mon anto e o Im­p' rio querem! Rep te que com a oja, o milho, O trigo e tudo tran gênico erá re olvida a fome no nosso país. Nem erá preciso mai que haja o

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Pro8rama Fome Zero. Tudo será resolvido com se­mentes Monsanto.

É só analisar todos os jornais do País, da Folha ao Estado e passando pela Veja, Época e companhia. Qual destes veículos se coloca contra os transgê­nicos? E poderiam? Poderiam, sim. Só que não querem! O seu projeto passa pela Monsanto. Este é seu projeto de país.

E então o que significa democratizar a mídia? Fiquemos neste exemplo dos transgênicos. Será que a Folha, a Veja, O Globo vão enfrentar os pla­nos da Monsanto? Claro que não. E isto não por interesses concretos de inserções de propaganda em suas páginas. O motivo é bem maior. É que a política da mídia empresarial é a mesma da Mon­santo. É uma política corporativa. Uma política de classe. E a mídia sabe muito bem quais ão seus interesses de classe. Seus de quem? Dos seus donos .

A MíDIA TEM DONO E O DONO TEM CLASSE

Ao discutir a democratização da mídia é preciso partir do começo da discussão. O que imagina o senso comum? Que a mídia seja uma entida­de que paira no ar. Acima das classes. Fora da luta política de todo o dia. Nesse raciocínio nada mais natural que a mídia dê espaços aos seus ini­migos.

Estas idéias simplórias não levam em conta a premissa fundamental de que a mídia tem dono. E quem manda numa fábrica, num banco, num supermercado é seu dono. Diretores, gerentes e chefetes podem opinar nas que tões menores. Mas a linha cenu-al, a última palavra é do dono. Ou do dono. E te dono ou donos têm classe, interes es de cla e a defender. E defendem mui­to bem.

É por isso que a revista Veja, durante quatro anos seguidos escondeu o Fórum Social Mundial (FSM) em suas capas.

O Fórum Social Mundial realizado em Por­to Alegre em 2004 e na Índia em 2005, foi um acontecimento que ia no entido absolutamente contrário a tudo o que a Veja escreve e propõe.

O FSM falou conu-a o imperialismo ameri­cano, conu-a a Alca, o FMI e o Banco Mundial. Conu-a os transgênicos e contra as multinacionai que sugam o sangue do Brasil. Falou conu-a a Dí­vida Externa. Falou conu-a a flexibilização dos direitos dos trabalhadores. Falou a favor da d -marcação das terras indígenas, da proteção das nossas águas, contra a devastação da Amazônia e de muitos outros temas.

Todos esses assuntos foram analisados numa visão diametralmente oposta à da Veja. E aí? Va­mos democratizar a Veja? Vamos pedir ou exigir que ela dê voz às minorias? Aos outros?

Para nos curar desta ilusão, está aqui a reali­dade: Veja estampou nas capas que saú-am logo após o fim de cada edição do FSM as eguintes manchetes:

13.02.2002 -"Sua Idade Sexual"; 29.01.2003 - "Diabetes o inimigo oculto"; 21.01.2004 - "Atração Sexual"; 02.02.2005 - "A verdade sobre os remédios" . Ótimas manchetes para fazer esquecer que

aconteciam encontros que reuniram dezenas de milhares de pessoas, de mais de cem países para combater tudo o que a Veja pensa, escre­ve e propagandeia. Pouco importa se em Por­to Alegre, em 2003 teve mais de 130 países participando. Pouco importa se em 2004, em Mumbaí, na Índia, participaram mais de 200 mil pessoas.

Nada interessa se houve personalidades polí­ticas, intelectuais e prêmios Nobel de Paz. Tudo isso não interessa nada. Só uma coisa interessa à Veja e à clas e que ela representa: encobrir o fato, escondê-lo, negá-lo. E assim foi feito. Como? Com manchetes como a de 2002: Sua Idade Sexu­al. E os outros Fóruns, como foram? Que Fórum? O leitor da Veja saberá que o diabetes é um peri80 oculto, ficará craque em atração sexual e expert em conhecer a verdade sobre os remédios. O Fórum So­cial M~dial não tem importância nenhuma.

Como democratizar a Veja? Fazendo outra revista melhor. E o que vale para o exemplo da Veja, vale para todos o outro veículo , do rádio à TV. Mas isto veremo a seguir.

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MIL EXEMPLOS DA MíDIA DE CLASSE

A palavra mídia é uma palavrinha bonita, simpáti­ca. Ela, em sua origem grega, não diz quase nada . Mídia são os meios. Meios de comunicação. Pron­to, acabou. Eles servem para comunicar. Seria bom se fosse verdade. Na realidade, a palavrinha simpática mídia esconde que estes meios são meios de comunicação sim, mas direcionadíssimos.

Não existe uma mídia que seja só mídia. A mí­dia é o meio para disputar a hegemonia. Para ga­rantir a hegemonia atual ou se contrapor a esta. A mídia tem dono, tem classe, tem interesses de classe a defender. E estes interesses não são os do povo, obviamente.

No livro Chatô, o Rei do Brasil, de Fernando Morais, há uma passagem onde o criador dos Diá­rios Associados, após ter comprado vários jornais, em 1931, explicita sua atitude frente ao novo go­verno de Getúlio Vargas. Escreve o autor:

"Prevendo que teria problemas com a censu­ra , deu ordem para que os jornais e a revista mantivessem uma postura neutra e imparcial diante do governo, apenas noticiando atos. Quem quisesse ter opinião que fizesse como ele: comprasse um jornal." Nos Associados , só o dono emitia opiniões.

Vejamos o exemplo de Hugo Chávez, na Ve­nezuela. Inútil relembrar aqui o golpe midiático que foi dado contra ele, em abril de 2002.

A palavra já explica. Um golpe orquestrado, coordenado, desejado, planejado e executado pela mídia burguesa venezuelana e por seus do­nos com suas poderosas máquinas deTVs, rádios e jornais, com ajuda ideológica do imperialismo

americano, ao seu dispor. Chávez aprendeu a lição. Neste ano de 2005 ,

centenas de rádios comunitárias foram incenti­vadas e autorizadas a funcionar. O mesmo com as TVs comunitárias. Mas não só com rádios e TVs comunitárias se garante uma disputa contra­hegemônica, numa sociedade totalmente midia­tizada. Precisava de algo mais.

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E assim em final de julho deste ano a Vene­zuela encabeçou a iniciativa de criar uma tele­visão alternativa às que tentaram derrubá-lo em 2002.

Da necessidade concreta de se proteger con­tra os inimigos de classe e do sonho Bolivariano de criar uma integração da América Latina, nas ­ceu a TV-SUL, a Telesur.

Nas palavras do jornalista brasileiro Beto Al ­meida, diretor internacional da Telesur, o canal nasceu para resgatar e revelar histórias, lutas e tradições da América Latina. Beto Almeida, numa entrevista à Aaência Brasil, na véspera da inauguração do canal, deixou claro quais os ob­

jetivos:

"A Telesur é uma alternativa aos milhões de latino-americanos que queriam ver uma in­formação diferente, que não seja submetida às televisões comerciais que têm seus crité­rios determinados pelos interesses de seus grandes anunciantes."

Em seguida esclarece:

"Nós somos uma TV pública que não tem nada a ver com os interesses do mercado ou do lucro."

Logo após esta declaração, Almeida entra no cerne do nosso tema: a mídia tem lado!

"Não existe imparcialidade. As grandes mí-. dias não são imparciais . Elas são favoráveis à defesa de programas econômicos neoli­berais, defendem a continuidade da desna­cionalização da economia, de planos eco­nômicos que levaram a América Latina a viver essa situação de miséria. Isto não é imparcialidade. Nós tampouco somos im ­parciais. Somos independentes porque não temos vinculação com agentes interessados no lucro. Nós defendemos aquilo que está nas constituições dos países: a integração latino-americana."

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Qual a prova da parcialidade da mídia empr -sarial? Da mídia burguesa? Beto Almeida nos dá um exemplo que escancara a falácia do mito da mídia feita para informar pura e simplesmente.

Almeida conta na sua entrevista, que em junho deste ano a Venezuela foi declarada, pela UNESCO, território livre do analfabetismo. E a mídia brasileira destacou este fato? Não seria uma notícia importante? Seria sim. Se não existissem classes sociais. Se não existissem interesses polí­ticos. Então porque a Folha, a Veja e O Globo não falaram nada desta enorme vitória do Governo Chávez?

Simples! Por que toda a nossa mídia é contra esse "péssimo exemplo" da Venezuela. Mas o anal­fabetismo não é uma praga erradicada do Brasil? Então porque a Veja e Cia não falaram di so?

Beto Almeida arremata:

"Da mesma forma que ninguém quer mos­trar que a solução encontrada pela Argenti ­na para renegociação de sua dívida externa, que disse que só honraria 70% das suas dívi ­das . A grande mídia não atuou de forma im­parcial. Ela disse que aquilo seria uma catás­trofe. Um absurdo. Que a Argentina estava caminhando para o desastre . E não aconte­ceu nada disso. Ela foi muito bem-sucedida nessa renegociação da dívida. A economia da Argentina está se recuperando. Houve aumento de salário, das pensões dos apo­sentados. A indústria está tendo uma reani ­mação muito importante. As grandes mídias não quiseram e não querem dar destaque a essa recuperação."

A mídia não tem nenhuma imparcialidade. Ela tem total parcialidade. E a democratização?

D EMOCRATIZAR A MIDIA: DUAS FRENTES

Numa guerra há várias frentes de batalha . É pre­ciso ter uma tática para cada uma delas . Cada uma tem sua importância, mas há aquela que é central. Na guerra da democratização da mídia é

a mesma coisa. Vamos dar uma ol hada em algu­mas destas frentes. Começamos pela ecundária e ao mesmo tempo a mais diretamente lembrada ao se tratar este assunto.

A primeira batalha, a mais primitiva e sim­plória é garantir o direito de resposta quando al­guém se sente atingido, ofendido por um artigo ou um programa de rádio ou televisão. É um di­reito a ser mantido e defendido, mas não atinge minimamente os objetivos de garantir uma dis­puta de hegemonia.

Uma frente que avança na construção de uma mídia que permita disputar com o outro lado é a disputa institucional pela democratização da mídia. A luta para conquistar uma legislação que garanta esta democratização. Para garantir o di­reito de ter seus próprios instrumentos de mí­dia, livremente, sem obstáculos dos atuais donos de todas as mídias.

Direito de liberdade de imprensa e hoje direi­to ao uso das ondas do ar com todas as implicações tecnológicas que isso implica. Fala-se, no Brasil, da necessidade de uma reformulação completa das chamadas" concessões públicas" de rádio e TV. Palavrinhas inócuas e falseadoras da realidade. Hoje no sistema de propriedade de rádios e TVs nada há de público. São absolutamente privadas. Igual a um latifúndio que alguém diz ser seu. São latifúndios absolutamente privados tanto quanto as terras do Rei da Soja, o Blairo Maggi. No en­tanto são chamadas de "concessões públicas" .

A luta institucional passa pela reformulação completa deste sistema. Quem disse que estas concessões não po~em ser democratizadas? Tor­nadas públicas de verdade? E o que viria a ser este público.?

E quem dis e que estas conce ões são intocá­veis, praticamente eternas?

Que tal uma "reforma agrária" no ar? Impos­sível? Quem disse?

Na discussão da democratização dos meio e comunicação este tema precisa ser encarado com coragem. Mas nada disso se fará em uma grande mobilização popular consciente dos seus direitos e disposta a impô-los.

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Esta é uma linha de luta pela democratização do meios de comunicação que passa pela luta institucional, jurídica e parlamentar.

Com a composição da atual Câmara e do Se­nado onde qua e a metade dos seus membros são donos de sesmarias do ar é difícil vislumbrar algu­ma vitória das forças populares.

Como os Sarneys que hoje controlam prati­camente todas as TV s do Maranhão vão querer democratizar seu império? Como vão querer re­ver e, obviamente perder a mamata, as 47 rádios que o clã Sarney possui no Estado?

Na Bahia, outro Estado tipo o Maranhão, o PFL além da TV de ACM, em Salvador, possui 153 estações de rádio espalhadas pelo Estado in­teiro. Este vai querer fazer esta discussão sobre democratização? Mas é bom tentar. Afinal, a es­perança é a última que morre!

Esta frente institucional visando controlar os meios de comunicação e impedir sua concentra­ção nas mãos de poucos donos é louvável. Quan­to à sua eficácia . . . é só perguntar para o chefão da Itália, o Berlusconi. Dono de praticamente toda a mídia daquele país: das TVs e todas as edito­ras, revistas e jornais. O último jornal a cair nas mãos do" chefão" foi, meses atrás, o mais célebre jornal italiano, o Corriere della Sera . Mas, noutros países não é muito diferente. É só pensar no anti­go Cidadão Kane e no atual Murdock - dono de meia mídia norte-americana.

DEMOCRATIZAR A MIDIA É FAZER A NOSSA

Enquanto não conseguirmos que os nossos par­lamento e Senado façam a suprema concessão de estabelecer alguma lei que democratize a comu­nicação no nosso País, há uma tarefa que é tão ve­lha quanto ... a Revolução Francesa: fazer no sos jornais. E hoje, não Ó jornais e sim criar no sa mídia abrangendo todos os domínios: rádio, TV e internet.

Essa não é uma tarefa impossível. Acima fa­lamos da Telesur, um canal de televisão interna­cional para divulgar o que a Globo, a Veja, a Folha, O Estado de S. Paulo e os outros veículos menores

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nunca irão noticiar. Nunca não. Às vezes vão no­ticiar sim, mas omitindo o principal, O que faz a diferença.

Como fazer isto é muito simples; é o que mais acontece. É só contar o fato nu e cru, apa­rentemente imparcial. Mas ao não dizer como aconteceu e porquê aconteceu, a notícia muda completamente. Exemplos há dezenas, todos os dias.

Outras vezes, a mídia patronal distorce expli­citamente os fatos para não se chocar com suas versões e interpretações de todos os dias repe­tidas de mil formas. E às vezes, se não for su­ficiente esconder ou distorcer, mentem, pura e simplesmente.

A TV-SUL veio para dar a sua versão dos fa­tos. Sem disfarces, sem enganações. Ela se pro­põe a ter lado. Tem lado e assume. É um exemplo do que se pode fazer. É o melhor exemplo de de­mocratização da mídia ... mais ou menos na linha de Chateaubriand: Parar de reclamar e fazer sua própria comunicação.

N o Brasil temos belos exemplos de publica­ções populares de esquerda vendidas em ban­cas para quem quiser comprar. Da nova safra da época da redemocratização podemos lembrar a revista mensal Reportagem criada por Raimundo Pereira o criador de Opinião, Movimento e do jor­nal diário Retratos do Brasil.

Da mesma época da Reportagem há também a revista mensal Caros Amigos, coordenada por José Arbex Jr. que também está na origem de um se-

. manário em formato de jornal: Brasil de Fato. Este último existe e persiste há dois anos e meio levan­do um resumo dos fatos da semana, do Brasil e do mundo, do ponto de vi ta dos trabalhadores.

Para Brasil de Fato não há dúvidas que uma coisa é a visão dos trabalhadores sobre a refor­ma agrária e outra é a do FMI e do mini tro da Agricultura Roberto Rodrigues ou do Deputado Ronaldo Caiado da UDR. São visões oposta. É por isso que foi criado o Brasil de Fato. Para dar sua versão dos fatos.

Há outras publicações mais restritas de vário agrupamentos da esquerda que também seguem

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esta mesma visão de criar seus próprios instru­mentos. São várias: Opinião Socialista, O Trabalho, Em Tempo, Inverta, A Verdade e outras mais.

Na história do nosso país há períodos em que a criação de instrumentos de comunicação se intensificou . Típica é a época pós-guerra (1945-1946), quando o Partido Comunista, recém le­galizado, criou dez jornais diários. Um em cada capital dos maiores Estados do País.

Era a época do famoso" Ouro de Moscou", mas isso não vem ao caso agora. O fato é que este "ouro" era muito bem usado ... para disputar a hegemonia.

Outro momento histórico onde os que dis­putavam a hegemonia com a classe dominante criaram uma vasta rede de mídia é o da explosão das greves em 1978.

A grande mídia empresarial, evidentemente, publicava o que queria, como queria e quando queria e, não podemos esquecer, mantendo seus acordos com a Ditadma Militar.

Continuavam os jornais da Imprensa Alter­nativa vendidos em bancas e nasciam novos ins­trumentos intermediários entre o trabalho de bairro e o trabalho de fábrica, com o famoso ABCD jornal. Nascem boletins regulares, como o Folha Bancária, da Oposição Bancária, em São Paulo, e boletins feitos de recortes de jornais de grande imprensa, como o mais célebre, o j ornal

dos jornais, vendido de mão em mão nas fábri­cas de São Paulo. Em sindicatos de luta, como o dos Metalúrgicos do ABC, o jornal do sindicato, Tribuna MetalúrBica, a partir das greves de 78,

passou a ter um papel cada vez mais importan­te. Foi assim que se tornou diário, e, até hoje, continua.

Além de jornais, sindicatos e Oposições sin­dicais passam, a partir de 79 a produzir muitas cartilhas, algumas delas totalmente ilustradas por militantes. Se produziam cordéis, para uma classe operária migrante vinda do norde te, para o Sul indu tTializado. Organizavam- e grupos de tea­t:ro, entro ando ainda mais a classe operária e a clas média no projeto que permanecerá atuante durant toda a década de 1980.

Evidentemente que tentava-se furar o cerco da mídia empresarial, sobretudo através de mui­tos jornalistas simpáticos aos trabalhadores que trabalhavam na imprensa empresarial e forçavam a barra para driblar o bloqueio dos patrões . Mas nem por isso se descuidava de sua própria im­prensa. Assim foram criados vários jornais sindi­cais diários , como o do Sindicato dos Bancários e dos Químicos de São Paulo e depois Bancários de Brasília e Salvador.

Esta foi a forma de lutar pela democratiza­ção da mídia naqueles anos. Ao mesmo tempo se lutava em duas frentes. Fazia-se sua própria imprensa e sua comunicação, sem pedir licença a ninguém. Ao mesmo tempo lutava-se por um país diferente onde a democratização se tornasse realidade, não só na comunicação como em toda a vida política do país.

As lições do passado podem nos ajudar na discussão e na luta do presente.

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o tema do presente texto é a relação entre dis­curso e poder. O poder censura os discursos, não permite que qualquer idéia venha à tona, mas tão-somente permite a manifestação daquelas idéias que estão de acordo com as relações de poder instituídas em uma determinada socieda­de . O discurso reproduz ou contradiz o poder, tem um caráter mobilizador, age no sentido de reproduzir ou questionar as relações de poder.

Iremos iniciar definindo os conceitos de lin­guagem e discurso. A partir da obra de Ferdinand de Saussure se tornou comum distinguir entre língua e fala (Saussure, 1995). A primeira se ca­racteriza por ser uma estrutura formal de cará­ter sincrônico e a segunda se caracteriza por ser uma manifestação concreta da linguagem. A lín­gua cumpria os requisitos para formar um objeto de estudo que poderia ser decomposto de forma "objetiva" e daí se compreender sua estrutura in­terna. Esta tese foi contestada mas ainda possui grande influência.

Rou seau afirmou que a origem da linguagem não foi provocada pelas necessidades ou pela ra­zão e sim pelas paixões, pois estas aproximam os

ildo Viana é profe or da Universidade E ta­

dual de Goiá ; doutor em Sociologia/UnB. E-mail: nildoviana@ t rra.com.br

Discurso e poder

N ildo Viana ,(-

seres humanos (Rousseau, 2003). No entanto, é difícil sustentar que os sentimentos isoladamente tenham produzido a linguagem e que a necessi­dade não tenha sido sua condição de possibilida­de, mas tal tese tenha momentos de verdade, tal como o caráter social da linguagem. Esta sw-ge para possibilitar a comunicação, que é uma ne­cessidade humana. O processo de humanização do mundo e a constituição da sociedade só se tor­nam possíveis existindo esta comunicação através da linguagem. A origem da linguagem, portanto, está ligada à necessidade dos seres humanos de realizarem uma associação. Esta necessidade de associação é tanto afetiva, como coloca Rous­seau, quanto "material", negada por ele. Neste sentido, a linguagem possui uma origem e um caráter sociais. A tese de Rousseau de que as ne­cessidades materiais criam antagoni mo entre os seres humanos não foi fundamentada por ele. O contrário é que é verdadeiro, pois, devido a sua debilidade física em comparação com os demais animais, eles precisam se a sociar para conseguir os meios de sobrevivência. A caça, por exemplo, só se tornou uma fonte de alimento graça à eficácia da a sociação dos caçadores (Moscovici, 1990).

Sabemos que a linguagem tem uma origem social ma re ta e clarecer o que la é. Segundo

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Sapir, a linguagem "é um método puramente hu­mano e não-instintivo de comunicação de idéias, emoções e desejos por meio de um sistema de símbolos voluntariamente produzidos. Entre eles, avultam primacialmente os símbolos audi­tivos, emitidos pelos chamados 'órgãos da [ala'" (Sapir, 1980 , p. 14). Este autor acrescenta que "a linguagem escrita, para empregarmos uma frase matemática, é assim uma equivalência termo a termo da sua contraparte falada. As formas es­critas são simbolos secundários das formas fala­das - símbolos de outro símbolos - mas, não obstante, é tão exata a correspondência que se podem substituir inteiramente aos outros, não apenas em teoria, mas ainda na prática atual do que só lêem com os olhos, e até talvez em certos tipo. de reflexão mental" (Sapir, 1980, p. 22).

Estes recursos simbólicos são os provenientes fundamentalmente da fala, como coloca Sapir, e também, derivado dela , os da escrita. São os recursos simbólicos utilizados na comunicação humana , isto é, os recursos gráficos e sonoro: utilizados para se realizar a comunicação entre os seres humanos. A linguagem , devido a seu ca­ráter social, está submetida ao processo social, possuindo , portanto, a mesma dinâmica , histo­ricidade e singularidade da sociedade onde ela emerge. As im, linguagem , está intimamente li­gada à sociedade na qual ela emerge, sendo que existe uma sinonímia entre linguagem e socie­dade (Fromm, 1979) . A sociedade produz uma linguagem adequada a ela, com um léxico, uma semântica, uma gramática etc. que é específica e socialmente organizada .

Nas sociedades marcadas pela divisão em clas­ses sociais antagônicas e com uma divisão social do trabalho complexa, a linguagem passa a ser per­pa sada pelos conflitos de classes (Bakhtin, 1990) e pelo que alguns estudiosos chamam de "estrati­ficaçõe ociais da língua" (Guiraud, 1976). A luta de classes que perpassa a linguagem se dá em tor­no do significado da palavras e dos demais igno utilizados na comunicação humana. A classe do­minante po ui o interes e em emperrar um livre de envolvimento da con ciência humana além de

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um determinado limite . Ela busca, de forma às vezes inintencional , impor sua ideologia, suas concepções, sua mentalidade. As demais classes sociais buscam resistir e as classes exploradas es­boçam uma linguagem diferenciada. Entretanto, a diferença de linguagem ocorre no interior de uma totalidade, ou seja, a diferença vem acompa­nhada por uma semelhança.

O semelhante é a língua e a escrita que em uma determinada sociedade é comum a toda as classes sociais e a diferença se dá em aspectos que produzem uma divisão no interior de uma mes­ma linguagem . No interior de uma mesma lin­guagem (não se confundindo esta com uma ideo­logia) é possível se criar concepções de mundo diferentes. Embora a linguagem seja um obstácu ­lo para o desenvolvimento de uma mentalidade antagônica à concepção de mundo dominante, ela permite que isto ocorra exatamente por que possui brechas que possibilitam sua transfor­mação. Apesar da língua-padrão (ou "culta") ser imposta socialmente pelo E tado e instituições auxiliares, e pecialmente a escola (Viana , 2004), existe uma língua diferenciada, chamada de lin­guagem coloquial (ou popular).

Segundo Bakhtin: "classe social e comunida­de semiótica não se confundem. Pelo segundo termo entendemos a comunidade que utiliza um único e mesmo código ideológico de comunica­ção. Assim , classe sociais diferentes servem-se de uma só e mesma língua. Conseqüentemente, em todo siano ideolóaico confrontam-se índices de va­

lor contraditórios. O signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes. Esta plurivalência social do signo ideológico é um traço da maior importância. Na verdade , é este entrecruzamen­to dos índices de valor que torna o signo vivo e móvel, capaz de evoluir" (Bakhtin, 1990, p. 46).

Em toda sociedade dividida em classes so­ciais existe uma mentalidade e uma ideologia dominantes e e ta produzem uma atribuição de sentido às palavras que também é dominan­te. Mas o fato d haver uma atribuição de sen­tido dominante significa que existe atribuição (ou atribuições) de sentido não-dominante(s)

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ou dominada(s). Neste sentido, a "plurivalência do signo", segundo Bakhtin, ou a "polissemia da palavra", segundo Robin (1977), expressam esta visão de que existe um processo de significação e ressignificação das palavras e que tal processo é marcado pelas relações e lutas sociais.

A linguagem, por conseguinte, não é neutra e é fundamental saber disto para se compreender a mensagem veiculada por intermédio da lingua­gem. O caráter social da linguagem repercute sobre a análise da linguagem e sobre as explica­ções desta. A partir do reconhecimento do cará­ter social da linguagem se torna insustentável os procedimentos analíticos da lingüística estrutu­ralista de Saussure, pois ela se revela meramen­te formal e descritiva, enquanto que uma teoria deve ser explicativa. O conceito de linguagem é muito amplo, pois ele se refere a todos os re­cursos simbólicos (gráficos e sonoros) existentes em uma sociedade para viabilizar a comunicação humana. A linguagem, numa sociedade de classes é perpassada pela polissemia.

O discurso não pode ser definido da mesma forma e isto se deve a três motivos principais:

1) O discurso e a linguagem não são a mesma coisa pelo motivo de que a linguagem é princi­palmente um meio de expressão enquanto que o discurso é fundamentalmente expressão. Em outras palavras, o discurso se manifesta através da linguagem e a linguagem é o meio de mani­festação do discurso. Todo discurso é transmitido através da linguagem mas a linguagem pode ser portadora de diversos discursos.

2) Linguagem e discurso, numa sociedade classista, se distinguem pelo fato de que a pri­meira é polissêmica (e é por isso que ela pode ser portadora de diversos discursos) e o segun­do é unissêmico, ou seja, possui uma coerência semântica. Se na linguagem ,uma palavra po sui significados diferentes dependendo de quem a profere, no discurso só existe um significado próprio que pode, em certos casos, conviver com diversos significados alheios. Tomemo:; um exemplo: a palavra economia. Esta palavra pode possuir diver os ignificados na linguagem

corrente mas no discurso só pode po suir um significado próprio. Na linguagem corrente esta palavra: a) Produção: este entido da palavra pode ser encontrado em frases do tipo: "o nosso obje­tivo é estudar a economia (produção) política do signo"; b) Ciência Econômica: tal significado está presente neste tipo de frase: lia economia (ci­ência econômica) tem como objeto de estudo a distribuição de riquezas"; c) Poupança: vê-se este significado expresso nesta frase: "o governo fez uma grande economia (poupança) este ano"; d) Modo de Produção: este significado pode ser ob­servado nesta frase: "a economia (modo de pro­dução) determina, em última instância, toda a superestrutura jurídica, política e ideológica da sociedade"; e) Forma de Organização Produtiva e/ ou

Distributiva das Riquezas: é neste sentido que se entende afirmações do tipo "em uma economia (forma de organização produtiva e distributiva) de mercado predomina a lei da oferta e da pro­cura"; 1) Curso de Economia: tal como se percebe na frase, "ele fez economia (curso de economia) na Universidade de Brasília".

Portanto, observamos que uma palavra na linguagem corrente pode ter mais de um signi­ficado. Em um discurso a mesma palavra pode ter mais de um significado, pois ele é composto por elementos internos e externos. Os elemen­tos internos são a parte do discurso que apresen­ta suas características próprias, as atribuições de significado que lhes são próprias, os elementos constituídos pelo próprio discurso. Os elemen­tos externos são elementos auxiliares extraídos da linguagem existente (tradição, cultura popu­lar etc.).

Isto pode ocorrer sob diversas formas. Um elemento auxiliar pode se transformar em um elemento interno no decorrer do proces o de formação de um discurso. A palavra "entretanto" é em todos os discursos um elemento auxiliar mas se um filó ofo criar uma "filosofia do en­tretanto" e fazer divagações sobre esta palavra e lhe atribuir um significado mai amplo do que o comum, então ela se torna, no discurso des­te filósofo, um elemento interno. A expres ão

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"clareira", por exemplo, é uma palavra comum e que na maioria dos discursos geralmente assume a posição de elemento externo, mas na filoso ­fia de Heidegger isto se altera e a palavra ganha um significado e importância que lhe torna um elemento interno do seu discurso. Outro caso é quando num determinado grupo social uma pa­lavra possui um significado bastante difundido e alguém realiza uma ressignificação ou mutação de sentido da palavra mas mantém o uso da pa­lavra no sentido tradicional. É isto que ocorreu com a palavra alienação no discurso de Marx: ele utilizou o termo alienação no sentido tradicional que lhe era atribuído na filosofia alemã (princi­palmente por Hegel e pelos neo-hegelianos) em revezamento com O sentido novo que ele mesmo atribuiu ao termo (Viana, 1995).

O conjunto dos elementos internos de um discurso forma a sua estrutura. O conjunto de elementos auxiliares (externos) forma a sua con­

juntura . A estrutura do discurso é composta por seus elementos intrínsecos e permanentes e a conjuntura por seus elementos auxiliares, reti­rados da linguagem cotidiana ou de outros dis­cursos, e passageiros, não sendo parte fixa do discurso. As unidades do discurso (as palavras, os conceitos, as noções etc.) são estruturais ou con­junturais. O caráter destas unidades (estruturais ou conjunturais) e o seu sentido são definidos de acordo com a estrutw"a do discurso, ou o que podemos chamar de contexto discursivo . Mas este papel das unidades do discurso pode ser altera­do com o desenvolvimento deste discurso. En­tretanto, e é aqui que reside uma das diferenças fundamentais entre linguagem e discurso, pois neste último um termo só pode ter um significa­do estrutural e é aí que encontra-se o seu caráter unissêmico. O discurso é unissêmico em sua es­trutura , embora possa ser polissêmico em seus elementos auxiliares (conjuntura).

3) O discurso não é tão amplo quanto a lin­guagem. A fronteira que separa a linguagem e o discurso não é muito fácil de se ver mas, devido ao que foi dito anteriormente, podemos colo­car o seguinte: a linguagem pode ser subdividida

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(linguagem religiosa , científica, popular etc.) e subdividida (as linguagens especializada no inte­rior da ciência, por exemplo) e isto significa que nela convive o geral e o particular, mas o discurso só enfatiza o que é particular. Na linguagem há a heterogeneidade e no discurso há a homogenei­dade. Na linguagem em geral há a polissemia e no discurso há apenas a unissemia, pelo menos em sua estrutura

O discurso é uma forma particular de ma­nifestação da linguagem e é desta particularidade que vem sua definição e distinção. Uma das pri­meiras tentativas de definição de discurso , entre as poucas, foi a de Émile Benveniste: "deve-se en­tender por discurso em sua extensão mais ampla: toda enunciação que pressupõe um locutor e um ouvinte e, no primeiro, a intenção de influenciar o outro de algum modo." (apud. Kuroda, 1983, p. 121) Para Foucault, o discurso é "um conjun­to de enunciados que se remetem a uma mesma formação discursiva" (apud . Brandão, 1997, p. 28). Pêcheux, por sua vez, opõe sistema da lín­gua e discurso: "o sistema da língua é, de fato, o mesmo para o materialista e para o idealista, para o revolucionário e o reacionário, para aquele que dispõe de um conhecimento dado e para aquele que não dispõe desse conhecimento. Entretanto, não se pode concluir, a partir disso, que esses di­versos personagens tenham o mesmo discurso:

a língua se apresenta, assim, como a base comum de processos discursivos diferenciados, que estão compreendidos nela na medida em que ( ... ) os processos ideológicos simulam processos cientí­ficos." (Pêcheux, 1988 , p. 91).

Estas definições possuem seus momentos de verdade, mas não dão conta de oferecer uma de­finição adequada de discurso. Benveniste define o discurso pela existência de uma interlocução na qual o locutor busca influenciar o ouvinte. A interlocução é uma característica da comu­nicação humana e por is o não pode caracteri­zar o discurso, uma modalidade específica de sua manifestação. O elemento complementar, a persuasão, é característico de alguns discursos (político, religioso etc.) mas não de todos, como

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no exemplo do discurso de pessoas indecisas ou sobre assuntos desconhecidos. A concepção fou­caultiana, por sua vez, dilui o discurso na "for­mação discursiva", uma abstração metafísica. A definição de Pêcheux, por sua vez, parte de uma separação metafísica entre língua e discurso, que mantém a dicotomia saussuriana entre uma es­trutura formal invariante, a língua, e suas mani­festações concretas, a fala. O discurso estaria no segundo caso, o que demonstra que Pêcheux não percebeu que o primeiro caso só existe na con­cepção ideológica de Saussure e nunca na rea­lidade concreta.

Assim , o discurso é uma manliestação con­creta e delimitada da linguagem. As suas partes constitutivas são a estrutura e a conjuntura e o caráter de sua estrutura é unissêmico. Isto quer dizer que o discurso é algo concreto e de­limitado, é sempre o discurso de um autor, de uma escola, de um grupo social etc., que possui uma estrutura unissêmica e é uma totalidade . As­sim, o discurso é uma manliestação particular e concreta da linguagem que possui uma estrutura unissêmica, sendo, pois um todo coerente e or­ganizado, embora o nível de coerência e organi­zação varie dependendo do discurso.

Um discurso é sempre o discurso de alguém. Ele é a manifestação de um ser consciente - a consciência, segundo Marx, não é nada mais do que o ser consciente, um ser social (Marx e En­gels, 1992) - por conseguinte, o indivíduo ou grupo que profere o discurso sempre o faz a partir de sua posição no conjunto das relações sociais e da forma como concebe sua posição. O discurso é constituído socialmente e para desco­brir seu processo de produção é preciso compre­ender o seu produtor. O discurso não é uma "en­tidade abstrata", mera peça de uma unidade mais ampla chamada "formação discursiva", como em Foucault, e sim uma manifestação concreta da linguagem mas não é derivado e constituído pela linguagem e sim pelos seres sociais que usam a linguagem sob uma forma concreta e particu­lar. Pensar que o discurso é um produto da lin­guagem ao invé dos seres sociais (mesmo que a

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linguagem crie obstáculos para a livre manifes­tação deles) é nada mais do que uma concepção fetichista da linguagem.

A formação de um discurso depende do con­

texto social e do contexto cultural. A condição de possibilidade de um discurso depende fundamen­talmente do contexto social, depende das trans­formações ou contradições existentes no con­junto das relações sociais . Este contexto social é o conjunto das relações sociais no qual emerge aquele que profere o discurso a partir de sua po­sição em tal contexto, o que implica tudo que é derivado daí (interesses, valores etc.). As condi­ções de possibilidade do discurso científico (que, por sua vez, carrega uma multipliCidade de dis ­cursos no seu interior) estão ligadas ao processo histórico de constituição da sociedade capitalis­ta. A ascensão do capitalismo trouxe consigo um enorme desenvolvimento das forças produtivas e a necessidade de aumentar o controle sobre o meio ambiente visando a maximização do lucro (o que proporciona o desenvolvimento das ciên­cias naturais) e sobre a sociedade para conservá­la e lhe permitir um desenvolvimento estável (o que proporciona o desenvolvimento das ciências sociais). Isto significa que é a luta de classes em um determinado período histórico que torna possível a formação do discurso científico. Mas uma vez instituído, o discurso tende a se cris­talizar, tal como a sociedade que lhe produziu, tal como Fromm (1979) destacou se referindo à linguagem.

Entretanto, para que esse discurso possa existir é necessário também o contexto cultu­ral. Ora, o discurso científico não poderia sur­gir imediatamente do contexto social, pois é necessário a mediação de formas de pensar, de palavras, de concepções . A sociedade capitalista surge dos escombros da sociedade feudal mas a ciência não poderia derivar diretamente da teo­logia, que era a forma dominante de ideologia dominante no feudalismo. O combate entre bur­guesia e nobreza feudal forjou a armas culturais que a primeira utilizaria para a combater a segun­da e posteriormente formar sua própria forma

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de ideologia e seu próprio discurso. Estas armas foram retiradas da sociedade escravista que havia criado a filosofia (Viana, 2000). O renascimento e o iluminismo produziram o contexto cultural necessário para a superação da teologia e a for­mação da ciência. Além disso, há a fonte repre­sentada pelos elementos apontados por Fromm, a língua e suas características próprias, que, devi­do sua homologia com a sociedade que a produz, também cria determinações na formação de um discurso.

Portanto, O contexto social e o contexto cul­tural formam as condições de possibilidade de formação de um discurso. Mas ambos são formas de expressão da luta de classes e isto significa que as condições de possibilidade de um discurso es­tão indissoluvelmente ligadas ao desenvolvimen­to histórico das lutas de classes e cada discurso corresponde ao interesse de uma ou outra classe em luta. Ou seja, não se pode deixar de lado o fato de que o discurso é um produto social, isto é, uma produção dos indivíduos que pertencem a determinados grupos sociais. Assim, O processo de constituição de um discurso possui "múltiplas determinações", sendo que o contexto social é sua determinação fundamental e o contexto cul­tural sua determinação formal, embora exista uma influência recíproca entre ambos. Mas isto é realizado efetivamente pelos indivíduos, seres humanos concretos, que através de seu proces­so histórico de vida são formados por estes con­textos mas através da especificidade de cada vida individual, O que permite múltiplas formas de discursos, principalmente derivados de grupos sociais nos quais eles estão inseridos ou envolvi­dos, fundamentalmente nas classes sociais (Marx & Engels, 1992).

As partes constitutivas do discurso, a estru­tura e a conjuntura, possuem os termos (pala­vras, noções, conceitos etc.) como unidades constitutivas. Na estrutura do discurso a ligação entre os termos ocorre de forma articulada e na conjuntura de forma desarticulada. Esta articu­lação pode ser espontânea ou planejada. A estru­tura do discurso é unissêmica e a conjuntura é

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polissêmica e ela pode ser coerente ou não com a estrutura. Em alguns discursos predominam a es­trutura e em outros a conjuntura, dependendo do seu nível de articulação e organização. O sentido das palavras estruturantes do discurso devem ser descobertas na sua articulação interna e o sentido das palavras conjunturais do discurso remete ao seu papel na totalidade do discurso. Em outras palavras, para se compreender o sentido de uma palavra é preciso nos remeter ao contexto discur­

sivo no qual tal palavra está inserida. Portanto, para se entender a unidade do discurso é preciso compreender sua totalidade e para se compre­ender esta é necessário compreender aquela. Quando se focaliza as unidades do discurso (os termos) se faz um estudo semântico e quando se focaliza sua totalidade (estrutura, conjuntu­ra) se faz uma análise do discurso. Entretan ­to, ambos procedimentos são necessários e se complementam.

Entretanto, um discurso é estruturado no in­terior de um contexto social e cultural , sendo, pois, perpassado pela luta de classes e sendo as ­sim a totalidade do discurso está inserida numa totalidade mais ampla, que é a totalidade da so­ciedade que lhe produz e determina. Este é um ponto essencial para a compreensão do discurso e, portanto, para a sua relação com o poder.

Como se manifesta a luta de classes no dis­curso? Ele se manifesta de acordo com as rela­ções de poder na sociedade, o que significa que existe a supremacia da classe dominante, que se manifesta sob várias formas. Iremos destacar tal supremacia para depois apontar para o proces­so de resistência realizado pelas classes explo­radas.

A relação entre discurso e poder foi analisada por diversos autores, sendo que alguns destes se referem ao discurso propriamente dito, outros abordam a linguagem. Porém, consideramos que a discussão referente ao problema da linguagem e poder pode se aplicar ao ca o particular do dis­curso e por isso iremos apresentar ambos os ca­sos quando julgarmos que a análise da linguagem se aplica ao discurso.

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A análise do discurso busca superar a concep­ção apresentada pela lingüística estruturalista, entendendo-o como uma ação social, realizada por um "sujeito" (indivíduo, grupo social etc), que é quem profere o discurso. Ele não é autôno­mo e nem é neutro. Todo discurso é discurso de alguém e a compreensão das razões do discurso nos leva a buscar compreender quem o proferiu e em que condições sociais ele foi produzido.

Estas idéias estão presentes nas abordagens da lingüística que estão mais próximas de uma perspectiva sociológica, em especial a teoria da enunciação - tal como representada por Bakhtin (1990) - e da anál ise do discurso. Bakhtin irá tra ­zer para a esfera da linguagem a idéia de luta de classes rompendo com a idéia de pretensa ino­cência do discurso, pois ele é perpassado (até em suas unidades mais simples, tal como o signo) pe­los conflitos de classes, possuindo caráter social e estando intimamente ligado com as relações de poder na sociedade.

A análise do discurso nos trará diversas con­tribuições. Esta se caracteriza, entre outras coi­sas, em romper com a dicotomia rígida entre língua (estrutura invariante da linguagem) e fala (manifestação concreta da linguagem) inaugu­rada pela lingüística estruturalista de Saussure: "embora reconhecendo o valor da revolução lin­güística estruturalista provocada por Saussure, logo se descobriram os limites dessa dicotomia pelas conseqüências advindas da exclusão da fala do campo dos estudos lingüísticos." (Brandão, 1997, p. 9).

O discurso é produzido e reproduzido social­mente e seu estudo, portanto, deve incorporar não apenas ua estrutura formal mas principalmente o seu caráter social. Porém, nem sempre os adep­tos da análise do discurso conseguiram efetivar este projeto. Coube à chamada "escola france a da análise do discurso" levar esta perspectiva até suas últimas conseqüências e isto proporcionou, segundo Brandão (1997), a demolição do muro que eparava lingüística e ociologia.

A escola francesa de análise de discurso na -ce da tentativa de articulação entre lingüí tica,

marxismo e psicanálise e tem como característi­ca articular "o lingüístico com o social" (Brandão, 1997, p. 17), trabalhando de forma interdiscipli­nar ao tomar em consideração as contradições de diversas ciências humanas (história, sociolo­gia, psicologia etc.). A análise do discurso busca se distinguir das demais correntes da lingüística e para fazer isto deve incluir novas dimensões, tal como colocou Maingueneau (apud. Brandão, 1997), a saber: a instituição onde o discurso é produzido; os embates históricos, sociais etc. que se cristalizam no discurso; o espaço próprio que cada discurso configura para si mesmo no interior de um interdiscurso.

A relação entre discurso e poder foi enfatiza­da por Foucault, que exerce uma grande influên­cia sobre a escola francesa de análise do discurso. Para Foucaul t, "em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecio­nada, organizada e redist:ribuída por certo núme­ro de procedimentos que têm por função conju­rar seus poderes e perigos, dominar seu aconte­cimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade." (Foucault, 1996, p. 8-9).

Assim, o poder impede a manifestação livre do discurso. Cria um processo de exclusão atra­vés da interdição e também (no caso da oposição entre razão e loucura) da separação e rejeição. Porém, não devemos esquecer as diferenças en­tre Foucault e outras abordagens do discurso, tais como as de Bakhtin e algumas tendências da análise do discurso. Foucault apresenta uma concepção metafísica de poder (Viana, 2000), pois ele está difuso na sociedade e está em todo lugar, sendo mais uma relação do que uma pro­priedade (Foucault, 1986; Foucault, 1983). Em Bakhtin existe o poder, mas ele não é autônomo e sim a incorporação da dominação de classe que também se encontra na esfera do discurso. De qualquer forma, a relação que Foucault faz entre discurso e poder - que pode muito bem ser inte­grada numa concepção conflitual fundamentada na luta de ela se - é de fundamental importân­cia para e compreender o engendram nto de um di cur o no interior de uma in tituição.

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Segundo Foucault, toda forma de saber é produto das relações de poder e um "novo po­der" gera um "novo saber". Assim se pode dizer que o poder sobre os "loucos" gera a psiquiatria, o poder exercido sobre os estudantes a pedago­gia etc. Assim, Foucault nos oferece concretici­da de quando se trata de "discursos específicos", aqueles que são produzidos e reproduzidos em . determinadas instituições. Portanto, segundo a abordagem foucaultiana, o discurso é produzido no interior de uma instituição e por isso possui características próprias em cada instituição. Isto significa que existem formas de discurso que cor­respondem a formas de poder. Temos as institui­ções sociais que criam e controlam determinadas formas de discurso e impedem a manifestação de outras formas.

Fromm (1979) nos oferece, através de sua tentativa de síntese do pensamento de Marx e Freud e de sua contribuição original, alguns ele­mentos para pensarmos a censura na esfera do pensamento, da consciência. Para Fromm, toda sociedade apresenta um filtro social que permite a consciência de determinadas experiências ou não. Isto quer dizer que tal filtro social é con­dição de possibilidade do discurso e simultanea­mente o seu censor, ou seja, ele não só deter­mina o que pode e deve ser dito como também o que não deve e não pode ser dito, sendo, ao mesmo tempo, coercitivo e repressivo, positivo e negativo.

Fromm coloca três elementos que segundo ele compõem e te filtro social. O primeiro elemen­to é o sistema conceitual produzido em deter­minada ociedade. Fromm afirma que qualquer experiência precisa, para poder chegar à consciên­cia, manife tar-se de acordo com a categorias que organizam o pensamento. A consciência se organiza a partir de categorias com a quai or­ganizamos nossas percepções. Para Fromm, "al­guma dessas categorias, como tempo e espaço, podem er univer ais, e constituir categorias de percepção comun a todos o homens. Outra , como a cau alidade, podem ser válidas para mui­ta , mas não para todas as formas de percepção

60 História & LUt1 de Classes

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consciente. Outras categorias são ainda menos gerais e diferem de cultura para cultura. Numa cultura pré-industrial, por exemplo, as pessoas podem não atribuir a certas coisas um valor co­mercial, ao passo que no sistema industrial is O

não ocorrerá" (Fromm, 1979, p. 110-111). Tal sistema conceitual é um produto histórico, pois "toda sociedade, pela sua prática de vida e pelo seu modo de relações, de sentir e perceber, de­senvolve um sistema, ou categorias, que deter­minam as formas de percepção, ou consciência. Esse sistema trabalha, por as im dizer, como um filtro socialmente condicionado: a experiência não pode atingir a consciência se não se atraves­sar esse filtro" (Fromm, 1979, p. 110-111).

Outra censura é a que ocorre em certas cul­turas, que, segundo Fromm, a língua não fornece expressão para determinados fenômenos. Outro elementos seletivos e censura dores da língua se encontra em sua sintaxe, sua gramática e pela etimologia de suas palavras. Segundo Fromm, retomando Whorf, "a totalidade da linguagem representa uma atitude de vida, é uma expressão congelada da experimentação da vida de um cer­to modo" (Fromm, 1979, p. 112). Fromm cita como exemplo a preferência, em nossa socieda­de, por substantivos ao invés de verbos, pois es­tes expressam atividades e aqueles propriedades, o que está de acordo com uma sociedade em que o ter (sociedade fundada na propriedade priva­da, na acumulação e no consumismo) predomina sobre o ser.

A lógica é outro filtro social, pois é conside­rada como "natural e universal", sendo nada mais que expressão de determinada formação ocial. Este é o caso da lógica aristotélica (formal) que predomina em nossa sociedade e que ubordina as outras formas lógicas, tal como a lógica para­doxal (dialética), fazendo com que o princípio da identidade reine ab oluto e ao me mo tempo ob cureça o princípio da contradição.

O terceiro elemento do filtro ocial, e mais importante, é constituído pelo "tabus sociais". Ele apre entam determinada idéia e entimen­tos como endo impróprio , perigoso , proibido

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e os impedem de chegar ao nível da consciência. Desta forma, segundo Fromm, a consciência so­fre uma censura da língua, da lógica e dos tabus sociais.

Assim, vemos concretamente o processo de censura da consciência. O indivíduo está sub­metido aos limites impostos por sua língua, sua lógica e pelos tabus sociais. Possui uma dificulda­de lingüística e lógica de manifestar um discurso diferente e ainda tem os tabus sociais que repri­mem as tentativas de se desvencilhar dos dois primeiros obstáculos anteriores. Podemos dizer que estes elementos presentes na consciência também estão presentes nas formas de discurso existentes em nossa sociedade.

O discurso é sempre um determinado dis­curso. A classe dominante predomina em todas as instituições sociais, comandando O processo de produção e reprodução do discurso. O dis­curso científico, o discurso político, o discurso religioso etc., são controlados por aqueles que detêm o poder. O discurso científico, por exem­plo, possui seu mecanismo de censura, pois não é qualquer discurso que consegue o status de cien­tífico e nem que atinge a legitimidade em sua es­fera. O discurso científico delimita o seu campo de atuação e se auto-define, excluindo tudo o que escapa da camisa de força que ele produz. A ciência passa a ser cercada de um conjunto de critérios definidores, técnicas, objetivos, formas de procedimento, que tem o efeito de impedir a manifestação de um discurso crítico. A epistemo­logia e a metodologia são partes deste processo de interdição no discurso científico. Para muitos, por exemplo, o marxismo e a p'sicanálise, devido ao caráter subversivo do primeiro e do potencial crítico do segundo, não são discursos científicos, pois, para uns, não são "neutros" e, para outros, não podem ser "refutados" por pesquisas empíri­cas (não há como refutar a teoria do valor-traba­lho ou a teoria do inconsciente através de dados empíricos). A interdição do discurso marxista e psicanalítico vem acompanhada pela rejeição de tes e outras formas de discurso. Mas além disso atua a legitimação de uma forma de aber

pelos especialistas nele, tal como colocou Bour­dieu. O discurso científico não serve somente à classe dominante mas também aos especialistas que o produzem.

Bourdieu também considera que existe uma homologia entre o campo da produção ideoló­gica e o campo da luta de classes, sendo que o primeiro realiza uma "eufemização" do segun­do, realizando "uma imposição mascarada", não percebida nem pelos seus produtores. Assim, o discurso especializado reproduz as taxinomias políticas sob um sistema de classificação aparen­temente neutro e legítimO (filosófico, jurídico, religioso etc.). No caso específico do discurso científico, temos uma disputa na comunidade científica que define o que é ciência e o que é legítimo (Bourdieu, 1994). Nesta disputa, o dis­curso científico se assume enquanto "verdadei­ro", "objetivo", criando a ilusão da "ausência do sujeito" (Greimas, 1976).

No entanto, a resistência também ocorre na esfera do discurso. A resistência se forma a partir tanto do interior do próprio discurso dominante (científico, religioso, jurídico, artís­tico etc.) como também contra ele. No primei­ro caso, muitas vezes o discurso crítico acaba sucumbindo e sendo assimilado pelo discurso dominante e, no segundo, ele é marginalizado socialmente, pois se institui fora das instituições sociais. Um exemplo do primeiro caso podemos encontrar no marxismo e sua relação com o discurso científico. O discurso científico possui uma formação conservadora por natureza, ex­pressa em alguns de seus princípios, tais como O da neutralidade, mas também em outros ele­mentos, como sua identificação com O empírico, retirando da análise do real a categoria de possi­bilidade, e, por conseguinte, a sua historicidade. O marxismo, ao contrário, nega a neutralidade (considerando-a impossível e ao mesmo tempo indesejável em certos casos, pois o que é obs­táculo ao desenvolvimento da con ciência não são os valores em si e sim determinados valo­res, e pecialmente o valore burgue e ) e coloca como fundamental a categoria da po ibilidade e

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a historicidade do real. No entanto, o marxi mo acabou penetrando nas instituições acadêmicas e aí houve uma verdadeira luta cultural, onde, de um lado, os representantes das instituições e dos interesses da classe dominante buscaram rejei­tar o marxismo ou assimilá-lo, transformando-o em mais uma forma, entre outras, de discurso científico. É assim que Marx se torna um "clá si­co da sociologia" sem nunca ter sido sociólogo, bem como da economia, da ciência política, da filosofia (e aqui reside mais uma diferença entre marxismo e ciência - oficial-, pois ele ao buscar abarcar a totalidade da vida social, torna todo o existente como seu domínio temático, não ca­bendo, tal como colocou Korsch (1977), em ne­nhuma das "gavetas" entre as intituladas ciências humanas, pois ele "passeia" por todas). Ele foi integrado ao discurso dominante ou rejeitado, como não-científico.

O próprio marxismo teve consciência disto e isto foi expresso através de diversas formas. Para alguns, como Kautski (1980), tratava-se de dis­tinguir entre "ciência burguesa" e "ciência prole­tária", bem como para vários pensadores do fim do século 19 e início do século 20. Esta solução, aparentemente agradável, pois atraía para o mar ­xismo O status (socialmente super valorizado) de ciência e ao mesmo tempo o distinguia da ideo­logia científica burguesa, apenas facilitou o pro­cesso de assimilação do marxismo pelo discurso dominante. Foi isto que permitiu o surgimento do chamado "marxismo acadêmico", inteiramen­te subordinado ao discurso científico e, portanto, já totalmente assimilado pelo seu adversário. Daí na ceu a nova resi tência, já esboçada por Karl Kor ch, que já afirmava que o marxismo não po­deria ser considerado uma ciência, no "sentido

burguê do termo" . Assim, o di curso contestador existe e às ve­

zes é ubordinado ao discur o dominante, per­dendo sua radical idade , às vezes resiste e cai na marginalidade, à veze faz compromis o e rea­liza uma crítica parcial. Ele pode surgir ob di­v r as forma po uir um nível mai ou m nos el vado de articulação e complexidade (tal como

62 História & Luta de Classes

no exemplo do discurso religioso contestador presente nas rebeliões camponesas na época de transição do feudalismo para o capitalismo).

Resta destacar o caráter mobilizador do dis ­curso. Sem dúvida, a relação entre discurso e po­der não pode ser vista apenas p~rtindo da visão de como as relações de poder constituem o dis ­curso, mas é preciso perceber também como O

discurso reproduz e assume, ele mesmo, a forma

de uma relação de poder. O discurso como sinal de distinção e superio­

ridade social foi analisado por Bourdieu em seus vários escritos. Outros colocaram que o discur­so científico produz práticas, técnicas e tecnolo­gias que reproduzem o poder (Marcuse, 1982; Habermas , 1988). Mas esta análise do discur o científico se aplica também ao discurso religio­so e a história é pródiga em mostrar o que um discurso pode fazer, tanto no sentido da conser­vação quanto da transformação. Neste sentido, "saber é poder", tal como disse Bacon, mas em um duplo sentido.

No entanto, o próprio discurso pode ser uma manifestação do poder. O discurso cen­surador, por exemplo, é uma manifestação do poder. O discurso é censurado, mas não todo discurso, assim alguns discursos (e podemos dizer que alguns elementos gerais em todos os discursos), principalmente aqueles produzidos por indivíduos das classes exploradas e grupos oprimidos. O discurso dominante não sofre tan ­ta censura e, na maioria das vezes, é censurador. O discurso censurador impede a manifestação de outros discursos, cria determinados discursos e impede/produz determinadas ações.

Assim, O discurso é não só limitado por quem detém o poder, ma ele é reprodutor do poder e uma de suas forma de manife tação. No entan­to, não é todo o discurso , mas sim o discurso de

quem detém o poder. O di curso dos explorado e oprimidos pode e muita veze é um discurso emancipador, quando ele rompe com a cen ura do di cur o dominante ele se transforma num

meio de libertação. Por con eguinte, é preciso aber qual di cur o e de quem é o discurso para

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saber de suas tendências, reprodutoras do poder ou questionadoras dele. O discurso de Marx so­bre a Comuna de Paris, por exemplo, é emanci­pador, libertário. Por isso, O discurso pode tanto ser um reprodutor do poder como ser crítico do poder, bem como ser manifestação do poder ou manifestação da luta contra o poder.

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De volta ao fardo do homem branco: o novo imperial ismo e suas justificativas culturalistas

Rudyard Kipling, poeta britânico nascido na Ín­dia, foi uma das vozes mais ativas a celebrar as glórias do Império. Seu poema mais conhecido sobre o tema, cujos versos iniciais servem de epígrafe a este artigo, intitula-se "O fardo do ho­mem branco" e tem como subtítulo "Os Estado Unidos e as Ilhas Filipinas". Portanto, trata-se de um apoio explícito às políticas imperialistas dos EUA que, em 1898, na Guerra Hispano-ameri­cana, tomaram as colônias espanholas no Caribe e no Pacífico. Nas Filipinas, após a expulsão dos espanhóis, seguiu-se uma guerra entre as tropas estadunidenses e as forças políticas filipinas que não aceitaram se submeter aos novos senhores. A Guerra Filipino-Americana perdurou oficial ­mente de 1899 a 1902, mas na verdade a resis­tência persistiu por pelo menos mais uma década. Como resultado de uma guerra que foi denun­ciada na época como extremamente selvagem e cruel com os nativos, 250 mil filipinos foram mortos, a maior parte deles civis, assim como 4.200 soldados norte-americanos. Incêndio de aldeias, enforcamentos em massa, tortura, maus

• Doutora em Antropologia Social pelo Museu

Nacional! UFRJ; professora do departamento de

Hi tória da Univer idade Federal Fluminense.

Adriana Facina ,t-

tratos infringidos a mulheres e crianças foram al­gumas das práticas que caracterizaram a atuação do "homem branco" no arquipélago filipino. 1

A idéia de que a missão civilizadora sobre as populações não brancas submetidas aos impérios coloniais era o fardo do homem branco se apoia­va largamente nas teorias raciais que grassavam no campo científico europeu e norte-americano na virada do século XIX para o século XX. De acordo com Catherine Coquery-Vidrovitch, foi o naturalista Buffon (1707-1788) o primeiro a introduzir, em sua HistoiTe NatuTelle, o conceito de raça, ainda que explicasse as variações físicas e de costumes das diversas populações humanas a partir do clima. De modo geral , no pensamento do século XVIII, esse tipo de teoria para explicar a diversidade humana se apoiava em três crité­rios de diferenciação: o clima, a cultura e a raça . Já no século XIX, principalmente a partir da pu­blicação da obra de Charles Darwin, A oTigem das

espécies, em 1859, o critério racial passa a domi­nar. Esse fenômeno se relaciona com a expansão da conquista imperialista na segunda metade do século:

I Editorial da Month1y Review de novembro de 2005,

retirado do site www.reistir.info/mreview/editorial

mr _novO 3. html

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"O drama foi que, graças à onda da expan­são colonial da segunda parte do século, a re­velação da seleção natural das espécies, que envolve conquista, dominação e destruição, foi transposta para o curto prazo pelos soció­logos darwinianos: na selva das lutas entre classes, nações e raças, tornava-se normal e justificado não só que os vencedores domi­nassem os povos inferiores, mas também que os eliminassem em benefício da sobrevivên­cia da espécie humana a longo prazo."2

o racismo serviu assim como justificativa ideo­lógica para associar o domínio colonialista, a con­quista e subjugação de povos não-europeus com uma missão civilizadora, ligada aos valores do pro­gresso econômico, do avanço científico, da ordem política liberal e do cristianismo. Esses eram os valores que a propaganda imperial alegava serem levados aos nativos da África e da Ásia, selvagens, desorganizados, atrasados, pagãos e incapazes de se auto-governarem. Eles serviam tanto para le­gitimar a "ajuda" dos que se sujeitavam quanto a repressão daqueles que se colocavam contra o co­lonialismo. Nas palavras da autora citada:

"Esse impulso foi acelerado e sustentado, en­tre 1885 e a Primeira Guerra Mundial, por uma propaganda imperial que lançou mão de todos os recursos. Enquanto a imprensa colonialista e missionária se obstinava em demonstrar a crueldade e a ignorância dos povos a conquistar, os quais era preciso sal­var da antropofagia e da escravidão e atrair à civilização, a relativa facilidade da conquista alimentou o desprezo por essas hordas inca­pazes de se defender, reforçando ainda mais os preconceitos raciais pelo sentimento de superioridade da 'raça branca'. Ela também permitiu justificar sem grande custo a re-

2 COQUERY-VIDROVITCH, Catherine. "O postulado

da uperioridade racial branca e da inferioridade ne­gra." In: FERRO, Marc (org.). O livro neaTO do colonialis­

mo. Rio de Janeiro, Ediouro, 2004, p. 766.

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pressão feroz às principais revoltas do colo­nizados: a de Bugeaud na Argélia em 1845-6, a das guerras maoris na Nova Guiné nos anos 1850, a da revolta dos sipaios na Índia em 1857, até o massacre dos hererós do sudoes­te africano pelos alemães, em 1904-1907, e a eliminação dos aborígenes da Austrália."3

N o entanto, embora o racismo fo se muito influente e tivesse estatuto pseudo-científico na virada do século e no início do século XX, algu­mas vozes já se elevavam para criticar a noção de raça. Para os propósitos deste trabalho, segui­remos parcialmente o desenvolvimento da An­tropologia Cultural norte-americana como um dos subcampos, dentro do campo científico, que produziu uma importante crítica ao uso da noção de raça para explicar a diversidade das organiza­ções sociais humanas, propondo a sua substitui­ção pelo conceito de cultura.

De modo geral, considera-se que o primei­ro estudioso a utilizar o conceito antropológico moderno de cultura foi Edward Burnett Tylor (1832-1917), no livro Primitive cu/wre, publicado em 1871. A sua definição era ampla e pratica­mente abarcava tudo o que não fosse biológico nos seres humanos: "Cultura ou civilização, em seu sentido etnográfico amplo, é todo um com­plexo que abrange conhecimento, crença, arte, princípios morais, leis, costumes e quaisquer ou­tras aptidões e hábitos adquiridos pelo homem como membro da sociedade."4- Sem abandonar a noção de raça e uma perspectiva evolucionista, Tylor associava a cultura dos povos primitivos à cultura original da humanidade, um:l sobrevivên­cia das primeiras fases da evolução cultural pela qual os povos civilizados tinham passado. 5

Porém, para Georg Stocking, historiador da Antropologia, foi Franz Boas, e não TyIor, quem

3 Idem, p. 774.

4 Apud CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências

sodais. Bauru, EDUSC, 1999, p. 35. 5 Idem, p. 35-9.

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abriu o caminho para a concepção antropológica moderna de cultw-a. Ao utilizar o termo no plu­ral, culturas ao invés de cultura, Boas demarcou um relativismo que é constitutivo daquela con­cepção.

Franz Boas (1858-1942) foi o primeiro antro­pólogo a fazer pesquisas in siw para observação direta e prolongada de culturas ditas primitivas e, por isso, foi considerado o inventor da etno­grafia. Judeu alemão, vítima do anti-semitismo na universidade, Boas se estabeleceu nos EUA em 1887, naturalizando-se norte-americano. Seu primeiro trabalho de campo foi realizado entre 1883 e 1884, voltando-se para o estudo dos es­quimós. Sua preocupação principal era estudar o efeito do meio físico sobre a sociedade esquimó. Porém, suas observações o fizeram concluir que a organização social daquela população era mais determinada pela cultura do que pelo ambiente físico, formulando assim uma crítica ao determi­nismo geográfico. 6

O estudo sobre os esquimós foi o primeiro de uma série de trabalhos de campo que levaram Boas a defender que o conceito de cultura era mais adequado para explicar a diversidade huma­na do que o clima ou a raça. E, ao contrário de Tylor, Boas não acreditava ser possível comparar as culturas humanas dentro de uma escala evolu­tiva universal. Cada cultura era uma totalidade singular, um todo coerente e funcional que só poderia ser entendida a partir de um princípio metodológico relativista.

No início do século XX, portanto, a Antro­pologia se desenvolvia como disciplina acadêmi­ca nos EUA num embate entre Boas e sua escola contra o evolucionistas, que trabalhavam com a noção de progresso e com metáforas darwinis­tas. Para a escola antropológica inaugurada por Boas, é a cultura e não a biologia que faz os seres humano .7

6 E ta breve exposição obre Franz Boas está baseada

em KUPER, Aclam. Cultura: a visão dos antr0pó/o80s.

Bauru, EDUSC, 2002 e CUCHE, Deny , ob. cito

Deriva dessa perspectiva toda uma corrente de pensamento antropológico que é denomina­da de Antropologia Cultural norte-americana . Trata-se de uma corrente bastante heterogênea e não pretendemos acompanhar toda a sua traje­tória aqui. Apenas destacaremos dela um de seus representantes mais influentes hoje no campo das ciências sociais, tanto no Brasil como nos EUA, Clifford Geertz (1926-). Geertz é herdeiro de um desenvolvimento pós-boasiano que tendeu a hipertrofiar o conceito de cultura e seu papel nas análises das sociedades. Trata-se de um cultura­lismo de matriz idealista que vê a cultura como uma rede de significados que se explica a partir de si mesma. Para exemplificar essa afirmação, vamos acompanhar brevemente a história de seus trabalhos de campo realizados na Indonésia.

Clifford Geertz cursou Antropologia em Harvard, no departamento de Relações Sociais. Decidiu fazer suas pesquisas de campo na Indo­nésia. A primeira viagem foi a Java, com apoio da Fundação Ford, entre 1952 e 19:;4. A segunda viagem, para Bali, ocorreu entre 1957 e 1958 e teve apoio da Fundação Rockfeller. Essa es­colha tem a ver com os recursos destinados ao estudo de uma área em processo de libertação ':olonial. s

Em 1942, as chamadas Índias N eerlandesa~ foram invadidas por tropas japonesas, em decor­rência da Segunda Guerra Mundial. Os japone­ses, embora tenham libertado da prisão líderes nacionalistas, acabaram por substituir os colo­nialistas europeus. Em 1945, com a derrota dos japoneses na guerra, os nacionalistas declaram a Indonésia independente. Após anos de guerra entre as tropas holandesas e a guerrilha indoné­sia, a Holanda foi obrigada a reconhecer a Re­pública Indonésia em 1949. Todo esse processa conturbado teve como auge, em 1965, um golpe militar, patrocinado pelos EUA, contra o gover­no nacionali ta de Sukarno que, no contexto de

? KUPER, ob. cito

a Essa exposição e tá ba eada em UPER, ob. cit.

Adriana Facina / De volta ao fardo do homem branco... 67

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Guerra Fria, foi avaliado como perigosamente próximo dos soviéticos. A imposição da ditadura de Suharto, o novo presidente, foi marcada por massacres de centenas de milhares de pessoas, acusadas de comunismo, assim como torturas e violações sistemáticas dos direitos humanos.

Foi no período imediatamente posterior à in­

dependência e de crescimento do nacionalismo, com mudanças radicais na sociedade indonésia , que Geertz elaborou a sua famosa etnografia so­bre a briga de galos em Bali. O que mais impres­siona são as parcas menções aos fatos relativos ao processo de independência e de consolidação do país independente. Numa das poucas vezes em que o governo nacionalista é mencionado, isto é feito de forma pejorativa, associando a proibição da briga de galos a um puritanismo presente no nacionalismo radical. 9 Lendo o texto, que usa o tempo inteiro a expressão "cultura balinesa" para explicar porque os balineses são ou agem assim ou assado, quase esquecemos que Bali fica na In­donésia, país de milhões de habitantes na época, com uma sociedade complexa e centro de dispu­tas políticas relacionadas à Guerra Fria.

Dentro da cultura balinesa, percebida como uma totalidade homogênea e coerente, a função da briga de galos seria principalmente estética. Nas palavras do autor:

"( ... ) A briga de galos só é 'verdadeiramente real ' para os galos - ela não mata ninguém, não castra ninguém , não reduz ninguém à condição de animal, não altera as relações hierárquicas entre as pessoas ou remodela a hierarquia; ela nem mesmo redistribui a ren­da de forma significativa. O que ela faz é o mesmo que fazem Lear e Crime e Castigo para outras pessoas com outros temperamentos e outras convenções: ela assume es es tema -morte, masculinidade, raiva, orgulho, perda, beneficência, oportunidade - e, ordenando-

9 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de

Janeiro : Guanabara Koogan, 1989, p. 280.

68 História & Luta de Classes

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os numa estrutura globalizante, apresenta-os de maneira tal que alivia uma visão particular de sua natureza essencial. Ela faz um constru­to desses temas e, para aqueles historicamente posicionados para apreciarem esse construto, torna-os significativos - visíveis, tangíveis, apreensÍveis - 'reais' num sentido ideacional. Uma imagem , uma ficção, um modelo , uma metáfora, a briga de galos é um meio de ex­pressão; sua função não é nem aliviar as pai­xões sociais nem exacerbá-las (embora, em sua forma de brincar-com-fogo ela faça um pouco de cada coisa) mas exibi-las em meio às penas, às multidões e ao dinheiro." 10

A briga de galos serve também para revelar o "padrão geral da vida balinesa", chave que permi­te ao autor, numa breve nota de rodapé, explicar 05 acontecimentos de 1965 sob um ângulo bas­tante peculiar:

"O fato de aquilo que a briga de galos tem a dizer sobre Bali não passar despercebido e a inquietação que ela expressa sobre o padrão geral da vida balinesa não ser inteiramente sem razão é atestado pelo fato de que , em duas semanas, em dezembro de 1965 , du­rante os levantes que se seguiram ao golpe de Estado em Jacarta, entre quarenta e oi­tenta mil balineses (numa população de cer­ca de dois milhões) foram mortos, uns pelos outros, principalmente - a pior explosão de violência no país. ( ... ) Não queremos dizer com isso que as mortes foram causadas pelas brigas de galo, que elas podiam ser previs­tas na base dessas brigas, ou que elas foram uma espécü: de versão ampliada delas com pessoas reai no lugar de galos - is o seria rematada to .. :e. Queremos apenas dizer que se olha par< 3ali não apenas através de sua dança , de Sl ; peças de sombras, de sua es­cultura e de las moças, mas também através

10 Idem , p. 311

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de suas brigas de galos - como os próprios balineses - o fato de o massacre ter ocorri­do, embora estarrecedor, parece menos uma contradição com as leis da natureza. Como já descobriu mais de um Gloucester verdadei­ro, às vezes as pessoas conseguem a vida pre­cisamente quando deixam de querê-la mais profundamente." 11

Esse culturalismo, embora parta de um hu­manismo relativista, paradoxalmerúe abre o flan­co para usos e abusos da noção de cultura para explicar (e justificar) deSigualdades entre os se­res humanos. A simplificação desse tipo de pen­samento feita por uma certa vulgata culturalista leva a uma perspectiva anti-humanista, tomando por base dois princípios fundamentais. Em pri­meiro lugar, a cultura é absolutizada, transfor­mada em uma segunda natureza praticamente imutável, tornando-se a instância determinante para explicar não qualquer fato social, mas pre­ferencialmente aqueles que dizem respeito a agrupamentos humanos considerados estranhos ou , até mesmo, numa versão mais preconceitu­osa, inferiores. Em segundo lugar, ao invés de apontar para a diversidade e para a pluralidade de aspectos das sociedades humanas, esse tipo de culturalismo cria uma suposta homogeneida­de ao descrever "a cultura" de um determinado grupo, ignorando diferenciações fundamentais, assim como a vinculação da cultura com outras dimensões da vida social, como as relações eco­nômicas, por exemplo.

Concretamente, refiro-me aqui às teses de Sa­muel Huntington sobre o choque de civilizações e, mais recentemente, ao livro organizado por este autor em conjunto com Lawrence E. Harri­son intitulado A cultura importa: valores que difinem

o progresso humano, publicado nos EUA em 2000 e no Brasil no ano de 2002. O objetivo do livro, que reúne escritos de economistas, antropólogos, historiadores, cientistas políticos, entre outros,

11 Idem, p. 320-1.

de várias nacio ,alidades, é explicar o subdesen­volvimento pOI meio da cultura. Para os autores, as teorias do i mperialismo ou da dependênci 1

são equivocadas, pois retiram a responsabilidad, ~

dos principais atores sociais do atraso: as popu · lações dos países subdesenvolvidos. Os artigos , voltados para análise das "culturas" africanas, latino-americanas, asiáticas, invariavelmente aca­bam defendendo um suposto determinismo c ul ­tural que toma a cultura como determinante, ~m última instânda, dos "fracassos" econômicos de países como Gilna, Brasil ou Argentina.

Já no prefácio, assinado por Huntington, são explicitados o~ ügnificados de "progresso huma­no" e "cultura presentes no livros. N as palavras do autor:

"Por 'progn 'sso humano', usado no subtítulo deste livro , Ilueremos indicar o movimento rumo ao ri . senvolvimento econômico e ao bem-estar material, à justiça econômica e ;i democracia política. O termo 'cultura', é cla­ro, tem tido Significados múltiplos em dife · rentes disciplinas e contextos diversos. Ele é usado geralmente em referência aos produtos intelectuais, musicais, artísticos e literários de uma sociedade, sua 'alta cultura'. Os antropó­logos, talvez mais notadamente Clilford Ge ­ertz, têm utilizado a cultura para se referir a todo o modC) de vida de uma sociedade: valo­res, prática ~ símbolos, instituições e relações humanas. N I ~ste livro, entretanto, no interes­sam os efei los da cultura sobre o desenvoJ vi­mento da s<.>Ciedade; se a cultura incluir tudo, não explicará nada. Por isso, definimos cultu­ra em terml 1$ puramente subjetivos, como o valores, as .} ltudes, as crenças, as orientaçõe ' e os pressu llostos subjacentes que predomi­nam entre c>:-. membro de uma sociedade." 12

12 HUNTINGTO , Samuel P "Prefácio" . In; HU -

TINGTO ,Samuel P e HARRISO ,Lawrence E. A

cultura importa: valores que difinem o proaresso humC'no .

Rio de Janeiro; Record , 2002 , p. 13 .

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No início desse mesmo prefácio, o autor compara os desenvolvimentos de Gana e Coréia do Sul. Ele afirma que os dois países, no início da década de 1960, tinham indicadores econômi­cos similares e que recebiam níveis comparáveis de "ajuda econômica". No entanto, enquanto a Coréia do Sul se tornou um "gigante industrial" , Gana permaneceu um país subdesenvolvido. Sem se referir ao papel estratégico que a Coréia do Sul assumiu no contexto da Guerra Fria, em decorrência da Revolução Chinesa e da Guerra da Coréia, Huntington resolve o enigma da se­guinte maneira:

"Como explicar uma diferença de desenvol ­vimento tão extraordinária? Sem dúvida mui­tos fatores entraram em jogo, mas a meu ver grande parte da explicação estava na cultura. Os sul-coreanos valorizavam a frugalidade, o investimento, o trabalho, a educação, a or­ganização e a disciplina. Os ganenses tinham valores diferentes. Em resumo, a cultura é importante ." 13

Num dos artigos do livro, intitulado "A Áfri­ca precisa de um programa de ajuste cultural?" , escr ito por Daniel Etounga-Manguelle, um ca­maronense, ex-membro do Council of African Advisors do Banco Mundial, os termos são mais explícitos. Talvez por se apoiar no fato de ser um africano escrevendo sobre a África, o autor se permita expor preconceitos e simplificações sobre as sociedades da África subsaariana de um modo mais direto. Nos seus termos:

"( ... ) Já se disse que subdesenvolvido não é o povo, são os seus líderes. É verdade e não é. Se os povos africanos não fossem subde-envolvidos (quer dizer, passivos, resignados

e covardes), por que aceitariam líderes sub­desenvolvidos? Esquecemo-nos de que todo povo merece o líderes que tem." 14-

13 Idem, p. ll.

70 História & Luta de Classes

E como o aI 10r descreve esse povo? O afri­cano, mais do '! lte um tipo ideal, é uma reali­dade empírica I ; Ira o autor. Fatalista, avesso ao esforço, tradicÍ< Ilalista, invejoso da riqueza dos outros, irrespomável, crente em magia e feiti­çaria, dado a fe :· l as e gastanças, enfim um Homo

economicus "ineF' I'''. Todos esses aspectos caracte­rizariam uma SI I "i~dade doente. Mais uma vez, nas suas palavra~

"Uma sociedade na qual a magia e a feitiça­ria ainda flon 'scem é uma sociedade doente, governada pel a tensão, pelo medo e pela de­sordem moral. ( ... ) A feitiçaria é para nós um refúgio psicol :,gico no qual toda a nossa ign,)­rância encont ,-a suas respostas e nossas fanta­sias mais delirantes se tornam realidade.''1s

Numa sociel l"de assim, somente um progra­ma de ajuste Ct.,I, ural poderia gerar desenvolvi­mento. O que n . ) leva de volta à missão civiliza­dora e ao fardo lo homem branco de um século atrás. Em que o I.lSO do termo cultura, nesses au­tores, difere da :lplicação da noção de raça para explicar e hiera ' luizar as diversas organizações sociais humanas laborada pelas teorias raciais no período da expa Il são imperialista? O anti-huma­nismo desse cull\1ralismo é ainda mais perverso, pois, em última análise, os sujeitados são sujeitos de sua própria sujeição. Enquanto raça implica uma herança biol :,gica que não pode ser mudada pelos indivíduos, a cultura é fruto da ação huma­na e, de acordo Co)m os think tanks do pensamen­to neoconservad ')r norte-americano, pode ser transformada de ,lcordo com a vontade dos indi­víduos. Os valOl '~' S que devem ser adotados pelos subdesenvolvid( :;, cujas cultw-as são claramente vistas como inf, 1 iores, são os mesmo propala­dos pelo imper Jismo clássico como sinais de

14 ETOU GA-M.' I GUELLE, Daniel. "A África pre­

ci a de um progr, ma de aju te cultural?". In : HU -

TI GTO , Saml , I P e HARRISO , Lawrence E.,

ob. cit., p. 121.

15 Idem, p.lH.

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civilização: capitalismo, economia de mercado, democracia liberal -burguesa, monoteísmo (prin­cipalmente cristão).

Essa ótica é muito influente na grande im­prensa hoje, em especial quando os assuntos são conflitos "étnicos", atraso econômico de povos "exóticos", terrorismo etc. No dia 11/05/2005, o New York Times publicou a seguinte notícia: "Pu­rificação de viúvas pode espalhar HIV na Áfri­ca" . A matéria atribuía a uma prática cultural, o hábito de viúvas terem relações sexuais com o cunhado após a morte do marido para se puri­ficarem, a responsabilidade da disseminação da Aids na África subsaariana, apresentando uma correlação entre dados alarmantes (como o 1/5 da população masculina adulta contaminada em Zâmbia) e a prevalência de tais práticas. O im­pacto das políticas públicas orientadas pelos or­ganismos financeiros internacionais, o desmonte dos estados nessa região do globo, a ausência de um sistema público de educação e saúde, a ques­tão das patentes que torna a compra dos remé­dios caríssima e inviável para países pobres , nada disso era mencionado na reportagem. Assumin­do um tom feminista, de denúncia da opressão a que são submetidas as mulheres africanas, a repórter defendia uma mudança cultural como única maneira de transformar a realidade. Veja­mos o seguinte trecho:

"Em uma região na qual a crença em bruxa­ria é disseminada e onde muitas mulheres são ensinadas desde a infância a não questionar os líderes tribais ou as prerrogativas dos ho­mens, o medo de romper com a tradição su­pera o temor da Aids." 16

Trata-se exatamente da mesma tese de Man­guelle, só que veiculada para consumo de um público muito mais amplo. Reafirma-se a idéia de que a culpa dos africanos morrerem de Aids

16 Retirado do site www.uol.com.br em 11/05/

2005.

massivamente, em última instância, é deles mes­mos, de sua cultura atrasada.

Não é por acaso, portanto, que após a invasão do Iraque por I ropas estadunidenses em março de 2003 algun 1as vozes tenham se levantado na imprensa nort . ~ ·americana para louvar Kipling e seu poema. I. IS editores da Monthly Review, na edição de nove llbro de 2003, citam um comen­tário bastante jlllstrativo feito por jonathan Mar­cus, correspon, lente sobre defesa da BBC, em 17 de julho do me ·; mo ano:

"Deveria se I' lembrado que, há mais de uma centena de <Inos, o poeta britânico Rudycird Kipling escn:veu o seu famoso poema intitu­lado "o fardo do homem branco" - uma ad­vertência aC( :rca das responsabilidades do im­pério que era destinado não a Londres mas a Washington e às suas novas responsabilidades imperiais na:; Filipinas. Não está claro que o presidente George W. Bush seja leitor de po­esia ou de }: ipling. Mas os sentimentos de Ki­pling são tão relevantes hoje quanto o foram na altura el I1 que o poema foi escrito, pouco após a Guel ra Hispano-Americana."17

Este é apell.ls um dos muitos exemplos de tentativa de n ('uperação da idéia do fardo do homem branc( pelo pensamento neoconserva­dor norte-ame lcano, com o objetivo de justifi­car o novo imr l:rialismo por meio de uma mis­são civilizadora articulada em torno de valores pretensamente universais como livre mercado e democracia (sempre controlada). Por enquan­to, as teorias raciais permanecem desacreditadas nos meios científicos mais respeitados. Portan­to, para justificar a deSigualdade entre os povos e suas organizaç'ões sociais, legitimando assim a intervenção civuizadora, torna-se necessário o recurso ao cul1 uralismo.

17 Retirado d, ite www.reitir.info/rnr view/

editorial rnr_no 103.html.

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Essa perspectiva parte de uma concepção idealista de cul tura, vista como algo absolutamen­te autônomo em relação ao todo social. Como uma espécie de Frankenstein ideológico, mistura um aristocratismo (com farta dose de preconcei­to racial) que permite hierarquizar culturas com a noção oposta de cultura como todo um modo de vida, servindo para cristalizá-la como uma es­pécie de segunda natureza que define os rumos das sociedades humanas.

Todo esse esforço em caracterizar a cultura como o núcleo de um projeto imperial demons­tra que o imperialismo não pode prescindir de suas justificativas ideológicas. As disputas em torno do significado da cultura e do seu lugar nos processos histórico-sociais nos parece um exem­pIo concreto da afirmação de Mikhail Bakhtin de que a linguagem é arena da luta de classes. 18 Ao esvaziarem a noção de cultura de seu conteúdo crítico em relação à idéia de raça, tornando-as termos intercambiantes, os neoconservadores conseguem superar os problemas em adotar ex­plicitamente o racismo como legitimador das políticas do novo imperialismo, reproduzindo velhos preconceitos sob o manto do politica­mente correto. Kipling, mais do que nunca, per­

manece atual.

\ 8 BAKHTIN, Mikhail. Marxismo efllosofia da linguagem.

São Paulo: HUCITEC, 1979.

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Veja: mais um partido neoliberal

Este artigo tem como objetivo apresentar refe­renciais teóricos, a partir da experiência de uma pesquisa empírica, sobre a necessidade de rom­per com os padrões liberais de análise e compre­ensão da grande imprensa, para avançar na sua análise crítica. 1 A esta visão contrapõe-se a su­gestão gramsciana de entender a imprensa como partido político. Assim, o "sujeito" imprensa tem uma ação concreta política, pedagógica e de ge­renciamento, de acordo com outras fontes for­muladoras. No caso em estudo, a revista Veja, percebemos vínculos estreitos entre a sua for­mulação e as propostas políticas do Fórum Na­cional, órgão que tem entre seus sócios fundado­res importantes políticos brasileiros, vinculados especialmente ao projeto do PSDB.

• Professora Adjunta do Cur o de História da Universida­

de Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE, Campus

de Marechal Candido Rondon . [email protected] .br

I E e texto é uma adaptação do capítulo un1 da Te e de

Doutorado Veja: o indispensável partido neoliberal. /989

a 2002 . Doutorado em História. UH, iterói , 2005.

Foi apre entado no Simpósio O marxismo e a questão da

determinação na História, no XXIII Simpósio Nacional da

ANPUH , ocorrido em Londrina, em julho de 2005 .

Carla Luciana Silva ,t--

A PREDOMINÂNCIA DO PADRÃO LIBERAL

A interpretação sobre o papel da imprensa no mundo contemporâneo não pode deixar de lado os conflitos pn·sentes na própria sociedade capi­talista. Por isso a predominância da visão liberal faz parte do processo de ocultamento da função histórica da grande imprensa: a manutenção da acumulação do capital. A denominação "liberal" é a forma mais usual de interpretação, usada pela própria imprensa, inclusive por Veja. Mas tam­bém é correntemente usada por leituras críticas, aparecendo como sendo a própria natureza da imprensa, como se a ela coubesse: vigiar o poder, aferir a opinião pública, ter responsabilidade so­cial, garantir a liberdade de opinião. Estes são va­lores comumente associados à imprensa "liberal", ou simplesmente "grande imprensa", e que apare­cem como sendo a própria natureza da imprensa. Quando se observa que ela não cumpre com esses preceitos, se av.:\lia que se trataria de "desvios" de função que precisariam ser corrigidos.

A liberdade de expressão é a chave de qual­quer sociedade libertária. No entanto, são os grandes veículos de imprensa empresariais que se colocam como guardiões desses direitos, pois a liberdade acaba sendo submetida ao acesso à impressão, à distribuição, ao financiamento, o

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que demarca limites permanentes na história da imprensa. Isso se agravou no final do século XX com uma enorme concentração de capital, que fez com que o jornalismo se restringisse cada vez mais em torno de grandes empresas.

Aliado a isso, temos a idéia da imprensa como Quarto Poder. 2 Esse poder estaria colocado aci­ma dos conflitos sociais, a ponto de tornar a im­prensa capaz de imparcialmente julgar os atos dos demais poderes institucionalizados, tornan­do-a uma "entidade" que vigiaria os outros po­deres. O caráter vigilante faria da imprensa um sensor, que observaria e denunciaria eventuais irregularidades, o que seria feito em nome de "toda a sociedade" .

Para essa interpretação a imprensa deve ser entendida como um agente neutro, tendo direi­to a acesso primordial às informações, para de­las fazer as checagens e a divulgação que achar necessário, mas supondo que sempre o resul­tado de seu trabalho será a notÍcia, um relato verdadeiro dos fatos. A população daria uma representação política ao jornalista, que por sua vez seria o vigilante dos poderes constituídos. O "compromisso com o leitor" daria aos órgãos da imprensa o status de sujeito acima dos demais, que poderiam transitar no meio político sem com ele se confundir.

Para se construir enquanto portadora da ver­dade é fundamental a idéia de objetiVidade, e por isso são estabelecidos modelos de atuação - a deontologia da mídia - que define regras e princí­pios, encarando a mídia como uma prestadora de serviços. Quanto às funções dos meios de comu­nicação, Bertrand, em seu manual, cita: "observar

o entorno"; "assegurar a com unicação sodal"; 'fornecer

uma imagem do mundo'';''transmitir a cultura";"contri­

buir para a felicidade: di verti r;fazer comprar". 3 Ele

2 MORETZSOH ,Sylvia. Jornalismo em 'tempo real': o fetiche da velocidade. Rio de Janeiro : Revan, 2002 , p.

59 . 3 BERTRA O, Claude-Jean. A deontolo8ia das mídias .

Bauru, EDUSC, 1999, p. 26-28. Grifos meus.

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caracteriza ainda como a principal "responsabi­lidade" da mídia "servir bem à população". 4- Nessa definição, temos a imprensa como prestadora de serviços, regida sob a lógica do mercado, vis ­to que um de seus objetivos é "fazer comprar". Mas, ela não se submeteria a uma regulamenta­ção legal ou externa de qualquer natureza, pois se trataria exclusivamente de um serviço, que seguiria regras mercadológicas. Além disso, a "liberdade de imprensa" seria regulada pela pró­pria imprensa.

Um desdobramento dessa posição é a afir­mação de que a publiCidade garante a liberdade de expressão, como se o caráter empresarial da imprensa se desse exclusivamente pela garantia de ter anunciantes. Oculta-se que há relações políticas necessárias à manutenção dos interesses de mercado, seja para o jornal, seja para os anun­ciantes. Essas relações são uma das faces da ação

partidária da imprensa, que necessita também da criação de um estilo de vida e de comportamen­to, que permita um programa político, social e econômico tanto para os anunciantes como para todo o mercado do qual a imprensa faz parte.

Imprescindível ainda à imprensa liberal é a noção de "opinião pública". Ela seria expres­são do pensamento "da maioria", e justificaria as tomadas de posição dos próprios órgãos de imprensa. Ocorre que é questionável que opi­nião pública exista antes do momento em que é criada. 5 Para que ela existisse "natw-almente" deveria haver a garantia de que esse público te­nha tido oportunidade de conhecer, discutir, e só então opinar, e não é isso que ocorre. A opinião pública tem sido usada para permitir aos veícu­los defender quaisquer posições, bastando para isso manipular padrões técnicos de legitimação

+ Idem, p. 13. 5 SODRÉ, Muniz. Antropoló8ica do espelho. Petrópolis: 2002 , p. 43. Essa interpretação se baseia em BOUR­DIEU, Pierre. "A opinião pública não exi te". In: Mi­

chel J MThiollent. Crítica metodoló8ica, investi8ação social

&...enquete operária. 5" ed. São Paulo: Polis, 1987.

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de suas posições, o que é feito em sintonia com os institutos de pesquisa, que muitas vezes per­tencem às próprias empresas jornalísticas.

A imprensa vigia o poder, e faz isso supos­tamente em nome de todos, o que se consubs­tancia dizendo que fala em nome da "sociedade brasileira", do "país" etc. No entanto, isso é uma expressão ideológica que ocul ta que o papel de cão de guarda exercido pela grande imprensa se dá em nome dos próprios interesses das empre­sas jornalísticas e de suas relações de classe.

PARTIDO, GERE CIAMENTO E AÇÃO PEDAGÓGICA

Como contraponto, defendemos a visão da im­prensa como agente partidário, a partir de uma leitura gramsciana. Ela existe enquanto sujeito político construtor de consenso e de hegemonia: formulador, organizador e fiscalizador de pro­gramas e projetos dos quais as próprias empre­sas jornalísticas fazem parte. Há um padrão tido como "natural": o liberal. E há uma ação política e econômica passível de ser percebida mas ocul­tada, a ação partidária: que formula, gerencia e educa.

Para interrogarmos as relações de poder das quais a mídia faz parte, não podemos tomá-la como um sujeito à parte, mas como integrante da própria engrenagem de reprodução do siste­ma do capital. Por isso há que compreender as relações de classe das empresas jornalísticas, que embasam sua atuação partidária. Essa atuação não é isolada, remete à existência de estados maiores, onde são formuladas visões de mundo e formas de organizar a dominação, das quais derivam os encaminhamentos quanto ao gerenciamento da ordem do capitalismo. E sua função ideológica se materializa na constante ação pedagógica.

AçÃo PEDAGÓGICA: EDUCAÇÃO CONTINUADA

Gramsci chama a atenção para o sentido peda­gógico da atuação dos partidos. É aqui onde Veja

tem uma ação mai evidente, na consolidação de uma visão de mundo, tanto no que diz respeito à

própria história vivida, como também na inser­ção dos seus leitores como seres políticos, agen­tes em posição específica no mundo do trabalho, o que requer padrões comportamentais de for­ma mais ampla. O jornalismo, nessa perspecti-

I. " I d dI"6 va, e VIsto como uma esco a os a u tos, posto que "não se podeJalar de elite-aristocracia-vanguar­

da como de uma coletividade indistinta e caótica", 7

portanto, faz-se necessária uma formação sólida e coerente.

Uma revista como Veja é um instrumento da luta de classes, na medida em que nela se cons­troem embates ideológicos vivos, ou seja, aqueles que dizem respeito ao desenvolvimento históri­co. Mas, como vimos, a visão liberal muitas vezes busca ocultar o fato de que a imprensa possui um "projeto orgâniCO, sistemático e argumentado", 8 que se cria no âmbito da editora, como uma "estrutura

material da ideologia", que busca organizar a "es­

trutura ideológica de uma classe dominante, isto é, a

organizaI ão material voltada para manter, difender e

desenvolv,~r a ]rente' teórica ou ideológica".9 Por isso, além de agir com relação aos problemas da gran­de política (as questões que definem o rumo dos acontecimentos macroeconômicos e políticos), mantém uma ação permanente na pequena po­lítica (a~ pequenas questões e intrigas políticas que normalmente são mostradas como mais im­portantt s).

Sem de5cuidar da conjuntura, é nas gran­des que~.tões que Veja busca influenciar, sempre apontando o rumo a ser seguido. Isso ocorre sis­tematicamente a partir das interpretações que são propostas acerca do real, que <lmpliam ou restringI ~m a possibilidade de que o leitor perce­ba os elementos motores da história vivida.

O seu alvo é a construção de uma organici­dade err torno de uma ação de classe, criando

6 GRAMSCI. Antonio. Cadernos do cárcere. V. 2. Rio de

Janeiro : Civilização Bra üeira, 2000, p. 229 . 7 Idem, p 231. 8 Idem, p 32. 9 Idem, p 78.

Carla Luciar ,a Silva / Veja: mais um partido neoliberal 75

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seus próprios intelectuais, que querem com ela buscar uma unidade de ação comum. Por isso ela toma para si o papel de educação continuada, na medida em que mantém o processo educacional escolar, pautando, dizendo informar, e ao mesmo tempo mantendo a divisão dos "lugares sociais", ditando como cada um deve se comportar. Mas o projeto é cuidadoso no sentido de buscar apa- ' recer como sendo essencial para cada um, deve ser internalizado, fazer sentido na própria indivi­dualidade; ao mesmo tempo, diz ser para todos: "a nação", o "país", "a sociedade". A ação pedagó­gica ensina também o sujeito a se comportar de acordo com as mudanças de seu mundo, ou seja, o processo de criar necessidades, de criar o seu consumidor, e mais que isso, um novo estilo de

vida. Há uma inversão do sujeito, pois os leitores deveriam apenas "se adaptar" às mudanças que a revista "vai mostrar" .

A IMPRE SA COMO PARTIDO

As reflexões de Gramsci sobre jornalismo tam­bém são um ponto de partida para avançar com relação à questão da organicidade dos órgãos de imprensa e seu caráter partidário, pois o que dá unidade à "opinião do dono" não é fruto de um gosto pessoal. Para Gramsci, jornais e revistas são "meios para organizar e difundir determinados tipos

de cultura", 10 e estarão sempre articulados a um agrupamento cultural, "mais ou menos homogêneo,

de um certo tipo, de um certo nível e, particularmente,

com uma certa orientação geral" . A organicidade do jornal, dada pelas relações de classe que ele en­cerra, lhe confere o caráter de atuação partidária,

atendendo a objetivos previamente definidos. Mai que isso, "são os jornais, agrupados em série,

que constituem os verdadeiros partidos". 11 Eles têm a dupla função: informar e opinar. E o tempo todo as duas são misturadas: a necessidade de ser informado faz com que muitas vezes se rec ba

10 Idem, p. 32.

11 Idem, p. 218.

76 História & Lut:> ..J~ Classes

opinião e programa de ação partidário como sendo mera informação.

Há 5ernpre uma unidade em torno da qual e cria um é,rgão de imprensa. Ele não existe para expressar toda e qualquer posição, mas aque­las que se ai mam entre si, mesmo quando nele existam espaços para expressão de posições con­traditórias. Muitas vezes, a unidade precisa ser entendida em relação à editora, onde melhor se visualiza a ação empresarial, sobretudo na indús­tria cultural segmentadora. Isso só fortalec ~ a unidade das revistas em separado, pois há meca­nismos responsáveis pela sua unidade, sendo os editores l una parte disso.

Retomamos a associação entre jornalismo e partido político proposta por Gramsci. O par­tido é, para alguns grupos, "nada mais do que o modo pn)prio de elaborar sua categoria de intelecwais orgânicos" e que é "o mecanismo que realiza na socie­

dade civil 1 mesma Junção desempenhada pelo Estado,

ou seja, pr'Jporciona a soldagem entre intelectuais or­

gânicos de um dado grupo, o dominante, e inteleauais

tradicionQjs", oois tem como papel" elaborar os pró­

prios compone Jtes, elementos de um grupo social nasci­do e desenvolvido como 'econômico' até traniformá-los

em intelectuais políticos qualificados, dirigentes, orga­

nizadores de todas as atividades efunções inerentes ao

desenvolvimento orgânico de Lima sociedade inte,va, civil e política". 12 Como qualquer parti:lo formal, O jornaJ não escapa das contradições interna!:, e também de conflitos permanentes que a realida­de lhe coloca. Diante disso, a capacidade de :;eu programa propor soluções é permanentemente colocada em xeque, num proces o ten o de ne­gação e n:afirmação. Mas a sua atuação enquanto intelectual coletivo é a de formular, organizar e gerenciar. É, portanto, uma ação de direção e de dirigente, e a formulação se dá sempre em con­junto com outros agente.

A imprensa se constitui como sujeito para permitir Uél ação partidária. Os grande jor­nais e n :vis tas e utilizam de se mecanismo

12 Idem, p. 24.

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para legitimar a sua ação, escondendo seu caráter partidário. Eles atribuem a si mesmos um cará­ter autônomo, a partir dos preceitos da suposta independência, que permite, por exemplo, que a Folha de São Paulo "fale de si mesmo" como A

Folha, O Estado de São Paulo, como O Estadão, e assim por diante. Eles aparecem quase como pes­soas: querem, sentem, opinam ... Eles "criam" a si próprios, e isso facilita encaminhar projetos e propostas concretas.

Bes apontam caminhos, promovendo deba­tes, assumindo para si o papel dirigente de clas­se, também por ser a eles atribuído o papel de organizar a "aaenda coletiva". Mas isso não implica em filiação a um partido formal, pois "a imprensa

é partidária, não no sentido de difender este ou a,/uele

partido, mas no de ter um programa a difender" . 13 E

isso remete à existência de vínculos com outros formuladores e gerenciadores.

EsrAnO MAIOR, FORMULAÇÃO

E GERE C1AMENTO

A sim como ocorre com os demais partidos bur­gueses, a imprensa se vincula a associações com partidos formais, com outros órgãos de impren­sa, e outras formas associativas, apontando para a constituição de estados maiores e think tanks, ou seja, organizações onde são formuladas as linhas gerais da ação de classe. A reprodução do capital necessita de gerentes que em níveis diferenciados ajam nos embates políticos. A hegemonia não se dá de forma homogênea, mas é historicamente construída e cotidianamente defendida. É neces­sário interrogar as formas com que esse processo é coordenado.

O projeto de dominação não é criado por um jornal ou revista específico, tampouco é elabora­do no âmbito exclusivo da imprensa, mas reme­te a uma experiência organizacional mais ampla, eus e tados-maiores. Por isso, os grandes jornais

t1 JOSÉ. Emiliano. Imprensa e poder: ligações perigo a .

São Paulo: Hucitec / Salvador: Edulba: 1996, p. 26 .

e revista:; podem ser vistos como os grandes "inte­lectuais orgànicos do capital". E estão indissocia­dos do caráter teórico e ideológico de defesa do neoliberalismo e a sua existência prática. Ou seja, fazem parte do "Boverno mundial das empresas". 14

Uma das características desse processo sào as concentraçoes das grandes empresas, sobretudo na área da comunicação e entretenimento. A ar­ticulação disso nos anos 1990 faz com que apa­reça como inevitável o caminho para "o merca­do", como se uma mão invisível estivesse a guiar permanentemente a ação humana, aparecendo comolatural no mundo "globalizado". Esse pro­jeto se desdobra em vários aspectos, de acordo com a ação partidária específica . Tão relevante quanto a busca do convencimento em torno dos ideais neoliberais , é a explicação, o ensinamento e o gerenciamento em torno de suas necessida­des concretas: "Do mesmo modo que um exér­cito precisa de oficiais superiores militares, uma massa de trabalhadores, que cooperam sob o comando do mesmo capital, necessita de oficiais superiores industriais (dirigentes, managers) e suboficiais ( ... ) que durante o processo de traba­lho comandam em nome do capital. O trabalho da superintendência se cristaliza em sua função exclusiva" .15 Há uma interligação entre Estado, sociedade política e "sociedade civil" para in­fluenciar nas escolhas em termos organizativos e também para obrigar os governos a tomarem decisõ,_s neoliberais. E por outra, levar os ensi­namentos aos ·subalternos, aqueles que vão dar as ordens diretamente ao mundo do trabalho sobre como devem se comportar.

Tudo isso envolve uma gama de profissionais, que têm diferentes nívei de ação como intelec­tuais orgârucos gerenciadore . Existe uma va ta organização tran nacional ao longo do éculo

1+ a expres ão de CHOMSKY. oam. O lucro ou as

pessoas. 2' ed. Rio de Janeiro: I3ertrand Brasil, 2002,

p.22. 15 M RX . O Capital. VI. Livro 1. São Paulo, Abril Cul ­

tural , 1983 . Capltulo IX . "Cooperação", p. 26+.

Carla Luciana Silva / Veja : mais um partido neoliberal 77

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XX, para além dos interesses nacionais, que têm como fim O gerenciamento propriamente dito do processo de acumulação. Trata-se de uma ver­dadeira "internacional capitalista", como mostrou o vasto estudo documental de René Dreuuss. 16

A prática de formulação e gerenciamento, aponta para a existência de estados maiores em nível transnacionais que se remetem às empre­sas de comunicação. Veja, como principal revis­ta da editora Abril, não se palita por si própria, nem é portadora de um programa para toda a burguesia, sequer que defina todos os meandros da dominação. Ela atinge a uma fração mais ou menos definida do que seria a "elite do país", e mesmo assim, em consonância com muitas ou­tras organizações de classe, vinculadas ao projeto de abertura ao capital externo, o que é muito bem expresso em suas "páginas amarelas". Por isso há que apreender como se dá a organicidade de programa e projeto entre a revista e os seto­res que propõem a abertura da economia, pro­curando seus intelectuais orgânicos, think tanks

e partidos.

o PROGRAMA DO FÓRUM NACIO AL:

ESTADO MAIOR DE VEJA?

A criação do Instituto Nacional de Altos Estu­dos, organizador do Fórum Nacional, em 1988, buscou pautar, organizar e gerenciar o sistema do capital no Brasil e suas transformações. A editora Abril, especialmente a revista Veja, tomou para si a disseminação desses ideais e práticas, tornan­do-os compreensíveis aos diversos setores so­ciais (através de sua ação pedagógica) buscando influenciar diretamente nas ações políticas por sua atuação partidária Gunto ao Congresso Na­cional e Poder Executivo), utilizando-se a justifi­cação de sua "independência" e de ser portadora da "opinião pública" .

16 DREIFUSS, René. A Internacional Capitalista: e tra­

tégias e táticas do empresariado transnacional. 1918

- 1986. Rio de Janeiro : Espaço eTempo, 1986, p. 27 .

78 História & Luta de Classes

Essa ação não exclui a de outras entidades associativas, trata-se de uma ação em conjunto, de acordo com as especificidades dos diferentes segmentos de classe. Também não implica em que o Fórum tenha apenas a revista como alvo de ação. Ele parece dar continuida~e a ligações or­gânicas de longa data. Muitos de seus intelectu­ais atuaram como técnicos de alto nível durante o regime militar, em acordo com definições de organizações como IPES, APEC, CONSULTEC, e outros. João Paulo dos Reis Velloso foi técnico burocrata da APEC (Análise e Perspectiva Eco­nômica), vinculada à Consultec (SOCiedade Civil de Planejamento e Consultas Técnicas Ltda) , que tinha entre seus membros Roberto Campos.17 As atividades do Fórum parecem se assemelhar a estas, atuantes no âmbito da Ditadura em termos de formulação e poder organizativo.

Ao processo de redemocratização correspon­deu uma reorganização desses mesmos grupos, retomando a ação de classe, e de busca de or­ganicidade em suas ações políticas e de um pro­jeto "nacional". Havia planos para a campanha eleitoral, mas não um projeto político unifica­do. Após a Assembléia Nacional Constituinte de 1988 foram organizados grupos, em torno da preparação das eleições presidenciais, especial­mente o Movimento da Convergência Demo­crática (MCD), que agregava várias associações dos diferentes ramos empresariais, 18 e propunha "lançar as bases de uma 'revolução política nacional',

mas 'não com armas, e sim com a difusão de idéias"'. 19

Dentre seus membros: Octavio Gouveia de Bu­lhões, ex-ministro da fazenda do primeiro gover­no militar; Affonso Celso Pastore, ex-presidente do Banco Central; Emane Galveas, ex-ministro da Fazenda; Ives Granda Martins, jill"ista; João

17 DREIFUSS. René. 1964: a conquista do Estado. Ação

política, poder e golpe de classe. Petrópolis : Voze , 1981 , p. 90-93.

18 DREIFUSS, René . 0)080 da direita. 3" ed. Petrópoli :

Vozes, 1989, p. 287-289 . 19 Idem, p. 287.

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Havelange, presidente da Fifa; José Olympio, editor; Mario Henrique Simonsen, ex-ministro da Fazenda; Miguel Reale, jurista; Sergio Quin­tella, presidente da Internacional de Engenharia. Vários deles eram vinculados aos Ipes. Entre seus objetivos principais estava a organização de um programa e a apresentação de um candidato viá­vel às eleições. E "se cogitava do preparo de uma ação cuidadosa de acompanhamento do novo presidente e

seu ministério,fosse ele mais ou menos simpático ao empresariado. O objetivo era mudar a mentalidade do

empresariado e da população, numa perspectiva pro­gramático-política e não somente de ação. Em outras

palavras: lazer 1964' nos moldes civis, em termos

de liderança intelectual e política. Ou seja, em ter­mos de ação hegemônica" . 20

Esse grupo assumiu o papel de " estado maior": "incentiva estudos e pesquisas de natureza sociológica,

econômica, política e cientifico-tecnológica - o que

não só permitiria o detalhamento das propostas gerais, mas também a preparação de novos quadros". 21 Havia a busca de organização e direção, ou seja, ain­da não havia unidade em torno de um projeto político, as mudanças econômicas eram impostas a partir de fora. Estavam em busca de um can­didato que colocasse esse projeto em prática. A escolha de Collor como candidato preferen­cial não foi consensual. Foram três os candida­tos apoiados pelo MCD: Collor, Afif Domingos e Aureliano Chaves. Cada um recebeu por parte do grupo um "padrinho" e uma equipe: "Sérgio

Qyintella ficou com Collor; OzÍres Silva passou a cui­dar de Aureliano; e Otávio Gouveia de Bulhões (com

lves Gandra da Silva Martins e Sobral Pinto) foi in­

dicado como 'patrono de Afif Domi ngos'." Assim, "as

direitas não tinham projetos políticos para o país, mas apenas planos de campanha eleitoral', 22 mas tinham certeza de que apenas a sua organização de classe permitiria . alcançar o poder político.

20 Idem, p. 285.Grifos meus. 21 Idem , p. 290. 22 Idem , p. 265 .

Há que ter presente as ameaças de volta dos militares, constantes sintomas da desorganiza­ção da direita e da organização dos movimentos sociais. Nos momentos em que estava compro­metida a possibilidade de estabelecer consenso, a ameaça de retomada da força se fazia presente, o que era reiterado muitas vezes por Veja. Como exemplo, a fala de Antonio Ermírio de Moraes: "ou botamos o país nos trilhos ou o processo democráti­

co corre perigo e vamos voltar a bater continência". 23

Nesse contexto se organiza e ganha força o Fó­

rum Nacional, que não se confunde com o MCD, mas possui membros em comum. Ele assumiu a tarefa da elaboração do programa de parcelas do empresariado nacional, com o sentido neolibera­lizante. Segundo seus fundadores, ele "não é uma

simples instituição de pesquisa, ou órgãos de debates. Funciona como agente da sociedade civil, em caráter

independente e apartidário e com sentido pluralista.

Sua preocupação é contribuir para o diálogo das lide­ranças nacionais, públicas e privadas (poder Executivo,

Congresso, Poder judiciário, organizações empresariais,

sindicais, acadêmicas, confessionais, comunitárias, per­

sonalidades de prestÍgio e influência) . Diálogo orien­tado pela busca de caminhos para o desenvolvimento do

país, em suas múltiplas dimensões: econômica, socia l,

política, cultural. E voltado para o processo de tomada

d d . - I" 24 as eClSoes para tanto re evantes . Criado em 1988 , paralelo e em sintonia com

a criação do PSDB, ele não se restringiu ao pro­cesso eleitoral, mantendo seu papel de estado maior, como fica claro nas defmições de suas funções. O Fórum foi criado com a seguinte de­finição oficial: "O I Fórum Nacional, realizado no Rio de janeiro em novembro de 1988 (tema básico:

Idéias para a Modernização do Brasil), procurou de­senhar um amplo painel das questões mais relevantes

do desenvolvimento nacional, já com a clara intenção

de encontrar as respostas para seu erifrentamento. Um

Brande número de especialistas debruçou-se, durante vários meses a examinar: I - os problemas conjunturais

23 Apud Dreifuss, p. 268. 2. Site do Fórum acionaI. www.inae.org.br.

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da economia (iriflação, dívida externa, difícit público);

II - a crise brasileira e a a8enda para sua superação (orientada para o objetivo de modernização econômica,

social e política); III - os descif10s para o Brasil da nova

economia mundial; IV - as várias opções estraté8icas

vislumbradas (nova estraté8ia industrial e tecnoló8ica; retomada do crescimento; crescimento com redistribui­

ção e rifarmas; modernização do capitalismo nacional; riforma do Estado)."25

Veja, além de elogiar a iniciativa e dar-lhes cobertura, abriu indiretamente suas páginas para que propusessem o seu "projeto nacional", o que nos faz acreditar na exi tência de ligações orgâni­cas em termos de projeto político e de elaboração ideológica. No entanto, a revista não se aSSllme enquanto porta-voz do Fórum. A organicidade se dá por: divulgação de materiais, inclusive com produção de matérias a partir dos textos produ­zidos nos Seminários do Fórum; recorrências aos seus membros como "porta-vozes" do programa de" globalização"; elogios diretos ao Fórum como um grupo que efetivamente estaria "pensando o país" mesmo em momentos de crise; elogios ao seu fundador, pelo papel de articulação, o ex-mi­nistro do governo de Castelo Branco, João Paulo dos Reis Velloso.

Entre os seus sócios, há ligações com outras entidades associativas e com o mundo acadêmi­co, onde se processa a formação dos intelectuais gerentes. E também com associações multina­cionais e do mercado e ações. Há, em termos gerais, uma linha de continuidade com relação aos grupos estudados por Dreuuss e que deram os rumos econômicos do que viria a ser o regi­me militar, especialmente a abertw-a ao capital externo. Eles agora se rearticulavam, em nome da "modernização" no processo democrático. O outro veio de atuação desse projeto são os parti­dos políticos, especialmente o PSDB, e Fernando Henrique Cardoso, que faz parte do Conselho Diretor do Fórum Nacional.

Os setores que estão aqui representados são também alguns dos que estão presentes nas

2S . b www.mae.org. r.

80 História & Luta de Classes

páginas amarelas de Veja: os próprios capitalistas ("empresários"), os gerentes do capital nacional e externo, seus intelectuais orgânicos, e ainda a so­ciedade política, que agem como formuladores e executores. Essas pessoas são as articuladoras em torno do programa que seria colocado em cur­so, constituindo-se como um estado maior que definiria as funções específicas de cada fração das classes dominantes no processo. Eles estiveram durante todo o período da pesquisa, várias ve­zes presentes nas páginas de Veja, seja nas páginas amarelas como entrevistados, seja em citações diversas. Há uma expressiva afinidade entre os intelectuais do Fórum e a revista.

A gestação de um "projeto para o Brasil" foi partilhada por Veja e pelo Fórum Nacional. De resto, a editora e o ex-ministro Reis Velloso já vinham tendo atuação no sentido de propor um projeto para o Brasil. 26 Embora não se confun­dam, esses dois instrumentos convergem para o projeto encampado pelo governo de Fernando Henrique Cardoso que ajudaram a eleger. A afi­nidade com o governo é nítida, em que pesem divergências pontuais.

No início da década de 1990, João Paulo Reis Velloso apontava para o momento de "repensar o

Brasil e realizar o nosso aggiornamento", 27 ou seja, propunha um ajuste histórico com o passado e uma projeção de futuro, apontando como amál­gama desse projeto a idéia de "modernização". N esse sentido, várias vezes o FN encaminhou suas ações, "através da realização simultânea das três modernidades: a econômica, a social e a política" . 28

26 Velloso, antes da criação do Fórum já era referência

para a editora Abril, como indica a publicação da obra:

VELLOSO, João Paulo dos Reis. Brasil: a solução posi­

tiva . São Paulo, Abril-TEC, 1978.

27 VELLOSO, João Paulo dos Reis . Um país sem projeto:

a cri e brasileira e a modernização da ociedade - pri­

meu'as idéias. In: VELLOSO (Coord.). A crise brasilei-

ra e a modernização da sociedade. Rio de Janeiro : Jo é

Olympio, 1990, p. 6.

28" Modernidade tríplice" . In: VELLOSO. (Org). Inovação

e sociedade. Rio de Janeiro : José Olympio, 1993, p. 12.

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Ao tratar do Plano Real remetem à essa re­tórica, buscando com isso pautar a discussão, di­zendo que essa seria a forma atual de resolver o problema da "questão social", como alertava Velloso: "modernidade não é apenas crescer rapida­

mente ou voltar-se para a competitividade" . 29 O tem­po todo, busca pautar a política nacional, caberia ao Fórum" apenas propor idéias para o projeto nacio­nal, e não de ele próprio tentar elaborar um projeto,

função destinada aos partidos políticos". 30 Reserva­se a função de apontar rumos a serem seguidos pelas demais organizações políticas, pelo Con­gresso Nacional e pelo poder Executivo.

Com o governo de Fernando Henrique Car­doso adquire estatuto central o tema da "gover­nabilidade", definindo limites para a "democra­cia": "como conciliar o nosso multipartidarismo com

o avanço, no sentido de dar solução aos arandes pro­

blemas nacionais, e, em especial, com a boa aestào da economia".31 O Fórum, no momento da eleição de FHC, continua com patrocínio de grandes empresas e dos" estados maiores internacionais" . Na publicação do VI Fórum Nacional, ocorrido no Rio de ] aneiro, em 1994, os patrocinadores foram: Banco do Brasil, BID, BNDES, Centro Internacional de Pesquisas para o Desenvolvi­mento (Canadá), Fiesp, FINEP, FIR]AN, Funda­ção Ford, IBMEC, Instituto Latinoamericano de Desenvolvimento Econômico e Social, Sebrae, e de empresas como Bradesco, Fundação Brascam, Grupo Rhodia, Grupo Ultra, White Martins. O Congresso Nacional, conclui Velloso, já mos­trou que "pode funcionar bem quando se trata de

29 A pauta da di cussão do VI F foi: a construção da

modernidade econômico-social. In: VELLOSO e AL­

BUQUERQUE (org.) . Modernidade e pobreza . São Pau­

lo: Nobel, 1994, p. 13.

30 "Introdução geral: idéia para a modernização do

Bra il". In: VELLOSO, ob. cit., p. xiv.

31 VEL LOSO. João Paulo Reis. Introdução: o gran­de de-a fios econômico- ociai do paí . In. VELLOSO

e ALBUQUERQUE (coord) . Governabilidade e rifarmas.

Rio de Janeiro, Jo é Olympio, 1995, p. 9.

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realizar rifarmas - mesmo constitucionais - de caráter

mais nitidamente ideolóaico. Daí acontecer o impOSSÍ­

vel: a aprovação da flexibilização de monopólios, por

esmaaadora maioria, superando as arandes restrições a emendas constitucionais" . 32

Ou seja, teria que ser possível levar adiante o projeto, "ainda que sob uma democracia" e com "tantos partidos", e isso estavam construindo. Isso, segundo ele, se devia ao fato de que a socie­dade "nos últimos anos, realizou em arande medida a

sua transição intelectual e ideolóaica, em direção aos

paradiamas da modernidade econômica, e contra os radicalismos estatizantes e nacionalistas". 33 As con­dições apontadas como necessárias no início dos anos 1990, são" ensinadas" à exaustão pelo pro­grama de reforma moral e intelectual expresso em Veja, estariam sendo concretizadas.

A eleição de Cardoso não obscureceu para Veja e para o Fórum a importância da continui­dade da direção e da formação, de forma a per­mitir que nos momentos decisivos as mudanças neoliberais continuassem, ainda que houvesse posições divergentes e resistência social. Ou seja, permanece a noção de projeto e a disputa hegemônica é explicitada no texto de introdu­ção de 1994, do então Ministro da Fazenda, Ru­bens Ricupero: "Ainda não aprendemos que, depois

da Constituição de 1988, temos um sistema em que o

Conaresso e o judiciário reúnem soma de poderes muito

arande, sobretudo no caso do Conaresso. É preciso, ao

eleaer alauém, pensar não só nas qualidades pessoais,

que, é claro, continuam decisivas, mas também em quais

são as possibilidades que esse candidato tem de se via­

bilizar. O que nos tem faltado até aaora é um consen­so operacional, uma maioria estável no Conaresso

Nacional, enfim aquilo que os aramscianos chamam de uma aliança henemônica. '>34 Ricupero comple­ta: "é importante meditar sobre isso porque, na eleição

32 Idem.

33 Idem .

3+ In : VELLOSO, J. P. R. (Coord.) Estabilidade e cresci­

mento: o de afio do Real. Rio de Janeiro, Jo é Olym­

pio, 1994, p. 13 . Grifos meu.

Carla Luciana Silva / Veja: mais um partido neoliberal 81

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passada, a primeira que representou uma escolha já com as reBras de 1988, essa consideração não pesou

absolutamente. Acabamos eleBendo um presidente que

talvez tivesse uma aBenda, mas que não tinha maioria,

não tinha partido, não tinha, como se revelou depois,

condições não só de realizar sua aBenda, mas sequer

de se manter no poder quando surBiram as dificulda­

des conhecidas." Essa análise coloca abertamente o papel que esse grupo atribui a si: organizar o consenso, o que se deu tanto em 1989 como em 1994 (como já ocorrera também no processo Constituinte de 1993, que aqui não será aborda­do por falta de espaço).

Trata-se de uma síntese da atuação do Fórum Nacional, o estabelecimento de relações, a am­pliação do Estado, permitindo a consolidação de seu projeto. A aplicação do programa neoliberal no Brasil esbarra em embates políticos. E cada vez mais o discurso "técnico" é usado para justi­ficar medidas que somente os conhecedores de economia são capazes de compreender em sua complexidade, mas não são todas e quaisquer me­didas que podem ser tomadas nessas condições. Na medida em que a conjuntura internacional se modifica, as táticas precisam ser revistas, mas a atuação do Fórum procurar estar sempre à fren­te da conjuntura.

As publicações do FN expressam análises sistemáticas, projetivas, formando efetivamente uma elite de intelectuais orgânicos vinculados ao "projeto para o Brasil". Muitas dessas formula­ções aparecem em Veja, de forma simplificada, ideologizada, objetivando formar uma grande "massa de intelectuais", reprodutores e executo­res desse projeto de "democracia de massas" .

O estudo dessas relações precisa ser apro­fundado, pois faz parte de uma relação entre im­prensa e poder no Brasil que apenas se aprofunda ao longo da história recente.

BIBLIOGRAFIA

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Para além do espelho: os problemas das leituras do Círculo de Bakhtin

o presente artigo! pretende mostrar a dificul­dade de se entender o sentido que o Círculo de Bakhtin , e mais especificamente Mikhail Bakhtin e Valentin Volochinov, deram a alguns conceitos que vêm sendo amplamente utilizados pela Lin­güística nas últimas décadas, se forem separado da totalidade do pensamento desses autores, que se basearam em visão marxista da realidade. Para tanto, situaremos esses dois autores dentro do contexto intelectual da época em que pes­quisaram e escreveram os textos que conhece­mos hoje, procurando mostrar o quanto foram influenciados por esse contexto. Procuraremos igualmente re altar o contexto epistemológico no qual desenvolveram suas produções: o mate­rialismo histórico.

INTRODUÇÃO

Nos estudos lingÜÍsticos , as pesquisas referentes à sociolingüística são comumente relacionadas a

• Doutora em Lingüística pela Univer ité CathoUque de

Louvain, Bélgica. Professora do Programa de PÓ Gra­

duação em Legras da UPF e do Programa de PÓ -Gradua­ção em Hi tória da UPF. E-maU: flor nce@ via-r .net

1 Agradecemo a leitw"a e o com ntário do hi toria­

dor Mário Mae tri do PPGH da UPF.

Florence Carboni ,to

áreas teóricas marginais em relação à LingÜÍstica - sociologia da linguagem, filosofia da lingua­gem, história das línguas, dialetologia etc. Essas denominações tendem a conotar um caráter in­certo, ambíguo, mais do que denotar uma natu­reza interdisciplinar.

Esse fenômeno deve-se evidentemente ao conteúdo referencial fortemente restrito que o termo "Lingüística" possui desde a publicação do Curso de lingüísti ca geral, dominado por um objeto abstrato, alongue, "que existiria de modo quase natural e evoluiria segundo sua própria tempora­lidade" [AUROUX & ORLANDI 1998 , 3] e um modelo teórico a-histórico e a-social, nos fatos, incapaz de explicar a complexidade dos fenôm e­nos linguageiros do mundo real. Esse modelo , com suas "abstrações mutilantes" [Ibid.], apesar de ter sido tendencialmente superado nas últi­mas décadas, continua sendo justificado, porque seria a única alternativa epistemológica possível na época em que foi elaborado.

Na história das idéias lingüí ticas, vemos que as descrições e teorias obre as línguas e a lingua­gem verbal acabaram propondo apenas uma cer­ta visão das comunidades lingüística e, de modo mais ou menos sutil, favoreceram não somente certo aspecto da vida das línguas e da lingua­gem verbal, mas também e, obretudo, certo

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setores sociais, certos falantes e certas forma­ções discursivas, em detrimento de outros.

Além de se construir à luz de determinadas correntes de pensamento filosóficos e científicos, as reflexões sobre a linguagem verbal e as línguas contêm necessariamente a representação ideoló­gica de seus autores a respeito das comunidades dos falantes e de seus conflitos. Nessas reflexões, já se evidencia "o germe de uma prática ulterior da qual essa representação seria um dos cons­tituintes". [CALVET 1988, 49] Portanto, é ne­cessário não perder de vista "sob que condições determinados saberes tornam-se hegemônicos ou legitimados superestruturalmente e passam a exercer determinadas formas de controle sobre outros". [ZANDWAIS 2005, 84]

Entre o momento em que Saussure proferiu suas aulas de Lingüística Geral na universidade de Genebra e o em que suas idéias foram publica­das no Curso de Lingüística Geral, servindo de base para um pensamento lingüístico hegemônico no século 20, surgiram inúmeras outras importantes teorias que procuravam explicar a complexidade dos fenômenos linguageiros, mas que permane­ceram pouco conhecidas ou nas sombras. Houve igualmente uma opção clara por parte do Curso quanto à escolha de suas referências científicas e filosóficas, ignorando deliberadamente as diver­sas correntes científicas inovadoras da época.

É impossível compreender as idéias do Círculo

formado, entre outros, por Bakhtin e Volochinov, lançando mão de construções conceptuais forte­mente reduzidas por essa Lingüística estrutura­lista hegemônica. Assim como é impossível apre­ender a complexa e multifacetada visão dos fenô­menos linguageiros desses intelectuais sem ter em mente as condições sócio-históricas em que ela foi elaborada e sem conhecer o aparelho teórico­filosófico no qual ela se apoiou. As páginas que seguem serão consagradas a essa tentativa.

Esse artigo parte igualmente da idéia de que o lingüista tem uma função social e política. Idéia que levou, na década de 1970-80( o sociolingüista francês Louis-]ean Calvet a declarar-se "fascinado por essa espécie de esquizofrenia que permite a

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Noam Chomsky ser, por um lado, na sua vida 'ci­dadã', um homem püliticamente engajado e, por outro, na sua vida científica, um formalista re­negando à língua qualquer característica social". [CALVET 1988, 10<' 1] Com outros intelectuais de sua época, Mikhail Bakhtin e Valentim Volo­chinov mantiveram-se sempre coerentes com suas idéias, na defesa de uma compreensão mais profunda das relações entre os seres humanos.

As VIDAS

Mikhail Bakhtin nasceu em OreI, na Rússia, em 1895. Ele graduou-se em História e Filologia na universidade de Odessa, na Ucrânia, e estudou Letras na Universidade de Petrogrado (antiga São­Petersburgo). Em 1920, o jovem Bakhtin conse­guiu emprego como professor em Vitebsk, na Bie­lorússia, estrategicamente situada ao longo da via férrea que ligava Petrogrado a Varsóvia, "animado centro cultural, com um ativo jornal (Iskusstvo)

e freqüentes leituras e debates". [STAM 2000, 16]

Em Vitebsk, Bakhtin relacionou-se com o pintor Marc Chagall, natural da cidade, e parti­cipou posteriormente de grupo cultural forma­do por diversos intelectuais, denominado Círculo

de Bakhtin, salvo engano, em 1967, por primeira vez, nas publicações soviéticas . Do Círculo faziam parte vários intelectuais, entre eles, V. Volochi­nove P. N. Medvedev, crítico literário e, na épo­ca, presidente do Comitê Executivo da provín­cia, que assinariam obras mais tarde atribuídas a Bakhtin. [CALVET 1977, 25]

Em 1923, em razão de doença grave (osteo­mielite) que, quinze anos mais tarde, levaria à am­putação de uma sua perna, Bakhtin voltou a Pe­trogrado, agora já Leningrado. Segundo o eslavista francês Michel Aucouturier, nessa cidade, Bakhtin colaborou com O Instituto de História da Arte, ci-, dadela da escola formalista. [BAKHTINE 1978, 9] Após a publicação, em 1929, de seu livro sobre Dostoiévski, Bakhtin foi viver e trabalhar em Kous­tancü, na fronteira entre a Sibéria e o Kazakhstan, onde começou a compor uma monografia sobre

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o escritor e enciclopedista francês François Rab -lais (c.1483-1553). Em 1936, foi designado para trabalhar no Instituto Pedagógico de Saransk, na Mordóvia, e em 1937, instalou-se em Kimry, per­to de Moscou, onde lecionou no colégio local e participou dos trabalhos do Instituto de Literatura da Academia das Ciências da URSS.

Em 1946, Mikhail Bakhtin defendeu tese de doutorado sobre Rabelais na prestigiosa Acade­mia das Ciências da URSS. Segundo Aucouturier, a defesa da tese teria provocado um pequeno escândalo acadêmico no Instituto de Literatu­ra Mundial de Moscou, onde, apesar da opinião de parte da banca que desejava dar-lhe o título de doutor, obteve, após sete horas de delibera­ções, apenas o título de Candidato em Ciências. [BAKHTINE 1978,9]

Entre 1945 e 1961 , Bakhtin voltou a lecio­nar no Instituto Pedagógico de Saransk, onde, até 1961, dirigiu a seção de Literatura Russa e Estrangeira. Passou a gozar de maior notorie­dade, sobretudo após a publicação de seu livro sobre Dostoiévski, em 1963, e de sua tese sobre Rabelais - Rabelais na história do realismo - , em 1965. Em 1969, Bakhtin instalou-se em Moscou onde escreveu em várias revistas de literatura. Bakhtin morreu em 1975, em Moscou.

Valentin Volochinov também rtasceu em 1895. Vivendo em 1920 em Vitebsk, ensinou música no colégio onde Bakhtin era professor. De 1922 a 1924, estudou na Universidade de Pe­trogrado, no departamento de Etnolingüística da Faculdade de Ciências Sociais, fundada após a Re­volução de 1917, através da fusão das faculdades dedicadas aos estudos histórico-filológicos, de línguas orientais e de Direito. A nova instituição promovia programa interdisciplinar: História, Economia, Psicologia, Lógica, Lingüística Geral e Comparada, Teoria de Literatma e Língua Es­trangeiras . O filólogo e lingüista Jakubinskij, do qual voltaremos a falar, fazia parte do corpo do­cente da faculdade. [IVANOVA 2003, 164]

Em 1926, Volochinov iniciou doutorado no In tituto dos Estudo Comparativos das Li­teraturas e das Línguas Ocidentais e Orientais

- ILIaZV. O tema de sua tese foi "O problemê, da transmissão da pcJavra de outro". No instituto Volochinov teve a oportunidade de trabalhar com os lingüistas Jakubinskij e Polivanov. [Ibid, 165 ] Após o doutorado, de ensinou no Instituto Peda­gógico Herzen e, a seguir, no Instituto da Forma­ção Superior dos Especialistas em Belas-artes.

Em 1930, Volochinov e Jakubinskij passaram a colaborar na revista Literaturnaja uceba, do renoma­do romancista russo Máximo Gorki (1868-1936), que viveu na Itália de 1921 a 1932. Próximo a Le­nin e aos bolcheviques, Gorki aliaria-se a seguir c, Stalin. [BROUÉ 1988, 1056] Nessa revista, Volo­chinov publicou a maioria de seus artigos, precisa­mente nos números em que Jakubinskij publicou os seus. Em 1936, Volochinov morreu em sanató­rio, de tuberculose, aos 41 anos de idade.

As OBRAS

A obra do grupo de intelectuais que ficou co­nhecido, décadas mais tarde, como Círculo de

Bakhtin é imensa, multifacetada nos temas e densa nas reflexões . No entanto, apesar do mis­

tério, da polêmica e das operações ideológicas levantadas em torno da autoria das obras con­vencionalmente atribuídas a Mikhail Bakhtin, é possível encontrar um fio condutor nos princi­pais textos publicados pelos membros do Cír­culo e, mais especificamente, por Volochinov E'

Bakhtin. Isso não somente do ponto de vista de. objeto - a'linguagem verbal -, mas, sobretudo. no que diz respeito ao aspecto metodológico - o marxismo.

Para alcançar uma melhor compreensão des ­sa obra como um todo, é necessário apreendê-ht no seu contexto sócio-histórico e, mais especifi ­camente, na corrente da reflexões sociais con­temporâneas a ela. As obra do Círculo tratam fundamentalmente de dois temas: a linauaaelT;

verbal e a teoria da literatura. Ou, mais geralmen­te, da criação estética, sob o "guarda-chuva" de reflexão epistemológica mais geral, que con iste es encialmente na elaboração de uma ciência so­cial marxista da criação ideológica.

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Augusto Ponzio, lingüista, tradutor e especialis­ta nas obras do Círculo de Bakhtin, afIrma que, desde os anos 1920, "o trabalho de Mikhail M. Bakhtin se entrecruza com o das obras publicadas com o nome de alguns dos seus colaboradores e amigos do chamado 'Círculo de Bakhtin', a tal ponto que não pode ser nitidamente distinta daquelas, quase que confirmando sua tese sobre o caráter 'semi­outro' da 'própria palavra' e apesar dos críticos es­forçarem-se para estabelecer propriedade e pater­nidade." [PONZIO 2003: V - traduzimos]

A lingüista e pesquisadora brasileira de origem russa Ana Zandwais é da mesma opinião. Para ela, já que "a produção intelectual de Bakhtin foi sempre acompanhada por seus camaradas Valen­tin Nikolaevich Volochinov e Pavel Nikolaevich Medvedev, não nos cabe reivindicar uma autoria individual , considerando, sobretudo, o fato de que Bakhtin trabalhava coletivamente com Volochinov e Medvedev à época". [ZANDWAIS 2005,84.]

Para facilitar a busca do fio vermelho que une o pensamento dos membros do Círculo, seria in­teressante definir se os integrantes do grupo tive­ram uma mesma trajetória política e ideológica e uma proximidade de interpretação da realidade ideológica e social. As respostas a essas pergun­tas explicariam algumas das particularidades do conjunto da obra e aparentes contradições ou imprecisões terminológicas. A seguir, procura­remos identificar o tipo de preocupação teórica dos dois principais membros do Circulo.

Após O artigo" Arte e responsabilidade", pu­blicado em 1919, Bakhtin escreveu, em 1924, o ensaio "História da arte e estética geral", que de­veria ter sido publicado em revista literária que interrompeu sua aparição. Em 1929, publicou o livro já citado Os problemas da obra de Dostoiévski

e, nesse ano e no seguinte, as introduções aos volumes XI e XIII das Obras escolhidas de Tolstoi. Em 1934-35, editou o ensaio Slovo v romane [em português, "O discurso no romance"]. De 1939 a 1945, a URSS viveu envolvida pela II Guerra Mundial. Apenas concluído o conflito, Bakhtin apresentou, como vimos, sua te e de doutora­mento e, em 1963, publicou o livro Problemas da

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poetlca de Dostoiévski, edição revista e ampliada do artigo de 192 9. Em 1965, foi a vez do livro François Rabelais e a cultura popular da Idade Média

e do Renascimento, versão de Rabelais na história do

realismo, apresentada como tese de doutorado. [PONZIO 2003, V - Traduzimos]

Destaque-se que Bakhtin praticamente escre­veu e publicou, em forma ininterrupta, de 1919 a 1946, uma produção bibliográfica significativa, sobretudo considerando-se as condições mate­riais da época - textos manuscritos, composição tipográfica etc. - sempre no contexto de suas res­ponsabilidades, principalmente como professor.

Por sua vez, Volochinov publicou, em 1926, o artigo "O discurso na vida e na poesia" na revis­ta Zvezda. 2 Um ano mais tarde, editou o livro O

freudismo. Em 1928, Volochinov apresentava o ar­tigo "As mais recentes tendências do pensamento lingüístico ocidental" e, em 1929, o livro O mar­

xismo e afiloscfia da linguagem. Em 1930, a revista Literaturnaja uceba , de M. Gorki apresentou seus artigos "Estilística literária" e "Sobre as fronteiras entre poética e lingüística". [BACHTIN 2003; AL­PATOV 2003; BRANDIST 2003 - traduzimos]

TRADUTTORE, TRADITORE

A obra dos intelectuais do Circulo passou a ser no­tada desde 1963, quando foi reeditado, na URSS, o livro de Bakhtin sobre a poética de Dostoié­vski, publicado, como já assinalado, por primeira vez, em 1929. Dois anos mais tarde, em 1965, foi publicado François Rabelais e a cultura popular da

Idade Média e do Renascimento, escrito em inícios dos anos 1940. Na Europa Ocidental, este livro foi conhecido na década de 1960. O livro Mar­

xismo e filosifla da linguagem, publicado na URSS por primeira vez em 1929, por Volochinov, foi traduzido ao inglês apenas em 1973 e, ao francês,

2 E se texto encontra-se, em italiano, traduzido do rus­

so por Luciano Ponzio, no livro organizado por Augus­

to Ponzio LinBuQBBio e scrittura. Há uma versão inédita

em portuguê do artigo, a partir de tradução de Carlos

Alberto Faraco e Cristovão Tezza.

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em 1977, portanto, mais de quarenta anos após sua aparição! Demora devida sobretudo à desa­tenção dos lingüistas ocidentais.

Para dificultar a compreensão da obra do Cír­

culo, como lembra Carlos Alberto Faraco, nos anos 1970, "o lingüista Viatcheslav V. Ivanov, sem apresentar argumentos efetivos, aflfmou que o livro Marxismo e flloscfia da linguagem tinha sido escrito por Bakhtin e não por Volochinov, atri­buição de autoria que se estendeu, em seguida, aos outros textos mencionados [Freudismo e O mé­

todo formal nos estudos literários] e a alguns artigos também publicados sob a assinatura de Voloshi­nove Medvedev". [FARACO 2003, 13]

Há outros problemas que dificultam igual­mente a apreensão da obra do Círculo como um todo. Inna Ageeva,3 do Centro de Pesquisas em História e Epistemologia Comparada da Lingüís­tica da Europa Central e Oriental (Universidade de Lausanne, Suíça) levanta alguns deles. Apoiada em Todorov, ela lembra os problemas nascidos da publicação tardia de muitas obras do Bakhtin e das más traduções. A primeira situação teria cria­do dois tipos de dificuldades: muitos manuscritos perderam-se ou foram publicado com omissões; coletâneas de trabalhos e traduções supostamente assinados por Bakhtin, publicados após sua mor­te, constituem uma mescla de textos escrito em épocas diversas, ensejando que, por exemplo, trabalhos dos anos 1920 sejam lidos através do mesmo prisma de trabalhos de 1950-60.

Faraco lembra igualmente que a obra do Círcu­

lo "veio vindo à luz na Rússia (sic!) sem nenhuma ordem cronológica e sua publicação levou mais de vinte anos para se completar, desde a reedição do livro sobre Dostoiévski em 1963 até a edição, em 1986, de Para uma flloscfia do ato. Ironicamen­te, o primeiro dos textos mais longos escritos por Bakhtin foi o último a ser publicado!" [FARACO: 2003, 16] E o mesmo teria ac~:mtecido com a che­gada de sua obra no chamado Ocidente.

3 E a informaçõe foram obtida no ite da Univer i­

dad de Lau anne, www2.unil.ch/slav/ling.

ParaAgeeva, outras dificuldade nascem da or­ganização interna e externa dos textos assinados por Bakhtin. Ele teria escrito muitos textos sem pensar em uma possível publicação, sem se preo­cupar, portanto, com uma maior clareza; sem ar­ticular suas idéias ou organizá-las em um sistema preciso. Ele também teria utilizado uma termino­logia singular, às vezes ambígua e cheia de conota­ções. Faraco lembra que muitos dos textos publi­cados em coletâneas são "manuscritos inacabados, alguns apenas rascunhados" . [FARACO: Ibid.]

Quanto às traduções das obras do Círculo,

por um lado, elas foram feitas por profissionais que não sempre conheciam, entendiam ou res­peitavam o pensamento dos autores e, não raro, a partir de outras línguas que o russo, na qual os textos foram escritos (especialmente do inglês e do francês). Por outro, mesmo os tradutores que trabalharam a partir do russo tiveram que "tomar opções gerais de tradução. Em particular, evitar a armadilha da modernização da terminologia" . [SERIOT 2003 , 4]

Para Sériot, no contexto científico atual, "pós-benvenistiano", é no mínimo problemático utilizar termos como discurso, enunciado, enuncia­

ção,jola etc. Na mesma ordem de idéias, Faraco lembra "a confusão que se criou com o termo po­

lifonia, seja por ser ele tomado inadvertidamente como sinônimo de heteroglossia (ou pluri linguis­

mo); seja pelo sentido que ele tem no quadro de referência do lingüista francês O. Ducrot, nem sempre claramente distinguido, entre nós, de seu sentido em Bakhtin". [FARACO 2003, 17]

As traduções sucessivas, em contextos cien­tíficos diversos, levaram a que conceitos es­senciais dos escritos de Bakhtin e Volochinov - vyskazyvanie, slovo, rti. etc. - fossem traduzidos por equivalentes por vezes surpreendente ou fossem omitidos por tradutores preocupados em evitar repetições ou ambigüidades. Sequer o ter­mo russo foi sempre traduzido do me mo modo, o que cria dificuldades artificiais suplementares. Vyskaz'yvanie costuma ser traduzido como enun­

ciado, mas também como enunciação e até mesmo como discurso e texto; slovo - parole no entido de

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palavra e defala - é também encontrado tradu­zido por discurso. O texto " Slovo v zizni i slovo v poezii" foi traduzido em italiano por Augusto Ponzio como " La parola nella vita e nella poesia" e, em português, por Carlos Alberto Faraco, como "O discurso na vida e o discurso na arte".

Por outro lado, "em especial pelo viés do dis­curso pedagógico (mas não apenas), houve uma banalização de termos como diálogo, interação

e gêneros do discurso, retirados do vocabulário do Círculo, mas claramente despojados de sua com­plexidade conceitual". [FARACO 2003, 17] Craig Brandist, do Bakhtin Centre da Universidade de Sheffield, levanta o problema do uso por Bakhtin [Volochinov] de uma terminologia imprecisa, pró­pria de um filósofo que não tinha conhecimento profundo de certas questões. No início dos anos 195 O, após ter estudado de modo mais sistemático a lingüística contemporânea, Bakhtin teria, segun­do Brandist, se tornado mais seguro no uso dessa terminologia. [BRANDIST 2003,73]

o AMBIE TE INTELECTUAL

Sobretudo após os acontecimentos do final dos anos 1980, que ficaram conhecidos como a" Que­da do Mw-o de Berlim", generalizou-se no cha­mado Ocidente uma visão redutora e simplista da história da URSS, na qual teria dominado, de outubro 1917 até a Perestroika, em forma linear, uma constante e permanente repressão aos inte­lectuais que não se enquadravam ao pensamento marxista único, dogmático e autoritário oficial.

Em geral, essas leituras ideológicas, constru­ídas à margem de um conhecimento mínimo do que seja o marxismo enquanto filosofia da práxis e método científico de conhecimento, na base de informações cronologicamente imprecisas, quando não plenamente anacrônicas, desconsi­deram simple mente a complexidade e os ritmo históricos reais do processo de instalação da dita­dura burocrática talinista obre a URSS.

Na introdução do livro O jreudismo, afirma­se que, em 1927, quando o livro foi escrito, o "pensamento social, psicológico e filosófico na

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URSS já está profundamente marcado por uma ideologia que condiciona todo o comportamen­to social do homem exclusivamente à estrutura de classe da sociedade". [BAKHTIN 2004: XI] Essa afirmação é triplamente condenável em um contexto científico. Em 1927, não se concluíra, ainda, a dominância do stalinismo sobre o Parti­do Bolchevique e, muito menos, sobre a socie­dade soviética como um todo. Por outro lado, mesmo supondo que o aparelho de Stalin tivesse se apoderado do poder político imediatamente após os acontecimentos de 1917, é pouco crível que, em tão poucos anos , já tivesse conseguido influenciar "todo o pensamento social, psicológi­co e filosófico" do país.

Se a afirmação da introdução ao Freudismo fos­se pertinente, como se explicaria a efervescência cultw-al e científica que caracterizou a URSS, em

forma decrescente, até inÍcios de 1930, nas ciên­cias sociais, literatura, pedagogia, cinematogra­fia, arquitetura? Até 1926, o marxista Evgenij Preobrazenskij publicou suas investigações sobre a economia, explícita e diretamente opostas aos segmentos bw-ocráticos ascendentes. [BUCHA­RIN & PREOBRAZENSKIJ 1973] Entre 1924 e 1927, o cineasta Eisenstein produziu suas revolu­cionárias películas" A greve", "Encouraçado Po­temkin" e "Outubro". Vigotsky prosseguiu inves­tigando criativamente até sua morte, em 1934 e "perto do fim de sua vida", teria recebido "oferta para instalar e chefiar uma seção dentro do Ins­tituto All-Union de Medicina Experimental em Moscou". [VEER &VASINER: 1996,30]

Segundo a opinião de renomados eslavistas, após a Revolução Bolchevique de 1917 até o fi ­nal da década de 1920, a "lingüística na União Soviética [ ... ] é um universo fascinante". [SE­RIOT 2003, 1] Naquele ambiente científico re­volucionário, ensejado pela queda do tzarismo e pelo início da construção de um Estado operá­rio, lingüistas e críticos literário "ocuparam- e de questões muito atuais para a época e as con­cepções que elaboraram nos seu trabalho fo­ram determinadas pelo nível dos abere de seu tempo". [IVANOVA 2003, 178 - traduzimo]

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Ana Zandwais também considera necessário situar Mikhail Bakhtin e Valentin Volochinov a partir de um contexto político revolucionário, como "intelectuais orgânicos, responsáveis pelas condições de produção de saberes que viessem a corroborar a transformação social e a emancipa­ção intelectual do proletariado russo". Assinala igualmente a necessidade de entender essa pro­dução no contexto da "tensão estabelecida entre as contribuições do Círculo de Bakhtin e as 'idéias oficiais' dominantes na cultura soviética das déca­das de 20 e 30". [ZANDWAIS 2005, 84-85]

Segundo Ivanova, se for analisada a situação geral das ciências da linguagem na URSS nos anos 1920, aparece claramente o quanto "essa época é caracterizada por uma grave crise da lingüistica histórico-comparativa", "considerada como uma ciência abstrata, que se ocupa de um objeto muito distante da vida real". As preocupações dos filó­sofos da linguagem eram então ligadas principal­mente à língua viva e à criatividade lingÜÍstica, que refutavam explicitamente o positivismo. Desen­volveram-se pesquisas de novos objetos para a Lin­güística, mas também de novos caminhos de uma nova base metodológica, encontrada na filosofia materialista marxista. [IVANOVA 2003 176-1791

Para o lingüista francês Louis-]ean Calvel, apesar de se opor a essa corrente de pensamento, o Círculo "estava numa relação que poderíamos chamar de 'filiação crítica' com os formalistas" e uma prova disso seria a afirmação assinada por Medvedev: '[. .. ] toda ciência jovem - e os estu­dos literários marxistas são muito jovens - deve preferir de longe um bom inimigo a um aliado ruim»', sendo que o "bom inimigo" era o forma­lismo. [CALVET 1977, 25 - traduzimos]

Quando tenta caracterizar a Lingüística do início do século XX, o também lingüista francês Georges Mounin (1910-1993) propõe de modo pertinente: ''[. .. ] por um lado, não podemos afir­mar que a corrente neogramática está totalmente esgotada. Por outro, não podemo caracterizar a lingüística de após 1900 com uma só palavra, que atrai muitas vezes os que as descrevem: Finalmente cheBou Saussure ... " [MOUNIN 1974,222] Ou seja,

antes e na época em que Saussure apresenta suas reflexões, outros lingüistas realizavam reflexões fundamentais, na Europa Ocidental e Oriental.

Na época em que Saussure proferiu suas aulas de Lingüística Geral na universidade de Genebra e em que se publicou o Curso de linBüística Berai, o lingüista polonês ]an Ignacy Baudouin de Cour­tenay (1845-1929), que trabalhou na Universi­dade de São-Peterburgo (Petrogrado), em 1868 e em 1900-20, já havia publicado, em 1869, ar­tigo em que afirmava que os sons da língua exer­ciam função distintiva. Décadas antes das teses desenvol vidas pelo Cí rcuio de PraBa, Baudouin de Courtenay sustentava que era necessário dis­tinguir uma disciplina fisiológica - que estuda os sons - de outra, psicológica - que estuda as imagens fônicas na suas funções lingüísticas. Isto contrariamente a Saussure, que distinguia apenas o som material significante. [LEPSCHY 1976, 64; MOUNIN 1983,23,27]

As teorias científicas de Courtenay serviram de base para o desenvolvimento da dialetologia soviética que buscava os "vínculos entre a língua, a estrutura da sociedade e a mudança das forma­ções sociais". [BRANDIST 2003, 60 - traduzi­mos 1 Grande parte dessas pesquisas foi realizada no Instituto da Cultura da Palavra - GIRK -, fun­dado em Pet:rogrado um ano após a Revolução de 1917, entre outros, pelo já citado lingüista ]aku­binskij. [IVANOVA 2003, 176] Esses estudos, nos quais participavam Polivanov e ]akubinskij, for ­neceram rico material às pesquisas sobre as for­mas de interação discursiva na literatura (como a relação entre dialetos sociais e língua nacional) e sobre as diferenças entre a linguagem literária e a linguagem quotidiana. Essas pesquisas foram desenvolvidas a seguir pelo Círculo de Bakhtin.

]akubinskij foi o lingüista que mais teria in­fluenciado Volochinov e, indiretamente, Bakhtin. Ele opunha-se a Saussure, sobretudo no que diz respeito à visão do lingüista uíço de uma ma sa social que recéberia a língua pronta, sem ter ação sobre ela. Jakubinskij fazia notar que, fosse as­sim, nenhuma política lingüística seria po sÍvel. Essa mesma po ição já fora defendida p lo citado

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"liberal de esquerda Baudouoin de Courtenay (de quem Jakubin kij havia ido aluno)". [ALPA­TOV 2003, 14 - traduzimos]

É também importante lembrar que, já em 1923, em Leningrado, Jakubinskij publicara um artigo de cem páginas intitulado "Sobre a fala4

dialogal" . Portanto, antes de Bakhtin e Volchinov, ele já considerava o diálogo uma manifestação essencial da fala quotidiana, apesar de suas idéia não terem tido séqüito na Lingüística. Segundo Ivanova, seria igualmente de Jakubinskij a idéia que o diálogo é a forma natural de existência da língua e seria a ele que Volochinov faz referência quando se refere a essa questão em Marxismo e

filoscifia da linguagem. [IVANOVA 2003, 174] Segundo a mesma autora, Volochinov também

se apoiaria "nas idéias de Jakubinskij quando ele analisa as formas diretas e indiretas da interação verbal. Além disso, Volochinov toma emprestado a Jakubinskij o termo 'resposta interna' (vnutren­

nee replicirovanie), que ele precisa para definir a propriedade de antecipação de resposta de cada enunciado, mesmo de um monólogo". [Ibid.]Volo­

chinov e Jakubinskij tinham portanto muitas idéias científicas em comum. Isto ajudado por terem es­tado em contato, como visto, no Instituto dos Es­tudos Comparativos das Literaturas e das Línguas Ocidentais e Orientais, onde Volochinov douto­rou-se e Jakubinskij ensinava, e por terem publi­cado seus artigos na revista Literaturnaja uCeba.

PARA UMA LI GÜISTICA MARXISTA

Sob o impulso social e cultural criativo da Revo­lução de Outubro, uma das grandes preocupações do grupo de pesquisadores do Instituto da Palavra Viva - e de outros grupos de intelectuais - era de­senvolver uma lingüística marxista. Em "Para uma lingüística marxista", publicado em 1931, e em artigos publicado postumamente, Polivanov, ex-

+ Há evidentemente uma confusão, ligada a problema

de tradução, entre os termo 'fala' e 'di curso', já que

a palavra reCi ignifica' discurso' e não' fala', no entido

de 'parole' imposto a e e conceito por Saussure.

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aluno de Baudouin de Courtenay, mostrou que, desde a época de Schleicher (1821-1869), a lin­güística já seria materialista. Aquele autor apontava que a diferença essencial entre essa lingüística ma­terialista e a lingüística marxista, a ser con truída, seria que "infelizmente, até agora, a lingüística só foi uma ciência histórico-natural e não uma ciên­cia social". [ALPATOV 2003, 10- traduzimos]

Polivanov considerava a abordagem socioló­gica [marxista] necessária até mesmo no estudo das causas internas da mudança lingüística. Ape­sar de algumas divergências, ele era próximo do Círculo de Praga. Como exemplo, Alpatov cita a resenha que Polivanov fez de um livro escrito por Jakobson e menções a Polivanov na corres­pondência entre Jakobson e Troubetzkoy. [POLI­VANOV 1968;TROUBETZKOY 1975]

A partir de 1931, os marristas5 tornaram-se lingüistas oficiais do Estado stalinista, proibindo a seguir a publicação dos livros de Polivanov em Moscou e Leningrado. Polivanov, que propunha que o lingüista devia também ser um "político da língua", foi preso em 1937 e fuzilado em 1938 . León Trotsky, o grande opositor à burocratização do Estado e ao stalinismo, fora expulso da URSS em 1929 e perdera a nacionalidade soviética em 1932, ano em que, sob duríssimas condições, prosseguia ainda a oposição política de esquer­da ao exórdio stalinista. A vitória do nazismo na Alemanha, a partir de 1933, pondo fim às or­ganizações operárias, facilitou sobremaneira a imposição total da ordem burocrática na URSS, onde a seguir seria liqUidada a velha guarda bol­chevique e marxista.

Entretanto, antes da consolidação da ditadura stalinista, entre 1930 e 1932, um grupo de lingüis­tas, contemporâneos de Jakubinskij e Polivanov,

5 Cf. Para uma melhor compreensão das teses de Marr,

MARCELLESI, ].-B. & GARDI ,B., Introduction à la

sociolinBuistique. La linBuistique socialej BAZYLEY, v. . « Les aurore japhétique du XXeme iecle» j ALPA­

TOY, V. M. « La linguistique marxi te en URSS dan les

années 1920-1930».

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apesar de aceitar a idéia da língua como superes­trutura, essencial no pensamento de Marr, ainda atacava de frente esse lingüista oficial, fundando o jaz'ykifront, a partir da palavra jaz'yk (lingual linguagem). Lomtev, Q principal teórico do gru­po, persistiu na tentativa de construção de uma lingüística marxista até os anos 1950-60.

Como já assinalado, o grupo de Bakhtin, Volo­chinov e Medvedev desenvolveu a maior parte de suas atividades em Petrogrado. Apesar de ter par­ticipado nessa cidade do Instituto de História da Arte, cidadela da escola formalista, Bakhtin e seus companheiros opunham-se explicitamente a essa corrente, ao mesmo tempo em que se preocupa­vam em superar a problemática saussureana e evitar qualquer forma de sociologismo [marxismo] vulgar. [BAKHTINE 1978, 10 et seq; HOUDEBINE, 146]

o PROBLEMA DAS I TERPRETAÇÕES

Para Augusto Ponzio, a "importância de um au­tor deriva da multiplicidade e da diversidade de leituras de sua obra. É esse o caso de Bakhtin. Desde que sua pesquisa emergiu após anos de si­lêncio, foram muitas as leituras a ele dedicadas, de perspectivas diversas. É preciso acrescentar que se trata de uma obra cujas partes foram des­cobertas e publicadas postumamente, aos pou­cos, e nem na ordem de sua composição. [ ... 1 Sua importância é tal que trouxeram uma nova luz sobre a inteira obra bakhtiniana. É preciso acres­centar também que o pensamento de Bakhtin, que, de per si, envolve diversos campos , foi transportado também para setores disciplinare dos quais ele não tinha se ocupado diretamente [ ... ]". [PONZIO 2003, VI: traduzimos]

Nas últimas três décadas, ocorreu verdadeira explosão de estudo das obras e dos conceitos de­senvolvidos pelo Círculo de Bakhtin, descoberto, explorados e utilizados nos mais variados domí­nio das ciências sociais, na filosofia, na crítica literária, na lingüística. Ne sa última di ciplina, a apre entação e aplicação dos conceitos "bakhti­niano " deram-se, muita vezes, não no contexto da visão que o autor tinham da filosofia ou

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ciência da linguagem, mas no contexto de outros pressupostos teóricos hegemônicos.

O lingüista Jonathan Culler apresenta de modo pertinente a principal razão desse último fenômeno: "A influência de Saussure sobre a Lin­güística moderna tem sido essencialmente de duas espécies . Primeiro, deu uma orientação geral, um senso das tarefas da Lingüística, que tem sido de grande influência e, na verçláde, raramente ques­tionada, por ter sido considerada por todos como a natureza mesma do próprio assunto. Para Saus­sure, a tarefa do lingüista era analisar uma língua como um sistema de unidades e relações; fazer Lingüística era tentar defrnir as unidades de uma língua, as relações entre elas, e suas regras de combinação. [ ... ] Desde Saussure essa [definição] tornou-se, muito de perto, a definição de inves­tigação lingüística. Não apenas a Lingüística des­critiva e teórica desenvolveu-se a fim de ocupar o lugar central que Saussure lhe prescreve, mas aqueles que trabalham em lingüística histórica ou em sociolingüística são compelidos a usar adjeti­vos como 'histórico' para mostrar como seu tra­balho se afasta da atividade central da disciplina. Alguém que desejasse discordar da concepção saussuriana da tarefa da Lingüística não o faria atacando Saussure, mas desafiando a própria idéia de Lingüística." [CULLER 1979,68]

Muitas interpretações das idéias do Círculo são também invalidadas pelo preconceito e pela falta de conhecimento da URSS e do marxismo, pró­prios à ideologia dominante desenvolvida no cha­mado Ocidente, sobretudo mas não apenas a par­tir da Guerra Fria. Mesmo os pesquisadores mais bem dispostos em relação a essas realidades incor­poram seguidamente no seu discurso preconceitos e estereótipos em relação ao contexto sócio-polí­tico soviético e ao materialismo histórico. Faraco lembra que "vários eslavistas estaduniden e , par­ticularmente na década de 1980 (talvez ainda com efeito da Guerra Fria), e vário intelectuais russo, em especial depoi do fim da UR S (talvez como efeito da ressaca pós-comunista), fizeram ingente e forço para desvincular o CÚ'culo de Bakhtin do marxismo". [FARACO 2003,27]

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N um procedimento totalmente anacromco, para comprovar que, afinal, Bakhtin e Volochinov não eram tão marxistas assim, é recorrente o uso do critério do número de vez em que aparecem nas obras do Círculo os termos marxismo, marxista

e conceitos considerados indispensáveis ao per­curso teórico marxista, como modos de produção,

superestrutura etc. [ALPATOV 2003, 15] Trata-se de procedimento simplista, se não simplório. O uso dessa terminologia, desenvolvida, sobretu­do, para a interpretação dos fenômenos sociais, e não especificamente lingüísticos, não implica ne­cessariamente na utilização de uma metodologia marxista e vice-versa. Parte essencial do projeto do Circulo foi precisamente a construção de con­ceitos marxistas específicos à linguagem verbal e a toda criação estética que tem como material a língua. Ou seja, a construção de uma interpreta­ção marxista da linguagem.

A "lógica terminológica" influenciou e conti­nua influenciando muitos autores. Após ressaltar que o marxismo não é pensamento homogêneo e monolítico possível de ser identificado com O

discurso oficial do PC da URSS e ter mostrado que não "é preciso ir longe para mostrar que es­ses pressupostos empobrecem demais a discus­são e impedem uma apreciação mais consistente da questão como um todo", Faraco afirma que, contrariamente a Voloshinov e Medvedev, que procuraram evidentemente intervir no debate de sua época voltado para uma temática marxis­ta, "Bakhtin não vinculava seu pensamento a uma arquitetônica que se pudesse classificar de mar­xista". [FARACO 2003, 27]

É facilmente demonstrável a preocupação central, essencial e explícita de Bakhtin e de Vo­lochinov em construir método de interpretação materialista da criação estética e da linguagem verbal. É também simples comprovar que os dois pesquisadores viveram e foram profunda­mente influenciados por um contexto político e social revolucionário, em que uma das grandes preocupações era "interpretar, à luz da Filosofia da Práxis, os princípios que deveriam reger o interesses teórico-práticos que constituiriam 'o

92 História & Lut;. .'e S lasses

consenso institucional' do Estado Bolchevique". [ZANDWAIS 2005 , 84]

Para Ponzio, o que diferenciava Bakhtin [Vo­lochinov] e Vigotsky de outros autores contem­porâneos de orientação marxista é justamente a consciência" do caráter deficitário do marxismo em relação ao estudo da consciência, da lingua­gem e das formações ideológicas particulares, como a arte; e, além disso, [a] orientação de sua pesquisa no sentido da determinação da especifi­

cidade do objeto estudado, indo além das fórmu­las genéricas, da superficial aplicação de catego­rias como 'estrutura', ' superestrutura', 'classe ' e da conseqüente interpretação mecanicista da consciência, da linguagem e das ideologias". [PONZIO 2003 : 119]

Na introdução de O marximo e a filosifia da

linauaaem, Volochinov lamentava precisamen­te a inexistência de análise marxista no âmbito da filosofia da linguagem, mostrando que dessa lacuna derivaria a incapacidade desse ramo das ciências sociais de apresentar uma "análise mar­xista sistemática e definitiva dos problemas de base da filosofia da linguagem" que, ao seu ver, só poderia dar-se a partir de um trabalho coletivo de longo prazo, demonstrando igualmente a es­sencialidade, na filosofia da práxis e naquela con­juntura revolucionária, de uma visão coletivista até mesmo da construção do saber. [BAKHTINE 1977, 19 - traduzimos]

Além da indiscutível opção epistemológica e metodológica de Marxismo efilosifia da linauaaem, e mais especificamente, de sua primeira parte, onde Volochinov esforça-se "para mostrar a importân­cia dos problemas da filosofia da linguagem para o marxismo no seu conjunto", todos os outros escritos, em forma mais ou menos explícita e di­reta, constituem análises finamente materialistas, onde não raro essa opção teórica é cabalmente ex­plicitada pelo autor. [BAKHTIN 2004, 26]

No célebre texto "A respeito do marxismo em lin ­

aÜÍstica", publicado no jornal Pravda, em 1950, Sta­lin reduziu a questão do marxismo na compreen­são da linguagem a um raciocínio implista: "[ ... ] se a língua fo e uma superestrutura, ela mudaria

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a cada época; no entanto, ela não mudou desde a Revolução de 1917 ... Portanto, a língua, o que é? Uma infra-estrutura? Um instrumento de produ­ção?Talvez, pois uma máquina é neutra, indiferente à noção de classe social." [STALIN 1950] Com essas reflexões, o Pai dos Povos negou premissas básicas do marxismo: o materialismo; o caráter singular e geral dos fenômenos; o caráter social e histórico das práticas humanas etc. Premissas que Bakhtin e Volochinov utilizaram constantemente, como ve­remos a seguir. [CALVET 1977, 145 et seq.]

POÉTICA, LINGüíSTICA, METAUNGüíSTICA

A criatividade lingüística e o problema da uti­lização de recursos linguageiros pelos escrito­res e poetas chamaram a atenção de filólogos e lingüistas soviéticos também devido às grandes mudanças que ocorreram na literatura, desde a primeira revolução russa, em 1905. Lingüistas interessados aos "problemas de forma e de com­posição das obras literárias e críticos literários que discutiam questões de lingüística", entre os quais encontrava-se o já mencionado Jakubinskij, fundaram duas sociedades : o Círculo Lingüístico de Moscou, em 1915, e a Sociedade pelo estudo da língua poética [OPOJAZ], em 1916, em Pe­trogrado. [IVANOVA 2003, 176]

Os formalistas, que ocupavam um lugar de destaque entre esses intelectuais, distinguiam a língua poética da língua prática, quotidiana. Para eles, nessa última, já automatizada, as palavras teriam perdido a imagem que continham na sua origem, tornando-se banais. Para diferenciar-se dela, a língua poética deveria respeitar alguns princípios, que esses autores procuravam elabo­rar. Língua poética e língua prática teriam se di­ferenciado igualmente em relação ao objetivo e à forma. [IVANOVA 2003, 177]

Para os formalistas, a "forma - concebida de modo muito re tritivo, como forma que organiza o material fazendo dele um objeto unitário, fini­to - torna- e o objeto principal, qua e exclusi­vo da pesquisa", poi ela organiza a obra poética. "Portanto, aJaIa não é considerada um fenômeno

sociológico, mas é analisada segundo uma perspec­tiva abstratamente lingÜÍstica do mesmo ponto de vista segundo o qual o 'objetivismo abstrato' considera a linguagem". [BACHTIN 2003, 38; PONZIO 2003, 18]

N o ensaio de 192 6, "O discurso na vida e o disclli"sO na arte" , Volochinov procurava compre­ender "a forma do enunciado poético enquanto forma particular de interação estética que se rea­liza no material constituído pela fala" , mostrando a necessidade da análise da linguagem quotidiana, já que nela já estão postas as bases e as poten­cialidades da futura forma artística. [BACHTIN 2003,40] Ponzio lembra que, apesar de Bakthin preconizar "a necessidade de basear a análise das obras literárias na 'filosofia da linguagem', [ele 1 afirma que a poética teórica não pode se dissolver ou encontrar fundamento nem na lingüística do 'objetivismo abstrato', nem na filosofia da lin­guagem segundo a tendência 'individualística­subjetivista'''. [PONZIO 2003, 19 - traduzimos]

Ponzio sugere que a "recíproca delimitação de poética e lingüística é reafirmada em Medvedev 1928 ['O método formal na ciência da literatw-a. Introdução crítica a uma poética sociológica'], em Volochinov 1930 ['As fronteiras entre poética e lingüística'] e fundamenta a distinção que Bakhtin apresenta em Dostoiévski entre lingüística e 'meta­lingüística' (esta última entendida como supera­ção do ponto de vista da lingüística)". [Ibid.]

TOTALIDADE E HISTORICIDADE

Para Georg Lukacs, não "é a predominância dos motivos econômicos na explicação da história que distingue de moelo decisivo o marxismo ela ciência burguesa". Efetivamente, para o célebre filó ofo marxi ta húngaro, a grande distinção entre as visões de mundo marxi ta e burguesa é a categoria de totalidade. [SEBAG 1964, 57] A mesma concepção que se encontra na base ele toda a reflexão de Bakhtin e Volochinov.

Em "O discur o na vida e o discurso na arte", ao referir- e à poética teórica - conjunto de problemas relacionados à forma artística e a seus

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vários fatores, estilo etc. -, Volochinov denuncia marxistas que consideram o método sociológico legítimo somente no momento em que "a forma poética adquiriu complexidade através do fator ideológico (o conteúdo) e começa a se desenvol ver historicamente nas condições da realidade social externa". Ou seja, que esse método seria "inútil e inoperante para a análise da forma em si", a qual possuiria "sua própria natureza e um conjunto de leis de caráter não sociológico mas especificamen­te artístico". [BACHTIN 2003,34 - traduzimo 1

Para Volochinov, tal concepção "contradiz fundamentalmente as bases primeiras do méto­do marxista - eu monismo e sua historicidade. A conseqüência disso e de pontos de vistas simi­lares é que forma e conteúdo, teoria e história, são deixados separados" . Volochinov propõe que toda obra artística e, portanto, toda obra literá­ria, sendo produto da atividade ideológica, de­senvolve-se na sociedade, pela sociedade, sendo intrínseca e imanentemente sociológica. [Ibid.]

No prólogo do livro Marxismo efilosifia da Iin­

auaaem, Volochinov também expressa sua preocu­pação pela não-existência de descrição da reali­dade específica dos problemas ideológicos e pela não-valorização do papel da língua, enquanto rea­lidade material específica da criação ideológica. [BAKHTIN 2004, 25] Devido a sua preocupação com a totalidade, Volochinov aborda o problema do signo a partir da visão da existência de uma "estreita relação de implicação recíproca, de inter­dependência, entre teoria dos signos e teoria da ideologia". [BACHTIN 2003, 8 - traduzimos]

No primeiro capítulo de Estética e teoria do

romance, Bakhtin reitera igualmente sua visão da impossibilidade de edificar-se a ciência de qual­quer arte independentemente do conhecimento e da definição sistemática do caráter próprio do domínio estético na unidade da cultura humana. [BAKHTINE 1978,26]

o MATERIALISMO

Bakhtin, Volochinov e Vigotsky afirmaram con -tantement a neces idade de uma abordagem

94 História & Luta de Classes

materialista-dialética em psicologia, para colher a natureza especificamente histórico-social dos processos psíquicos humanos. Eles opunham-se à concepção que via os fenômenos psíquicos como estados simplesmente subjetivos, cuja análise se desse apenas a~avés da introspecção. "A mesma tarefa tinha que ser enfrentada evidentemente também no campo do estudo das ideologias, da linguagem verbal e dos signos humanos em ge­ral." [PONZIO 2003: 121]

Ponzio também lembra que "a primeira parte de Marxismo e fi Iosifi a da linauaaem e de O méto­

do formal na ciência da literatura abordam questões desse tipo, sobretudo em relação à teoria geral das ideologias, evidenciando o caráter mediato da relação estrutura-superestrutura [ ... ] tomando posição contra a redução da vida psíquica social a algo secundário, derivante da vida individual, vista como pressuposto incondicionado." [Ibid.]

A visão de Volochinov do modo de produção da linguagem verbal é também esclarecedora: "As relações de produção e a estrutura sócio-política que delas diretamente deriva determinam todos os contatos verbais possíveis entre indivíduos, to­das as formas e os meios de comunicação verbal: no trabalho, na vida política, na criação ideológica. Por sua vez, das condições, formas e tipos da co­municação verbal derivam tanto as formas como os temas dos atos de fala." [BAKHTIN 2004, 38]

Bakhtin evidencia a concepção epistemológica marxista dos membros do CÍrculo:" A 'consciência lingüística' real, saturada de ideologia, que parti­cipa de uma plurivocalidade e de um plurilingüis­mo autênticos, escapava à vista dos pesquisado­res. É essa mesma orientação para a unidade que os obrigava a não levar em conta todos os gêneros verbais (familiares, retóricos, literários), porta­dore da tendências descentralizantes da vida da linguagem ou, em todo caso, que participam de modo substancial do polilingüismo. A expressão de sa con ciência da pluralidade e da diversida­de das linguagens na forma e nas manifestações particulares da vida verbal permaneceu sem efei­tos notáveis nos trabalhos da lingüística e da e ti­lí tica." [BAKHTINE 1978,98 - traduzimos]

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Mas é sobretudo na abordagem do problema do signo lingüístico que a opção teórico-meto­dológica de Volochinov, e indiretamente também de Bakhtin, que retomou as idéias de Volochinov sobre a linguagem verbal para desenvolver suas teorias a respeito da linguagem literária, adquire singular claridade. Na teoria dos signos de Volo­chinov, é clara a premissa central do materialis­mo: "[ ... ] a humanidade até hoje conheceu apenas um importantíssimo motor da história social: a luta de classe." [/bid, 153 - traduzimos] A posição epistemológica de Volochinov em relação ao signo lingüístico vai além e é bem mais profunda do que a afirmação feita por ele em Marxismo efiloscfia da

linBuaBem, banalizada, esvaziada de seu sentido e repetida ad nauseam em cw-sos de lingüística ge­ral, de que o signo lingüístico é a arena onde se defrontam acentos sociais contraditórios.

Para Volochinov, essa afirmação tem profun­das implicações teórico-metodológicas: ela signi­fica que "num signo se refletem e se manifestam relações de classes diferentes", que todo "falan­te pertence a uma classe, tem uma prqfissão, um certo grau de desenvolvimento cultural. [ ... ] Gra­ças a essas condições, a essas forças (' fatores ' ) que organizam seja o conteúdo seja a forma das enunciações, as palavras do falante são sempre permeadas de opiniões, de idéias, de avaliações que, em última análise, são inevitavelmente con­dicionadas pelas relações de classe." [Ibid.]

É grande o cuidado de Volochinov ao manejar o instrumental teórico materialista, para não cair na armadilha mecanicista e positivista que tanto criticou: "[ ... ] apesar das palavras, ao refletir a rea­lidade objetiva, refletirem junto com essa tamb' m uma visão socialmente determinada dessa realida­de, não se pode pôr um sinal de completa identi­dade entre o Significado objetivo, objetual da pala­vra, e o ponto de vista expresso nela." Num outro trecho, o mesmo autor afirma que, apesar de que cada "indivíduo humano conhece a realidade de um determinado ponto de vista ( ... ), um ponto de vista não representa um resultado pessoal do su­jeito conhecedor, mas é o ponto de vista da clas e à qual esse sujeito pertence" e, conseqüentemente,

"a objetividade e a exaustividade de um ponto de vista (a medida da correspondência da palavra com a realidade) são condicionadas pela posição dessa classe na produção social". [/bid, 156]

No entanto, "aquilo mesmo que torna o signo ideológico vivo e dinâmico faz dele um instrumen­to de refração e de deformação do ser. A classe do­minante tende a conferir ao signo ideológiCO um caráter intangível e acima das diferenças de classe, a fim de abafar ou de ocultar a luta dos índices sociais de valor que aí se trava, a fim de tornar o signo monovalente". [BAKHTIN 2004,47]

Contrariando a opinião generalizada de que, diferentemente de Volochinov, Bakhtin "não teria vinculado seu pensamento a uma arquitetônica que se pudesse classificar de marxista", é clara nos escritos do autor sua proximidade teórico­metodológica a Volochinov, cujas idéias lingüís­ticas o influenciaram sobremaneira. [FARACO 2003,28] Brandist afirma que, quando, em 1930-6, Bakhtin encontrava-se em Koustanal, na fron­teira entre a Sibéria e o Kazakhstan, ele dependia dos trabalhos dos lingüistas do Instituto da Cultu­ra da Fala de Leningrado e da revista LiLeraWmaja

uceba (na qual Volochinov escrevia), já que "não beneficiava mais da contribuição de Volochinov para suas idéias sobre a língua". [BACHTIN 2003, 40; BRANDIST 2003 , 61 - traduzimos]

É possível que Bakhtin tenha construído sua teoria do discw-so literário apoiado na leitura ma­terialista de Volochinov da linguagem verbal. Para o primeiro, um "enunciado vivo, significativamen­te surgido num momento histórico e num meio social determinados, não pode não tocar milhares de fios dialógicos vivos, entrelaçados pela cons­ciência sócio-ideológica ao redor do objeto de tal enunciado e de participar ativamente ao diá­logo social". É também consoante com a teoria do signo de Volochinov a afirmação de Bakhtin de que "todas as linguagens do plurilingüismo, não importando o modo como são individualizados, são pontos de vista específico sobre o mundo, formas de sua interpretação verbal, perspectivas objetais semânticas e axiológicas". [BAKHTINE 1978,85 e 113 - traduzimos]

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Na obra Estética e teoria do romance, Bakhtin afirma que a "fala esquece a história da concep­ção verbal contraditória de seu objeto e o pre­sente também plurilíngüe dessa concepção. Para o artista-prosador, ao contrário, o objeto revela , antes de mais nada, o caráter multiforme, social e plmilíngüe de suas palavras, definições e apre­ciações. No lugar da plenitude inesgotável do próprio objeto, o prosador descobre uma multi­dão de caminhos, estradas, ruelas, que sua cons­ciência social imprimiu nele. Junto com as con­tradições internas no próprio objeto, o prosador descobre ao redor dele linguagens sociais diver­sificadas, essa confusão de Babel que se manifesta em redor de cada objeto; a dialética do objeto entrelaça-se ao diálogo social do seu entorno". [BAKHTINE 1978 , 101-102 -traduzimos]

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Page 100: Fevereiro 2006 • R$ 15,00

Graciliano Ramos: modernista engajado

Graciliano se insere nesse contexto político e cultural da década de 1930, assumindo uma pos­tura crítica, identificada com as perspectivas da ANL. Essa identificação não se resumiu a um posicionamento político, interferindo na sua ati­vidade criadora: Caetés, São Bernardo e Angústia.

Dessa maneira tem como referência uma leitura crítica da década de 1930.

Em 1928, Graciliano Ramos foi prefeito de Pal ­meira dos Índios, cidade do interior alagoano. Os relatórios que produziu sobre sua gestão, dirigi­dos ao Governador de Alagoas, Álvaro Paes, foram responsáveis pelo início do seu reconhecimento público enquanto escritor. Isso se deve ao caráter literário que impôs ao conteúdo abordado.

O primeiro relatório se inicia com uma bre ­ve avaliação de sua gestão: "Não sei se a admi­nistração do Município é boa ou ruim. Talvez pudesse ser pior." 1 Em seguida, adverte o go­vernador que os trabalhos realizados pela pre­feitura não foram muitos, devido aos recursos

• Me tre em História pela Universidade Federal Flumi­

nen e, em 2005, com dis ertação intitulada Graci/iano

Ramos: criação literária e projeto político (J 930-1953). I RAMOS, Graciliano. Vivente das Ala80as. São Paulo, Martin , 1970, p. 184.

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exíguos. O contrato que a cidade havia feito em 1920 com a empresa de luz, na visão de Gracilia­no, parece ter causado prejuízos financeiros, e, por conta do mau negócio, afirma que até mes­mo a luz da lua estava sendo paga. "Apesar de ser negócio referente à claridade, julgo que as­sinaram aquilo às escuras." Outros assuntos que estão presentes são a pobreza e a seca do interior do nordeste brasileiro: "O Município é pobre e demasiado grande para a população que tem, re­duzida por causa das secas continuadas."2

A prestação de contas do prefeito foi publica­da no Diário Oficial. Devido ao estilo inusitado, vários periódicos alagoanos, entre eles o Jornal de Alagoas, O Semeador e o Correio da Pedra, O trans ­creveram . Com a repercussão, até mesmo jor­nais do Rio de Janeiro, como o Jornal do Brasil e A

Esquerda, dirigido por Pedro Motta Lima, publi­cariam trechos .

No segundo Relatório, 3 Graciliano afirma que a cidade estavc1 necessitada de um novo ce­mitério, e que os trabalhos necessários aos vivos foram o motivo de prorrogação da obra. "Os mortos esperarão mais algum tempo. São os

2 Idem, p. 187. 3 Idem, p. 197-207.

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munícipes que não reclamam."Toda a situação da cidade parece ser problemática. Não há estradas, não há saúde pública, nem educação decente:

"Presumo que esses estabelecimentos são de eficiência contestável. A aspirantes a profes­soras revelaram, com admirável unanimida­de, uma lastimosa ignorância. Escolhidas al­gumas delas, as escolas entraram a funcionar regularmente, como as outras. Não creio que os alunos aprendam ali grande coisa. Obte­rão, contudo, a habilidade precisa para ler jornais e almanaques, discutir política e de­corar sonetos, passatempos acessíveis a quase todos os roceiros ."4

O segundo Relatório seria publicado no Di­

ário Oficial com uma mensagem de louvor do ~overnador: "A administração de Palmeira dos Indios continua a oferecer um exemplo de traba­lho e honestidade, que coloca o município numa posição de destaque" ,5 e também seria noticiado em jornais de Maceió e do Rio de Janeiro.

Por intermédio de seu secretário, Rômulo de Castro, o poeta Augusto Frederico Schmidt, dono da Editora Schmidt, escreveu uma carta consultando Graciliano sobre a possibilidade de publicar o romance que havia escrito. Há duas versões de como Schmidt chegou até Graciliano. A primeira afirma que ele tomara conhecimento dos Relatórios através dos jornais e vislumbrara em Graciliano um escritor nato, que deveria ter um livro na gaveta. A segunda é contada por Jor­ge Amado e parece ser mais verossímil. Os círcu­los literários da Capital souberam de Graciliano através de Santa Rosa, que abandonara o emprego do Banco do Brasil em Maceió e se mudara para o Rio disposto a viver de sua arte. Santa Rosa fez com que muitos intelectuais tomassem conheci­mento dos Relatórios. Em seguida, José Américo

4 Idem, p. 201.

5 MORAES, Denis de. O velho Graça. Rio de Janeiro, Editora José Olyrnpio, 1993, p. 63.

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de Almeida revelou a exi tência dos originais de um romance escrito pelo autor. Ao tomar co­nhecimento da existência do romance, Schmidt escreveu a Graciliano demonstrando interesse em publicá-lo. Nesse período, diversos escrito­res iniciantes eram publicados por Schmidt, tais como Jorge Amado, Marques Rebelo, José Ge­raldo Vieira, Raquel de Queiroz, Cornélio Pena, Amando Fontes e Lúcio Cardoso, entre outros. 6

Em 1930, após ter renunciado ao cargo de prefeito, 27 meses depois de ter assumido o car­go, Graciliano é nomeado pelo governador Di­retor da Imprensa Oficial, em Maceió. Ao mu­dar-se para a capital , encontra um momento de efervescência cultmal e se insere rapidamente nos círculos literários. É nesse momento que co­nhece José Lins do Rego, Raquel de Queiroz e Jorge Amado. Em 1931, mais uma vez, demite­se. Em 1933, é nomeado Diretor da Instrução Pública de Alagoas. É o ano em que Schimdt lan­ça Caetés e Graciliano inicia a escrever São Bernar­

do, que é publicado em 1934, pela Editora A riel, de Gastão Cruls. Em 1937, Angústia é editado, e lançado com Graciliano preso.

Estes três livros possuem uma unidade entre si, que se caracteriza, entre outros elementos, principalmente pelo acompanhamento do pro­cesso de modernização capitalista que ocorre no Brasil da década de 1930. Este processo se con­figura pela associação de dois elementos, consti­tuindo-se numa unidade dos contrários, entre o moderno, que cresce e se alimenta em função do atrasado, que sobrevive na medida em que serve ao primeiro. Caetés apresenta o inicio desse pro­cesso, e Graciliano percebe estas transformações primeiramente relacionadas ao plano individual. Assim, elas se manifestam nos valores morais e afetivos, que são ao mesmo tempo civilizados e primitivos. Em São Bernardo O plano produtivo se torna mais claro para Graciliano, e é represen­tado pelo papel que a posse da terra cumpre no romance. Se a agricultura vai deixando de ser o

6 Idem, p. 65-66 .

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centro da economia ao longo do processo histó­rico, socialmente ela mantém sua importância. Angústia reflete o resultado dessa ..modernização que combina o moderno e o atrasado, ao invés de superar dialeticamente esta contradição, causan­do um sentimento de alienação, que vai além da exclusão econômica.

Caetés é a história de João Valério narrada em primeira pessoa, e ao mesmo tempo o título do romance que ele projeta escrever, inspirado no fato histórico do século XVI, do naufrágio em cos­tas brasileiras do bispo Sardinha, devorado pelos índios caetés. As duas histórias se complementam, como se a autobiografia fosse a versão contem­porânea daquela interpretação que João Valério escreve sobre os índios. A unidade dos contrários está literariamente representada no histórico e no contemporâneo, no selvagem e no civilizado.

Isso porque os traços psicológicos e de com­portamento aparentemente evoluídos com o tempo, na visão de Graciliano Ramos, são mar­cados pela persistência de elementos presentes desde a Colonização. Ao longo do romance, João Valério vai concluindo que não são alguns ele­mentos que se mantém desde a Colonização, mas pior, que a mesma lógica "civilizatória" nos rege ainda hoje: na verdade, não somente ele, mas to­dos nós, seríamos selvagens:

"Não ser selvagem! Que sou eu senão um sel­vagem, ligeiramente polido, com uma tênue camada de verniz por fora? Quatrocentos anos de civilização, outras raças, outros costumes. E eu disse que não sabia o que passava na alma de um caeté! Provavelmente o que se passa na minha, com algumas diferenças. Um caeté de olhos azuis, que fala português ruim, sabe e -crituração mercantil, lê jornais, ouve mi sas. É isto, um caeté. Estes desejos excessivos que desaparecem bruscamente ... Esta inconstân­cia que me faz dOidejar em torno de um sone­to incompleto, um artigo que se esquiva, um romance que não posso acabar ... O hábito de vagabundear por aqui, por ali, por acolá ( ... ); e depois dia extensos de preguiça e tédio

passados no quarto, aborrecimentos sem mo­tivo que me atiram para a cama, embrutecido e pesado ... Esta inteligência confusa, pronta a receber sem exame o que impingem ( ... ). Explosões súbitas de dor teatral, logo substi­tuídos por indiferença completa ... Admiração exagerada às coisas brilhantes, ao período so­noro, às miçangas literárias, o que me induz a pendurar no que escrevo adjetivos de enfeite, que depois risco ... "7

Na história, o personagem João Valério, guarda-livros da Teixeira & Irmão, estabeleci­mento que vende aguardente, álcool e açúcar, tem duas obsessões: os índios sobre os quais quer escrever um romance histórico, e Luísa, mulher de Adrião, dono da casa onde trabalha, que des­perta nele uma paixão violenta, mas sem gran­deza. Em uma das primeiras cenas do livro, João Valério dá um beijo no pescoço de Luísa e ela lhe repele, parecendo não demonstrar interesse por ele. Com o tempo, a sua postura vai mudando, ela acaba se declarando também e os dois tor­nam-se amantes.

Entre ser repelido e ser aceito, vão aparecen­do os personagens de uma pequena cidade do in­terior: o juiz, a imprensa, o padre, as pequenas intrigas, uma espécie de crônica do cotidiano. As cenas acontecem entre as suas duas obsessões, que mais do que apenas um livro ou um beijo, representam sua tentativa de evolução dentro da sua comunidade, ou da sociedade de um modo mais geral. Ao mesmo tempo, a superação é in­terna, no -sentido de superar suas fraquezas, e externa, de ser mais do que um mero funcio­nário.

Assim, por maiores obstáculos que tenha, João Valério não desiste. Com relação ao roman­ce, constata sua dificuldade após duas semanas sem escrever uma linha:

7 RAMOS, Graciliano. Caetés. São Paulo, Martin,

1969, p. 238 .

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"Também aventurar-me a fabricar um roman­ce histórico sem conhecer história! Os meus caetés realmente não tem verossimilhança, porque deles apenas sei que existiram, anda­vam nus e comiam gente."8

Quanto ao amor por Luísa, constrói seus afa­zeres de maneira a evitá-la. Deixa de freqüentar a casa do patrão para não conviver com ela, vive desconfiado todo o tempo com a idéia de que ela vai denunciá-lo por ter roubado o beijo no pescoço, porém, não consegue esquecê-la, pen­sando nela a todo instante:

"Que estariam fazendo na sala do Teixeira? Ele, com a calva brilhando sob um foco elé­trico, o beiço caído, a pálpebra meio cerrada, os óculos na ponta da venta, percorria a parte comercial dos jornais. Luísa lia um romance francês; ou tocava piano; ou pensava indigna­da nos beijos que lhe dei no pescoço."9

Com o desenvolvimento da trama e a con­cretização do namoro de João Valério e LuÍza, as duas obsessões tornam-se uma só: ainda que o livro praticamente suma da história, a projeção entre o selvagem e o civilizado ganha mais força, saindo das páginas sobre os índios e passando a explicar esta tortuosa paixão. João Valério passa a justificar que muitos dos valores considerados mais civilizados estão perdendo terreno, como por exemplo, o uso das mangas compridas pelas moças e a informalidade nas relações. Assim sen­do, seu amor era plenamente justificável, princi­palmente pelo elemento religioso:

"Que culpa tive eu? Certamente era melhor que não existisse aquela paixão: mas desde que existia, paciência, eu não podia arran­cá-la. E por causa do mandamento de um bárbaro, que teve a desfaçatez de afirmar

8 Idem, p. 38 . 9 Idem, p. 37-38 .

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que aquilo vinha do senhor, não iria eu con­servar-me em abstinência, amofinar-me no deserto." 10

Há neste momento uma clara valoração po­sitiva desta mudança de costumes e valores que o nosso protagonista identifica e que são ligadas à modernização da sociedade, a ponto de se tor­nar negativo o fato dos dois amantes morarem numa cidade pequena, onde nem tudo é per­mitido e possível. A confusão entre selvagem e civilizado aparece com João Valério criticando valores cristãos como bárbaros e vice-versa, e mais ainda na própria relação carnal que esta­belece com Luíza, pois o seu amor manifesta-se em ações animalizadas:

"Soltei-lhe as mãos, agarrei-lhe a cabeça, beijei-a na boca, devagar e com voracida­de. Apertei-a, machucando-lhe os peitos e mordendo-lhe os beiços e a língua. De longe em longe interrompia este prazer violento e doloroso, quando já não podia respirar. E recomeçava." 11

O acontecimento que altera a percepção po­sitiva de João Valério sobre os novos valores é o suicídio de Adrião que, depois de ter recebido uma carta anônima denunciando o romance de João Valério e Luísa, atira na sua barriga. Inicia­se, então, o caminho em que ele vai concluir que somos todos selvagens. O primeiro passo que acontece neste sentido é a certeza quanto ao au­tor da carta pretensamente anônima, e a incapa­cidade das pessoas de manterem segredos, prin­cipalmente os que não lhe dizem respeito:

"- Animal infeliz! Exclamei em voz alta. Referia-me ao Neves , a Adrião, a mim, ao

Miranda Nazaré, a toda a gente. Necessidade idiota de espalhar o que sabemo . Depois de

10 Idem, p. 163 .

11 Id m, p. 160.

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muitos dias ou muitos anos de canseira e con­jetura, um sujeito descobre uma lei da natu­reza - outro faz uma carta anônima contando os amores de Luísa Teixeira com um João Va­lério como eu."12

Adrião havia dado um tiro na barriga, mas sua morte não é instantânea. Os amigos passam uma semana aguardando na casa, juntamente com Luísa, que rapidamente deixa de ser um interes­se para João Valério. Mais uma vez os costumes bárbaros aparecem acentuados, por um episódio que lhes modifica o comportamento e a cerimô­nia usual de tratamento. Os homens e as mulhe­res mostram a sua verdadeira face, selvagem:

"Depois daquela crise, na promiscuidade e na azáfama dos dias de angústia, existia en­b-e nós todos uma familiariadade eSb-anhável. Dormíamos quase sempre juntos, homens e mulheres, sentados, como selvagens. Muitas necessidades sociais tinham-se extinguido; mostrávamos às vezes impaciência, irritação, aspereza de palavras; pela manhã as senho­ras apareciam brancas, arrepiadas, de beiços amarelentos; à noite procurávamos com ego­ísmo os melhores lugares para repousar. En­fim numa semana havíamos dado um salto de al guns mil anos atrás." 13

Se de imediato João Valério parece se sentir levemente culpado pela morte de Adrião, rapi­damente se esquece do episódio e se convence de que não havia motivo para o suicídio, porque o adultério era por demais corriqueiro na vida dos homens. Adrião havia morrido graças a uma doença, como o próprio médico afirmava. A ele só cabia esquecer, até porque era incapaz de so­frer por muito tempo:

12 Idem , p. 206 .

\3 Idem , p. 2 16 .

"A lembrança da morte de Adrião pouco a pouco se desvaneceu no meu espírito. Afinal não me devo afligir por uma coisa que não pude evitar. A minha culpa realmente não é grande, pois estão vivos numerosos homens que certas infidelidades molestam. E sou incapaz de sofrer por muito tempo. O Dr. Liberato falou em nevrose, e eu não tenho razão para pretender saber mais que o Dr. Liberato. Repito isso a mim mesmo para jus­tificar -me." 14

Com a morte do marido, João Valério perde o interesse por Luísa. Somente dois meses depois, procura por ela, e descobre que o amor dela por ele também havia se esgotado. João Valério con­segue ascender socialmente, tornando-se sócio do estabelecimento que antes era de Adrião, po­rém, com o custo de se adaptar à dinâmica selva­gem. Abandona os caetés, afirmando que um ne­gociante não se deve meter em coisas de arte,IS e o amor por Luísa, as duas maneiras principais pelas quais era capaz de evoluir.

A modernidade que havia inaugurado a pos­sibilidade de imprimir novo modo de ser a socie­dade, não se concretiza na realidade. Pelo con­b-ário, ao se combinar com o atrasado, mantém a estrutura proveniente dos primórdios da Coloni­zação, apesar de aparência de evolução. As cren­ças religiosas só haviam se modificado na medida em que outros deuses eram adorado. No lugar deles, João Val,ério, que se dizia ateu, havia colo­cado os intelectuais . Anula-se a distância enb-e o histórico e o contemporâneo, e reforça-se o fato de que éramos selvagens, somos selvagens e con­tinuaremos a ser seI vagens.

"Diferenças também, é claro. Outras raças, outros co tumes, quatrocentos ano. Mas no íntimo, um caeté. Um caeté descrente.

1+ Idem , p. 236 .

IS Idem , p. 234 .

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Descrente? Engano. Não há ninguém mais crédulo que p.u. E esta exaltação, quase vene­ração, com que ú ço falar em artistas que não conheço, fIlósofos que não sei se existiram!

Ateu! Não é verdade . Tenho passado a vida a criar deuses que morrem logo, ídolos que depois derrubo - uma estrela no céu, al­gumas mulheres na Terra." 16

São Bernardo é o segundo livro que integra a análise de Graciliano Ramos sobre o proces­so acelerado de modernização capitalista. Já não estamos mais no momento que imediatamente sucede o movimento de 1930, e algumas carac­terísticas que antes eram incipientes, podem ser observadas com mais clareza. O moderno e o atrasado convivem de maneira mais orgânica, o que fica demonstrado neste romance, que dife­rente de Caetés, não resume as contradições às mudanças de valores e costumes.

Dois movimentos centrais integram o roman­ce São Bernardo. O primeiro se refere à relação do personagem Paulo Honório com os homens, e a outra com ele próprio. Da primeira, resulta São Bernardo fazenda que se incorpora ao seu próprio ser, como atributo penosamente elaborado; da se­gunda, resulta São Bernardo livro de recordações, que assinala a desintegração de sua própria pu­jança. O romance apresenta a contradição entre o moderno e o atrasado, que aparece nas novas relações de trabalho, na modernização das má­quinas do setor agrícola, a nova relação com a po­lítica, de um lado, e a relação da terra como meio de status social, forma de dominação, e principal elemento simbólico de poder, de outro.

Assim como em Caetés, a modernidade mos­tra-se frustrante, incapaz de superar as expectati­vas que foram criadas em torno dela, justamente por sua relação indissociável com o atraso. Nova­mente o protagoni ta, no final da trama, conclui que mesmo havendo tantas mudanças na so­ciedade, as estruturas permanecem as mesmas.

16 Idem , p. 239.

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A diferença é que, se no primeiro livro, a ênfase estava nas modificações de características pes­soais e sentimentais, e~ São Bernardo, o central são as transformações na vida social, principalmente relacionadas à mercantilização da vida:

"Continuemos. Tenciono contar a minha his­tória. Difícil. Talvez deixe de mencionar par­ticularidades úteis, que me pareçam acessó­rias e dispensáveis. Também pode ser que, habituado a tratar com matutos, não confie suficientemente na compreensão dos leitores e repita passagens insignificantes. De resto isto vai arranjado sem nenhuma outra or­dem, como se vê. Não importa. Na opinião dos caboclos que me servem, todo o caminho dá na venda." 17

Um dos primeiros exemplos desta amplia­ção é a constatação de Paulo Honório, ao iniciar o seu livro, que afora os seus conhecimentos de estatística, pecuária, agricultura, escrituração mercantil, é um ignorante completo. Ou seja, aspectos que antes caracterizariam as qualidades de um senhor de terras, passam a ser vistos como componentes de uma ignorância, justamente por não servirem ao novo modo de organização pro­dutiva da sociedade. 18

Quando jovem, órfão e pobre, Paulo Ho­nório conta que ficou preso durante quatro anos por ter esfaqueado um homem. Na prisão aprendeu a escrever e quando sol to só pensava em ganhar dinheiro. Estabeleceu-se em Viçosa, Alagoas, e planejou adqUirir a propriedade São Bernardo onde havia trabalhado, no eito, com salário miserável de cinco tostões por semana. Para conseguir a propriedade, emprestou dinhei­ro a juros ao herdeiro da fazenda, Luís Padilha, um rapaz que bebia e jogava, dando-lhe conse­lhos que o levariam à ruína. Quando as letras

17 RAMOS, Graci1iano. São Bernardo. Rio de Janeiro :

Record, 1969, p. 64. 18 Idem , p. 65 .

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venceram, Paulo Honório vai até a fazenda e ofe­rece comprá-la em troca das dívidas. O negócio é feito e a partir de então Paulo Honório passa a reconstruir e torná-la uma terra próspera, como uma nova casa, plantações, açude. A busca para Paulo Honório, desde a sua infância de filho de trabalhador da fazenda, foi a de conquistar São

Bernardo para si. Mais uma vez são os lucros que justificam as ações do personagem:

"A verdade é que nunca soube quais foram os meus atos bons e quais foram os maus. Fiz coisas boas que me trouxeram prejuízo; fiz coisas ruins que deram lucro. E como sempre tive a intenção de poss uir as terras de S. Ber­nardo, considerei legítimas as ações que me levaram a obtê-Ias."19

Com a fazenda próspera, Paulo Honório passa a se relacionar com a cidade, tanto economica­mente, vendendo seus produtos, quanto politica­mente, filiando-se ao partido dominante, ao qual pertencia o governador, e estabelecendo relações estreitas com a imprensa local. Estas relações são baseadas em chantagens e trocas de benefícios.

Quando Paulo Honório decide fazer uma es­trada para levar seus produtos à cidade, é retra­tado nos jornais como um empreendedor capita­lista, e por isso patriota. Há sempre um custo em dinheiro para os elogios que saem no jornal:

"Efetuei transações arriscadas, endividei-me, importei maquinismos e não prestei atenção aos que me censuravam por querer abarcar o mundo com as pernas. Iniciei a pomicul­tura e a avicultura. Para levar os meus pro­dutos ao mercado, comecei uma estrada de rodagem. Azevedo Gondim compôs sobre ela dois artigos, chamou-me patriota, citou Ford e Delmiro Gouveia. Costa Britto também publicou uma nota na Gazeta, el.ogiando-me

19 Idem, p. 96.

e elogiando o chefe político local. Em conse­qüência mordeu-me cem-mil réis." 2o

O governador visitou São Bernardo e sugeriu que Paulo fizesse uma escola na fazenda, repre­sentação importante da modernização e do com­prometimento com as idéias de progresso e or­dem. Por avaliar ser positivo para as suas relações políticas, Paulo Honório decide-se por construir a escola:

"E fui mostrar ao ilustre hóspede a serraria , o descaroçador e o estábulo. Expliquei em resumo a prensa, o dínamo, as serras e o ba­nheiro carrapaticida. De repente supus que a escola poderia trazer a benevolência do Go­vernador para certos favores que eu tencio­nava solicitar.

- Pois sim senhor. Quando v. eX.a vier aqui outra vez, encontrará essa gente apren­dendo cartilha."21

São Bernardo retrata as condições em que se deu a modernização capitalista no interior do país como um desafio a persistências de nossas estruturas rurais latifundiárias e quase ocio­sas. Através da posição de classe ocupada pelos personagens, é possível perceber o conflito que se coloca na vida do indivíduo. Paulo Honório caracteriza-se pelo individualismo exacerbado, o personalismo auto-centrado, a extrema am­bição, o sentimento de propriedade, a razão prevalecendo acima do sentimento e a ausência de compromisso com o ser humano. Este per­sonagem revela sinais da mudança nos tempos. Através de Paulo Honório, Graciliano enfoca a mudança que se processava no país no início da década de 1930 e como moderno e atraso são complementares nessa construção da moderni­zação capitalista. Os valores burgueses ganhavam forma na sociedade brasileira. 22

20 Idem, p. 99. 21 Idem , p. 100.

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Se por um lado Honório representa na prática o sucesso dos novos ideais capitalistas no sertão, do outro, Madalena incorpora os ideais humani -tas. Estas duas vertentes, capitalista e humanista, são faces de um mesmo processo histórico de modernização da sociedade, na qual o sistema, ao mesmo tempo que gera o progresso econô­mico, sustenta-se às custas de exploração de uma maioria. Na verdade, os dois representam uma oposição entre duas modernidades:

"( ... ) meteu-se no escritório, folheou os li­vros, examinou documentos, desarmou a máquina de escrever, que estava emperrada. E dois dias depois do casamento, ainda com um ar machucado, largou-se para o campo e rasgou a roupa nos garranchos do algodão. À hora do jantar encontrei-a no descaroçador, conversando com o maquinista."23

Assim, ela se preocupa com os mais nece 'si­tados da fazenda, com as privações materiais e a educação dos trabalhadores. Professora, tinha in­teresse em instruir aqueles que não conheciam as primeiras letras, procurando aliar-se às pessoas mais humildes, como por exemplo, no caso em que Madalena cogitou substituir o Seu Ribeiro na contabilidade da fazenda:

"Não duro, estou gasto, respondeu Seu Ribei­ro. E morreria tranqüilo deixando os livros a uma pessoa que não viesse estragá-los com raspadelas.

- Isso é fácil, murmurou Padilha. - Talvez, mas convém saber. AqUi a exce-

lentissima ... - Tinha graça, tornou Padilha, D. Madale­

na escrevendo os diversos a diversos.

22 DA ER, Mário Fernando Pas os. O sertão e a ci­

dade. Graciliano Ramos e a tensão entre duas culturas. Rio

de Janeiro, PUC/Departamento de História, 2000 , p.

87-88 [di sertação de me tradoJ.

23 RAMOS. São Bernardo. Oh. cit., p. 152.

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- Nada mais natmal , atalhou Madalena. Não desejo, Deus me livre. Seu Ribeiro está forte.

- Somos todos mortais, minha senhora. É verdade que ninguém pode penetrar os desíg­nios da Providência, mas na minha idade ...

- Qual é o ordenado? - Ora essa! estranhou Padilha. A senho-

ra ocupar-se com essas migalhas! Receber ordenado! Era tirar de uma mão e deitar na outra.

- Por que não? Se Seu Ribeiro tiver de aposentar-se ... Quanto ganha o senhor, Seu Ribeiro?

O guarda-livros afagou as suíças brancas: - Duzentos mil-réis. Madalena desanimou: - É pouco. - Como? Bradei estremecendo. - Muito pouco. - Que maluqueira! Quando ele estava

com o Brito, ganhava cento e cinqüenta a seco. Hoje tem duzentos, casa, mesa e roupa lavada."24-

Por seu bom coração e atitudes voltadas para o próximo, os conflitos entre o casal não tardam a acontecer. Paulo Honório e o padre Silvestre começaram a rotulá-la de comunista. Somado a isto, a indefinição acerca da religiosidade de Ma­dalena contribuía ainda mais para aumentar as desconfianças ideológicas a seu respeito. O seu envolvimento com a composição de artigos para o pequeno jornal e com os homens letrados da cidade servia para alimentar o ciúme doentio de Paulo Honório pela esposa. O casamento surge na vida de Paulo Honório somente como a ne­cessidade de um fazendeiro de deixar herdeiros. E no casamento possui uma relação de posse por Madalena, manifestada no ciúme doentio e na desconfiança:

2+ Idem , p. 157.

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"Amanheci um dia pensando em casar. Foi uma idéia que me veio sem que nenhum rabo de saia a provocasse. Não me ocupo com amores, devem ter notado, e sempre me pa­receu que mulher é um bicho esquisito, difí­cil de governar.

A que eu conhecia era a Rosa do Marcia­no, muito ordinária. Havia conhecido tam­bém a Germana e outras dessa laia. Por elas eu julgava todas. Não me sentia, pois, incli­nado para nenhuma: o que sentia era desejo de preparar um herdeiro para as terras de São Bernardo."25

A partir do casamento, através de Madalena, instala-se em sua vida o fermento da negação do sentimento de propriedade. O fato de Madalena pensar as relações de maneira diferente de Paulo Honório o desconcerta, fazendo aflorar nele as concepções e comportamentos mais atrasados com relação à fazenda e às pessoas, ambas consi­deradas propriedade dele, o que no limite, leva Madalena a suicidar-se.

Neste momento, fica mais claro que o per­sonagem Paulo Honório representava ao mesmo tempo um projeto arcaico com relação à terra, e um projeto capitalista com relação à propriedade privada, cuja mercantilização se estende às rela ­ções entre homens e mulheres. A fazenda entra em decadência, os trabalhadores vão abandonando seus postos, e Paulo termina sozinho, não se im­portando nem com a presença do seu herdeiro:

"Madalena entrou aqui cheia de bons senti­mentos e bons propósitos. Os sentimentos e os propósitos esbarraram com a minha bruta­lidade e o meu egoísmo.

Creio qu nem sempre fui egoí ta e bru­tal. A profissão é que me deu qualidades tão ruins.

E a desconfiança terrível que me aponta inimigos em toda a parte!

25 Idem, p. 115 .

A desconfiança é também conseqüência da profissão.

Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um coração miú­do, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens."26

Enfim, Graciliano consegue em São Bernardo demonstrar a convivência do moderno e do atra­sado, o desenvolvimento desigual e combinado destes fatores no capitalismo brasileiro para além da crise moral que é o centro do seu primeiro ro­mance, enfatizando as conseqüências sociais des­te processo, apresentando inclusive uma crítica a essa modernização, na figura de Madalena.

Este novo foco representa um amadurecimen­to do processo histórico em si, permitindo que o nosso autor abordasse no seu terceiro livro os efeitos destas transformações mais consolidadas. Não por coincidência, a primeira visão de Gra­ciliano sobre estes efeitos chama a atenção para a crise moral, não mais retratando os conflitos entre valores diferentes, mas sim generalizando o mal estar que atinge tanto João Valério quanto Paulo Honório na conclusão de suas tramas.

Assim, em Angústia, com a unidade entre o atraso e o moderno historicamente consolida­da, o livro nos mostra de maneira nítida a vio­lência do sistema social vigente, e a repressão contínua por ele exercida. Existe uma marcada divisão de classes sociais, típica do capitalismo, que se manifesta através das relações entre do­minador e dominado. Há o grupo que detém o poder e regulamenta as normas sociais, e o que se vê obrigado a aceitar esta linguagem repres­sora, sem poder modificar a situação existente e nem mesmo questioná-la. Mostra-se pertinente registrar o fato de que a violência deste esquema ocial se apresenta tão marcante e atuante, que

nenhum personagem consegue ascender social­mente. Os grupos apresentam- e estruturados e se fecham, de maneira a repelir os elementos

26 Idem, p. 247.

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que nele pretendem ingressar. Todos continu­am em seus lugares, marcados pelas leis sociais, impostas por um regime de dominação que não permite as transformações sociais, a mobilidade dos membros componentes desta sociedade tão rigidamente estruturada: 27

"Uma pátria dominada por Or. Gouveia, Ju ­lião Tavares, o diretor da minha repartição, o amante de O. Mercedes, outros desta marca , era chinfrim. Tudo odioso e estúpido, mais odioso e estúpido que o sujeito cabeludo que despejava aguardente no copo sujO."28

Essa ausência de mobilidade social demons­tra que as relações de poder estavam referencia­das na compra e venda, e que a mercantilização dessas relações já atingira um grau assombroso. Dessa maneira, Luís da Silva relaciona os escrito­res com as prostitutas, que não somente vendem sua força de trabalho, mas seu próprio corpo:

"Certos lugares que me davam prazer torna­ram-se odiosos. Passo diante de uma livraria , olho com desgosto as vitrinas, tenho a im­pressão de que se acham ali pessoas exibin­do títulos e preços nos rostos , vendendo-se. É uma espécie de prostituição. Um sujeito chega, atenta, encolhendo os ombros ou esti­rando o beiço, naqueles desconhecidos que se amontoam por detrás do vidro. Outro larga uma opinião à toa. Basbaques escutam, saem. E os autores, resignados, mostram as letras e os algarismos , oferecendo-se como as mulhe­res da Rua da Lama." 29

27 MELO, Ana Amélia de Moura Cavalcante. Angústia: o

descorifOrto da modernidade. Uma análise da obra de Graci­

liano Ramos. Rio de janeiro, UFRRj, 1996 [dissertação de mestrado], p.SO-S l . 28 RAMOS, Graciliano. Angústia. São Paulo, Martin ,

1969, p. 178. 29 Idem, p. 19.

106 História & Luta de Classes

Nesta sociedade engessada, todos os persona­gens são retratados com as mesmas características, e são apresentados mais como uma coletividade do que através de seus traços individuais, que não assumem relevo. Tal fato ocorre porque, em An­gústia, temos a caracterização de uma sociedade estratificada e industrial , que transforma as pes­soas, como vimos, em meras peças do mecanismo social, selecionando da vida os seus aspectos me­ramente quantitativos ou redutíveis a quantida­des. Os indivíduos são usados pelas classes domi­nantes e detentoras do capital. Não são encarado segundo a sua natureza , mas apenas na medida em que são rendosos. E os oprimidos também não conseguem reagir frente à dominação:

"Ao chegar a Rua do Macena recebi um cho­que tremendo. Foi a decepção maior que já experimentei. À janela da minha casa, caído para fora, vermelho, papudo, Julião Tavares pregava os olhos em Marina, que , da casa vi­zinha, se derretia para ele, tão embebida que não percebeu a minha chegada . Empurrei a porta brutalmente, o coração estalando de raiva, e fiquei em pé diante de Julião Tavares, senti um desejo enorme de apertar-lhe as go­elas. O homem perturbou-se, sorriu amare­lo, esgueirou-se para o sofá, onde se abateu.

- Tem negócio comigo? A cólera engasgava-me. Julião Tavares co­

meçou a falar e pouco a pouco serenou, mas não compreendi o que ele disse.

Canalha. Meses atrás se entalara num processo de defloramento, de que se tinha li­vrado graças ao dinheiro do pai . Com o olho guloso em cima das mulheres bonitas , estava mesmo precisando uma surra. E um cachor­ro daquele fazia versos, era poeta."30

Apesar de não reagir contra a exploração, Luís da Silva alimenta uma enorme revolta, interna e abstrata, que não ameaça o sistema. O voltar- e

30 Idem, p. 87.

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para dentro de si mesmo equivale ao abandono dos problemas sociais objetivos. Segundo Lukács, em texto sobre o herói no romance moderno, esse desligamento da sociedade tem um caráter de protesto compreensível e freqüentemente digno de respeito, embora deforme ao mesmo tempo a realidade interior e a exterior. E esta deformação é tanto mais forte, quanto mais profundo for o voltar-se para dentro de si.

Luís da Silva foi uma criança reprimida pelo pai, e por esta razão seus desejos não conseguem se libertar na mocidade e, o amor frustrado por Marina, na sua vida adulta, completa as frustrações do personagem e o voltar-se para dentro de si.

Luís da Silva encontra-se cada vez mais fecha­do em sua subjetividade íntima, protesto desespe­rado contra o mundo que a ele se apresenta. Não há separação nítida entre a realidade narrada e a do narrador, como em Caetés e São Bernardo, por isso quase não há diálogos. Esta ausência evidencia na obra a oposição entre falar e calar, e da relação que estes dois elementos mantêm com o poder. A linguagem funciona como um meio repressivo de manutenção do poder pelas classes dominantes. 31

O espírito arguto e hipercrítico de Luis da Silva contribui para ele concluir que não tem condição de reagir ao sistema. Passam a conviver dentro de si o ser social, com necessidade de ajus­tar-se a certos padrões para sobreviver, e um ser profundamente voltado contra esses padrões, ven­do a contingência e a gratuidade em si mesmo e nos outros. Dotado de um mórbido senso de auto­análise, o intelectual fracassado sente dificuldade de integrar-se num mundo que critica e condena, ao mesmo tempo que necessita a ele adaptar-se. 32

Neste processo de desligamento da socieda­de, a centralidade do romance está na experiência do narrador consigo mesmo, visto que o mundo

31 FONTAINHA, Nilza Maria de Castro. A utilização

da linBuaBem como forma de exerclcio de poder em AnBtÍstia.

Rio de Janeiro: PUC/Departamento de Letras, 1980 [dissertação de mestrado] . 32 Idem , p. 73.

é apenas perspectiva deste. O diálogo é o de um sujeito presente que narra e comenta um sujeito passado, desdobrando-se o narrador num segun­do e imaginário interlocutor. O objeto, preso à subjetividade, confundido à ficção, considerado fruto de um processo mental, torna-se discerní­vel apenas para ele, o que, portanto não lhe ga­rante realidade além dele mesmo:

"Impossível trabalhar. Dão-me um ofício, um relatório, para datilografar, na repartição. Até dez linhas vou bem. Daí em diante a cara ba­lofa de JuliãoTavares aparece em cima do ori­ginal, e os meus dedos encontram no teclado uma resistência mole de carne gorda. E lá vem o erro. Tento vencer a obsessão, capricho em não usar a borracha. Concluo o trabalho, mas a resma de papel fica muito reduzida."33

O sentimento de abandono, de solidão e de isolamento é associado à perda de singularida­de do indivíduo, aprisionado ao processo vital da sociedade, aos seus mecanismos de reprodu­ção, à perda de sua possibilidade de agir e criar um mundo, bem como a perda desse mundo. N essa convivência, os homens são acima de tudo, membros de uma sociedade, perde-se a consciência de individualidade, está-se isolado, impotente. Esse movimento profundamente in­trospectivo é característico de uma modernida­de que dissolveu, em cada passo, as qualidades permanentes, objetiváveis do mundo e que nis­so lançou o homem para o recôndito interior de si mesmo, enfraquecendo esse mundo, não obstante sua grande atividade nele.

Tempo e espaço fragmentam-se, e sua razão não está na onipotência do personagem em sub­meter à sua vontade pessoal regras e normas do mundo objetivo, ao contrário, o que se coloca no centro do problema é justamente o colapso da experiência e da desintegração da identidade do sujeito.

33 RAMOS. AnBústia. Oh. cit. , p. 19 .

Marisa Schincariol de Mello / Graciliano Ramos... 107

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o romance termina pela mistura entre a con -ciência e o inconsciente de Luís da Silva. Como não poderia deixar de ser, apenas matando J ulião Tavares com uma corda, é que ele pode conse­guir ua liberdade, sua purificação. Uma vez que não pode mudar o eu lugar social, não há rompi­mento com o voltar-se para dentro de si, apenas redenção dentro dele. Mesmo o amor de Mari­na, que em determinado momento do romance, em que as circunstâncias parecem se encaminhar para o casamento dos dois, pode levá-lo à reden­ção, no sentido de alterar o seu lugar social, foi comprado pela aparência e pela posição social de Julião Tavares.

Este fato comprova inclusive uma certa des­confiança de Luís da Silva em relação aos inte­resses de Marina, que se mostra insatisfeita com o dinheiro que Luís lhe oferece para os prepara­tivos do casamento, dando mostra que a angús­tia que vinha sentindo desde o início não seria superada com o enforcamento de JuliãoTavares. O assassinato daquele que personifica a domina­ção burguesa não funciona como uma perspec­tiva de salvação para o personagem, que termi­na o romance delirando da mesma maneira que começou, o que comprova a passagem final do livro:

"( ... ) A multidão que fervilhava na parede acompanhava José Baía e vinha deitar-se na minha cama. Cirilo de Engrácia, esticado, amarrado, marchando nas pontas dos pés mortos que não tocavam o chão, vinha dei­tar-se na minha cama. Fernando Inguitai, com o braço carregado de voltas de contas, vinha deitar-se na minha cama. As riscas de piche cruzavam-se, formavam grades. - José Baía, meu irmão, há que tempo!" As crianças corriam em torno da barca. - José Baía, meu irmão, estamos tão velhos!" Acomodavam-se todos. Um colchão de paina. Milhares de fi­gurinhas insignificantes. Eu era uma figurinha insignificante e mexia-me com cuidado para não molestar as outras. Íamos descansar. Um colchão de paina."34

108 História & Luta de Classes

Pode parecer estranho que um escritor enga­jado, ligado a setores de esquerda e inserido em um coletivo de outros intelectuais, que e pro­punham a analisar de maneira crítica o processo histórico, e que, inclusive foi preso, sem acusa­ção formal, somente pela ameaça velada que seus romances causavam, tenha chegado a conclusões tão pessimistas em seus primeiros romances. Graciliano observa nesse acelerado processo de transformações nos campos político, cultural, econômico, na década de 1930, que de fato havia poucas modificações na estrutura do sistema. O que na verdade ocorreu foi um aproveitamento do atraso de maneira a permitir que o moderno se desenvolvesse. O progresso no país se deu de maneira excludente em todas as esferas da socie­dade. Esse pessimismo é resultado de um mun­do que produzia um número cada vez maior de barbáries, cujo maior exemplo é o nazi-fascismo, e gerou, em Graciliano, não uma inércia e uma apatia, mas um pensamento extremamente crí­tico, uma visão que vai se consolidar no final da década de 1930 e no início da década de 1940, e permitir a ele engajar-se em um projeto coletivo de transformação social.

34 RAMOS. An8ústia. Idem, p. 237 .

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Os grilhões de Rubem Fonseca: uma análise dos dois primeiros livros do autor - Os prisioneiros e

A coleira do cão - sob o viés de uma teoria materialista da cultura

"Já quebreis meus grilhões, dirás talvez. Também o cão, com grande esforço, arranca-se da cadeia e foge . Mas, preso à coleira, vai arrastando um bom pedaço da corrente" (Pérsio - Sat - 158). Esta epígrafe com que o escritor Rubem Fonseca começa seu segundo livro A coleira do cão, 1 pu­blicado em 1965, é uma metáfora da condição de aprisionamento a que o ser humano está irre­mediavelmente fadado, expressando o caráter de inexorabilidade da condição - trágica - humana, segundo a visão do escritor. Da mesma forma, esta mesma condição é ressaltada na epígrafe do seu primeiro livro, Os prisioneiros, 2 de 1963: "So­mos prisioneiros de nós mesmos. Nunca se es­queça disso, e de que não há fuga possível." (Lao Tse, Tao-te-chinB, 600A .C).

Entre 1962-1965 Rubem Fonseca integrou o Instituto de Pesquisas Sociais do Rio de Janeiro, o Ipes, organização que desejava pensar rumos para o que classificava como "crise brasileiJ-a". Rubem Fonseca era então diretor da Light, uma

• Doutoranda em História Social Contemporânea , na

Universidade Federal Fluminense.

I Fonseca, Rubem. A coleira do cão. São Paulo: Círculo

do Livro, 1965.

2 Idem. Os prisioneiros. São Paulo: Companhia das Le­

tras, 2001.

Aline Andrade Pereira '~

das cinco empresas que financiava o Ipes. 3 O escritor ocupou diversos cargos na presidência deste instituto e teria sido o roteirista dos docu­mentários propagandísticos que visavam associar as agitações sociais ao per igo do comunismo, doutrinando a classe média contra este - as ini­ciais do autor foram encontradas nos roteiros, fato explorado por Assis4 porém negado pelo es­critor. Em contrapartida, sua literatura é até hoje saudada como "transgressora" para a época pela crítica e por demais escritores.

A alternativa que apresentamos para pensar este objeto é encará-lo como um bloco que con­grega "traj etória política/ traj etória pessoal/ obra literária" de Rubem Fonseca durante os anos de 1962 -1965 . Diante disso, a hipótese é que este bloco se apresenta como um conjunto dialético;

3 Outras empresas que fmanciavam o Ipês: Refmaria União, Cruzeiro do Sul, Icomi, ListasTelefônicas Bra i­

leiras, além de trezentas empresas norte americana de

menor porte, desde indústrias alimentícia até farma­

cêuticas. As entidades ftlantrópicas de senhoras cri tãs

também colaboraram com dinheiro, jóia e trabalho

voluntário. (Fonte: Wikipedia. A enciclopédia livre:

http://pt.wikipedia.org/wiki).

+ Assis, Denise. Propa8anda e cinema a serviço do 8olpe.

Rio de janeiro: Mauad/Faperj, 2001.

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isto é: não faria sentido pensarmos a trajetória literária de Rubem Fonseca como um simples reflexo - quer afirmando, quer negando a sua atuação política - pois acreditamos que tais ins­tâncias não podem ser pensadas isoladamente. Para tanto, escolhemos como alternativa teórica compreender a cultura como parte do processo de totalidade, onde é impossível dissociá-la das demais esferas da sociedade - assim como estas também são indissociáveis entre si.

N estes dois primeiros livros seria possível vermos alguns temas que serão recorrentes em toda sua obra. A interpretação que estabelecemos é a de que Rubem Fonseca apresenta-se como um conservador. Dentro deste posicionamento, duas tendências se manifestariam: 1) Crítica aos críticos da modernidades e 2) Caracterização da violência gratuita. O critério de crítica aos críti­cos da modernidade abrange os contos onde o au­tor mostra uma visão de mundo cética às grandes ideologias da modernidade - como o marxismo e a psicanálise - e também ao caráter crítico que grandes instituições assumiram na modernidade como a Igreja, a Ciência e a Arte. As soluções, quando comparecem, são sempre em termos de realizações pessoais e / ou o fazem de maneira sa­tú-ica . O critério de "violência gratuita" demons­tra a descrença na racionalidade humana, refor­çando a característica instintiva deste homem que está fadado a arrastar os grilhões de sua própria mediocridade, da qual ninguém consegue fugir, sendo impossível qualquer tentativa de diálogo. A primeira editora que publica os livros do escri­tor é a GRD Edições, pertencente ao líder inte­gralista Gumercindo Rocha Dorea.

Seguindo na direção de investigar a cultura como parte da totalidade, podemos vislumbrar

50 sentido que tomamos de modernidade é o que Ber­

man chama de Segunda Modernidade, surgido a partir

do fmal do século XVIII, com as revoluçõe Francesa

e Industrial e as mudanças ocorridas em decorrência

dessa «onda r volucionária" (Berman, Marshal. Tudo

que é s61ido desmancha no ar. A aventura da modernidade.

São Paulo : Companhia das Letras. 1986: 15).

IIO História & Luta de Classes

esta tendência de separar as diversas instâncias da socieda~e como uma estratégia da economia política clássica, em primeiro lugar separando a instância política da econômica. 6 Aliado a isso, determinadas interpretações marxistas também fazem questão de salientar a metáfora proposta por Marx7 entre base e superestrutura de forma mecânica, salientando esta separação. Nesta me­táfora, uma base ou infra-estrutura econômica condicionaria as superestruturas ideológicas, ju­rídicas e políticas. Essa separação estrutural seria benéfica para o capital, pois retira o aspecto po­lítico da economia. O que distinguiria a análise marxiana daquela produzida pelos economistas clássicos seria o fato de que a primeira não cria descontinuidades entre as esferas econômica e política. Um materialismo histórico só faz senti­do se pensarmos o conjunto das formações diale­ticamente constitutivas; do contrário, assumindo uma determinação da base econômica em relação ao restante da sociedade, estaríamos contrarian­do a prerrogativa marxiana da ação humana que se encontra presente em todo processo históri­co. N essa perspectiva só faz sentido pensarmos a cultura como parte constituinte desse emaranha­do de relações sociais e não como um universo à parte da sociedade.

Sendo assim, a perspectiva com a qual nos afiliaremos é a de Williams,8 ao propor uma te­oria materialista da cultura para se analisar os produtos artísticos sob um viés do materialismo histórico. Thompson dialoga com esta tendên­cia ao contestar uma suposta visão consensual em torno da noção de cultura, trazendo à tona a importância de se estudar outras manifestações que interliguem aspectos econômicos, sociais e culturais. Williams também aponta para o fato de

6 Wood, Ellen Meiksins. Democracia contra capitalismo. A

renovação do materialismo histórico. São Paulo: Boitempo,

2003.

7 Marx, Karl. Contribuição à crítica da economia polftica.

São Paulo : Martins Fontes, 2003.

8 Williams, Raymond . Marxismo e literatura. Rio de Ja­

neiro: Jorge Zahar, 1979 .

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qu é no fmal do século XVIII que surge o con­ceito de "literatura" como uma forma de esp cia­lização de uma ár a que ante abarcava a gramáti­ca a retórica. O que até então era considerado uma prática ou atividade, enfrenta um proce so de "distinção social particular" . E de certa forma essa distinção ainda permanece, no sentido de que só se dá essa nomenclatura às "obras impres­sas de uma certa qualidade" . 9

O uso da metáfora base/superestrutura para a análise de objetos artísticos engendra algumas dificuldades. Destacamos o problema da teoria do reflexo. As teorias do reflexo mais simples derivariam de uma concepção materialista me­cânica - "ver o mundo como objetos e excluir a atividade" - em oposição ao materialismo his­tórico - "ver o processo da vida material como atividade humana". Nessa abordagem mecânica, a arte seria vista como reflexo do "mundo real", ou reflexos, "não das meras aparências, mas da realidade por trás dela", ou ainda um reflexo do "mundo como é visto pela mente do artista" . 10

Lukács 11 salienta que o método dialético seria importante para negar relações de causa e efei­to entre base e superestrutura. Sendo assim, a obra de arte é uma forma de reflexo do mundo exterior na consciência humana e se apresen­ta inserida na teoria geral do conhecimento do materialismo dialético. Enquanto o naturalismo uniria de forma mecânica e antidialética fenôme­no e essência, a teoria idealista da arte capta essa antítese entre fenômeno e essência, mas não re­conhece a unidade dialética que a permeia.

Thompson 12 também destaca a necessidade de se rever a aplicação de leituras economicistas ou deterministas do marxismo a determinados

9Williams. Ob. cit., 12120.

\O Idem: 98-101.

11 Lukác , Georg. Ensaios sobre literatura. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 1968 . 12 Thompson, E. P. "Folclore, antropologia e história

social". In: egro, Antonio Luigi (orgs) & Silva, S ' rgio.

Campinas : Ed . da Unicamp, 2001.

objetos, como o folclore, por exemplo. Uma 0-

ciedade que se baseia em relações de parentesco não pode ter como explicação primária "a econo­mia". O autor conclui que por mais que se façam ressalvas e que lembremos que a metáfora foi pensada de uma forma mais sutil do qu é em­pregada usualmente, sua inadequação mostrou a necessidade de abandoná-la completamente, pois se cairia sempre em um reducionismo.

Williams sugere que, ao invés de partirmos de uma "infra-estrutura determinante e de uma superestrutura determinada", partamos de outra concepção marxista, igualmente importante: a de que "o ser social determina a consciência". 13

Na transição de Marx para os marxistas, o que foi pensado inicialmente pelo primeiro como um conjunto dialético é agora visto como dua ins­tâncias separadas. O autor sugere então, como alternativa, o conceito de mediação. A mediação se apresentaria para explicar o processo pelo qual certas realidades sociais têm o seu conteú­do original modificado e por isso não poderiam encontrar-se refletidas na arte. Contudo, este conceito também não seria satisfatório. Apesar de permitir um pouco mais de atividade do que o modelo do reflexo, ainda assim trabalha com a ·d'· d c d d" ult " " " 1 ela e eSleras separa as a c ura ou arte e "sociedade", na medida em que pretende fazer a relação entre estas.

Entretanto o conceito que acreditamos ser mais pertinente na obra de Williams em relação ao nosso objeto seria o de "estrutura de senti­mento". Segundo o autor, a análise da obra de arte é sempre feita tendo em vista a idéia de que os objetos artísticos existem de forma acabada e pronta no mundo. Entretanto, a feitura de uma obra de arte nunca está restrita ao passado, é sempre uma atividade empreendida no presen­te: "Metodologicamente, portanto, uma estrutura

de sentimento é uma hipótese cultural, derivada na prática de tentativas de compreender esses ele­mentos e suas ligações, numa geração ou período,

\3Williams. Ob. cit, 1979: 79.

Aline Andrade Pereira / Os grilhões de Rubem Fonseca... III

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e que deve sempre retornar, interativamente, a essa evidência". Esta alternativa seria particular­mente rica na análise da arte e da literatura, pois ne tas "o verdadeiro conteúdo social está num número significativo de casos desse tipo presente e afetivo, que não podem ser reduzidos sem per­da e sistemas de crença, instituições, ou relações gerais explícitas, embora possa incluir todas es­sas como vividas e experimentadas, com ou sem tensão, como também inclui elementos da expe­riência social e material (física ou natural) que podem estar além, ou ser revelados ou imper­feitamente ocultos pelos elementos sistemáticos reconhecíveis em outros pontos" .14

Gramsci também oferece uma alternativa para se pensar a metáfora base e superestrutura bastante interessante ao introduzir o conceito de "bloco histórico". O autor salienta ao investigar a posição que a ciência política ocupa numa fIloso­fia da práxis: "Mas se pode falar de dialética dos distintos e como se pode entender o conceito de círculo entre os graus da superestrutma? Con­ceito de 'bloco histórico', isto é, unidade entre a natureza e o espírito (estrutura e superestrutu­ra), unidade dos contrários e dos distintos." 15

Vale lembrar que a dialética e a ação huma­na nunca estiveram ausentes da metáfora, ape­nas foram negligenciadas por algumas leituras. Podemos ver que Engels já tentara justificar a utilização desta metáfora em uma carta à Heinz Starkenburg, de 25 de janeiro de 1894: "são os próprios homens que constroem a sua história , ma num dado meio, que a condiciona na base de relações reais anteriores, entre as quais figuram as condições econômicas." 16

14 Wüliams, Raymond. Tragédia Moderna. São Paulo :

Cosa c & aify, 2002, p. 135. 15 Gramsci, Antonio. Caderno 13 (1932-1934) : "Bre­

ves notas sobre a política de Maquiavel" . In: Cadernos

do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002,

p. 26 . 16 Marx-Engels. Sobre literatura e arte . Lisboa: Editoria

Estampa, 1974, p. 42 .

112 História & Luta de Classes

O que estamos tentando estabelecer n s e percmso são alternativas que primam por deter­minados componentes dialéticos, ainda que não necessariamente o citem explicitamente, ou que enfatizam o aspecto da ação humana como par­te constitutiva do processo. Entendendo a socie­dade como um "bloco histórico", que concentra todas as esfera da vida humana - sem que este seja necessariamente coeso e homogêneo o tempo todo, porém encarando-o como um território de ambivalências e movimentos dialéticos - seria o ponto de partida para entendermos o nosso obje­to. Lukács17 salienta a integração dos fatos da vida social numa totalidade como uma das principais questões no conhecimento dos fatos enquanto co­nhecimento da realidade:" A totalidade concreta é, portanto, a categoria fundamental da realidade." 18

Neste bloco interessa-nos alguns pontos: al­guns dados de sua biografia que se demonstra­ram pertinentes, os livros Os prisioneiros e A colei­

ra do cão e sua atuação política como integrante do Ipes entre 1962-1965.

O Ipes existiu oficialmente entre 1961 e 1972 e tinha como seus integrantes empresários do Rio de Janeiro e de São Paulo e militares da Escola Superior de Guerra. Segundo um folheto de divulgação da instituição, esta seria uma "agre­miação apartidária com objetivos essencialmente educacionais e cívicos" . Entretanto, algumas in­terpretações - como a de Dreifuss 19 - sugerem que esse instituto seria fruto de uma associação de empresários e militares, basicamente, que in­fluenciaram na mobilização e no doutrinamento ideológico do restante da sociedade. Esses civis eram, em sua maioria, fruto de uma "intelligent­

sia empresarial, intelectuais orgânicos do novo bloco em formação" .20 Essa intelligentsia técnica aplicaria a racionalidade capitalista da empresa

17 História e consciência de classe. São Paulo: Martins Fon­tes,2003. 18 Ob. cit. , p. 79.

19 Dreifuss, RenéArmand . 1964:A conquista do Estado. Ação

política, poder e 80lpe de classe. Petrópolis: Vozes, 1981 . 20 Idem . Ob. cit., p. 71.

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privada às oluções dos problemas sócio-econô­micos nacionais.

Segundo Gramsci, todo grupo social cria para si uma camada de intelectuais orgânicos que lhe dá "homogeneidade e con ciência da própria fun­ção, não apenas no campo econômico, mas tam­bém no social e político" .21 Duplamente capaci­tado - técnica e intelectualmente - o intelectual orgânico teria essa capacidade de organização da massa em torno de objetivos que fossem do in­teresse da empresa. Além disso, devem também proteger sua própria classe. Fazendo parte dessa elite que toma para si o compromisso de estabe­lecer os rumos da política nacional, Rubem Fon­seca ocupa um lugar privilegiado dentro dessa estrutura, possuindo todos os atributos técnicos para agir como tal. Transforma as preocupações de uma classe em preocupações de toda a socie­dade.

Entretanto é possível observamos que a re­lação entre Rubem Fonseca, o regime militar e sua produção literária não pode ser vista como instâncias separadas e estanques mas sim um bloco que não necessariamente mantém a ho­mogeneidade e nem mesmo a forma o tempo todo. Posteriormente, inclusive, ao ver seu livro Feliz Ano Novo censurado, em 1976, o escritor move diversos processos contra a União,22 só

21 Gramsci, Antonio. Caderno 12 (1932):"Apontamen­

tos e notas dispersas para um grupo de ensaios sobre

a história dos intelectuais". In: Cadernos do cárcere. V. 2.

Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2001, p. 15 .

22 Matérias "Censura a Fonseca repugna escritores", O Estado de São Paulo, 22/12/76; "Proibido: Rubem" ,jor­

nal da Ta;de, 21/12/76; "Falcão prOlbe Feliz Ano Novo",

jornal do Brasil, 21/12/76; "Procurador acha que Feliz

Ano Novo não tem mensagem positiva", jornal do Brasil,

13/09/77;" Autor de Feliz Ano Novo processa a censura

e exige CR$ 1 00 mil por perdas e danos morais" ,jornal

do Brasil, Caderno B, 07/06/77; "Autor pede perícia

para livro", O Globo, 31/01/78;" Dois anos na justiça",

O Estado de São Paulo, 20/04/79; "Feliz Ano Novo ago­

ra é caso para Brasília resolver", O Estado de São Paulo,

09/04/80; "Vara federal julga ação de Rubem Fonseca

conseguindo a liberação do mesmo treze anos depois. Em relação a sua atuação no Ipes, o escri­tor minimiza sua importância e a do instituto em questão, em depoimentos recentes. 23

O que estamos querendo demonstrar, por­tanto, é que alguns dados biográficos - e não todos, em todos os momentos - devem ser ressaltados na obra de Rubem Fonseca para que possamos compreender o significado desta dentro de um contexto histórico específico. Porém, essa dicotomia entre vida e obra deve ser superada, pensando "autor e obra como um conjunto dinâmico, que se transforma ao longo do tempo, e que é marcado por contradições constitutivas" .24 Retomando o conceito de bloco histórico de Gramsci, vemos que pensar os pro­cessos históricos a partir de uma visão marxista significa considerar essa tensão constante, que aglutina, repele e sintetiza diferentes posições.

A obra de Rubem Fonseca, em geral, obte­ve uma grande aceitação em termos de crítica e público. 25 Seu livro A coleira do cão é premia­do com o Pen Club do Brasil e o prêmio Jabu­ti ( conto), da Câmara do Livro de São Paulo - onde está o conto "A força humana", consi­derado por Wilson Martins uma "obra prima da literatura universal" . 26 Os críticos são unânimes

contra a união",jornal do Brasil, 22/03/80; "Justiça li­

bera Feliz Ano Novo", jornal do Brasil, Caderno Cidade,

p. 5, 15/11189; "Rubem Fonseca ganha ação contra

União por censura a livro em 76", Folha de São Paulo,

Ilustrada, p. 3,16/11/89. 23 Matéria" Anotações de uma pequena história", Folha

de São Paulo, 27/03/94.

24 Facina, Adriana. Literatura e sociedade. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar, 2004, p. 47.

25 Números de 11/08/95 (O Globo, dados fornecidos

pela Companhia das Letras e referentes à vendagem

apenas desta editora): Os prisioneiros: 12 mil; Lúcia Mc­

Cartney: 7 mil; O caso MoreI: 4 mil; Feliz Ano Novo: 35

mil; O cobrador: 20 mil; A Brande Arte: 40 mil; BI!fo e

Spallanzani: 22 mil; Vastas Emoções e Pensamentos Imper­

feitos: 125 mil. 26 Fonseca, Rubem . A coleira do cão. Ob. cit ., p. 242.

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em afirmar que sua produção literária é uma mistura de elemento entre o vulgar e o erudito, em um momento em que muitos autores afirma­rão um desgaste do romance regional. 27 Diant das duas trilhas básicas da literatura - romance social-regional/romance psicológico - Rubem Fonseca é saudado pela crítica como instaurador de mudanças significativas.

O primeiro conto do livro Os prisioneiros, "Fe­vereiro ou março", fala sobre um halterofilista cujo prazer é fantasiar-se de mulher no Carnaval e surrar outros foliões. Este conto é exemplar do critério de "violência gratuita" . Acreditamos que essa atitude também reitera uma visão de mundo que está em conformidade com O seu papel de intelectual orgânico, pois legitima os interesses conservadores do novo bloco em ascensão, na medida em que expressa um niilismo e a ausência de comprometimento com qualquer mudança da realidade - pelo contrário, apenas mantém-se o status quo através dela.

Mas nem sempre podemos afirmar que Ru­bem Fonseca reitera os interesses de sua classe. N o conto que dá título ao livro A coleira do cão, o autor narra um dia na vida de um delegado cario­ca. O delegado Vilela , protagonista do conto, é um policial culto, que lê Claro enigma, não aceita propinas e nem usa a tortura como método in­quisitório, ao contrário de seus colegas. O final é emblemático sobre a distância entre o delegado e o ambiente à sua volta: "Vilela: Flores artificiais sujas dentro de uma jarra de falso cristal. Nem um livro sequer à vista. Houve um momento em que a tristeza das coisas foi maior do que a dor das pessoas. A pobreza é pior do que a morte. Washington: Puxa, doutor, parece até que o senhor nunca entrou em casa de pobre. Vilela: Já entrei, já entrei sim. Mas foi preciso entrar na casa de alg,uém que estava co­migo e que no entanto era como se não existisse, uma abstração distante, para

27 Bosi, Alfredo. História concisa da literatura brasileira.

São Paulo: Cultrix, 1991.

114 História & Luta de Classes

que meus olhos vissem aquilo que eu não sabia ver. Não sabia e não queria. Washing­ton (bocejando, cansado): Não estou entenden­do. Tem vezes em que o senhor fica muito difícil de entender." Seria superficial e precipitado con­siderarmos que as obras literárias expre sam as opiniões dos autores. Entretanto, seria ingênuo supor que elas não o fazem em alguma instância. Sendo assim destacamos este trecho pois seria possível vermos nele momentos interessantes da pessoa/personagem Rubem Fonseca. A frase "a pobreza é pior do que a morte" soa preconcei­tuosa, bem como as demais afirmações sobre o ambiente à sua volta. Expressa a posição elitista do delegado que lê a poesia de Cecília Meireles e é "difícil de entender" pelos seus subordina­dos. Entretanto a posição de compaixão assumida pelo personagem em seguida o redime, de certa forma, de seus dizeres anteriores. Porém, ainda assim, reitera, em alguma instância, sua visão de mundo proveniente de sua classe. Em outro mo­mento Washington dispara: "É porque o senhor não é proleta igual a nós. Proleta é que tem mui­tos filhos" .

O conto "Duzentos e vinte e cinco gramas", do livro Os prisioneiros também possui traços des­ta violência gratuita, ainda que sob outra roupa­gem. Este conto é o relato de uma autópsia de uma mulher. A mescla entre narrativas minucio­sas da autópsia, utilizando um linguajar técnico - "transfixado o esquerdo no hilo, no lobo supe­rior e inferior; o direito no ápice" - e frases ba­nais ditas em meio à cena - "nós antes tínhamos uma serra elétrica [ ... ] um dia encrencou, saiu rodando por aí, saiu pela porta, desceu as esca­das, eh eh!" - é marcante. O título - "Duzentos e vinte e cinco gramas" - refere-se a quanto pesa o coração da mulher.

O delegado aposentado Ivan Vasques, ex­colega de Fonseca na Escola de Polícia Civil, diz que o fato teria ocorrido com o próprio autor: "aquele conto do médico-legal aconteceu. [ ... ] Foi uma aula do Seve Neto. O médico mede a quantidade de sangue no corpo, pesa o coração e verifica que tem 225 gramas. [ ... ] Zé Rubem

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ficou impressionado com todo aquele sangue porque só tinha feito advocacia cível. [ ... ]De -cemos no elevador, o coração pesava 225 gramas e o Zé Rubem disse : 'Puta que o pariu!''' 28 Da mesma forma, podemos arriscar que na boca de alguns personagens, como o delegado Vilela, vislumbramos opiniões do próprio Rubem Fon­seca.

Talvez e te ponto fique mais claro com as reflexões de Lukács sobre "narração" e "descri­ção". Lukács aponta que estas duas formas de expressar determinado conteúdo em literatura podem fornecer como resultado efeitos total­mente diferentes. Ainda que esses dois estilos se caracterizem pela exatidão de detalhes ao contar uma história, se interpenetrando e convivendo em determinadas fases num mesmo escritor, se­riam duas formas distintas de escrita. A diferença básica seria o fato de que a "descrição" se carac­teriza por um método onde os acontecimentos são colocados em um quadro, não interferindo na trama geral, cabendo ao leitor apenas obser­var, enquanto a "narração" mostra uma seqüência de episódios que contribuem efetivamente para a mudança dos acontecimentos da trama. O leitor é um participante da cena que se apresenta como um ambiente e não apenas um quadro estático. A primeira alternativa é criticada por Lukács: "É indispensável, em toda grande arte, representar personagens no conjunto de relações que os liga, por toda parte, com a realidade social e com seus grandes problemas". Isso não significa, necessa­riamente, que os personagens devam possuir as concepções "objetivamente corretas", mas sim representar as ambigüidades presentes no con­texto em que ele se insere. Esta seria a idéia do autor de uma "arte engajada" .

Ao mostrar personagens em conflito com as instituições como a Igreja e a Ciência Rubem Fonseca não está necessariamente polemizando com estas instâncias. Mas também não diríamos

28 "A verdadeira história policial de Rubem Fonseca".

Folha de São Paulo, Caderno Mais!, p. 5-13,25/06/98.

que trata-se de uma concordância absoluta. Há momentos onde o sarcasmo adquire fortes nu­ances que contrariam,s ua classe - não é à toa que seu livro Feliz Ano Novo, de 1975, erá censurado e recolhido por trezes anos. Consideramos uma terceira posição, onde o autor Rubem Fonseca coaduna e contraria ao mesmo tempo sua classe, numa espécie de crítica - ainda que relutemos em classificá-la como "crítica" - bastante parti­cular. Sendo assim, pensar a obra do escritor sob um viés de uma teoria materialista da cultura só faz sentido se a pensarmos de forma dialética, pois o conjunto "trajetória política/trajetória pessoal/ obra literária" apresenta contradições constantes. Em um movimento de tese, antítese e síntese dialética, que não simplesmente incor­pora as contradições, e também não é somente um somatório, mas constitui-se como um tercei­ro elemento.

Como representativo desta característica de narração destacamos o primeiro conto do livro A coleira do cão, intitulado" A força humana". O con­to mostra um fisiculturista que treina em uma academia defronte a uma loja de discos, onde as pessoas se reúnem. O homem conhece Waterloo, dançando em frente à loja de discos. Ele leva-o para treinar em sua academia. João, o dono do lugar, logo vê potencial em Waterloo e começa a investir no rapaz. Embora o conto tenha momen­tos de descrição pura e simples: "João colocou várias anilhas de dez quilos no pulley. Teu pulley é de quanto?, perguntou. Oitenta"; em outros é pos­sível vermos a descrição de uma queda de braço que muda todo o rumo da história. O "crioulo" Waterloo, antes contando com a simpatia do ho­mem, é desafiado por este. Eis alguns trechos da luta: "A gente pode iniciar uma queda de braço de duas maneiras : no ataque, mandando brasa logo, botando toda a força no braço imediata­mente, ou então ficando na retranca, agüentan­do a investida do outro e esperando o momento certo para virar [ ... ] vi que o meu braço e o meu ombro começavam a ficar vermelhos; um suor frno fazia o tórax de Waterloo brilhar; sua cara começou a se torcer e senti que ele vinha todo e

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o meu braço cedeu um pouco, e mais, raios! Mais ainda, e ao ver que podia perder isso me deu um desespero, uma raiva! Trinquei os dentes". Neste momento Waterloo se desconcentra e o homem consegue vencer a luta de braço. Após esse episó­dio, ele toma uma série de atitudes que muda sua vida. Após derrotar Waterloo, ele decide liquidar

outros assuntos: "João tentou me mostrar o seu esquema, me chamou num canto. Não fui. Ago­ra Leninha [sua namorada]. Me vesti sem tomar banho, fui embora sem dizer palavra, segundo o que meu corpo mandava, sem adeus: ninguém precisava de mim, eu não precisava de ninguém. É isso, é isso."

Já o conto "O conformista incorrigível", do livro Os prisioneiros, narra o conformismo da so­ciedade consumista e midiática - afinada com um certo conservadorismo que faz parte da sua classe - ao mesmo tempo em que satiriza a pró­pria solução: uma sociedade em que todos seriam obrigatoriamente inconformados e igualmente diferentes. A personagem Amadeu, "um rema­nescente típico do Conformismo", é examinada pela banca composta de um sócio-psicólogo, um psicanalista e uma psicotécnica. Esses especialis­tas integram o Instituto que visa instaurar a "So­ciedade Mentalmente Sadia do Grande Fromm" . Impossível não fazermos referência à obra de Erich Fromm, em particular seu livro Psicanálise

da SOciedade contemporânea. 29 Neste o autor expõe um conceito complexo de psicanálise humanista, discutindo o papel do homem em uma sociedade cujo foco é a produção econômica, destinando ao homem um papel secundário. Fromm também discute a questão da liberdade nas democracias do século XX, demonstrando que esta, tão du­ramente conquistada, vem sendo sacrificada em nome de novos deuses. O autor vê como enfer­ma a sociedade fruto deste processo e os homens habitantes desta como alienados. Como solução, uma sociedade sadia deveria ser buscada, onde

29 Fromm, Erich. Psicanálise da sociedade contemporânea.

São Paulo: LTC, 1983 .

n6 História & Luta de Classes

atividades econômicas fossem usadas para um ideal de aprimoramento humano. Sendo assim, o socialismo humanista seria uma forma de cons­truir esta sociedade sadia.

Da mesma forma, no conto, o tal Instituto critica os jornais, os livros, filmes e a televisão, acusando-os se serem responsáveis por um gran­de sistema que levava todas as pessoas à confor­midade. Como parte desse sistema são citados: "A arquitetura de Le Courbusier, Gropius, Nie­meyer e outros alienados, que se espalhou como uma epidemia pelo mundo, com suas paredes de vidro e seus playgrounds coletivos condicionando os moradores a um mimetismo obsessivo." Neste ponto também é visível a ironia à Fromm. A "So­ciedade Mentalmente Sadia do Grande Fromm" seria claramente uma crítica à posição - utópica, na visão de Fonseca - de tentativa de transfor­mação da sociedade. A própria solução proposta pelo Instituto é ironizada o tempo todo: obrigar o indivíduo a ser livre demonstrando, ao mesmo tempo, a ineficácia do método.

A mesma temática pode ser vista no conto "O Agente", do livro Os prisioneiros. O agente em questão é um funcionário do Instituto de Esta­tística que visa realizar um recenseamento. Ao visitar uma imobiliária, ele descobre que o dono desta está prestes a se matar. Quando questio­nado do porquê do censo, o agente responde: "para sabermos quantos somos, o que somos". O dono da imobiliária, no auge do seu desespe­ro existencial, retruca "o que somos? Isso não". Mais uma vez podemos seguir na trilha de que a crítica do conto é em relação a uma determinada visão que relaciona a neurotização do indivíduo à sociedade contemporânea - e mais uma vez uma crítica a Fromm. 30 O funcionário tenta dissua­di-lo do suicídio, mas quando percebe a firmeza

30 Este, inclusive, sempre cita a máxima socrática, "co­

nheça-se a si mesmo", que é também título do livro

da psicanalista Karen Horney, outra crítica da idéia de

normalidade segundo os moldes de uma sociedade ca­

pitalista.

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de seu propósito simplesmente diz que não há problema, afinal de contas, é parte do recensea­mento contar com determinadas mortes duran­te o processo. A urgência do sistema capitalista é ferinamente exposta, ainda que a solução seja vista como impossível, uma vez que o homem se mata no final.

Na mesma direção, no conto "Gazela", um homem conta a história da única mulher que ele nunca conseguiu esquecer. Entretanto, o tom ácido fica por conta do final, demonstrando uma crítica feroz a dois dos grandes críticos da moder­nidade : "Freudfoi um sujeito que nunca amou , eu não acredito em Freud, o senhor acredita? Freud é uma questão de fé, ou a gente acredita nele ou não crê. Eu não creio. A mesma coisa com Marx. A única coisa que a gente pode fazer com eles é botar, ou não botar, o retrato na parede ." A psica­nálise, aliás, é alvo constante da crítica de Fonse­ca . No conto que dá nome ao livro Os prisioneiros,

um paciente procura uma psicanalista pois sofre de síncopes, falta de ar e de desmaios. Depois de haver feito inúmeros exames, cirurgias des­necessárias e tentado vários tratamentos - sem nenhum resultado - é levado à psicanálise. Du­rante uma sessão ele é tomado por este mal estar e desmaia, enquanto a psicanalista, desesperada, chama o clínico ao lado - que também não con­segue fazer mais nada por ele, mas escarnece do fato de uma psicanalista ter vindo em busca de seu auxílio. Mais uma vez vemos uma crítica em relação a uma ideologia crítica da modernidade. A psicanálise é ainda satirizada no conto "O ini­migo", do mesmo livro. Este narra a história de um homem neurótico, que passa as noites veri­ficando se trancou realmente as janelas e as por­tas - tendo inclusive desenvolvido complicados métodos de checagem que lhe consomem várias horas. Este homem se encontra às voltas com a tentativa de reunir diversos amigos de infância. Uma das lembranças é da expulsão de seu amigo Ulpiniano-o-Meigo da escola, quando este afixou uma tabela de preços dos principais sacramen­tos. O conto é de um sarcasmo gritante desde os nomes dos personagens até a tabela de preço de

sacramentos, contrariando uma posição que se esperaria de um homem de sua classe. Ao mes­mo tempo o aspecto neurotizante é novamente ressaltado de maneira brutal.

A temática também será vista em "Relató­rio de Carlos", do livro A coleira do cão. Neste um homem, Carlos, casado, narra suas aventu­ras amorosas com uma amante, Norma, que se muda para a Bahia. Lá ela se casa com um ho­mem, causando grandes ciúmes em Carlos. Mas o casamento não dura muito tempo. A mulher volta e os dois se casam, mas o "final feliz" não acontece. Ela termina sendo amante de João, só­cio de Carlos. A ironia desta vez é em direção aos relacionamentos da modernidade e sua mescla entre casamento e relações extra-conjugais.

Em "Henri", conto do livro Os prisioneiros, um assassino de senhoras, culto e letrado, as seduz an­tes de matá-las. A vítima do conto, Madame Pas­cal, o faz lembrar-se de seu autor favorito - Pas­cal - e com isso ele inicia o conto com uma longa descrição do Esprit de géométrie, do autor (ressal­tamos que Pascal é o único autor que aparece sem uma conotação de crítica. Talvez, justamente por estar distante da modernidade). O uso demasia­do de citações filosóficas e o exame da obra de Pascal dão o tom erudito ao conto, ao mesmo tempo em que realiza uma narrativa de suspense e horror - características típicas do conto poli­cial e que serão exploradas diversas vezes pelo autor e ressaltadas pela crítica como sinônimo de originalidade : "A sua ficção se diferencia da cha­mada literatura de entretenimento, onde muitos a querem incluir graças a duas coisas: ao seu ní­vel de apmo técnico e à sua visão problemáti­ca da condição humana. O que ocorre é que ele vai buscar na literatura de entretenimento - es­pecialmente na narrativa policial - certo ele­mentos estruturais que ele reelabora de maneira muito pessoal, subvertendo as convenções do gênero. Seus contos ditos policiais se distanciam muito do esquema clássico do gênero, revelando antes uma visão brutal e cruel da vida, em que a violência aparece numa perspectiva artística, não gratuita. [ ... ]"31 Entretanto, salientamos que

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um dos traços constituintes do romance policial é justamente essa mistura de elementos vulgares e eruditos.

No conto "Natureza-podre ou Franz Potocki e o mundo", do livro Os prisioneiros, Rubem Fon­seca ironiza o mundo da arte moderna através da teoria da "natureza podre" - podemos, inclusive, pensar numa analogia entre e o pintor do conto, Potocki e o norte-americano, Jackson Pollock, pintor abstrato. Neste conto ele desenvolve uma série de críticas que serão constantes ao longo da sua carreira, acerca do universo da arte: às diversas instâncias legitimadoras que envolvem críticos, marchands, colecionadores, artistas, público, além de uma crítica à descartabilidade e à mercantilização da arte moderna; ou seja, um universo de proposições que encontra-se em concordância com o sistema capitalista. O pin­tor em questão do conto, Potocki, se notabiliza por pintar diversas "naturezas-podres" que en­contram tremenda popularidade. Seus quadros passam a ser vendidos a preços altíssimos e as galerias passam a facilitar as compra.s, em várias parcelas, para os desprovidos de recursos finan­ceiros - afinal todos devem ter o seu Potocki. No entanto, Potocki é uma pessoa triste, reclusa, avessa a toda a badalação envolvendo seu nome. No final, outro pintor assume o lugar de Potocki e os quadros deste último passam a ser despreza­dos. Este conto guarda características próximas a que ele desenvolve em sua trajetória literária: seus livros vendem milhões, seu trânsito pelas instâncias legitimadoras como a crítica e as aca­demias , é livre, bem como pelas próprias edito­ras (hoje em dia o autor mantém contrato com a Companhia das Letras), mas ao mesmo tempo, ele é um escritor recluso, cuja foto não aparece em nenhum de seus livros e seus lançamentos não obedecem ao ritual da "noite de autógrafos".

O conto "O gravador", do livro A coleira do cão, também satiriza a arte moderna, desta vez a músi­ca, em particular. O conto mostra um homem que se diz ser funcionário do Instituto Brasileiro de

31 j ornal Folha deSào Paulo, 29/03/92.

n8 História & Luta de Classes

Opinião entrevistando uma mulher pelo telefone a respeito da eutanásia. O homem é paralítico e se locomove em uma cadeira de rodas. Ele conquista a mulher através de seus telefonemas sistemáticos. Seu hobby é fazer música concreta, utilizando sons que ele grava em seus vários gravadores, inclusive da sua própria cadeira de rodas. Em um trecho, conversando com sua mãe por telefone o homem diz: "A senhora sabe o que disse o Eurico Brum quando esteve aqui, ouvindo uma das músicas? Que eu sou melhor do que o Schaeffer ou o Ar­thuys. Mas a senhora não sabe quem são Schaeffer ou o Arthuys. Foram sujeitos que procuraram usar os ruídos como fonte de som . E o que eu faço, filtro e modulo ruídos e depois cada ruído é or­denado e justaposto. A senhora uma vez me disse que o meu Estudo patético era cruel. Eu me lembro quando a senhora me disse isso. Aliás está gravado. A senhora acha que música tem que ser uma cho­rumela adocicada." O personagem refere-se aos músicos concreto-experimentais Pierre Schaeffer e a Phillippe Arthuyus. Estudo patético é o nome de uma das obras de Schaeffer. 32

Procuramos adotar a perspectiva da totali­dade das esferas da vida humana: cultural, políti­ca, social e econômica. Nesse sentido, a cultura não reflete o processo econômico ou social, mas ela é em si mesma parte deste processo. As­sim como as relações econômicas são também sociais, basicamente. No período em questão - 1962-1965 - o bloco que ascende ao poder através de um golpe de classe leva consigo seu conjunto de intelectuais orgânicos, aqueles que constituem uma nova cultura onde o poder se instaura. Rubem Fonseca está no centro deste processo. Um agente privilegiado que , devido à sua longa vida, pôde estar na maioria dos acon­tecimentos importantes do Brasil recente e ainda está, tendo feito dessas suas vastas posições uma trajetória imperfeita - como quase todas , aliás, em maior ou menor grau.

32 Palombini, Carlos. Pierre Scha1Jer, 1953: por uma mú­

sica experimental. Revi ta eletrônica de musicologia. De­partameilto de Artes da UFPR . V 3/ outubro de 1998.

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Luiz Carlos Prestes e Luiz Inácio da Silva (Lula):

duas grandes lideranças x duas opções políticas opostas

Como é sabido, em 1930, ocorreu a adesão de Luiz Carlos Prestes ao PCB (denominado naquele período Partido Comunista do Brasil), consubs­tanciada no seu "Manifesto de Maio", 1 em que o então famoso "Cavaleiro da Esperança" tornava pública sua identificação com as principais teses programáticas do PCB. A partir de então - dadas as conhecidas limitações do pequeno e clandesti­no PCB -, a repercussão alcançada pelas propos­tas dos comunistas será, em grande parte, decor­rência do prestígio de Prestes e da publiCidade que a influência do "Cavaleiro da Esperança" lhes proporcionará.

Para melhor entender esse controvertido epi­sódio, torna-se necessário retroceder no tempo e reportar-se à trajetória anterior de Luiz Carlos Prestes, reconhecidamente a principal liderança não só da Coluna Prestes, como do tenentismo, no final da década de 1920.

A 3 de fevereiro de 1927, a Coluna Prestes encerrava seu périplo de 25 mil quilômetros

• Anita Leocádia Prestes é doutora em História Social

pela UFF e professora do Departamento de História

da UFRJ. I BASTOS, Abguar. Prestes e a revolução social. Rio de Janeiro : Calvino, 1946, p. 225-229.

Anita Leocádia Prestes'~

pelo Brasil, exilando-se em território bolivia­no sem ter sofrido nenhuma derrota. Também conhecida como Coluna Invicta, a Marcha, que constituiu o momento culminante do movimen­to tenentista, deu projeção tanto nacional quanto internacional a Luiz Carlos Prestes. A partir de então ele ficaria conhecido como o" Cavaleiro da Esperança" . 2

Durante a Marcha da Coluna pelo interior do Brasil, Prestes viria a perceber que o progra­ma de cunho liberal defendido pelos "tenentes" , tendo como centro a demanda do voto secreto, não era a solução para os graves problemas en­frentados pelo país. A miséria em que viviam as massas rurais causara forte impacto no líder da Coluna, levando-o a propor o encerramento da Marcha - uma vez que eram as populações rurais as que mais sofriam com a continuidade da luta - e, também, a voltar-se para a busca das causas profundas da triste situação em que vegetava a maioria da população brasileira. Anos mais tar­de, ele escreveria:

2 PRESTES, Anita Leocádia . A Coluna Prestes . 4" ed . São Paulo : Paz eTerra, 1997.

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"( ... ) Surpreendemo-nos com o atraso e a mi­séria em que vivia a população brutalmente explorada e oprimida por uma minoria pro­prietária da terra. Descobrimos rapidamen­te que no Brasil, rico e imenso, uma parte considerável dos camponeses não possuía um palmo de terra, via-se obrigada a viver nas terras dos grandes proprietários, submetida a seu arbítrio e sem ter a quem apelar, já que as autoridades locais eram aparentadas com os latifundiários ou estavam também subme­tidas à sua vontade. No interior do Brasil não tinha vigência a Constituição nem eram res­peitadas as leis. ( ... )

Mas, se era um quadro que nos como­via e nos enchia de patriótica indignação, ao mesmo tempo nos fez compreender que pro­blemas tão sérios não poderiam ser solucio­nados com a simples mudança de homens na presidência da República."3

Uma vez no exílio - primeiro na Bolívia e, posteriormente, na Argentina -, L. C. Prestes encontraria no marxismo a resposta para as in­quietações que a situação dramática de grandes contingentes da população brasileira nele des­pertara. Sua adesão à teoria marxista o levaria na­turalmente ao encontro dos partidos comunistas então existentes tanto no Brasil como em outros países latino-americanos, propiciando também o contato com representantes da Internacional Comunista (IC), cujo Bureau Latino-Americano tinha Buenos Aires por sede.4

Prestes aderia incondicionalmente ao co­munismo sem conseguir, entretanto, seu reco­nhecimento pelo PCB nem, muito menos, seu ingresso nessa agremiação, que, sob a influência da tática de "classe contra classe" e da política de proletarização, também chamada de "bolcheviza­ção", adotadas no VI Congresso da IC realizado

3 PRESTES, Luiz Carlos. Como cheguei ao comunis­

mo. CulwraVozes, V. 92, n.2, março-abril 1998, p. 141.

+ Idem, p. 144-148 .

120 História & Luta de Classes

em 1928, recusava a aliança com outras forças políticas e estigmatizava a presença de intelec­tuais "pequeno-burgueses" no Partido. s Prestes era visto pela direção do PCB como um general "pequeno-burguês",6 sendo acusado, inclusive, de ser o Chiang-Kai-shek brasileiro. 7 O PCB te­mia o ingresso de Prestes em suas fileiras, pois o grande prestígio do "Cavaleiro da Esperança" poderia sobrepor-se à influência bastante limita­da do Partido na sociedade brasileira. Havia o re­ceio, até certo ponto justificado, de que Prestes, com seu carisma e sua reconhecida liderança, poderia "engolir" o PCR

No difícil processo de aproximação ao PCB, Prestes seria levado a romper de público com seus antigos companheiros, os "tenentes" - que o haviam designado" chefe militar" da revolução te­nentista -, posicionando-se abertamente a favor do programa da revolução agrária e antiimperia­lista defendido pelos comunistas brasileiros. Seu Manifesto de Maio de 19308 é um documento de indiscutível importância, uma vez que consagra o início de uma nova fase na vida do "Cavaleiro da Esperança" . A partir daquele momento, Pres­tes deixava definitivamente para trás os antigos compromissos com o liberalismo tenentista e enveredava pela via da luta pelos ideais comunis­tas que passariam a nortear, dali por diante, toda sua vida.

Mas a importância do Manifesto de Maio transcende a virada ocorrida na trajetória política de Luiz Carlos Prestes. Pela primeira vez na his­tória do Brasil, uma liderança de grande projeção nacional, a personalidade de maior destaque no

5 PRESTeS, Anita Leocádia. Luiz Carlos Prestes e a Alian­

ça Nacional Libertadora: os caminhos da luta antifascista no

Brasil (1934/35). Petrópolis: Vozes, 1997, p 44-45 . 6 CARONE, Edgard. Movimento operário no Brasil (1877-

1930). São Paulo : Difel, 1979, p.523-525; CARO E,

Edgard. O p.eB. (1922-1943). v. l. São Paulo: Difel, 1982 , p. 84.

7 CARO E, Edgard. Classes sociais e movimento operário .

São Paulo: Ática, 1989, p. 301.

8 BASTOS, Abguar. Obra citada, p. 225-229.

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movimento tenenti ta, - na qual apostavam ' uas cartas as elites oligárquica congregadas naAlian­ça Liberal, na expectativa de que o "Cavaleiro da Esperança" pu esse seu cabedal político a serviço dos objetivos da oposição oligárquica, aceitando participar do poder para melhor servi-la -, re­cusa tal poder, rompendo com os políticos das classes dominantes para juntar-se aos explorados e oprimidos, para colocar-se do lado oposto da grande trincheira aberta pelo conflito entre as classes dominantes e as dominadas, entre explo­radores e explorados . Prestes tomava o partido dos oprimidos, abandonando as hostes das elites comprometidas com os donos do poder.

Tratava-se de um fato inédito, jamais vi to no Brasil. Luiz Carlos Prestes, capitão do Exér­cito, que se tornara general da Coluna Invicta, que fora reconhecido como liderança máxima das forças oposicionistas ao esquema de poder vigente na República Velha, talhado, portanto, para transformar-se no líder da "revolução" das elites oligárquicas, numa liderança política con­fiável dessas elites, usava seu prestígio para in­dicar ao povo brasileiro um outro caminho - o caminho da luta pela reforma agrária radical e pela emancipação nacional do domínio imperia­lista, o caminho da revolução social e da luta pelo socialismo.

Vale lembrar que Prestes, diferentemente de um João Cândido, na Revolta da Chibata, de um Roberto Morena, no movimento operário, ou de um Gregório Bezerra, junto aos trabalhado­res rurais, não provinha dos setores populares, nem srn-gira da luta das classes exploradas e/ ou marginalizadas do povo brasileiro. O "Cavaleiro da Esperança" era um líder que expressava prin­cipalmente os anseios de mudança das camadas médias urbanas no Brasil dos anos vinte, ainda que, ao final daquela década conturbada, os an­seios de mudança representados pelo tenentismo empolgassem parcelas consideráveis de setores populares. Luiz Carlos Prestes, pelo seu papel destacado à frente do tenentismo, estava talha­do para ser um político comprometido com os chefes oligárquicos que fizeram a "Revolução de

30".9 Da mesma maneira que os "tenentes" Jua­rez Távora, Osvaldo Cordeiro de Faria ou João Alberto Lin de Barro , esperava-se de Pre tes a participação ativa no movimento "revolucioná­rio" de 1930.

Eis a razão do impacto causado pelo seu Ma­nifesto de Maio. Poucos, muito poucos, entende­ram o gesto do "Cavaleiro da Esperança". Numa sociedade em que os setores populares foram, na maior parte das vezes, mantidos longe de qual­quer participação na vida política nacional, pa­recia absurdo que um líder da envergadrn-a de Prestes pudesse recusar o poder que lhe era ofe­recido, para, rompendo com a tradicional polí­tica de conciliação com o setores dominantes, colocar-se definitivamente ao lado dos oprimi­dos e dos explorados, à frente dos trabalhadores. Prestes não aceitara ser um político das classes dominantes. Passaria a ser um político compro­metido com os interesses populares, ainda que tais setores, em sua maioria, não pudessem à época compreender a grandeza do seu gesto.

A atitude de Prestes em 1930 continua sendo criticada e mal compreendida. Maria Cecília Spi­na Forjaz escreve, por exemplo :

"Teriam sido outros os rumos e o sentido da revolução de 1930, se Prestes tivesse partici­pado dela liderando o tenentismo.

Talvez contando com a sua liderança ca­rismática e sua imensa penetração popular, o movimento tivesse conseguido impor seu projeto para a sociedade. Nesse caso, 30 po­deria ter sido uma revolução das camadas mé­dias e não a revolução oligárquica que foi." 10

Na realidade, se Prestes tivesse participado do movimento de 30, teria sido obrigado a abdicar de suas posições revolucionárias, transformando-

9 PRESTES, Anita Leocádia. Tenentismo pós-30: continui­

dade ou ruptura? São Paulo: Paz e Terra, 1999. 10 FORJAZ, Maria Cecília S. Tenentismo eAliança Liberal

(1927-1930). São Paulo: Polis, 1978, p. 88.

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se em mero instrumento das oligarquias dissiden­·tes, pois os setores populares não estavam mobi­lizados nem organizados para seguir os novos ru­mos traçados pelo "Cavaleiro da Esperança". Caso Prestes viesse a tomar parte no levante de 1930 e tentasse mudar seu rumo, ficaria sem respaldo sequer dos "tenentes", e teria que acabar capitu­lando diante dos donos do poder. Como assinalei em meu livro sobre a Coluna Prestes,

"em 1930, como em outras ocasiões da hi tó­ria do Brasil , a tragédia dos movimentos po­pulares residiu no fato de que a sua debilidade e desorganização lhes impediram de trilhar um caminho independente, tornando-se jo­guetes nas mãos das classes dominantes, que os souberam usar com maestria para alcançar seus objetivos particulares. Luiz Carlos Pres­tes - para não se transformar em mais um joguete nas mãos das oligarquias dissidentes - teve que ficar só, rompendo até mesmo com seus companheiros mais próximos." 1i

Mais recentemente, o historiador Edgard Leite destacou que

" P o momento em que restes se recusa a par-ticipar do levante de 1930 é um momento de capital importância da história do Brasil. É a primeira vez em que uma liderança política de expressão, que tinha tudo para estar no poder e usufruí-lo, se recusa a fazê-lo. E essa recusa, que é a recusa do jogo conciliador da política brasileira, tão pernicioso para o Bra­sil, representa a aceitação plena e radical de uma causa, a causa da sociedade como um todo, que jamais pode ser realizada pela ação entre amigos de um levante oligárquiCO." 12

11 PRESTES, Anita Leocádia. A Coluna Prestes. Obra ci­

tada, p. 386 . 12 LEITE, Edgar L. Luiz Carlos Prestes e o nosso acer­

to com a História. Cultura Vozes. v. 92, n . 2, março-abril

1998, p. 109.

122 História & Luta de Classes

Alguns argumentam que, naquele momento, ao ficar politicamente isolado, Prestes se revelara um "mau político", pois, assumindo semelhante postura, teria abdicado da possibilidade de in­fluir na vida política nacional. Tal postura seria decorrência, em grande medida, da carência" de base teórica político-cultural que lhe permitis­se pensar acertadamente a inorgânica realidade brasileira" . \3 Pode-se, contudo, perguntar: quem naquela época possuía tal base? Conforme ressal­ta, mais uma vez, E. Leite:

"Inexistia, na época, pensamento mais criati­vo e que inspirasse especulações e ações mais ousadas. Não há, portanto, maior demons­tração de riqueza de pensamento político do que aquela que levou Prestes a romper com o golpe de Getúlio Vargas em 1930, em nome de um projeto social amplo, não excludente, revolucionário. ( ... )

A sua liderança contribuiu para fortalecer uma corrente de opinião até então inexisten­te - ou esmagada e insignificante. ( ... ) No que diz respeito à nossa política, portanto, a revolucionária, ele foi provavelmente o pri­meiro e o melhor dos políticos. O alcance da sua liderança não foi superado por nenhum de seus contemporâneos."14

Sem dúvida, o isolamento de Prestes, em 1930, foi grande. Como ele mesmo costumava lembrar, ficara reduzido à condição de um ge­neral sem soldados.15 Cabe perguntar, entretan­to, se, para não ser um "mau político", Prestes teria que se manter dentro dos padrões políti­cos impostos pelas classes dominantes, teria que conciliar com seus interesses, abrindo mão da denúncia das deSigualdades sociais e da miséria

13 VIAN A, Marly de A.G. Luiz Carlos Prestes. Novos

Rumos. n . 27, verão 1998, p. 56. 1+ LEITE, Edgar L. Luiz Carlos Prestes e o nosso senso de dever. Novos Rumos. n. 29, verão 1999, p. 49-50. 15 Repetidas declarações de L.C. Prestes, presenciadas

pela autora.

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a qu estavam condenados milhões de brasilei­ros? Prestes, ao romper com os donos do poder, ao negar apoio à Aliança Liberal e ao movimen­to chefiado por Vargas, optou aberta e sincera­mente por uma política comprometida com os interesses dos trabalhadores e das grandes mas­sas populares, pela luta ao lado dos oprimidos e explorados, contra os seus opressores e explo­radores. Nesse particular Prestes distinguiu-se da maioria dos seus antigos companheiros, nisso Prestes foi diferente dos políticos que tradicio­nalmente governaram o Brasil e, por essa razão, os donos do poder jamais o perdoariam. Ao con­trário, cultivaram, em relação a Prestes, um ódio sempre renovado que perduraria após seu desa­parecimento, ora revelando-se sob a forma de repetidos ataques e calúnias, ora sob a forma da "pasteurização" (domesticação) de sua personali­dade ou do total silêncio a respeito da vida e da obra do "Cavaleiro da Esperança". 16

Em 1930, Prestes, diferentemente da maio­ria dos políticos da época, incluindo seus antigos companheiros, os "tenentes", percebeu a inexis­tência no Brasil tanto de uma expressiva organi­zação das massas populares como de uma efetiva consciência revolucionária, capazes de propiciar a elaboração e a implantação de um programa viável de transformações radicais e profundas da sociedade brasileira. Embora tenha adotado a proposta estratégica do PCB - de uma revolução agrária e antiimperialista17

-, Prestes compreen­deu que tal objetivo não poderia ser alcançado apenas com a ascensão ao poder de uma lideran­ça de grande prestígio, como era o seu caso, pe­las mãos das elites oligárquicas que lhe ofereciam esse poder na bandeja. Caso aceitasse assumir o comando do movimento armado - o Cavaleiro

16 PRESTES, Anita Leocádia. "Uma estratégia da direi­

ta: acabar com os "mitos" de esquerda" (A propósito

do filme documentário" O Velho - A Hi tória de Luiz

Carlos Prestes"). Cultura Vozes. v. 91, n . 4, julho-ago to

1997, p. 51-62.

17 Cf. "Manifesto de Maio" de 1930 de L. C. Pre te , in

BASTOS, Abguar·. Obra citada.

da Esperança havia sido eleito pelos "tenentes" chefe militar da Revolução de 30 -, uma vez no poder, Prestes sabia que iria deparar-se com duas únicas alternativas possíveis: a capitulação diante dos interesses das classes dominantes ou o isola­mento e a derrota, se tentasse levar adiante uma política voltada para atender aos verdadeiros in­teresses dos trabalhadores, dos oprimidos e dos explorados.

Nesse sentido, é interessante lembrar o de­bate travado, em maio de 1930, entre Prestes e Siqueira Campos, as duas principais lideranças tenentistas da época, antes do lançamento públi­co do célebre Manifesto de Prestes. Em depoi­mento gravado, Prestes recorda que, após tomar conhecimento do texto do referido Manifesto, Siqueira Campos pedira para conversar com ele:

"E realmente conversamos. Eu trabalhava du­rante o dia ( ... ) Então, à noite, nos reuníamos. Depois do jantar, sentávamos assim em frente, um ao outro, na mesma mesa. O Siqueira que­rendo convencer-me de que eu devia partici­par do movimento e eu a querer convencê-lo de que ele não devia participar. Mas não hou­ve meio. Levamos uma semana, dez dias ... Eu devo ter perdido, assim, alguns quilos, porque era uma discussão com um amigo, e eu admi­rava muito o Siqueira. E ele, também, não po­dia admitir a luta continuar sem mim." 18

Prosseguindo seu relato, Prestes conta os detalhes do seu diálogo com Siqueira Campos, quando lhe perguntava:

"Mas como é que tu vais marchar, vais parti­cipar de um movimento com Bernardes, Epi­tácio, Borges de Medeiros ... com toda essa cambada? - E Siqueira respondia: - São os

18 Entrevistas concedidas por Luiz Carlo Pre tes a Ani­

ta Leocádia Pre te e Marly de A. G. Vianna (gravadas

em fita magnética e tran crita para o papel) . Rio de

Janeiro, 1981 -1983, fita 8, p. 58-59.

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primeiros que eu fuzilo. - Prestes retrucava: - Tu é que estás equivocado. Eles é que vão te fuzilar, porque qual é a força que tu tens? Es­tão todos eles do lado do Getúlio! ( ... ) Eles é que vão te fuzilar, se você quiser continuar a fazer alguma coisa mesmo. Porque eles vão fazer a política da oligarquia gaúcha e a polí­tica deles, o que ~les quiserem." 19

Hoje é possível afIrmar, na esteira do pensa­mento de Gramsci, que, naquele momento histó­rico, Luiz Carlos Prestes compreendera que, para pôr em prática as transformações revolucionárias, propostas pelo PCB e por ele encampadas, seria necessário que as forças revolucionárias, antes , conquistassem a hegemonia na sociedade civil. 20

E, para isso, tais forças teriam que contar com o apoio de significativos setores populares, orga­nizados, mobilizados e conscientes dos objetivos a serem alcançados. Embora concordasse com o programa, proposto pelo PCB, da revolução agrá­ria e antiimperialista, definida como a primeira etapa da revolução socialista, Prestes percebera que era necessário preparar as forças sociais e po­líticas capazes de, sob a direção dos comunistas, alcançarem os objetivos traçados. Não poderia aceitar, portanto, os repetidos apelos para co­mandar uma "revolução" que não era a sua e, uma vez no poder, tentar virar a mesa. Previa que, por tal caminho, o fracasso seria inevitável.

Prestes, de posse da experiência das lutas te­nentistas, verificara que, no Brasil, a desorgani­zação dos setores populares, aliada à ausência de uma proposta de transformações efetivamente revolucionárias por parte dos "tenentes" - cujo programa limitava-se ao ideário liberal das oligar­quias dissidentes -, impedia que a crise da Repú­blica Velha pudesse gerar um poder voltado para a solução dos graves problemas sociais enfrentados

19 Idem, p. 59.

20 Sobre a que tão da hegemorúa, segundo A. Gram ci, cf. GRAMSCI, Antôrúo. Cadernos do cárcere. v. 3. Rio d

Janeiro : Civilização Brasileira, 2000.

124 História & Luta de Classes

pela maioria do povo brasileiro. O tenentismo, ao contribuir para a formação de uma opinião públi­ca favorável a mudanças, abalara os alicerces da República oligárquica, mas, dada a falta de auto­nomia ideológica dos "tenentes", suas principais lideranças aderiram à Aliança Liberal, à candida­tura de Getúlio Vargas e ao movimento armado de 1930, tendo alcançado o poder em posições subordinadas ao grupo varguista, vitorioso com a chamada Revolução de 30. Era o caminho da ca­pitulação diante dos donos do poder ou, melhor dito, das classes dominantes . Caminho este ina­ceitável para Prestes, que, ao adotar o marxismo como teoria que passaria a nortear sua atuação política, entendera ser a luta de classes o motor das sociedades humanas e, conseqüentemente, a emancipação dos trabalhadores não poderia ser alcançada através de uma virada de mesa ou de conchavos com os poderosos de ocasião. 21

Não se deve esquecer que, tradicionalmente, no Brasil, as classes dominantes, formadas por senhores de escravos e grandes proprietários de terras, jamais admitiram a possibilidade de orga­nização popular. Dado o seu poderio econômico e político, puderam reprimir sempre com violên­cia qualquer tentativa de mobilizar e/ ou organi­zar setores populares na luta pelas suas aspirações. Como é apontado por Sérgio Buarque de Holan­da (embora se referisse ao período imperial),

"no Brasil, onde funcionava uma caricatura do regime representativo, ( ... ) os setores ig­norados ou espoliados pelas oligarquias do­minantes, e que formavam a grande maioria da nação, se inclinavam a secundar com fre­qüência de bom grado aqueles que, entre os muitos descontentes com a situação, eram os únicos em condições de desafiar com bom êxito as mesmas oligarquias."22

21 Cf. PRESTES, Arúta Leocádia . A Coluna Prestes. Obra citada; PRESTES, Arúta Leocádia . Tenentismo pós-30:

continuidade ou ruptura? Obra citada.

22 HOLANDA, Sérgio Buarque de. A fronda pretoria­

na. In: HOLA DA, Sérgio Buarque de (org.).História

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o

Ao perceber a tradicional desorganização dos setores populares no Brasil, o grande histo ­riador paulista deu uma explicação convincente para o papel destacado dos militares à frente dos movimentos de contestação das oligarquias do­minantes:

"Os oficiais militares podem inscrever-se real­mente na vanguarda das aspirações populares e figurar como porta-bandeiras dessas aspi­rações. Não porque agem na qualidade de representantes ou componentes das camadas desfavorecidas, mas porque eles próprios, distanciados como se acham dos donos do poder e sujeitos como estão aos caprichos do favoritismo oficial , também se sentem desfa­vorecidos e podem desforrar-se, por si e pe­los outroS."23

Considerando as observações de Sérgio Buar­que de Holanda pertinentes para a explicação tanto dos levantes tenentistas nos anos de 1920,24 quanto da influência revelada pelas concepções golpistas drn-ante os acontecimentos de 1935 no Brasil, 25 pode-se acrescentar que essa tradicional desorganização dos setores populares contribuiu de maneira decisiva para a dificuldade encon­trada pelos comunistas brasileiros no esforço desenvolvido para mobilizar e conscientizar os trabalhadores das cidades e do campo, conforme sempre se afirmou em seus documentos.

Vale lembrar que, desde outubro de 1929, o PCB definira a situação brasileira como revo­lucionária e, conseqüentemente, a tática a ser implementada pelos comunistas deveria ser a insurrecional. 26 A pesar dos inegáveis esforços

Geral da Civilização Brasileira. t. 2, v. 5. São Paulo: Direi,

1972 . p.345 -346.

23 Idem, p. 346.

2-+ PRESTES, Anita Leocádia. A Coluna Prestes . Obra citada.

25 PRESTES, Anita Leocádia. Luiz Carlos Prestes e a Alian­

ça acionaI Libertadora ... Obra citada . 26 O III Pleno do C.C. (outubro de 1929) . In : CARONE,

levados adiante para organizar, mobilizar e cons­cientizar os trabalhadores segundo as diretrizes do partido, a prática mostrou que as condições eram adversas e as análises produzidas pelo PCB não cor respondiam à realidade que se desejava transformar. A derrota de novembro de 1935 foi o desfecho trágico dos erros de avaliação come­tidos pelos dirigentes do movimento. Mais uma vez, a tradicional desorganização dos setores po­pulares impediu que os comunistas pudessem avançar rapidamente, conforme pretendiam, no processo de mobilização das amplas massas e da conquista da hegemonia na luta pelos ob­jetivos da revolução agrária e antiimperialista e, nos anos 1934/35, na luta contra o fascismo e o integralismo. 27

Há que reconhecer, entretanto, que os es­forços desenvolvidos pelo PCB não foram total­mente infrutíferos; pelo contrário, inegavelmen­te contribuíram para que se formasse no Brasil uma consciência antiimperialista e pró reforma agrária e, a partir de meados dos anos trinta e drn-ante a Segunda Guerra Mundial, srn-gisse também uma consciência antifascista e antiinte­gralista. Cabe assinalar que o prestígio de Luiz Carlos Prestes mostrou-se fundamental para que as bandeiras levantadas pioneiramente pelo PCB atingissem setores significativos da opinião pú­blica nacional, conforme mostrei em meus livros dedicados ao tema. 28

A opção política feita por Prestes em 1930 constitui um desafio não só para os analistas po­líticos, comprometidos, em geral, em maior ou menor grau, com os interesses das elites domi­nantes, mas também para os cientistas sociais e historiadores, principalmente para os que bus­cam uma explicação racional para os fenômenos

Edgard. O P.c.n. (1922-1943). v.I. São Paulo: Direi,

1982, p.78-83.

27 Cf. PRESTES, Anita Leocádia. Luiz Carlos Prestes e a

Aliança acionaI Libertadora ... Obra citada. 28 Idem; PRESTES, Anita Leocádia. Da insurreição ar­

mada (1935) à política de "União NacionaJ"(1938-1945):

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sociais. Nesse particular, o recurso ao método comparativo na História

"constitui um processo essencial no caminho para a sistematização dos conhecimentos, entre outras causas, porque possibilita ao ob­servador afastar-se de seu próprio ponto de observação, de sua sociedade particular, sem o que não há objetividade possível nas ciên­cias sociais."29

A comparação da posição assumida por Pres­tes, diante dos acontecimentos de 1929/30, com as escolhas feitas por Lula e a direção do PT, na virada do século XX para o XXI, é extremamen­te esclarecedora. Revela, por parte das lideran­ças petistas, a ignorância de uma característica fundamental das sociedades divididas em classes e da dinâmica da luta de classes, ou seja, de que a chegada ao poder, sem o apoio e a participação de setores populares organizados e mobilizados em torno de um programa definido de profun­das transformações sociais, sem a conquista da hegemonia desses setores na sociedade civil , só poderá viabilizar-se mediante a capitulação fren­te às classes dominantes. E, hoje, no Brasil, isso significa a capitulação diante dos interesses do grande capital internacionalizado, em especial, do capital financeiro, ou seja, dos banqueiros in­ternacionais.

Tal capitulação ocorreu, por parte de Lula - à frente do PT -, após três tentativas frustradas de alcançar o poder, nas eleições presidenciais de 1989, 1994 e 1998. Para conquistar a presidên­cia, em 2002, foi feita uma escolha que, como é apontado por Leda Maria Paulani, professora do Departamento de Economia da FEA/USP, re­presentou a opção pelo

a virada tática na política do PCB. São Paulo: Paz e TelTa , 2001.

29 CARDOSO, Ciro Flamarion e BRIG OLI, Héctor

Perez . Os métodos da História. 2" ed. Rio de Janeiro:

Gl'aal, 1981,p.410-411 .

126 História & Luta de Classes

"( ... ) caminho 'mais seguro ' , que não afron­tava interesses constituídos, internos e exter­nos, que impunha de vez o rentismo como marca de nossa economia, que consagrava para o Estado o papel paternalista e 'focado' de 'cuidar dos pobres', que não questionava as disparidades regionais e pessoais de renda e riqueza, que não ameaçava sequer arranhar a iníqua estrutura patrimonial do país, que mantinha-o, enfim, submisso aos imperativos da acumulação financeira que domina a cena mundial do capitalismo desde meados dos anos 70." 30

Não há como discordar da autora citada, quando ela conclui:

"O governo do PT, sem coragem de afrontar os interesses constituídos, sem nenhuma dis­posição para arriscar uma mudança na postura do Estado que o tornasse capaz de enfrentar os problemas experimentados pelo país, es­colheu a reafirmação da lógica perversa que já estava em curso e a entrega total do Brasil às exigências da acumulação privada."31

Da mesma maneira que nos governos de Fer­nando Collor de Mepo e Fernando Henrique Cardoso, no Governo Lula o capital financeiro permanece hegemônico, embora esteja em curso uma reforma do neoliberalismo, voltada para a construção de uma "nova versão do modelo ca­pitalista neoliberal". 32 Evidencia-se cada vez mais que as políticas econômicas e sociais do Governo Lula estão provocando mudanças que poderão

30 PAULA I, Leda Maria. "Quando o medo vence a

esperança (um balanço da política econômica do pri­

meiro ano do governo Lula)". Crítica Marxista, n. 19, outubro de 2004, p.lS . 31 Idem. p. 23.

32 BO ITO, Armando. "O Governo Lula e a reforma

do neoliberalismo" . Revista da Adusp, maio de 200S .

( www.cecac.org.br )

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"dar um novo fôlego político a esse modelo anti­nacional e antipopular do capitali mo". 33

Trata-se, pois, de uma opção política que ga­rantiu, por um lado, o poder para Lula e a cúpula do PT, mas significou, por outro lado, a total ca­pitulação frente aos interesses do capital finan­ceiro internacional. Estamos diante de uma op­ção política diametralmente oposta àquela feita, em 1930, por Luiz Carlos Prestes.

Estudos recentes de autores de esquerda tem revelado preocupação com a hegemonia neoli­beral no Governo Lula, mostrando, inclusive, que tal hegemonia apóia-se em "novas e variadas divisões produzidas no seio das classes trabalha­doras. Não apenas divisões provocadas no plano econômico, como ocorre com desemprego e terceirização, mas também, divisões políticas e ideológicas introduzidas pela burguesia."34

Na verdade, Lula herdou dos governos ante­riores não só a base de sustentação, formada pelo grande capital internacionalizado, como também "os apoios que o neoliberalismo logrou obter no meio popular" .3S

Tudo indica, portanto, que a solução dos graves problemas que afetam a maioria do nos­so povo - e hoje tais problemas são muito mais graves do que em 1930 - depende de as forças de esquerda revelarem capacidade de organizar, mobilizar, conscientizar e unificar os diferentes setores de um universo extremamente dividido e repleto de contradições dos trabalhadores bra­sileiros. A solução radical dos problemas brasi­leiros não será alcançada mediante acordos com o grande capital internacionalizado, sem a parti­cipação efetiva dos movimentos populares orga­nizados e unificados em torno de um programa de transformações capazes de imprimir um novo rumo à política do Estado. Um rumo que tenha

33 Idem.

34 BO!TO JR. , Armando. A hegemonia neoliberal no

governo Lula . CrItica Marxista, n. 17, novembro de 2003 . p.32. 3S Idem . p. 34.

por objetivo contemplar os intere ses da maio­ria e não o de grupos privilegiados, incluindo setores da própria classe operária, movidos mui ­

tas vezes por interesses corporativos. 36 Mais uma vez, contrastando com as escolhas

realizadas por Lula e o PT, a opção política feita, em 1930, por Luiz Carlos Prestes revela-se ainda hoje acertada, tendo em vista os mais legítimos anseios da maioria dos trabalhadores e dos seto­res populares marginalizados e pauperizados pe­las políticas de governo comprometidos com os interesses do grande capital internacionalizado.

A partir de 1930, Prestes passou a dedicar todas as suas energias à tarefa de construção das forças sociais e políticas capazes de trilhar o ca­minho da revolução socialista no Brasil. Sabedor de que o caminho escolhido seria árduo, difícil e demorado, o "Cavaleiro da Esperança" compre­endia que não seria possível estabelecer prazos para a conquista dos objetivos traçados. Enfren­tando os erros que iam sendo cometidos e pro­curando corrigi-los, o fundamental para ele era buscar sempre os meios de contribuir para a or­ganização e a conscientização de amplos setores populares na luta contra o sistema capitalista.

36 Cf. BOITO JR, Armando. A hegemonia neoliberal

no governo Lula. Obra citada.

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Igualitarismo marxista e liberdade humana

Valéria Arcary,t-

"Se se entende que toda transgressão contra a propriedade,

sem entrar em distinções, é um roubo, não será um roubo toda a propriedade privada? Acaso minha propriedade privada não

exclui a todo terceiro desta propriedade? Não lesiono com isso,

portanto, seu direito de propriedade?" 1

Karl Marx

"O projeto socialista é o de uma gradual satisfação de mais e mais

necessidades, e não uma restrição a requisitos básicos. Marx nunca foi um defensor do ascetismo ou da austeridade. Ao contrário,

o conceito da personalidade totalmente desenvolvida, que é o próprio coração de sua visão de comunismo, implica a satisfação

de uma grande variedade de necessidades humanas, e não um estreitamento decrescente de nossas necessidades a alimentos

básicos e moradias. O desaparecimento gradual do mercado e das

relações monetárias concebido por Marx, envolveria a extensão

gradativa do princípio de alocação de recursos ex-ante para a

satisfação destas necessidades em um número cada vez maior de bens e serviços, engendrando uma variedade mais ampla, e não menor, do que a existente sob o capitalismo hoje em dia. " 2

Ernest MandeI

o argumento que defende a justiça da propriedade privada foi sempre a pedra angular do liberalismo. Se o direito ilimitado à propriedade privada fosse ameaçado, argumentaram os liberais, a liberdade seria destruída. Remetendo as formas econômi­cas da organização social contemporânea à' ca­racterísticas de uma natureza humana invariável

- O homem como lobo do homem - o liberalismo fundamentava a justificação do capitalismo na de­Sigualdade natural. Resumindo e sendo, portanto, brutal: o direito à riqueza seria a recompensa dos mais empreendedores, ou mais ativos, ou mais ca­pazes e seus herdeiros. O capitalismo seria o hori­zonte histórico possívd e o limite do desejável. As idéias socialistas estão hoje na contra-corrente, mas os pioneiros do liberalismo não eram tão reacioná­rios quanto seus herdeiros atuais. Adam Smith, por exemplo, não sentiu embaraço em sentenciar:

• Profe OI' do CEFET /SP, é doutor em História pela

USP e autor de As esquinas peri80sas da História, situações

revolucionárias em perspectiva marxista.

I MAR.-'C, Karl. "O debates na Dieta Renana sobre as

leis castigando os roubo de lenha", in Escritos de juvenwd,

México: Fondo de Cultura Econômica, 1987, p. 251 . 2 MANOEL, Ernest. Socialismo versus mercado. São Paulo :

Ensaio, 1991 , p. 56.

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"Na realidade, a diferença de talentos naturais em pessoas diferentes é muito menor do que pensamos; a grande diferença de habilidade que distingue entre si pessoas de diferentes

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profissõe " quando chegam à maturidade, em muitos ca o não é tanto a cau a, mas antes o efeito da divisão do trabalho. A diferença en­tre as per onalidades mais diferentes, entre um filósofo e um carregador comum da rua, por exemplo, parece não provir tanto da na­tureza, mas antes do hábito, do costume, da educação ou formação. Ao virem ao mundo, e durante o seis ou oito primeiros anos d existência, talvez fossem muito semelhantes entre si, e nem seus pais nem seus compa­nheiros de folguedo eram capazes de perce­ber nenhuma diferença notável."3

o programa socialista inscreveu na História a necessidade da luta contra a propriedade privada para defender o direito à vida, a primeira, mais elementar e mais decisiva das liberdades humanas. O socialismo elevou o direito ao trabalho, o direi­to à moradia, educação, transporte e lazer, enfim, o direito à satisfação das necessidades humanas mais sentidas, como a missão fundamental da vida civilizada, e o sentido da história pelo qual vale a pena lutar. Aflrmava que o direito indefinido de al­guns à propriedade privada e ao direito de herança ilimitada, ou seja, a fortaleza jmídica que defende o Capital, seria incompatível com o direito à vida de todos. O marxismo problematizava, também, a idéia de uma condição humana imutável, criti­cando critérios anti-históricos que naturalizavam a exploração dos homens uns pelos outros. Aflrma­va que os homens eram, ao mesmo tempo, iguais e desiguais. Reconhecia que a humanidade era di­versa, os seres humanos possuindo capacidades di­ferentes e talentos variáveis, sublinhando, porém, que as necessidades fundamentais eram iguais.

Ao longo do século XIX o marxismo preci­sou lutar contra outras tradições igualitaristas, antes de conquistar a posição de corrente mais influente nos movimentos operário europeu ' .

3 SMITH, Adam. A riqueza das nações. Capítulo 11, "O

princípio que dá origem à divi ão do trabalho", Y. 1 ova Cultural, 1988, Coleção" O Economi tas", p.

25.

130 História & Luta de Classes

Polemizou com o cooperativismo francê inspi ­rado em Proudhon, com o e taLismo reformista alemão da corrent de La ale, e com o anarqui ' ­mo ru so antipolítico de Bakunin. Argumentou contra Proudhon que as cooperativas poderiam ser uma escola de construção da solidari dade, ma nada impedia que fossem absorvida. pelo mercado. Respondeu ao estatismo de Las ale, recordando que o capitalismo poderia conviver com um estado intervencionista, diferenciando socialização de estatização. Contestou Bakunin afirmando a necessidade da política, e da organi­zação de partidos, no caminho da libertação dos trabalhadores da influência dos partidos da bur­guesia, indu ive no terreno eleitoral.

O socialismo dos marxistas defendia que, en­quanto alguns poucos possuíssem o capital- por­tanto, as melhores terras, a fábricas, os bancos - não haveria forma de construir a igualdade so­cial humana, e que era necessária uma estratégia revolucionária para deslocar o Estado capitalis­ta, aparentemente, invisível atrás dos diferentes regimes políticos. Afirmava que não poderia haver

liberdade entre desiauais. Defendia que aqueles que acumulam a riqueza concentram, invariavelmen­te, o poder, e os que controlam o poder têm me­lhores condições de apropriação e acumulação. A preservação do capitalismo, apesar dos dife­rentes regimes políticos de dominação - demo­crático-eleitorais, ou bonapartistas-ditatoriais - eria a continuidade de um istema de explo­ração do trabalho pelo Capital. O programa do marxismo era a socialização da propriedade pri­vada e a regulação da alocação de recursos pelo planejamento determinado democraticamente.

IGUALDADE E LIBERDADE SÃO

CONTRADITÓRIAS OU COMPLEME TARES?

Os liberais têm argumentado - auxiliados, no úl­timos quinze anos, por alguns ex-marxistas - que o socialismo teria fracassado. Invocaram a histó­ria identificando bolchevi mo com estalinismo, e acu ando as ditaduras burocráticas na URSS e Chi­na. Os liberais responderam ao desafio ociali ta

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argumentando que a luta pela igualdade de trui ­ria, inexoravelmente, a liberdade: denunciaram a ambição igualitarista como incompatível com o direito à busca da felicidade, diminuída como o direito à propriedade privada, e amesquinha­da como a luta pelo enriquecimento individual. Locke, um liberal que viveu em uma época histó­rica em que a luta contra a tirania absolutista era um horizonte revolucionário, confessou, há mais de duzentos ano ', a legitimidade da luta armada pela defesa da propriedade privada da minoria:

"Mas se qualquer desses atos ilegais se esten­deu à maior parte do povo - ou se o malefício e a opressão atingiram somente a alguns , mas em casos tais que os precedentes e as con­seqüências pareçam a todos ameaçar, estan­do eles persuadidos intimamente de que as leis e com elas as propriedades, liberdades e vidas estão em perigo e talvez até mesmo a religião -, não estou em condições de dizer como se poderá impedi-los de resistir à força ilegal de que se faz uso contra eles." 4

Se as leis que protegem a propriedade estI ­vessem em perigo, e mesmo se somente alguns poucos tivessem suas propriedades ameaçadas , seria legítimo resistir à força. A defesa do direI ­to de insurgência contra o Estado, ainda quando este fos e a expressão da vontade da maioria des­pojada contra a minoria privilegiada, estabeleceu o cerne do proj eto liberal. Para os liberais, igual ­dade e liberdade eram contraditórias.

No entanto, imputar ao marxismo - uma teo­ria e um programa - as misérias econômico­sociais que foram camufladas pela burocracia em seu nome, como na ex-URSS, seria o mesmo que acusar o cristianismo - uma doutrina religiosa e moral - pelos crimes da inquisição do Vaticano. e­ria o mesmo que atribuir à biologia evolucionista

4 LO KE, John. "Two treatsises or civi l governrnent ".

London : Everyman '- Library, 1966, p. 117-2+ 1. In

WEFFORT, Francisco. (org.) Os clássicos do polÍliclI ,

ti a , 1989, p. 91.

darwinista a responsabilidade pelos crimes de eu­genia do nazismo, ou infligir à física einsteiniana o dolo das armas nucleares. O ensinamentos reli­giosos , as ideologias políticas, assim como as hipó­teses científicas exerceram, por supo to, uma in­fluência no processo histórico, mas não é equer ra­mável conferir-lhes um peso tão grande. As idéias são apropriadas pelos sujeitos políticos, arbitraria­mente, como a palavras, expressando os conflitos e lutas entre as classes. As causas do impasse das transições pós-capitalistas devem ser procuradas, em primeiro lugar, nas condições materiais que li­mitaram a URSS, e no deslocamento do eixo da revolução mundial para o sul do planeta, ou seja, para os países coloniais e semi-coloniais. As nações que viveram revoluções sociais eram sociedades muito pobres e possuíam, culturalmente, pou­quíssimos recursos. Não surpreende que, mesmo tendo diminuído a deSigualdade, o isolamento na­cional tenha favorecido a burocratização.

N o afã da polêmica histórica os liberais tive­ram amnésias convenientes, esquecendo que a luta democrática foi protagonizada pelo movi­mento operário e pelos socialistas . O liberalismo, mesmo admitindo-se a variedade ampla de libe­ralismos segundo a época e os países, nunca teve maior compromisso com as liberdades democrá­ticas, nem no terreno teórico, nem no campo da prática histórica. Ao estudar a revolução inglesa do XVII os liberais defenderam o direito de re­belião do Parlamento - liderado por Cromwell contra o Estado absolutista inglês - em nome de que não poderia haver taxação sem aprovação da representação. Argumentaram que impostos que não foram votados pelo Parlamento, não tinham legitimidade, e a insurgência estaria justificada. Não reconheceram aos socialistas no século XX, contudo, o mesmo direito de insurgência contra ditaduras terríveis, sempre e quando os interes­ses do Capital estavam assegurados.

Durante o último dois séculos identificaram a liberdade com o direito individual de auto-defe­sa contra o Estado, de onde sW'giu a máxima: não se devem aceitar impo to em que ejam votados pela representação do Parlamento e, não meno

Valério Arcary I Igualitarismo marxista e liberdade humana 131

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importante, não devem votar repre entantes, se­

não dos que pagam impostos . Domenico Losurdo estudou as ambigüidades das relações da tradi<;ão lib ral com o sufrágio:

"Somo capazes de compreender melhor o ignificado da di criminação censitária que

acompanhou tenazmente a história da tradi~o liberal. Sieyés, que teoriza a distinção entre cidadãos ativos e passivos, considera como um fato ( ... ) que 'a multidão sem instrução' . eja obrigada a um trabalho 'forçado' e, portanto, seja 'privada de liberdade'; também propõe, como sabemos, introduzir na França o tra­balho ervil ou semi-servil, a que deviam ser ubmetidos os cidadãos passivos ( ... . ) o por­

ta-voz do Terceiro Estado e da burguesia lihe­ral francesa fala da 'maior parte dos homens ' como 'instrumentos humanos da produ<;ào' ou como' instrumentos bípedes', retomando em última análise a categoria de que se serve Aristótele para definir o trabalho servil.'"

A democracia liberal na Europa nasceu censitá­ria, excluindo a maioria pobre. Excluíam, também, as mulheres, os jovens, o analfabetos e os e ' o-an­geiros. Nos EUA excluía os escravos. A história das lutas políticas confIrma que o liberalismo do XIX defendeu que só aqueles que tinham uma renda su­ficiente para pagar impostos deveriam poder votar. A liberdade dos liberais não era igual para todo . Os liberais preferiam reconhecer que os homens deveriam ser iguais diante da lei ou diante de Deus, mas irredutivelmente de~iguais eno-e si. O voto censitário, porque limitado aos cidadãos ativos -identifIcando como passivos a maioria pobre que, no fmal o século xvm, ainda não pagava impostos - foi in crito na Constituição francesa de 1791 . Foi através de longas lutas políticas - dos cartistas na Inglaterra , a revolução de 1848 na França -

5 LOSURDO, Domenjco. Democracia ou Bonapartismo,

Triurifà e decadência do sifráaio universal. Rio de Janeiro :

Editora da UFRJ /São Paulo: Editora da U ESp, 200+,

p. +5 .

132 Históda & Luta de Classes

encabeçadas pelos socialistas que ° direito de voto se universali7.0u. Os liherais temiam que, com a xtensão do direito de voto aos não proprietários ,

fosse leita uma maioria de deputados que ousaria desafiar a propriedade privada.

Essa re istência política ao voto universal du ­rante o -éculo XIX, expressão do horror social burguê. à ma sa ubalt erna , demonstrou-se his ­toricamente infundada porque, ao longo do sécu­lo XX, os regimes democrático-liberaL lograram atrair para a sua órbita os partidos de ba:e ope­rária burocratizados: primeiro a social d mocra ­cia, depois o estalinismo e, finalmente, a maioria dos movimentos nacionalistas revolucionários na periferia, como sanclinista e tupamaros . O mo­vimento operário nos últimos 150 anos foi, toda ­via, o protagonista social da mais decisiva trans ­formação da história humana: a aventura épica por um controle consciente obre os destinos da sociedade, levando até o fim a promessa inscrita na revolução francesa de liberdade, igualdade e fraternidade. Segundo Perry Anderson:

"A área da autodeterminação ( .. . ) veio se am­pliando nos últimos 150 anos, mas permanece, todavia , muito menor que o seu cono-ário. O verdadeiro propósito do materialismo históri­co foi, considerando tudo, dar aos homens e mulher s os meios para xercer uma autêntica autodeterminação popular, pela primeira vez na história. Esse é exatamente o objetivo da re­volução socialista, cuja a'ipiração é inaugurar a transição do que Marx chamou a passagem da esfera da necessidade para a da liberdade."6

O socialismo foi o programa que inspirou essa epopéia. Os marxistas argumentaram que o sentido da luta dos trabalhadore consistiu, his­toricamente, em levar à - última conseqüência ' a luta pela igualdade e liberdade como valores indissociáveis , portanto, que se definem um ao

6 A DERSO ,PeITY, Teoria, politica e historia: un debate

com E. P. Thompson. Trad. Eduardo Terrén. Madri: Siglo

XXI de Espana, 1985 , p. 23.

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outro. Afirmaram que não poderia haver igualda­de sem liberdade e vice-versa. Uma condicionaria a outra. Essa é também a opinião de Wallerstein:

"Qye sinnifie réellement le slonan, «liberté, énalité,jraternité»? Le sloBan de la Révolution

jrançaise est jamilier à chacun. Il semble foire ré­

jérence à trois phénomenes diffirents, situés chocun dans les trois domaines entre lesquels nous sommes habitués à diviser nos analyses sociales: la liber­té dans le champ poli tique, J'énalité dans le champ économique, et la jraternité dans le champ socioculturel. Et nous nous sommô

éBalement habiwés à débattre de leur importunce relati ve, en porticulier entre la liberté et /' éBa fiL é.

r antinomie de la liberté et de /' éBa]ité me semble

absurde. Je vois diJftcilement comment on peut être

"libre" s'i] J a de /'inéBalité, etant donné que ceux

qui possedent plus ont toujours des options qui ne

som pas possibles à ceux qui possedent moins et que, par conséquent ces derniers sont moins libres. Et, de la

même foçon, je vois diJftcilement comment /' éBalité

peut exister sans la liberté, puisque, en l' absence de

liberté, certains ont plus de pouvoir po]itique que

d'autres, d'ou il suit qu'il J a inéBalité. Ce n'est pClS

un jeu de mots que je sUBBere ici, mais le rejer de la distinaion libertá-eBalité. Liberté-énalité est un seul et même concept." (grifo nosso)7

Enquanto os liberais restringiam a igualdade possível à igualdade jmídica ou, na melhor das hipóteses, a ampliavam apelando à igualdade de oportunidades, os socialistas afirmavam que a li­berdade só se completaria quando a humanidade fosse capaz de garantir a igualdade social . liber­dade e igualdade seriam indivisíveis e estariam historicamente condicionadas pela possibilidade da abundância, ou seja, pela capacidade social de gerar uma produção econômica que pudesse satisfazer as necessidades mais intensas. Para serem iguais entre si, os homens precisariam ser capazes

7 WALLERSTEIN, Immanuel. "1968, Révolution dan­

le Sisteme Mondial". In Le Temps Modernes, 51+/ 51:; ,

mai-juin 1989, p. 173 / 4.

de se emancipar da penúria ou, em outras pala­vra , se libertar da opressão da natureza, desen­volvendo as forças produtivas para além das limi­tações materiais e culturais herdadas do passado.

NECESSIDADES LIMITADAS OU ILIMITADAS?

Este tema nos remete à discussão teórica que po­deríamos enunciar como a polêmica entre mar­xistas e liberais sobre as necessidades humanas. A acusação dirigida aos socialistas de que preten­deriam socializar a miséria não tem fundamento. A causa socialista é o projeto de conquista da far­tma. Seu maior estandarte sempre foi a lihertação da humanidade da pobreza material e cultural. Os marxistas nunca esconderam a ambição de seu programa. Ele se eleva muito acima da satisfação de necessidades biológicas. A vida vegetal é que depende somente de alimentação e abrigo. A vida animal, mais complexa, exige a reprodução sexua­lizada, portanto, em muitas espécies, organização em grupos e disputa de parceiros. As necessidades humanas se definem como uma construção social, cultural, e histórica. Henrique Carneiro desenter­rou a aguda observação de Marx:

"N' O Capital, Marx usará propositadamente uma seleção arbitrária de exemplos de mercado­rias (como é o caso do "linho, Blblias ou aguar­dente", do capítulo III, do Livro I), que represen­tam a satisfação de necessidades, cuja natureza, sendo originária do 'estômago ou da fanta<;ia' não 'altera nada na coisa' , repetindo, numa nota de rodapé, uma frase de Nicholas Barbon: 'De­sejo inclui necessidade, é o apetite do espírito e tão natmal como a fome para o corpo ( ... ) a maioria (das coisas) tem seu valor derivado da satisfação das necessidades do espírito' ." 8

Eis, portanto, nas palavras de Marx: não im­porta se as necessidades derivam do estômago ou

8 CARNEIRO, Henrique. "As necessidades humanas e

o proibicionismo no século XX". In Ouwbro 6, p. 118.

São Paulo : Xamã , 2002 . A refer ência a O Capiral, se encontra Livro I, p . 45 .

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da fantasia , todas as necessidades humanas modi­ficam-se em necessidades culturalmente transfor­madas. Um prato de comida elaborado, cozinha­do com temperos que definem um sabor, é um produto da cultura material. Expliquemo- no~: o socialismo se fundamentou na defesa de que um estágio de abundância relativa seria possível por­que, reconhecendo como limitadas as necessidlldes

humanas mais int ensamente sentidas em cada época, estas poderiam ser aferidas a priori, e a produyão social deveria ser organizada em função de uma alocação de recursos para a sua satisfação pelo planejamento. Agnes Heller se dedicou ao tema no seu livro, Teoria das necessidades em Marx:

"Nos manuscritos econômico-filosóficos, Marx admite o sistema das necessidades constitui uma expressão da alienação capitalista na qual o fim da produção não é a satisfação do que aparece como necessário, mas a valorização do Capital. O problema está na fetichização dessas necessi­dades pelo capital ismo, fazendo delas um mero numero ( ... ) Na utopia marxiana as necessida­des não desaparecem , pelo contrário, se multi­plicam ( ... ). Ao conceito de necessidades al ie­nada~ , Marx opõe o de necessidades radicais , as que possuem um caráter qualitativo."9

Os liberais defenderam contudo, que, co­mo as necessidades não poderiam ser aferidas, porque sendo indefinidas e ilimitadas seriam in­determináveis, a humanidade estaria condenada à regulação da escassez, portanto, à deSigualdade e ao conflito de classes . Os marxistas contra­argumentaram admitindo que as necessidades mais sentidas foram ao longo do tempo variá­veis, porém, porque histórica e culturalmente definidas em cada tempo, poderiam ser calcu­lada . A industrialização teria trazido consigo a possibilidade da abundância. Henrique Carneiro, recordando esta tradição, acrescentou:

9 HELLLER, Agnes. Teoria Jas necessidades em Marx. Bal'­

,dona : Península, 1986 .

134 História & Luta de Classes

"A conotação de necessidade presente em Marx é aquela que, além do conceito lógico de ne­c ssidade objetiva, identifica nas necessidades subjetivas da humanidade dois tipos: as que são básicas, de sobrevivência física, e as derivadas ( ... ). A busca da satisfação das necessidades é o que leva à produção dos meios para satisfa­zê-las, criando o que Marx designa como 'pri­meiro ato histórico'. Primeiro é preciso viver, ou seja, 'comer, beber, ter habitação, vestir-se e algumas coisas mais', mas logo em seguida, acrescenta Marx, 'satisfeita esta primeira ne­cessidade, a ação de satisfazê-la e o instrumen­to de satisfação já adquirido conduzem a novas necessidades - e esta produção de novas neces­sidades é o primeiro ato histórico."1O

A premissa marxista, portanto, é que a am ­pliação das necessidades é parte de um proces­so de crescimento material e cultural em que a humanidade se reinventa a si própria através do trabalho que passa a ser, também , uma necessi­dade. A indusb'ialização dos últimos duzentos e cinqüenta anos teria permitido a redução abrup­ta do tempo socialmente necessário para a pro­dução dos produtos, abrindo a possibilidade de superação gradual da divisão milenar do trabalho manual do trabalho intelectual.

Ao mesmo tempo, apesar das flutuações con­junturais da oferta e da procura, e de alinhamen­tos maiores ou menores no mercado mundial, ob­serva-se que os preços das mercadorias vieram, tendencialmente, diminuindo. A deflação dos preços nas longas dw"ações seria uma expressão distorcida - pela permanência da propriedade privada - do crescimento das forças produtivas, porque expressaria o aumento da produtivida­de do trabalho. Teríamos atingido um estágio de desenvolvimento das forças de produção em que a capacidade de transformação da natureza à escala global já permitiria, ou estaria muito próximo de conseguir, uma desmercantilização

10 CARNEIRO, Henrique, ibidem. A referência a Karl

Marx em A ideologia alemã (1979: 40) .

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progressiva dos produto qu ão meus mtensa­mente necessários para atisfazer a necessidad s humanas. Confirmando a previsões de Marx as proporçõe cre centes de trabalho morto - má­quinas que objetivam novas tecnologias - ubs­tituindo o trabalho vivo, anunciam que o papel da ciência emancipará a humanidade do trabalho manual desgastante e repetitivo. Foi o que Marx antecipou nos Grundisse:

"En la medida, sin embarao, en que la aran indus­

tria se desarrolla, la creación de la riqueza rellI se vueIve menos dependiente deI Liempo trabujado

y deI cuanto de trabajo empIeado que deI poder

de los aaentes puestos en movimiento durante eI

tiempo de trabajo,y cuya poweifuI rifJectiveness por su parte no Ou arda relación alouna con el tiempo de trabajo inmediato que cuesta su producción, sino que depende más bien deI estado oeneral de la ciencia y deI proore­so de la tecnoloOÍa.(. . .) EI robo deI tiempo de

trabajo ajeno, sobre el cual se funda la riqueza ac­tuaI, aparece como una base miserable comparuda

con la base recién desarrollada, creada por la aran industria misma. Tan pronto como e1 trabajo en forma directa ha cesado de ser la oran fuente de la riqueza, el tiempo de trabajo deja, y tiene que dejar, de ser su medida y por tanto el valor de cambio [de ser la medida 1 deI valor de uso." (grifo nosso) 11

o projeto socialista se apóia, portanto, em uma crítica da alienação pelo trabalho. Como destacou Marx, vivemos ainda em uma socieda­de em que a maioria dos homens só se reconcilia com sua humanidade quando não está trabalhan­do: é na hora do repouso, da higiene, da alimen­tação, do encontro sexual - necessidades que dividimos com o mundo anirnal- que nos reen­contramos conosco mesmos. Enquanto trabalha­mos, uma atividade especificamente humana, a

11 MARX, Karl. Elemenwsfundamentales para la critica Je

la economia poliLica Grundrisse, 1857/8. Mexico: Siglo

XXI,1997.

brutalização do trabalho alienado no aparta de nós mesmos. Quando satisfazemos nossas neces­sidades animais, nos sentimo humanos e livre, e quando realizamo nos a atividade humana, por definição, o trabalho, nos sentimo explorado e oprimidos, logo, animalizado . . Não surpreende que o sonho de todo trabalhador é poder deixar de trabalhar.

o PROGRESSO COMO O PROCESSO DE

AMPLIAÇÃO DAS ECESSIDADES

o sentido histórico da luta pelo socialismo tem sido este: o fim da exploração do homem pelo homem, ou seja, a realização da liberdade huma­na. A liberdade só se realizará para o marxi mo quando o trabalho deixar de ser uma causa de sofrimento, e passar a ser uma necessidade de rea­lização plena. A superação da alienação, nas pa­lavras de Plekhanov, se constrói compreenden­do a liberdade - sempre relativa e condicionada - como a consciência da neces idade:

"Explicando as palavras de Hegel. 'A necessi­dade só é cega na medida em que não é com­preendida', Engels afirmava que a liberdade consi te 'no domínio exercido sobre nós e sobre a natureza externa', domínio fundado no conhecimento das necessidades inerentes à natureza. ( ... ) Faziam ao autor de Anti-Duhring a objeção que não há liberdade onde há submissão à necessidade (. . .). O homem seria mais livre se pudesse

satiifazer suas necessidades sem dispender nenhum

eiforço. Ele se submete à natureza, mesmo quando a

obriaa a servi-lo. Mas esta submissão é a condição de

sua libertação: submetendo-se à natureza, aumenta

com isto seu poder sobre ela, ou seja, sua liberdade. Seria o mesmo no caso onde a produção social esti­

vesse oraanizada de forma racional. Ao se submeter

às exiaências da necessidade técnica econômica, os

homens poriam termo a este reaime insensato que

faz com que sejam dominados por seus próprios produtos, ou seja, aumentariam formidavelmente

sua liberdade. AqUi também sua submissão tornar­se-ia a fonte de sua libertação." (grifo nosso) 12

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o 'entido do progresso eria, nas palavras d Pl khanov, colocar as força: produtivas ao serviço do homem: ao admitir que no' so destino é in ­

divisível da natureza, e ao reconhecer que nossa sobrevivência depende de e forço, estamos dian­te do limite ' da condição humana. Não omos como as plantas, não fazemos fotossÍntese. De­pendemos do trabalho para a satisfação de no 'sas nece sidades. No entanto, na atuais condições ' 0 -

ciais e históricas podemo dominar as condiçõe da produção econômica indo além dos antagonis ­mos de classe. O último obstáculo que nos separa de uma vida social erguida sobre a colaboração consciente é a propriedade privada, e o Estado do Capital que tem a função de protegê-la.

Os socialistas argumentam que a liberdade humana só eria possível quando a penúria fos 'e eliminada. O principal impul o para o desenvol­vimento da forças produtivas foi a luta da huma­nidade pela satisfação de suas necessidades. Ao contrário da intensa propaganda, o Capital é um obstáculo da prosperidade humana e uma ameaça à civilização. A ampliação das necessidades é o pró­prio conteúdo do progresso e a substância da his­tória. Muitos se perguntam, contudo, qual o cri­tério pal'a aferir se uma nação está desenvolvendo uma experiência socialista. Afmal não foram pou­cos os governos no século XX que se autodefini­ram como socialistas. Uma sociedade só merece ser

caracterizada como estando em transição ao socialismo,

se estiver diminuindo aceleradamente as deSigualdades

materiais e culturais. Se a deSigualdade não diminui, mas a sume somente novas forma , não se trata de uma experiência de transição ao socialismo.

DE CADA UM SEGU DO SUA CAPACIDADE,

A CADA UM SEGU DO SUAS ECESSIDADES

o projeto socialista do marxi mo não propõe so­mente um plano bem intencionado, embora seja impossível derrotar o capital sem uma profun­da repulsa moral contra a injustiça. A defesa do

12 PLEKHANOV, George. Os princípios fimdamentais Jo

marxismo. São Paulo: Hucitec, 1978, p. 72/3.

136 História & Luta de Classes

igualitari mo repousa em uma análi das condi­ções objetiva e ubjetiva que a própria hi ·tória do capitali mo amadureceu ao longo dos últi­mos dois séculos. Não são os marxista ' soment que afirmam que não há explicação racional qu explique uma apropriação da riqueza social tão desigual. Se há uma constatação inescapável no mundo capitali' ta que no ' cerca é a comprova­ção da deSigualdade crescente entre os paí e do centro e os da periferia, e da disparidade social dentro dos paÍse . A renda do capital absorve na maioria da América Latina um valor maior que toda a massa salarial.

O projeto do socialismo é a distribuição da ri­queza entre todos os que trabalham, eliminando a renda do Capital. Não no deve surpreender, no entanto, que muitos acreditem na acusação dirigi­da aos marxistas de que são igualitaristas que de­fendem que todos deveriam receber o mesmo salá­rio, ou que todos o salários deveriam ser iguais ao valor agregado pelo seu trabalho. Não há, contudo, um só texto de Marx ou, de resto, de qualquer um dos principais herdeiros de sua tradição, que defen­da salário igual para trabalho diferente, nem foi este o critério dos comurmards, do bolcheviques, ou de qualquer das outras experiências pós-capitalistas do século XX. O projeto socialista é a distribuição da abundância, não a regulação da escassez.

É verdade que a Comuna de Paris estabele­ceu que o salário médio operário deveria ser a referência para os funcionários da própria Co­muna - uma função pública, portanto, removí­vel, do primeiro e efêmero Estado dos trabalha­dores - mas não estendeu este máximo para todas as

Junções sociais. Os socialista sempre defenderam que as diferenças salariais existente na maioria do países, com diferenças entre o piso e o teto que excedem a variação de 1 para 100, não corres­pondem às diferenças de qualidade nem à quan­tidade de trabalho efetivamente realizada. Não é admissível que um trabalho possa ser gratificado com

um salário muitas dezenas de vezes maiores que outro. A revolução de outubro procurou estabelecer li­mites entre o pi. o e o t to que não fossem além da variação de 1 para 10. Critérios semelhantes

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foram considerados nos primeiro anos da revo­lução chinesa e cubana.

Os marxista não defendiam, tampouco, que os salários poderiam ser iguais ao valor transferi­do à produção - uma quimera que supõe po ' sí­vel que cada um receba integralmente de acordo com o que produz - porque reconheciam a ne­cessidade de fundos públicos. Tanto para garantir os investimentos ou para financiar os serviços 0-

ciais, como para assegurar a proteção dos inaptos para o trabalho, como os doentes ou idosos.

Existiram, portanto, historicamente, dife­rentes tradições igualitaristas. Entre elas, recor­demos, também, os defensores da igualdade pela distribuição da propriedade, a aspiração secular dos camponeses pobres com sua fome crônica por mais terra ainda no horizonte da proprie­dade privada. O marxismo se distinguiu destas correntes por defender que a passagem a uma sociedade socialista deveria ser compreendida pelo critério de "cada um seBundo suas capacida­

des, a cada um seBundo suas necessidades", construída pela socialização da propriedade em correspon­dência com a socialização crescente da produção realizada pelo capitalismo. A distribuição segun­do as necessidades presume a desmercantilização dos produtos mais intensamente necessários, ou seja, a gratuidade da alimentação, da educação, da saúde, dos transportes, do lazer etc ... A gra­tuidade crescente dos produtos é o objetivo de uma distribuição socialista. A distribuição segun­do a satisfação das necessidades exigirá, portan­to, ir além do regime do trabalho assalariado, que deixará de ser um martírio, para alcançar o estatuto de plena realização.

Os marxistas nunca se iludiram, todavia, que este princípio organizador da distribuição pudesse ser implantado imediatamente, ou à escala de um só país. Os marxistas apreciavam que o socialis­mo teria uma fase inicial em que deveriam ocor­rer duas profundas transformações: a eliminação da remuneração do capital, ou seja, a garantia de que apropriação da riqueza produzida socialmente deveria ser distribuída entre todos, e uma sub ·tan­cial redução das diferenças entre os salários.

DE CADA UM SEGU DO UA CAPACIDADE,

A CADA UM SEGU DO O TRABALHO REALIZADO

O marxi mo estabeleceu como princípio de dis­tribuição para uma sociedade de transição "de

cada um seBundo sua capacidade, a cada um seBundo o trabalho realizado". Ao reconhecer que a distri­buição seria ainda regulada segundo o trabalho realizado, portanto, salários desiguais, os socia­listas estavam anunciando sua intenção de pôr fim à remuneração do Capital, mas admitindo uma distribuição de igual, transitoriamente, o que é o mesmo que aceitar algum critério de ra­cionamento. O cancelamento da renda do capital corresponderia, na maioria dos países periféri­cos como o Brasil - onde a massa salarial perdeu 10% da sua participação no PIB no último quarto de século - a uma socialização de mais de metade da riqueza nacional produzida a cada ano. O esta­belecimento de um piso e de um teto salarial em que a diferença entre o menor e o mais alto dos salários não excedesse, por exemplo, dez vezes o valor do mínimo, permitiria uma elevação rápida do padrão de vida da maioria da população.

Os critérios de remuneração do trabalho po­deriam reconhecer a necessidade de recompensas materiais para os trabalhos que pressupõem uma longa educação e treinamento - um estímulo à reposição e ampliação da mão de obra hiper-espe­cializada - ou das tarefas especialmente penosas ou perigosas. Deveria ser considerada, também, a necessidade de acabar com os supersalários dos administradores e diretores que realizam funções de confiança dos patrões e do Estado, que rece­bem pagamentos nababescos para manterem a obediência às hierarquias de comando. As tarefas de administração, mesmo quando especializadas, não exigirão qualificlções que possam dispensar a confiança dos que trabalham, e não há razão para que os encarregados não sejam eleitos por man­datos e regularmente substituídos.

Os próprios marxistas foram os primeiros a reconhecer que a diminuição da deSigualdade social impulsionada pelo princípio meritocrá­tico - a tirania do e forço ou do talento - "de

Valério Arcary / Igualitarismo marxista e liberdade humana 137

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cada um segundo sua capacidade, a cada um segundo

seu o trabalho realizado" , não garantiria uma justa

igualdade social , porque estaríamos diante de um

tratamento igual para os desiguais. O princípio seria igualitário, formalmente , mas não permitiria eli­minar a deSigualdade. A igualdade de oportunidades

não é o mesmo que a igualdade social. O princípio abstrato da igualdade meritocrática preserva um tratamento desigual.

No Brasil, todos sabemos que os inscritos no vestibular de acesso às universidades públicas têm igualdade de condições formais, mas a se­leção será decidida favorecendo os que tiveram melhores condições de preparação. A igualdade social só será conquistada quando todos os que assim quiserem - sem seleção pelo mérito ou por sorteio - possam realizar seus estudos superio­res, e existam vagas suficientes em universidades com ensino de qualidade equivalente. Henrique Carneiro nos recorda Marx:

"As condições de uma sociedade livre, em Marx, só se vislumbram a partir do momento em que o ' reino da necessidade' é superado, ou seja, quando cessa o trabalho determina­do pelas necessidades. A partir deste momento,

o trabalho não será mais a alienação compulsória

imposta pela necessidade, mas uma forma de livre

exercício da criatividade humana, quando a indús­

tria, a arte e a ciência se unirem numa atividade

livre, quando o trabalho se converterá de 'meio de

vida', em 'principal necessidade da vida', como es­

creveu Marx, na Crítica ao Programa de Gotha, em 1 875." (grifo nosso) 13

A manutenção das diferenças salariais se ex­plicaria não só pelas habilidades individuais ina­tas, ou pelas diferenças que resultam de inúme­ros fatores socialmente involuntários (oportuni­dades distintas, situações familiares específicas, dificuldade de acesso à educação, diversidade das

!3 CARNEIRO, Henrique, ibidem .

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condições materiais e culturais) que podemos de­finir como a herança da etapa histórica anterior. Em uma sociedade em transição ao socialismo na qual a escassez relativa exigiria a preservação da forma salário - expressando uma forma de ra­cionamento ou regulação do consumo - estaría­mos apenas diante de uma igualdade crescente.

Enquanto não forem atingidos os graus su­periores de desmercantilização, entendida como a disponibilidade universal dos bens e serviços mais intensamente desejados, condicionada pelo desenvolvimento das forças produtivas, pela su­peração da divisão entre trabalho manual e tra­balho intelectual, e pela participação coletiva nas decisões chaves da vida econômica e social, não desfrutaremos da liberdade porque não usufrui­remos a igualdade.

Alguns argumentam que o socialismo seria uma solução excessivamente radical e que a desi­gualdade poderia ser diminuída corrigindo as di­ferenças da distribuição de renda, sem a destrui­ção da propriedade privada. Afinal , no países centrais, a deSigualdade social não foi reduzida no pós-guerra? Sim, foi reduzida na Europa, nos EUA e no Japão, assim como, no final do século XIX, o padrão de vida médio das classes traba­lhadoras, em alguns países europeus, se elevou . Mas, foi uma experiência histórica excepcional e transitória. A história do capitalismo refuta esta possibilidade. Somente quando estiveram amea­çados, seriamente, pelo perigo revolucionário - como pela Comuna de Paris em 1871, e pe­las duas vagas revolucionárias que se seguiram à revolução de outubro na Rússia - os capitalistas aceitaram fazer concessões. Nenhuma classe pro­prietária, em nenhuma experiência histórica, re­nunciou, voluntariamente, aos seus privilégios. Foi a luta pelas revoluções que abriu o caminh o das

riformas. O projeto histórico de reforma do ca­pitalismo tem fracassado repetidas e incontáveis vezes. Todas as experiências de reformas foram passageiras e efêmeras. Assim que o capital con­seguiu neutralizar a força social dos trabalhado­res, anulou para a geração seguinte as conquistas da geração anterior.

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Gramsci sob novos ângulos de análise: Resenha do livro de Marcos Del Roio. Os prismas de Gramsci. A

fórmula política da frente única (1919-1926). São Paulo: Xamã, 2005.

Pode a obra de Antonio Gramsci, escrita há mais setenta anos, oferecer chaves interpretativas re­levantes para as questões do presente?

Leitores acadêmicos e militantes políticos brasileiros parecem acreditar que sim. Afinal, nos últimos anos, tem sido intenso o ritmo de publi­cações de textos de Gramsci e sobre Gramsci no Brasil. A contribuição mais relevante para esta retomada das reflexões inspiradas no revolucio­nário italiano é, sem dúvida, a (re)publicação dos seus escritos carcerários, textos políticos ante­riores à prisão e cartas do cárcere, coordenada por Carlos Nelson Coutinho. 1

Na esteira dos textos de Gramsci vem sen­do publicada também uma série de importantes

• Marcelo Badaró Mattos é professor de História do Brasil da Universidade Federal Fluminense, instituição pela qual se doutorou. I GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Tradução e organização Carlos elson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio ogueira . Rio de Janeiro :

Civilização Brasileira, 1999-2002 , 6 v.; GRAMSCI , Antonio. Escritos Políticos. Edição Carlos Nelson Cou­

tinho. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira , 2004, 2 v.

GRAMSCI, Antonio. Cartas do cárcere. Organização e tradução Luiz Sérgio Henriques . Rio de Janeiro: Civi­lização Brasileira , 2005, 2 vs.

Marcelo Badaró Mattos'~

análises sobre sua obra. É o caso, por exemplo, da coletânea de ensaios originada no encontro da Sociedade Internacional Gramsci, organizado no Brasil em 2001. Ou do estudo de Giorgio Ba­ratta sobre os Cadernos. Não menos relevante é a republicação (com revisões e ampliações) de es­tudos pioneiros de brasileiros, como os trabalhos do próprio Carlos Nelson Coutinho sobre a obra de Gramsci e sua repercussão no Brasil e o li­vro de Edmundo Fernandes Dias sobre a fase das mobilizações revolucionárias de Turim. Em áre­as universitárias específicas, como a História e a Educação, a referência em Gramsci tem gerado contribuições das mais relevantes para o debate, como nos livros de Sonia Mendonça e Lucia N e­ves. Também os movimentos sociais parecem sen­tir a importância do resgate de Gramsci, como faz notar a publicação pela editora Expressão Po­pular, vinculada ao MST, da biografia escrita por Mário Maestri e Luigi Candreva. 2

2 COUTINHO, Carlos el on & TEIXEIRA, Andréa de

Paula (orgs.). Ler Gramsci, entender a realidade. Rio de Janei­

ro: Civilização Bra il eira , 2003 . BARATTA, Giorgio. As

rosas e os Cadernos. Trad. Giovanni Semeraro. Rio de Janei­ro: DP&A, 2004. CO UTINHO, Carlos elson. Gramsci.

Um estudo sobre seu pensamento político. ova ed. ampliada .

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o recurso à Gramsci para pensar a atualidade não é isento de polêmica. Note-se, apenas para ficarmos num exemplo mais controverso cujas repercussões fazem-se hoje sentir de forma mais visível , a forma abusiva como no debate interno ao Partido dos Trabalhadores, o marxista sardo foi despido de sua perspectiva revolucionária e seu conceito de hegemonia reduzido a sinônimo de uma estratégia eleitoral de chegada aos gover­nos pelo voto. 3

Mas é difícil não perceber o potencial de suas análises sobre o Estado ampliado para pensar os complexos caminhos da dominação de classes em tempos de hegemonia assentada na perspectiva neoliberal. Da mesma forma como são inspira­doras suas propostas sobre a organização revolu­cionária e as estratégias de transformação social necessárias às classes subalternas para superar tal quadro de dominação. Não há como desprezar suas reflexões sobre o americanismo e o fordis­mo para avaliar o grau de mudanças e de conti­nuidade envolvido na atual reestruturação pro­dutiva do capital. Em tempos de modismo pós­moderno, ancorado em um culturalismo de forte viés determinista, cabe retomar tanto a crítica de Gramsci ao economicismo determinista, quanto suas potentes reflexões a respeito da cultura, dos intelectuais e da educação, em seu sentido mais amplo. No Brasil, mostra-se particularmente útil o emprego das reflexões gramscianas a respeito

Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. DIAS, Ed­mundo Fernandes. Gramsci em Turim . A construção do conceito

de heaemonia . São Paulo: Xamã, 2000 . MENDONÇA, So­

nia. O ruralismo brasileiro (1888-1931). São Paulo: Hucitec,

1997. EVES, Lucia (org.). A nova pedaaoaia da heaemonia.

São Paulo: Xamã, 2005 . MAESTRl, Mário & CANDRE­

VA, Luigi. Antonio Gramsci. Vida e obra de um comunista

revolucionário. São Paulo: Expressão Popular, 2001. Para

uma bibliografia completa, consultar o importante ítio

Gramsci e o Brasil, organizado por Luiz Sérgio Henrique (http://www.acessa.com / gramsci / index .php)... 3 Coelho, Eurelino ... Outra hegemonia : sobre alguma

leituras peti ta de Gram ci e uas reviravoltas". Outu­

bro, n . 12 , São Paulo, 2005.

140 História & Luta de Classes

da revolução passiva e do transformismo, para uma percepção mais apurada das linhas gerais da evolução histórica do último século e pouco de trajetória republicana.

Em meio a tal quadro de retomada das refle­xões inspiradas em Gramsci, o livro de Marco Del Roio - Os prismas de Gramsci - possui todos os méritos para representar um lugar de referência no debate universitário e político brasileiro (e, se traduzido, com certeza também internacional).

Em meio aos muitos pontos positivos do li­vro, destacamos dois. De um lado, a capacidade de contextualizar a ação política e a reflexão de Gramsci - entre o momento das mobilizações conselhistas de Turim e a prisão - no quadro maior dos debates da Internacional Comunista. De outro lado, a capacidade de resgatar a fase menos discutida dos textos do revolucionário italiano, reconstruindo as alterações nas suas li­nhas de reflexão e intervenção no debate públi­co, mas demonstrando, acima de tudo, o fio de continuidade entre os estudos anteriores e pos­teriores ao encarceramento, no que diz respeito aos aspectos fundamentais da análise social e da proposta de revolução socialista.

O livro :se divide em quatro capítulos, orga­nizando a narrativa em ordem cronológica, mas sempre orientada pela problematização do con­texto dos debates e ações dos comunistas da Eu­ropa do Ocidente (alemão e italiano com mais destaque) e do Oriente russo. Em todos os capí­tulos, Del Roio demonstra o completo domínio dos escritos pré-carcerários de Gramsci, bem como transita pelos textos das lideranças revo­lucionárias mais expressivas da época, além de farta bibliografia especializada.

O primeiro capítulo - "Guerra, revolução e cisão comunista em Gramsci" - aborda o pe­ríodo compreendido entre a criação do jornal L 'Ordine Nuovo , em Turim no ano de 1919, no processo que culminaria nas jornadas revolucio­nárias conduzidas pelos Conselhos de Fábrica, e a fundação do Partido Comunista Italiano (PCI), em 1921. Nesta etapa inicial da expo ição já se nota a ampla e nada forçada erudição do autor

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ao manipular diversas informações e análises so­bre o movimento comunista internacional. O ca­pítulo aponta os nexos entre as elaborações e intervenções de Gramsci na época, a partir de sua leitura da questão da cisão comunista, posta principalmente por Lênin, resgatando a influên­cia de Rosa Luxemburgo e Sorel e discutindo a progressiva superação da influência de Crocce, assim como apontando os paralelos entre as re­flexões do revolucionário italiano e as de Karl Korch e Lukács.

Também é enfocada no primeiro capítulo, a origem da proposta política da frente única, nos debates da Internacional Comunista (IC) que culminam no III Congresso, de 1921 . A proposta da frente única será o fio condutor a partir do qual o autor poderá acompanhar o lugar específi­co ocupado por Gramsci no debate do comunis­mo internacional nos anos seguintes.

Ainda neste primeiro capítulo, Del Roio ava­lia algumas marcas da perspectiva de Gramsci sobre o partido e a ação revolucionária da classe operária, que atravessariam toda a sua produção posterior, mostrando como para o revolucioná­rio italiano "o Estado operário não pode nascer de alguma eventual progressão democrática das instituições liberal-burguesas, mas apenas das instituições sociais geradas pela própria auto­organização da esfera do trabalho, com vistas a sua emancipação" (p. 41). No mesmo sentido demonstra que a experiência dos conselhos de fábrica de Turim seria valorizada em toda a sua reflexão posterior, sendo fundamental para a re­flexão do cárcere, "quando aventa a gestação de uma sociedade civil que organiza a hegemonia operária em posição antagônica ao Estado do ca­pital, dando origem a um novo Estado"(p. 42).

O segundo capítulo - "O paradoxo entre cisão comunista e frente única" - acompanha a trajetó­ria de Gramsci e da IC, nos anos de 1922 e 1923 . Neste capítulo, começa a receber maior atenção o debate interno ao grupo dirigente bolchevique rus o. A passagem de Gramsci pela União Soviéti­ca é discutida com maior atenção e o debate sobre a frente única, na Internacional e no PCI pa 'sa a

ter como pano de fundo a ascensão do fascismo, que chega ao governo da Itália em 1922. Os limi­tes da compreensão, tanto de Gramsci e do PCI quanto da IC, sobre o fascismo e as oscilações na concepção e aplicação da política de frente úni­ca, também são objeto de discussão no capítulo. Assim como o esforço de Gramsci para construir um novo grupo dirigente do PCI, capaz de supe­rar as dificuldades da direção liderada por Bordiga em ampliar o partido e aplicar (ainda que com o tom específico que Gramsci começa a desenhar) a política da frente única, evitando, em paralelo, o perigo maior da ascensão da direita partidária, liderada por Tasca. Interessante notar como o au­tor demarca a posição de Gramsci naquela fase, sempre mais próxima da esquerda da IC e no PCI - avaliando, por exemplo, que as possibilidades revolucionárias ainda estavam postas pela crise capitalista no Ocidente.

Destaque-se a forma como Del Roio demons­tra que, tão logo começava a se anunciar a "re­gressão teórica" dos bolcheviques e da IC - com o afastamento e a morte de Lênin, bem como com a derrota das revoluções no Ocidente - a origi­nalidade e os avanços da reflexão de Gramsci já começavam a se mostrar de forma mais evidente. É o caso de suas primeiras análises sobre o ame­ricanismo, questão abordada também por Trotski e Lukács naquele período. E, principalmente, da forma como Gramsci elabora sua reflexão sobre o partido político da classe trabalhadora, superan­do sem distanciar-se completamente da fórmula política autonomista de Sorel e aproximando-se, mas lendo de maneira original a formulação de Lênin. Para Gramsci, segundo Del Roio, "Era preciso um partido que fosse parte da classe e não sua abstração, e que agisse em todas as deter­minações sociais e políticas em oposição radical ao aparato do Estado burguês, não somente den­tro da dimensão própria ao mundo do trabalho fabril". Daí a importância da fórmula da frente única, aparecer para Gram ci, pelo vié de classe, não por um caminho simplesmente partidário, "como a mais adequada do ponto de vi ta teórico e prático para a obtenção do escopo da conquista

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e manutenção do poder e também como a que possibilitava estabelecer o nexo entre o universal e o particular da revolução socialista, na Rússia e no Ocidente" (p. 91).

O terceiro capítulo - "Refundação comunista e frente única em Gramsci" - se inicia com o ba­lanço da regressão teórica e política da IC, notá­vel a partir de 192 3 e segue acompanhando a tra­jetória de Gramsci - de Moscou a Viena e de lá retornando à Itália - no período até 1925, quan­do assume a Secretaria Geral do PCI e reorganiza a direção dos comunistas italianos, imprimindo uma política de respeito às diferentes posições internas ao partido, mas de aplicação unitária da política de frente única, tal como a vinha conce­bendo nos anos anteriores.

Segundo Del Roio, Gramsci percebe "que a chave da frente única deve articular o setor so­cial mais avançado, que é a classe operária mi­lanesa - ainda sob hegemonia reformista -, ao setor mais atrasado, o campesinato meridional" (p. 119). Num momento em que o PCI participa das eleições parlamentares e sofre a repressão às opo ições político-partidárias ao regime fascista, o deputado Antonio Gramsci parece ter clareza dos limites da ação partidária nos espaços da ins­titucionalidade liberal-burguesa e não privilegia o terreno partidário/parlamentar para a cons­trução da política de frente única. Pelo contrá­rio, "a única concepção possível de gente única, dentro desse entendimento, é a frente única que incorpora novos setores operários e populares ao espírito de cisão, que confronta o capital no próprio processo, enquanto o terreno da demo­cracia seria o campo de ação mais adequado ao inimigo de classe" (p. 116). Por isso, "a fórmula da frente única servia à estratégia revolucioná­ria de criação de uma sociedade civil do mundo do trabalho associado, antagônico ao domínio do capital. Tratava-se, em suma, da criação de uma nova hegemonia" (p. 136) .

Naqueles anos, parecia já estar formada em Gramsci a concepção de partido que eria melhor desenvolvida nos e crito carcerário. Del Roio desenvolve esta di cus ão, mostrando como para

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o revolucionário italiano "o partido é parte da classe enquanto processo histórico no qual se de­senvolve a luta anti-capitalista e instrumento de criação de uma nova relação entre classe e produ­ção material e entre classe e cultura, materializan­do uma nova hegemonia" (p.130). Re-inserindo Gramsci no debate dos principais formuladores do "espírito de cisão" comunista, ainda na época da II Internacional - Lênin e Rosa Luxemburgo - Del Roio precisa a especificidade da formulação sobre o partido do dirigente do PCI, mostrando "que a persistente preocupação de Gramsci com a centralidade da fábrica e da produção, com a auto-atividade das massas, que gera consciência e seleciona sua própria intelectualidade, continua mais próxima de Rosa do que da visão de Lênin, para quem a consciência vem de fora da produção pela ação de intelectuais revolucionários que le­vam à classe a visão da totalidade social e estatal . De Lênin e do bolchevismo, no entanto, Gramsci incorporou a visão de uma organização diScipli­nada e organizada de modo centralizado e pre­parada para enfrentar situações extraordinárias, quer fossem uma repressão desapiedada ou uma situação insurrecional" (p. 131).

O quarto e último capítulo - "A estratégia da frente única antifascista" - aborda a fase compre­endida entre a realização do III Congresso do PCI (em Lyon, na França, por conta da repressão fas­cista) e o final do ano de 1926, quando Gramsci é preso. N o capítulo, Del Roio analisa as teses de Lyon e expõe uma avaliação própria de algumas das questões mais polêmicas entre os analistas da trajetória de Gramsci, como seu posicionamen­to crítico em relação ao debate no interior do Partido Comunista Russo e suas diferenças em relação às posições de Togliatti, então represen­tando o PCI junto à IC, que defendia a fórmula do socialismo em um só país, o alinhamento au­tomático do PCI às teses da IC (cada vez mais dominadas pelo debate interno aos bolcheviques rus os) e entendia que o tal debate se resolve­ria pela exclusão dos opo icionistas minoritá­rio , enquanto Gramsci e a maioria da direção do PCI valorizavam a unidade, mas "entendiam

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que a dialética democrática e a busca da síntese teórico-prática, permanentemente reposta pelo movimento do real, eram da própria essência do partido revolucionário, que não poderia prescin­dir de qualquer dos seus elementos, a menos que se voltasse contra a eficácia organizativa e políti­ca dos comunistas" Cp. 150).

No capítulo Del Roio também demonstra os avanços nas análises de Gramsci sobre o fascis­mo, a crise capitalista e a questão meridional na Itália, elaborando novas sínteses para a aplicação da fórmula da frente única, no contexto de avan­ço da repressão fascista. A prisão interromperia momentaneamente estas reflexões e interditaria definitivamente a possibilidade de uma interven­ção direta de Gramsci na política italiana e inter­nacional.

Ao fim da obra, o leitor com certeza terá a recompensa de ter sido apresentado aos escri­tos menos discutidos de Antonio Gramsci, numa análise em que o quadro do movimento comu­nista internacional é precisamente desenhado. E poderá buscar suas respostas para a pergunta que abriu esta resenha, sobre a atualidade das re­flexões de Gramsci. Para este resenhista as pro­postas de Gramsci continuam mais relevantes que nunca, numa fase em que a esquerda socia­lista brasileira passa por um processo de reorga­nização, em meio ao desastre do governo petista. Basta, para ficar em alguns exemplos, resgatar as teses do revolucionário italiano sobre o parti­do político que nasce da classe, em sua postura autônoma e antagônica ao capital - formando seus próprios dirigentes/intelectuais e construin­do as bases de uma nova hegemonia - e sobre a construção da unidade necessária ao processo de transformação social a partir do terreno con­creto da luta de classes, alicerçada nestas classes e não nas direções partidárias, para buscarmos chaves de debate importantes sobre os proble­mas da atualidade.

Algumas das contribuições do livro de Del Roio podem ter sido aqui comentadas, mas com certeza o leitor atento encontrará muitas outras. Fica a sugestão de leitura.

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A linguagem escravizada: língua, história, poder e luta de classes

Florence Carboni e Mário Maestri publica­ram, em 2003, a primeira edição do livro A lin­

auaaem escravizada: língua, história, poder e luta de classes. [São Paulo: Expressão Popular, 2003 .] Eram 92 páginas que mostravam como a língua nunca é neutra, mas sempre forjada no contex­to do mundo social, embalada por relações de poder, das quais constitui representação e sim­bolização, ainda que o falante só possua frágil consciência da origem social e ideológica da lin­guagem que utiliza.

Mário Maestri, doutor em história pela UCL, na Bélgica, é conhecido no meio acadêmico mun­dial por seus trabalhos sobre a história social do Brasil. Integrante da corrente que definiu o pas­sado escravista brasileiro como expressão de luta de classes, associou-se à lingüista italiana Flo­rence Carboni, também doutora nessa disciplina pela mesma instituição, especialista na questão da linguagem, para publicar um trabalho germi­nal no sentido recém apontado.

Em menos de dois anos e meio, esgotaram-se os três mil exemplares da primeira edição. Fato inusitado apenas para quem não leu o trabalho de Carboni e Maestri. A linauaaem escravizada cons­titui uma ferramenta in~spensável aos pesqui­sadores, não apenas das ciências sociais. Nesse sentido, muitas vezes, as orientações propostas

Adelmir Fiabani ,(-

pelos autores quase servem como um manual para quem não quiser pecar gravemente ao escre­ver e falar, deixando que outros falem por sua boca, que outros escrevam por suas mãos.

Em novembro de 2005, veio a segunda edi­ção. Revista e ampliada, com agora 147 páginas, a obra mantém na sua essência as características que consagraram a primeira edição. "A língua é palco privilegiado da luta de classes, expressão e registro dos valores e sentimentos contraditórios de exploradores e explorados."

Também em 2005, ficaram expostas as feri­das do mundo globalizado, nos atentados do me­trô da Inglaterra, nos protestos das periferias de grandes cidades francesas, na crescente derrota estadunidense no Iraque, na construção do muro de Israel, nas jornadas da Venezuela, que regis­traram as duras e não raro contraditória formas de expressão da oposição ao imperialismo. Im­perialismo este, como assinalado em A linaua­

aem escravizada, construído igualmente através da imposição da língua e das formações discursivas próprias de setores sociais dominantes .

A língua do imperialismo, o inglês, vem sen­do imposta como língua universal . Tende a tor­nar-se obrigatória como segunda língua nas es­colas públicas em quase todo o mundo. Nada de anormal para Carboni e Maestri, pois, "as nações

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imperialistas lutam para imp.or suas línguas , e, p.or mei.o delas, seus val.ores às nações d.omina­das, assim c.om.o as classes d.ominantes esf.orçam­se para que .os d.ominad.os submetam-se plena­mente a uma ditadura lingüística, que facilita e _ c.ons.olida a ditadura s.ocial e ec.onômica" .

Esse mecanism.o já se verificara em .outras conjunturas históricas . N.o Brasil, a d.ominaçã.o através da língua rem.onta a.o sécul.o 18, quand.o, para manter .o d.omíni.o ide.ológic.o, cultural e re­ligi.os.o, "entr.oniz.ou-se .o p.ortuguês c.om.o língua col.onial e reprimiram-se .os falares extra-ew'.o­peus e cri.oul.os e suas influências na língua d.os c.ol.onialistas" . As palavras .oriundas das c.omuni­dades indígenas, africanas e cab.oclas passaram a ser vistas c.om.o estranhas, atrasadas, brutas, ul­trapassadas.

Os aut.ores m.ostram igualmente que praticar .o padrã.o considerad.o cult.o da língua p.ode tam­bém, assumir .o sentid.o de nã.o pertencer às clas- . '!5es -subalternizadas. "Membr.os emergentes das class~s desfav.orecidas sempre puderam se inc.or­porar às chamadas' elites, desde que renegassem suas raízes s.ociais, ide.ológicas e lingüísticas ."

A.o c.ontrári.o, quand.o indivídu.os "praticand.o

.o padrã.o lingüístic.o p.opular pr.ojetam-se s.ocial­mente, sem terem .o temp.o .ou a capacidade de se adaptar à f.orma culta, .o uso público de variantes c.onsideradas p.opulares é execrado C.om.o err.os e barbarism.os lingüístic.oS, p.or meio de sisudas c.orreções ~ruditas .ou ~e mald.osas ir.onias, a fim de que .o padrã.o p.opular nã.o seja prestigiad.o p.or esses l.ocut.ores excêlentes" . O presidente Lula é um exempl.o diss.o.

Carb.oni e Maestri analisam também as cate­g.orias usadas pela hist.ori.ografia c.ontemp.orânea e as ciências S.ociais em geral, m.ostrand.o que, muitas vezes, cientistas S.ociais bem intenci.ona­d.os utilizam term.oS c.om víncul.os ide.ológic.os­culturais própri.os às classes d.ominantes d.o passad.o justamente para elab.orar análises críti­cas destinadas a desvelar c.onflit.os ~ciais desse passad.o. Os aut.ores m.ostram, p.or exempl.o, que substituir a càteg.oria "escrav.o" p.or "trabalhad.or escravizad.o" impede que sejam negadas a.o cativ.o

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sua c.ondiçã.o de trabalhad.or e a vi.olência que ele s.ofreu a.o ser escravizad.o.

Outra questã.o levantada pel.os aut.ores refe- . re-se a.o papel da esc.ola. Tradici.onalmente, .os estabeleciment.os de ensin.o elegem apenas a va­riedade lingüística c.omum às classes d.ominantes c.om.o língua .objet.o de estud.o e instrument.o de c.omunicaçã.o. Nesse process.o sã.o discriminad.os .os alun.os que apresentam dificuldade para se des­vincular das variantes lingüísticas d.o seu mei.o. "A repressã.o lingüística é igualmente caminh.o para a repressã.o s.ocial e cidadã. Ela c.ontribui para a repr.oduçã.o das deSigualdades s.ociais" .

A linguagem escravizada questi.ona .o mit.o da fala "b.oa", "culta". Nã.o raras vezes , .os eleit.ores

indicam seus representantes p.orque "falam b.oni­t.o" . Ingenuamente, desc.onhecem .o p.oder da lín­gua, d.o discurs.o, da inc.orp.oraçã.o de expressões. Carb.oni e Maestri c.ontribuem especialmente para c.om .o mei.o acadêmic.o. A .obra c.onsagrada na primeira ediçã.o tende a repetir .o sucess.o.

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Esta revista foi produzida e impressa no verão de 2006,

no Rio de Janeiro, pela Associação para o Desenvolvimento

da Imprensa Alternativa -ADIA.

Foram usadas as tipologias Perpetua, High Tower

Text e Arial Narrow.

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Associação para o Desenvolvimento da Impre,.sa Alternativa

Agora a Revista ação Brasil

vem com DVD Nesta edição

1996-2006 I As Lutas pela Reforma Agrária, o Projeto Político do MST e a Estratégia do Poder

Entrevista com João Pedro Stédile